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entreViSta . Edmundo Antonio mAtArAzzo
EntrEViStA
Edmundo Antonio Matarazzo
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Luís Osvaldo Grossmann
Para o veterano do setor e conselheiro da Abranet, debate sobre revisão e unificação de serviços preserva mentalidade da telefonia fixa. “Nós nos perdemos em discussões do caminho e não falamos do destino”, afirma.
Novas tecnologias, mudanças de hábito, um mundo hiperconectado – o mercado de telecomunicações mudou profundamente desde que o país adotou a Lei Geral de Telecomunicações (LGT), incentivou o investimento privado, possibilitou a competição, enfim, pôs para funcionar a privatização do setor. Não surpreende, portanto, que mais de 25 anos depois se discuta uma revisão das regras e modelo que valeram até aqui.
Mas como alerta o membro do Conselho Consultivo da Abranet Edmundo Antonio Matarazzo, com 30 anos de experiência em telecomunicações – dez deles na Anatel –, a discussão proposta pela agência reguladora trouxe uma série de idiossincrasias. “Não temos um objetivo a alcançar, vamos só tentar simplificar as regras. Perdemos o fio da meada. Hoje o instrumento poderoso é o smartphone. Mas a cabeça ainda está no STFC”, diz.
Para Matarazzo, a Anatel sugere o caminho da consolidação dos serviços por meio da unificação da telefonia fixa, banda larga e TV por assinatura em um único serviço fixo, algum dia, e mais rapidamente a inclusão do Serviço Móvel Global por Satélite (SMGS) para a prestação do SMP. Entretanto, se reconhece incapaz de enfrentar questões estruturais por não ter competência para mexer na Lei Geral de Telecomunicações ou mesmo na regra específica da TV assinatura, caso da Lei do Seac. A seguir, os principais trechos da entrevista. Abranet: Exatos 25 anos do marco legal que
reestruturou as telecomunicações no Brasil, o setor tenta discutir o que fará nos próximos. É um momento promissor?
Edmundo Matarazzo: O futuro digital é promissor, mas o que preocupa muita gente é que as mudanças afetam também os serviços de radiodifusão, os meios de comunicação social. A comunicação utilizou várias ferramentas ao longo do tempo, desde as pinturas rupestres, a escrita, o correio, o jornal, o rádio, o telefone, a televisão, o computador, a internet, e nos dias de hoje o smartphone. Nossa vida hoje está no smartphone. Passou a perna no rádio, na TV, no computador etc. E serve para tudo. É pau para toda obra. É carteira de identidade, meio de pagamento, é jeito de comunicar, com vídeo ou sem, mensagem, aplicativo, até serviço de telefonia faz.
Mas a estrutura do setor, tanto de comunicação quanto telecomunicação, não se preparou para isso. Aconteceu de supetão, sem ninguém prever ou estimular. E não tem como frear. Diante dessa situação, a Anatel trabalha com uma lei estabelecida quando o mundo ainda era praticamente todo com monopólio estatal e o serviço máximo era o STFC. A LGT não tratou das comunicações, somente das telecomunicações. Não é o mundo de hoje. Estamos atrasadíssimos. Não conseguimos visualizar o futuro. Não estamos conseguindo enxergar para onde vai e qual será o modelo.
A ideia não seria reunir os serviços em um número menor de licenças?
Em pleno 2022, a Anatel justifica que ‘a convergência das redes e serviços de telecomunicações tem se tornado uma realidade cada vez mais presente’ e abre uma consulta para
discutir regulamento de serviços. Fala do consumidor, qualidade, competição. E, ato contínuo, que os regulamentos devem evoluir simplificando as regras no que for possível, com a potencial consolidação de serviço. Como traduzir isso? Estamos falando de telecomunicações, a Agência já fez no passado uma consolidação de serviços e no fim o que se fazia antes continuou sendo feito e o nome do serviço mudou. Perdemos o fio da meada. Temos problemas distintos e jogar tudo no mesmo saco e unificar ou consolidar não permite entender o objetivo a ser alcançado, não dá para entender o que se quer regular ou controlar. Mas a consolidação parece toda escorada no mesmo modelo do STFC e do SeAC.
A consulta indica que se pretende discutir área de prestação, remuneração de redes, regras de interconexão, impacto na numeração se unificar. Lembra que alguém tem que rever a Lei do SeAC. Não há uma diretriz sobre o que será feito com o regime público. Sobre a competição, parece que se pretende alterar o PGMC [Plano Geral de Metas de Competição] e as regras assimétricas para PPPs [Prestadores de Pequeno Porte], que até funcionam. E, por fim, tem que ajustar o SMP para incluir uma modalidade de serviço móvel via satélite meio que perdida ao longo dos últimos anos.
Mas não seria importante rever logo todos esses serviços?
O problema é que toda a estrutura que a gente tem foi baseada no STFC – chamada local, longa distância nacional e internacional. Quando surgiu o móvel, foi alinhado com o STFC, só que móvel. O SCM ficou no limbo porque não podia ser meio para nenhum outro serviço de telefonia ou TV por assinatura; assim, qual infraestrutura seria necessária? Acabou sendo uma rede entre o usuário e o provedor de conectividade. Agora vamos dar numeração ao SCM, a mesma do STFC, para fazer chamada local, LDN e LDI, com a mesma regra de interconexão do STFC. O SeAC não terá numeração, seguirá como uma infraestrutura entre head end e usuário. O Serviço de Comunicação de Dados é igual ao STFC? Precisa de área local? Remuneração de rede, interconexão? Qual segmento da cadeia de valor do SeAC a lei privilegia? A gente precisa pensar fora da caixa. Nada disso precisa continuar existindo. Mas esse é o ponto que gera insegurança em todo mundo. Nessa situação, as empresas se agarram na receita. Enquanto existir, precisa ter receita.
Nessa perspectiva, o STFC é tido como morto exatamente porque não gera mais receita; passou a ser um serviço de telecomunicações com pouca relevância. O que está fazendo revolução é WhatsApp, é o vídeo disponível via Facebook, via diversas plataformas, ferramentas como Teams, Zoom, Skype, que fazem comunicação entre pessoas com voz e imagem, troca de texto.
Mas essas não são as limitações do que o regulador pode fazer?
O que a Anatel vai conseguir fazer? Acho que muita gente se perde em discussões do caminho e não do destino. Quero discutir o uso do poste, mas nem sei se vai continuar existindo poste. Isso vai servir para alguma coisa? O foco precisa se alterar. Todo mundo está preocupado com o dinheiro da janta porque gastou o do almoço. E no dia seguinte ninguém sabe o que vai fazer.
Fazer telecom rentável está difícil. Mas ninguém pergunta por quê e se vai continuar assim.
A discussão está sendo conduzida para a consolidação de serviços. O problema é que é uma discussão de menos da metade, porque a Anatel não pode mexer na legislação. Para alterar o STFC como serviço público, é preciso alterar a lei; decreto só para outras modalidades. Para agregar um equivalente ao SeAC, é necessário, além de mudar a lei, mudar a cadeia de valores utilizada, que já se desfez frente ao mundo real. Olha a confusão. A Anatel não pode alterar as leis não pode decidir sobre manter ou não o regi-
me público. Por isso, a única coisa que se pode dizer é que o SCM terá numeração, um dia.
Mas a numeração não é uma demanda importante?
O que acontece no SCM quando se discute numeração, é se vai ser a mesma do STFC, ou do SMP. No STFC, o número é vinculado a uma área local. No SMP, o número é da área de numeração, para fins de tarifação e encaminhamento das chamadas. Qual será o uso da numeração no SCM? Recurso para fazer chamadas telefônicas? Comparar o SCM ao SMP é mais razoável e condizente com as tecnologias aplicadas. Mas, no fim das contas, não tem sentido. Nem área de numeração, nem área local, nem longa distância. Isso é algo que está sendo mantido só porque existe STFC e no SMP por alinhamento com o STFC.
Faria mais sentido discutirmos ter SCM fixo e SCM móvel (SMP), mas não vamos conseguir avançar por aí, porque as operadoras pagaram uma baba pelas licenças, tem um legado pesado e que aumenta a cada dia que adiamos as mudanças. Imagina implementar a interconexão STFC com SCM com ‘bill and keep’, é imaginar que o SCM vai tarifar chamadas como o STFC. É colocar o mundo novo dentro do velho e achar que vai dar certo.
É a tal cabeça no STFC?
Veja quanto custa um acesso local STFC em uma concessionária, fazendo chamadas para o Brasil inteiro. É coisa de R$ 80/mês. Mas eu posso comprar um acesso móvel que faz chamadas para o Brasil inteiro e ainda permite 2 GB de dados por R$ 39,90. Se quiser só internet móvel 100 GB sai por R$ 99,90. Como pagar R$ 80 para ter voz? Ninguém vai comprar STFC. Todo estabelecimento hoje anuncia um número, mas para uso do Whatsapp. Não é mais número para chamada telefônica. A numeração no SCM não vai matar o STFC. O STFC está morto faz tempo. E se der numeração para SCM e tiver que cumprir as obrigações do STFC, melhor não ter o número.
Se tudo isso nos deixa presos no caminho, qual seria o destino?
Acho que quando a gente pensa em unificação de serviços, a primeira coisa seria, talvez, pensar qual será o dispositivo utilizado pelos usuários. Telefones são peças
de museu ou antiquário. O smartphone é o dispositivo do momento, tem mais aparelho móvel no país que o número de habitantes. Esse dispositivo serve para assistir a vídeo, para fazer videoconferência, usar app, pagar conta, navegar na internet, serve de documento de habilitação, passaporte, serve para tudo isso. É o instrumento importante. Então, todos têm um dispositivo desses. É o que está à venda. É o instrumento que vai ficar cada vez mais poderoso. Na maioria dos países o serviço universal é um princípio, e ainda encontramos o serviço de voz presente, mas a conectividade já está ao lado. Nossa lei não se contentou em indicar um princípio, definiu as modalidades de serviço e escolheu como universal o Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC). Reitero: qual é o dispositivo que a maioria da população tem nas mãos? O aparelho móvel.
Resumindo, uma simplificação de regras, sempre bemvinda, porém, uma consolidação que não leva ao futuro, mas nos mantém presos ao passado.
Fica até difícil fazer uma contribuição. Porque sai do escopo, tem que mexer na LGT, tem que mexer na Lei do SeAC. Vamos alertar sobre o que se precisa discutir para valer. Por que se não se discute o futuro digital que precisamos, corremos mais risco de nos afastar dele.
Por fim, um comentário sobre a Norma n°4 e a tributação de telecomunicações e SVA. A norma é essencial e foi a pedra fundamental em inúmeras decisões judiciais em diferentes instâncias para evitar que as Receitas Estaduais ampliassem a base de cálculo do ICMS, o que teria tornado a internet mais cara e a deixaria ainda mais distante de parte da população. Saber como funciona a internet e como ela difere de um serviço de telecom é dever de todos que operam a internet no mundo. Nesse caso, muito me alegra a posição do conselheiro relator que preserva a norma e abre oportunidade para que aqueles que tenham dúvidas sobre o que é internet e o que é serviço de telecomunicações tenham as mesmas sanadas definitivamente. •