25 minute read
SÃO GESTOS QUE EDUCAM MAIS QUE CARTILHAS” EXPERIÊNCIAS EM PRÁTICAS EDUCATIVAS E SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO NO CENTRO DE CAPOEIRA SÃO SALOMÃO
by Cultura.PE
“SÃO GESTOS QUE EDUCAM MAIS QUE CARTILHAS” EXPERIÊNCIAS EM PRÁTICAS EDUCATIVAS E SALVAGUARDA DO PATRIMÔNIO NO CENTRO DE CAPOEIRA SÃO SALOMÃO
Izabel Cristina de Araújo Cordeiro 1
Advertisement
Ricardo Dias de Sousa Pires 2
RESUMO
O presente artigo levanta considerações sobre patrimônio imaterial, práticas educativas e ações de salvaguarda. Contextualiza a importância das interlocuções com o campo da educação popular, para exaltação e manutenção dos saberes e fazeres, sujeitos sociais e locais onde se vivenciam os bens de natureza imaterial. Apresenta duas experiências de salvaguarda da capoeira realizadas pelos Projetos Caxinguelês Jovem e Patrimônio, Cultura e Cidadania, com jovens, mestres e mestras no Centro de Capoeira São Salomão, através de ações socioeducativas, realizadas pelo convênio com o Funcultura.
Palavras-chave: Capoeira. Educação Popular. Patrimônio Imaterial.
INTRODUÇÃO
As palavras da frase que tomamos de empréstimo de Miguel Arroyo, escrita no Prefácio do livro Pedagogia do Movimento Sem Terra, de Roseli Caldart, são frequentes nos dizeres das pessoas mais velhas, ao se referirem ao aprendizado pelo exemplo. Na Capoeira os mestres e as mestras nos ensinam pelas palavras (oralidade), mas também pelo não dito, pelos gestos, pelo comportamento sutil, pelo seu modo de ser e estar no mundo. Mestre Paulo dos Anjos, grande referência de mestre para nós capoeiristas do Centro de Capoeira São Salomão, sempre falou para tomarmos como exemplo tudo que ele fazia. Para nós da Capoeira a educação presente nos exemplos, nunca esteve somente ligada a instituição escola. Em nossa formação muito do que aprendemos
1 Mestra de Capoeira do Centro de Capoeira São Salomão, Professora Adjunta da ESEF/UPE. 2 Mestre de Capoeira do Centro de Capoeira São Salomão, Licenciado em Educação Física pela ESEF/UPE.
sobre nós mesmos, nossa comunidade e nosso país, nem sempre estiveram ligados às experiências das salas de aula. Educar sempre teve um sentido familiar amplo e coletivo, um processo contínuo de se socializar em nossa cultura, a partir do lugar que ocupamos nela. Concordamos com Paulo Freire em suas palavras veiculadas na obra Pedagogia do Oprimido (2005), quando afirma que “O conhecimento emerge apenas através da invenção e da reinvenção, através da inquietante, impaciente, contínua e esperançosa investigação que os seres humanos buscam no mundo, com o mundo e uns com os outros”. É essa nossa busca por ser e estar no mundo, tratada por Freire que provoca a criação da cultura e seus conteúdos expressos nas linguagens, técnicas, crenças, valores, costumes. Uma busca que não cessa e cria “mundos” pelos quais trilhamos. O documento do Ministério da Educação, Marco de Referência da Educação Popular para as Políticas Públicas (2014, s/p) apresenta um interessante relato ao afirmar que
A Educação Popular tem um longo percurso no Brasil, a partir de um conjunto de práticas e experiências que se forjaram junto às classes populares, no chão das fábricas, em sindicatos, nas comunidades de base e igrejas, nas universidades, no campo, na cidade e na floresta, com os mais diferentes grupos, os trabalhadores, especialmente os em situação de pobreza, excluídos de seus direitos básicos como também em experiências que se realizam no âmbito da educação formal e da institucionalidade de governos municipais, estaduais e federal.
É no campo da educação popular, ampla, descentrada da instituição escola, alargada nas experiências vividas nos espaços comunitários, como aldeias, terreiros de candomblé, de maracatu, coco, ciranda e nos centros de capoeira, que permanece vivo, muitos saberes e fazeres que hoje têm sido reconhecidos como bens de natureza imaterial, os quais são apreendidos principalmente nos exemplos, nos gestos de seus detentores, mestres e mestras. Pernambuco possui muitos bens imateriais que estão em processo de patrimonialização e outros que já foram patrimonializados, como: a Feira de Caruaru, o Frevo, a Capoeira (Roda de Capoeira e Ofício dos Mestres), Maracatus Nação, Maracatus de Baque Solto, Cavalo Marino, Teatro de Mamulengos e Caboclinho. Jacira França e Marcelo Souza organizaram o livro Patrimônio Cultural Imaterial de Pernambuco (2018), que apresenta através dos escritos de pesquisadores e pesquisadoras, esses
patrimônios imateriais do estado já patrimonializados, informando sobre a pesquisa com as comunidades produtoras e mantenedoras de cada tradição, seu processo de patrimonialização e os desafios para a salvaguarda desses patrimônios. Para nós capoeiristas, um dos desafios para a salvaguarda dos patrimônios imateriais, em especial a capoeira é a criação e ou manutenção de ações educativas que tenham como foco o reconhecimento, respeito e valorização de seus detentores, em seus saberes e fazeres. Esse é inclusive um tema recorrente nos chamados comitês de salvaguarda da capoeira ao longo do país. Ter a prática da capoeira nas escolas públicas, por exemplo, não só como tema das disciplinas curriculares, mas como ação, desenvolvida pelos capoeiristas, é uma das lutas que se coloca hoje. Ainda mais quando a lei 12288 de 20/07/2010, estabelece no Estatuto de Igualdade Racial e define que
Art. 22. A capoeira é reconhecida como desporto de criação nacional, nos termos do art. 217 da Constituição Federal. § 1o A atividade de capoeirista será reconhecida em todas as modalidades em que a capoeira se manifesta, seja como esporte, luta, dança ou música, sendo livre o exercício em todo o território nacional. § 2o É facultado o ensino da capoeira nas instituições públicas e privadas pelos capoeiristas e mestres tradicionais, pública e formalmente reconhecidos.
A educação patrimonial para nós passa pelo entendimento de que se educa em vários espaços, com vários conteúdos, nos quais a ideia de sujeitos educativos também se amplia, podendo ser inclusive, um movimento social ou uma expressão cultural. Regina Caldart (2012), por exemplo pensa que: “Se o trabalho é educativo, então é possível pensar que o sujeito educativo, ou a figura do educador não precisa ser, necessariamente uma pessoa, e muito menos estar na escola ou em outra instituição...” Educar portanto, pode acontecer em qualquer espaço, sobretudo, naqueles em que se estabeleçam relações educativas de ensino e aprendizagem de modos de ser e estar no mundo. Entretanto, acreditamos que para uma educação patrimonial se efetivar é necessária uma imersão nesse campo, como diz Glória Moura ao estudar as festas quilombolas, não é possível compreendê-las sem vivenciá-las. Para a autora o modo de ser no mundo e de educar nas culturas negras perpassa por “...conhecer-lhe as festas, observar o conteúdo musical entoado nos rituais, os gestos dos corpos dançantes e as
vestes, instrumentos utilizados, a religiosidade, os costumes” (MOURA, 2004, p.94). Assim também é educar e educar-se na capoeira e pela capoeira. É preciso estar presente nesse meio em toda inteireza, sendo partícipe da sua comunidade de aprendizagens. Observamos por exemplo, que em todos os lugares do mundo em que a capoeira se faz presente, por mais que sejam múltiplas suas práticas, eles são sempre ambientes em que se veiculam e se transformam conteúdos e formas de se cultivar a vida comunitária, ancoradas nas heranças recebidas pelos mestres e mestras dessa arte. A diversidade, elasticidade e resistência da capoeira, frente as tantas formas de perseguição sofrida historicamente por ela e seus detentores, deu uma visibilidade inegável a ela como modo de se fazer no mundo, que a levou a ser reconhecida como um patrimônio. Em 2008, a Roda de Capoeira e o Ofício dos Mestres, foram reconhecidos pelo Ministério da Cultura como patrimônios imateriais do Brasil. Depois de pesquisados e inventariados foram registrados no Livro das Formas de Expressão, a Roda de Capoeira e no Livro dos Saberes, Ofício dos Mestres. Em novembro de 2014 foi a vez da UNESCO reconhecer a Roda de Capoeira como Patrimônio da Humanidade. Quando estudamos sobre o tema patrimônio, observamos que sua historiografia, nos dois últimos séculos, esteve sedimentada em dois pilares: um na compreensão da herança moral universalmente partilhada; e outro no movimento por conservação. (POULOT, 2009). A capoeira, curiosamente, não se situa completamente em nenhuma dessas perspectivas historiográficas, uma vez que a herança que ela carrega (cultura negra), mesmo que partilhada onde se instala, nem sempre é aceita como tal, precisando muitas vezes se transmutar, negociar com o local e as pessoas que a buscam, precisa gingar no dizer capoeirístico. Ao mesmo tempo em que sua prática está longe de ter sua existência ameaçada, pois cada vez mais está visível o crescimento da capoeira em todos os continentes. Contudo como diz Regina Abreu e Mario Chagas vivemos o paradoxo moderno, que é de ao mesmo tempo em que estamos numa era fugaz, do instante, do descartável, a todo momento nos é colocado como tarefa: guardar, colecionar e lembrar.
Nunca se colecionou tanto, nunca se arquivou tanto, nunca tantos grupos se inquietaram tanto com temas referentes a memória, patrimônio e museus. Paradoxalmente, os gestos de guardar, colecionar, organizar, lembrar ou invocar antigas tradições vêm convivendo com a era do descartável, da informação sempre nova, do culto ao ideal de juventude. (ABREU e CHAGAS, 2009, p.15)
Foi diante dessa relação paradoxal presente no mundo moderno que surgem as políticas patrimoniais. No Brasil, em particular, as preocupações patrimoniais se construíram há muito tempo, mas com relação ao patrimônio de natureza imaterial, ficaram mais evidentes a partir da Constituição Federal de 1988, em seu artigo 216 e pelo Decreto 3551 de 4/08/2000.
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. § 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. Decreto 3551 de 4/8/2000, que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências.
Nesse ínterim surge a preocupação de diferenciar o trato dos patrimônios materiais, dos imateriais, que para José Reginaldo Gonçalves sua diferença está em “... registrar suas práticas e representações acompanhando as mesmas e observando suas permanências e mudanças” (GONÇALVES, 2009, p.28). Foi nessa perspectiva que a capoeira foi patrimonializada e têm sido compreendidas as políticas de sua salvaguarda.
Mesmo sabendo que todo registro de um bem é fruto de constantes disputas de narrativas, do Estado e de seus detentores e detentoras, observamos que a partir da patrimonialização da capoeira se abriram frentes para pensar e executar políticas para sua salvaguarda. Essas políticas ganharam fôlego nas gestões dos governos populares recentes no Brasil, (infelizmente até 2015), principalmente através de editais públicos de financiamento com linhas para patrimônio. Esses editais contribuíram para alavancar espaços de capoeira e trabalhos de mestres e mestras pelo Brasil, contudo, pela sua burocratização, principalmente para a prestação de contas, também deixaram muita gente de fora. Essa é uma das críticas mais recorrentes, feitas aos programas de salvaguarda dos patrimônios. Pensando criticamente nessas situações, compreendemos uma política patrimonial significativa, quando seus detentores e detentoras podem se posicionar frente as ações de salvaguarda e defini-las apresentando encaminhamentos para sua condução e sua construção como espaço de educação. No caso da capoeira pensamos que
O processo de socialização na e pela capoeira pode se dá de diferentes formas. Seus conteúdos diversos e multifacetados permitem construir múltiplas possibilidades de se educar nesse meio. As histórias, os gestos, a musicalidade e a ritualidade da capoeira são ao mesmo tempo conteúdos e maneiras de educar. São referências para se estabelecer experiências educativas ligadas a uma herança cultural. (CORDEIRO, 2016, p.143)
É nesse sentido que neste escrito vamos compartilhar duas experiências educativas desenvolvidas no Centro de Capoeira São Salomão, que foram desenvolvidos a partir de políticas públicas de salvaguarda desse patrimônio. O Centro de Capoeira São Salomão é uma entidade cultural sem fins lucrativos e foi fundada em 28 de junho de 1997, tendo na época sua sede na Galeria Joana D’arc, no bairro do Pina. Sua missão prevista em Estatuto é
Pesquisar, difundir, ensinar e preservar a capoeira como um grande legado cultural do povo brasileiro, utilizando essa arte como estratégia de desenvolvimento pessoal e social. Salvaguardar e incentivar a capoeira, seus mestres e mestras nas esferas municipais, estaduais, nacional e internacional.
Por isso no contato com a comunidade do Bode, no bairro do Pina, o centro de Capoeira São Salomão desenvolveu várias ações socioeducativas com crianças e adolescentes através do Projeto Caxinguelês, o que levou a instituição a ser reconhecida pelo Ministério da Cultura em 2008, como Ponto de Cultura, tendo recebido também em 2008 e em 2010, o Prêmio de Pontinho de Cultura por fazer cumprir em suas atividades o previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Na ideia de atender também ao público jovens surge em 2012 o Projeto Caxinguelês Jovem que foi submetido e aprovado no edital de financiamento da cultura (Funcultura), na linha de patrimônio, implementado pela FUNDARPE. O Projeto se desenvolveu com sucesso no Pina e se ampliou para outras comunidades (Coque, Brasília Teimosa e Várzea, em Recife e Nova Divineia, em Jaboatão dos Guararapes) com a mudança da sede do Centro de Capoeira São Salomão do Pina para o bairro da Várzea. Nesse bairro as ações socioculturais desenvolvida pelo Caxinguelês Jovem reconhecidas pela comunidade e premiadas nacionalmente pelo IPHAN, ampliaram-se e nasceu delas a ideia prevista no Projeto Patrimônio Cultura e Cidadania, que foi submetido e aprovado, no Funcultura em 2017.
O PROJETO CAXINGUELÊS JOVEM
O Projeto Caxinguelês Jovem foi desenvolvido pelo Centro de Capoeira São Salomão com objetivo de assegurar, com o implemento de ações socioeducativas realizadas durante um ano, a transmissão dos saberes e fazeres tradicionais da
capoeira através de seus mestres e mestras à oitenta jovens da comunidade do Bode, no Pina, na faixa etária entre 14 e 25 anos. Foi realizado por meio de oficinas/vivências, rodas de capoeira, encontros de Capoeira Angola e Regional, festa de batizado, celebração de encerramento com exposição de fotos e história de vida de oito Mestres de Pernambuco. Nessas ações a relação mestres e discípulos tornou possível pela convivência a transmissão da capoeira, salvaguardando seus conhecimentos e seus sujeitos sociais, como detentores e produtores desse patrimônio, num ambiente próprio de sua prática. Empoderar ações nestes espaços é uma necessidade que se faz urgente, uma vez que, apesar da capoeira ter sido reconhecida e registrada como Patrimônio Cultural do Brasil desde 2008, ainda carece de ter locais próprios que fomentem a sua vivência, facilitando seu desenvolvimento, sua promoção e sua salvaguarda por parte da sociedade. Essa carência limita muitas vezes seu acesso, sua democratização e sua difusão como instrumento cultural de cunho educativo e de inclusão social. O cotidiano vivenciado no Projeto Caxinguelês Jovem permitiu uma aproximação entre mestres e aprendizes da capoeira, estabelecendo relações com seus saberes e fazeres, que oportunizaram não só sua vivência como prática de lazer, mas também como espaço de desenvolvimento de habilidades e competências para o enfrentamento das adversidades; colaborando com o processo de se fazer no mundo a partir de seu lugar. Os partícipes do Projeto se tornaram além de aprendizes, prováveis multiplicadores dessas tradições e dos saberes dos mestres envolvidos. Na metodologia do Projeto dividimos os jovens em turmas, que tiveram uma carga horária de cinco horas semanais, divididas em três encontros, sendo dois das oficinas/vivências, com duração de uma hora e meia cada e um de roda com duração de duas horas. Uma vez por mês, aos domingos, durante oito meses, os jovens tiveram um dia de vivência com um mestre da capoeira de Pernambuco, com duração de seis horas. Essas vivências se dividiram em dois blocos de quatro meses, nas quais os jovens tiveram a oportunidade de identificar e reconhecer os saberes e fazeres da capoeira, através da experiência específica dos diferentes mestres. Cada grupo de vinte alunos, ficou responsável pelo registro das histórias de vida de dois dos mestres convidados para as vivências. Esse registro resultou no trabalho organizado para culminância do Projeto, apresentado com exposição de fotos e das histórias de vida. Os intercâmbios mais amplos com a comunidade capoeirística aconteceram através de dois encontros: um de Capoeira Angola e outro de Capoeira Regional.
Neles tivemos a presença de importantes mestres dessas vertentes de capoeira de outros estados da federação, que possibilitaram a ampliação das referências construídas nas aulas e nas vivências com os mestres de Pernambuco e a troca de experiências com outros capoeiristas que cultivam a prática dessas vertentes de capoeira em nosso estado. A culminância do projeto aconteceu com a festa do batizado dos jovens e a celebração de encerramento, no espaço do Centro de Capoeira São Salomão na Várzea. Na festa de batizado os jovens do Projeto Caxinguelês Jovem foram apresentados oficialmente a comunidade da capoeira, na presença de todos os mestres que participaram das ações do projeto, assim como dos seus familiares e de sua comunidade. Na celebração de encerramento foi apresentada pelos jovens as imagens captadas do dia a dia e as histórias de vida dos oito mestres envolvidos no Projeto. O trabalho desenvolvido por eles/elas e sistematizado pela equipe pedagógica, resultou na exposição fotográfica: “Menino quem foi seu Mestre” Histórias e imagens de mestres da Capoeira de Pernambuco, que teve textos coletivos dos jovens organizados e sistematizados pela Professora Izabel Cordeiro (Mestra Bel), fotografias de Roberta Guimarães e curadoria de Joana D’arc Lima. Na expressão verbal e corporal dos jovens participantes do Projeto foi possível observar a recriação de sentimentos de pertença àqueles lugares da prática da capoeira e a responsabilidade com tudo que foi apreendido, através da convivência com os mestres. Pelo Projeto os jovens puderam reestabelecer elos com a ancestralidade desse patrimônio, ressignificando memórias e histórias de vida. Em 2015 o Projeto Caxinguelês Jovem concorreu ao Prêmio Boas Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, promovido pelo IPHAN e foi premiado, tendo sido colocado em 8º lugar nacional e o 1º lugar entre as iniciativas na linguagem capoeira.
PROJETO PATRIMÔNIO CULTURA E CIDADANIA
O Projeto Patrimônio Cultura e Cidadania aconteceu entre agosto de 2018 e novembro de 2019 no Centro de Capoeira São Salomão, no bairro da Várzea. Foi aprovado pelo Funcultura, sendo direcionado para um público de trinta jovem em situação de vulnerabilidade social. Seu principal objetivo foi democratizar nas comunidades vulneráveis do bairro da Várzea, o acesso a capoeira e salvaguardar seus saberes e fazeres, apresentado por seus mestres e mestras, através de ações socioeducativas: aulas/oficinas, rodas de capoeira, encontros e celebrações.
As aulas iniciaram em setembro, quando os alunos e alunas foram distribuídos nos diversos horários oferecidos no Centro de Capoeira São Salomão. Essa estratégia pedagógica foi assumida pela equipe, com o intuito de promover o aprendizado da Capoeira, usando a metodologia da ancestralidade como princípio, o mais velho acolhe e ensina o mais novo, preservando elos importantes da Capoeira, vividos como uma herança passada de geração a geração. Além disso integrou todos recém-chegados à comunidade, fortalecendo o sentimento de pertença.
Nas aulas/oficinas os alunos e alunas tiveram a presença permanente do
Mestre mais antigo da casa e da monitora selecionada para o trabalho, com a colaboração dos outros professores e professoras do Centro, e colegas de turma. Houve além das aulas sistemáticas e rodas semanais, os encontros temáticos, parte da programação do Centro, quando os alunos e alunas tomaram contato com Mestres, Mestras, e capoeiristas de outros grupos e outros estados da nação, ampliando seus conhecimentos e a rede de convivência na comunidade da Capoeira. Assim aconteceu no Encontro de Capoeira Angola, no Festival Infantil de Capoeira, no Encontro de Capoeira Regional, na Festa do Batizado e Troca de Graduações e no Encontro Feminino de Capoeira. Em todos encontros e celebrações a exaltação dos saberes e fazeres da capoeira foram cultuados e cultivados, numa perspectiva crítica, e puderam também ser socializados aos familiares e amigos dos participantes e a comunidade em geral, pois esses momentos eram abertos ao público.
A programação dos Encontros com vivências dos gestos, musicalidade e rituais da Capoeira, e as rodas de diálogo, com foco nas histórias de vida e experiências dos mestres e mestras, levou os jovens a refletirem sobre a cultura como espaço de acolhimento e de sociabilidades diversas. Em cada encontro também foi possível discutir questões específicas como gênero e raça que perpassam a prática da capoeira e a vida dos capoeiristas. Em todos os momentos do Projeto, mas especialmente nesses Encontros que aconteciam em dois ou três dias, os jovens e as jovens tiveram um contato mais próximo com esses detentores de nosso patrimônio, pois toda a programação era organizada para privilegiar a convivência, exaltando a ancestralidade como princípio e a oralidade como metodologia de transmissão. O contato mais efetivo com os mestres e mestras da capoeira de Pernambuco e do Brasil possibilitou aos jovens e as jovens das comunidades da Várzea reconhecer as potências da capoeira como educação, trabalho, fonte de saúde e lazer crítico e criativo. Foi apresentado para os jovens e as jovens outras formas de sociabilidades. Pelas ações implementadas eles e elas puderam conhecer a história do Brasil, a partir da capoeira e se reconhecerem como partícipes dessa história, de uma história viva. O Projeto Patrimônio, Cultura e Cidadania no Centro de Capoeira São Salomão preencheu uma lacuna constatada pelos fazedores da cultura popular, que é da falta de interesse e afastamento dos jovens dessas práticas, frente aos apelos da indústria cultural e principalmente, pela experiência vividas por eles e elas de uma realidade virtual através da internet. Os alunos e alunas do Projeto tiveram também a oportunidade de participar de outras atividades desenvolvidas no São Salomão, como foi o caso do Cine Club - Cine Mandinga, o qual se propõe a exibir filmes da cena pernambucana, com foco na cultura popular, em especial com temáticas de raça, gênero e suas relações. Também participaram dos festivais de cultura e oficinas de teatro, dança e música. Foi possível visualizar nesses espaços, através da atitude corporal dos jovens, uma nova forma de encarar a vida, empoderados e empoderadas para falar e se expressar nas linguagens que tiveram acesso. Uma conquista significativa que merece destaque, foi a superação dos preconceitos religiosos dos alunos e alunas e suas famílias, para com a capoeira e outras expressões populares que cultivamos em nosso cotidiano; haja vista ser essa, hoje, uma barreira para a vivência das práticas populares nas comunidades desprivilegiadas social e economicamente.
Seguem algumas falas dos e das participantes, apresentadas na festa de encerramento do Projeto que exemplificam suas conquistas individuais:
Eu sou Cunhatã, filha dessa terra, descendente dos povos originários. Eu não sabia de toda força que tenho aqui dentro, da força dos meus ancestrais no sangue que corre em minhas veias. Mas eu encontrei a capoeira. E com ela a coragem pra ser quem eu sou; porque aqui eu sou o ser melhor que eu posso ser. (Camila da Silva) Eu sou Flor, Flor do Oriente. Sempre tive medo. Medo de errar, medo de cair, medo de me machucar. Aqui eu encontrei um chão e nele posso me apoiar. (Assíria Germano) Me chamo Biriba, por onde eu andava a timidez sempre teve a meu lado. Mas tudo isso mudou, quando eu encontrei a capoeira. (Jeferson da Silva) Oi, sou Tigresa, comecei a capoeira há pouco tempo, mas descobri com ela que posso fazer coisas maravilhosas com meu corpo. Até fiquei surpresa com a beleza em mim. (Larissa Campina da Silva) Olá, meu nome é Sapeca. Eu ando pelas ruas e vejo portas fechadas, eu ando pelas ruas e vejo portas fechadas. Mas na capoeira há sempre uma porta aberta. (Natasha Guimarães)
A meta inicial era matricular trinta jovens, mas optamos por atender a mais jovens, tendo sido inscritos 66 dos quais quarenta 40 frequentaram efetivamente, sendo 14 mulheres e 26 homens. Ao final do Projeto todos e todas foram iniciados na capoeira, num cerimonial próprio dessa arte, na presença de seus mestres e mestras, das famílias e da comunidade da qual fazem parte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas experiências com os Projetos supracitados foi possível testemunhar e documentar a força da capoeira como educação concreta, significativa. Uma educação que salvaguarda sujeitos, saberes, fazeres e lugares de memórias e histórias do povo brasileiro. Mas do que somente educar, observamos que a vinculação à capoeira colaborou para fortalecer nos jovens e nas jovens, atitudes inconformistas, possibilitando viver concretamente o sentido inacabado do ser humano, nas experiências dentro e fora da Roda de Capoeira. Uma educação para a vida, uma preparação para a luta cotidiana da vida. Compreendemos que
...em todos os momentos de sua trajetória histórica, na vivência de sua cultura, os capoeiristas aprenderam a resistir diante das
hostilidades a que foram submetidos e construíram para esse enfrentamento, táticas de sobrevivência e novas vivências. São essas memórias compartilhadas, presentes nos gestos, nas histórias contadas e cantadas e nos rituais comungados pela comunidade capoeirística, que se consolidaram em saberes e fazeres e maneiras próprias de aprender e se situar no mundo. Esses são os patrimônios da capoeira, tradições passadas como herança às novas gerações. (CORDEIRO, 2016, p.146)
Contudo, entendemos que apesar do reconhecimento da capoeira como patrimônio, a luta dos capoeiristas e sua cultura por legitimidade social, ainda enfrentará muitas e diversas batalhas. Principalmente aquelas para o reconhecimento da ancestralidade como princípio e a oralidade como forma de se ensinar e aprender, porque
...respeitar esse princípio significa reconhecer que há um passado comum, significa cultivar e cultuar a capoeira como herança. E ainda mais, assumir que a oralidade é a principal forma de transmissão de seus saberes e fazeres, é aceitar que se aprende capoeira com o tempo, e na difícil e imprescindível arte de ouvir. É ouvindo as histórias e participando delas, que os capoeiristas reescrevem seus horizontes de expectativas individuais nessa coletividade. (Op Cit, p.151)
Portanto o jeito de ser e aprender a ser no Centro de Capoeira São Salomão trabalha com a educação pelo exemplo, dos mais velhos e mais velhas para os e as mais jovens, assim como, dos e das mais jovens, para os mais velhos e as mais velhas. É vivendo uma comunidade de aprendizagem, na qual todos e todas são importantes, que zelamos pelo nosso patrimônio. Nesse sentido através de ações organizadas em projetos permanentes e pontuais mantemos viva a capoeira, salvaguardando suas tradições diversas, seus detentores e detentoras e principalmente vamos nos colocando como lugar efetivo e afetivo para prática desse bem imaterial de Pernambuco, do Brasil e da humanidade. Como Ponto de Cultura de Capoeira, afirmamos em nosso terreiro, em cada história, em cada canto e gesto que nossa brincadeira educa, porque “Brincar é também celebrar, festejar, reunir, ensaiar; é principalmente transmitir um grande conhecimento patrimonial de uma expressão popular que se fortalece nos laços sociais e marcas de identidades.” (LODY, 2013, p.8)
REFERÊNCIAS
ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org).
Memória e Patrimônio. Ensaios
Contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009
ALENCAR, Rívia (Coordenação).
Programa Nacional de Patrimônio Imaterial
Compêndio dos Editais - volume II, 2011 a 2015. Brasília-DF: IPHAN, 2016.
ARROYO, Miguel. Prefácio. In: CALDART, Roseli. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
ASSMANN, Aleida. Espaços de Recordação. Formas e Transformações da Memória Cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
BRASIL.
Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília - DF: Senado Federal, 1988.
CALDART, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
CHOAY, Françoise. Unesp, 2006. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade:
CORDEIRO, Izabel Cristina de Araújo. “Roda de Capoeira é campo de mandinga...”
Experiências dos capoeiristas do Recife para afirmação do jogo da capoeira na
cidade, nos anos de 1980. Tese de Doutorado em História, Universidade Federal de Pernambuco, CFCH, 2016.
FRANÇA, Jacira; SOUZA, Marcelo Renan (Org). Pernambuco. Recife: Fundarpe, 2018.
Patrimônio Cultural Imaterial de
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 42a edição. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
GONÇALVES, José Reginaldo. O patrimônio como categoria de pensamento. In: ABREU, Regina; CHAGAS, Mario (Org). Memória e Patrimônio. Ensaios Contemporâneos. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.
LODY, Raul. Imaginários de um Xangô em Pernambuco. In: GUIMARÃES, Roberta. O Sagrado, a Pessoa e o Orixá. Fotografias. Recife: 2013.
MINISTÉRIO DA CULTURA. Dossiê Iphan 12 Roda de Capoeira e Ofício dos Mestres de Capoeira. Brasília - DF: Iphan, 2014.
MINISTÉRIO DE EDUCAÇÃO. Marco de Referência da Educação Popular para Políticas Públicas. Brasília/DF, 2014
MOURA, Gloria. Festas Quilombolas. In: TEIXEIRA, João Gabriel et all (Org). Patrimônio imaterial, performance cultural e (re) tradicionalização. Brasília: ICS-UNB, 2004.
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Estatuto da Igualdade Racial. Brasília - DF: 20 de julho de 2010.
POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009.
TEIXEIRA, João Gabriel et all. (Org) Patrimônio imaterial, performance cultural e (re) tradicionalização. Brasília: ICS-UNB, 2004.