Diários de Presos Políticos Portugueses

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DIÁRIOS DE PRESOS POLÍTICOS

TRABALHOS DE ALUNOS – 9ºA, B, C História - 2014-2015


Página de diário de um preso político português

Índice INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 3 1.

Preso político n.º 12002, por Inês Silva ........................................................................................... 7

2.

Memórias de Injustiça, por Pedro Bandarra ................................................................................. 10

3.

Preso político n.º 1465, Álvaro Cunhal, por Daniel Sousa ............................................................. 11

4.

Presa política n.º 11722, Conceição Matos, por Magda Lourenço ............................................... 12

5.

Preso político n.º 13254, Sérgio Vilarigues, por Raquel Travia ..................................................... 13

6.

Preso político n.º 11722, António Ramos, por Inês Ramos ........................................................... 14

7.

Preso político n.º 11553, António Branco Fontes Relvas, por Margarida Pereira ......................... 17

8.

Preso político n.º 14539, por Ana Catarina Santos ....................................................................... 18

9.

Preso político n.º 11127, Luís Nascimento, por Inês Margarido ................................................... 19

10.

Presa política n.º 19912, por Inês Agostinho ................................................................................ 21

11.

Presa política n.º 11644, Maria Deolinda Gonçalves, por Leonor Mendes ................................... 23

12.

Preso político n.º 24120, Henrique Galvão, por Inês Ventura ...................................................... 25

13.

Presa política n.º 11123, por Laura Paiva ...................................................................................... 26

14.

Memórias de Injustiça, por Andrian Bilinskyy ............................................................................... 28

15.

Presa política n.º 12566, por Catarina Faísca ................................................................................ 29

16.

Preso político n.º 13466, António Carrasqueiro, por Raquel Santos............................................. 30

17.

Presa política n.º 13677, por Sabrina Campos .............................................................................. 32

18.

Preso político n.º 12722, por Diogo Rosário ................................................................................. 34

19.

Preso político n.º 10011, Pedro Soares, por Bruna Encarnação ................................................... 35

20.

Preso político n.º 11222, por João Arvela ..................................................................................... 36

21.

Presa política n.º 11865, Vitória Ferreira, por Núria Costa ........................................................... 37

22.

Preso político n.º 11224, Manuel, por Rafael Santos .................................................................... 38

23.

Preso político n.º 11433, Duarte Silva, por Daniel Candé ............................................................. 39

24.

Marcas insanas de Maria Fernandes dos Santos, por Daniela Santos .......................................... 41

25.

Preso político n.º 11455, João Rodrigues, por Diogo Ferreira ...................................................... 42

26.

Presa política n.º 11443, por Raquel Ribeiro ................................................................................. 44

27.

Preso político n.º 11964, por Ricardo Viegas ................................................................................ 45

28.

Preso político n.º 11553, por Sara Boom ...................................................................................... 46

29.

Preso político n.º 11328, Henriques Soares, por Vasco Pearson .................................................. 47

Capa: http://www.avante.pt/pt/1985/pcp/117748/ ARANHA, Ana; ADEMAR, Carlos – No limite da dor – a tortura nas prisões da PIDE. Lisboa, Parsifal, pág. 265.

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INTRODUÇÃO Podem traçar meu corpo à chicotada. Podem calar meu grito enrouquecido. Para viver de alma ajoelhada. Vale bem mais morrer de rosto erguido.

Maria Eugénia Varela Gomes Considero que a disciplina de História poderá ser a mais desinteressante de todas as que constituem a matriz curricular do 3.º ciclo e “aquilo” a que os alunos apelidam de chato e inútil. Desinteressante e inútil, porque os alunos não veem sentido no que aprendem, não percecionam que o seu presente resulta das ações do passado, e ouvem-se expressões como: “Para que serve a História?”, “Que interesse tem saber o que fizeram os antigos egípcios, gregos?…”. Contrariamente às outras disciplinas do 3.º ciclo, onde facilmente os alunos encontram uma utilidade no seu estudo - as Línguas para comunicar ou para entender as letras dos grupos musicais; a Geografia para entender a meteorologia (será que amanhã irá chover?); as Ciências, ao viverem das experiências, para aguçar a curiosidade científica… -, a História poderá ser a disciplina mais secante e inútil quando se “obriga” os alunos a memorizarem datas e acontecimentos sem conexões e entendimentos e a decorar para despejar nos testes e depois esquecer. O ensino da História que trabalha a memorização, priorizando factos, é exemplo disso. Ao memorizar dados sem conexão entre si e com a nossa realidade, os alunos estão destinados a deixá-los de lado pelo seu pouco uso e por não lhe atribuírem significado. O passado histórico, realmente, não pode ser recuperado, não temos laboratórios ou máquinas para viajar no tempo, mas através da utilização das fontes históricas interpretadas pelo aluno, ele aprende a analisar e selecionar pontos de vista diferenciados, a entender a multiperspetiva em História, a inferir sobre o passado, a descobrir intenções e a entender as ações dentro de um contexto que não é o seu. E é aqui que a empatia histórica se revela determinante na aprendizagem da História: o aluno precisa de entender como as pessoas do passado viam o seu mundo e desenvolviam as suas ações. Na Educação Histórica existe a preocupação em encontrar metodologias de ensino que desenvolvam no aluno a capacidade de emitir juízos críticos, fundamentados através da seleção e tratamento de fontes históricas diversas,

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enquadrados no tempo e espaço históricos e nos contextos que lhes dão vida. O aluno deve pensar como um historiador, conhecendo e trabalhando a multiperspetiva, realizando juízos críticos sobre a validade de informações fornecidas pelas fontes. Aqui ganha sentido a empatia histórica entendida1 como a capacidade do aluno compreender os motivos das ações realizadas em outros momentos históricos e de compreender a produção de alternativas de ação típicas desses contextos. Ligada à empatia histórica há a mobilizar o conceito de imaginação histórica, seguindo perspetiva apresentada por Colllingwood: “(…) a imaginação histórica tem como tarefa especial imaginar o passado: não um objeto de possível percepção, uma vez que já não existe, mas um objeto susceptível de se tornar, através da imaginação histórica, um objecto do nosso pensamento.” (1981:299). E vale a pena continuar a ler: “A imagem que o historiador dá ao seu objecto, quer seja uma sequência de acontecimentos quer um estado de coisas passado, surge desta forma como uma teia de construção imaginativa, estendida entre certos pontos fixos, fornecidos pelas declarações das fontes. E se estes pontos forem suficientemente numerosos e os fios – ligados uns aos outros – estiverem construídos com o cuidado devido, sempre por meio da imaginação a priori e nunca por fantasia meramente arbitrária, todo o quadro é constantemente verificado em correspondência com estes dados, havendo pouco perigo de perder o contacto com a realidade que representa.” (1981:299). Collingwood conclui: “História não significa saber que eventos se seguiram a quê. Significa transportar-se para o interior da cabeça das outras pessoas, observando, nessa situação através dos seus olhos, e pensar por si mesmo se a forma que a mesma foi abordada era o caminho certo.”2 O que deve então um professor fazer para transformar a História numa disciplina reconhecida pelos alunos como útil, interessante e que os ajude a criticar e compreender o mundo em que vivem? A experiência tem-me ensinado que quando os 1

Cf para as noções de empatia histórica e de imaginação histórica o artigo: http://www.snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1364641045_ARQUIVO_ALGUMASREFLEXOESSOB REOCONCEITODEEMPATIAEOJOGODERPGNOENSINODEHISTORIA.pdf, consultado em 02/03/2015. 2

Cf

http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0942.pdf

12/03/2015

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consultado

em


Página de diário de um preso político português

alunos são encarados como agentes da sua própria formação, no sentido da perspetiva construtivista, as suas aprendizagens tornam-se significativas. Assim, procuro na minha prática pedagógica, colocar questões problematizadoras que conduzam os alunos a leituras históricas que lhe fornecem a possibilidade de entender, refletir e produzir um discurso sobre uma época histórica ou um acontecimento.

No âmbito do programa de História do 9.º ano e das comemorações do 41.º aniversário da Revolução do 25 de Abril na minha escola, solicitei aos meus alunos que produzissem uma narrativa histórica intitulada “Página de diário de um preso político português”. Em situação de sala de aula havíamos analisado fontes históricas e debatido o tema. Depois, entreguei-lhes um guião de trabalho que poderiam seguir3 com indicação bibliográfica4. Este livro digital é o resultado dos trabalhos mais imaginativos e com rigor histórico que me foram entregues. É o resultado da sensibilidade, determinação e empenho de cada aluno. Muitos dos textos são ficcionados, construídos com base nas pesquisas e narram histórias de personagens imaginárias ou de personalidades que lutaram contra o fascismo, como Álvaro Cunhal, Conceição Matos ou Sérgio Vilarigues, 3

Porque existiam (existem) presos políticos? Quem eram? Como era a sua vida? Destas questões problematizadoras surgiram pistas que os alunos poderiam explorar e que passaram por: i) Definir a personagem: homem ou mulher; fictício ou real; idade e outros dados que considerassem relevantes; ii) Escolher a data em que escrevem - dos anos 30 até 1974 (fascismo em Portugal - Estado Novo); iii) Porque foste preso? iv) Quando foste preso? Quem te prendeu?; v) Foste denunciado por alguém? Foste interrogado? Foste torturado? vi) - Em que prisão te encontras: Caxias, Peniche, Tarrafal, Aljube…? vii) Em que condições te encontras? Como é a tua cela? A tua alimentação? És torturado? Vês a tua família? Como ocupas o teu dia? viii) - Que direitos humanos te foram roubados? … 4

Bibliografia apresentada: A tortura, retirado de MADEIRA, João e outros (2007) Vítimas de Salazar. Lisboa, Esfera dos Livros. (distribuído na aula). Álvaro Cunhal Se fores preso camarada: https://www.marxists.org/portugues/marighella/1951/preso/se.htm OU http://minhateca.com.br/almanachrepublicano/ARQUIVO+DOCUMENTAL/ESTADO+NOVO/RESIST*c3*8 aNCIA+*26+REVOLTAS/PCP+-+SE+FORES+PRESO+CAMARADA+...+%281947%29,188517542.pdf http://irenepimentel.blogspot.pt/2015/02/a-policia-politica-e-tortura-em_3.html No limite da dor - programas radiofónicos - com entrevistas a presos políticos: http://www.rtp.pt/play/p1379/no-limite-da-dor Prisões políticas portuguesas http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=PedroMedeiros BASTOS, Joana Pereira - Os últimos presos do Estado Novo https://books.google.pt/books?id=dDT4ZM7sNqYC&pg=PT39&lpg=PT39&dq=se+fores+preso+camarada &source=bl&ots=2xj3i7p5Bo&sig=qDN9J_w41F1_aUOsYDPRlNO0sRY&hl=ptPT&sa=X&ei=t5wlVYmINYG4UqmUgNAN&ved=0CEkQ6AEwBjgK#v=onepage&q=se%20fores%20preso% 20camarada&f=false

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mas há uma narrativa que conta a história do bisavô da Margarida Pereira que foi preso pela PIDE. A ilustrar algumas das narrativas históricas encontram-se desenhos feitos por alunos de várias escolas algarvias participantes no concurso escolar organizado pelo Sindicato de Professores da Zona Sul, SPZS-FENPROF,: “Um retrato da vida e obra de Álvaro Cunhal”5 que foram amavelmente cedidos. Constitui ainda objetivo deste livro digital a divulgação junto dos pais e encarregados de educação e comunidade cibernauta os trabalhos produzidos pelos alunos, contribuindo para a valorização do que é feito no espaço escolar. Finalmente, este livro é uma homenagem sentida aos homens e mulheres que lutaram contra a ditadura portuguesa, que viram as suas vidas desfeitas em nome da construção coletiva de um país democrático e que conheceram a prisão fascista, a tortura ou mesmo a morte. Cristina Barcoso Lourenço Montenegro, 26 de Abril de 2015 (há 41 anos foram libertados os presos políticos portugueses)

Desenho de José Dias Coelho, assassinado pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, que hoje tem o seu nome, junto ao Largo do Calvário, em Lisboa.

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Ver http://spzs.pt/ficheiros/2013/regulamento_concurso_spzs.pdf

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1. Preso político n.º 12002, por Inês Silva Caxias, por volta de 12 de maio de 1957 Sentado na minha “cama”, ou melhor, no único cobertor roto que me protege do chão frio e imundo, de joelhos, entre quatro paredes, que quase se tocam, de tão perto que estão, sinto-me como se estivesse num caixão mas com menos conforto. Até já me habituei a este cheiro a bafio, às humidades que se impregnam até aos ossos, que me provocam náuseas e dores horríveis no corpo, a acumular às dores provocadas pelas “porradas” e murros que aqueles “monstros” me dão. Como

é

possível

o

fascismo! Pergunto-me, como é que mães e pais geraram e educaram

crianças

que

se

tornaram

homens

fascistas,

que não respeitam os seus semelhantes, no mais simples, no que todos nascem com ela, a nossa VOZ, que nos permite exteriorizar o nosso pensamento, a nossa alma. Sermos livres! Qual é o ser humano (e até animal irracional!) que consegue viver sem liberdade de pensar, de comunicar, de agir? Acabei de sair de mais um interrogatório, (como quem diz do purgatório!) onde estive cerca de três semanas. Parece impossível, mas até tive saudades de ter uma cela! Estive numa sala, com grades, com “carrascos” que esperavam que “desse com a língua nos dentes”, sobre os meus camaradas. Quem são? Onde moram? Que fazem? O que dizem? Conheces o fulano? Conheces o beltrano? Queriam! Não sou dos que denunciam camaradas! Não sou bufo! Saí com menos dentes, com mais nódoas negras no corpo, hematomas, sem unhas, com dores horríveis na cabeça, tonto, com marcas internas e externas que se tatuaram para toda a vida. Como dizia Fernando Pessoa, “doí-me a alma e o universo”. Mas aqueles “porcos” ficaram com a mesma informação, ou seja, nada. Ainda não sarei as feridas da primeira vez que fui preso e vim aqui parar, a esta prisão de Caxias. Também não me esqueço do dia em que estávamos a redigir artigos

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para o nosso jornal “Avante”, na casa de um camarada, e a PIDE entrou inesperadamente, levando-nos separadamente para sermos interrogados. Devem estar aqui, mas nunca mais os vi. Mas, desta vez, é bem pior! Os horrores porque tenho passado são desumanos. Não sei como é que um homem consegue ser tão mau e perverso contra outro. Jamais, nem nos meus piores pesadelos poderia imaginar tortura tão dolorosa. Parece que durou uma eternidade… Em muitos momentos, achei que não aguentaria e morreria nos braços daqueles “gorilas”. O primeiro interrogatório foi o menos doloroso porque foi simples. Cheguei à sala, acompanhado de dois polícias, sentaramme numa cadeira, sem braços, em frente a um médico, para que verificasse o meu estado de saúde (depois foi sempre assim, um médico verificava se após as retaliações e as ofensas físicas, eu ficava em estado de consciência por forma a que as minhas possíveis denúncias ou informações fossem validadas). Ao nosso lado, estava mais um polícia e a um secretário, que apontava tudo o que acontecia. A primeira frase do polícia foi: “Estou aqui para ajudá-lo, por isso, ajude-nos também”. Nem me dignei a responder. E continuou …“vamos começar com calma… Quando é que é o próximo encontro e onde? Mantive o meu silêncio. E ele insistia… insistia e insistia. Entretanto, dizia “Eu quero só que me digas, se disseres podes ir sossegado à tua vidinha. Só quero que me confirmes porque já sei tudo”. Facilmente concluiu que da minha boca não iriam ser emitidas as palavras desejadas, que o silêncio era a minha única arma, e, como diz uma das edições do Avante, “Eu quero ser e hei de ser digno do meu nome de comunista e da confiança que em mim depositam”. Por isso mandou vir outros PIDES. Não tinham um ar tão pacífico, vinham prontos e cheios de vontade de me espancarem: posicionaram-se à minha volta, fechando-me num círculo, e espancaramme a murro, a pontapé e, a partir de certa altura, nem reconhecia os objetos que utilizavam ou como faziam. As dores eram tamanhas! Descalçaram-me os sapatos e meias, deram-me pancadas tão violentas, mas mesmo tão violentas, que só gemia de dor. Não bastou! Obrigaram-me a marchar sobre os pés feridos, em sangue e inchados. A partir desse dia, vieram outros e mais outros, com estas e outras torturas. Apertaram-me os testículos, bateram-me com grossas tábuas, durante muitos dias fiz a

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“estátua”, ou seja, estive longas horas em pé sem me poder mexer. Mas das piores, foi a tortura do sono, sem poder dormir durante dias. O cansaço levou-me às alucinações. Foi um horror! E passei por muitas outras imagináveis torturas. Algumas, até me vergonho de as contar! Acabaram por concluir o que era evidente. Que nem que me matassem iria denunciar ou dizer o que quer que fosse. Deixaram-me simplesmente “preso”. Mas, sem poder receber visitas, da minha família ou de outro indivíduo qualquer. Já para não falar da comida, se assim se pode apelidar. Uma vez por dia, pão que parece pedra. Chego a pensar que o guardam de propósito para ficar duro e com bolor. Para além de fraca, a nossa alimentação é intragável. Mas temos que fazer um esforço! Senão, sobrevivo às torturas, mas acabo por morrer de fome. Continuo sem poder sair da cela. Gostava tanto de sentir o sol a bater na minha cara e de sentir o seu calor! Ocupo o meu tempo a ler alguns livros, os que me deixam, e a escrever, às escondidas. E nem por um dia, eu deixo de pensar quem terá sido o indivíduo que me denunciou, a mim e aos meus camaradas. Quem será o infiltrado? Parecia que “estávamos todos no mesmo barco”, com as mesmas convicções, os mesmos princípios democráticos e de igualdade, na mesma luta contra quem nos mata a liberdade de falar, de pensar, de ler, de crescer… de tudo. Tiram-nos o melhor que somos! Fez-se passar por camarada mas não passa de um reles rapaz que não conhece e não consegue ter outra forma de ganhar a vida senão ser bufo… Eu, pelo contrário, mesmo com apenas 27 anos, prometo, enquanto vivermos nesta sociedade que nos roubou a liberdade (e já luto desde a minha adolescência, passando pelos tempos de faculdade quando me filiei no PCP) jamais me irei calar ou deixar de participar nas manifestações ou de escrever artigos (mesmo que na clandestinidade!) no nosso jornal Avante, mesmo que volte a ser preso mais um “milhão” de vezes. Não desisto. A luta continua… Estou a ouvir os passos do guarda que nos vem revistar, é melhor acabar por aqui (o que tenciono que seja um diário!), e esconder, o melhor que posso, estas folhas.

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2. Memórias de Injustiça, por Pedro Bandarra Aljube, 28 de novembro de 1967 Hoje fiz o meu sexagésimo risco na parede desta obscura e gélida cela. Por vezes, dou por mim a repetir o meu nome “António Serra, António Serra...” para não me esquecer de quem sou. Ontem, segundo as minhas contas, fiz 42 anos. Nas horas em que não fui torturado,

humilhado

e

interrogado pensei na minha família, o que estaria a minha mulher a fazer, se o meu filho estaria bem, ou mesmo se os meus pais ainda estariam vivos, pois quando fui encarcerado o meu pai estava de cama. Por outro lado, são estas dúvidas que me dão alento para não perder a lucidez e a fé nos meus ideais. Indesejavelmente, a memória daquela fatídica tarde em que fui detido vem à minha lembrança. Como pôde aquele em que mais confiava trair-me? E mais grave, trair tudo o que defendíamos. A igualdade de direitos, a coletivização e nacionalização dos bens, o direito à livre expressão e a abolição da ditadura. Como é que não desconfiei daquele insistente convite para um copo durante o horário de trabalho? Mal entrei na taberna e vi-me rodeado por homens fardados e armados que me agarraram com força. Não tive a mínima hipótese de reação... malditos PIDES! Levaram-me para uma sala e começaram com um interrogatório, onde com uma conversa afável me tentavam desmascarar e fazer com que revelasse os meus princípios comunistas. O tom da conversa e as suas atitudes foram ficando mais ríspidos, passando à discriminação e incriminação de atos jamais praticados por mim. Desde aí, tudo o que me lembro é de espancamento, dor, humilhação, suplício, escuridão e tortura através da privação do sono, da comida, da água... e da negação dos mais básicos direitos de qualquer ser vivo.

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Escrevo isto para me afastar momentaneamente deste espaço cruel, esperando que estas palavras não sejam em vão, pois eu estive aqui, passei por tudo isto e só eu conseguirei realmente contar a minha história!

3. Preso político n.º 1465, Álvaro Cunhal, por Daniel Sousa

Sintra, 3 de julho, 1960 Faz hoje, precisamente, seis meses que consegui fugir do Forte de Peniche, a prisão que era considerada como de altíssima segurança do Estado Novo. Verdade! Graças

à

forte

coordenação

e

estratégia conseguimos

que levar

avante, eu e os meus camaradas de prisão, Jaime Serra e Joaquim Gomes. E de fora muito temos a agradecer ao Pires

Jorge,

Dias

Lourenço, Octávio Pato, Rui Perdigão e Rogério Paulo. Obrigado, Camaradas! Eu, filho adotivo do proletariado, fui condenado, preso pela PIDE e encarcerado por manifestar o meu sentir em relação a este regime. Salazar ditador! O povo não está contigo! E nem os onze anos que estive encarcerado, os catorze meses incomunicável e os oito meses em total isolamento me roubaram a lucidez e a determinação para continuar a lutar pela liberdade do meu país.

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Vendo bem, estive preso em 1937, 1940 e 1949-1960, num total de quinze anos, oito dos quais em completo isolamento. Nunca perdi a noção do tempo! Mesmo com toda a tortura e sofrimento que me provocaram, consegui resistir ao meu silêncio. Privado das condições básicas, muita fome passei naquelas celas, muita dor no isolamento, fui espancado a murro, fui pontapeado… roubaram-me todas as forças que um homem pode ter, mas não conseguiram matar os meus ideais. Muito me ajudou pintar e escrever. Os direitos do homem… é coisa que esta gente não conhece! Roubaram-me direitos, o direito de respeito pela minha integridade física, de viver a vida em família e camaradagem, mas o pior… é tentarem calar-me! Não me calarei, já lá vão quarenta e sete anos e a minha certeza de que mudaremos este país é igual a como se fosse um moço de tenra juventude.

4. Presa política n.º 11722, Conceição Matos, por Magda Lourenço Sábado, 8 de maio de 1966 Querido Diário, nem sei por onde começar... há poucos meses saí da prisão de Caxias, vou contar-te como tudo aconteceu. Estava eu, em casa sozinha, quando ouvi um barulho, por volta das quatro da manhã, agentes da PIDE, acompanhados por guardas da GNR, queriam invadir a minha casa, a primeira coisa que fiz foi queimar os papéis, do meu partido (PCP), que poderiam vir a ser comprometedores, caso alguém os encontrasse. Primeiro ouvi baterem à porta e antes que eu a abrisse arrombaram-na com um pé de cabra, entrando pela casa adentro e revistando todas as divisões. Já no meu quarto, entraram apontaram-me as armas, ordenaram-me que pusesse as mãos no ar e que me identificasse. De seguida levaram-me para a sede da PIDE para ser interrogada, quando lá cheguei fui submetida imediatamente à tortura do

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sono, queriam obrigar-me a falar mas eu nada… até me disseram que se não falasse não me deixavam ir à casa de banho, mas eu, no entanto, não cedi, então foram mais longe e começaram a despir-me enquanto me insultavam para ver se eu falava (especificamente uma PIDE chamada Madalena), tentei esconder-me para que ninguém me visse naquele estado, mas empurraram-me para o meio da sala, e aquela mulher mandou entrar uma dezena de homens que me deram pontapés e socos e eu sem dizer nada, foi então que entrou um dos agentes com um papel na mão a exigir que eu o assinasse, mas eu gritei: - Nãoooo! E perdi a respiração tiveram me de me bater para eu acordar. Como não falava, fiquei na sede durante 17 dias. Após esses dias, levaram-me para a prisão de Caxias onde fiquei por volta de um ano e meio. Sofri as piores humilhações, foram espancamentos e insultos… Fui obrigada a fazer as minhas necessidades nas salas de interrogatório e em seguida limpar com o que tinha vestido, sofri várias torturas, a do sono, a da estátua… foram horrores vividos naquela maldita prisão. A comida era escassa e as condições desumanas… Fiquei o tempo todo sem ver o meu companheiro, o Domingos Abrantes. Foram-me retirados vários direitos. Na prisão de Caxias elogiaram-me pela coragem, eu disse o meu nome e quiseram saber se eu já tinha sido interrogada, respondi que sim e perguntaram “Falaste?” E eu disse que não! Eles responderam “Coragem hoje, abraços amanhã!”.

5. Preso político n.º 13254, Sérgio Vilarigues, por Raquel Travia 27 de maio de 1940 Passaram pouco mais de dois meses desde que, aos 26 anos, fui libertado daquela jaula, que passou a ser a minha casa durante anos, e agradeço todos os dias por isso. Ao longo daquele tempo, pensei sempre como estariam os meus irmãos, pais e amigos, mas eles não me podiam visitar por estarem em Portugal e eu ter sido transferido para o Tarrafal, em Cabo Verde. Ainda me lembro bem do dia em que fui preso pela PIDE, pois eu era e sou contra o Estado Novo. Quem me denunciou foi o meu vizinho da frente, pois, pelo que percebi, ele ouviu uns 13


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telefonemas meus que revelavam imensas informações que demonstravam que sou opositor ao Estado Novo, enquanto militante do Partido Comunista. Assim que cheguei à prisão do Tarrafal, a que tem a fama de ser a pior, pois é comparada a um campo

de

concentração,

revistaram-me todo, retiraram-me os objetos pessoais, incluindo a roupa,

sapatos,

atacadores

e

levaram-me para a minha cela. Na cela tudo era vazio. Pouco tempo estive só, os guardas vieram rapidamente buscar-me para me interrogarem. Faziam-me perguntas sobre a greve do dia 18 de Janeiro de 1934 e da revolta de 1936. Como eu não sabia o que responder batiam-me, até eu ficar sem forças para me levantar. Depois vinham as torturas do sono, lembro-me de estar dias, dias e dias sem dormir. Até o clima era uma tortura. O calor, a humidade, os mosquitos eram praticamente impossíveis de suportar. A alimentação era má e pouco variada, as condições de higiene também. E isso fazia com que fosse muito fácil adoecer, muitos dos meus colegas que também estavam presos acabaram por não aguentar. Quando não estávamos a ser interrogados ou torturados passávamos os dias as conversar sobre se algum dia conseguiríamos voltar a Portugal em liberdade, e como todos os direitos nos tinham sido roubados. Até à próxima, ainda tenho coisas para te contar…

6. Preso político n.º 11722, António Ramos, por Inês Ramos Amigo diário: Hoje é dia 10 de maio de 1970, faço 37 anos de idade e já há mais de 4 meses que estou preso. Estive um mês em Caxias e depois mudaram-me para Peniche. Estou triste, sinto-me doente, não sei nada da minha família, mas vou sobrevivendo. Lembro-me da noite em que a PIDE me bateu à porta e me levou à força. Estava eu, a minha mulher, que também é professora primária, os meus filhos e uns primos imigrantes na França, que estavam cá de férias de Natal. Para matar as saudades e o 14


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frio passávamos as noites à lareira a conversar e a petiscar. Às vezes juntava-se a nós um vizinho que é viúvo e vive sozinho. Conversávamos à vontade sobre todos os assuntos porque estávamos em família e entre amigos. Os primos gostam de contar sobre a boa vida que levam em França, onde ganham bem, trabalham menos, têm boas condições e dizem que Portugal é um atraso de vida, que nem se pode dizer o que se pensa. Contam-nos as histórias de livros e de filmes que cá são proibidos e eu gosto de os ouvir, entusiasmome com a conversa e dou-lhes razão. “Quem me dera que Faro fosse como Paris! Pode ser que um dia as coisas aqui mudem!” O vizinho, muito sonsinho, puxava-nos pela língua e acho que foi ele que me denunciou à PIDE, como se eu fosse um comunista do PCP, mas eu sou apenas um simples professor que sonha com uma vida melhor. O que é certo é que no dia de Reis, já os primos tinham voltado para a França, bateram à minha porta, eu fui abrir e em vez dos janeireiros era a PIDE. Nem me deram tempo de me despedir dos meus filhos e deram um empurrão à minha mulher, mandaram-na calar senão ia também presa. Nessa noite começou o meu tormento. Levaram-me para Caxias onde me bateram à bruta, chamaram-me nomes, gozaram comigo e com a minha família. Queriam que eu confessasse que os meus primos e eu somos comunistas, eles em França e eu cá e que andamos a conspirar contra o governo. Fizeram-me a tortura da estátua e interrogaram-me várias vezes para eu dar nomes de outros comunistas, mas eu não disse nenhum porque não sabia, só que eles pensaram que eu era um revolucionário bem treinado e então ainda me deram mais castigos: cacetadas nos pés e a tortura do sono e ameaçavam em prender a minha mulher e que metiam os meus filhos num orfanato. Já não aguentava mais e gritei-lhes: “matem-me já seus estupores mas deixem a minha família em paz”. Enfiaram-me um pano pela cabeça e meteram-me num carro. Pensei que iam dar fim de mim mas deixaram-me em Peniche.

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Aqui continuou o inferno. Interrogatórios e mais interrogatórios e pancadaria. Fiquei todo negro, inchado, cheio de feridas e sem tratamento. Diziam para colaborar que me soltavam logo, depois diziam que tinham prendido a minha mulher e que ela já tinha confessado, só faltava eu. Já desorientado disse: “Não sei de nada e se soubesse também não dizia, seus animais”. Enfurecidos meteram-me mais dois meses isolado no segredo, um cubículo desabrigado muito frio e húmido, que fica num género de uma pequena torre, na ponta da cadeia mesmo junto ao mar. Lá fiquei sem poder ver nem falar com ninguém e sem ter nada para fazer. A solidão custa mais do que as pancadas. Apanhei uma pneumonia e desmaiei. Quando acordei estava numa cela, um espaço muito apertado que só tem uma cama, uma cadeira, uma mesa pequena, uma prateleira e um balde para as necessidades mas é um luxo comparado com o que já passei. Foi a primeira vez que me deram tratamento, senão tinha morrido. De vez em quando vou ao pátio apanhar sol, fumo um cigarro se me dão, leio o que aparece à mão,

sou

interrogado

e

levo

mais

“porrada” e lá vou sobrevivendo a sopas e água. Na cela ao lado da minha esteve preso Álvaro Cunhal. Ele e mais uns quantos

presos

conseguiram

fugir.

Desceram a fortaleza por uma corda de lençóis

e

conseguiram

enganar

os

carcereiros. Cada vez sinto mais admiração e simpatia por estes valentes e mais ódio a estes

cobardes que nos espezinham

porque estamos indefesos.

Hoje, que é dia do meu aniversário, estou triste, continuo doente com uma tosse que não se cura, estou desanimado com a vida e com este país, onde as pessoas não se podem defender, perdem o direito à sua liberdade e são mais maltratadas do que o maior dos assassinos. Só vivo na esperança de voltar a ver a minha família e de um dia ser verdadeiramente livre num país sem repressão.

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7. Preso político n.º 11553, António Branco Fontes Relvas, por Margarida Pereira A história que vos venho contar não é a minha história, pois ainda sou muito nova para já ter vivido tal história, mas foi certamente graças a muitos homens como o meu bisavô que os tempos mudaram, as políticas mudaram e acredito que a história pessoal de cada um também tenha mudado. Vivemos agora em democracia, onde tais atos não são permitido, mas voltando ao assunto inicial, vou então falar de um homem chamado António Branco Fontes Relvas, que é meu bisavô (pai do meu avô materno) que infelizmente não cheguei a conhecer. O meu bisavô nasceu a 26 de março de 1907 numa aldeia Alentejana chamada Amareleja que pertence ao concelho de Moura, distrito de Beja e faleceu a 11 de abril de 1977 na cidade de Faro. Filho de pai lavrador da classe média e já casado na altura com a minha bisavó residente ainda na sua terra natal, era, como a maior parte da população alentejana, simpatizante do PCP, sendo na altura a única força política de oposição ao governo. Também era ainda assinante do Jornal “Avante”, motivo esse que levaria à sua prisão em meados do mês de junho do ano de 1955. Foi detido e condenado a 67 dias de prisão num alçapão da prisão em Moura. Enquanto esteve preso foi sujeito a todos os métodos de tortura praticados na época pela PIDE, nomeadamente a “estátua” e do “sono”. Durante o período em que esteve preso foi sujeito a muitos interrogatórios que se iniciavam muitas vezes durante a noite e chegavam a demorar quatro ou cinco dias, sendo ainda vítima de espancamentos. Era obrigado a ficar de pé durante muitas horas seguidas de tal forma que os pés inchavam e as dores tomavam conta de todo o corpo. Permanecia fechado num buraco em pé com uma goteira que não parava de pingar de forma a se ver privado do sono.

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O objetivo da PIDE com tais torturas era o de conseguir obter informações, mas também o de obriga-lo a agir contra si próprio, contra os seus valores e as suas crenças. Todos os seus direitos como ser humano foram violados, o direito à liberdade de expressão, esse então nunca foi considerado como um direito.

8. Preso político n.º 14539, por Ana Catarina Santos Peniche, 15 de Dezembro de 1944 Mais um dia se passou, nesta cela da cadeia de Peniche, neste horrível lugar, nesta fonte de sofrimento. Estou aqui só porque denunciei as duras e miseráveis condições com que os trabalhadores são obrigados a suportar no seu dia-a-dia. Sintome revoltado por querer ajudar estes necessitados e não consegui por ter sido preso, julgado e torturado, pelos carniceiros da PIDE, naquele terrível dia seis de Dezembro. Tudo isto, por causa da ambição e cinismo do Faria que só pensava em ascender na carreira, passando por cima de tudo e todos, para conseguir os seus intentos. Tenho a certeza que foi ele que me denunciou, pois logo após a minha prisão, foi nomeado chefe para substituir o cargo que eu ocupava. Não

me

conformo

com esta situação, hoje, durante três horas, estive submetido

a

um

interrogatório e ao mesmo tempo à tortura da estátua. Fui obrigado a confessar aquilo que não queria, no entanto,

não

denunciei

nenhum dos meus camaradas e espero que eles continuem o trabalho que eu não posso fazer. Neste cubículo imundo, só tenho espaço para me deitar, só vejo paredes, sem janelas, sujas e riscadas (a única maneira de sabermos os dias que passamos, neste sofrimento, que parece não ter fim).

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Página de diário de um preso político português

Apesar de estar esfomeado, não consegui ingerir nada. Enojei-me a ver aquelas sopas de pão com água, que não sabem a nada e me dão vómitos, mas eu sei que tenho que comer, para sair daqui com vida… Pela primeira vez, foi permitido alguém visitar-me. Pela manhã, recebi a visita do meu amigo e seguidor, João Pacheco, que me trouxe notícias de casa. Pedi-lhe

que

comunicasse à minha mulher para que não viesse visitar-me, nem trouxesse os meus filhos pois não quero que me vejam nesta situação indigna e insuportável, sem poder usufruir da minha liberdade e poder expressar tudo aquilo que sinto e penso. Vou descansar um pouco, já sei que mais tarde voltarei a ser torturado. Amanhã voltarei a escrever, como faço todos os dias para passar o tempo e perpetuar as minhas memórias.

9. Preso político n.º 11127, Luís Nascimento, por Inês Margarido Baleizão, 30 setembro de 1975 Ao Exmo. Sr. Dr. Afonso de Albuquerque Escrevo-lhe esta carta, caro Sr. Dr., ao abrigo da liberdade que me deu para que o fizesse, uma vez que durante a nossa conversa presencial não fui capaz de articular mais do que um choro silencioso perante as imagens que ia revivendo na minha mente. Bem sei que não lhe fui de grande préstimo mas espero que o que lhe vou contar possa ajudá-lo no estudo que diz estar a efetuar acerca dos detidos e torturado por essa máquina maléfica que era a Pide.

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O meu nome (não que o precise de dizer porque o Dr. já me conhece) é Luís Nascimento e sou natural de Baleizão, no distrito de Beja, terra dessa grande companheira Catarina Eufémia. A causa da minha detenção foi comum a muitas pessoas da minha terra nesse tempo – pedíamos por aumentos salariais e melhores condições de vida. Nós já sabíamos que as nossas manifestações eram vigiadas pela PIDE, mas, Sr. Dr., sabe como é…, no calor do momento, um homem perde o controlo e diz coisas que não deve. Foi o que me aconteceu. Depois de uma manifestação que

terminou em frente à casa dos nossos patrões, correu na aldeia a informação de que a Pide estava à minha procura. Nessa mesma hora fugi da aldeia e com a ajuda de alguns companheiros consegui fugir às garras da tortura durante 18 meses. Vivi em casa do partido comunista e ajudei, durante esse tempo a distribuir propaganda e a organizar a resistência que pedia por um novo regime. Foram meses que grande intensidade e enorme gratificação. Afinal, estávamos todos fechados numa prisão imaginária cercada por muros que coincidiam com as nossas fronteiras… Fui apanhado em Setúbal em 18 maio de 1971 e transferido para a prisão das Caxinas no dia seguinte. Aí, tinha a receber-me um comité de “boas vindas” que de imediato me espancou com murros no corpo e na cara e me pontapeou. De seguida estive cerca de

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dezoito dias de privação do sono. O Sr. Dr. Não faz ideia do que nos acontece ao fim de dois dias. Começamos a imaginar coisas, a ouvir sons que não existem, perdemos a noção do espaço e o tempo e o medo toma conta de nós…. O tratamento que se seguiu foi a estátua, em que nos obrigam a ficar de pé sem nos mexermos durante seis ou mais dias. Foi verdadeiramente difícil de suportar. Os nossos pés incham e o sangue chega a sair pelas unhas. Durante mais de um mês não contactei com a aminha família. Ninguém sabia o que me tinha acontecido nem onde estava. Só ao fim de um mês é que pude ver a minha mulher e os meus filhos. Custei a reconhecê-los…

10. Presa política n.º 19912, por Inês Agostinho 6 de janeiro 1960 “Querido diário” (mas que tipo de diário seria este se não começasse com a típica saudação?) Hoje decidi começar a escrever, na verdade é das poucas formas que me posso libertar destas correntes pesadas e ferrugentas que me prendem os pensamentos. Consegui trazer comigo um pequeno bloco e uma esferográfica velha, acho que vão ser os meus fiéis e únicos amigos nesta eterna e indeterminável jornada. Tudo começou numa manhã de sábado, mais concretamente 17 de novembro de 1959, como todos os sábados de manhã, eu e a minha irmã mais nova íamos ao encontro de três colegas, Luísa, Catarina e Maria Eugénia para uma casa de campo, bem longe da cidade, que transmitia paz e liberdade, como se fosse uma pequena escapadela da realidade em que vivíamos para discutir este regime de injustiça, falta de liberdade e prisão social em que estávamos e o que podíamos fazer quanto a isso, principalmente libertar mulheres (e não só) desta sociedade retrógrada. De repente, um barulho enorme faz-me estremecer, e inesperadamente sete homens entram porta dentro, agarram-nos às cinco, nós bem que perguntávamos o que se passava, mas a única 21


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resposta obtida era ainda mais violência, fomos levadas para um destino desconhecido. Nem abrimos a boca, apenas lágrimas silenciosas rolavam nas nossas faces.

Assim que saímos da carrinha reconheci a prisão de Peniche, já a tinha avistado de bem longe. Mal entrei o cheiro a desespero, medo, revolta, e angústia entranhou-se no meu nariz. Era um local sombrio, escuro, frio, as faces sem expressão dos polícias que nos levavam não permitiam reconhecer qualquer tipo de emoção. A fome é predominante, temos duas refeições por dia, mas muitas vezes recuso-me a comê-las, moscas mortas na sopa não é o mais apetecível…. A água do banho é mais gelada do que a água do ribeiro congelada em pleno Inverno. Fui vítima de um intenso interrogatório, que ainda hoje se repete todas as manhãs, das nove ao meio dia, com perguntas sem resposta, perguntas com mil respostas, perguntas sem serem perguntadas, perguntas confusas que nos deixavam a questionar o nosso próprio nome. Tentaram todos os métodos e mais alguns (até me arrancaram as unhas uma a uma, a dor era tanta que fez os meus gritos percorrerem o longo corredor) para tentarem descobrir a “verdade”, mas claro que não podia admitir que conspirávamos contra o regime, tinha de mentir com todas as minhas forças!

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Mas… pelos vistos alguém conseguiu descobrir que assuntos tratávamos… e denunciou-nos à PIDE. O que mais me custa é ouvir os gritos da minha irmã… ouvi-la desesperar e não poder socorrê-la, isso sim, leva-me ao desespero! Há coisas tão injustas neste pedaço de vida, ainda tenho tanto pela frente, com 25 anos não vivi nem metade daquilo que quero experienciar, nem concretizei os meus objetivos… Pretendo acabar com esta ditadura de mentiras para com o povo, mas neste momento tudo o que eu consigo ver à minha frente são grades de ferro ferrugentas, isto não é nada, aqui não somos humanos, nem os mais bravos animais devem ser tratados assim. Mas porque tanta injustiça!? Porquê tanto controlo sobre algo que nos pertence? Afinal de contas ter um pensamento próprio, com ideias próprias é o tesouro mais único, e ninguém tem o direito de nos retirar isso. Bem… Depois deste meu sofrido desabafo, vou descansar o corpo, já que a mente é impossível… Vou descansar mas pensar as minhas respostas para o interrogatório matinal… Obrigado, meu amigo.

11. Presa política n.º 11644, Maria Deolinda Gonçalves, por Leonor Mendes 18 de agosto de 1962, Almada Querido diário: Há algum tempo que não te escrevo, mas se te recordares o meu nome é Maria Deolinda Gonçalves e tenho 34 anos. Estive presa durante 2 anos em Caxias, sob o poder da PIDE e do regime. Voltei para ti, porque preciso de ajuda e tu és o único amigo mais próximo. Também quero deixar aqui o meu testemunho acerca da forma como os presos políticos foram tratados para que, as gerações seguintes, nunca se esqueçam das barbaridades que foram cometidas pelo regime de ditadura neste país. Fui presa no dia 5 de Maio de 1960, pela hora do almoço. Estava em casa, com a minha família, quando ouvimos umas fortes pancadas na porta. O meu pai foi abrir e vários elementos da PIDE entraram, de rompante, pela porta, derrubando tudo o que

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encontravam pela frente. Fui acusada de conspirar contra o regime, sendo levada para a sede da PIDE, na rua António Maria Cardoso. Aí permaneci vários dias, não sei quantos, pois fui

interrogada

inúmeras

vezes e sujeita a violentas agressões físicas e fortes humilhações verbais. Cada vez que me interrogavam era esbofeteada, davam-me pontapés nas pernas e nos tornozelos, até os meus pés ficarem inchados e negros. A cara ficava negra e do nariz caía um fio de sangue. De seguida, como não lhes dava as respostas que queriam ouvir, era sujeita à tortura de “estátua”, ficando ali de pé, sem me poder sentar, com o corpo todo dorido e os pés em sangue. Aqueles interrogatórios duraram muito tempo, tanto que eu já nem conseguia sentir dor. Passados vários dias, a violência que era submetida já não me incomodava, estava insensível, podiam bater-me até me deixar quase sem sentidos que já não reagia. Foi então que decidiram enviar-me para a prisão de Caxias, onde fiquei detida praticamente dois anos. Colocaram-me numa cela com espaço para um colchão e um penico no chão. Não me deixavam dormir. Sempre que caía no chão acordavam-me e batiamme ou colocavam-me de pé até voltar a cair novamente. Aquilo durou tempos infinitos, não conseguia calcular o tempo, nem conseguia perceber se era dia ou noite. Aliás nada em mim existia, não sentia, não pensava, acreditava que via a minha mãe e a minha irmã ao meu lado. Via-as tão nitidamente que acreditava que estavam ali ao meu lado. Sentia-lhes o cheiro, o calor das suas vozes…Alucinava!

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Fiquei sessenta e duas horas sem dormir! Como não conseguiram o que pretendiam acabaram por se cansar e colocaramme numa outra cela com mais quatro mulheres. Percebemos de imediato que todas tínhamos sofrido o mesmo tipo de torturas, todas estávamos profundamente marcadas no corpo e na alma. Fui libertada em junho de 1962 mas ficará para sempre marcado na minha memória o sofrimento a que fui sujeita durante aqueles anos. Desta feita decidi escrever a minha história para que, em conjunto com muitas outras, ganhe força e perdure para sempre na história negra deste país que é o meu PORTUGAL!!! (baseado em factos reais)

12. Preso político n.º 24120, Henrique Galvão, por Inês Ventura Finalmente consegui encontrar um pedaço de papel para poder ser livre, nem que seja pela escrita! Vou passar a apresentar-me: o meu nome é Henrique Galvão, tenho 52 anos e encontro-me na prisão de Peniche. Hoje é dia 5 de janeiro de 1952, se a minha memória não me engana. Fui condenado a três anos de prisão. Sofri muito antes de me fecharem nesta cela e sinto-me como um pássaro numa gaiola. Fui torturado por escrever uma carta a Salazar a dizer nada mais que verdades sobre a ditadura que existe neste país, mas não a deixaram ser publicada. Fui interrogado pelo porquê de ter faltado ao respeito a Salazar. Mantive-me calado e por causa disso bateram-me com grossas tábuas até me virem as lágrimas aos olhos. Os PIDES riram-se da minha cara e disseram-me para ficar em “estátua” durante 3 horas. O que eu passei não desejo a ninguém, para além disso, tive de estar fechado nesta cela 4 dias sem alimentos nenhuns. Mas nunca cedi a nenhuma tortura e acabaram por desistir de tentar fazer alguma palavra sair de dentro de mim.

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Página de diário de um preso político português

Aqui, nesta prisão não podemos ler jornais mas já nos permitem a leitura de alguns livros. Contudo, só aqueles que a censura da cadeia entender que são inofensivos para o nosso espírito. A minha cela é minúscula, por vezes consigo ouvir os ratos a andarem por aqui, mas ignoro-os, pois tenho uma janelinha que me distrai do ambiente onde vivo e por onde, por vezes, consigo ouvir os pássaros lá fora. Invejo a sua liberdade! Ainda há pouco os guardas entraram na minha cela, feitos animais, numa inspeção de rotina à procura de algo que me possa incriminar, para eu ficar a apodrecer aqui. Outro dia fui internado na enfermaria da cadeia e tive autorização para ter visitas de pessoas amigas. Quem me veio visitar foi a Noémia do Rosário, falámos durante 2 horas e depois expulsaram-na da sala. Foi bom ouvir a voz de uma conhecida. Ocupo o resto dos meus dias a escrevinhar e a imaginar que algumas coisas que escrevo possam vir a ser transformadas em livros. Tenho tanta fome, às vezes parece que se esquecem que sou um ser humano tal como eles, e que fazem de propósito para não me alimentarem durante o maior espaço de tempo que lhes der na cabeça. Tenho saudades de ser livre, não estar fechado numa cela 24 sobre 24 horas, comer quando bem me apetecer, poder falar com outros seres vivos, quando aqui nem com outros prisioneiros posso falar. Mas também, quem é que consegue ser livre neste país com um regime destes?

13. Presa política n.º 11123, por Laura Paiva 20 janeiro de 1974, Prisão de Peniche Aqui estou eu, não sei se viva ou morta, mas depois de todas as torturas por que já passei desde que cá estou sem dúvida que desejo estar morta. Tenho 25 anos, sou uma presa política e fui apanhada pela PIDE quando estava numa manifestação (proibida) contra o Estado Novo, em Lisboa. Nesse dia só me lembro da PIDE aparecer, ver todos a correr e depois de levar com algo na cabeça. No dia seguinte, quando acordei, estava amarrada a uma cadeira, numa sala com vários PIDES à minha volta, que, quando perceberam que tinha despertado começaram a espancar-me. Já por várias vezes que me tentaram extorquir informação acerca das reuniões secretas que eu frequentava contra esta ditadura, mas por 26


Página de diário de um preso político português

nenhuma das vezes respondi e nem depois da morte irei revelar uma só palavra, um só nome. Por causa a minha resistência sou Numa

sistematicamente das

perfeitamente

vezes de

espancada. lembro-me me

terem

descalçado e me terem dado pontapés na planta dos pés, obrigando-me, de seguida, a marchar sem cair enquanto me

davam

pontapés

para

me

derrubarem. Fizeram isso até eu desmaiar e depois levaram-me de volta para a cela. A vida neste lugar não é fácil! A minha cela é escura, fria e pouco higiénica. Por vezes chego a passar dias sem comer e há outros em que chego a comer apenas um pão que muitas das vezes já tem dias e está rijo. Faz hoje cinco anos que não vejo a minha família, ou seja, cinco anos que estou presa, e tenho muitas saudades deles. A única via de comunicação que temos é por cartas que são abertas, riscadas e censuradas. Estou proibida de ter contacto com o mundo exterior. Muitas vezes, para me entreter, escrevo neste meu diário, outras ocupo o meu tempo a escrever digamos que posso chamar de livros, também costumo desenhar e ler alguns livros, aqueles que não são censurados. Desde que aqui estou foi-me retirada a pouca liberdade que tinha no mundo exterior. Sinto-me um farrapo humano. O meu corpo está coberto de cicatrizes mal curadas, arranhões, nódoas negras, ossos partidos e tenho algumas unhas arrancadas. Estou em péssimas condições e por vezes penso em desistir mas logo me lembro de que o país precisa de nós, presos políticos, para revolucionar e conseguir deitar esta ditadura abaixo.

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Página de diário de um preso político português

14. Memórias de Injustiça, por Andrian Bilinskyy Esta é a página de um diário fictício de um homem chamado Celestino Nóbrega que tinha 30 anos de idade e era contra o Estado Novo. Esta é a sua história.

Segunda-feira, 15 de maio 1972 Estava em casa a ler um livro descansadamente e, de repente, oiço um estrondo na porta de entrada. Para ser sincero estava com um pressentimento de que algo de mal iria acontecer. Vieram até mim dois homens armados, com um ar muito agressivo, para me prenderem. Suspeitei que eram da PIDE. Eu e outros homens e mulheres estávamos a planear desencadear uma revolução para acabar com a ditadura. Eu já sabia que iria ser torturado e interrogado, tinha já ouvido muitas histórias sobre como eles operavam. Fui então levado para uma prisão em Peniche e metido numa sala com quatro

paredes

sem mais nada, sem janelas, só uma lâmpada no teto que estava sempre acesa. Fui revistado,

para

ver se não tinha nada, e até os cordões

me

tiraram

dos

sapatos. Fiquei sozinho naquela sala durante horas até aparecerem uns homens a perguntar sobre o que eu conspirava. Obviamente nada disse e eles começaram a agredir-me, dando-me socos na barriga e na cara. Depois, pegaram numa tábua e começaram a bater na planta dos meus pés. Obrigaram-me a estar acordado durante 3 dias seguidos. Foi assim durante muitos dias.

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Página de diário de um preso político português

A comida era sempre e invariavelmente pão e água. Fui diariamente interrogado, eles estavam sempre a perguntar o mesmo, sem parar, era muito penoso, mas lá consegui aguentar-me. Nas três semanas que lá passei não tomei banho e não mudei de roupa. A minha família teve oportunidade de me ver uma vez mas foi tudo tão rápido. Os meus dias muitas vezes eram angustiantes: sSer torturado ou olhar para uma parede branca, deixava-me louco. Um dia apareceu um guarda e disse-me que estava livre e assim fui-me embora. Foi estranho e até hoje não sei quem deu ordem para me libertar.

15. Presa política n.º 12566, por Catarina Faísca 9 de abril de 1972 Sinceramente, conto-te isto na esperança que compreendas as minhas palavras e a minha angústia e que não as partilhes com mais ninguém. Estou perante uma grade que só me permite luz "às parcelas", estou sozinha e a falar contigo. Sabes que sempre fui uma mulher de forças, justiceira, humilde e sincera e que há 10 anos atrás nunca me imaginaria proibida de poder dar asas à minha própria liberdade de expressão. Com os 40 anos que tenho agora, fui presa porque simplesmente a injustiça não me agrada, fui presa apenas por dizer aquilo que penso. Sabes o que aconteceu? Estava a passar pela rua, normalmente gosto de andar com um bloco

de

notas,

principalmente diário, repente

e

contigo

quando,

de e

despercebidamente, não reparei que tinha deixado cair uma folha solta. Naquela tarde, logo na

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Página de diário de um preso político português

primeira semana de Fevereiro, por a pura ironia do destino tive de a deixar cair logo quando passavam por ali "os narizinhos empinados" da PIDE, é como eu lhes chamo, vá ri-te comigo diário (enfim só o humor me salva desta angústia), e adivinha? Pois é, eles apanharam a folha e o melhor de tudo é que aquela folha era mesmo o meu desabafo de revolta contra o fascismo! Tu tens a noção, diário, que foi apenas por uma folha de papel de um bloco de notas meu? Pois é, esta gente deixa o coração em casa quando sai à rua... insensíveis , injustos... Neste momento tudo o que eu tenho é nódoas negras de tanto ser torturada, torturada até que fale, até que confesse quem mais pensa como eu e luta pela liberdade e democracia. Não como há dias, não tenho coragem para tocar nem sequer no pouco pão e na pouca carne que me dão. A minha revolta cheira a podre. Era difícil de acreditar que uma cidade tão bonita como Peniche, tenha um lado tão frio e desgastante. Enfim diário, passaram-se já 4 meses, estou meio viva fisicamente e completamente morta psicologicamente. Há 4 meses que não vejo os meus filhos, 4 meses sem ver o verde das árvores. A única coisa que agrada é que a cor das tuas páginas não me faz esquecer das restantes cores que estão para além desta grade. A liberdade, a segurança, o descanso, a minha FAMILIA, foram-me roubadas! Enfim diário ainda bem que pelo menos posso desabafar contigo Até amanhã querido diário.

16. Preso político n.º 13466, António Carrasqueiro, por Raquel Santos Peniche, 1950 Encontro-me na prisão de Peniche, já há algum tempo, por ser amigo de Álvaro Cunhal. Escrevo para não me sentir tão só, visto que o tempo aqui passa muito devagar. Bom, vou começar por escrever sobre o que me aconteceu. No dia 25 de outubro, por volta das 20:00 horas, estava eu e a minha família a jantar, quando de repente se ouviu um estrondo e começaram a entrar muitos militares pela porta adentro, à minha procura e à procura de provas do boato que se espalhou, pois alguém que provavelmente não gostava de mim ou da minha família,

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denunciou a minha relação com Álvaro Cunhal à Polícia Política. Tentei proteger a minha família, mas não sei se consegui, pois rapidamente fui colocado dentro de um carro com vidros negros e janelas fechadas. Quando saí do carro, não consegui perceber onde estava, não sabia que lugar era aquele. Aquilo mais parecia um campo de concentração. Ouvi os gritos de pessoas a serem torturadas. Pensava que iria ser o meu fim, mas não. Os PIDES interrogaram-me, fizeram-me perguntas sobre Álvaro Cunhal. Queriam saber onde ele estava, onde eram realizadas as nossas reuniões, com que frequência nos encontrávamos e queriam que eu denunciasse outros camaradas. Tentei não responder, mas quanto mais me calava, mais chapadas e mais murros levava, mas ainda assim não respondi. Após dias seguidos onde me aplicaram a tortura do sono não resisti mais e falei, denunciei os meus camaradas, as nossas reuniões, a nossa luta… Depois de ter falado, levaram-me para uma prisão, sem condições nenhumas; a

comida é um nojo e sinto saudade dos jantarinhos que a minha rica esposa fazia, “Que Deus a abençoe”.

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17. Presa política n.º 13677, por Sabrina Campos 5 de outubro de 1946, Prisão de Peniche Aqui estou eu, uma pobre mulher, 23 anos. Chamo-me Maria Alves dos Santos Pereira, mais conhecida apenas por Maria Alves. Fui presa há um 1 mês. Sei bem os motivos que me trouxeram até aqui e ainda continuo forte e confiante neles. Sempre fui uma mulher que queria lutar pelos direitos humanos e conseguir uma sociedade livre para fazer os atos que bem entendesse. Eu tinha apenas 10 anos quando o Regime Salazarista começava. Cresci a ver os meus pais a serem perseguidos pela PIDE, devido a serem contra este regime e terem liderado várias manifestações ‘’anti-salazaristas’’ pois viram, tal como a população portuguesa, os seus direitos sonegados. E eram comunistas! Lembro-me do dia em que a minha mãe foi capturada. Muito provavelmente ela morreu no meio de tantas torturas, visto que nunca mais voltei a vê-la. Quando eu tinha 18 anos, o meu pai teve o mesmo destino. Quando completei os meus 20 anos, comecei uma oposição contra o regime fascista. Eu queria os meus direitos de volta. Eu queria viver numa sociedade livre. Eu queria acabar com este ‘’inferno’’ em que vivemos até hoje. Comecei a fazer reuniões secretas na minha casa, às 2:00 da manhã,

com

pessoas

que

pensavam

da

mesma forma que eu. Escolhia esse horário pois era quando

a

vizinhança dormia e eu não podia ser descoberta. Se algum vizinho descobrisse que eu fazia reuniões com cerca de 10 pessoas, eu iria ser denunciada e perseguida pela PIDE. Consegui manter estas reuniões durante

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cerca de um mês. Numa quente manhã de setembro, enquanto eu fazia o almoço, ouvi pancadas à porta da minha casa e uma voz: ‘’Abra a porta imediatamente ou seremos obrigados a avançar!’’ Estranhei estas vozes. Eram familiares. Não, não pode ser. É a PIDE. ‘’A senhora não ouviu? Abra a porta!’’. Os homens gritavam. Tentei fugir pela porta dos fundos, mas não consegui. A porta principal da minha casa já havia sido destruída. Uns homens fardados de preto vieram atrás de mim. Agarraram-me pelo braço, enquanto arrastavam-me para dentro de uma carrinha. A vizinhança toda olhava para mim e comentavam coisas entre si. De certeza, foram estes vizinhos que denunciaram os meus atos. Encaminharam-me para a sede da PIDE, onde fui questionada várias vezes. ‘’Quantas reuniões foram feitas?’’ ‘’A senhora é contra o regime salazarista?’’ ‘’Quais eram os assuntos tratados nessas reuniões?’’ ‘’É comunista?’’. Estas foram algumas das perguntas. Fui sincera nas respostas. Eu não sou uma mulher que vive com mentiras. Disse que foram feitas cerca de 26 reuniões. Disse também que era contra este regime e que os assuntos das reuniões eram as discussões sobre a sociedade em que vivíamos. Ainda acrescentei que podiam torturar-me das formas que quisessem, não era isso que ia mudar a minha forma de pensar. Arrependi-me, mas pelo menos usei a sinceridade como a minha defesa. Fui diretamente encaminhada para a Prisão de Peniche, onde estou presa até hoje. Logo no dia em que cheguei, fui submetida à tortura da ‘’estátua’’. Nesta tortura, temos de ficar dias e noites sem dormir. Se adormecermos, somos torturados com murros, pontapés, tábuas. Anteontem fui obrigada a fazer a ‘’estátua’’. Entretanto, adormeci. Acordei a sentir fortes pancadas no corpo. Eu estava algemada no meio de uma roda de agentes, que davam-me pontapés em todo o meu corpo. Nos dias em que posso comer, costumo comer apenas alguns cereais que me são fornecidos e um copo de água. As condições nesta prisão são péssimas. Eu estou trancada numa cela, onde convivo com cheiros horríveis. Não tomo banho à alguns dias. Ocupo os meus dias a observar a vista que tenho para o mundo lá fora. Através da pequena janela ainda consigo ver o que acontece na natureza. Já não tenho qualquer tipo de liberdade de expressão. Não posso ser livre, não posso dizer a minha opinião sobre as coisas. Não vejo a minha família, porque simplesmente já não tenho uma. Todos os meus parentes moram longe, e não têm condições de me virem visitar.

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E não sei como vou aguentar muito mais tempo aqui. A única coisa que sei é que não vou mudar o meu pensamento tão facilmente. Vou continuar a ter a mesmas ideias, nem que seja até ao dia da minha morte. Eu sei que este regime vai acabar, nem que eu não esteja cá para ver o fim dele.

18. Preso político n.º 12722, por Diogo Rosário Peniche, 30 de abril de 1972 Mais um dia nesta cela nojenta. Se não fosse aquele Rúben, não estaria aqui. Que ódio… Ainda me lembro daquele dia de julho, na casa do João, quando estávamos a ler aquele jornal, o Avante! Agora tenho a certeza que

ele

estava

a

trabalhar para a PIDE! Nunca pensei que o Rúben nos fizesse tal coisa. Quando estava sentado a ler o jornal, ouvi alguém a arrombar a porta e quando dei por mim, estavam os guardas com uma arma apontada à minha cabeça. Encontro-me na prisão de Peniche e fui condenado a dezoito meses de prisão por ler um jornal que tinha ideias diferentes das do regime. Os interrogatórios são o mais difícil de aguentar, constantemente me queimam com a cinza do cigarro, espancam-me, insultam-me ou não me deixam dormir durante três ou mais dias, tudo para que denuncie se faço parte de alguma organização para derrubar o regime. Sinto-me cada vez mais sem alento para viver, nesta cama desconfortável que parece que é feita de pedra, numa cela pequeníssima sem visibilidade para o exterior, sem nada para fazer, sem ninguém para conversar, sem horas, sem dias, atravessando as intermináveis horas dos dias e das noites. Como desejo o regresso ao mundo. Como desejo um dia ver a minha família. 34


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19. Preso político n.º 10011, Pedro Soares, por Bruna Encarnação Dia 27 de abril de 1972 - " Não sei quanto tempo mais irei aguentar esta provação". Tenho fome, já não sei o que é comer há alguns dias, só vejo água e pão. Pior que a fome só mesmo as dores que sinto em todo o meu corpo. Não sei o que é pior, se a fome, a dor, a ansiedade, a angústia ou o medo. Medo do que veio e do que ainda está para vir. Os primeiros seis dias foram sofridos e longos, levei "porrada" várias vezes, estive quase dois dias sem dormir, de pé, debaixo de uma luz que me queimava a cara, os olhos e todo o pensamento que surgisse na minha mente. "Tenho fome!”. Já antes tinha sentido fome, mas nunca desta maneira. A fome é algo que te consome aos poucos, que te tolda o raciocínio e te prega partidas. Que tortura! Em casa nunca houve muito, mas nunca houve tão pouco! Lembro-me de casa e penso na preocupação da minha esposa. Será que já sabe que estou preso? Será que também ela está presa? E se está, o que lhe estarão a fazer? Tantos pensamentos, tão pouco tempo para pensar e a fome que não me deixa pensar em mais nada, senão nela própria. "Maldito lápis azul, maldita opressão" Não fora aquela carta que enviei à minha irmã que está no norte e hoje não estaria aqui. Foi isso de certeza. Não vejo outra razão. Deveria ter tido mais cuidado pois já sabia que antes de chegar ao seu destino, esta carta seria vista por alguém. Maldita PIDE e maldito seja o agente "Arsénio"!

- "Sr. Pedro Soares?". Perguntou quando me abordou, estando eu a caminho de casa. - "Sim".

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-"Sr. Pedro Soares, 36 anos, casado e residente na rua das flores nº 42 em Lisboa?” - "Sim, sou eu". - "O Sr. está preso, queira-nos acompanhar". Foi num instante que entrei nas instalações da polícia. E se depressa cheguei mais depressa ainda começaram os interrogatórios e os espancamentos. O agente "Arsénio" tem feito o especial favor de estar sempre presente, participando nos interrogatórios divertindo-se bastante nos espancamentos, onde é um mestre na arte de bater sem deixar marcas, e sendo também um membro ativo das visitas noturnas efetuadas, raramente me deixa sozinho e já quase posso dizer que o conheço melhor que a alguns amigos de infância. Tornamo-nos muito "chegados". E por falar nele, penso que já oiço os seus passos no fundo do corredor, deve vir fazer-me mais uma visita. Por momentos esqueço a fome e no seu lugar juntam-se a angústia e o medo e pergunto-me: "Quando é que isto vai acabar?".

20. Preso político n.º 11222, por João Arvela Peniche, 2 de fevereiro de 1950 Hoje, acho que foi um dos piores dias que tive desde que fui preso pela PIDE, a 10 de Janeiro de 1950 por pertencer ao partido comunista. Deviam ser umas 11 horas da manhã quando dois prisioneiros começaram a dar murros um no outro, eu tentei separá-los enquanto os guardas não chegavam, entretanto outro prisioneiro deu-me um murro nas costas e disse para eu os deixar lutar. Eu disse-lhe que não, ele não me respeitou e acabamos nós os dois a lutar. Entretanto os guardas chegaram e levaram-nos para uma sala onde eu nunca tinha lá entrado. Era a sala das torturas. Algemaram-me, meteram-me no meio de uma roda de agentes e espancaramme a murro, pontapé e com umas grossas tábuas de madeira. Depois de me terem espancado durante um longo tempo, deixaram-me cair, imobilizaram-me no chão, descalçaram-me os sapatos, tiraram-me as meias e deram-me violentas pancadas nas plantas dos pés. Deixaram-me quase sem forças para lutar.

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Durante a tarde fui transferido da Penitenciária de Lisboa para o Forte de Peniche, que é conhecida por ser a prisão mais fortificada de todas. Quando cá cheguei fui muito bem recebido pelo meu novo colega de cela, um homem de meia-idade que já era prisioneiro há quatro anos. Falámos durante algum tempo. Chegou a hora do jantar, sentei-me ao seu lado e ele começou uma conversa em que dizia que tinha um plano infalível para fugir da prisão. Fiquei interessado na possibilidade de participar nessa fuga. Entretanto o jantar acabou e fomos direitos à nossa cela, continuámos a conversa sobre a fuga até de madrugada. Ele explicou-me o seu plano e uns cinco minutos antes de irmos dormir mostroume o buraco que tinha feito até à

ventilação,

sinceramente

fiquei de boca aberta, como tinha conseguido sem ninguém descobrir. Mal posso esperar pelo dia da fuga.

21. Presa política n.º 11865, Vitória Ferreira, por Núria Costa Chamo-me Vitória Ferreira, tenho 27 anos e vivo, vivia, em Lisboa. Fui presa a 3 de maio de 1960 pela PIDE, por simplesmente defender os meus direitos de cidadã e não pensar da mesma maneira que Salazar. Encontro-me detida na prisão de Caxias. Ao fim de uns meses da minha detenção, ouvi uns murmúrios de que a PIDE tinha torturado uma das minhas vizinhas para que falasse sobre mim. Mais tarde, numa nova tentativa de ela falar, negociaram a sua liberdade em troca de informações e ela não hesitou. Assim sendo, ela falou sobre mim e acabaram por não cumprir a sua parte do acordo. Fui procurada pela PIDE

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e interrogada, como não falei, optaram por me torturar com dez dias sem dormir, ao que se chama tortura do “sono”, entre outras... As condições a que me propuseram não são dignas de um ser humano, as camas são feitas de pedra e as celas são bastante húmidas e escuras. A comida é escassa e somos alimentados só uma única vez por dia. Depois de muito tempo de cá estar, a tortura continua, pelo simples facto de eu não responder a todas as perguntas que eles me fazem. Não vejo a minha família desde que me capturaram e nem faço sequer ideia se se encontram bem ou mal. A minha ocupação durante estes longos meses, tem sido ouvir as mil e uma perguntas que me fazem e contar os dias para a minha libertação, sem saber para quando estará marcada. Roubaram-me a minha liberdade de expressão e o meu direito de cidadã. Assim me despeço neste maldito dia 12 de janeiro de 1961.

22. Preso político n.º 11224, Manuel, por Rafael Santos Nunca pensei que a situação nesta prisão de Aljube fosse tão feia, chamo-me Manuel e tenho 27 anos. Fui preso há cerca de um mês quando dois agentes infiltrados da PIDE me viram a vender jornais «Avante» e eles mesmo me prenderam. Antes de ser interrogado submeteram à tortura do «sono» durante 8 dias. Estamos a 14 de outubro de 1970 e eu tenho uma filha com 5 anos para cuidar e agora já não a posso ver. A minha família e amigos foram proibidos de entrar na minha cela, onde não tenho condições nenhumas e me dão comida uma vez por dia, o que é muito pouco. Todos os dias vêm três homens da PIDE obrigar-me a falar sobre quem me fornecia os jornais, quem mais vendia os jornais comigo, e quais os outros sítios onde vendíamos os jornais. Nunca disse nada acerca disso e continuo a ser espancado e

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maltratado, até chegar ao ponto de não me sentir, e urinar-me todo. Quando isso acontece eles obrigam-me a limpar a cela com a minha própria roupa. Quando estou na cela e não aparecem os PIDES fico a pensar na minha família e no que poderia estar a fazer com ela. Não me consigo conformar com esta situação, quase que já não tenho força para escrever. A maior parte do meu dia é passado na cama, que é a única coisa boa que tenho naquela nojenta e pequena cela, a recuperar dos maltratos que tenho sofrido.

23. Preso político n.º 11433, Duarte Silva, por Daniel Candé Eu, Duarte Silva, de nacionalidade portuguesa, escrevo hoje, dia 26 de outubro de 1973, no meu trigésimo quarto aniversário, neste diário de forma a expressar o nojo e repulso que sinto pelo governo do meu país, Portugal. Estou preso desde 11 de abril de 1973, seis curtos meses que me pareceram seis anos de dor e pesar. Antes de estar aqui, encarcerado como um animal de circo, trabalhava num jornal como redator. O que fez com que eu viesse para aqui foi o facto de eu ter tido coragem suficiente para fazer frente a este governo opressor e degradante, escrevendo um artigo com a minha opinião sobre a situação deste país! O que aconteceu a seguir foi de grande espanto! O artigo tornou-se famoso e de repente passou a estar na boca do povo. Fui preso por um agente da PIDE enquanto jantava

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com a minha família. Pela conversa deste agente nada de grave me iria acontecer e em pouco tempo estaria novamente com a minha família. Estou agora na prisão de Caxias, fechado numa cela que tem no máximo 7 metros quadrados, como companhia tenho um livro velho que encontrei debaixo desta cama que está a cair aos bocados de tanto uso que já teve. Tenho apenas uma velha manta para combater este frio! Por dia tenho duas míseras refeições frias que servem de consolo a este estômago que já se acostumou a pouco. Quando cá cheguei fui interrogado horas a fio. Interrogações sem objetivo visto que era óbvio o ''crime'' que eu havia cometido, foram cerca de doze horas ali sentado a tolerar tal desrespeito! Depois fui levado para uma sala escura que eu pensava ser a minha cela, onde fui torturado violentamente. Iniciou-se com a tortura do sono que durou cerca de uma semana. Era a semana em que ficava ali, isolado, com os meus pesadelos a assombrarem-me. Quando aparecia alguém era para me pontapear até deixar de sentir os pontapés. Ao fim de 2 dias e 2 noites da tortura de sono começaram as alucinações...ouvia a voz da minha família, via novamente os jardins verdes por onde outrora passeara...

Ainda na semana passada fui novamente vítima da tortura do sono, mas não me queixo pois apenas nas alucinações consigo ver a minha família, direito que me foi tirado no dia em que aqui entrei. Não vejo uma pessoa há tanto tempo... estes animais

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não me deixam ir ao recreio, não me deixam ter uma vida digna apenas por uma crítica ao nosso governo! Não tenho refeições a que possa chamar ''refeição'', estou numa cela escura, suja com baratas e ratos que não me deixam ter uma noite descansada... Enquanto ainda tiver boca não me calarei!

24. Marcas insanas de Maria Fernandes dos Santos, por Daniela Santos Neste dia de 5 de abril de 1966, eu, Maria Fernandes dos Santos fui presa pela PIDE. Enquanto passeava pelas ruas dois membros da PIDE disfarçados passavam por mim e pareceram reconhecer-me, mesmo sem eu conhecer a cara deles. Um deles sem cuidados redobrados veio na minha direção, agarrou-me por um braço e perguntou-me o meu nome. Respondi-lhe, mas ainda insatisfeito, fez-me mais perguntas. Convencidos que seria uma defensora da oposição e que eu seria uma grande ameaça, encostaram-me a uma parede, prenderam-me as mãos com algemas e levaram-me num carro. Eu não sabia onde me encontrava, mas por entre diálogos percebi que se tratava da prisão de Caxias. Entrei em pânico, sem saber o que fazer e sem ter percebido a verdadeira razão de ali estar, comecei a gritar e a tentar fugir. Imediatamente fui agarrada e jogada para dentro de uma das muitas

celas,

com

uma

brutalidade monstruosa. Sozinha,

abandonada,

com os meus familiares no pensamento, chorei silenciosamente. Passada uma hora entrou um sujeito com cara de poucos amigos, que de certeza não me viria dar boas notícias. Mandou-me sentar, e do nada começou com um interrogatório cujas perguntas eu não sabia responder. Eu estava sem reação, e farto da minha ignorância mandou-me levantar e assim

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permanecer em estátua, senão ao mínimo movimento era pancadaria certa. Já era de noite e há duas horas que continuava na mesma posição, e já não aguentava mais, tive de me mexer. E numa rajada de vento só senti uma chapada na cara, e logo de seguida uma chuva de pontapés, socos e chapadas. Fui espancada durante uns dez minutos, e fiquei estendida no chão. A cela estava imunda, eu conseguia sentir o cheiro a mofo e algo esponjoso debaixo de mim mas preferia não imaginar o que era. A fome já era tanta, como as dores que sentia naquele momento, mas para minha felicidade vi a porta abrir-se e entrar um tabuleiro com uma tigela de sopa, pão e água. Era uma refeição simples mas saciava a fome do momento. Depois da refeição percorri a cela e encontrei um bocado de grafite e uma folha um pouco mal tratada, que iriam servir para escrever nas paredes, para me entreter, e neste meu diário. Sentei-me numa cadeira e comecei a observar o meu corpo, não havia parte que não estivesse ferida ou roxa, daí a razão de quase nem o sentir, muitas dessas marcas vão ficar para o resto da vida, principalmente as que ficaram dentro de mim. E a minha família? Onde será que eles pensam que estou agora? Só de pensar que posso ficar um, dois, três meses ou até mais tempo aqui sem os ver… Duvido que estes crápulas me deixem sair tão cedo, e tão pouco a minha família visitar-me. Tiraram-me o bem-estar, a liberdade, a paz, os direitos mais importantes para mim. Será que nem nas ruas já se pode andar? Enfim. Sinceramente, nunca fui de me envolver em políticas, nem tenho culpa de aqui estar, mas agora compreendo o que a pessoa, que foi confundida comigo, tem passado ao tentar defender-nos deste massacre, agora tenho raiva a pessoas como Salazar.

25. Preso político n.º 11455, João Rodrigues, por Diogo Ferreira O meu nome é João Rodrigues, tenho 38 anos e nasci a 2 de abril de 1910, no Porto. Escrevo este diário em 1948 e sou antifascista. Antes do fascismo chegar a Portugal eu era um simples político que defendia ideias comunistas, mas com a chegada de Salazar e a lei do unipartidarismo tive de passar à clandestinidade. Quando ainda trabalhava conheci outros políticos que defendiam o comunismo e que, após a nossa saída da política, me propuseram a juntar-me a eles num pequeno grupo antifascista. 42


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A 18 de dezembro de 1943 a PIDE fez uma rusga à rua onde nós organizávamos os nossos encontros secretos e preparávamos uma revolução para acabar com o fascismo. Eu e os meus camaradas fomos presos e levados para a prisão da PIDE no Porto, onde mais tarde vim a descobrir que quem nos havia denunciado eram uns vizinhos do mesmo edifício que desconfiavam das nossas reuniões. Foi a primeira vez que não consegui passar o Natal com a minha família pelo que a minha filha Joana, com 4 anos, me mandou uma carta a perguntar onde é que eu estava, porque é que não tinha passado o Natal com elas, mas eu não podia responder e comecei a chorar esperando que ambas estivessem bem. A minha pequena cela tem paredes de cimento, uma porta de ferro maciço com uma portinhola para a comida, um balde para as necessidades, uma cama com um colchão e uma pequena janela por onde entra a luz. Torturam-me 3 vezes por semana, batendo-me com varas enquanto estou acorrentado pelos braços: Não respondo às suas perguntas! O almoço e o jantar são só pão e água. Não somos autorizados a ver os outros prisioneiros, nem muito menos as nossas famílias! Durante a noite mal consigo dormir porque hora a hora os PIDES passam pelas celas e apontam a lanterna cá para dentro para nos chatear o que me está a deixar louco. Finalmente, e não me vendo mais como ameaça, libertaram-me. Para minha felicidade pude abraçar uma vez mais as minhas queridas filha e mulher, a quem a PIDE não maltratou, o que me deixou bastante aliviado. Sou um homem resignado, resolvi não ter mais nenhuma ideia antifascista e pois não quero que a PIDE venha atrás da minha família, mas tenho a esperança de que um dia alguém consiga pôr um fim a esta ditadura, talvez sejam os meus camaradas que não desistiram da ideia de acabar com o fascismo, e, nesse dia, talvez eu ainda esteja vivo para ver a minha filhinha crescer num país livre.

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26. Presa política n.º 11443, por Raquel Ribeiro 17 de fevereiro de 1942 Querido diário A minha vida nesta prisão é uma tortura total. Quem for ler este diário, se alguém o quiser ler, deve-se estar a perguntar porque estou aqui. Bem, estou presa devido aos meus ideais comunistas e à minha assumida militância contra o regime fascista. Fui presa de 1934 a 1940 e depois regressei à penitenciária em 1949. Agora o que me resta é esta folha de papel em que escrevo e um minúsculo lápis que nem aparado está. Desde que vim para esta prisão fui espancada e torturada. Lembro-me que uma vez uma das seguranças estava a tentar fazer-me falar. No entanto eu não abri a boca. Ela chegou-se perto de mim e insultou-me com tudo o que ela tinha na cabeça, no final quase a ir-se embora, recuou virou-se para mim e começou-me a espancar violentamente na barriga até eu tombar para o lado a gemer de dores, fui pontapeada mais umas vezes e tudo o que me restou foram ferimentos graves no nariz por causa de alguns pontapés me terem atingindo na face. De seguida obrigaram-me a ficar de pé durante 4 dias. Fui impedida de dormir durante 4 dias e noites seguidas. Durante esses dias bateram-me para me manter acordada, fui obrigada a fazer algo a que eles chamam a “estátua” em que consiste em ficar imóvel durante um período de tempo, o meu foram cerca de 5 dias. Apenas “descansei” quando fui comer as minhas refeições. Sofri cerca de oitocentas e trinta horas de interrogatório mas decide, prometendo a mim mesma que não iria falar. Um dos guardas disse-me que se eu sujasse a sala onde estava teria de a limpar apenas com a roupa que tenho no corpo. Naquele dia aconteceu o pior. Não tinha ido à casa de banho durante o dia todo e então sujei a sala. Começaram-me a despir aos poucos e tentaram obrigar-me a limpar o que fiz. Opus-me completamente a isso e

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então quem acabou por limpar foram os guardas e não eu. Enquanto me faziam isso estavam constantemente a ofender a minha dignidade. Faz hoje 10 anos que entrei para esta prisão, estive 8 em completo isolamento, alguns guardas dizem até ter ser uma grande surpresa não ter perdido a noção do tempo, no entanto tive uma vontade de desistir de isto tudo e de morrer. Chamaram a esta minha vontade “tentativa de aniquilamento de personalidade” o que é basicamente tentar-nos aniquilar a nós próprios. Eu chamo-lhe “suicídio”. Tenho-me dedicado à escrita desde que estou aqui fechada para conseguir sobreviver.

27. Preso político n.º 11964, por Ricardo Viegas Mais um dia neste isolamento… Hoje 12 de abril de 1955, tenho 40 anos e faz precisamente 5 meses que me encontro prisioneiro em Lisboa, nesta cruel e desumana cadeia de Aljube. Preso de corpo mas livre de pensamento. Continuo com os mesmos ideais e convicções. Por ser um político,

opositor

do

Estado

Novo, encontro-me “enjaulado” numa das piores prisões de Portugal, país este… fascista! Vezes sem conta me vem ao pensamento o dia em que me prenderam aqui. No dia 4 de Abril, num final de tarde a comemorar o terceiro aniversário do meu filho, estava em casa, com a minha família, quando repentinamente entram 4 homens (PIDE), declarando que iria ser interrogado e ao mesmo tempo espancavam-me agressivamente diante deles. Foi horrível ver o desespero da minha mulher e do meu filho Apercebi-me logo que alguém me havia denunciado. Alguém, que com certeza me conhecia, meu amigo decerto! Ou quem sabe alguém infiltrado na PIDE!!!! Ao chegar a este presídio, fui despido, revistaram-me, tirando-me todos os meus pertences pessoais (para evitar o suicídio, julgo eu).

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Página de diário de um preso político português

Não tive direito a nenhum julgamento, pelo contrário! Já fui inúmeras vezes submetido a interrogatórios, onde me torturaram horrorosamente e ainda hoje sou tratado cruelmente no meu dia-a-dia. Espancamentos, privação do sono, estátua e a solidão nos “curros” são os meus maiores pesadelos dentro desta prisão e devido a isso, começo a aperceber-me que não estou bem…acho que tenho alucinações, já para não falar das dores horríveis e insuportáveis que tenho no meu corpo. Algumas vezes, quando sou levado para o 3º andar da sede da PIDE, onde estão sempre muitos agentes para nos torturar, entra um médico para garantir que cada um de nós, prisioneiro, aguente até ao nosso limite. Desde que entrei aqui, só vi a minha família uma vez e foi durante um curto período de tempo. A minha cela é pequeníssima! Muito estreita e impossibilita quase eu mexerme. Alimentação…nem eu sei. É péssima! As únicas coisas que consigo fazer quando não sou torturado são contar os minutos e pensar na minha querida família. Roubaram-me a liberdade de expressão, a dignidade, tentam matar os meus ideais, encarceraram a minha vida entre quatro paredes e privam-me de estar com a minha família, os meus amigos e até os meus inimigos. Desejo e sonho todos os dias que este pesadelo acabe.

28. Preso político n.º 11553, por Sara Boom 3 de novembro de 1965 Fazem hoje exatamente dois meses desde que os meus dias de tortura começaram. Parece que naquele dia, numa questão de segundos, passei de um homem livre a um homem preso na escuridão da sua cela em Caxias. Por ser comunista e lutar contra o Estado Novo, fui apanhado por um polícia da PIDE. Lembrome que assim que cheguei à prisão revistaram-me e tiraram tudo o que tinha comigo, como por exemplo os meus óculos, e de seguida avisaram-me logo de que iria ser submetido à tortura do sono, que consiste em estar vários dias sem poder dormir. Todos os dias deparo-me com situações terríveis. Tanto eu como os meus companheiros de cela somos sujeitos a maus tratos e a torturas e muitos deles já estão tão habituados que algumas vezes já lhes é insignificante qualquer das torturas, pois já estão demasiado insensíveis. 46


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Os dias nesta prisão passam muito lentamente, principalmente quando estamos a ser alvo de tortura porque esta nunca mais acaba. Sinceramente, os únicos momentos em que me sinto um pouco feliz são quando posso ver a minha mulher, as minhas duas filhas e saber se estão bem e também quando estou

sozinho

entre

estas

quatro

paredes escuras e friorentas a escrever no meu diário sobre o que me vai na alma, pois aí sim, já me posso expressar e dizer o que eu quiser sem levar pancadaria. A comida aqui é muito pouca e nada agradável. A minha cela, apesar de ser húmida e fria, permite que possa estar sozinho e descansar o meu corpo dos pontapés, dos murros e de outras torturas de que sou alvo. Enfim, espero que algum dia me possa livrar destes dias de sofrimento para que possa voltar a ser o homem livre que era.

29. Preso político n.º 11328, Henriques Soares, por Vasco Pearson No dia 4 de agosto de 1973 fui preso. Eu, Henrique Soares, tenho 35 anos e já foi a segunda vez que fui preso. A primeira vez que fui preso foi há 4 anos. Alguém me tinha denunciado à PIDE por estar a conspirar contra o governo. Ainda me lembro. Chegaram ao local onde nos encontrávamos (estávamos a ter uma pequena reunião a discutir como ter mais gente a ajudar-nos), mataram um de nós e prenderam o resto. Nunca chegámos a saber quem nos tinha denunciado. Desta vez foi diferente. De novo, alguém me tinha denunciado à PIDE. Mas desta vez apanharam-me sozinho, logo pela manhã. Colocaram-me, algemado, na parte de trás de uma carrinha e fui com eles para um lugar bastante longe, pois demorámos a chegar lá. Quando saí da carrinha e me retiraram as algemas, levaramme para uma sala escura. Aí perguntaram-me quem mais andava a conspirar contra o governo, no entanto eu não lhes disse nada. Eles tentaram convencer-me a dizer,

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primeiro ameaçando-me (dizendo que iriam atrás da minha família e amigos), e também dizendo que se eu dissesse iria ficar menos tempo na prisão e teria melhores condições dentro da prisão. Mas mesmo com isso tudo eu não disse nada. Eles não estavam satisfeitos com a minha resposta, logo fui espancado ao murro e ao pontapé. Estava em agonia. Só via sangue no chão. Tinha quase a certeza que o meu nariz estava partido. Mas mesmo assim não disse nada. Dado isto, levaram-me para uma cela particular na prisão de Peniche. Passei lá uma noite. No dia seguinte levaram-me para uma sala com mais 4 homens e aí fui sujeito à tortura do sono. Sete dias e sete noites sem dormir. Fiquei numa apatia geral, com ligeiros períodos de lucidez, e ao fim de quatro dias tive alucinações visuais e auditivas. Passadas duas ou três semanas, sofri ainda 4 dias de “estátua”. Continuo agora na prisão de Peniche. As condições aqui são terríveis. A minha cela é muito pequena, tem muito pouca luminosidade e é muito suja. A comida que nos dão aqui é de muito pouca qualidade e quantidade. Continuam a torturar-me. Há uns dias imobilizaram-me no chão, descalçaram-me os sapatos e meias e deram-me violentas pancadas na planta dos pés. De seguida levantaram-me e obrigaram-me a marchar sobre os pés feridos e inchados. Mas o pior de tudo, pior do que qualquer tortura é que não posso ver a minha mulher e os meus dois filhos durante dois anos inteiros. Não me deixam ter visitas. Isso é a pior tortura que algum pai pode ter. Eu não tenho forma de ocupar os meus dias. Tenho que os passar na minha cela minúscula que tudo o que tem é uma cama. Precisava de uma forma de passar o tempo e não ficar louco. Então comecei a escrever para passar o tempo e leio, leio muito, tudo aquilo que me permitem.

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Eu acho que o que eles nos estão a fazer é uma violação de inúmeros direitos humanos, mas principalmente do direito de liberdade de expressão e de pensamento. Eu nunca lhes direi quem estava a conspirar contra o governo comigo. Quantos mais formos a lutar contra este governo, maior será a probabilidade de podermos ganhar e de termos a nossa liberdade de volta. E maior a probabilidade de voltarmos a ter os nossos direitos todos de volta. Continuarei sempre a lutar pelo povo português.

Desenho de José Dias Coelho, assassinado pela PIDE no dia 19 de Dezembro de 1961, na Rua da Creche, que hoje tem o seu nome, junto ao Largo do Calvário, em Lisboa.

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