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NOTAS SOBRE PATRIMÔNIO, DERRUBADA DAS ESTÁTUAS E VIDAS PRECARIZADAS

Hugo Menezes Neto 1

RESUMO

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Este artigo traz algumas reflexões sobre o movimento de derrubada das estátuas de personagens históricos ligados ao pensamento colonial e racista que se intensificou em 2020 após o assassinato de George Floyd, no dia 25 de maio de 2020, por um policial branco estadunidense, evento desencadeador da onda de protestos antirracistas no mundo. Pensando que tais estátuas condensam sentidos de opressão e violência constitutivas da experiência social das populações negras e indígenas, o objetivo aqui é refletir sobre a relação entre patrimônio e precariedade, nos termos de Judith Butler (2019), que aponta para a reparação patrimonial como constitutiva da justiça social e de produção de cidadania. Como efeito, proponho uma ideia de educação patrimonial que se preocupe mais com a garantia da livre circulação de narrativas, memórias e reivindicações das populações subalternizadas pelo colonialismo (como estrutura de pensamento ainda vigente intrínseco ao capitalismo moderno), do que em salvaguardar estátuas coloniais.

Palavras-chave: Patrimônio. Espaço público. Estátuas. Racismo.

As estátuas, efígies e monumentos coloniais desempenham precisamente a função de armadilhas (Mbembe, 2014, 216)

Este artigo sintetiza ideias apresentada na palestra que proferi, em agosto de 2019, na abertura do IV Seminário de Educação Patrimonial, parte da XII Semana do Patrimônio Cultural de Pernambuco, promovida pela Secretaria de Cultura e pela Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco - Fundarpe, realizado no Memorial da Medicina (Recife). Naquela ocasião debati junto a setenta professores/as da rede pública de ensino a relação entre educação patrimonial e desobediência e epistêmica (MIGNOLO, 2008). Em 2020, porém, o movimento da derrubada das estátuas em espaços públicos acresce mais questões ao tema, o que me anima a elaborar, um ano depois, algumas reflexões.

1 Professor do Departamento de Antropologia e Museologia (DAM) da Universidade Federal de Pernambuco. Professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia. Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ/IFCS).

Em meio aos protestos em decorrência da morte de George Floyd - homem negro violentamente assassinado no dia 25 de maio de 2020, por um policial branco de Minneapolis (EUA) - encampada pela mobilização política antirracista “Black Lives Matter”, intensificou-se o movimento da derrubada de estátuas que rendem homenagens públicas a colonizadores, personagens racistas e criminosos envolvidos com a escravidão das populações negras e indígenas e que ocupam o espaço público de grandes cidades do mundo. Tal movimento é o ponto de partida da discussão deste ensaio, entendendo que, seguindo Jeudy (2003, p. 76), a questão patrimonial é “um problema de transmissão do sentido” e que esse problema está na gestão dos repertórios imagéticos e discursivos do patrimônio cultural legitimado. Quero aqui, então, discutir uma ideia de patrimônio e educação patrimonial que atente para os sentidos transmitidos pelos bens selecionados, pensando especialmente nos sentidos relacionados com a precarização da vida de grupos historicamente oprimidos, alijados do “espaço de aparecimento”, violentados, silenciados e mortos, tais quais as populações negras e indígenas. Para esse esforço, reconheço-me fortemente inspirado nas chaves conceituais de Judith Butler (2019, 2015) sobre a precarização da vida de determinados grupos sociais, e na produção de vidas matáveis e não passíveis de luto. Também ligado às críticas ao jogo de poder constitutivas da “maquinaria patrimonial” (JEUDY, 2005) 2 e do “dever de memória” (HUYSSEN, 2000; 2004) 3 , fundamentados no pensamento colonial que forja nossa experiência social. Defendo que a maquinaria patrimonial no exercício de seu dever de memória colabora com a precarização da vida das populações negras e povos indígenas, e por isso a questão patrimonial deve ser tratada a luz das ideias de desobediência, produção de cidadania e enfrentamento à produção de vidas precárias (BUTLER, 2019). Comecei a palestra, em agosto de 2019, dizendo que a minha fala não seria uma celebração ao patrimônio, tentando, de antemão, não gerar expectativas naqueles que esperam defesas entusiasmadas com os rumos da discussão sobre patrimônio cultural ou acerca da eficiência das políticas públicas

2 Maquinaria patrimonial, nos termos de Jeudy (2005), grosso modo corresponde ao conjunto de atores envolvidos com o patrimônio (em suas hierarquias simbólicas e disputas); as operações tais como conceituação, definição, seleção, patrimonialização, difusão, preservação e salvaguarda; a gerência e os discursos de bens legitimados como tal.

3 Sobre a emergência da memória como uma das preocupações culturais e políticas centrais das sociedades ocidentais, ver mais especificamente Huyssen (2000 e 2014) no que ele chama de “excesso de memória”.

de patrimonialização 4 . Neste ensaio continuarei na mesma perspectiva crítica à gestão da representatividade patrimonial e do controle dos discursos da esfera pública por meio dos patrimônios chancelados pelo Estado. Com a lucidez que lhe é peculiar, Achile Mbembe (2014) afirma que as estátuas coloniais desempenham a função de armadilhas. Nesses termos, há séculos estamos a elas presos, e agora tais armadilhas estão em processo de desarticulação, sendo desarmadas por meio da exposição pública do seu perigo. Em Recife-PE algumas armadilhas ainda aguardam intervenções. A capital pernambucana detém estátuas racista que relembram o tempo passado, de opressão e violência e o tempo presente, de precarização e morte. Ao invés de celebradas devem servir de exemplo paradigmático da relação dos tempos que se cruzam, pois, segundo Mbembe (2014: p. 218): “Não existe nenhuma estátua sem essa fusão de objetividade, subjetividade e moralidade. Aliás, todas as estátuas coloniais remetem para uma maneira de relembrar o tempo”.

O BARÃO DE RIO BRANCO EM RECIFE E O PENSAMENTO RACISTA DE “FIGURAS ILUSTRES”

Duas estátuas ocupam a famosa Praça do Marco Zero no centro do Recife, a do Barão de Rio Branco e a de Naná Vasconcelos. Começo pela exposição da nobreza racista de um barão de bronze, José Maria da Silva Paranhos Junior, que lá está desde 19 de agosto de 1917, obra do artista francês Félix Charpentier. A estátua ocupa um lugar privilegiado, com seus 2,8 metros de altura impulsionados por mais 4 metros de um pedestal de concreto. O Barão de Rio Branco foi um “ilustre” ministro das relações exteriores nos governos dos quatro primeiros presidentes da república brasileira recém-inaugurada, embora fosse monarquista declarado. Essa função lhe rendeu prestígio pois, como conta a história oficial, ele conduziu a consolidação das nossas fronteiras a partir de acordos políticos com os países vizinhos. Reparem, seu pai fora o Visconde de Rio Branco, conhecido por ser o autor da Lei do Ventre Livre. Não se enganem, o senhor Visconde não era um abolicionista, ao contrário, defendeu a referida Lei porque a considerava economicamente menos impactante do que a abolição completa e imediata, por prever

4 Patrimonialização entendida como uma operação que instaura na nossa experiência social o reconhecimento institucional de “signos identitários”, pretensamente marcadores de uma singularidade cultural, a serem conservados, exibidos e transmitidos.

uma extinção gradual da escravidão. Segundo o historiador Luís Cláudio Santos (2018), dedicado à biografia do Barão de Rio Branco, o filho, acreditava na mesma premissa, e embora a escravidão tenha oficialmente acabado em 1888, o nobre, falecido em 1912, entendia que a abolição só deveria ter acontecido depois da morte do último escravo nascido antes da Lei do Ventre Livre, assinada pelo seu pai, o que adiaria o fim da escravidão da população negra para, aproximadamente, o ano de 1950. De acordo com Santos (2019, p. 07), no que concerne as questões acerca das mudanças sociais, ele era “um conservador no sentido estrito do termo: aceitava o mundo tal qual ele entendia que era e não se esforçava, ou considerava desejável, alterações de fundo. Recorde-se a postura, na verdade reacionária, quanto à abolição”. Palavras amenas para (não) chamá-lo de racista. É um acinte o Barão de Rio Branco dividir o espaço público do Marco Zero com a estátua de Naná Vasconcelos, músico negro, grande incentivador da cultura afrobrasileira e da ocupação do espaço público pelas religiões de matriz africana, falecido em 2016. A estátua de Naná, inaugurada em 2017, rende homenagem ao talentoso percussionista, reconhecido mundialmente por suas habilidades técnicas e pela relação com a musicalidade e o pensamento afrocentrados, artista que se dedicou nos últimos quinze anos a organizar/ensaiar/orquestrar a abertura oficial do carnaval da capital pernambucana montando um espetáculo com inúmeros batuqueiros das mais variadas nações de maracatu de baque virado, formando anualmente um conjunto plural de representantes dessa manifestação artístico-cultural registrada como patrimônio imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN. Naná trazia ao palco principal da maior festa do Estado, no momento de maior visibilidade pública, jovens negros/as e pobres das periferias da cidade, apresentando/ expondo/valorizando a arte e a cultura afro-brasileira, evocando a ancestralidade negra do carnaval e do repertório cultural e patrimonial de Pernambuco. Numa cidade como Recife que também tem estátuas de Solano Trindade (no Pátio de São Pedro), Chico Science (na Rua da Moeda) e Zumbi dos Palmares (na Praça do Carmo), falando apenas dos diretamente relacionados com a cultura negra e com a periferia, eu particularmente acredito que é um desperdício de bronze celebrar um racista, colonialista e antidemocrático como o Barão de Rio Branco, além de ser uma afronta aos movimentos sociais de cunho antirracista de Pernambuco. Sua presença no espaço público, entretanto, deve nos fazer pensar nos limites da maquinaria patrimonial, em suas engenharias perversas de definição, celebração e preservação dos elementos (bens, discursos e narrativas) patrimonialisáveis, nos conteúdos políticos norteadores da chancela concedida pelo poder público aos patrimonializados, e, especialmente no

contexto atual no qual discutimos pluralidade étnico-racial e diversidade cultural, nos faz pensar na débil representatividade do patrimônio cultural nacional. Poucos frequentadores e transeuntes do Centro Histórico do Recife sabem quem foi o Barão de Rio Branco, o mesmo não pode ser dito quando falamos de Naná Vasconcelos, creio. Claro, eles se localizam em tempos diferentes e manifestam pensamentos divergentes, não quero compará-los, não faria tal desfeita com o grande Naná, porque não se compara o incomparável, assim aprendemos na Antropologia (INGOLD, 2019). Nem todos os personagens históricos ganham o status de estátua, apenas alguns escolhidos em uma determinada época saem das páginas e dos discursos da história oficial para a imortalidade em bronze, e assim, ganham o espaço público da cidade, tornando-se legítimos patrimônios. Naná Vasconcelos, Solano Trindade, Chico Science e Zumbi dos Palmares viraram estátua não pela concessão patrimonial de um Estado benevolente que resolveu por contra própria, como uma espécie de autoanálise decolonial, elaborar uma revisão histórica e uma justiça patrimonial. Eles viraram estátua devido à luta política de mobilizações sociais e movimentos ligados às questões da população negra cuja agenda, há décadas, discute memória e representatividade da população negra no espaço público. O Barão de Rio Branco, ao contrário, foi colocado em seu pedestal no Centro Histórico do Recife, no começo do século XX, à revelia da população negra, a despeito de ser um racista desejoso da perpetuação da escravidão, por ser um representante da narrativa triunfalista do empreendimento colonial/escravocrata. A educação patrimonial deveria preconizar, defender, demandar com avidez a revisão histórico-patrimonial constante, que engendraria, consequentemente uma revisão dos discursos que circulam na esfera pública por meio do patrimônio cultural. A instalação de estátuas como a do Barão de Rio Branco nas ruas das grandes cidades foi uma ação arbitrária do poder público, isso é um fato. Como desdobramento, sua manutenção por mais de um século é a questão a ser enfrentada, os sentidos transmitidos por ela são questionáveis. A revisão promove, de maneira advertida, a deslegitimação simbólica daquelas imagens, consequentemente a destituição do seu status de patrimônio, e, em seguida, a exigência imperativa de seu interdito no espaço público, sua retirada imediata. Convertidos em estátuas fincadas nas praças, ruas e lugares de grande circulação, as imagens de colonizadores genocidas, políticos racistas, militares torturadores, tornam-se patrimônios a serem preservados. A sociedade ganha, sem necessariamente solicitar, a função de guardiã desse bem, que sem a revisão contínua e crítica, é desprovido de data de validade, acobertado pela supervalorização da

preservação, mesmo que essa sociedade-guardiã já não saiba mais quem o escolheu para ocupar o espaço público, o porquê da escolha, quem era o dito cujo petrificado e como pensava o “ilustre” patrimonializado. Com o passar dos anos a maquinaria patrimonial transforma essas possíveis indagações, e os agentes realizadores de suas operações, em uma massa amorfa, anônima, sem cor, gênero e classe social. Podemos presumir, porém, que quem escolheu transformar figuras como o Barão de Rio Branco em estátuas foram homens, brancos, ricos e heterossexuais, os que detêm o poder desde a instauração do empreendimento colonial. A derrubada das estátuas desnuda as hierarquias simbólicas e as operações de silenciamento e de interdito ao campo do aparecimento, ao espaço e a esfera pública, que atingem os grupos sociais oprimidos. A radicalidade das derrubadas é estratégica, pois partir da ação radical feita em assembleia pública, do ato sem volta da destruição, o poder de gerenciar o conjunto patrimonial é tomado por instantes e a reivindicação finalmente respeitada. Assim, concordo com Butler (2019: p. 65): “algumas vezes não é uma questão de primeiro ter o poder e então ser capaz de agir, algumas vezes é uma questão de agir e na ação se reivindicar o poder de que se necessita”. A maquinaria patrimonial é eficaz em elaborar argumentos de defesa para permanência das imagens desses homens, brancos, colonizadores e racistas, como o Barão de Rio Branco, no espaço público, argumentos envoltos a uma pretensa neutralidade política e ligados à preservação patrimonial. Os defensores de sua manutenção afirmam que essas figuras fazem parte da história brasileira de modo indelével, por isso a “derrubada” seria inútil. Ao meu ver, os manifestantes não estão inseridos numa espécie de batalha contra a história, mas mobilizados pela descolonização do patrimônio, preocupados em reocupar o espaço público com monumentos realmente representativos das memórias das populações negras e indígenas, e consequentemente, povoar a esfera pública de discursos antirracistas. Evitar a derrubada, todavia, atende a uma dupla preservação: a do personagem histórico e a da própria estátua que, no caso do Barão de Rio Branco, em seus 103 anos teria em si um (questionável) valor patrimonial-histórico-artístico. A estátua do Barão e aquelas de outros racistas espalhadas pelo Brasil tornam-se bens a serem salvaguardados, um “bem de todos”, ainda que, contraditoriamente, nem todos se sintam por ela representados, nem dela detentores. Trata-se de um patrimônio que exclui e segrega sendo, portanto, um “antipatrimônio” cuja presença no espaço público acentua as tensões sociais mais do que conjuga as diferenças ou valoriza a diversidade, premissas do patrimônio cultural.

A derrubada parece ser a apropriação mais potente do conceito de patrimônio dos últimos tempos, uma apropriação crítica à maquinaria patrimonial, feita por aqueles que não a operam e que eram até então obrigados a acatar e preservar referências de violência, ícones do genocídio, representantes do pensamento racista que oprime, subjuga e mata até os dias de hoje. Trata-se, então, a derrubada, de um fenômeno que responde à ressignificação do conceito de patrimônio, à tomada de consciência dos jogos de poder dele constitutivos, à crítica ao autoritarismo da chancela patrimonial e à urgência da revisão dos repertórios patrimoniais em suas dimensões imagéticas e discursivas. Derrubar as estátuas de racistas e, quem sabe, substituí-las pelas imagens daqueles que lutaram por uma sociedade mais justa, engajados na luta antirracista, por direitos para as populações oprimidas, apresenta-se como uma revolução patrimonial. Os manifestantes “derrubadores de estátuas” promovem um premente debate sobre os sentidos de preservação tão caros ao campo do patrimônio, questionam paradigmas antigos (ultrapassados e politicamente reprováveis), turvam a ideia de vandalismo, e, de modo advertido fundam marcos históricos. Se a inauguração das estátuas são efemérides lembradas, suas derrubadas também devem ser. Tirá-las do espaço público, destituí-las do espaço privilegiado do aparecimento, não significa tirá-las da história, mas sim, engendrar um processo de produção de re-narrativas, proporcionando outro ponto de vista acerca da experiência de violência de nossa história.

MAIS ALGUNS PONTOS SOBRE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL

A elite política brasileira - homens brancos, cisgenêros e heterossexuais - definiu que a arquitetura colonial e seu traço europeu são naturalmente patrimônios nacionais e ainda quais os personagens do nosso passado escravocrata e genocida de povos indígenas e negros seriam homenageados e celebrados nos espaços públicos. O princípio de reflexividade (JEUDY, 2003), esse gesto coletivo e institucionalizado de olhar-se no espelho, que é um dos motores da lógica patrimonial, produziu efeitos de saturação, tal qual emblematiza o movimento de derrubada das estátuas. A noção de patrimônio, imbricada com a de representatividade, saturou-se, não pode mais ser lida por cima dos marcadores sociais de raça, gênero, sexualidade e classe social, a maquinaria não pode mais impunimente transformar o racismo, por exemplo, em elemento (para não usar a categoria bem cultural) patrimonializável. Se o patrimônio, de fato, nos fizesse pensar a história nacional, a história da

humanidade, ao olhar para imagem do Barão de Rio Branco nos perguntaríamos sobre os Tupinambás, Tabajaras e Caetés, povos que ocupavam o litoral pernambucano, onde hoje está fincado o seu pedestal, e que foram escravizados, assassinados ou expulsos pelos colonizadores. Nos perguntaríamos pelo discurso público acerca da mão-de-obra indígena e negra utilizada de modo escravo para a produção do centro histórico onde repousa a imagem do Barão. Esse patrimônio propositalmente transmite sentidos valorativos, entre eles o do sucesso do imperialismo europeu, e o do lugar subalterno de negros e indígenas no campo do aparecimento do espaço público. Para tecer esses questionamentos e evidenciar esse jogo de valores deve servir a educação patrimonial. Nesses termos, a educação patrimonial deve ser emancipadora. Deve ensinar o pensamento crítico e o olhar descolonial, valorizar e preservar outras culturas, ontologia e epistemologias não-ocidentais dos nossos povos originários, exigir representatividade no espaço público. Educação patrimonial deve ser, fundamentalmente, uma ferramenta para a reivindicação e garantia de direitos. Não adianta patrimonializar os saberes e práticas associados ao modo de fazer bonecas Karajá ou a Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi se não conseguimos garantir com a política pública do patrimônio os direitos dos povos indígenas. Educação patrimonial deve sempre ser convertida em mobilização política, porque a vida desses povos originários historicamente oprimidos e assassinados é o próprio patrimônio da humanidade, o direito à vida. O direito a ter direitos é uma reivindicação altamente patrimonial. Ao invés disso, a maquinaria patrimonial se preocupa demasiadamente em patrimonializar, e se possível musealizar, os saberes e práticas indígenas e quilombolas, por exemplo, para transformá-los em museália ou em arquivo para pesquisa, registrando-os antes que se percam esmagados pelo “trator do desenvolvimento”. Com isso, cumpriria sua missão, construindo uma narrativa de passado histórico multiétnico e salvaguardando-a. Salvar as pessoas deve ser mais importante do que salvar os arquivos. As assembleias públicas nas ruas, como aquelas que deliberam pela derrubada das estátuas, os corpos em aliança disputando os espaços de aparecimento e também vocalizando reivindicações, são contundentes ação patrimoniais, exigem a salvaguarda da vida dos grupos sociais impactados pela precariedade, que significa, nos termos de (Butler, 2019: 40): “a situação politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem as consequências da deterioração das redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferentemente expostas ao dano, à violência e à morte.”. Essa condição de extrema vulnerabilidade, silenciamento e exclusão do espaço público faz parte dos processos de indução da condição precária que envolve

o Estado quando opera na lógica da negligência (ao não promover infraestrutura) ou quando não oferece instrumentos judiciais que proporcionem proteção e reparação suficientes, inclusive reparação patrimonial e o direito a gestão das suas memórias. Nesse sentido, a derrubada das estátuas expande a noção de justiça patrimonial aproximando-a da justiça social, alcançando uma pauta mais ampla que excede a perspectiva preservacionista, e se posta contra o racismo e no enfrentamento à precarização e ao extermínio da população negra. No Brasil a educação patrimonial deve conscientizar a sociedade de que o patrimônio permeia questões do cotidiano de um país desigual, tais como o racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) 5 , o encarceramento em massa de homens, jovens, negros e pobres (BORGES, 2019) 6 , a intolerância religiosa ou racismo religioso (NOGUEIRA, 2020) 7 , e que o descarte ou a destruição de estátuas que representem isso são proposições patrimoniais ainda mais potentes do que a preservação acrítica. A decapitação da estátua de Cristovão Colombo (Boston, EUA), a intervenção com tinta simulando sangue na estátua de Padre Antônio Vieira (Lisboa, Portugal) e a derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston (Bristol, Inglaterra) não

5 Silvio Almeida (2019: p. 15) alerta que o racismo é sempre estrutural, logo, integra e opera na organização econômica e política da sociedade. Para ele o racismo “fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea”. Dessa forma, “as expressões do racismo no cotidiano, seja nas relações interpessoais, seja na dinâmica das instituições, são manifestações de algo mais profundo, que se desenvolve nas entranhas políticas e econômicas da sociedade”. 6 Segundo Juliana Borges, no Brasil, 64% da população prisional é negra, enquanto que esse grupo compõe 53% da população brasileira. Dessa forma, dois em cada três presos no Brasil são negros. Ela analisa a situação: “O sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o racismo, sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por essa estrutura de opressão, mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e, portanto, das desigualdades baseadas na hierarquização racial. Além da privação de liberdade, ser encarcerado significa a negação de uma série de direitos e uma situação de aprofundamento de vulnerabilidades. Tanto o cárcere quanto o pósencarceramento significam a morte social desses indivíduos negros e negras que, dificilmente, por conta do estigma social, terão restituído o seu status, já maculado pela opressão racial em todos os campos da vida, de cidadania ou possibilidade de alcançá-la. Essa é uma das instituições mais fundamentais no processo de genocídio contra a população negra em curso no país”. (Borges, 2019: p. 21) 7 O racismo religioso, segundo Sidnei Nogueira (2020: p. 65), “condena a origem, a existência, a relação entre uma crença e uma origem preta. O racismo não incide somente sobre pretos e pretas praticantes dessas religiões, mas sobre as origens da religião, sobre as práticas, sobre as crenças e sobre os rituais. Trata-se da alteridade condenada à não existência. Uma vez fora dos padrões hegemônicos, um conjunto de práticas culturais, valores civilizatórios e crenças não pode existir; ou pode, desde que a ideia de oposição semântica a uma cultura eleita como padrão, regular e normal seja reiteradamente fortalecida”. A incitação ao ódio e ao racismo religioso em relação às religiões de matrizes africanas, segundo ele, parte de discursos proferidos por atores sociais de poder e visibilidade como pastores, padres, políticos e autoridades políticas e tem lastro histórico na colonização e no pensamento colonial: “Se a agenda moral é apenas uma ilusão que serve a um proselitismo eleitoral, a violência simbólica é real e segue fazendo suas vítimas”. (p.35).

podem ser entendidas pela chave da reacionária da noção de vandalismo. Acredito que sejam melhor interpretadas como movimentos de desobediência epistêmicopatrimonial. Os efeitos da desobediência impactam as bases da educação patrimonial ao promover debates púbicos sobre representação e ocupação do espaço público em sociedades que se pensam pluriétnicas, qualificar a crítica à maquinaria patrimonial e ao dever de memória, e, principalmente, por iluminar reinvindicações de grupos historicamente oprimidos e alijados da esfera pública. Por fim, é preciso dizer que uma (nova) educação patrimonial, leia-se emancipatória e crítica, prescinde da compreensão dos problemas infraestruturais, políticos e econômicos da nossa sociedade, para conectar premissas caras ao campo, como pertencimento, identificação e preservação, com a atenção aos processos de precarização que incidem em determinados grupos sociais. Essa nova educação patrimonial deve enxergar que o Estado faz pessoas viverem sem água, saneamento, luz, segurança, comida, casa, entre outras necessidades básicas, vandaliza a vida das minorias sociais, e classifica de vandalismo derrubar estátuas que condensam os sentidos de um passado violento e de um presente de precarizado. Os sistemas econômicos e políticos implantados pelas expansões imperiais/ coloniais europeias (espanhola, portuguesa, francesa, britânica, holandesa) “derrubaram” culturas, civilizações inteiras, saquearam ontologias, destruíram formas autênticas de ver o mundo. Foram, esses sistemas coloniais, complexos de poder e degradação de vidas humanas dirigidos por figuras como o Barão de Rio Branco. Contudo, culturas indígenas e africanas, embora sabotadas em sua experiência social e exercício de cidadania, resistem desobedientemente. A própria resistência deveria ser a matéria patrimonial do povo brasileiro.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. O Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BORGES, Juliana. Encarceramento em Massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e Política das Ruas: Notas para uma teoria performativa de Assembleia. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2019.

BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2015.

HYUSSEN, Andreas. Seduzidos Pela Memória: Arquiteturas, Monumentos e Mídia. Rio de Janeiro: Ed. Aeroplano, 2000.

HYUSSEN, Andreas. Culturas do Passado-Presente: modernismo, artes visuais, políticas de memória. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto, 2014.

INGOLD, Tim. Antropologia: Para que serve?. Petrópolis: Ed. Vozes, 2019.

JEUDY, Henri-Pierre. Maquinaria Patrimonial. [Entrevista concedida a Paola Beresntein Jacques]. Revista de Arquitetura e Urbanismo (UFBA), Salvador, v. 6, n. 1, p. 74 - 79, 2003.

JEUDY, Henri-Pierre. O Espelho das Cidades. Rio de Janeiro, Ed. Casa da Palavra. 2005.

MBEMBE, Achile. Crítica da Razão Negra. Lisboa: Ed. Antígonas, 2014.

MIGNOLO, Walter. Desobediência epistêmica: a opção descolonial e o significado de identidade em política. Cadernos de Letras da UFF - Dossiê: Literatura, língua e identidade, n. 34, p. 287-324, 2008.

NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância Religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020.

SANTOS, Luis Cláudio Villafañe G. Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco: os comentários do autor. Meridiano 47 - Journal of Global Studies, v. 20, 8 ago. 2019.

SANTOS, Luís Cláudio Villafañe G. Juca Paranhos, O Barão do Rio Branco. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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