NARRATIVAS HISTร RICAS 8ยบ B, C e D Histรณria Ano letivo 2016-2017
Narrativas Históricas – Tráfico negreiro e economia açucareira
Título: O Tráfico negreiro e a economia açucareira Desenhos: capa de Beatriz Carrusco; contra-capa de André Coelho Turmas: 8.º B, C e D Professora Cristina Barcoso Lourenço Agrupamento de Escolas de Montenegro, Faro Fevereiro de 2017
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Índice Introdução.............................................................................................................................................. 5 1. Obrigada, por Rita Fonseca ................................................................................................................ 6 2. A minha desprezável vida escrava, por Catarina Custódio ............................................................. 10 3. O Diário de um escravo, por João Cardoso ...................................................................................... 12 4. A Mudança, por Beatriz Reis ............................................................................................................ 14 5. Sonho com o dia em que serei livre, por Catarina Silva .................................................................. 16 6. Uma vida de escravo, por João Ramada .......................................................................................... 19 7. A vida de Luena, por Mariana Franganito........................................................................................ 20 8. Em tempos fui uma escrava, por Beatriz Brásio .............................................................................. 23 9. O meu corpo tornou-se num cemitério do tempo, por Beatriz Martins ......................................... 27 10. Sonhar sem nenhum dos sonhos se tornar realidade, por Érica Candeias ................................... 28 11. Fui completamente livre, por Inês Alexandre................................................................................ 30 12. Antes de cair num sono profundo conhecido por morte, por João Pinto ..................................... 31 13. A história de Malum, por João Ramos ........................................................................................... 32 14. Espero adoecer e morrer para ser livre, por Raquel Reis .............................................................. 33 15. Uma vida de escravo, por Tiago Dias ............................................................................................ 34 16. Memórias de uma vida, por Carolina Coimbra .............................................................................. 36 17. Esta vida, por Carolina do Ó ........................................................................................................... 37 18. Estou cansada, por Érica Anica ...................................................................................................... 38 19. Chamo-me Urbi, por Mariana Fortio ............................................................................................. 39 20. Nunca vou esquecer o meu passado Rita Nunes ........................................................................... 40 21. Vida de Escravo, por Tiago Brasil ................................................................................................... 41 22. Durmo ao relento, por Bruno Guerreiro ........................................................................................ 42 23. Passado esquecido, por Carolina Germano ................................................................................... 43 24. A minha viagem de há sete anos, por Catarina Gregório .............................................................. 44 25. Apenas me resta esperar e ter esperança, por Catarina Pinheiro ................................................ 45 26. Tortura desde criança, por Filipa Simão da Silva ........................................................................... 46 27. Isto é ridículo, pensar que as pessoas são diferentes pela cor, por Guilherme Baptista .............. 48 28. A Vida De Rafael, por Hugo Rosa ................................................................................................... 49 29. O rapto, por Tiago Alves ................................................................................................................ 50
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30. Isaura, por Alexandra Firmino ....................................................................................................... 51 31. Eu já fui livre, por Carolina Oliveira ............................................................................................... 52 32. A morte está perto, por Daniel Gonçalves..................................................................................... 53 33. História da Minha Vida, por Fábio Guerreiro ................................................................................ 54 34. Arrancados os direitos humanos, por Joana Piedade ................................................................... 55 35. Éramos de cor escura, por Martinus Boom ................................................................................... 57 36. Sou maltratada, por Paula Fonte ................................................................................................... 58 37. Vítor, Rafael Oliveira ...................................................................................................................... 59 38. Um dia espero ser libertada, por Viviana Cantas .......................................................................... 60 39. Esta é uma vida que não desejo a ninguém, por Mariana Silva .................................................... 61 40. Zaki, por Gonçalo Santos ............................................................................................................... 63 41. Fui capturada, por Ana Carlos ........................................................................................................ 64 42. Vontade de voltar a ter Liberdade, por Hugo Sousa ..................................................................... 65 Guião de trabalho ................................................................................................................................ 66
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Introdução Uma das maiores dificuldades que sinto enquanto professora de História é levar os meus alunos a entenderem o sentido e utilidade da disciplina. Para muitos alunos a História é sinónimo de memorização, para outros de cultura geral e pouco mais. Despertar o interesse pela História passa por construir empatias… com os períodos históricos, com a ação dos Homens do tempo e no espaço, analisando, refletindo, criticando e comparando com a realidade. Uma das estratégias que utilizo é levar o aluno a viajar no tempo, a vestir uma personagem e escrever uma narrativa. Entendo que quando o aluno se coloca no papel de ator da História e tenta ver, pensar e agir de acordo com a mentalidade de outras épocas históricas, desenvolve um conhecimento mais profundo e duradouro e não se limitará a regurgitar conceitos para um teste escrito que depois esquece por não encontrar qualquer utilidade. Aprenderá ainda a verificar as ruturas e permanências do fio da História. O tema deste livro digital que publicamos este ano letivo com narrativas históricas dos alunos do 8.º ano é o tráfico negreiro e a economia açucareira. Os alunos começaram por ler fontes históricas diversificadas e responder a um questionário. Depois, refletiram sobre a relação passado-presente, debatendo situações atuais de exploração do ser humano. Finalmente, entreguei-lhes uma proposta de construção de uma narrativa histórica (escrita ou plástica) onde se colocaram no papel de um jovem que foi capturado em África e levado para um engenho de açúcar no Brasil. Este livro digital é o resultado dos trabalhos que me foram entregues, independentemente do perfil de desempenho de cada aluno ou mesmo das condições especiais de avaliação que alguns alunos beneficiam por estarem enquadrados no regime da educação especial. É o resultado da sensibilidade, determinação e empenho de cada aluno. Constitui ainda objetivo deste livro digital a divulgação junto dos pais e encarregados de educação e comunidade cibernauta os trabalhos produzidos pelos alunos, contribuindo para a valorização do que é feito no espaço escolar.
Cristina Barcoso Lourenço, Montenegro, Faro, 28 de fevereiro de 2017
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1. Obrigada, por Rita Fonseca O meu nome é Zaila, tenho 20 anos e sou uma escrava. Vou-vos contar a história da minha escravatura. Neste momento estou no Brasil mas vivia em África antes de ser capturada com 13 anos. Todos os dias da minha vida em África eram pacíficos, ouviam-se os pássaros a cantar, as crianças corriam de um lado para o outro. Os homens iam caçar logo de manhã para termos o que comer até o resto do dia e à noite fazíamos danças à volta da fogueira para nosso entretenimento. Éramos todos felizes a viver a nossa vida calma até que, um dia, vieram 2 homens brancos falar com o nosso chefe. Eles eram muito pacíficos, até que, aos poucos, chegaram mais homens brancos. Começaram a agarrar e a prender com cordas algumas pessoas da minha tribo. Tentei fugir quando me apercebi o que se passava mas, infelizmente, fui capturada. As cordas faziam marcas vermelhas nos meus pulsos e no meu pescoço.
Eles levaram-nos para um barco. Quando estávamos lá dentro, reparei que os homens foram colocados no porão. As mulheres ficaram na coberta do navio. As grávidas postas na cabina de trás. E eu e as restantes crianças fomos amontoadas numa parte da coberta. A viagem foi longa, nem sei quanto tempo durou… O calor invadia o espaço, já não havia quase ar puro por causa do suor produzido por todos. Raramente tínhamos comida ou água. Passei dias, quase a viagem toda, a ouvir crianças a chorar e a gritar por ajuda; queriam estar com os seus pais pois não sabiam onde estavam e o que lhes iria acontecer. Nem eu sabia o que nos esperava, sabia que apenas tinha que esperar para saber. Fiz algumas amizades, mas alguns dos meus amigos não resistiram às condições em que vinham. Triste, mas parece que a vida é assim, cruel e injusta para muitos de nós… Às vezes ouvia gritos de dor vindos do porão. Ouvia o som de chicotes a baterem nos corpos das pessoas.
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Quando atracámos no cais, foram-nos buscar e, novamente, prenderam-nos de novo com as cordas apertadíssimas aos nossos pulsos e pescoço. Levaram todos os cativos para dentro de uma espécie de casa enorme que eu nunca tinha visto. Alinharam-nos lado a lado enquanto homens brancos nos olhavam de cima a baixo. Não percebia o que eles diziam, mas apercebi-me que tinha qualquer coisa a ver com trocar um ou vários de nós por umas coisas redondas e douradas. Estava perdida nos meus pensamentos a tentar perceber o que os homens estavam a dizer mas, subitamente, vejo um homem branco com barba um pouco grisalha, de camisa branca, calças azuis, com um colar com uma cruz e com algo nos pés que lhe chamavam de “sapatos”, a apontar para mim. Estava vestido de maneira muito diferente comparado aos outros homens, que estavam todos iguais: calças pretas, camisa preta e sapatos castanhos. Mas o que mais se diferenciou entre eles, foram os sapatos do homem que me escolheu. Ele tinha calçado uns sapatos castanhos claros quase até ao joelho. Ouvi o branco que me trouxe, juntamente com os outros do barco, dizer alguma coisa do género “Tu e as tuas ricas botas!”, apontando para os seus pés. Pelo que eu percebi, aqueles sapatos não eram sapatos, mas sim alguma coisa chamada de “botas”. Passado algum tempo, eu e o resto dos cativos que fomos escolhidos pelo “Homem das Botas”, fomos conduzidos por ele até à parte de trás de um veículo. Quando parámos, vi que tínhamos chegado a uma espécie de aldeia, como aquela onde eu cresci. Muitas recordações me vieram à memória. Mas reparei que havia uma habitação mais lá para o fundo que era muito maior, larga, de cor branca e com janelas. O Homem das Botas estava a levar-nos para cabanas num terreno fora da enorme casa. Colocou-me numa cabana que continha 2 mulheres; uma delas tinha um bebé ao colo. Elas receberam-me de braços abertos e com um sorriso na cara. Eu não sabia que estava a acontecer por isso perguntei-lhes onde me encontrava e o que eu fazia ali. Elas explicaram-me que eu estava no Brasil e que tinha de trabalhar num engenho de açúcar, que era uma espécie de instrumento para produzir um pó branco (também não sabia o que tinha de tão importante, mas isso devem ser coisas de branco). No dia seguinte, fui acordada com o barulho de sinos vindo da casa. As mulheres acordaram muito bem dispostas e levaram-me até ao centro do terreno onde estava uma gigantesca mesa com pão e bebidas. Era muito melhor do que no barco, se querem que vos diga. Sentei-me ao lado de uma rapariga da minha idade chamada Amara. Ela contou-me que estava lá desde os 6 anos e que, comparando o Homem das Botas a outros homens que tinham escravos, este era bem simpático. Antes de começar a refeição, o Homem das Botas apareceu e disse aos novos cativos para se dirigirem para o engenho de açúcar. A minha tarefa era carregar as canas-de-açúcar até aos engenhos. O trabalho era cansativo; as minhas costas no final do dia doíam-me imenso. Fiz vários amigos e, às vezes, o Homem das Botas permitia-nos fazer pausas. À noite, ele juntava-se a nós na fogueira e cantava canções com a voz já um pouco rouca por causa da sua idade. Nalguns dias, ele almoçava junto de nós e contava histórias de quando os seus filhos eram pequenos, antes de irem para as suas próprias casas. Também nos ensinava nomes de várias doenças, operações de matemática, como falar português e inclusivamente ler.
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Passaram-se vários meses e eu continuava naquele sítio, sempre a fazer o mesmo trabalho. Durante este tempo, vi alguns dos cativos a serem castigados por saírem do trabalho às escondidas, por serem apanhados a saírem à noite ou até mesmo por desrespeitarem os outros cativos. Para os castigar, eram repreendidos e era-lhes chegado um cipó às costas. Os meus amigos contaram-me que alguns homens brancos, para castigarem os seus escravos, davam-lhes pontapés até sangrarem; de vez em quando até os punham no troco durante meses. Felizmente isso nunca me aconteceu. Os anos passaram, eu e os meus amigos crescemos, mais bebés nasceram, alguns cativos morreram e outros chegaram, mas o Homem das Botas continuava o mesmo. Continuava a vestirse da mesma forma, a comportar-se da mesma forma e a tratar todos os escravos da mesma forma. Mas, há uns 8 meses, ele começou a estar menos connosco. Já não almoçava junto de nós, já não cantava, só observava os outros cativos a cantar ou a dançar. Já faziam alguns dias que não via o Homem das Botas pelo terreno até que um dia, eu estava, como sempre, a trabalhar no engenho de açúcar e vi dois homens brancos à frente da casa; um deles tinha papéis na mão e o outro cumprimentou-o, entrando dentro de casa. Demorou um bocado até eu e todos os cativos percebermos o que se passava, mas passado pouco tempo, vimos um caixão castanho a ser transportado para dentro de um veículo. Como sou muito curiosa, decidi largar tudo e deixar o que estava a fazer, juntamente com a Amara. Quando chegámos perto do caixão, escondemo-nos atrás de um monte de canas-de-açúcar e eu consegui ler na parte lateral do caixão o seguinte: “Sr. Alberto Pereira da Silva 1595 – 1670” e estavam gravadas umas botas perto do nome. Foi aí que caí sobre mim mesma. O Homem das Botas tinha morrido. Eu e a Amara fugimos o mais depressa possível de trás das canas e fomos contar aos outros o que tinha acontecido. Ficaram todos destroçados, pois o homem que os tinha ensinado tudo e que os tinha “acolhido”, terminara a sua missão na terra. No dia seguinte, fomos todos acordados pelos sons dos sinos a tocar, mas desta vez o som era muito alto e violento. Dirigimo-nos apressadamente para o ponto de encontro para ver o que se passava. Deparava-se à nossa frente, um homem branco com aspeto novo, bruto e convencido e com uma arma no bolso. Assim que chegaram todos, o homem disse num tom seco: “O meu nome é José da Silva e, como devem saber, eu sou o filho do senhor Alberto da Silva e, por isso, daqui em diante, eu vou ser o vosso novo chefe”. Ficámos todos espantados, pois não percebíamos como é que um homem com aspeto tão arrogante poderia ser filho de um senhor tão amável. No meu primeiro dia de trabalho com o senhor José, eu já observava alguns cativos a serem castigados por não pegarem direito nas canas. Fiquei surpreendida pela maneira de ele os castigar. Ele dava-lhes pontapés até sangrarem e alguns até eram chicoteados. Passaram-se 5 meses desde a vinda do senhor José. A minha vida tinha passado de um paraíso para um inferno. Já tinha sido castigada mais de 10 vezes por defender os outros cativos para não serem castigados. Tinha a sensação de que ele não gostava de mim. Perdi muitos amigos nestes últimos meses, por causa da maneira como eram tratados; acabaram por morrer de estarem tanto tempo acorrentados e sem comer. As nossas refeições foram reduzidas até ao ponto de estarmos uma
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semana sem comer. Já não aguentava mais, só queria sair dali. Neste momento, preferia morrer do que continuar com os pés assentes no chão. Outros 3 meses se passaram, e eu não aguentava a dor que tinha no meu corpo e a dor que me ia na alma, ao ver sofrer tantas pessoas com quem fiz ligações muito fortes. Ontem, vi o senhor José a agredir uma grávida com um cipó. Não aguentei mais, só tive tempo de pegar no objeto mais próximo de mim. Peguei numa cana-de-açúcar e parti-a na cabeça do homem. Quando recuperei a consciência do que tinha acabado de fazer, olhei-o nos olhos e vi-o com a sua arma a apontar na direção da minha cabeça. De repente, tudo ficou preto e ouvi o som de um tiro. Sabia que ele tinha disparado contra mim e, por isso, o meu último suspiro foi “Obrigada”.
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2. A minha desprezável vida escrava, por Catarina Custódio O meu nome é Siara Mostanly, eu era da Guiné e vivia com os meus pais e com os meus irmãos na aldeia de Saloli. Naquela altura tinha 13 anos, eu era muito jovem mas feliz, pois tinha tudo o que podia desejar. Tinha a minha família, a minha casa, os meus amigos e tinha aquela pura e magnífica paisagem que me acalmava, daí o meu nome. No meu dia a dia costumava ajudar a minha mãe a fazer a roupa, a tratar dos animais e tenho de admitir que naquela altura eu achava aquilo aborrecido mas hoje eu não acharia isso. À noite havia homenagens aos nossos deuses e costumávamos dançar e para mim essa era a melhor parte do dia.
Parecia tudo um sonho até que certo dia, logo pela manhã, ouvi um dos nossos a gritar que os invasores estavam a caminho. Ao ouvirem isto, os meus pais e irmãos começaram a tirar as suas coisas para sair dali, mas eu continuava ali parada a perguntar-me quem era aqueles senhores? O que queriam? Quando voltei outra vez à realidade apercebi-me que os invasores já estavam na praia. Tentei correr o mais rápido que podia mas a certa altura tropecei num ramo e como não me conseguia levantar os invasores apanharam-me. O líder dos invasores chamava-se Afonso de Télio, era um nobre português, muito alto, de olhos azuis, cabelo louro e tinha um ar de quem já tinha matado muitas pessoas. Ali ao pé de mim estavam mais pessoas da minha aldeia, umas a chorar e outras a gritar. Quando o Afonso de Télio me viu perguntou-me como é que me chamava, com uma voz grossa. Eu disse-lhe que me chamava Siara e que queria saber onde estava minha família. Ele nem me respondeu, apenas se limitou a olhar para um dos dele e a seguir eu estava acorrentada às pessoas da minha aldeia como um animal. Eles levaram-nos para um barco a que eles chamavam de “Negreiro”. Lá dentro tudo era mau. Havia sangue por todo o lado, cadáveres e correntes enferrujadas . A mim e às outras crianças puseram-nos numa das cobertas do barco, todos em cima uns dos outros . A viagem durou 50 dias. Tinhamos muito calor o que me fazia sentir ainda pior, tinhamos pouca comida e água e quando a
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tinhamos era sempre quente por causa do calor. Às vezes, à noite, ouvia homens a gritarem de dor porque tinham feito algo, então os capatazes batiam-lhe com um chicote. Quando cheguei ao Brasil, fui logo comprada por um senhor da nobreza portuguesa, Miguel Gomes, que depois me levou para casa que seria a minha por muito tempo. Ele disse-me para iria trabalhar na propiedade, mais propriamente na Casa Grande, e para ser franca eu não sabia o que teria que fazer mas ele também nem se preocupou com isso. Quando lá cheguei mandaram-me logo para a senzala, o local onde vivam os escravos como eu. Eu trabalharia na Casa Grande, porque sou mulher. Iria trabalhar na cozinha, a fazer limpezas e como ama. Às vezes também trabalharia no curral a alimentar os animais e a tratar deles. Normalmente os homens trabalhavam nas plantações, no canavial, na casa de Purgar, na casa das Fornalhas, na moenda e na casa das Caldeiras onde era produzido o açucar.Também uma vez por semana nós erámos obrigados a ir à capela. A capela era um lugar onde os habitantes do engenho prestavam culto religioso a Deus mas também se faziam missas, batismos e casamentos. A mim e aos outros escravos aquilo não nos dizia nada pois continuávamos a acreditar nos nossos deuses. Nos primeiros dias foi muito difícil para mim, pois só dormia 2 horas e sempre acorrentada para não fugir, passava o dia inteiro a trabalhar sem parar e quando pedia ao chefe da guarda se podia descansar, ele pegava em mim e castigava-me com o cipó ou às vezes pondo-me num tronco acorrentada durante muito tempo. Tinha dores insuportáveis e normalmente sangrava e eles não faziam nada, como se eu fosse um objeto e que aquilo que viam não passava de algo sem interesse. Com o passar todos anos fui me habituando à dor e ao cansaço que sentia, o que me levou até hoje, com 20 anos. Passei 7 anos da minha vida na escravatura quando podia estar ainda com a minha família e na minha linda aldeia. Estou aqui a trabalhar, dia após dia, à espera que tudo isto acabe de vez, porque não é a cor da minha pele que faz de mim e muitos outros diferentes dos portugueses. Nós temos sentimentos tal como eles e às vezes gostava que eles compreendem-se isso. Espero que alguém me ajude a combater o meu sofrimento e a dor de outras pessoas como eu .
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3. O Diário de um escravo, por João Cardoso Capítulo 1 - Os Soldados Querido diário, vou-te contar a história de quando deixei de ser livre, de quando passei a ter um dono, de quando deixei de ser feliz. Tudo começou quando tinha 13 anos. Vivia numa pequena vila em África com os meus pais, tios e irmão. Já agora chamo-me Ubakatala, mas podem-me chamar apenes de Uba. Continuando, tudo começou quando a minha mãe me pediu para ir buscar água. Quando já estava a meio do caminho ouvi uns gritos e rapidamente corri para a vila para ver o que se passava, mas quando cheguei vi algo que ainda hoje me assombra. Havia uns homens de cor branca, com armaduras de cor tão reluzente que fazia doer os olhos, armados com espadas tão afiadas que nos cortavam só de olhar pra elas e eram tantos que nos perdíamos só a contar o número de soldados. Capítulo 2 - A captura Quando os vi nem me passou pela cabeça a minha família, simplesmente fugi. Corri o mais rápido que pude, mas não foi o suficiente. Um homem montado a cavalo viu-me e cavalgou até mim. Encurralou-me a um canto e saiu do cavalo como se fosse um rei. Apontou-me uma espada à cabeça e rapidamente me conduziu até junto da minha tribo. Eles fizeram-nos andar durante vários dias. Dormiam em tendas quentes e nós dormíamos ao lar livre e para aquecer juntávamo-nos todos e usávamos o calor corporal uns dos outros. Passada uma semana de maltratos chegámos a um barco gigante. Fiquei assustado, mas o barco era tão grande e majestoso que ao mesmo tempo fiquei fascinado. Entrámos no barco e fomos encaminhados para dentro barco. Capítulo 3 - A viagem Éramos quase 600 homens e mulheres e crianças naquele barco. Só víamos a luz do dia quando um dos soldados brancos nos vinha dar a comida. Em vez de comida para 600 homens recebíamos comida para 50. O meu pai era um homem muito forte, por isso os soldados brancos tinham uma ligeira preocupação de o manter vivo. Mas ele secretamente dava a sua comida a mim, à minha mãe e aos meus
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irmãos. Cheirava muito mal, pois fazíamos as nossas necessidades no canto de um barco. E isso levou a haver muitas mortes devido à má higiene. Passados alguns dias, semanas, ou até talvez meses, chegámos á terra que os homens Brancos chamavam-na de BRASIL. Capítulo 4 - Brasil Os homens Brancos, que de nome tinham Portugueses, fecharam-nos em jaulas com os homens estranhos. Estes homens eram morenos, estavam nus e pintados e enfeitados com penas. Não podíamos falar com ninguém na jaula ou éramos logo chicoteados pelos homens brancos. Passados alguns dias os brancos tiraram-nos das jaulas, levaram-nos até um rio e pediram nos para encontrar ouro. Quem não encontrava ouro durante um dia era chicoteado até já não haver pele nas suas costas. Dormíamos em jaulas acorrentadas pelo pescoço e comíamos uma vez por dia e o que comíamos eram os restos da comida dos brancos. Aos 18 anos em vez de ir para o rio mandaram-me para uma mina. Com cada ano que passava as coisas pioravam. Capítulo 4 - No presente Agora tenho 20 anos e continuo a viver numa jaula. O meu pai e a minha mãe morreram há 1 ano e um dos meus irmãos morreu devido aos maltratos. A minha vida está traçada. Viver dentro desta jaula ao serviço dos brancos que de nome tinham PORTUGUESES.
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4. A Mudança, por Beatriz Reis Já tinha ouvido falar que os homens brancos vinham às nossas aldeias buscar-nos, mas nunca pensei que alguma vez pudesse estar incluída neste grupo. Até à data era uma rapariga africana de 13 anos, feliz, que desfrutava a vida com pouco, que era o suficiente para viver minimamente confortável. Mas tudo mudou. Certa tarde, estava eu no centro da aldeia, onde toda a gente se encontra, a brincar com os meus amigos, quando deparámos com uma multidão de pessoas a correr na nossa em direcção. Pelas suas caras pareciam que tinham avistado o seu maior pesadelo. Nós, atropelados, levantámonos e os meus amigos fugiram, mas eu não. Permaneci ali, parada no meio da azáfama, mais imóvel do que uma estátua, ouvindo os gritos das pessoas da aldeia e dos meus amigos – Foge daí! Eles vêm aí! Fujam! – Isto tudo fazia reverberância na minha pequena cabeça traumatizada. Passado alguns minutos, que me pareceram os mais longos da minha vida, caí em mim e comecei a correr desorientada, mas já tinha sido tarde demais, eles avistaram-me e fui perseguida por um deles. Aí percebi que quem eram os captores não eram homens brancos, mas sim homens da minha raça, impiedosos e insensíveis só por terem sido pagos. Tudo tornou-se surreal e confuso, já nada batia com as coisas que tinha ouvido na aldeia. Primeiro, quando fui capturada, fui amarrada a outras pessoas e esses tais homens impiedosos obrigaram-nos a caminhar durante várias horas.
Nós, os capturados, ainda tentámos questioná-los mas nenhum respondia e permaneciam com as suas caras sérias, e quando viam que já eram perguntas em excesso mandavam-nos calar e ameaçavam-nos de morte. Durante o caminho eu só pensava no que haveria de ser o meu futuro, se iria simplesmente ser raptada, morta ou obrigada a fazer algo maldoso. De repente parámos, avistámos o porto, onde mercadorias eram carregadas para dentro e fora de grandes barcos. Contudo pensei que iríamos ser obrigados a carregar e a arrumar as
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mercadorias mas não, nós sim éramos a mercadoria. Apercebi-me deste facto quando os nossos captores nos entregaram a um homem branco, o capitão de um barco, que lhes agradeceu, contounos e deu-lhe uma barra de ouro e dizendo-lhe que este negócio dava muito lucro, pois muitos escravos estavam a ser comprados, e que iria necessitar de mais. Fomos colocados no porão de um grande barco, amarrados uns aos outros. Passaram-se dias e ainda não tínhamos tido nenhuma refeição. Tudo aquilo era desumano. Nós não podíamos falar se não éramos chicoteados, não tínhamos direito a comer e nem tiveram a decência de limpar os excrementos que estavam ali. Este acumular de falta de condições originou doenças entre nós. Felizmente, por ser uma jovem, minimamente saudável, não fui contagiada mas foi decepcionante ter de ver pessoas a falecer ao meu lado com as doenças apanhadas ao longo das semanas que passavam. Com o passar do tempo eu só pensava quando é que a viagem iria acabar e voltar a estar em terra, e como iria ser a minha vida dali para a frente, sem amigos e sem família. Para piorar a situação entrei em delírio com a falta de alimentação e sobretudo com a má circulação de ar que chegava ao porão, já contaminado com maus odores, chegando mesmo até a pensar que seria a minha morte, mas ao fim de alguns dias passou. Numa manhã, sentimos uma grande agitação vinda de lá de cima. Tínhamos chegado ao Brasil. Fomos recebidos por homens brancos numa cidade situada no nordeste brasileiro e fomos vendidos mais uma vez. Quem nos comprou foi um homem branco português, que nos transportou e distribuiu-nos por diversos engenhos de açúcar. Tudo agora já fazia mais ou menos sentido. Percebi que as minhas antigas hipóteses foram eliminadas, felizmente, mas mesmo assim seria obrigada a trabalhar. Irá se verificar isso para toda a minha vida? Nunca poderei fugir? Porquê eu? Algumas da inúmeras perguntas que passavam na minha mente, nunca chegaram a ser respondidas. Criou-se então uma rotina. Trabalhava de sol a sol, e ficava essas horas a trabalhar nos engenhos. Era muita vez castigada, chegando ao ponto de não ter feito nada mas não podia reclamar, senão seria pior. Os castigos eram horríveis e desumanos, era chicoteada enquanto estava amarrada, e na melhor das hipóteses durava dias e na pior podia até durar meses. Depois, do trabalho, era-nos dada um pouco de comida, e íamos dormir nas senzalas, mais uma vez, claro, sem qualquer condição. Agora sou uma mulher de 20 anos e não a rapariga ingénua que foi capturada há uns anos, e cuja rotina nunca foi alterada e sem a existência da minha antiga aldeia onde ainda era feliz. Tudo manteve-se, sem alguma esperança. A minha vida será isto, até ao fim dos meus miseráveis dias.
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5. Sonho com o dia em que serei livre, por Catarina Silva Chamo-me Maria e tenho 20 anos. Há 7 anos que vim para o Brasil e trabalho num engenho de açúcar brasileiro. Tinha 13 anos quando aqui cheguei. No início foi difícil, mas agora com o tempo vamos sabendo viver conforme as situações. Da minha vida antes de aqui chegar lembro-me que vivia numa aldeia com a minha família. Costumava ir com a minha mãe até ao rio que havia ali perto. Enquanto ela lavava a roupa eu brincava. Lembro-me do dia em que estávamos junto ao rio esperando o meu pai que voltava da pesca, quando de repente fomos agarradas por dois homens. O meu pai aflito, remava com força para chegar à margem e nos tentar salvar, enquanto a minha mãe lhe dizia para fugir… Mas em pouco tempo estávamos cercados de homens e o meu pai, tal como nós, não teve escapatória… Reparei então que já havia um grande grupo de pessoas que tinham tido a mesma má sorte que nós e fomos amarrados uns aos outros em fila, numa corda que era puxada por uma pessoa a cavalo. Fomos obrigados a andar durante vários dias seguidos, sempre vigiados de perto por homens armados. Lembro-me dos meus pés sangrarem e de estar cheia de fome mas a comida que nos davam era muito pouca… Vi pessoas que não aguentavam a caminhada e acabavam por morrer, mas os nossos captores pareciam não se preocupar muito.
Quando chegámos ao porto, onde iríamos aguardar pelo barco que nos transportaria, meteram-nos num barracão e acorrentaram-nos. Lembro-me de haver muito pouca água e comida e as condições de higiene não serem nenhumas. Havia muita gente doente… Pelo menos estava perto dos meus pais, mas recordo-me de ver o terror nos seus olhos, questionando-se para onde seriam levados…
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Finalmente puseram-nos no navio… Fomos atirados para o porão. Separaram-me dos meus pais… Puseram-me junto das outras crianças da minha idade, enquanto acorrentaram o meu pai junto dos homens e a minha mãe foi para o pé das mulheres… Era um sítio apertado onde nem me conseguia mexer. A comida era muito pouca… quase não recebíamos água! A única que tínhamos em abundância era a água do mar que entrava pelas frestas da embarcação feita de madeira…. Estávamos todos cheios de fome, fracos e alguns estavam doentes. O desespero era muito… Cheguei a ver pessoas da mesma família aceitarem vigiar os familiares e puni-los, em troca de um pouco mais de água…. Assisti a muita morte… Quando chegámos ao nosso destino, fomos novamente metidos num barracão e estava lá um médico… Mandaram-me abrir a boca, contaram os meus dentes e cataram-me a cabeça… Depois disto, foi a parte mais dura para mim: tiraram-me de perto dos meus pais para me vender… Lembro-me de ter chorado muito e dos meus pais se terem agarrado a mim…. Fui então levado para a casa do meu dono e colocada num espaço com uma única divisão, onde dormíamos no chão em cima de palha e éramos vigiados por um feitor (era o homem que geria a propriedade do senhor) que se fosse preciso nos castigava em frente a todos… Ainda hoje é assim… Mas dentro da minha tristeza lá encontrei um bocadinho de alegria: a minha mãe tinha sido vendida ao meu dono… Já não me sentia tão desamparada, estávamos juntas. Do meu pai não sabíamos o que lhe tinha acontecido… O trabalho era dividido em tarefas para cada um de nós. Inicialmente mandaram-me para os canaviais e enquanto os homens cortavam a cana-de-açúcar, eu juntava as canas em feixes. Era um trabalho menos pesado, mas no fim do dia de trabalho tinha as minhas mãos cheias de feridas… A minha mãe tinha um trabalho mais perigoso que o meu: ela enfiava as canas na moenda (máquina que moía a cana-de-açúcar). Lembro-me de ter sempre muito medo pela minha mãe, pois já várias mulheres tinham tido acidentes e tinham ficado sem braço ou sem mão…. E depois ainda eram castigadas, porque tinham sido descuidadas… Castigos duros em que chicoteavam até sangrar, queimavam com ferros em brasa, acorrentavam… Quando fiz 17 anos mandaram-me para a moenda… Fazia os turnos da noite… Foi uma aflição para a minha mãe mas, como ela dizia, pelo menos era ela que me iria ensinar como fazer o trabalho de forma a evitar acidentes. Mas nessa mesma altura, a cozinheira da casa do senhor adoeceu e precisaram de alguém… O feitor apareceu para levar a minha mãe à presença do senhor… Na altura fiquei preocupada, pois não sabia o que lhe queriam, mas quando soube que ela ia substituir a cozinheira fiquei contente, pois para ela era um trabalho melhor… E percebi que os conselhos simples que ela me dava sobre nunca desobedecer e me manter calada, podiam mudar a nossa vida, pois o feitor sabia que a minha mãe era uma pessoa conformada com a má sorte que tinha tido e que não causaria problemas, por isso a levava para trabalhar na casa senhorial. Hoje tenho 20 anos e a minha vida melhorou… Há 1 mês atrás, os netos do senhor vieram morar com ele e precisaram de quem cuidasse das crianças… Claro que a minha mãe intercedeu por mim junto da senhora e estou desde então na casa senhorial… E para completar esta felicidade,
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chegaram mais escravos e entre eles estava o meu pai… Após tanto tempo, tenho a minha família junta. No entanto, continuo a sonhar com o dia em que seremos livres e podermos viver como uma família na nossa própria casa…
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6. Uma vida de escravo, por João Ramada Ainda me lembro como se fosse ontem, os tempos em que era feliz, quando podia brincar, rir e saltar, sem muito com que me preocupar. Mas hoje tudo mudou… Chamo-me Eci, tenho 20 anos e hoje sou um escravo a trabalhar para os senhores, os quais não querem saber da minha saúde ou do que penso mas apenas do que produzo. Mas a minha vida nem sempre foi assim: antes de ser capturado, vivia numa pequena aldeia em África, muito calma e tranquila, com a minha mãe, com o meu pai e com o meu irmão. Tínhamos uma vida muito boa. Eu e o meu pai íamos caçar todas as manhãs e o meu irmão ajudava a minha mãe em casa enquanto nós estávamos fora. Eu adorava essas caçadas porque o meu pai ensinavame como tratar cada animal e também como o caçar. Após os almoços, eu e o meu irmão íamos brincar junto de um lago perto de casa, mas havia dias em que íamos brincar com os outros meninos da aldeia, e fosse que brincadeira fosse eu adorava. Um dia eu e o meu pai estávamos a regressar da caçada quando de repente vimos muitas das casas da aldeia a arderem, eu não sabia o que se estava a passar, nunca tinha visto nada assim. O meu pai decidiu ir ver o que se passava mas nunca mais voltou. Então, ao fim de esperar algum tempo, fui para casa como habitual. Assim que entrei em casa chamei pela minha mãe mas já era tarde, a minha família já tinha sido levada por uns homens negros, e logo a seguir a ter chamado, 2 homens armados apanharam-me e levaram-me para o centro da aldeia, onde estavam todas as pessoas reunidas, mas ninguém da minha família. Após ser capturado levaram-me até um porto onde fiquei uma semana, todos dias saíam e entravam barcos cheios de pessoas, que agora sei que eram escravos dos senhores, até que foi a minha vez. Levaram-me para o porão de um barco, o qual era escuro e húmido, mal sabia eu que ficaria 40 dias até voltar a respirar ar puro e a por os pés no solo. No porão era outro mundo… Estava atolado de gente… Éramos mal tratados pelos traficantes, para além de não termos água, restando apenas poucos restos de comida. Muitas vezes pessoas adoeciam e morriam… Nessas alturas, os traficantes, sem dó nem piedade, atiravam os corpos ao mar para não infetarem o resto da embarcação. Eram poucos os que conseguiam chegar a terra são e salvos, sem doenças ou marcas da viagem, mas este pecado estava longe de acabar. Quem conseguia sobreviver à viagem, era posto a trabalhar em minas ou em engenhos de açúcar, e em troca desse trabalho os escravos recebiam restos de comida. Eu fui posto a trabalhar num engenho de açúcar há mais de seis anos, e nas minhas costas carrego as marcas de chicoteadas que me deram. Como eu, existem milhares de escravos que tudo perderam pela ganância dos senhores, e quem me dera voltar aos tempos em que não tinha muito com que me preocupar…
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7. A vida de Luena, por Mariana Franganito Cena 1: Apresentação de Luena e de sua família Luena é uma rapariga incrível, pois não se deixa abater por nada nem por ninguém, aprende a conformar-se com o que tem e não desiste por nada. Estava a anoitecer e a família de Luena preparava-se para a última refeição do dia. Mãe: (Gritando para os irmãos) Luena, Xavier a refeição está pronta! Venham!. A família utilizava como mesa uma espécie de toalha feita da pele de um animal que o pai teria caçado há uns anos. À mesa encontravam-se Luena, Xavier e os pais que tinham ao seu dispor frutas típicas da região, algum peixe que o pai pescara no lago e papas de milho-zaburro. Luena: Xavier, podes parar de me chatear por favor? Xavier: (Com um sorrisinho maroto) Desculpa mana, só queria que me prestasses um pouco de atenção. Mãe: Vá lá meninos, é hora de refeição, não é hora de discussão! Amanhã é um dia importante, não guerreiem. Pai: A vossa mãe tem razão. Não discutam, pois amanhã vai ser um dia memorável. Luena: Tens razão pai. Prometo que não me irei comportar mais como uma bebé. A família preparava-se então para dormir. Pois amanhã seria o dia em que a pequena Luena cumpriria os seus 13 anos. Cena 2: Um dia especial para um terrível acontecimento 21 de agosto de 1516 Luena: (gritando para o pai, mãe e irmão que ainda dormiam) Mãe! Pai! Xavier! Acordem hoje é o meu dia! Mãe: (acordando com um ar feliz e sereno) Muitos parabéns filha! Hoje é o teu dia e mereces que corra tudo bem! Quando toda a família havia acordado, começaram-se então a preparar para a festa de aniversário que tradicionalmente realizavam sempre que um dos membros fazia anos. A festa consistia numa espécie de ritual em que faziam uma dança em redor do aniversariante para comemorar a sua existência, depois, cada um ofereceria um regalo como símbolo do seu afeto. Ao entardecer todos estavam reunidos em casa (que era simples, baixa e feita de bambu para ser arejada e poderem aguentar melhor o calor) para realizarem a cerimónia. Luena: (já no fim da cerimónia) Muito obrigada a todos, vocês são a melhor família que uma rapariga pode ter! E Xavier, peço imensa desculpa por não te ter andado a prestar muita atenção, mas é que tenho medo que o pior esteja para chegar. Xavier: Não faz mal mana! Na verdade eu também tenho algum medo… (suspirando)
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Mãe: Vá lá meninos. Animem-se não fiquem a pensar no pior. Sejam positivos! Pai: Lamento querida, mas os brancos devem estar por aí a chegar e quem sabe se poderemos ser nós mais umas das suas vítimas. A família deixava para trás o aniversário de Luena e centrava-se agora na vinda daquilo que poderia ser o fim. Cena 3: Os traficantes capturam Luena e a sua família Aí começava mais um dia que já tinha uma surpresa reservada para Luena e a sua família. Estavam a dormir serenamente quando, em vez de serem acordados pelo barulho do cantar dos pássaros, foram despertados pelo som das armas e dos passos violentos dos seus grandes inimigos, os brancos, os que eram capazes de utilizar como objetos os que são da sua raça, a raça humana. Pai: Deixem-nos em paz, seus malvados! Seus inúteis, como sois capazes de arruinar a vida de almas pacíficas como nós? Inúteis! Larguem-nos! A família de Luena foi levada, amarrados, como mercadoria vulgar, desprezados e sem condições. Porque havia de lhes ter acontecido tal coisa? O que tinham feito eles para merecer aquele destino? Cena 4: A maior viagem das suas vidas. Fazem já 2 meses que a família de Luena está em alto mar, a viajar nas piores condições, nus, a respirar o pior dos ares, com pouca água e alimento e completamente exaustos e fracos. Xavier, o irmão de Luena, por ser o mais novo não aguentara tal sacrifício e por isso teria morrido fazia já algumas semanas, mas o resto da família tentava aguentar de corpo e alma o pior sofrimento que o ser humano alguma vez ultrapassara. Cena 5: A Chegada ao Brasil. Depois da maior viagem das suas vidas, nas piores condições e com várias paragens, Luena e os pais chegaram finalmente ao seu destino (Brasil), iriam agora trabalhar num dos engenhos de açúcar da zona. Ao princípio foi muito difícil acostumarem-se a trabalhar de sol a sol, mal alimentados e com pouca água para resistirem ao calor e trabalho árduo, mas o lado bom de tudo, é que, ao contrário de muitas famílias, a de Luena havia tido a sorte de não ter sido separada, pois assim, tinham-se uns aos outros para aguentarem as péssimas condições de vida. Cena 6: O Vigésimo Aniversário da Grande Luena. Passados sete anos e dois meses, já só restavam dois membros da família, Luena e o seu pai. A pobre mãe teria morrido há dois anos, pois adoecera gravemente e não aguentara. O aniversário de Luena aproximara-se e o pai queria celebrá-lo como nos velhos tempos, o problema seria fazê-lo às escondidas dos capatazes, e só depois do árduo dia de trabalho, depois do pôr-do-sol.
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Cena 7: O aniversário de Luena. Pai: Bom dia, Filha, parabéns! Disse o pai para Luena, sorrindo quando a encontrou no campo. Luena: Bom dia, pai. Quando anoitecera, Luena e o pai encontraram-se para comemorar. Luena: Nem acredito que já se passaram sete anos… suspirando. Pai: Pois é filha. Lembraste do teu décimo terceiro aniversário? Luena: Claro que sim, pai. Como é que me poderia esquecer? Se foi o último aniversário que passei com o Xavier. Pai: Lembras-te do que te chamávamos nessa altura? Eras a pequena Luena, mas agora és a grande Luena, pois cresceste e conseguiste passar por o que muitos não conseguem. Minha grande Luena. (Suspirando de alegria).
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8. Em tempos fui uma escrava, por Beatriz Brásio “Mas tudo acaba em algum momento, e esse momento tinha chegado.” “Lembro-me de tudo como se tivesse sido ontem.” “Para ali começar o nosso pior pesadelo.” “Deparei comigo numa completa escuridão.” “Mas no meu caso pode dizer-se que as aparências iludem.” “Apareceu o meu cavaleiro para me salvar.” “Partimos então para um novo caminho da minha vida.” “Eu era diferente de todos os que me rodeavam.” “Mas com um final feliz!” “Pusemos fim à escravatura!”
A todos os que lerem o meu livro, que recordem a minha vitória como algo que fez voltar a sorrir aqueles que sofreram o que eu sofri, a quem, com muita emoção e de coração eu dedico este livro! Bella de Vaz Pombal
Deveria ser uma mulher feliz! Sou amada por tudo e por todos, sou uma mulher poderosa, pelo que muitos gostavam de ser como eu, sou mãe de uma pequena Constança e sou amada pelo amor da minha vida, David. Mas, no meu caso, pode dizer-se que as aparências iludem… Em tempos fui aquela que se via a ser levada acorrentada, fui aquela que era vendida e maltratada por quem mais a desejava, fui aquela que graças à força e à vontade de poder ser livre, serviu e trabalhou para as mais horrendas pessoas que alguma vez puderam aqui morar, fui aquela a quem se chamava lixo… Em tempos fui uma escrava. Sei que passaram quatros anos desde que fui salva daquele inferno, mas a raiva, a angústia, o desespero, a tristeza e a dor nunca mais desapareceram da minha memória, e ainda hoje me oiço gritar e a chorar pela morte do meu pai e meu irmão, pois nem todos aguentavam aquele sofrimento. Lembro-me de tudo como se tivesse sido ontem, das tarefas do dia-a-dia ao mais pequenino pormenor. Eu era diferente de todos os que me rodeavam. Vivia em África, mais concretamente em Angola, com a minha mãe – Margarida, pois ela era tão bonita como uma flor -, o meu pai Amadeu, o meu irmão José – que na aldeia chamavam de “Zezito Trapalhão”, porque sejamos honestos, ele era mesmo trapalhão! Nas casas ao lado morava o resto da minha doce família, e os meus amigos, que me acompanhavam e apoiavam sempre. Mas eu era especial, não era negra, era de cor malandra, como dizia a minha mãe, uma mistura entre o branco mais puro que se poderia ver e o negro, tão negro, tão negro, que sobressaia no negro do carvão. A minha mãe comentava que eu saía à minha avó, até no nome. Nunca a conheci, mas ela contava que o meu avô alistou-se no exército do rei, para poder tê-la como sua mulher, pois ela era branca e de classe alta e ele era negro de baixa classe. O meu avô foi para Portugal, com a ajuda de um grande amigo seu, e como
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não conseguiu a bênção, do que seria o seu futuro sogro (chefe do exército e homem da alta nobreza), ele e a minha avó Bella, porque realmente a sua beleza era incomparável, fugiram e foram viver para Marrocos, tendo-se mais tarde mudado para Angola, onde viriam a nascer a minha mãe e os meus tios. A aldeia onde morei era sinónimo de alegria e de fraternidade. Toda a gente se conhecia e ajudavam-se uns aos outros, conforme podiam. Apesar de sermos pobres éramos muito felizes. Todos os dias, eu e a minha mãe íamos de manhã, antes que o Sol pudesse espreitar, ao mar lavar a roupa, as tripas e outras partes de carne que me davam náuseas. Já os homens da casa iam para o campo trabalhar. Vejam só, apenas tinha 13 anos, mas já era uma mulher, bem, uma pequena mulher! Apesar de tudo não me importava, pois ia com as minhas amigas e suas mães, amigas da minha mãe, o que tornava tudo muito engraçado e mais rápido de fazer. Mas tudo acaba em algum momento, e esse momento tinha chegado. Num desses dias, começámos a ver barcos enormes a virem em direção a nós. Então, pegamos nos nossos pertences e fomos a correr para a aldeia avisar os outros, pois coisa boa dali não vinha. E assim foi… Nunca me esquecerei daquele terrível dia: os homens saíram dos barcos, de armas em punho, e começaram a amarrar-nos com correntes e coleiras de cobre, como se fôssemos animais. Foi horrível… Os homens que nos levavam eram portugueses, falavam a mesma língua que eu. Seres humanos foram fortemente espancados por outos seres humanos, nem mais nem menos… Que crueldade! E a troco de quê? Levaram-nos até um barco, onde já estavam outras pessoas que tinham capturado, e puseram-nos costas com costas amarrados…E ali fiquei eu, até que acabei por adormecer. Parece que tinham passado anos desde que adormeci. Deparei comigo, numa completa escuridão, e quando realmente me apercebi onde estava, ouvi a pessoa que estava de costas comigo a chorar. Comecei a falar com ela, e a dizer-lhe para não chorar, pois os homens maus ainda lhe poderiam fazer mais mal. Passámos a noite a conversar, para nos conhecermos melhor, o que me ajudou a abstrair do resto. Passaram semanas, desde de que fomos capturados, e as condições em que viajávamos eram insuportáveis. Os rapazes eram obrigados a trabalhar no convés, recebendo como recompensa um pão com um copo de água, aliás, o mesmo que davam aos outros. E assim se passaram meses. As crianças, tal como eu, de vez em quando tinham o direito de brincarem um pouco uns com os outros. Eu brincava mais com a minha nova amiga, María de Lurdes de la Plata, que tal como eu era descendente da nobreza, mas espanhola. Chegou o dia… Paramos no Brasil, onde começou o nosso pior pesadelo. Organizaram-nos, no porão, por idade e género, depois juntaram-nos às nossas famílias, e acabaram por nos amarrar e levar para um sítio estranho. Colocaram-nos a dormir em grandes salas… Adormeci na esperança de que esta grande viagem pudesse ser uma nova etapa da minha vida, para melhor. No dia seguinte acordaram-nos antes do nascer do Sol onde, ao som do chicote, nos explicaram qual era nossa função naquele estranho lugar. Foi então que a minha esperança se desmoronou… Percebi que fomos para aquele local para trabalhar a troco de nada, apenas maustratos!
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Transportaram-nos até ao engenho, onde se produzia o açúcar, o qual seria depois enviado para Portugal. Eu estava completamente exausta e esfomeada… Não nos tinham dado nada para comer… Era impossível trabalhar assim! Haviam passado mais de quatro horas, ao Sol, sem comer e sem beber um golo de água, e sempre a trabalhar no duro, sem poder olhar para cima, pois seriamos castigados com chicotadas. Seguiu-se um rápido almoço, onde nos deram um copo de água e uma fruta muito estranha, que tinha um horrendo sabor nos dava vómitos. Voltamos ao engenho para acabar o trabalho, que parecia não ter fim. À tardinha, comecei a sentir-me zonza e a ver mal, pensei que não aguentaria mais. Fui rapidamente avisar a minha mãe, que me levou para um local mais escondido, para não verem que eu não estava a trabalhar. Foi então que apareceu um dos homens do chicote. A minha mãe suplicou-lhe que me ajudasse, e, estranhamente, ele sussurrou que me ajudaria. Levou-me para um anexo e deu-me um pouco de açúcar, que me ajudou a recuperar as forças. Demonstrou a sua generosidade ao dizer-me que se houvesse mais alguém a fraquejar, para o avisar, mas só a ele discretamente. Era um bom homem… Anoiteceu e autorizaram-nos a ir a um rio, que ali havia, para nos lavarmos e nos refrescarmos. Depois voltamos para a sala onde dormíamos, na esperança de que o dia de amanhã iria ser melhor. E assim se passaram três anos, em que as opressões iam aumentando. O trabalho árduo acabara por matar muitos dos nossos entes queridos. O meu pai morreu de exaustão e maustratos; o meu irmão apanhou uma doença mortal; só restei eu, a minha mãe e a minha melhor amiga, María. Até que chegou o dia, em que eu fui salva daquele lugar. Como outro dia qualquer, acordei, mas sentia-me feliz, porque era o meu aniversário. A minha mãe abraçou-me com tanta força que me ia esmagando. Disse-me que fazer dezasseis anos dava muita sorte (quando a minha mãe fez dezasseis anos foi pedida em casamento pelo meu pai). Mas tudo era diferente… Nesse dia fiquei a saber que a família real vinha visitar o Brasil, e ficaria alojada na fazenda onde trabalhávamos, a qual era muito luxuosa. Distribuíram-nos tarefas diversificadas para receber o Rei com um grande banquete, preparado com produtos do Brasil. Infelizmente, eu não assisti à chegada da realeza, pois estava junto ao rio a colher frutos muito saborosos e aromáticos. Distraída com a tarefa, que até era agradável, quase caí ao rio. Foi nesse momento que apareceu o meu cavaleiro que me salvou de um grande mergulho. Eu fiquei completamente engasgada e não dizia palavra. Ele segurou-me na mão e perguntoume se eu estava bem, ao que eu acenei que sim. Então começamos a falar sobre a minha vida e a dele. Fiquei a saber que se chamava David, era sobrinho do Rei e seria o seu sucessor. A conversa estava tão agradável que não demos conta do tempo passar. Eu disse-lhe que tinha de regressar rapidamente para preparar o jantar, ao que ele respondeu, a rir, que esta noite seria a sua convidada de honra para o jantar, e como tal não teria de o preparar. Eu fiquei meio atordoada e disse-lhe que isso seria impossível, pois eu era uma escrava. Ele pegou-me na mão e disse para não me preocupar. Então seguimos para a fazenda. Os donos da casa e o Rei ficaram muito espantados, mas lá autorizaram, contrariados – penso eu, que me sentasse à sua mesa com eles e com os seus ilustres convidados.
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Depois do jantar, David fez um comunicado ao qual o rei reagiu muito mal. Mas, com persuasão o seu sobrinho e futuro sucessor, lá o conseguiu convencer de que era difícil encontrar uma mulher com as minhas qualidades e a minha beleza, mesmo sendo eu uma escrava. E foi assim que fui salva daquela horrenda escravidão. Com o passar do tempo, cada vez gostávamos mais um do outro. Fomos muito felizes enquanto estivemos na fazenda, mas chegou a hora de partir. Então, pedi ao David para pedir ao Rei que levasse comigo a minha mãe e a María. O Rei, apesar de contrariado, acabou por aceitar. O seu sobrinho era para ele um filho, que nunca teve, e por isso fazia todas as suas vontades. Partimos então para um novo caminho da minha vida. Passados quatro anos, cá estou eu, casada com David, com uma filha maravilhosa chamada Constança, e contente, pois eu e o meu marido pusemos fim à escravatura. Mas esta historia teve outros finais felizes: o Rei (que entretanto já não é Rei!) acabou por se apaixonar pela minha mãe e casaram. María, a minha melhor amiga, casou com um primo do meu marido, e está muito feliz à espera do seu primeiro filho. Afinal a minha mãe tinha razão, os meus dezasseis anos trouxeram-me muita sorte!...
SINOPSE A história de Bella, a própria autora deste livro, fala de uma rapariga escravizada aos 13 anos, que passou 3 anos aprisionada num Inferno, onde ser livre era o desejo comum dos reclusos do Diabo (como ela chamava aos outros escravos). Quando fez 16 anos, foi salva pelo seu Anjo da Guarda, David, o sobrinho do Rei (que mais tarde o sucedeu), que se apaixonou pela sua beleza e humildade. Bella tem agora 20 anos, é casada com o Rei David, do qual tem uma filha maravilhosa. Tem uma vida gratificante, mas os episódios marcantes que viveu, não a deixa ser plenamente feliz, por todo o sofrimento que tantos passaram, apesar de ter conseguido por fim à escravatura. Nesta obra irá partilhar os terríveis momentos por que passou. Uma história emocional, que não deve deixar de ler, de mulher que nunca deixou de sonhar!
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9. O meu corpo tornou-se num cemitério do tempo, por Beatriz Martins (Terça-feira, 07 de Junho de 1576.) Chamo-me Beatriz Martins e já tenho quase 20 anos. Sou escrava! A prova de que ser escravo pode calhar a qualquer um, sou eu, pois hoje sou uma mulher escrava que aos 6 anos era livre e feliz com os meus pais e irmãos. Trabalhávamos no campo a colher o que cultivávamos sem desejar a maldade a ninguém. Até que, ao fazer os meus 7 anos tive de abandonar a minha família porque eu e os meus 3 irmãos fomos alvo de escravatura infantil. Fomos capturados por capitães de vários navios que tentavam transportar o maior número possível de pessoas e gastar connosco o mínimo durante a longa viagem pelo oceano, de África, da minha aldeia, até ao Brasil. Os meses da viagem foram os piores da minha vida! Fui aferrolhada com grossas correntes que deixavam marcas no corpo; faltava-me o ar no meio de tanta transpiração e calor, pois num pequeno espaço amontoado de pessoas apenas existiam pequenos buracos, onde nem a luz do sol conseguia infiltrar. Ali faltava tudo: água, comida, e o mais importante, os meus pais… perdi a ideia da vida, enquanto estive completamente fechada no porão. Foram meses de sofrimento a passar fome, sede e caso não fizéssemos o que nos era pedido éramos chicoteados! Dias e noites a sofrer e a pensar quanto tempo faltaria para sair daquele buraco negro. Tinham prazer em nos bater, chicotear e faziam-nos marcas no corpo com tanta maldade! Tínhamos ferros e correntes a vincar as nossas peles, criando marcas que ficariam para toda a vida gravadas e que me recordariam o sofrimento. Sorria para dar rosto à tristeza e sentiame como que a aceitar pêsames por um corpo, o meu, que ainda não faleceu. Naqueles tristes meses inventava uma outra vida. Sentia-me uma triste e solitária criança a quem lhe foi retirado os pais e que depois de capturada foi separada dos irmãos. Hoje não tenho memórias exatas, mas não me faltam lembranças que tenho espalhadas em mim, como a cicatriz no olho fruto da escravatura… Depois de meses enclausurada num porão, agora trabalho num engenho de açúcar brasileiro a produzir açúcar, todos os dias, do nascer ao pôr do sol. É um trabalho duro para uma mulher, estar dobrada e a cortar as fortes e resistentes canas de açúcar que depois de amontoadas e amarradas são transportadas pela força do homem ou de animais. No final do dia vou para o engenho extrair e cristalizar o açúcar e no dia seguinte volto a repetir o mesmo processo. O meu corpo tornou-se num cemitério de tempo e a saudade não tem pressa em mim, pois o passado pesa na minha vida como a minha infância que cedo morreu. Fui obrigada a abandonar os meus antepassados. Agora que cresci e tornei-me numa mulher escrava que é desrespeitada, maltratada, quero matar o passado antes que este me mate a mim... a vida é simples, mas ninguém a entende!
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10. Sonhar sem nenhum dos sonhos se tornar realidade, por Érica Candeias Estava apenas a começar mais um dia, igual a todos os outros. Levantei-me e ia dizer bom dia aos meus pais, até que reparei que se estava a passar algo. Fui até lá fora e vi os meus pais a serem amarrados e maltratados por um grupo de homens. Eles eram diferentes de mim, eram brancos, e via se pela feição que eles não eram boas pessoas. De repente, um dos homens reparou que eu estava ali, veio na minha direção, amarrou os meus pés e as minhas mãos e prendeu-me junto aos meus pais. Obrigaram-nos a entrar no barco deles. O barco era extremamente grande e lá dentro estava o resto do grupo. Depois de termos entrado, levaram o meu pai e depois levaram a minha mãe. Nesse momento só me ocorreu uma coisa: fugir, mas sabia que amarrada não ia muito longe e eles viriam atrás de mim. Depois levaram-me a mim. Tiraram-me o pouco de roupas que tinha vestida e colocaram-me dentro de uma das cobertas do barco, junto ao resto das outras crianças. Essas crianças estavam amarradas, nuas, sujas e famintas. Dentro da coberta estava muito calor e o cheiro era insuportável. Passado alguns dias chegámos a Angola, tiram-nos de dentro do barco e puseram-nos no meio da rua como peixes à venda. De um momento para o outro começaram a chegar pessoas. Essas pessoas vinham bem vestidas, via-se que pela forma de falar que eram ricas e que tiveram muita educação ao longo de suas vidas, educação de saber ler e escrever, pois eles não eram nada educados. De repente, ouvi um deles a falar com um dos homens que estava no barco, falavam sobre vender alguma coisa, mas percebi logo que não era uma coisa, mas sim um de nós. Com essa conversa percebi logo que os homens nos tinham raptado para sermos escravos. Regressámos ao barco, passaram-se mais alguns dias sem nos alimentarmos bem e sem higiene. Chegámos a Pernambuco e repetiu-se aquele episódio horrível outra vez. Regressámos novamente ao barco e passaram-se outra vez mais alguns dias, mas parecia que de uma terra para a outra estávamos a demorar cada vez mais dias. Chegámos a Baía e voltou-se a repetir tudo de novo… Até que chegámos ao Rio de Janeiro. Nós ali sentados/jogados e as pessoas a olhar e observar-nos. Quando me virei para perguntar uma coisa a uma das crianças que lá estava, que se tinha tornado minha amiga, reparei que estava a vir um homem na minha direção, ele era alto, belo, moreno e branco. Ele ficou a olhar fixamente para mim, depois pediu-me para abrir a boca, achei estranho, mas fiz o que ele me mandou. Depois mandou-me movimentar-me para que ele percebesse se eu tinha algum problema a andar, quando olhei para esse homem, vi-o a entregar um saco que teria por volta de uns quarenta ducados e a dizer que eu iria trabalhar para o engenho de açúcar. Ao longo destes anos todos percebi que para as pessoas de raça branca as pessoas de raça preta não valem nada e só servem para servir os outros. Trabalho num engenho de açúcar desde os 13 anos, e, cada dia que passa sinto-me mais cansada, nunca poderei descansar… Não sei se os meus pais ainda estão vivos ou se já morreram, pois desde que fui vendida que não sei nada sobre eles.
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Aqui sou muito maltratada, quase não como e tenho de andar para trás e para a frente com canas-de-açúcar em cima das costas, apanho-as e depois de as transportar levo-as para ao pé das outras que lá estão amontoadas para serem transformadas em açúcar. Às vezes apetece-me sentarme ou deitar-me no chão, mas sei que o feitor iria reparar, então eu iria ser castigada e eu não quero que isso me acontece, pois já passei pelo castigo e sei o quão é horrível. E não há mais nada para contar, pois a minha vida resume-se simplesmente a trabalhar, ser maltratada e sonhar sem nenhum dos sonhos se tornar realidade.
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11. Fui completamente livre, por Inês Alexandre Nascido em África, filho de pais negros, tinha como qualquer criança uma vida feliz e despreocupada, quando fui raptado, e enviado como um animal, acorrentado no porão de um barco, para o Brasil, onde trabalho na transformação da cana-de-açúcar. Eu e outros fomos raptados por homens brancos que, achando-se superiores e desprovidos de quaisquer sentimentos, apenas pensavam no poder e no dinheiro que iriam fazer com a nossa venda, porque quantos mais negros tivessem, maior era o seu lucro. Uma vez raptados fomos metidos no porão de um navio, empilhados e acorrentados para não nos revoltarmos. As condições eram péssimas, o ar pouco e irrespirável, infestado pelo cheiro da transpiração, a água era muito pouca e as rações ainda menos. Eram condições desumanas. A viagem até ao Brasil durou cerca 50 dias. Uma vez desembarcados fomos enfiados numa espécie de jaula onde fomos examinados e vendidos aos nossos novos donos. A partir daqui começou o meu trabalho de escravo, o qual irá durar a vida inteira. Hoje tenho 20 anos e trabalho num engenho de transformação de cana-de-açúcar, juntamente com outros também raptados em criança, sem quaisquer direitos ou regalias, podendo ser humilhado, maltratado e mesmo castigado com um chicote até correr sangue ou preso a um tronco, tudo isto sem me poder queixar uma vez que sou propriedade de alguém. Trabalho o dia inteiro, com sol ou chuva, sem alimentação digna, recordando muitas vezes quando era criança e tinha uma vida feliz em que era completamente livre.
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12. Antes de cair num sono profundo conhecido por morte, por João Pinto Trabalho neste engenho de açúcar há mais ou menos 8 anos, ainda me lembro de quando era livre. Era feliz…. Tinha 15 anos e vivia a minha vida normalmente como qualquer outra criança da minha tribo Mauri. Vivíamos junto ao mato e costumávamos passar o tempo a brincar com os animais e a caçar. Até que um dia, estranhos de cor de pele, chegaram à nossa civilização. Levavam nas suas mãos objetos estranhos… Não tardou até que eles nos porem correntes e coleiras à volta do pescoço. Parecíamos gado, animais selvagens… A minha mãe não conseguiu resistir depois de levar vários golpes na cabeça pois não queria sair da aldeia! Morreu lá e eles não se importaram com os meus gritos, o meu choro… Eu e o meu pai fomos levados para barcos diferentes. Quando entrei no barco fui posto com os meus iguais, estávamos completamente amontoados uns em cima dos outros. Passei 48 dias no porão do barco e assisti à morte de muitas pessoas. O cheiro dos corpos em decomposição misturado com o cheiro de dejetos e suor e chichi era insuportável. Estava sempre cheio de fome e de sede! Os traficantes davam-me chicotadas por tentar descansar (dormir), as minhas costas estavam sempre doridas e marcadas pelo chicote. As saudades invadiam o meu coração por não saber o que tinha acontecido ao meu pai. Apercebo-me que estávamos a chegar pois ouvi um homem a dizer “terra à vista”. Quando cheguei fui despejado como um animal escorraçado e vendido com um objeto. Os compradores passavam, mexiam-me e tocavam-me sem terem vergonha. Fui comprado e levado para o engenho de açúcar. De manhã trabalhávamos arduamente sem comer e beber água e à noite metiam-nos os nossos pés em tábuas de madeira para não fugirmos. Mais tarde, depois de alguns anos, fiquei a saber que o meu pai foi morto pois ao tentar sair do barco tentou fugir. Agora, neste momento, lembro-me da minha tribo e família, antes de cair num sono profundo conhecido por morte.
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13. A história de Malum, por João Ramos Eu antes de ser capturado vivia numa aldeia pequena com a minha mãe e o meu pai. Éramos felizes, até um dia em que estava a brincar com os meus amigos e deram o sinal que vinham dois barcos negreiros enormes e de lá saíram vários homens armados com armaduras e com correntes. Esses homens agarraram em várias pessoas e amarraram-nas com correntes. Eu tentei fugir
mas não consegui, eles agarraram-me com força, bateram-me e levaram-me para o barco negreiro. Lá estava muita gente, mulheres, outras crianças e homens. Quando nos levaram para os barcos separaram-nos, mulheres para um lado e homens e crianças para o outro. Levaram as crianças para um local onde armazenavam a comida, como não eram fortes para combater os traficantes, estes não se preocupavam muito com a sua vigilância. Os homens iam fechados nos porões com pouca comida e água e sem luz. As condições eram péssimas, cheirava muito mal, e ouviam-se os gritos das pessoas fechadas no porão com fome e com sede. Passados vários dias chegámos a uma terra. Quando abriram o porão havia poucas pessoas vivas e muitas mortas e cheirava mal. Os traficantes levaram-nos para um sítio para onde estavam várias pessoas a trabalhar e eram muito maltratadas. E depois voltaram a separar-nos: os homens foram para trabalhos mais pesados e forçados e as crianças e as mulheres para a produção de açúcar. Quando cheguei à plantação de açúcar um rapaz da minha idade e ele disse-me que se não fizesse o que eles mandavam levaria chicotadas e seria amarrado. Nós vivíamos em muito más condições, sem comida e praticamente sem água, dormíamos no chão, ao frio, e muitas vezes a chover. Acordavam-nos muito cedo para começar a trabalhar. Conforme ia crescendo ia fazendo trabalhos ainda piores. E esta foi a minha vida até morrer sempre a trabalhar e a ser maltratado!
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14. Espero adoecer e morrer para ser livre, por Raquel Reis Chamo-me Muxima, venho de uma aldeia de África, atualmente tenho vinte anos e neste momento trabalho num engenho de açúcar no Brasil. Antes de ser capturada vivia muito feliz numa aldeia em África com a minha família, os meus pais e os meus quinze irmãos. Todas as manhãs ia com os meus irmãos buscar água ao rio, depois íamos para o campo semear, o meu pai ia para a caça, e a minha mãe ficava em casa a fazer a comida. Ainda me lembro do cheiro da comida dela. Lembro-me de como era feliz nessa altura. No dia em que fiz treze anos os brancos foram à minha aldeia e mataram alguns dos meus irmãos e eu fui capturada. Não percebi na altura o que nós tínhamos feito. Lembro-me de ser acorrentada com outras pessoas da minha aldeia, bateram-me e não nos deram comida e/ou água até chegarmos a um barco enorme. Lá colocaram-nos no porão sem água, sem luz, sem condições mínimas. A viagem durou muito tempo e nós não tínhamos sequer onde fazer as necessidades. O porão cheirava mal e todos estavam cheios de fome. Morreram uns quantos e deixaram lá os corpos, a apodrecer... Chegámos a um país cheio de árvores, num dia de muito calor. Fomos colocados no mercado, como animais, e fomos comprados por um homem rico, e a minha mãe por um outro que a levou de mim. Nunca mais a vi. Hoje tenho vinte anos e continuo a trabalhar aqui, neste engenho de açúcar brasileiro. As condições de trabalho são miseráveis. Já me amarraram a um tronco e bateram-me um dia inteiro por ter tentado fugir. Só comemos uma vez por dia e é um pedaço de pão duro com água e só se trabalharmos o que eles querem. Espero adoecer e morrer para ser livre.
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15. Uma vida de escravo, por Tiago Dias Sou o Makelélé E África é a minha terra Vivo com a minha tribo Em paz, sem guerra. Estávamos bem a viver livres E no horizonte o Sol a brilhar Quando apareceu um grande barco O que foi de espantar. Quando atacaram Vieram a correr Com chicotes nas mãos Para nos abater. Comecei a correr Sempre sem parar Mas como toda a gente Acabei por me cansar. Acabei capturado Juntamente com a minha tribo Mandaram-nos para o porão Onde sentimos o verdadeiro perigo. O alimento escasseava E também a bebida Sendo tão jovem Mal me aguentei com vida. Aos treze já eu trabalhava Dias e noites sem parar Enquanto alguns me chicoteavam Ansiando por descansar.
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Durante cinco anos Trabalhei num engenho estranho Que tornava cana em açúcar E de tão sujo que estava Só precisava de um banho. Fui comprado aos dezoito Por um nobre cavaleiro Que por mais dinheiro que tenha Continua a ser garganeiro. Já se passaram dois anos inteiros Agora tenho vinte anos Vivo num estábulo frio e imundo E visto trapos e panos. Até um dia A sorte me vir bater à porta Ao salvar o meu senhor A minha vida muda de rota. Agora sou um homem livre Livre para escolher Posso continuar a ser pobre Mas o que importa é viver.
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16. Memórias de uma vida, por Carolina Coimbra Mais um dia de trabalho nos engenhos de açúcar brasileiros. Fui capturada e se tentar fugir e for apanhada possivelmente os supervisores matam-me, por isso nada melhor para fazer do que ir trabalhando e lembrando-me de como vim aqui parar. Lembro-me como se fosse ontem… tinha 13 anos e estava a brincar com o Kiko e com a Chavi, (que pelo que sei teve mais sorte do que eu, pois andam rumores de que um jovem nobre rico se apaixonou por ela e levou-a), quando de repente apareceram 4 homens que nos levaram e nos amarraram. Quando dei por mim estava eu, o Kiko e a Chavi a chamarmos pelos nossos pais em busca de auxílio, mas não valeu de nada, naquele dia nós afastamo-nos muito da tribo por isso ninguém nos ouvia. Os nossos “raptores” encaminharam-nos até um navio que era comandado por brancos que tinham vários negros(as) como eu aprisionados(as). Eu, o Kiko e a Chavi fomos amontoados num das cobertas do navio. A viagem foi longa e muitos dos que estavam aprisionados no navio não resistiram. Depois puseram-me a trabalhar nos engenhos de açúcar brasileiros, onde atualmente ainda trabalho. Aqui não sou propriamente bem tratada, pois só tenho direito a uma refeição por dia, mas é melhor que nada. Às vezes penso como teria sido se não tivesse sido levada para ir trabalhar nos engenhos de açúcar brasileiros, mas agora é tarde demais, por isso o melhor que tenho a fazer é ter a cabeça apenas a pensar no trabalho. Adeus memórias da minha vida…
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17. Esta vida, por Carolina do Ó Chamo-me Carolina, tenho neste momento 13 anos de idade e hoje faz 2 anos que me trouxeram do paraíso para aqui. Eu vivia em África, onde tudo era perfeito (perfeito não, mas comparando com onde estou agora…), aqui no Brasil, é horrível, agora sou escrava. A viagem de África até ao Brasil foi um dos piores momentos da minha vida, trataram-me mal, em condições extremas. Um dia, eu estava a brincar com os meus amigos quando um grupo de homens me apanha, a mim e aos meus colegas, levando-nos para um barco e amarrando-nos no porão de um navio e quase não nos deram comida a viagem inteira e quando davam era só aos que estavam bem de saúde.
Quando chegámos ao Brasil tiraram-nos do barco à força e mandaram-nos trabalhar, eu recusei, logo eles ameaçaram atirar-me à fogueira. Comecei a trabalhar cheia de medo, e desde esse dia que me limito a obedecer às ordens que me dão, pois já vi várias pessoas a serem mortas à minha frente, e se não obedecer acontece-me o mesmo. Mas ainda não perdi as esperanças, para a próxima semana poderei ser comprada por alguém com piedade de mim, vou para a exposição para venda pois neste local já acabei o meu trabalho.
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18. Estou cansada, por Érica Anica Estou cansada! Trabalhei das 5h da manhã até às 19h. O sol estava escaldante e o açúcar abundante. Tenho saudades do tempo em que vivia na minha terra natal. Há sete anos era uma negra pobre mas feliz. Vivia no mato, dormia na cubata com os meus pais. Corria pelos campos e subia às árvores.
Numa noite escura ouvi grandes corridas e, de repente, dois homens musculados, loucos, entraram na minha cubata taparam a minha boca e arrastaram-me. Vi o meu pai aos gritos. Comigo estavam jovens da minha idade, calados e assustados. Levaram-me para um sítio escuro, lá passámos fome, sede e levámos muitas chicotadas. Passados dois dias fomos arrastados, acorrentados, mal conseguíamos andar. Entrámos num navio e jogaram-nos para um porão. De vez em quando jogavam pedaços de pão que tínhamos que dividir por todos. Por fim chegámos a uma praia linda, arrastaram-nos com as correntes nas pernas para um grande recinto. No dia seguinte levaram-nos para uma fazenda com grandes canaviais, onde começámos a trabalhar duramente na cana-de-açúcar.
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19. Chamo-me Urbi, por Mariana Fortio Chamo-me Urbi e tenho neste momento 19 anos. Acordo agora, num dia muito quente e de muito sol. Encontro-me neste momento no Brasil e ao meu redor só vejo canas-de-açúcar. O meu rosto está “estragado” e cansado. Ai, mas que saudades que tenho do tempo em que tinha 13 anos, morava em África e era muito feliz com os meus entes queridos. Ai que saudades! Daqueles dias em que eu acordava com o sol a bater na minha cara. Eu adorava quando ia com os meus pais ao rio, gostava tanto, mas tanto, de mergulhar naquela água fresca. Até que um dia o tempo estava esquisito… estava a brincar, quando de repente chega um homem que eu nunca tinha visto em toda a minha vida. Pegou-me pelo braço e arrastou-me até um porto, onde me jogou para dentro de um barco cheio de pessoas escuras (da minha cor), com ar cansado e velho. Eu fiquei muito assustada e com medo, pois não estava com os meus pais e não sabia o que me iria ou poderia acontecer. Fui colocada no porão do barco onde se encontravam muitas pessoas cansadas. As pessoas estavam todas com um ar muito triste. Fiquei num cantinho do porão e comecei a chorar. Uma senhora veio ter comigo e me perguntou se eu estava bem. Eu só queria saber para onde ia o barco. Perguntei então para onde se dirigia o barco e porque íamos nele, e foi aí que a senhora me disse que nós íamos para o Brasil e iriamos ser utilizados como escravos. Chegámos ao Brasil. Fomos vendidos a um branco que tinha um engenho de açúcar. Comecei a trabalhar logo de manhã. Estava tanto sol e tanto calor! Sentia que ia desmaiar, com tanto calor, estava tão cansada… mas eu sabia que se parasse de trabalhar naquele momento poderia acontecer-me alguma coisa. Assim se passaram 6 anos. Um dia, estava a trabalhar quando ouvi gritarem pelo meu nome. Cheguei ao pé do homem que me estava a chamar e foi-me dada a notícia de que um jovem da minha idade tinha dado dinheiro para ficar comigo. Nesse momento não sabia se havia de ficar feliz, ou triste. O jovem que tinha pago para ficar comigo podia ser bom ou mau, por isso fiquei com um pouco de receio. Quando o jovem chegou ao pé de mim eu fiquei logo apaixonada, pois ele era lindo. E assim acaba a minha História.
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20. Nunca vou esquecer o meu passado Rita Nunes Chamo-me Rita, sou uma rapariga com 20 anos, neste momento vivo no Brasil e trabalho como escrava num engenho de açúcar. Aqui no Brasil somos todos maltratados, não temos direitos nenhuns, trabalhamos de sol a sol em troca de um escasso alimento e um local miserável para dormir. Mas isto não é o pior, o pior é quando somos castigados. Além de nos repreenderem, batem-nos com o cipó (cacete feito do caule de uma planta brasileira) nas costas ou prendem-nos com correntes durante meses. Esta vida de sofrimento começou quando eu tinha 13 anos e vivia em África. A minha vida era normal e feliz, tinha tudo o que podia querer, era bastante alegre com a minha família. Lá em África, todas as noites havia festas bem divertidas. Toda a minha família e os meus vizinhos se reuniam à volta de uma fogueira, partilhávamos comida, tocávamos músicas, dançávamos e contávamos histórias.
Até que houve um dia que isto tudo acabou. Num dia de manhã, chegaram uns homens armados a gritarem bruscamente para que nos reunissemos no centro da aldeia. Começaram a acorrentar-nos e a ameaçar-nos, para que não nos defendessemos. Todos nós, amarrados, tivemos que ir em direção ao litoral para sermos transportados num grande barco para o Brasil. Nesse barco, aconteceram coisas horríveis, nós (os escravos) fomos para dentro do porão, onde estávamos todos amontoados e acorrentados. Lá dentro havia um cheiro insuportável; não havia condições nenhumas; havia falta de comida e de água. Esta, quando existia, já estava quente por causa do calor; muitos de nós morreram asfixiados de tanto sofrimento que ali havia. Mas o que me custava mais era ver os bébés acabados de nascer, amontoados como lixo Foi tanto o sofrimento! Na viagem só sobrevi eu, a minha mãe e os meus dois irmãos mais novos, o Miguel com 9 anos e a Sofia com 10 anos. Nunca vou esquecer o meu passado, pois é ele que me dá forças para fazer tudo o que faço agora, que é cuidar dos meus irmãos e da minha mãe, porque é tudo o que tenho de mais precioso na vida e porque sei que o meu pai ficaria orgulhoso de mim.
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21. Vida de Escravo, por Tiago Brasil Uma suave brisa soprava os meus espessos cabelos negros, a humidade era predominante, assim como as gotículas de suor que desciam pouco e pouco o meu corpo. Eu, como qualquer outro miúdo de 11 anos, adorava divertir-me e aventurar-me no desconhecido, sempre acompanhado dos meus fiéis amigos, companheiros de tribo. No momento em que estávamos a descansar numa enorme rocha, sentimos uma estranha presença, vinda de trás, dos arbustos. Primeiramente, temíamos que fosse algum animal selvagem, predominante nessa zona, mas era algo bem pior... Repentinamente saltou, por detrás dos arbustos, uma enorme facção de soldados, protegidos por enormes escudos e segurando espadas, igualmente grandes. Sem sequer termos tempo de reação, levaram-nos acorrentados em direção à praia mais próxima. Após uma longa e dolorosa caminhada, atingimos a praia, local onde se localizava uma enorme embarcação, que tinha uma grande cruz vermelha na vela. Fui separado dos meus companheiros, uma vez que a forte afinidade que existia entre nós fora descoberta pelos soldados. As condições a que éramos submetidos dentro da embarcação eram péssimas, nem espaço para estarmos de pé havia! A embarcação estava carregadíssima de pessoas inocentes, onde a cor de pele predominante era o negro. Dentro desta gente, consegui identificar alguns dos membros da minha tribo, entre eles, destacava-se Ipiranga, um sábio e astuto guerreiro, embora já de certa idade. A viagem demorou muito tempo, sendo um milagre eu não ter morrido, mas infelizmente, não se registou o mesmo com grande parte das pessoas que partilhavam comigo o porão. Ao desembarcar não tive oportunidade de ver os meus amigos, provavelmente, não teriam resistido à viagem. Só mais tarde perceberia de que teriam sido transportados para outro continente com o objetivo de serem vendidos. Passei a trabalhar na produção de açúcar, mas fazia de tudo, até mesmo tarefas domésticas! Os anos foram passando e nada mudava, era sempre a mesma rotina. Atualmente tenho 20 anos e fui comprado por branco, um sábio que respeita e fornece boas condições de vida aos seus escravos. Vamos ver se a minha vida muda!
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22. Durmo ao relento, por Bruno Guerreiro Estava na minha casa situada na África quando um grupo de portugueses me levou para um barco chamado “barco negreiro”. Eu deixei logo de ver os meus pais, até acho que eles morreram. A minha vida antes disto era tão boa, tinha começado a ter aulas com padres missionários e os meus pais estavam tão contentes por eu ir aprender a ler e a escrever. Mas, continuando, a minha viagem foi bastante má, fui amarrado a outro negro, íamos no porão mal alimentados, e alguns estavam muito doentes. Passados 7 anos aqui estou com 20 anos e trabalho num engenho de açúcar no Brasil. Sou bastante maltratado pois levo bastantes chicotadas, passo fome e durmo no chão ao relento.
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23. Passado esquecido, por Carolina Germano Sou a Jamila, com 13 anos vivia em África. Certo dia, estava a brincar com os meus amigos, como fazíamos todos os dias desde o nascer até ao pôr-do-sol, quando decidimos afastar-nos um pouco da tribo. De repente, uns homens encapuçados apanharam-nos e vendaram-nos os olhos. Gritámos o mais alto que pudemos, até que nos colocaram num sítio escuro que cheirava muito mal e nos separaram. Passei dias sem ver a luz do sol, sem comer ou beber água. Um dia ouvi umas vozes que, ao início, pensava serem os meus amigos mas eram os homens encapuçados que falavam sobre outro homem, Brasil e uma forma de sair dali. Calei-me para ouvir o que diziam e assim descobri quem me tinha capturado, chamava-se Alfredo Maria e logo reconheci o nome, era um grande comprador de escravos e também descobri que estava num barco a ser levada para o Brasil para trabalhar nos engenhos de açúcar. A viagem durou imensos dias, se não me engano 25, e quando chegámos fomos logo dirigidos para os engenhos de açúcar. Algemaram-nos e passávamos os nossos dias com pouca comida e o sol escaldante a bater no corpo.~ Estava a trabalhar quando ouvi uns “guardas” a falar que nessa noite não iria estar ninguém de vigia e sairia um barco logo pela manhã em direção à Europa. Assim que ouvi isso fui logo pensar no que iria fazer e decidi que iria mesmo tentar fugir. Nessa noite dormi debaixo de umas folhas e assim que começou a amanhecer corri para a costa com todas as forças e escondi-me no barco. A viagem foi mais curta do que a outra e quando cheguei a Portugal, comecei a trabalhar sem ser escrava e a ganhar dinheiro. Hoje continuo com o meu trabalho e tenho uma família, dois gémeos, um rapaz e uma rapariga com 2 anos e um marido que me ama, é verdade que casei cedo mas apenas quis esquecer o passado e é certo que hoje já ninguém se lembra do dia em que cá cheguei. Sou muito feliz e bem tratada (sem comparação) por todos os que me rodeiam e sinto-me orgulhosa com tudo o que fiz e o caminho que dei à minha vida, pois se naquela noite não tivesse decidido entrar no barco agora não estaria aqui.
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24. A minha viagem de há sete anos, por Catarina Gregório Numa manhã de Verão, eu, uma rapariga negra de treze anos estava a pescar, quando deparei com portugueses que me capturaram e transformaram em escrava. A minha vida era até então serena e feliz apesar de termos muitas dificuldades. Fui separada dos meus pais e levada para o porão de um navio, juntamente com muitas meninas iguais a mim. Colocaram-me correntes para não fugir. O chão era a nossa cama e não havia mantas para nos cobrir do frio que estava à noite e a nossa comida era pão e água. Esta viagem foi muito violenta, sobretudo quando o barco balançava pelas ondas do mar, que eram enormes. Nós estávamos aflitíssimos para sair dali, fizemos de tudo para nos soltar mas não conseguimos, as correntes e as algemas era muito fortes. Eu agora tenho 20 anos e trabalho num engenho de açúcar. Tratam-me de maneira diferente da que me tratavam no porão do navio, sem chicotadas…
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25. Apenas me resta esperar e ter esperança, por Catarina Pinheiro Isto tudo começou num sábado comum, quando toda a minha família se juntava para almoçar, quando do nada, um capataz arrombou a porta e me capturou a mim e à minha família fazendo-nos escravos… A minha vida era simples, mas era melhor do que agora… Não tinha muitos bens materiais, mas sempre tive liberdade, coisa que agora já nem isso tenho. E agora todos os dias me lembro daqueles momentos, de risadas, da comunhão que havia entre nós… Só isso me dá força para continuar aqui a trabalhar, pior que um animal neste engenho de açúcar.
Ninguém imagina a forma como são transportadas as pessoas feitas escravas. Nunca mais me esqueço do que senti, aquele calor, aquele cheiro, a fome que tinha, e o quão apertado estava, o desespero de tanta gente inocente, mortes a toda a hora, é simplesmente inexplicável. Mas o pior foi quando chegámos ao Brasil e nos colocaram à venda, separámo-nos todos, eu apenas tinha 13 anos, e desde então nunca mais vi os meus pais. Como estarão eles? Como estarão os meus irmãos neste momento? Ainda se lembrarão de mim? Agora que já se passaram 7 anos desde que estou em cativeiro já não sei o que é ter liberdade, o que é viver numa casa. Aqui estamos a toda a hora a ser chicoteados e maltratados só para trabalhar, dormimos amarrados para não fugir e geralmente trabalhamos mais de 18 horas seguidas. Será que vou conseguir resistir até ao fim, até ser libertada ou conseguir fugir? Apenas me resta esperar e ter esperança.
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26. Tortura desde criança, por Filipa Simão da Silva Já se passaram sete anos, os mais longos e dolorosos que alguma vez alguém poderá ter vivido, agora que a minha mãe morreu chegou a altura de ser eu a escrava principal. Todos os dias me lembro da minha vida há sete anos, o que eu fazia para conseguir voltar atrás no tempo, voltar para a minha tribo, voltar a estar com a minha mãe e com o meu pai. Vivia muito melhor, com melhores condições, pois, sendo o meu pai o chefe e o meu avô o ancião, porque era o único que conseguiu atingir uma idade superior a quarenta anos, facto que deu um enorme prestígio à minha família. Nós éramos livres, podíamos fazer o que quiséssemos sem termos vestígios de invasores, piratas ou corsários, ninguém se atrevia a ir à nossa ilha, nós comandávamos o mar ao redor da nossa casa. Vivíamos em cooperação, éramos um povo unido e que não se rendia aos braços de qualquer pessoa.
Aconteceu há sete anos…estava com a minha mãe na cabana real, ela estava-me a pentear o cabelo, enquanto o meu pai treinava o meu irmão para se tornar num futuro chefe. Os homens de patrulha vieram a correr da costa até à aldeia para dizer ao meu pai que avistaram navios no horizonte a virem na nossa direção. Passado pouco tempo surgiram homens com umas armas grandes que nos eram desconhecidas e mataram dez dos nossos melhores e mais fortes vigilantes e soldados.
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Eram como homens altos, magros, musculados, de pele branca e bem armados, muito diferentes de nós, nem as armas eram iguais às nossas, nós usávamos arcos e flechas com pós de plantas venenosas para serem mais poderosas, os brancos usavam armas de metal pontiagudas e finas com uma pega de madeira e um tubo de ferro e uma pega de madeira com mini bolinhas de metal. Cada vez morriam mais soldados dos nossos, as mulheres, as crianças e os idosos já estavam no abrigo e os homens estavam a combater, mas eu não queria que o meu pai morresse, então fui até à costa lutar ao lado do meu pai, mas cheguei tarde demais, vi, com apenas sete anos, o meu pai morrer e o meu irmão a chorar e a levá-lo para o abrigo. Queria ir ter com eles, mas os brancos capturaram-me e levaram-me para um dos seus navios. Eles pegaram-me nos braços e puseram-me num canto do porão com outros da minha tribo, estávamos todos amontoados, com falta de ar, sem comida ou água, sem condições… Nem sei quanto tempo fiquei presa naquele barco, muitos morreram pela falta de ar, e o que havia estava contaminado e cheio de doenças, não havia água nem comida, não sabia quanto tempo iria sobreviver, nem sei como estou aqui, viva e a escrever a pior história de uma menina (eu) que viu o seu pai morrer, que foi levada para longe da família. O meu maior apoio era a minha mãe, ela estava comigo no barco, tomava conta de mim e eu não conseguia nem consegui tomar conta dela, agora estou só eu. Agora já tenho vinte anos, já estou farta de ser escrava, estou na escravidão há sete anos, a única parte positiva é que o meu dono ensinou-me a ler e a escrever, deu-me um bom abrigo, e tratou e cuidou de mim mas em troca eu tinha que ser fiel, trabalhadora e obedecer-lhe para sempre.
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27. Isto é ridículo, pensar que as pessoas são diferentes pela cor, por Guilherme Baptista Faz hoje 7 anos desde que fui raptado por uns homens brancos portugueses. Eu tinha uma boa vida com a minha família e o meu povo, nessa altura éramos todos iguais. Lembro-me todos os dias quando me tiraram dos braços da minha mãe. Depois, só me lembro de acordar num barco, cercado por amigos meus. Passávamos fome e era difícil respirar com todo o calor. Alguns meses depois chegámos à Europa, fomos amarrados e levaram-nos para um leilão onde eu e mais 30 pessoas fomos comprados por um homem branco muito rico. Dias depois voltamos para o mar, tínhamos sido transportados para o Brasil. Durante vários anos a trabalhar num engenho de açúcar sofri muitos castigos, como ficar preso ao sol durante muito tempo e levar com cipós nas costas. Após tanto tempo a trabalhar sem parar cheguei a pensar em fugir, mas depois de tantos exemplos de amigos meus a fugir, serem apanhados e depois mortos ou castigados, acabei por perder a esperança. Só espero que um dia alguém com poder veja que isto é ridículo, pensar que as pessoas são diferentes pela cor, e acabar com esta escravatura.
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28. A Vida De Rafael, por Hugo Rosa Certo dia, numa região em África, havia uma tribo que estava ao pé do mar, onde as crianças iam brincar, tomar banho e principalmente iam pescar. Havia um menimo chamado Rafael que vivia nessa tribo e que ia todas as noites para a beira mar ouvir as ondas. O Rafael esperava que o pai voltasse, porque o pai foi para o mar e nunca mais voltou e, por isso, o menimo ia sempre, todos os dias, para a beira mar com esperança que o pai voltasse. Numa certa noite apareceu ao longe um barco e o Rafael pensou que era o pai e foi chamar a mãe, mas quando o navio atracou sairam uns homens com armas e levaram todos os habitantes da tribo. Quando o sol rompeu o Rafael acordou e foi ver onde estava, viu que estava no mar e não consegui ver terra. A viagem foi um atribulada, o Rafael vomitava muitas vezes porque não estava habituado a andar de barco. Passados uns dias, os homens levaram a tribo para um sítio em que ninguém sabia onde estava, só os homens que o levaram é que sabiam. O Rafael perguntou à mãe que casa era aquela tão grande, a mãe disse-lhe que não era uma casa grande, era onde as pessoas como eles iriam trabalhar. Passados sete anos, a mãe de Rafael já tinha morrido, e ele, com vinte anos, começou a trabalhar num engenho de açúcar. Estava num país chamdo Brasil, onde vivia um homem muito poderoso e que escravizava as pessoas negras, como o Rafael. O Rafael era maltratado, levava chicotadas a toda a hora, quase não lhe davam de comer, até que um dia consegui fugir com mais umas pessoas que também trabalhavam no engenho. Roubaram um barco e regressaram a África. Chegou a um local onde encontrou várias pessoas iguais a ele. Viu uma rapariga muito bonita e não conseguiu tirar os olhos de cima dela. Passado uns tempos casou com ela, tiveram filhos e viveram muito felizes.
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29. O rapto, por Tiago Alves Eu vivia com a minha família no norte de África quando um dia apareceram uns brancos que nos levaram de barco para o Brasil. Fomos transportados em condições horríveis, íamos todos empilhados, nus, sem comida, sem água e ainda éramos chicoteados pelos brancos, tinha eu apenas 13 anos.
Hoje, 7 anos depois, tenho 20 anos e trabalho num engenho de açúcar no sul do Brasil, com cerca de 500 escravos. Somos todos maltratados, mal nos dão que comer e que beber. E se quisermos parar 1 minuto para descansar, começamos logo a ser chicoteados.
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30. Isaura, por Alexandra Firmino Santos, 18 de janeiro de 1602. O meu nome é Isaura, tenho 22 anos e sou uma das escravas que trabalha num engenho de açúcar, no Brasil. Nasci e vivi em África até aos 13 anos. Em África vivia numa tribo com a minha família, lá brincava com as outras crianças e ajudava a minha mãe a fazer cestos para ir buscar a comida para a família. Nessa altura era livre e feliz. Sem saber de onde vinham nem porquê, um grupo de traficantes invadiu a nossa tribo e capturou quase todos os habitantes. Só deixaram ficar os mais velhos. Para nos levarem para o barco amarraram-nos as mãos e os pés, andámos assim até à costa e depois jogaram-nos para o porão do barco. Éramos mais de 500 pessoas ali, em monte, sem comida, sem água e quase sem ar para respirar, era horrível! De África ao Brasil foi uma eternidade! Quando chegámos ao Brasil fomos para o mercado de venda de escravos. Fomos tratados como animais! Apesar de tudo tive sorte, pois fui comprada pelo mesmo fazendeiro que os meus pais. Foram mais dois dias de viagem até à fazenda. Caminhámos com dificuldade pois íamos acorrentados. Quando chegámos à fazenda cada um foi informado do serviço que tinha para fazer e dos horários que tinha para cumprir. Como era mais nova, fiquei no engenho a trabalhar, onde trabalho até hoje. A vida tem sido difícil, começamos a trabalhar às quatro da manhã e só terminamos por volta das nove da noite. Durante o dia vão-nos dando as refeições, que têm de ser feitas à pressa, e que consistem sempre no mesmo, café com açúcar, farinha de mandioca, arroz cozido ou milho. De vez em quando temos direito a gordura de porco e carne seca. No fim do recolhemos todos à senzala, onde dormimos em secções diferentes, mulheres e crianças de um lado e homens de outro, e o capataz tranca a porta, para que ninguém fuja. Aqueles que tentam a fuga para a liberdade, quando são novamente capturados, sofrem castigos horrendos! Tenho visto tantos escravos a morrer por causa deles! É por isso que suporto esta vida, cumprindo sempre as minhas tarefas para não ser castigada, pois sei que se sofre muito mais quando não somos obedientes, e mantendo a esperança de algum dia voltar a ser livre! Enquanto a liberdade não chega, vou sobrevivendo como posso apoiando-me sempre nestes companheiros de luta e de trabalho.
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31. Eu já fui livre, por Carolina Oliveira Eu era livre...eu já fui livre. Estava apenas a brincar com os meus irmãos, não estava a fazer nada de mal. Até que umas pessoas estranhas chegaram. E, sem mais nem menos, começaram a capturar toda a gente! E capturaram-me a mim, e à minha família. Eram pessoas diferentes, utilizavam algo que lhes revestia a pele clara e comunicavam de maneira diferente, eram violentos. Acorrentaram e amarraram todos quantos conseguiram apanhar e levaram-nos até um barco! Atiraram-nos lá para dentro como se fossemos mercadoria. Tinha sido afastada da minha família! Sentia-me sozinha embora estivesse num compartimento do barco a abarrotar de pessoas. Estava com fome e amontoada em cima de crianças assustadas, que tinham sido tiradas das famílias, como eu. Passados quase dois meses, finalmente o barco parou, numa cidade. Finalmente íamos ser libertados! Pelo menos era o que eu achava até me terem tirado do barco à força e me terem voltado a amarrar. Obrigaram-me a trabalhar num engenho de açúcar que é onde trabalho até hoje, passo o dia exposta ao sol, com fome e tonturas pois não sou devidamente alimentada. Mas agora é isto que faço da vida, trabalhando para os brancos, sendo maltratada e gozada, mas após tantos anos, eu não acredito que isto vá mudar.
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32. A morte está perto, por Daniel Gonçalves Tinha 13 anos e, numa manhã de inverno de 1580, estava em casa com os meus pais quando me deparo com 5 homens com lanças apontadas para nós. Fomos imediatamente expulsos de casa e amarrados por paus e cordas. Eu adormeci quando estava em Zimbabwe e acordei no litoral de Angola. O meu pai estava magoado pelas marcas do chicote e a minha mãe cansada de transportar marfim nas costas. Entrámos num barco com um porão cheio de outros escravos, alguns mortos por doenças e outros marcados gravemente pelos chicotes. Quando cheguei ao Brasil fui separado da minha mãe e levado para um engenho de açúcar. Sou chicoteado dia e noite, mesmo enquanto estou a trabalhar. A minha vida é horrível e cheia de dor e sofrimento.
Agora estou muito doente, as minhas costas estalam, a minha cara está muito descaída e enrugada pela luz do sol, a morte está perto. Não cheguei a voltar a ver a minha mãe e nem mais ninguém que conheci em África, pobre vida que tenho!
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33. História da Minha Vida, por Fábio Guerreiro Esta é a minha história. Chamo-me Baldé, tenho 20 anos e sou um dos trabalhadores do engenho de açúcar de São Paulo. Neste relato, falarei dum pouco da minha vida e o que para mim essa palavra já significou. Na minha vida, nunca atingi a felicidade, apenas sofrimento, resistência e fé, especialmente numa das etapas mais marcantes da minha vida: quando fui raptado e escravizado pelos brancos. Certamente esse acontecimento nunca fez muito sentido pois nós, cá em Moçambique, nunca nos interessámos em ir conhecer o próximo e também o facto de alguém precisar de nós é bastante confuso. Isso irá marcar-me durante algum tempo e talvez o resto da minha vida. Começando a história, eu era um simples e normal rapaz que vivia em Moçambique com a minha família até que um dia, por espanto nosso, apareceu nas redondezas um barco. Eis o motivo de tanto espanto e euforia: na nossa tribo havia um velho maluco que todos os dias nos dizia que iria acontecer uma desgraça e que algum demónio nos levaria para o inferno em breve e, nós, obviamente não acreditámos, mas afinal ele tinha razão. Ao aproximar-se esse barco eu sabia que a partir desse momento a minha via iria mudar e não estava errado. Homens brancos com objetos de coro na cabeça e nos pés aproximaram-se gritando bem alto palavras as quais não conseguíamos compreender. Essas palavras eram para entrarmos no barco deles! Então estes homens prenderam-nos, pelos vistos sabiam da nossa existência, e por alguma razão levaram nos sem explicações. Foram semanas, talvez meses, navegando em alto mar com as costas encravadas em tábuas de madeira muito desconfortáveis, por vezes espetando-se no nosso corpo e criando bastante dor. Ali ficámos colocados naquele espaço pequeno onde o oxigénio parecia só alcançar os brancos e o suor derretia o nosso corpo. Até que chegámos a um local onde o ar chegava a Desenho de André Coelho todos e a beleza era garantida. Pensámos que nos queriam ajudar mas rapidamente percebemos que era o nosso fim como pessoas livres. Desde aí passaram-se 7 anos, 7 anos a trabalhar para estes brancos sempre com receio se posso pedir para comer ou beber sem levar duas ou três porradas no “focinho” como estes dizem. Aos poucos fui-me habituando a estes modos de vida e até fui colaborando com estes homens. Neste momento tenho pessoas que cuidam de mim e me alimentam mas só se trabalhar. Esta é a minha história.
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34. Arrancados os direitos humanos, por Joana Piedade O meu nome é Joana, tenho 20 anos. Fui capturada aos 13 anos em Zimbabué, África, onde me tiraram à força do local onde eu nasci, cresci e criei laços com todos os que ao pé de mim habitavam. Durante a minha infância, nunca fui discriminada pela minha tez (que era normal naquela região) nem nunca me faltou afeto, atenção ou carinho. Mesmo com 3 irmãos e 4 irmãs, os nossos pais sempre procuraram educar-nos o melhor possível e transmitir-nos vários conhecimentos que só os nossos antepassados sabiam da existência. Apenas existiam alguns itens (materiais) que nos faltavam tais como água, alimentos, roupa limpa e cuidado médico. Eu passava os dias a tecer grandes cestas feitas de palha com as minhas irmãs, a ajudar nas tarefas diárias e os meus pais a cultivar feijão (em que todos nós ajudávamos). Um dia, uma das minhas irmãs adoeceu e mantevese assim durante um grande período de tempo, sempre a piorar bastante. Fizemos de tudo para a tratar e até pedimos a curandeiras perto da nossa casa que tentassem afastar a doença, mas ela acabou por morrer passado cerca de um mês. Num dia solarento, estava com toda a minha família na rua e subitamente fomos atacados por brancos que, e sem oportunidade para nos defendermos, nos amarraram e acorrentaram instantaneamente. Aquele momento tão intenso regista-se ainda detalhadamente na memória de todos os membros da família ainda vivos. Eles vinham muito vestidos, especialmente de branco. Carregavam chapéus largos no topo das suas cabeças que os protegiam dos raios solares (o que tem uma certa ironia, pois eles eram bancos a tentar afastarem-se/protegerem-se dos raios de sol, mas aproximavam-se deles para nos capturar). Fizeram-nos caminhar no mato durante 8 dias seguidos até chegarmos o ao litoral. Aí separaram-nos de acordo o nosso género. Os brancos colocaram todos nós, africanos, dentro de um porão de um barco enorme e separaram-me da minha família, à exceção de uma das minhas irmãs, a Janaína, que se manteve ao meu lado durante toda a viagem. Ouvíamos murmúrios de que um tal Brasil era o destino. Dentro daquele porão, mal nos era permitido respirar; persistia naquele ar rarefeito e quente um odor muito desagradável, uma combinação de suor e podridão (dos cadáveres encarcerados já em decomposição, que morreram por doenças, desidratação ou asfixia. Eram muito finas e poucas as entradas de ar ou luz. A nossa ração de alimento era extremamente reduzida e a água estava sempre morna. Passado um mês e alguns dias, chegámos ao nosso destino; uma grande floresta (no Brasil). A minha mãe e o meu pai haviam falecido
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durante a viagem, tal como dezenas de outras pessoas. Connosco ainda amarrados, selecionaramnos em pequenos grupos e, por mera coincidência do destino, eu e as minhas irmãs ficámos juntas. Dos meus três irmãos nunca mais soube até hoje, por mais desesperadamente que pergunte ou procure, ninguém parece sequer saber quem são. Eu e as minhas duas irmãs trabalhámos juntas durante três anos naquela grande floresta, cultivando-a. Aos meus 17 anos, o meu presente cônjugue juntou-se comigo (em prol de aumentar a sua família) e temos dois filhos. Ele é quinze anos mais velho que eu e gere o engenho de açúcar onde eu trabalho. Por vezes, quando estou debilitada e/ou atraso o meu ritmo de trabalho, sou punida através do cipó (um grande chicote feito com raízes de plantas).Ao refletir no meu passado, observo que a escravidão não se trata de nada mais do que um benefício apenas para o comprador/vendedor. Ao escravo, são-lhe arrancados os direitos humanos e a liberdade de ser alguém.
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35. Éramos de cor escura, por Martinus Boom Certo dia, estava eu ainda com 13 anos na minha terra em África a ajudar a minha mãe, quando, ao anoitecer, apareceram uns homens de pele clara e com armas e começaram a amarrar as crianças e de seguida os adultos. Eu apercebi-me que eles iam levar-nos à força mas não pensava que iria ser muito mau. Quando cheguei a uma embarcação olhei para aquilo e pensei como ia caber ali tanta gente e aí apareceu o problema, nós tínhamos de ir todos no porão do barco, sem espaço nenhum e sem condições nenhumas. Para mim aquilo já era um inferno mas ainda não tinha passado por nada. Depois de meses se não foram anos, porque para mim aquilo foi muito tempo dentro de um barco, finalmente desembarcámos. Mal chegámos lá, ouvi a palavra Brasil e supus que seria o nome daquela terra. A partir daí fomos tratados de todas as formas possíveis, obrigavam-nos a trabalhar à força e tínhamos de trabalhar numa engenho de açúcar e ainda hoje trabalho nesses engenhos.
Só passado alguns anos é que percebi por que é que isto tinha acontecido a mim, era simplesmente porque nós, os da minha região, éramos de cor escura.
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36. Sou maltratada, por Paula Fonte Eu era uma adolescente que vivia livremente e era bem tratada. Tinha apenas 13 anos quando me capturaram e levaram para longe, juntamente com outras crianças, umas mais novas, outras mais velhas, até mulheres com crianças de colo, outras grávidas e homens. Durante o tempo da viagem até ao Brasil, fui maltratada, posta entre as cobertas no navio, mal alimentada e amarrada. Alguns ainda eram chicoteados. Ao chegar ao Brasil fui trabalhar para o engenho de açúcar, mas também não era bem tratada, continuaram a escravizar-me.
Desenho de André Coelho
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37. Vítor, Rafael Oliveira Um dia, no séc. XVI numa região da África, uma tribo estava a ter um bom dia, com o sol quente a bater nas cabeças dos seus habitantes. Havia um menino que se chamava Vítor e que tinha 13 anos. Vítor estava a brincar com os amigos quando ouve um navio a aproximar-se da costa. Lá dentro do navio vinham homens com um mau aspeto e vinham também armados. Pareciam homens de caça. Vítor assustado foi dizer à sua mãe que estava dentro de casa. Quando sua mãe ouviu o que ele estava a dizer foi ver o que realmente se estava a passar. Depois disso alertou toda a tribo. Minutos depois chegaram os tais homens do navio, Vítor e a tribo já se tinham escondido com medo que eles lhes fizessem algum mal e estavam certos. Os homens encontraram-nos e conseguiram capturá-los. Os homens fecharam-nos numa cela que tinham no barco para prender animais ou mesmo pessoas. A viagem foi assustadora por causa das fortes ondas e mau tempo que não deixavam Victor e sua tribo sossegados. Passados 40 ou 50 dias a tribo, ou parte dela, chegou à cidade dos tais homens que eram guardas. Logo após eles terem chegado Vítor e sua mãe foram vendidos a um feitor de engenho de cana-de-açúcar. Seis anos depois ainda são obrigados a trabalhar arduamente. No engenho de cana-de-açúcar tiveram que trabalhar muito até aos dias de hoje. Enquanto trabalhavam era chicoteados para serem forçados a trabalhar e não descansar.
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38. Um dia espero ser libertada, por Viviana Cantas O meu nome é Viviana, tenho 20 anos, sou uma rapariga e trabalho num engenho de açúcar brasileiro, nesta terra que os brancos chamam de "Brasil". Há 7 anos em Angola eu e a minha mãe fomos capturadas por brancos e levadas para um barco num porão com mais uns 437 negros. Quando cheguei lá quase vomitei por causa do cheiro que havia. Durante a viagem, que demorou mais ou menos 3 meses e meio, cheguei a lembrar-me da minha infância passada com os meus amigos e do meu pai que morreu com uma doença. Na viagem ainda a minha mãe morreu passadas 5 semanas, pois ela estava muito fraca por não receber comida e ser maltratada. Quando cheguei a terra estava com dores muito fortes por causa das marcas do corpo de ser espancada e de dormir na madeira dura com muito frio. A seguir desta viagem horrível e triste fui trabalhar numa casa de um branco, com sorte cheguei a conhecer uma rapariga da minha idade, chamada Marina. Eu e a Marina começamos a ajudar-nos uma à outra, foi a minha primeira e melhor amiga. Não sei bem quanto tempo depois começei a trabalhar na agricultura. No verão odiava trabalhar, pois tinha muito calor e os brancos eram mais maus e não nos davam água suficiente. Passados anos, eu e a Marina, agora com 19 anos, fomos para uma casa para nos venderem a outros brancos. Num dia, um branco comprou-me a mim e a minha amiga, nós as duas fomos trabalhar para um engenho de açúcar. Um dia espero ser libertada.
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39. Esta é uma vida que não desejo a ninguém, por Mariana Silva Numa tarde calma na minha aldeia no Congo, no dia 14 de abril de 1516, uma data que nunca irei esquecer, uma data que ficará para sempre na minha memória, o dia em que fui capturada por um grupo de traficantes de escravos, quando tinha 13 anos. Nesse dia acordei bastante cedo para ir lavrar um terreno como sempre fazia, depois de ter um almoço modesto, vi todos os meus amigos a brincarem, e decidi ir ter com eles. Precisava de descansar depois de uma manhã árdua de trabalho. De repente, vejo toda a comunidade a ficar bastante exaltada, fiquei com muito medo do que estava a acontecer. Vejo um grupo de estranhos a entrarem nas nossas terras, vejo vários amigos meus a serem capturados, foi nesse exato momento que me apercebi de tudo o que se estava a passar ao meu redor, tentei fugir, mas já era tarde, sinto alguém a agarrar-me por trás, era tarde, vi a minha vida a andar para trás, tentei escapar, mas nada resultou. Fui acorrentada e levada para o litoral, onde se encontrava o barco que me iria transportar para o Brasil. Estava muito triste. Quando dei por mim tinha alguém por cima de mim, era um homem com os seus 40 anos, tentei afastá-lo, mas tinha as mãos agarradas a uma rapariga que devia ter a mesma idade que eu, aquele navio estava completamente cheio, estávamos todos amontoados uns em cima dos outros. O calor e o cheiro tornavam-se insuportáveis. Ouvi alguém a comentar que o destino seria o Nordeste Brasileiro, a viagem iria durar uns 50 dias. Já havia passados bastantes dias, a viagem estava quase a terminar, várias pessoas não tinham conseguido resistir e morreram, era tão doloroso ver as pessoas a morrerem à minha frente, e então conviver com os seus corpos sem vida mesmo ali ao lado, eu própria já nem sei se vou conseguir sobreviver. Havia poucos recursos, a água era pouca para imensa gente, e o alimento foi escasso durante toda a viagem. Quando acordei senti que estava a ser retirada do navio com bastante violência, finalmente a viagem tinha terminado, o pior ia começar agora, sinto-me uma lutadora por ter conseguido sobreviver a uma viagem tão dura como esta. Sentia-me tão desgastada. Fui levada para um engenho de açúcar, onde trabalho até agora. Hoje sou uma mulher nova, tenho 20 anos, cresci de uma forma terrível, sou uma escrava, trabalho durante todo o dia, sou maltratada, amarram-me e castigam-me, cada dia que passa o meu maior desejo é morrer, é dormir e nunca mais voltar a acordar, ou acordar e isto tudo não ter passado de um grande pesadelo, só queria voltar ao tempo em que vivia na minha aldeia, nesse tempo considerava-me uma pessoa feliz.
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A vida nos engenhos não é fácil, somos severamente castigados. Trabalhamos de sol a sol, dormimos acorrentados, somos agredidos com o cipó, ou por vezes presos no tronco. Um dia, estava perdida nos meus pensamentos até que sinto alguma coisa bastante dura bater-me na cabeça, foi uma dor tão intensa, e eu estava tão fraca, não consegui perceber o que era, a minha primeira reação foi gritar, e ficar parada no mesmo lugar, comecei a perder a força das pernas, deixei de ver tudo o que estava à minha volta, ouvi alguém a gritar “Mariana”, abri levemente os olhos e vejo a Diana, brutalmente assustada, ela era a rapariga que eu tinha conhecido no navio, a que estava amarrada a mim, nós apoiámo-nos imenso durante toda a viagem, comecei a perder os sentidos, tinha os olhos abertos, vejo a Diana a ser amarrada e a levar com o cipó, nunca a tinha visto tão aterrorizada como naquele momento, sorri-lhe com um sorriso triste, mas para lhe dar mais força. Fechei levemente os olhos, ninguém me tentou ajudar, fiquei deitada no chão, e esperei, mas não aguentei mais, o sofrimento era imenso, a dor era maior, eles conseguiram-me acertar brutalmente na cabeça, sinto-me uma lutadora por ter aguentado tantos anos a sofrer, a sofrer como escrava, antes de ser escravizada levava uma vida modesta, mas feliz. Esta é uma vida que não desejo a ninguém.
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40. Zaki, por Gonçalo Santos Eu sou um escravo chamado Zaki de 20 anos que trabalha no engenho de açúcar no Brasil e vim de Africa. Quando vivia em África era feliz, os dias eram pacíficos. Um dia, tinha saído dos arredores da minha aldeia e fui capturado por um grupo de traficantes, também eles negros. Levaram-me para um porto e meteram-me num barco junto com outras pessoas capturadas. Tinha, na altura, 13 anos. Dento do barco as condições eram horríveis, davam-nos pouca comida, chicoteavam-nos, as pessoas que estevam doentes amarravam-nas a um saco de pedras e mandavam-nas para o mar. Ao chegar ao Brasil fomos escolhidos e levados para trabalhar nos engenhos de açúcar, onde ainda hoje trabalho com 20 anos. Continuam-nos a tratar muito mal, a dar chicoteadas, uma alimentação muito pobre e vivo com poucas ou nenhumas condições.
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41. Fui capturada, por Ana Carlos Um dia de manhã, quando ainda tinha apenas 13 de idade, fui capturada. Antes disso vivia numa tribo, onde os trabalhos eram feitos por todos: pesca, caça e comércio. Mas um dia fui capturada pelos Portugueses. A viagem de África até ao Brasil foi muito má porque íamos nus, deitados nos porões dos navios sobre urinas e fezes e nem sempre havia água e a comida para todos. Muitos de nós não sobreviveram a essas péssimas condições de viagem. Quando chegámos ao Brasil passámos a trabalhar cerca de quatorze horas por dia e muitas vezes só tinhamos direito apenas a uma refeição diário composta de feijão, milho e farinha de mandioca.
O domínio dos brancos sobre os negros era grande. Muitas vezes éramos maltratados, chicoteados e amarrados a troncos.
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42. Vontade de voltar a ter Liberdade, por Hugo Sousa Hoje, faz sete anos que me trouxeram para aqui. Quando cheguei era uma criança que foi capturada por um homem alto e espadaúdo que me agarrou e levou até à praia. Tentei fugir mas não consegui. Meteram-me no porão de um barco amarrado a outra pessoa que nem conhecia. Quando chegámos a uma praia maravilhosa, retiraram-nos do barco e levaram-nos para um engenho de açúcar. Comecei a trabalhar em condições lastimáveis. Hoje continuo a viver no Brasil, a trabalhar de sol a sol, na miséria, não tenho nada a não ser a vontade de voltar a ter LIBERDADE.
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Guião de trabalho TRABALHAR COM FONTES HISTÓRICAS HISTÓRIA – 8º ANO ECONOMIA AÇUCAREIRA E TRÁFICO NEGREIRO Fonte 1 “Não se admite, nem a razão humana consente, que jamais houvesse no mundo trato público de comprar homens livres e pacíficos, como quem compra e vende animais, bois ou cavalos semelhantes. (No entanto) assim os conduzem, trazem e levam e escolhem com tanto desprezo e violência, como faz o magarefe ao gado no curral. (…) Os que os vão buscar esta gente não pretendem a salvação das suas almas, porque se lhes tirarem o interesse não irão lá.” Padre Fernando Oliveira – Arte da Guerra do Mar, 1555 Trato=tráfico, comércio; Magarefe=carniceiro
Fonte 2 – Captura e deslocação de escravos do interior para o litoral africano
Fonte 3 – Barco negreiro
Fonte 4 – Barco negreiro
Fonte 5 – Escravos no porão
Fonte 6 - Chegada dos escravos a Lisboa “Faz dó ver como os trazem empilhados na cobertura dos navios, aos 25, aos 30, aos 40, nus, mal alimentados, amarrados uns aos outros, costas com costas. Uma vez em terra, metem-nos numa espécie de enxovia, e quem os quer comprar os vai lá ver. Examina-lhes a boca, obrigaos a fazerem (…) quantos movimentos e gestos faz um homem são de corpo. O preço da compra varia de 20 até 60 ducados.”Filipo Sasseti – Cartas, 1580 Enxovia=cárcere
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Fonte 7 – Escravos no porão
Fonte 8 – Transporte de escravos “Alguns navios portugueses chegavam a transportar cerca de 700 escravos. Os homens eram empilhados no fundo do porão, acorrentados, com receio que se revoltassem e matassem os brancos que iam a bordo. Às mulheres reservavam o espaço entre as cobertas do navio. As que estavam grávidas eram reunidas na cabina de trás. As crianças eram amontoadas numa das cobertas, como peixes num barril. (…) O calor e o cheiro tornavam-se insuportáveis. A viagem durava cerca de 25 dias desde Angola a Pernambuco, 40 à Baía e 50 ao Rio de Janeiro. (…) Pior do que tudo era o sofrimento dos cativos, de tal forma que muitos não resistiam, morrendo asfixiados, exaustos ou doentes.” Relato de um padre italiano – século XVIII
Fonte 9 – Transporte de escravos Entregues os escravos aos capitães dos navios (…), estes procuram transportar em cada navio o maior número possível e despender com eles o menos que possa ser. (…) Os negros escravos são metidos no porão e aferrolhados (…) e ali lhes falta tudo. Nada mais têm por onde o ar lhes possa chegar que a grade da escotilha e umas pequenas frestas (…). A transpiração é aumentada pelo calor da zona por onde navegam e isto torna o ar infestado e por isso muito prejudicial à saúde (…). Têm uma curtíssima ração de água e está amornada pela ardência do calor (…). E têm uma escassa ração de alimentos (…). Não haverá razão para chamar aos escravos, que a tanto resistem e que a tanto escapam, homens de pedra ou de ferro?” L.A. Oliveira Mendes – Memória a respeito dos escravos, 1793
Fonte 10 – O comércio triangular
Fonte 11 – Engenho de açúcar
Chama-se engenho aos equipamentos utilizados para produzir o açúcar, bem como ao conjunto da propriedade, constituída por grandes extensões de terra, ocupada sobretudo por canaviais de cana-sacarina
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Fonte 12 – A vida dos escravos nos engenhos do Brasil “Aos feitores de nenhuma maneira se deve consentir das pontapés nem dar com um pau nos escravos, porque na cólera se não medem os golpes, e podem ferir mortalmente na cabeça um escravo de muito préstimo, que vale muito dinheiro e perdê-lo. Repreendê-los e chegarlhes com um cipó às costas é o que lhes pode e deve permitir para os ensinar. (…) Porém, amarrar e castigar com o cipó até correr sangue e pôr no tronco, ou preso, com correntes durante meses (…), isto de nenhum modo se há-de consentir.” Cipó= cacete feito do caule de uma planta brasileira
Fonte 13 – Negros no tronco
Gravura inglesa do século XVII
Padre André João Antonil – Cultura e opulência do Brasil, por suas drogas e minas, 1710
Fonte 14 – A mão-de-obra africana no Brasil Anos Escravos 1570-1600 1600-1650 1650-1670 1700-1820
50 000 200 000 150 000 2 000 000
Fonte 15 – Produção de açúcar no Brasil, em arrobas (1570-1670) Anos Nº de Engenhos Produção exportada 1570 60 180 000 1580 350 000 1600 1 200 000 1610 230 735 000 1614 70 000 1645 300 1 200 000 1650 2 100 000 1670 2 000 000 Arroba= medida antiga, entre 11 a 15 kg F. Mauro, Le Portugal et l’Átlantique au XVIIe siècle
Nota: Informação recolhida em manuais escolares de História do 8º ano
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Guião de questões Competência histórica: Tratamento da Informação/Utilização de fontes 1. Que argumentos apresentavam os traficantes a favor da escravatura? Que opinião tem o autor da fonte 1 sobre esses argumentos e sobre o tráfico em geral? 2. Descobre o que é mostrado na fonte 2: Quem são aquelas pessoas? Consideras que todas desempenham as mesmas funções? De onde vêm e para onde vão? Conta as pessoas amarradas: quantas são adultas? Quantos homens e quantas mulheres? Porque aparecem crianças? 3. Qual a imagem (fontes 3, 4, 5 e 7) que mais te impressionou? Porquê? 4. Escolhe uma personagem da fonte 5 ou da fonte 7. Conta-nos o que estás pensar ou a dizer. Porque escolheste essa personagem? 5. Transcreve uma frase das fontes 6, ou 8, ou 9, que mais te tenha impressionado. Porque a escolheste? 6. Descreve, por palavras tuas, as condições em que os escravos eram transportados nos navios. (fontes 3 a 9). 7. O que é o comércio triangular? Que continentes envolve? Que produtos circulam? (fonte 10). 8. Um escravo negro da fonte 2 está agora num engenho brasileiro (fonte 11). O que se produz no engenho? O que é um engenho? Em que condições vive esse escravo? (fontes 11 e 12). 9. Retira uma frase da fonte 12 que demonstre o que está a acontecer na fonte 13. 10. Seria a produção de açúcar importante para a economia portuguesa? Justifica (fonte 15). 11. Relaciona as informações da fonte 14 com os dados da fonte 15.
Competência histórica: Compreensão histórica 1. Transforma os dados das fontes 14 e 15 em gráficos de barras (histogramas verticais). 2. Atualmente chegam à Europa milhares de migrantes ilegais. De que países vêm? Quais as razões da sua vinda? Em que condições chegam? Encontras alguma semelhança com o que acabaste de estudar?
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Competência histórica: Comunicação em História Imagina que és um(a) rapaz/rapariga negro(a) de 13 anos que foste capturado em África e agora tens 20 anos e trabalhas num engenho de açúcar brasileiro. Redige uma composição, com auxílio das fontes que trabalhaste e da tua imaginação, que narre as seguintes etapas da tua vida: como vivias antes de seres capturado; quem te capturou; como foi a tua viagem de África até ao Brasil; como foste/és tratado…
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