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05 win it on the pitch entre adeptos pirotecnia 07 ae arelação
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história do movimento organizado de adeptos na bélgica
conversa com 20 ào brinco do baptista
26 memórias da bancada 36 resumo da bancada 48 in fans... we trust Betano? Não! 50 Placard? Um bar de strip!
experiência fora da europa 52 Uma
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evolução do futebol moderno
Berlin 58 Union vs Furth
60 Mafra vs Tondela 62 faz tu mesmo! 64 final da taça de portugal visto da bancada 68 toulouse
72 cultura de adepto 76 ultrÀ 78 balanço da época 3
Editorial2 A temporada acabou e, como todos os anos, há uma história entre os adeptos que se repete, uns choram e outros festejam. É parte do destino ao qual a competição está ligada. Há que aceitar, levantar a cabeça, e seguir em frente. Afinal que seria dos nossos clubes sem a competição? Vamos mais longe, que seria o futebol e muitas outras modalidades sem a competição? Deixamos a resposta para vocês pensarem. Finalmente a empresa B-SAD caiu para uma divisão inferior, mas, felizmente, as suas derrotas não ficaram por aqui. A questão que se prendia em tribunal com o Clube Futebol Os Belenenses finalmente está resolvida e, de agora em diante, está consumado que não existe qualquer relação entre o Belenenses e a B-SAD. Enquanto isso abre-se o mercado de transferências e já podemos assistir a mais uma loucura, desta vez protagonizada pelo PSG com a renovação de Mbappé. Ou será que devemos dizer pelo Qatar Investment Authority? De uma maneira ou outra continua a ser cavado o fosso que separa os clubes ricos dos pobres.
Director J. Lobo
A dicotomia é nossa responsabilidade e tem como pretexto entroncar num pensamento, que nos surgiu, levantando a hipótese de que um dia, de alguma forma, se passe o mesmo que é retratado na série The English Game, onde os clubes da classe operária lutam para conquistar oportunidades iguais. De resto, as bancadas e o futebol continuaram a não surpreender. A Liga reuniu-se com o Ministro da Administração Interna para pedir mais repressão. Nesta temporada tivemos menos 1,2 milhões de adeptos nos estádios e não foi convocado nenhum árbitro português para o Mundial. Preparem-se adeptos, no capítulo negro da repressão em Portugal ainda há muita tinta por correr. Deixamos um até breve para um reencontro que só acontecerá devido à muita resistência desta equipa! Não está fácil sobreviver neste deserto que nos rodeia, onde já nem os oásis da esperança nos iludem. Aproveitem o 11º número da Cultura de Bancada, actualmente a única revista feita de adeptos para adeptos!
Redacção L. Cruz G. Mata J. Sousa
Design S. Frias M. Bondoso
Revisão A. Pereira
J. Rocha Pedro C. S. Peixoto
M. Ribeiro P. Alves
Convidados Martha Gens Brinco do Baptista J. Campos
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Eupremio Scarpa C. Peixoto J. Oliveira
Foi a 18 de Abril de 2021 que foi anunciada a criação da Super Liga. Os 12 clubes mais ricos da Europa, em plena negociação dos novos modelos das Competições Europeias da UEFA, decidiram, entre si, criar uma competição fechada onde só entra quem tem uma espécie de golden ticket. Ou muitos milhões. Dias depois, esta ideia acabou por ser suspensa – foram inúmeras as controvérsias que puderam ser ouvidas por parte de todo o tipo de intervenientes, desde jornalistas, comentadores, dirigentes desportivos… e pelo uníssono dos adeptos, que se manifestaram na rua, fazendo ver aos seus dirigentes que estavam contra esta ideia. Gary Neville, antigo jogador inglês e actual comentador desportivo, foi uma das vozes que se insurgiu com mais emoção contra esta Super Liga – “It’s a criminal act against the fans, simple as that”, “I am disgussed”. “JOKE”! Talvez nós, por cá, não tenhamos chegado a perceber bem o real impacto do que podia ter acontecido, caso esta ideia tivesse ido avante. Estamos a falar de uma decisão motivada por ganância, com total desprezo pelas fundações, história e emoções deste desporto. A ideia da Super Liga é simples: 12 clubes, independentemente das opiniões dos seus associados, decidem criar a sua própria competição, jogando apenas entre si, e convidando apenas quem querem.
Actualmente sabemos que a UEFA, detém uma espécie de monopólio das competições europeias. A Champions League, a Europa League e agora, mais recentemente, a Conference League. Isto acontece porque o modelo do futebol europeu acaba por ser favorecido pela existência de uma única entidade organizadora das competições e, por outro lado, porque não existe propriamente regulamentação europeia sobre o tema. Pode, e deve, o modelo ser questionável, mas é inegável a vantagem da centralização das competições num núcleo de decisão, gestão e organização. A verdade é que, gostemos ou não, tenhamos mais ou menos críticas sobre o sistema actual, temos um modelo desportivo onde a qualificação para as competições europeias é baseada no mérito desportivo das competições domésticas, onde existe fair play financeiro, e distribuição dos lucros, de forma a alimentar as próprias ligas domésticas. Ao invés, uma competição fechada é, por si só, uma ameaça ao modelo de competição internacional que vive desde a década de 50 do século passado, criada pela Taça dos Campeões Europeus. Em termos desde logo ideológicos, a Super Liga é a prova viva da suscetibilidade e fragilidade do ataque às fundações do desporto rei, por investidores predatórios, dirigentes que gerem clubes apenas em função do lucro e que
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são motivados por pura ganância. O futebol é um bem de todos: das pessoas, das famílias, dos amigos, das histórias e da comunidade. O futebol foi construído pelas comunidades e para as suas comunidades. Não nos podemos iludir. A criação de uma competição nestes moldes faz-se em claro aproveitamento da fórmula, que existe, e está criada. Mas é necessário ter esta consciência: transformar o futebol e o sonho das competições europeias numa espécie de Super Bowl, pipocas e a Beyoncé a cantar ao vivo, vai conduzir inevitavelmente à morte do desporto rei, tal como o conhecemos. De um ponto de vista até jurídico, que nunca se negue, uma competição fechada, na qual se escolhem os participantes, é ilegítima e anticompetitiva – Ilegal. Deixa de ser uma competição para ser um clube privado. É a concretização de uma violação de todos os princípios do mérito desportivo. Mais ainda, é uma traição e uma facada a todos os milhares de associados que vivem todos os fins de semana o amor ao seu clube. O futebol precisa de proteção. Talvez durante muitos anos não tenha sido prioritária a intervenção legal a nível europeu nesta matéria, mas está claro que os interesses no mundo do futebol facilmente levam a que o jogo dentro das quatro linhas não seja o único interesse dos seus dirigentes. E, antes que o desastre aconteça, é crucial proteger o futebol e
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os seus adeptos. Neste sentido, a própria Football Supporters Europe coordenou, com 9 cidadãos, a organização de uma Petição de Cidadãos Europeus, para a apresentar à Comissão Europeia de forma a que seja adoptada uma Recomendação e moldura legal que proteja o futebol europeu contra mais ataques ao futebol. Com 1 milhão de assinaturas, esta petição será apreciada pela Comissão. Esta petição tem por base os seguintes princípios: a) Proteção do modelo do futebol na Europa; b) Reconhecimento do valor social do desporto na sociedade europeia; c) Reconhecimento da natureza específica do desporto nas regras de competição da EU; d) Reforço da visão e políticas da UE a longo prazo sobre o futuro e a governação do desporto europeu. O futebol é de quem o ama e vive nele e por ele. Os clubes não são franquias, não são um negócio como o Burguer King, muito menos são a bolsa de valores. O futebol tem de ser visto e protegido pelas instâncias europeias como encorajador da educação, de valores como a igualdade ou diversidade. O futebol tem de ensinar que se ganha, em tudo na vida, com fair play e amor à camisola, e de nenhuma outra forma. Assim, e porque também está nas nossas mãos, convidamos a que se juntem a esta petição e a assinem – Win it on the pitch! Por Martha Gens, Presidente da Associação Portuguesa de Defesa do Adepto
A RELAÇÃO ENTRE ADEPTOS E A PIROTECNIA
A pirotecnia é uma invenção milenar embora a popularização do seu uso, com fins recreativos, remonte apenas à última metade do século XIX. Até aí a pirotecnia recreativa baseavase essencialmente em fogos de artifício que eram lançados em momentos de celebração. Com o passar dos anos este novo ramo vai evoluindo e, com isso, aparecem novos tipos de produtos e a preços mais acessíveis. Acaba por acontecer de uma forma espontânea a disseminação da utilização destes artigos, inclusive nos recintos desportivos de todo o mundo. Este é o ponto de partida para um texto onde tentarei por a nú alguns dos pontos de vista mais marcantes sobre o uso da pirotecnia pelos adeptos. Não sei ao certo quando e onde os adeptos começaram a utilizar tochas fumos. Nas pesquisas que pude fazer apenas constatei que na época de 1946/1947 os adeptos do Nápoles deflagraram aquilo que parecem ser duas tochas, durante uma partida da sua equipa, realizada fora de portas, frente à Roma. Talvez se possa dizer que os habitantes das cidades costeiras tinham uma relação mais próxima de alguns tipos de artigos pirotécnicos que eram usadas pelos pescadores e marinheiros. Com pena minha não posso traçar uma linha cronológica e geográfica que me permita ter algum rigor na interpretação deste tema e por isso cairei no campo da subjectividade. Com o aparecimento do primeiro grupo Ultra italiano, no ano de 1968, os dados estavam lançados para aquele que seria o nascimento de
uma nova subcultura de adeptos. A organização que estes traziam permitia-lhes preparar as partidas com antecedência, dando asas à criatividade e também importando ideias já utilizadas em outros países, embelezando as bancadas com o objectivo de mostrar, e expressando o apoio às suas equipas. A par das bandeiras, das cartolinas, dos plásticos, entre outros, a pirotecnia foi um dos recursos que os adeptos agarraram e foi também, sem margem para dúvida, aquele que gerou mais controvérsia entre os adeptos. O uso deste tipo de artigos está registado em todo o mundo, com especial foco para os países do Sul da América e da Europa, apenas me servi do exemplo italiano para que se entenda a motivação que está por trás do uso de tais engenhos em contexto desportivo. Ao longo dos anos foram vários os tipos artigos pirotécnicos utilizados em contexto de bancada. Começando nas primeiras tochas e fumos, passando para os very-lights e petardos,
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os foguetes e terminando com os strobbes, vulgarmente denominados por piscas. Realço que, dentro deste leque de artigos, uns são mais aceites ou tolerados do que outros, muito por culpa das tragédias associadas à sua utilização. Se as tochas, os fumos e os strobbes, com as cores e a luz que transmitem, têm em si uma beleza apreciada por muitos dos adeptos, os foguetes sinalizadores (conhecidos por very-lights), os foguetes e até os petardos contrastam e são vistos como algo negativo pela grande maioria. Recordemos agora alguns dos casos mais mediáticos que levaram a que os governos de vários países colocassem restrições à utilização de pirotecnia dos recintos desportivos. Em 1979, Vincenzo Paparelli de 33 anos, adepto da Lázio, foi morto por um “foguete” sinalizador lançado por um adepto da Roma. Anos mais tarde, em 1992, Guillem Lazaro um menino espanhol de 13 anos foi morto, atingido no peito por um sinalizador. No ano seguinte, em 1993, morre John Hill de 67 anos ao ser atingido por um sinalizador no
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peito, durante um jogo do País de Gales. Portugal também sentiu o sabor amargo destas tragédias e, no ano de 1996, durante o jogo da final da Taça de Portugal, Rui Mendes de 36 anos perde a vida ao ser atingido por um sinalizador. Mais recentemente, em 2013, o boliviano Kevin Espada de 14 anos é atingido no rosto por um foguete sinalizador lançado por um adepto brasileiro, o seu fim foi igual ao dos anteriores.
Não é, por isto, difícil de entender o preconceito generalizado na sociedade desportiva, associado a todo o tipo de engenhos pirotécnicos e, indepentemente de serem acidentes ou de já nem se usar estes tipo de artigos, alguns adeptos continuam a contribuir para a marginalização deste artigos por continuamente não os usarem na vertente recreativa e cometerem alguns excessos. Aliado a isso, há também a questão das tochas queimarem a uma temperatura muito elevada e os fumos terem vários constituintes tóxicos ou nocivos ao serem inalados, argumentos que são usados por vários governos e instituições europeias. Naturalmente que, com tudo o que disse acima, proibições e restrições foram criadas por todo o mundo e, mesmo em Portugal, a posse ou utilização é vista como um crime que chega para
interditar um adepto e fazê-lo pagar uma multa elevada. Contudo, nem tudo é o que parece! A mesma pirotecnia que é criticada pelos vários agentes desportivos, e também por outros sectores da sociedade, é a mesma que é utilizada por eles em spots publicitários e afins. É a habitual falta de coerência e aquele que nunca viu a Liga, a FPF ou até a PSP a utilizarem estes artigos nas suas promoções que atire a primeira tocha!
A própria Associação Portuguesa de Defesa do Adepto começa a ganhar corpo com uma comissão que é criada para reagir à utilização de vários artigos pirotécnicos por agentes da PSP que se manifestavam em frente ao Parlamento. Ainda se lembram da frase que esteve presente em vários estádios que dizia “Pirotecnia na Assembleia não é crime”? Outra coisa que me faz confusão é a ignorância dos “paineleiros” e pessoas com responsabilidade na comunicação social que chamam very-light a tudo e mais alguma coisa. Esta falta de noção, sobre aquilo de que estão a falar, demonstra um sinal de profunda ignorância ao mesmo tempo que contribui para que o preconceito se adense. Faz-me pensar até que ponto a disseminação da desinformação e fake news, não é corporativismo para comandar a opinião pública. Já viram que todos são especialistas, mas nenhum vive nas bancadas? É a mesma coisa que chamar o “gajo de alfama” para opinar sobre guerra ou geopolítica. Junto a esse sentimento está a incompreensão que tenho quando os orgãos de comunicação social criticam fortemente os adeptos portugueses por
utilizarem pirotecnia e, por outro lado, elogiam o espectáculo pirotécnico dos grupos estrangeiros. Nunca repararam? Então estejam mais atentos! Dito tudo isto, contra as pressões dos vários governos e agentes desportivos, os adeptos de alguns países têm tentado encontrar uma
solução para que os argumentos a favor da utilização destes artigos não esbarrem nos argumentos de quem é contra. Assim, em 2015, o Brøndby (Dinamarca) em cooperação com os seus adeptos, com especialistas e também com outros clubes, criou uma tocha de chama fria e com uma redução de 90% do fumo. No ano seguinte estavam prontos para apresentar e experimentar o novo produto, mas só em finais de 2019 é que foi utilizado pela primeira vez. O produto está aquém daquilo que os adeptos estão habituados e, também por isso, esta solução não agrada a todos mas, parece-me que se um dia os adeptos tiverem razões para deixar de desconfiar ligeiramente das intenções do governo, agentes desportivos e forças de autoridade, talvez esteja aqui um projecto que poderá ser trabalhado de modo a resolver um problema que representa mais de metade das ocorrências, “de violência”, registadas nos recintos desportivos. É importante dizer que, enquanto não houver uma verdadeira mudança na forma como se entende o adepto, os adeptos continuarão a resistir aos esforços repressivos e ditatoriais que também mancham as bancadas, e a pirotecnia continuará a ser vista e sentida como um elemento expressivo dessa resistência! Por J.Lobo
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Desta feita, trazemos à baila resíduos históricos do povo belga e de como se comportou ao longo do tempo no âmbito do espectáculo futebolístico. Desde o século XV que os belgas viveram sob grande instabilidade, fruto de várias guerras e mudanças de nação. A Bélgica já foi pertença das Províncias Unidas, da Áustria, da Espanha, dos Estados Belgas Unidos, da França e dos Países Baixos. A pretensão de independência belga foi consumada em 21 de Julho de 1831. Um exemplo do reflexo das influências externas no país é o facto de não haver uma só língua oficial, sendo que o povo se dividiu em quatro áreas linguísticas: área francófona, área de língua flamenga, área bilíngue de Bruxelas e área de língua alemã. A relação dos belgas com o desporto é peculiar, sendo o Futebol o desporto-rei, embora dividindo, ao mesmo tempo, grande destaque com o Ciclismo e o Tiro ao Alvo. Aliás, o arqueiro mais condecorado da história Olímpica é Hubert Van Innis, belga de natureza. No ano de 1860, em Ghent, homens irlandeses criaram a primeira equipa de Futebol reconhecida naquele território. Vinte anos depois, ingleses que estudavam em Antuérpia fundaram o Antwerp Football and Cricket Club, que ia fazendo alguns jogos contra equipas formadas por marinheiros britânicos que desembarcavam no porto de Antuérpia. O então A.F.C.C. é hoje o clube que conhecemos como Royal Antwerp Football Club, o mais antigo clube belga. Os mais antigos clubes fundados por belgas são o Club Brugge e o Daring Club Brussel, que surgiram através de estudantes de colégios católicos. O ano de 1895 ficou marcado pela fundação da federação de Futebol belga, que acabou por ser uma das fundadoras da F.I.F.A. em 1904. Apesar de ser uma nação que desde cedo contribuiu para o desenvolvimento do Futebol, nunca chegou a ser uma potência desportiva. Talvez por isso também nunca se tenha destacado claramente no que diz respeito ao apoio vindo da bancada. Contudo, a tradição de ir à bola começou cedo e a Bélgica é um dos países com maior percentagem de população a marcar presença nos estádios. Como vamos perceber, o movimento Hooligan foi o que mais adeptos conquistou. Um dos primeiros registos de incidentes dá conta que, após um
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jogo, adeptos do Brugge e do Antwerp lutaram entre si. Tal aconteceu no ano de 1908, e o então presidente da câmara local tentou proibir a realização de partidas de Futebol. Seria um desperdício fazê-lo, como provou a selecção nacional nos Jogos Olímpicos de 1920, nos quais conquistou a medalha de ouro. O fervor nas bancadas fazia-se sentir cada vez mais e tal começava a ser difundido pela Europa, principalmente quando se jogavam competições internacionais. Em Fevereiro de 1959, o Standard Liège recebeu e venceu o Stade Reims, em partida dos quartos-de-final da Taça dos Campeões Europeus. Um dos jornalistas franceses disse que estava a vivenciar o “Inferno de Sclessin”, algo que identifica o ambiente do Estádio Sclessin até aos dias de hoje. Anos mais tarde, no decorrer de 1968, surgiu o primeiro grupo de apoio organizado do Standard, denominado de Kop Rouches. O colectivo de apoiantes inspirou-se no espectáculo proporcionado pelos adeptos do Manchester United durante a final da Taça dos Campeões Europeus disputada contra o Benfica em 1968. Animavam as bancadas principalmente com trompetes e bandeiras, organizando-se num café-restaurante localizado junto ao estádio. Convém não esquecer que no Estádio De Klokke, no início da década de 60, apareceu o Spion Kop para apoiar efusivamente as equipas do Club Brugge. O conjunto foi criado por jovens estudantes locais. O que viam ou presenciavam nas competições europeias foi preponderante para o desenvolvimento do movimento Hooligan e do movimento Ultra. Além disso, a localização geográfica também contribuiu para um melhor conhecimento de ambas as cenas. Os belgas absorveram muito do que adeptos do Reino Unido, Holanda e Alemanha iam fazendo e transmitindo. Diz-se que o primeiro grupo hool a formar-se foi o X-Side, em 1975. Os rapazes do “The Great Old” sentiram a necessidade de se organizar melhor, após confrontos com adeptos do Aston Villa. Como já referi, o Royal Antwerp foi fundado por ingleses e a influência bretã está bem vincada em praticamente todas as características do clube e sua massa adepta. A escolha do nome “X-Side” é prova disso, tal como a maioria das músicas de apoio, adaptadas do que se ouvia em Inglaterra e cantadas em inglês, o estilo do material de bancada
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e a forte presença das subculturas Hooligan e Casual. Durante a pré-época de 1978/1979, o Club Brugge foi visitado pelo Feyenoord. A paixão pelo clube e a violência propagadas pelos holandeses fascinaram alguns fanáticos locais. Foi o “rastilho” para a criação do EastSide. O grupo construiu uma reputação pela violência, sendo que muitos dos seus membros apresentavam-se como skinheads. Chegam os anos 80 e o hooliganismo espalha-se pelo país, com muitos jovens a serem recrutados nas ruas das suas terras. Na “tribune” do Kop Rouches (Standard Liège), jovens membros do grupo começam a entoar cânticos agressivos ao longo dos jogos, o que causou desagrado na velha guarda. No decorrer da época 1981/1982, esses jovens acabaram por sair do Kop Rouches e fazem nascer o Hell-Side. Os primeiros tempos do grupo não foram fáceis. Tinham um pequeno número de elementos e nem sempre conseguiam fazer frente às turmas do Antwerp, Anderlecht e Club Brugge, ao passo que viram o seu clube envolvido num caso de corrupção. Para completar o leque das principais “firms” belgas dos anos 70 e 80, falta mencionar o O-Side do Anderlecht. Outras turmas mais pequenas iam também representando as suas localidades e apoiando os seus clubes, como o Rebels-Side (Gent), Fast-Side (R.F.C. Liège) ou malta do Beerschot. A cena Hooligan continuou a “galopar” e, nos meados de 80, os confrontos eram imensos e a maioria deles graves. As autoridades não estavam preparadas para lidar com o hooliganismo e os estádios não tinham condições. Os episódios violentos davam-se fora e dentro dos recintos, bem como nas ruas. Com a deslocação dos grupos de comboio e metro, muitas estações também eram palco de confrontação. Em 1984, as autoridades começam a impor as primeiras medidas de combate a este fenómeno social, muito por causa de incidentes antes, durante e depois dum Club Brugge-Anderlecht, mas o que “virou” mesmo “o jogo” foi o desastre ocorrido em Heysel Park. Regulamentaram-se as condições de segurança nos estádios e implementaram-se planos de acção policial à volta dos adeptos, em especial dos grupos Hooligan e Ultra. Ainda assim a actividade continuou… Estudou-se o comportamento dos adeptos e da polícia, repensou-se como as autoridades deveriam
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agir. Começou a pôr-se em prática o projecto “Fan Coaching”, sendo que Antuérpia foi a primeira cidade a desenvolvê-lo. Câmaras municipais, universidades e clubes uniram esforços para diminuir a violência ao redor do Futebol, através da prevenção, ao invés da habitual repressão. Este programa tem como objectivo promover o fair-play, e ser mediador, entre os vários intervenientes dos eventos desportivos. Tentam que os hooligans cessem actividade e ajudam-os em vários campos da vida pessoal. Um ciclo estava a fechar-se e outro a abrir-se. A média de adeptos presentes nos jogos era de 10 000, durante o período entre 1963 e 1988. Durante a década de 1990, a média desceu para 7 000 presentes. Alguns motivos para esta diminuição são os muitos incidentes em jogos, a imensa oferta televisiva e a mudança de padrão de lazer. Por essa altura, no Mundial de 1990, hooligans de Liège, Bruxelas e Antuérpia uniram-se para combater os ingleses. Na Bélgica, Hell-Side e O-Side estiveram em confronto desde a chegada dos “roxos” à estação de comboios até acabarem ambos dentro do relvado. O colectivo afecto ao Standard Liège cresceu e conseguiu tornar-se, por um período, o mais problemático do país, sendo conhecido pela sua lealdade nos confrontos. Os hooligans do Club Brugge também mostraram na Europa o seu poder. Colecionaram multas e interdições para o seu clube em consequência de confrontos nas deslocações a Bremen e Marselha, como também nas recepções a Glasgow Rangers e Chelsea. Nos anos seguintes, novos grupos foram aparecendo e outros foram reformulados. Exemplo disso é o facto do X-Side ter dado lugar ao Antwerp Casual Crew, grupo que uniu num só a velha guarda com um vasto leque de pequenos grupos mais recentes. O Royal Antwerp tem a particularidade de ser um clube multicultural e os seus hooligans são oriundos de diversos países e continentes. Em Brugges, pelo menos, dois novos grupos surgiram: Brugges Hooligans Organisation e Brugges Casual Crew. O B.H.O. implementou novas dinâmicas, conseguindo publicar uma hoolzine, atrair membros do East-Side e ganhar reputação num curto espaço temporal. Acabou dissolvido pela justiça belga. Por essa altura houve mais uma inovação: infiltração de agentes
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em grupos hooligan. O X-Side e o Racing Mechelen Casuals foram afetados por isso. Por volta de 1994, começa a ser geminada uma ideia que mudou o panorama das “tribunes” belgas. A quebra de apoio entusiasta ao Standard Liège levou alguns membros do Hell-Side a pensar no que poderiam fazer para reavivar o “Inferno de Sclessin”. Acontece que se inspiraram no movimento italiano e então criaram um núcleo denominado de “Ultras Inferno” no H.S.81’. Os Ultras Inferno iniciaram negociações com a polícia para ser permitida a entrada de faixas, bandeiras, estandartes e restante material de apoio. O jogo de estreia do núcleo teve lugar em Lokeren, no dia 17/08/1996. Na bancada visitante realizaram a sua primeira coreografia, algo simples, mas que teve um efeito “fora da caixa”. Atraíram e inspiraram adeptos de praticamente todos os clubes. Num país com forte tradição Hooligan, com a maioria dos grupos com ideologias aproximadas à direita política, desde logo se assumiram Ultras e, com o tempo, de extrema-esquerda. Eram quase como água no deserto e, mesmo nas bancadas do seu clube, inicialmente causaram estranheza. O ano de 1998 foi marcante para ambos os movimentos de apoio. O controlo policial ia-se fazendo sentir cada vez mais e o hooliganismo ia perdendo espaço nas ruas. Membros dos grupos começam então a usar telemóveis e a internet para comunicarem entre si. Por essa altura, iam sendo criados fóruns e sites sobre o movimento, que eram um ponto de encontro de várias facções rivais e que serviram para serem marcadas lutas. Apareceram então as “fair fights” em sítios isolados, como florestas, descampados, parques de estacionamento… No início desse ano, deu-se uma luta numa floresta entre 200 membros do Brussels Casual Service (acompanhados por amigos do LOSC Lille) e 150 elementos do Antwerp Casual Crew. Esse encontro foi combinado durante algumas semanas e durou quinze minutos. O grupo de Antuérpia tem até hoje uma reputação consistente no centro da Europa no que a este âmbito diz respeito. Coincidência ou não, é também nesse ano que é aprovada pelos políticos a “Lei do Futebol”, instrumento jurídico que entrou em vigor no ano seguinte. A implementação desta lei teve como objectivo penalizar os “infractores” com multas e interdições. Essas sanções são aplicadas em meses, ao contrário do que acontecia anteriormente.
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O início do milénio fica marcado pela organização conjunta entre Bélgica e Holanda do Euro 2000, onde houve muita acção nas ruas. Findo o campeonato europeu, durante a pré-época deram-se incidentes de grandes dimensões entre Hell-Side e F-Side (Ajax), grupo holandês que têm uma forte amizade com o O-Side (Anderlecht). Os confrontos começaram no centro da cidade e alastraram-se até ao estádio, tendo um adepto do Ajax sido hospitalizado e quase morrido nos dias seguintes. Não teve a mesma sorte um adepto do Anderlecht que, após confrontos contra hooligans do Lommel e do P.S.V., ficou dez dias em coma e acabou por falecer. O movimento Ultra começa então a ganhar cada vez mais espaço nas “tribunes”. Os Ultras Inferno tornaram-se um grupo autónomo e independente do Hell-Side, na época 1999/2000. Mais tarde, foram fundados grupos como Black and White Storm Ultras (Charleroi, 2001), Union Bhoys (Union Saint-Gilloise, 2001), Drughi Genk (Genk, 2002), Zebras (Eupen, 2002), Ultras Mauves Army (Anderlecht, 2003), Publik Hysterik Kaos (Standard Liège, 2004), Johan 1892 (R.F.C. Liège, 2004), entre outros. Sem dúvida que o ambiente nos estádios belgas melhorou, com muito mais apoio incondicional às equipas, com coreografias realizadas regularmente, proporcionando belos impactos visuais e passando mensagens muito bem trabalhadas. Apesar de a tradição Ultra não ser muito antiga no país, o movimento belga tem grupos que honram o “código não escrito dos Ultras”. Caso disso são as auto-dissoluções de grupos como Drughi Genk e Zebras, no ano de 2021, após terem perdido as suas faixas para rivais. O movimento Hooligan voltou a destacar-se em 2016. Vários grupos uniram-se sob o lema “Casual contra o terrorismo”, isto após ataques terroristas em Bruxelas, e noutras cidades europeias, levados a cabo pelo Estado Islâmico. Em Março de 2016, durante um memorial pelas vítimas dos atentados, os hooligans compareceram na Place de la Bourse, em Bruxelas. Entoaram cânticos nacionalistas e anti-imigrantes e acabaram em confrontos com a polícia. Ao longo das últimas duas décadas, registou-se uma actuação mais eficaz das autoridades. Importa referir que entre 2008 e 2013 foram registadas cerca de 7 500 interdições, registos que aumentaram para cerca
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de 10 000 no período de 2014 a 2019. Tudo isto levou a que a polícia estudasse novamente o comportamento dos adeptos. Uma das conclusões retiradas e que tem mais impacto é o facto de perceberem que muitos interditos continuam a ir à bola. É responsabilidade dos clubes fiscalizar o acesso desses adeptos e a Pro League quer que os clubes sejam mais competentes nesse processo. Antigamente, os condenados tinham de se apresentar na esquadra à hora de jogo e, actualmente, já não há essa obrigatoriedade. Aliado a isto, registou-se um elevado aumento do uso de artefactos pirotécnicos, o que contrasta com a diminuição dos episódios violentos nas imediações e dentro dos estádios. O governo tem vindo a preparar a aplicação de mais medidas para combater o uso de pirotecnia. A contra-resposta dos grupos de apoio foi dada através de uma carta aberta, subscrita por 24 colectivos de adeptos. Por L. Cruz
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À CONVERSA COM O BRINCO DO
BAPTISTA
Neste 11º número procuramos trazer até aos nossos leitores um projecto que, não é novo nas nossas páginas mas, aos nossos olhos, continua a ser umas das maiores referências da comunicação independente para adeptos existente no nosso país. Para os que já conhecem o Brinco do Baptiste este projecto é, sem dúvida, uma viagem pelo submundo do adepto, algo que vale a pena continuar a explorar. No caso de ainda não conhecerem fica o nosso incentivo para o seguirem através do Twitter e para o ouvirem no Spotify. Não se vão arrepender!
Porquê que iniciaram este projecto? O projeto — mais um — nasce da cabeça do Sérgio Engrácia. O objetivo era ter um podcast que mostrasse um pouco o mundo e imaginário das bancadas, ou seja, um forte enfoque na parte emotiva da bola e na cultura do adepto. O João Tibério e o Aires Gouveia foram convidados no primeiro episódio e por cá ficaram. Onde e quando começa O brinco do Baptista? Em 2017, devido à sua produção de stickers, o Aires foi convidado de um outro projeto do Sérgio (videocast Conversas à Benfica), onde o primeiro — entre a sua gaguez habitual — revelou que
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tinha uma ideia e um título para uma fanzine impressa, tendo o Sérgio gostado do nome. A coisa evoluiu, o Sérgio e o Nuno Picado (podcast Benfica FM), entretanto, criam uma plataforma, o Benfica Independente (BI), para agregar conteúdos independentes feitos por adeptos benfiquistas. É neste contexto que nasce “O Brinco do Baptista”, o primeiro projeto nascido e criado no BI, tendo o seu episódio zero a 27 de fevereiro de 2019 — qual treino aberto aos adeptos — e o seu primeiro episódio a 21 de março. Gravámos n’O Reserva, antigo tasco de um amigo nosso, e esquecemo-nos de ligar os microfones. Conclusão? Ouve-se mais as máquinas do que as nossas vozes e parecemos estar dentro de uma lata de sardinhas. Mas juramos que dizemos coisas muito interessantes. Quem compõe a vossa equipa? Sérgio Engrácia é o carregador de piano e a alma do projeto. Ele prepara toda a parte técnica, mantém controlo sobre o guião previsto e faz as perguntas mais cruas e certeiras. Aires Gouveia, se questionado diretamente, dir-vos-á que é o “Cajuda” e que está ali para cumprir quota. Mas é uma espécie de camisola 10 (ele vai discordar imenso disto). Há um guião? Sim, mas isso não
interessa quando ele começa a deambular por História, Filosofia, Sociologia ou Economia para fazer as perguntas que colocam todos a pensar. João Tibério é o Yashin do Alvito. Prepara a entrevista com tempo, estuda o convidado, esquematiza a estratégia e depois aprecia o jogo. Ah, e adora todos os convidados. Mas nada disto era possível sem a sapiência técnica do nosso Deus ex Machina, Alfredo Fumaças (do podcast Benfica Podcast) que, à distância e noutro fuso horário, zela para que tudo saia minimamente audível. Um dos grandes segredos do Brinco é o facto de provirmos de diferentes contextos, o que naturalmente ajuda a enriquecer o podcast. A propósito do nome escolheram, para baptizar o vosso projecto, de que forma vos marcou o Vítor Baptista? Vítor Baptista foi o último herói com pés de barro.
OK, talvez tenha havido mais alguns, mas num mundo onde o jogo da bola foi sendo substituído pelo negócio do futebol, Vítor Baptista foi paixão e irreverência, o anti-herói que todos sonhamos ser, um artista de bola colada aos pés e, ao mesmo tempo, alguém com dilemas iguais ao comum dos mortais. Num meio cada vez mais profissionalizado e asséptico como é o atual futebol de topo, talvez nós tenhamos um pouco aquela ideia algo utópica, de que algures naqueles 22 rapazes que correm em campo, haja ainda um que seja uma extensão de nós enquanto adeptos na bancada. Alguém capaz de parar um jogo para procurar um brinco. Por outro lado, Vítor Baptista tinha um lado
muito excêntrico e, tendo em conta a natureza e a forma e os temas abordados, o podcast reflete isso mesmo. Somos conhecidos pelos nossos episódios longos, e apesar de sermos considerados um podcast desportivo, quem nos ouve sabe que as nossas temáticas são bem mais que isso. Quais foram os objectivos iniciais do projecto? Mantêm-se os mesmos ou, à medida que o tempo passou, acrescentaram mais algum? Os objetivos eram divulgar a cultura de adepto e de bancada, mas o destino pregou-nos uma partida. Os convidados foram-nos moldando e fomos percebendo que o podcast podia ser uma arma de informação massiva. Um dos mantras que sempre norteia o podcast é acreditar que o futebol é, efetivamente, um reflexo da sociedade que o rodeia. E partindo do futebol podemos falar de coisas que realmente interessam. Mas, mais que discutir, se conseguirmos ser a faísca que faça quem nos oiça refletir e agir, já teremos feito o nosso papel. Temos perfeita noção de que nos mais de 100 episódios que já gravámos aprendemos muito, mas, sobretudo, que os nossos convidados ensinaram muito. A componente pedagógica — sem paternalismos — é a nossa maior vitória. Quais os episódios que vos marcaram mais? Todos. Diz a sabedoria popular que não se pede a um pai para escolher um filho, mas temos a perfeita noção que houve episódios que tiveram significados diferentes para cada um de nós. Para o João Tibério, o episódio Camisa 12 contra o Racismo foi importante porque foi gravado perto do campo Luís Nani, onde cresceu. Para o Sérgio, o episódio ao vivo na Feira do Livro. Porque foi a primeira vez que falámos para uma plateia composta por amigos e ouvintes, pela abertura duma organização como a Feira do Livro e por juntarmos no painel participantes amigos do projeto. Finalmente, para o Aires Gouveia (e acreditem que foi difícil decidir pois é um eterno indeciso), dado o espaço em que esta questão é colocada, e acreditando que a bancada pode e deve ser um importante dinamizador social, o episódio
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71 sobre a Primavera Árabe foi marcante. É um belo exemplo de como o futebol e, em especial, a bancada podem ser catalisadores de uma mudança (algo que se perdeu um pouco na Europa). Além do mais, estamos a falar do Norte de África, local que nos dias de hoje, tem algumas das bancadas mais ativas (e criativas) no mundo. Têm alguma referência semelhante ao vosso projecto? O Sérgio ouve muitos podcasts, muitos mesmo. E é ele que vai trazendo olhares e novas questões para o Brinco. O Brinco bebe de muitos projetos e nem precisam de ser de temáticas semelhantes. Uma das grandes lições que temos aprendido é que há um professor em cada pessoa se soubermos fazer a pergunta certa. De que forma o Brinco contribuiu para o vosso desenvolvimento pessoal e mesmo enquanto adeptos? Estes três anos e mais de 100 convidados marcaram-nos de uma forma avassaladora. Ao longo do tempo fomos obrigados a confrontarnos com preconceitos e com dúvidas, fomos levados a reinterpretar imagens e reequacionar certezas. O futebol, e a perceção que a (nossa) sociedade tem do mesmo, padece de um grande paradoxo: por um lado a sua presença mediática é enorme e pode, por vezes, parecer sufocante (para quem não gosta do fenómeno); por outro, é tido como um produto menor, como algo
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incapaz de ter uma massa crítica, que partindo do jogo e de todos os fenómenos que o rodeiam, possa contribuir para a sociedade no seu todo. A grande herança do Brinco do Baptista é percebermos que temos sempre de ouvir o outro para sermos melhores pessoas. E fazer isso no (muitas vezes sectário) futebol é mais necessário do que nunca. Dando um exemplo, aprendemos muito com os adeptos do Torino, Seixal, Belenenses, Vitória SC, Académica, nos episódios sobre os respetivos clubes. Acho que conseguimos validar a premissa que há bem mais no futebol que o simples sectarismo, que é o discurso corrente, sempre que se fala no fenómeno. Futebol, sendo um fenómeno de massas muito popular e transversal, pode e deve extravasar os seus limites e aventurar-se na reflexão do seu entorno e do meio onde está inserido. A bancada, com toda a sua diversidade (ao contrário da ideia monolítica que muitas vezes transparece), pode e deve desempenhar um papel importante nesta questão. Embora estejam vinculados como adeptos do Sport Lisboa e Benfica, acreditamos que, parte da vossa audiência é composta por adeptos de outros clubes. De que forma veem isso? Como uma vitória. Significa a vitória da ideia que defendemos, que devemos ouvir o outro para percebe-lo está a passar. Isto é passar o manifesto à ação. E, atenção, isto está longe de ter sido um caminho fácil e bonito, recebemos muitas críticas (de consócios nossos) quando tivemos os primeiros convidados fora da esfera do Benfica. Felizmente, com o tempo quem nos ouve percebeu que não interessa a cor da camisola, mas se percebem o que ela representa — e isso acontece em qualquer clube.
Destacar que somos também ouvidos por pessoas que não gostam de futebol ou têm uma má ideia do mesmo. O derrube destes muros (seja qual for a sua origem) é uma grande vitória e algo que muito nos orgulha. Quais os episódios que destacam? Porquê? Complicado, muito complicado. Talvez seja importante destacar os dois dossiers: Racismo e Feminismo. São miniprojectos dentro do projeto global e representam um maior grau de profundidade. Isso deixa-nos mais sensibilizados. Gravámos igualmente sobre um dos últimos grandes tabus ainda presente no jogo e na bancada: a homofobia. Acima de tudo, gravamos sobre temáticas que sentimos que necessitam de ser faladas e discutidas, tentando contextualizar e partir do futebol para falar das mesmas. Tal como o Vítor, estamos numa perpétua busca do brinco. Talvez nunca o encontremos, mas no caminho podemos e devemos discutir coisas que realmente interessam. Sentem que contribuem para a construção de uma “bancada” melhor? Queremos acreditar que sim. Não só na nossa bancada como na de outros clubes. Como já foi dito, partindo do pressuposto que o futebol é o reflexo da sociedade onde se insere, a bancada acaba por ser um grande microcosmos que reflete isso mesmo. Se formos ver, numa sociedade cada vez mais atomizada, cada vez mais envolta em pequenas bolhas, futebol e bancada acabam por ser dos últimos espaços onde é permitido haver contacto com outras realidades. Durante noventa minutos é possível estar a partilhar a bancada ao lado de alguém com quem podemos não ter nada em comum excetuando o amor ao jogo ou a umas cores. Regressando à questão e tendo em conta que a bancada pode e deve ser um espaço de diversidade, claro que tudo depende da vivência individual de cada adepto, mas sentimos — até por elogios de pessoas de outros clubes — que
estamos a fazer algo bem. Já fomos distinguidos como melhor podcast desportivo (prémio PODES’19) e temos sempre sido nomeados nas edições seguintes. Mas até isso reflete a natureza híbrida e o percurso nãolinear d’O Brinco. Em 2020 fomos nomeados na categoria “Desporto” e no ano seguinte tivemos nova nomeação em “Questões Sociais”, o que nos deixou muito contentes e prova que o futebol pode e deve ser um fator de mudança e a bancada pode desempenhar um papel essencial neste processo.
Como avaliam a actualidade das bancadas portuguesas? Diazepam? Fora de brincadeiras, os adeptos têm sido substituídos por clientes naquela busca insana dos clubes de tornar tudo um potencial pote do tesouro. E, infelizmente, parece que os adeptos estão resignados ou enredados no habitual sectarismo que grassa no futebol cá do burgo. Os horários são escandalosos, as condições de alguns estádios pavorosas, os preços dos bilhetes proibitivos e, contudo, vemos a quase total ausência de críticas. A crescente comercialização e acomodação do jogo (com tudo o que vem associado), erodiu um pouco a grande diversidade existente nas bancadas. As pessoas têm direito a ter diferentes posturas na bancada, mas se não lutarmos pelo futuro hoje, não teremos bancadas amanhã.
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Que caminhos acreditam que devem ser trilhados para que haja um reforço da cultura dos clubes e dos próprios adeptos? Mais diálogo? Provavelmente, mais diálogo entre adeptos dos próprios clubes, os vários clubes e os órgãos dirigentes do futebol português, que pouco têm feito para compreender a cultura de adepto. Um exemplo: não faz sentido punir a pirotecnia, mas depois usá-la nas redes sociais porque dá uma boa fotografia. Dá uma boa chapa? Sim. E no estádio ainda é melhor. Dado que falamos em diálogo, também tem de haver proatividade ou emancipação por parte dos adeptos. Não podemos não querer ser tratados como clientes se, passivos, agirmos sempre como tal. Mais adeptos emancipados geram mais massa crítica e discussão, que por sua vez leva à tal criação de uma cultura de adepto que, se for interventiva, conseguirá contribuir para a melhoria do seu clube e do entorno social, melhorando o contexto à volta deste. Já participaram num artigo, sobre a comunicação Independente para adeptos, que saiu no terceiro número da Cultura de Bancada. Pegando nesse tema, de que forma vêm o papel desse tipo de comunicação? Talvez seja o futuro. Ou pelo menos, é um dos caminhos. A questão da independência — de agendas mediáticas, cartilhas ou interesses económicos — tem vindo a tirar liberdade a
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jornalistas e a imprensa precisa de se reinventar. No passado surgiram blogues, recentemente podcasts, mas também fanzines parecem ter uma nova vida e a explicação é simples: aqui trabalha-se por amor à bola, ao desporto, ao clube. E é tudo mais fácil quando assim é. A comunicação independente, processo orgânico que nasce de adeptos para adeptos é algo que tem vindo a trilhar o seu caminho e (felizmente) a ganhar o espaço. Dando um exemplo, num país em que três clubes ocupam quase todo o espaço disponível a nível mediático (quais eucaliptos), este tipo de comunicação é deveras importante no estímulo de novas bolsas e na exploração de prismas fora das três lentes habituais. Regressando à questão, como é óbvio, podem existir vários ângulos e vários tipos de comunicação, e a tendência aparente é o caminho para existência de nichos. É aqui que entra a produção independente feita por adeptos para adeptos. Numa altura em que o jogo parece que está a perder a sua alma e essência (interpretem isto como ligação à bancada), cabe aos adeptos manter essa chama bem acesa. Que opinião têm acerca das fanzines e o seu papel para as bancadas? O Brinco tem um carinho especial pelas mesmas. O Sérgio é um grande consumidor (e colecionador), o Tibério daria um excelente
redator numa delas e, conforme dito atrás, o Aires tinha a ideia de fazer uma com o título que veio a nomear o podcast. Todas as que existem são poucas. As fanzines têm um papel subvalorizado no mundo do futebol, mas são um veículo importantíssimo na cultura de adepto até porque são um produto que nasce organicamente dos adeptos e da bancada. Reativá-las é urgente pois elas podem dar alguma da magia perdida no futebol atual. O que acham da Cultura de Bancada? A Cultura de Bancada é uma das preciosidades do mundo da bola português e, tal como outros projetos, merece muito mais reconhecimento. Das histórias de bancada ao lugar de fala, cada número é uma viagem com muitas estações e apeadeiros porque ninguém disse que um away era fácil. E que tal uma edição especial impressa? Uma mensagem final para os nossos leitores Continuem a ler a Cultura de Bancada, a ouvir podcasts que trabalhem o futebol pela positiva. Existe uma miríade de projetos independentes nas suas múltiplas formas, nascidos de adeptos e da bancada, todos eles válidos à sua maneira. Podemos estar separados pelas cores que apoiamos, mas acreditem que aquilo que nos une é bem mais próximo do que aquilo que nos separa. Têm uma ideia e não veem a mesma representada em mais nenhum lado? Não tenham medo de meter as mãos na massa. Um dos propósitos do Brinco e de muitos de outros projetos onde cada um de nós esteve ou está presente, é precisamente estimular o aparecimento de outros projetos (com maior ou menor capacidade DIY). Despertar a faísca. Quantos mais formos, mais forte será a cultura de adepto. Dito isto, ouçam mais o outro, questionem-se mais e continuem do lado certo da luta. Deixamos o nosso sincero agradecimento à equipa do Brinco por mais uma participação nas páginas da Cultura de Bancada. Voltem sempre!
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MEMÓRIAS Da BANCADA Especial Coreografias
s elho Verm rto s o b Po Dia ica x Benf 4/2005 0 20
Boys ame orto No N P ica x Benf 96/1997 19
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ista ueir Salg Sporting a m Al os x ueir /2000 Salg 1999
as Negr eras porting Pant S x ista Boav 1995/1996
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as tasm a Fan Porto r t l U ia x Leir 5/1996 199
Boys Red Porto x a Brag /1998 1997
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ys w Bo orto Yello eira x P r r Fe s de 00/2001 Paço 20
ul es a Az Fúri Belenens x 1 ista Boav 2000/200
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cito Exér ria VIII itó o x V Port 1/2002 200
ys ck Bo a Bla o Ultr u x Port Vise /2002 2001
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gels e An Whit x Porto ria Vitó 2/2003 200
gros ri-Ne rto u A s o a Ultr -Mar x P a Beir 002/2003 2
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a melh a Ver itória i f á M V ões x Leix 03/2004 20
vils n De enfica Gree B se x iren More 2003/2004
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ys ge Gu Insa x Celtic ria Vitó 98/1999 19
a Negr Juve nse e Tirs 90 Anos
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95 ltras ivo U nfica t c e l e Co o x B Port 3/2004 200
gões g r Dra Supe Sportin x o t r 1 Po 200 2000/
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sta iqui Benf a a ç a R ic Benf 0 9 Anos
egra o ha N Manc a x Port émic Acad 002/2003 2
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Altura de decisões na época desportiva, o que é sinónimo de boas molduras humanas nos vários estádios. Aqui ficam vários dos registos dos últimos dois meses de “Resumo de Bancada”. SC Braga x Rangers FC | 07-04-2022 Mais uma noite europeia no Estádio Municipal de Braga, sendo a segunda vez, em pouco mais de dois anos, que esta formação escocesa se desloca a esse reduto. Nova natural invasão dos “protestantes”, sendo que desta vez foram cerca de 5.000! A entrada das equipas em campo foi marcada por imagens soberbas da bancada nascente. Na parte inferior, onde estavam instalados os adeptos da casa, uma coreografia com cada letra do nome do seu clube e cidade e com a mensagem abaixo: “Continuem a elevar o nosso nome Europa fora!”. Ao mesmo tempo, mas na parte superior, uma incrível tochada dos visitantes. Um momento incrível com destaque a nível internacional. O encontro teve obviamente um bom ambiente de parte a parte, manchado por uma desnecessária carga policial, ainda na primeira parte, contra ultras bracarenses. A festa final foi dos minhotos, pois conseguiram uma vitória (pela margem mínima) nesta primeira mão dos quartos-de-final. FC Penafiel x Varzim SC | 08-04-2022 Jogo a uma 6ª feira à tarde, debaixo de um clima nada agradável. Não eram, de todo, as condições mais convidativas para se ir a um recinto desportivo, mas os varzinistas marcaram presença em bom número. Os responsáveis da casa tiveram uma boa atitude de, excecionalmente, permitir a ida dos visitantes para uma das centrais, junto de adeptos da casa, evitando que fossem para a habitual bancada descoberta. Aliás, não deixou de ser curioso o facto da maioria daquela bancada estar representada pelos dois grupos (Pena Boys e Os De 1915), com os restantes
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simpatizantes penafidelenses a estarem num número reduzidíssimo na restante parte da bancada. Pese embora a situação negativa do emblema poveiro e da derrota sofrida, bom apoio da claque do Varzim ao longo do maioria do encontro. Vitória SC x FC Porto | 10-04-2022 Mais um bom ambiente, naquilo que já é mais do que habitual neste tipo de encontros, em Guimarães. Os White Angels exibiram um símbolo de grandes dimensões do seu clube durante a entrada das equipas. O apoio foi constante nas diversas bancadas que continham grupos organizados de adeptos, sendo que a festa final foi azul e branca, com uma importante vitória alcançada, que deixou a sua formação mais próxima do título de campeão nacional. FC Vizela x SC Braga | 10-04-2022 Boa casa e um ambiente digno de registo nesta partida entre formações de localidades que estão distanciadas por poucos quilómetros. O Vizela já nos acostumou, durante a época, à forma aguerrida com que a bancada vai vivendo os jogos e este não foi excepção, com os cânticos liderados pela Força Azul. No sector visitante, um apoio constante dos ultras do Braga, que ainda realizaram uma bela tochada. Liverpool FC x SL Benfica | 13-04-2022 Os encarnados poucas hipóteses tinham de passar às meias-finais, depois de terem perdido por três bolas a uma no encontro em casa. Porém, isso não demoveu os seus adeptos de se deslocarem até Liverpool, encherem o sector visitante e realizarem um bom apoio. Foi uma segunda mão animada, num jogo aberto que terminou com um empate a três golos. No final, momentos vibrantes por parte dos benfiquistas, que não paravam de cantar pelo seu clube. Algo que valeu, por duas vezes, um agradecimento da sua equipa, que fez questão de voltar do balneário para aplaudir novamente a bancada!
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Rangers FC x SC Braga | 14-04-2022 Mais de 150 adeptos da formação bracarense deslocaram-se até Glasgow para apoiar a sua equipa. Uma tarefa que é sempre complicada, devido ao excelente ambiente que se vive no Ibrox Stadium, neste tipo de encontros europeus. A missão ainda ficou mais dificultada, tendo em conta o desenrolar do próprio jogo, que fez com que o Rangers chegasse ao intervalo a vencer por 2-0 e o Braga ainda estivesse em inferioridade numérica. Porém, isso não demoveu os braguistas presentes, que tentaram fazer-se ouvir naquele ruidoso terreno. O seu conjunto não desistiu e conseguiu levar a decisão até prolongamento, algo que, mesmo assim, acabou por ser insuficiente para evitar a eliminação. No final houve agradecimento ao esforço dos jogadores, neste que foi o culminar de uma época europeia bastante positiva para a equipa e, acima de tudo, para os seus ultras, que fizeram deslocações notáveis. Vitória SC x FC Paços de Ferreira | 15-04-2022 Jogo em que os White Angels aproveitaram para registar os maiores festejos do 23º aniversário do seu grupo. Uma coreografia que tapou a parte inferior da bancada sul (a zona que não tem actualmente ninguém, por ser considerada ZCEAP), sendo que, durante o encontro, aproveitaram para criar um bom espectáculo pirotécnico, com várias tochas envolvidas. Por falar em tochas, de salientar também uma pequena tochada por parte dos ultras da nascente vimaranense (que estão na parte inferior), ao mesmo tempo que exibiam um pequeno pano com a inscrição: “Facção ilegal”. Relativamente aos visitantes, foi uma das melhores deslocações da época por parte dos pacenses. Apesar da pesada derrota sofrida, tiveram um bom momento de comunhão final com a sua equipa.
Leixões SC x AJM/FC Porto | Final Voleibol Fem. Final do campeonato de voleibol feminino que teve direito a cinco jogos, disputados ao longo de quatro semanas consecutivas, intercalando entre a Nave Ilído Ramos (em Matosinhos, onde se disputaram dois desses encontros) e o Dragão Caixa (onde se realizaram outros três). De destacar os grandes ambientes e assistências, com presenças dos vários grupos de cada lado, alguns momentos de tensão e uma coreografia logo na primeira partida por parte dos ultras leixonenses.
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Sporting CP x SL Benfica | 17-04-2022 Dérbi lisboeta em dia de Páscoa. Ambiente digno de registo que começou logo no pré-jogo, no exterior de Alvalade. Os da casa foram aquecendo à sua maneira, enquanto que os benfiquistas, para além do habitual longo cortejo, tiveram também uma turma numerosa que foi interceptada pela polícia, já na chegada ao estádio. Muito apoio e vários momentos de pirotecnia de ambos os lados. No final, a vitória sorriu ao Benfica, sendo um resultado contra muitas das previsões iniciais. A festa no sector visitante foi grande, a contrastar com a desilusão dos adeptos da casa, que viam as hipóteses de revalidarem o título de campeão nacional a serem hipotecadas... FC Porto x Sporting CP | 21-04-2022 Segunda mão das meias-finais da Taça, sendo que os portistas traziam para o seu estádio uma importante vantagem do primeiro jogo. Muito boa casa, como seria de esperar, empolgada também pelas comemorações do 40º aniversário do Pinto da Costa como presidente do clube, algo que motivou tarjas dos grupos da casa, com destaque para uma mensagem do Colectivo 95, que aproveitou para picar os dois maiores rivais lisboetas: “40 anos a realizar os nossos sonhos! E os pesadelos dos outros também! Parabéns presidente!”. Relativamente aos Super Dragões, para além de uma coreografia inicial (que se estendeu a outras bancadas), tiveram diferentes momentos de abertura de várias tochadas no seu sector. O Porto acabou por vencer também esta partida, garantido a passagem ao Jamor, motivando uma grande festa. Relativamente ao sector visitante, onde estavam instalados os ultras sportinguistas, destaque para uma bela tochada. UD Lamas x SC Paivense | 24-04-2022 Os Papa Tintos, a um dia de cumprirem oficialmente o seu 30º aniversário, aproveitaram este encontro para celebrar esse número especial. O histórico grupo do Lamas realizou uma bonita coreografia com o ano de fundação da claque. Seguiu-se, depois, um bom convívio, em que houve um concerto, jantar e, por fim, um espectáculo pirotécnico após a meia-noite, com muito fogo de artificio!
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CD Tondela x Vitória SC | 24-04-2022 Destaque para a invasão vitoriana até ao Estádio João Cardoso, ocupando a grande maioria da bancada por trás da baliza (com excepção para a ZCEAP). Um bom apoio durante grande parte do encontro. Do lado da casa, a Febre Amarela e restante público tondelense iam também tentando criar um bom ambiente, nesta fase mais complicada da equipa, na tentativa de fuga aos últimos lugares da classificação. CD Trofense x Varzim SC | 25-04-2022 No quarto número da nossa fanzine, lançámos um artigo sobre a “Trofada”. Uma revolta que houve na Trofa, em 1993, por causa de uma polémica em que estas duas equipas eram protagonistas. Desta vez, estes dois conjuntos, que não estão separados por muitos quilómetros de distância, lutam também para evitar a descida à Liga 3. Tudo junto, acaba por ser um “cocktail” bem explosivo para uma partida desta natureza... E assim foi! Na noite anterior, as paredes em redor do estádio do Trofense apareceram com mensagens do grupo Os De 1915. Já no dia do encontro, antes do mesmo, uma turma de dezenas de elementos dos Rapazes da Superior apareceu sem escolta e houve confrontos com os Ultras Trofa, tendo as imagens dos incidentes sido amplamente divulgadas pelos meios de comunicação social. Já no recinto, um excelente ambiente, com destaque para uma boa presença de adeptos da formação poveira na bancada destinada aos visitantes. Os da casa venceram, motivando uma grande festa, pois era um jogo já numa fase decisiva entre “aflitos”. SC Braga x FC Porto | 25-04-2022 Jornada em que os portistas se poderiam tornar campeões nacionais, o que fez elevar as expectativas para este jogo. O SC Braga não cedeu mais bilhetes do que o limite mínimo, provocando um comunicado dos Super Dragões contra esse facto e apelando à comparência em massa dos azuis e brancos nas imediações do estádio, com ou sem bilhete. Houve naturalmente bom ambiente de parte a parte, tanto dentro como fora do recinto, e alguns episódios de repressão policial. No final, foi a equipa da casa a festejar a vitória, para gáudio do público braguista.
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UD Leiria x UD Oliveirense | 25-04-2022 Oficialmente estiveram presentes 13.204 neste encontro. Um número de assinalar para um jogo da Liga 3! Foi o embate entre os dois classificados da Série 2 desta fase de subida. Houve representação dos grupos de cada clube (Armata Ultra e Coletivo XXII), sendo que no final foram os forasteiros a festejar a vitória e, respectivamente, a subida directa ao segundo maior escalão português. Boavista FC x Sporting CP | 25-04-2022 Não foi uma assistência ao nível de outros encontros deste género no Estádio do Bessa, fruto também de ambas as formações estarem, nesta altura, sem grandes preocupações no que toca à tabela classificativa. Ainda assim, de registar momentos de pirotecnia em cada um dos topos, numa partida que também teve muitas trocas de provocações entre os adeptos adversários.
SC União Torreense x Vitória SC “B” | 30-04-2022 Encontro que valeu a subida do Torreense ao segundo escalão português. Muito boa moldura humana no Estádio Manuel Marques, com um apoio consistente e audível do Topo SCUT. No final, festa natural pelas ruas de Torres Vedras.
Vitória FC x UD Leiria | 01-05-2022 As hipóteses de o Vitória conseguir subir eram bastante remotas. Teria de ganhar e esperar um resultado favorável noutro jogo, para conseguir ir ao play-off. Porém, houve uma mobilização incrível dos simpatizantes do emblema sadino, com milhares de pessoas a juntarem-se e a receberem a sua equipa, antes da partida, numa iniciativa conjunta de vários simpatizantes e dos grupos organizados. Esse facto resultou em 14.089 adeptos oficialmente presentes no Bonfim. Um grande ambiente de parte a parte, pois houve presença leiriense, com a Armata Ultra a tomar conta do apoio no sector visitante. No final, a vitória sorriu mesmo a estes últimos, com o Leiria a conseguir o desejado lugar que ainda dava azo a uma esperança de promoção.
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Boavista FC x Vitória SC | 06-05-2022 Jogo entre rivais a uma 6ª feira à noite, com destaque para uma excelente casa. Era o último no Bessa para o campeonato, o que atrai tradicionalmente muitos axadrezados, sendo que o Boavista ainda decidiu fazer com que os seus sócios não pagassem bilhete. Para além disso, uma boa deslocação dos adeptos do emblema vimaranense, tanto em termos de número como de apoio. Houve novamente registo de bons momentos de pirotecnia em ambos os topos. De destacar também o facto de ter havido um dos maiores aparatos policiais de sempre naquele estádio. Algo que acabou por surpreender, tanto pelo enorme dispositivo presente, como pela robustez com que estavam próximos de bancadas centrais. Portimonense SC x SL Benfica | 07-05-2022 Presença do grupo Orgulhe 1914 neste encontro de futsal, com direito a coreografia para incentivar a sua equipa, nesta luta pela manutenção. Curiosamente, pouco depois desta partida, a sua equipa de futebol profissional sénior jogou em casa contra o Sporting, sendo que a claque decidiu não comparecer ao mesmo, devido a divergências com a SAD do Portimonense. SL Benfica x FC Porto | 07-05-2022 11 épocas depois, o Porto voltou a ser campeão em casa do seu rival. Mal os bilhetes destinados ao sector visitante foram postos à venda, voaram em poucas horas, dada a imensa procura. Não foi, portanto, de surpreender uma deslocação com milhares de portistas empolgados e motivados para festejarem na Luz. Quanto ao público da casa, esteve um pouco longe da lotação esgotada. Houve alguma tensão de parte a parte, seja antes, durante ou até depois do jogo, havendo inclusivamente problemas de ambos os lados com os seguranças privados presentes. Uma partida disputada até ao final, num bom ambiente de parte a parte, sendo que a vitória sorriu aos forasteiros. Estes festejaram durante longas horas, alargando as comemorações até madrugada, junto do próprio Estádio do Dragão.
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Portimonense SC x Sporting CP | 07-05-2022 O destaque vai para a presença sportinguista em Portimão, principalmente dos seus ultras. A Juventude Leonina acabou por criar um bom espectáculo pirotécnico, depois de também ter organizado um convívio da própria claque em solo algarvio. SC Beira-Mar x SC Paivense | 08-05-2022 Este encontro marcou o regresso do Beira-Mar ao Campeonato de Portugal (passaram do 5º para o 4º escalão), com destaque para as mais de 10 mil pessoas presentes no Estádio Municipal de Aveiro. O apoio na bancada foi, naturalmente, liderado pelos Ultras Auri-Negros. Já depois da partida, houve muita festa no centro da cidade aveirense, junto à ria, com a equipa a ser recebida por muitos adeptos e pirotecnia! Moreirense FC x FC Vizela | 14-05-2022 O Vizela tinha aqui a hipótese de ir a casa do maior rival desta divisão fazer com que este descesse. Era, portanto, de esperar um jogo bem “quentinho”, dentro e fora das quatro linhas. A GNR anunciou mesmo um aumento do seu patrulhamento, por causa desta partida, tanto no próprio Sábado (dia do encontro) como nos dois dias precedentes. Houve naturalmente uma excelente moldura humana de parte a parte, alguma tensão na chegada do cortejo vizelense e muitas picardias entre rivais. Os forasteiros iam festejando os golos do Tondela (algo que não interessava aos de Moreira de Cónegos). A verdade é que o Moreirense conseguiu uma vitória confortável, alcançando assim o lugar de play-off, na última oportunidade para impedir o retrocesso à segunda liga. Sá Pinto, treinador dos da casa, foi mesmo provocar a bancada visitante no final. SC União Torreense x UD Oliveirense | 14-052022 Dia de Jamor para os vencedores das séries da Liga 3. Independentemente de qual fosse o resultado naquela tarde, ninguém tiraria a felicidade dos seus simpatizantes, pois já tinham alcançado a promoção à Segunda Liga. Milhares de adeptos presentes, sendo que alguns deles
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já estavam a conviver nas imediações do recinto desde bem cedo. Os torreenses estavam em maioria, comandados pelo apoio do Topo SCUT. Do lado da Oliveirense, cabia ao grupo Coletivo XXII tomar conta das operações para puxar pela sua bancada. O troféu de vencedor da Liga 3 foi levado para Torres Vedras, depois de um desempate nas grandes penalidades. FC Porto x GD Estoril Praia | 14-05-2022 Jogo de consagração para os portistas, algo que foi sinónimo de festa, com um Estádio do Dragão praticamente repleto. Houve homenagens a Igor Silva, adepto que foi assassinado uma semana antes. Já depois do encontro, os adeptos seguiram para a Avenida dos Aliados, onde festejaram com os seus jogadores e staff até largas horas. Varzim SC x CD Mafra | 15-05-2022 O emblema poveiro precisava ganhar e esperar por um resultado negativo do Covilhã (que disputava, à mesma hora, a sua partida na Amadora) para evitar uma descida directa ao terceiro escalão. Houve, naturalmente, uma boa assistência no Estádio do Varzim Sport Club e, acima de tudo, um apoio incansável, comandado pelo grupo Os De 1915, durante a grande maioria do encontro. Apoio que não foi sequer abalado pelas más notícias que vinham do outro jogo. Esse “empurrão” aos seus jogadores até os levou à vitória, mas foi insuficiente para evitar a despromoção. UD Leiria x FC Alverca | 15-05-2022 Novo recorde de assistência batido em Leiria. Desta vez, foram oficialmente 15.071 adeptos presentes nesta segunda mão do play-off de acesso ao segundo escalão. Um grande ambiente no estádio, que se converteu em desilusão para os da casa. Foi mais um ano em que a equipa leiriense não conseguiu subir, por causa deste tipo de jogos decisivos [podem ler ou reler, no oitavo número desta fanzine, o artigo “Entre o Céu e o Inferno: Leiria”]. Com a vitória do Alverca, os ribatejanos defrontam o Covilhã no play-off decisivo para saber quem vai jogar no segundo e no terceiro escalão.
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FC Alverca x SC Covilhã | Playoff Dois encontros para verificar qual das equipas ficaria na Segunda Liga e qual ficaria na Liga 3. Um play-off que, logicamente, despertou o interesse dos simpatizantes da formação ribatejana e dos serranos. Logo na primeira mão, em Alverca, estiveram oficialmente 5.203 espectadores, boa parte em deslocação desde a Covilhã. Importa dizer que estes últimos tiveram um papel activo no acompanhamento à sua formação nesta fase derradeira da temporada. Foi uma tarde com um ambiente bastante positivo ao longo da partida. As decisões foram para a segunda mão, na Beira Baixa. Moldura humana condizente com o jogo em questão, muito apoio, e o Covilhã acabou por sorrir no final. Houve invasão de campo e muita festa. GD Chaves x Moreirense FC | Playoff Outro play-off a duas mãos, este para decidir quem ficaria no principal escalão nacional. Dois jogos com excelentes assistências e com ambientes dignos de registo. No primeiro, destaque para os cerca de 1.100 apoiantes que viajaram de Moreira de Cónegos até Chaves. Nesse encontro, os flavienses conseguiram uma boa vantagem por 2-0, empolgando as suas hostes para a segunda mão. O Chaves acabou mesmo por subir, fazendo com houvesse uma grande festa no sector visitante do Estádio Comendador Joaquim de Almeida Freitas, que seguiu para o seu próprio estádio. Os transmontanos estão de regresso à primeira divisão. FC Porto x CD Tondela | 22-05-2022 Final do Jamor, sempre um dos momentos mais especiais da época em Portugal. No exterior, os habituais aquecimentos, onde houve os típicos churrascos, ‘fanzone’ e até vídeos de confraternização entre adeptos de ambos os conjuntos. Estádio cheio, com os portistas a representarem a grande maioria do público presente. Um bom apoio dos azuis e brancos, com o resultado favorável e a tão aguardada dobradinha a contribuírem para uma festa ainda maior dos mesmos. Quanto aos tondelenses, que se estreavam numa final da Taça, nota para o momento da entrada das equipas, com a abertura de uma coreografia da Febre Amarela, realizada à mão pelos seus elementos.
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FC Paços de Ferreira “B” x CD Aves | 27-05-2022 Jogo de futsal “quentinho” em Paços de Ferreira, entre a equipa secundária pacense e o Aves, a contar para a fase de subida à Divisão de Honra das distritais portuenses. Convém dizer, antes de mais nada, que são dois conjuntos cujos adeptos nutrem uma grande rivalidade entre si, tendo havido recentes episódios de incidentes. A Força Avense apareceu no pavilhão sem escolta, tendo-se registado logo depois alguns momentos de tensão entre a polícia e os pacenses que tentaram ir ao seu encontro. Houve grande apoio de ambos os lados, com uma boa moldura humana e um ambiente digno de registo numa 6ª feira à noite. Os da casa venceram, gerando uma grande festa no recinto. USC Paredes x AR São Martinho | 28-05-2022 O Paredes garantiu, neste encontro, a subida à Liga 3. Houve, portanto, um estádio muitíssimo bem composto, com presença também de público visitante (algo habitual nos jogos do São Martinho, diga-se). A claque paredense, White Legion, deu o mote para a festa, com um bom apoio, momentos de muito fumo e ainda com o seu material para dar cor. Sporting CP x FC Famalicão | 28-05-2022 Final da Taça de Portugal de futebol feminino, que também foi realizada no Jamor. Nota para a presença de ultras sportinguistas, que contribuíram para o ambiente, havendo espaço para uma fumarada verde. No final, depois de a equipa do Sporting ter vencido, momento caricato para a invasão de campo de dois atletas do basquetebol do clube no momento dos festejos, tendo sido detidos pelos ‘spotters’ presentes. CF “Os Belenenses” x Lusitano GC Moncarapachense | 29-05-2022 Cerca de 2.500 pessoas compuseram as bancadas do Restelo, com destaque para a boa moldura humana na central onde ficam instalados os adeptos da casa. A Fúria Azul foi liderando o apoio, tendo também apresentado uma coreografia alusiva ao seu próprio grupo, ao mesmo tempo que expunha a mensagem: “Rumo ao nosso lugar”. Curiosamente, era uma última jornada em que o segundo classificado recebia o terceiro. Os algarvios conseguiram uma vitória
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surpreendente, permitindo uma ultrapassagem na tabela e a respectiva subida à Liga 3! Houve, portanto, festa entre os visitantes, que organizaram uma viagem para este jogo decisivo. Já a formação de Belém fica dependente de uma repescagem na secretaria. SL Benfica x SC Magdeburg | 29-05-2022 ‘Final-four’ da EHF, a Liga Europeia de Andebol (a segunda maior competição europeia da modalidade), jogada em Lisboa. O destaque vai para o último jogo, com uma boa afluência do público encarnado, registando a presença e o apoio dos dois grupos (No Name Boys e Diabos Vermelhos). Houve fumo a dar ainda mais cor à festa, pois o Benfica acabou por vencer a competição. Nota também para a presença de uma pequena homenagem a Alfredo Quintana, guarda-redes que representava os portistas e infelizmente faleceu, através de uma camisola na bancada com o seu nome.
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IN FANS... WE TRUST Recuando até à primeira metade do século XIX, e ao estádio embrionário do futebol da era moderna, percebemos que naquele tempo a prática deste jogo estava circunscrita à aristocracia e à burguesia britânica e que estava vedada às camadas populares. Certo é que o estado das coisas depressa se alterou, e na segunda metade do século o jogo “proletarizouse” e conheceu um “boom” fruto da sua disseminação por entre a classe trabalhadora. Foi precisamente este fenómeno de “proletarização” que permitiu que o futebol se tornasse o desporto rei, que se espalhasse pelos quatro cantos do globo, e que se “infiltrasse” nas raízes da cultura popular. A prova viva de que o “jogo da bola” é parte insubstituível da nossa cultura é que, em muitos casos, o clube local é o maior embaixador da terra que representa e transporta no seu ADN as tradições e a alma da localidade. Em Portugal, os clubes sempre se organizaram em forma de associação, e na maioria dos casos, a eleição da direcção que gere os destinos da agremiação é responsabilidade dos seus sócios, através dum sufrágio democrático. Apenas nas últimas décadas assistimos à criação de sociedades anónimas para gerir a actividade de futebol profissional dos clubes, e é ainda mais recente a aquisição dessas mesmas sociedades anónimas pela mão de investidores que passam a ser, na prática, donos dos destinos dos emblemas que compram. Ao contrário do que acontece/acontecia em Portugal, em muitos países da Europa, os clubes sempre foram propriedade de um ou vários donos, foram assim fundados e sempre se organizaram dessa forma, e Inglaterra, berço do futebol é um desses exemplos. Mesmo os clubes de origem popular, e muitas vezes fundados em fábricas, eram quase sempre pertença do proprietário da unidade fabril onde o mesmo era fundado. Este tipo de organização redundou muitas vezes em gestões desastrosas, que deixavam os cofres dos clubes arruinados, e a
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própria instituição à beira da insolvência. Um desses caos é o do Northampton Town FC, que no início dos anos 1990, fruto de má gestão, mergulhou numa profunda crise financeira, acumulando uma dívida de 1,6 Milhões de Libras. Ao descalabro financeiro juntaram-se as más prestações desportivas, o que agravou as frustrações dos adeptos. É neste cenário que em Janeiro de 1992, 600 adeptos dos “Cobblers” se reúnem, e um deles, Brian Lomax, apresenta a ideia de criar uma estrutura cooperativa para que, de forma colectiva, os adeptos pudessem adquirir títulos do clube. É neste contexto que nasce a Northampton Supporters Trust, que desde logo iniciou uma recolha de fundos com vista a salvar o clube, aceitando doações entre 1 e 1000 Libras. Esta cooperativa foi e é gerida de forma absolutamente democrática, sendo que cada associado tem direito a um voto, independentemente do valor investido na colecta. Em pouco tempo os adeptos do Northampton reuniram 30 000 Libras, valor que foi integralmente investido na compra de títulos do clube, e que foi o suficiente para possibilitar a renegociação da sua monstruosa dívida e garantir a solvência do mesmo. A esta vitória dos adeptos, juntou-se uma outra, a nomeação de dois representantes da Trust para o Conselho de Administração do clube, passando assim os adeptos a ter uma voz activa na gestão do
emblema do seu coração. Este bom exemplo acabaria por fazer escola, e adeptos de outras formações acabariam por seguir o caminho trilhado pela Trust do Northampton, sendo o primeiro exemplo a Kettering Town «Puppies» Supporters Trust, ainda no ano de 1992, caminho esse que foi reforçado com a criação da Supporters Direct em 2000, a qual contou com a participação do incansável Brian Lomax. A Supporters Direct fornece apoio aos adeptos que se quiserem organizar neste modelo cooperativo, tendo assim permitido que florescessem este tipo de organizações. Neste período, o Exeter City à semelhança do que sucedeu com o Northampton, passava por uma grave crise financeira, tendo inclusivamente vendido o seu histórico estádio St. James Park. Perante todo este turbilhão, no ano de 2002, são integrados no conselho de administração do clube, dois gestores de reputação duvidosa, que no ano seguinte viriam a ser detidos sob a acusação de comércio fraudulento. É então que 700 membros do Exeter City Supporters Trust decidem, numa assembleia geral realizada em Fevereiro de 2003, tornar-se proprietários exclusivos do clube, objectivo que viriam a alcançar meses depois, fazendo do Exeter City o primeiro clube profissional da Football League a ser gerido maioritariamente através da quotização popular. Papel relevante teve também a Wimbledon Independent Supporters’ Trust na criação do AFC Wimbledon, clube herdeiro do histórico Wimbledon FC, cujo proprietário mudou a localização para fora da localidade de Wimbledon e acabaria por alterar o nome para MK Dons. A meteórica ascensão do AFC
Wimbledon e as sucessivas promoções até ao futebol profissional são prova de que é possível que um clube detido pelos adeptos pode ser gerido de forma eficiente e eficaz. Hoje existem mais de 140 cooperativas de adeptos, espalhadas por Inglaterra, País de Gales e Escócia, que são essencialmente ligadas a clubes de futebol, mas existem também algumas associadas a clubes de Rugby. São também mais de trinta os clubes geridos maioritariamente pelos adeptos sob a forma de cooperativa, e há exemplos de clubes de topo em que as Trust’ têm papel preponderante na gestão, nomeadamente o Swansea City que é detido em 20% pelos adeptos. É muitas vezes em contexto de dificuldade, quando nenhum investidor ousa arriscar o seu capital em clubes falidos que os adeptos se prontificam a sacrificar-se para salvar o seu emblema, mostrando assim que em muitos cenários nada resta se não a paixão dos aficionados e a solidariedade da comunidade. Existem exemplos de sucesso desportivo, mas, o mais importante para muitos destes homens e mulheres que abdicam do seu tempo livre para ajudar nas tarefas do clube, é que se respeite as tradições, as pessoas e o sentido comunitário do clube, colocando o adepto como centro do desporto, ao invés de olhar para ele apenas como um mero consumidor. Por J. Sousa
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Estamos já habituados a ver as nossas equipas com patrocínios mais ou menos conhecidos. Os grandes clubes descobriram os patrocinadores dos equipamentos só nos anos 80, como fonte de sustentabilidade face às enormes despesas a que o futebol moderno obriga. Os pequenos clubes, mais uma vez, foram muito mais à frente. Os patrocínios foram sempre o motor das coletividades e agremiações mais pequenas: comércio local, desde minimercados, pequenos empresários, lojas das mais variadas, todas com um fio condutor, apoiar o clube da terra! Podia ser uma taça, umas medalhas e, em alguns casos, também os equipamentos. Havia uma ligação umbilical entre os dois lados. Quero contar-vos uma peculiar estória que está narrada no livro recentemente editado “Um bairro, um clube- 100 anos de história do São Domingos Futebol Clube” , pequeno-grande clube de Setúbal, escrito a quatro mãos por mim e pelo amigo João Carlos Santana da Silva. Quando o clube ressurgiu nos anos 70, depois de 30 anos de “obscurantismo”, por vários motivos, entre os quais as perseguições da PIDE aos dirigentes e jogadores, a gente do bairro de São Domingos empenhou-se em apoiar o clube como podia, não só os simples moradores, mas também os estabelecimentos comerciais. E aqui entra a fabulosa história do local LAS VEGAS: o Sr. Rui foi o 1° proprietário deste espaço que inicialmente era uma casa de fados, pois a D. Isabel, esposa do Sr. Rui, era fadista. E como o fado, nos anos 80, não estava tão na moda como nos dias de hoje, e era sempre conotado negativamente por causa do ambiente “vicioso” à sua volta, algumas pessoas do bairro começaram a inventar e especular que aquilo
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era uma boîte, um local de perdição, luxúria. Cansado dos boatos, o Sr. Rui disse: “Já que tem esta fama, vou ter o proveito disto!” E começou a funcionar realmente como um bar de alterne! As histórias à volta deste lugar de “libertinagem” são muitas. Homens e rapazes perdidos à volta de bailarinas meio desnudas, mulheres e esposas revoltadas com aquilo, barulho até às tantas.
Então, dado que o bar criava alguns problemas na vizinhança (barulho e movimentos suspeitos) o Las Vegas apoiava e patrocinava o clube do bairro, oferecendo umas taças, nada melhor para acalmar o “povo”. O S. Domingos chegou a ter o patrocínio do local, com o nome bem visível nas camisolas dos atletas que competiam nas corridas, nos jogos de futebol e futsal. As camisolas já eram patrocinadas quando dono do Las Vegas era um afrodescendente, o Sr. Domingos, que foi o último proprietário nos anos 90 e na primeira década do Sec. XX. Uma história realmente “picante”, mas esta ligação Las Vegas -S. Domingos é um ótimo exemplo desta simbiose entre o bairro, os seus habitantes, a sua economia local e o clube; era e é assim ainda hoje. A comunidade é que deve apoiar, suportar, alimentar a bandeira bairrista que estes clubes encarnam. Até bailarinas meias nuas e strip bares… Por Eupremio Scarpa, Vintage Football City Tours
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Uma experiência fora da Europa Actualmente encontro-me a viver em Marrocos, país que me acolheu nos últimos meses fruto de um desafio profissional que me foi lançado. Não vos escondo que sinto falta da família, dos amigos, da cultura portuguesa e, como não podia deixar de ser, de estar presente nos jogos do meu clube. E aqueles que acham que não estar presente na “bola” é o mais fácil de suportar, estão redondamente enganados. Assim, visto que não posso cumprir a minha vontade de estar lado a lado com o meu clube e os meus amigos, tentei matar as saudades e procurei assistir a um jogo de futebol neste país, que em muito se distingue do nosso. Escolhi o último jogo da fase de grupos da Liga dos Campeões Africana, entre os locais do Raja C.A. e o E.S. Setif da Argélia. Ambas as equipas estavam apuradas, ficando apenas por saber quem se apurava em primeiro e em segundo lugar. Para mim, a importância deste jogo não se prendeu com o facto de ser um jogo da Champions, mas, sim, porque marcou o regresso dos dois grupos Ultras do Raja ao estádio. Ambos os grupos estavam em boicote aos jogos, devido à má organização dos jogos e ao preço dos bilhetes entregues à Casablanca Events, e o seu regresso não aconteceu mesmo após a decisão do Governo de Marrocos de diminuir as medidas de combate à pandemia e decidir reabrir os estádios. Finalmente estavam de regresso e vi nisso a minha oportunidade. Recentemente, o Raja adoptou, através da Casablanca Events, uma política de venda de bilhetes online, limitada ao website www.guichet. com, onde o preço mais caro era 100 Dirhams (menos de 10€) e o mais acessível 50 Dirhams (menos de 4€). Mesmo assim, pelo que fui vendo na Internet, e tendo em conta o custo de vida por cá, era caro. Para além da questão dos preços havia um outro problema, a necessidade de identificação a que os adeptos estavam sujeitos. Por fim, chegou o dia de jogo. Quanto à organização, está ao nível de Marrocos, ou
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seja, sem organização! Tentando descrever com palavras minhas, é uma organização “entregue” ao adepto. Entretanto, a faltar 2h30 para o início do jogo, as ruas estavam cheias de gente, com muita correria de um lado para o outro para os adeptos conseguirem entrar bem cedo no estádio. Por curiosidade menciono que quase toda a gente levava mochilas ou sacos de comida. Aproximava-me agora da porta para entrar e, qual é o meu espanto, não havia seguranças, não havia torniquetes e a polícia estava sentada a comer na relva. Era o primeiro dia de Ramadão e a hora permitida para comerem coincidiu com a da abertura das entradas para o estádio. Conclusão, não houve qualquer tipo de revista aos adeptos.
Dentro do estádio foi uma sensação única. Foi impressionante como, duas horas antes do jogo, o estádio estava quase cheio e toda a gente a cantar! Comecei a reparar que havia muita gente a comer, com faca e garfo, para além de garrafas de vidro! A certa altura parecia que cada lugar do estádio era uma cadeira de um restaurante. Mais uma vez o Ramadão é explicação para tal situação, mas isto são “pequenos” pormenores que fui reparando. De volta ao ambiente do estádio, estava uma casa cheia como já referi em cima, anunciaram 43651 pessoas, mas pelo que presenciei e foi falado nos dias seguintes,
estariam perto de 60000 pessoas. Confesso que quando comprei o bilhete ia com a expectativa de ver um festival de pyro, mas os dois grupos, em comunicado, pediram para evitar por ser um jogo da Champions. Porém, durante o jogo foram abertas várias tochas, mas numa escala bem menor ao que nos habituamos a ver nas imagens que nos chegam pela Internet. Ainda durante o jogo, devido ao excesso de pessoas no estádio, foram vários os adeptos que tiveram que ser retirados de maca da bancada. Também assisti a várias invasões de campo e, no intervalo, na bancada perto dos EAGLES, gerou-se uma grande confusão com a polícia que se propagou para a pista perto das quatro linhas. Posso dizer que vivi uma experiência inesquecível ao poder ver aquelas bancadas cheias de pessoas de todas as idades, géneros, de pé a cantar a uma só voz. Valeu a pena! Por C. Peixoto
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Evolução do Futebol Moderno
Na última edição abordei o contexto de modernização do futebol em Inglaterra, que viria a influenciar todo o paradigma do desporto-rei no cenário europeu. Hoje darei continuidade a esta reflexão, abordando a realidade portuguesa e o processo que resultou na actual condição do futebol nacional, no que diz respeito à matéria de associativismo e assistências na bancada. Quando analisamos um fenómeno e queremos entende-lo holisticamente, é fundamental efectuar um enquadramento histórico que nos permita ter a percepção dos padrões sociais, políticos, económicos… do espaço/tempo onde ele ocorre. Portugal é correntemente apontado como um país de escassa mentalidade desportiva. Uma sondagem da Intercampus demonstrou que mais de 90% da população portuguesa apenas apoia 3 clubes. É do conhecimento comum que os 3 jornais desportivos com mais tiragem no nosso país estão associados a cada um destes 3 clubes. Esta circunstância corrobora a frágil militância do cidadão português na reivindicação da autonomia da sua comunidade local e regional, bem como da preservação dos seus valores, tradições e espírito. A promoção de políticas neoliberais no velho continente (às quais Portugal não
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ficou imune) e o parco poder económico das famílias portuguesas, juntamente com as preposições supramencionadas, consumaramse nos condimentos ideais que alimentaram a transformação que o futebol português vinha a conhecer desde o meio da década de 90, mas que, com a organização do Euro 2004, assistiu a uma notória aceleração. Destaco as seguintes consequências deste percurso até aos dias de hoje: - Os estádios novos não possuem as históricas “bancadas do peão” que permitiam ver o futebol em pé a preços mais acessíveis; - Os preços dos ingressos de jogo tornaram-se (ainda) mais dispendiosos para as famílias; - Paulatinamente as partidas de futebol deixaram de ser transmitidas em canal aberto e acessível a toda a população, sendo introduzidos os canais desportivos de subscrição paga; - Os clubes tornaram-se reféns das receitas dos operadores televisivos; - Os horários dos jogos ficaram subjugados aos interesses dos operadores televisivos; - Os clubes viram-se na obrigação de se constituírem como SAD’s ou SDUQ’s (implementação legislativa que remonta ao
ano de 1995 que regulamentou as sociedades empresariais desportivas, sendo proibida, contudo, a distribuição de lucros aos accionistas. Esta premissa sofreria um revés com o novo regime jurídico das Sociedades Anónimas Desportivas estabelecido através do Decreto – Lei 10/2013 de 25 de janeiro, o qual previa a aplicação subsidiária do regime geral das sociedades comerciais, regulamentado pelo Código Comercial Português. Assim, a partir de 2013, os clubes que desejassem participar nas ligas profissionais tiveram que adoptar o modelo empresarial, com finalidade lucrativa, para gerirem as suas actividades); - Legislação desportiva cada vez mais castradora sobre os direitos de associação dos adeptos; - Uma polícia “militarizada” foi desenvolvida para inibir os adeptos.
A antiga estratégia de criminalizar os mais desfavorecidos foi implementada em Portugal com a finalidade de servir interesses políticos e corporativos, sustentados numa suposta melhoria das condições de segurança do “consumidor” do espectáculo desportivo, inspirado no modelo inglês. A suposta necessidade de acções “musculadas” do policiamento nos estádios de futebol português configurou-se num cheque em branco às forças de segurança, para conterem uma espécie de vírus que os adeptos de futebol e alguns nichos dentro dos mesmos são acusados de possuir. Em contexto de futebol são múltiplas as denúncias por parte dos adeptos, sobre o facto da lei
não se consagrar na Constituição da República Portuguesa, mas no livre arbítrio de um agente de autoridade. Acusam as forças de segurança de descartarem o seu papel de instrumento de justiça e agirem de acordo com as suas vontades e conveniências. São muitos os casos modelo de violência policial, que época após época são denunciados das mais variadíssimas formas (muitos mais ficam por conhecer), e que além de afastarem as pessoas do futebol, deixam marcas irreversíveis na vida das vítimas destes abusos. O episódio do adepto axadrezado, João Adrião, é um exemplo paradigmático. A 3 de Outubro de 2014, nas imediações do Estádio D. Afonso Henriques, nos momentos que antecediam a partida entre o Vitória e o Boavista, três agentes espancaram o adepto boavisteiro até o deixarem cego de um olho. As conclusões que resultam do julgamento, realizado em 2019, no Tribunal de Relação de Guimarães, são as seguintes: - Ficou provado que o adepto ficou cego, devido às agressões de um grupo constituído por onze polícias; - O tribunal desmentiu as versões dos polícias, acusando-os duma conduta corporativista obscena; - A falta de apuramento dos agressores deveu-se ao facto do fardamento do Corpo de Intervenção, com capacete e viseira, inviabilizar o reconhecimento do rosto dos agentes. Segundo as palavras do juiz: “Isto é uma falha muito grave que facilita a ocultação da identificação de algum agente delinquente. Os senhores encobriram a identidade dos agressores, não fizeram o que devia ser feito, toda a gente se encobriu sob a capa do anonimato de uma farda que não diz se
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é o João ou o 324”; - Como “condenação” por terem mentido em sede de inquérito e espancado o adepto, foram absolvidos; O João Adrião ficou condenado a uma condição de cegueira, apenas por se ter deslocado a um estádio de futebol. Os agentes do corpo de intervenção continuam a exercer as suas acções “musculadas”, anonimamente. Em Junho de 2009 (exercia o cargo de Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, declarado admirador de Margaret Thatcher e conhecido por nunca usar um cravo ao peito nas comemorações do 25 de Abril) são lançadas as bases da Lei nº 39/2009 - Regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espectáculos desportivos. Esta lei, que viria a sofrer múltiplas actualizações até aos dias de hoje, definiu um conjunto de normas para que os espectáculos desportivos pudessem decorrer em “segurança”. A polémica lei mereceu forte contestação em 3 pontos: - Obrigatoriedade do registo dos grupos organizados de adeptos junto do IPDJ, I. P., tendo, para tal, que ser constituídos previamente como associações, nos termos da legislação aplicável ou no âmbito do associativismo juvenil; - Zonas Com Condições Especiais De Acesso E Permanência De Adeptos (ZCEAP)- áreas fisicamente segregadas das restantes bancadas/ sectores onde é “permitida a utilização de megafones e outros instrumentos produtores de ruído, por percussão mecânica ou de sopro desde que não amplificados com o auxílio de fonte de energia externa, bem como de bandeiras, faixas, tarjas e outros acessórios de qualquer natureza e espécie, de dimensão superior a 1m por 1m, passíveis de serem utilizados em coreografias de apoio a clubes e sociedades desportivas. A utilização deste material está sujeita à aprovação conjunta por parte do promotor do espetáculo desportivo, das forças de segurança e dos serviços de emergência”. - Cartão do adepto – documento com o custo unitário de 20€ e válido por 3 anos, que
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possibilitava a identificação de todos os adeptos (maiores de 16 anos) que pretendessem assistir a um jogo de futebol, nas zonas reservadas a adeptos que quisessem ser portadores de materiais, como bandeiras e faixas (com dimensões superiores a 1m por 1m) ou material sonoro. Todo este processo de discriminação da festa do futebol, fazendo crer que só numa parte do estádio é que se pode fazer essa celebração e, que quem nela participa, ao contrário dos restantes frequentadores do estádio, tem de ser identificado e vigiado de perto (com legislação própria), atribuindo uma clara conotação negativa à festa do futebol, mereceu forte contestação por parte dos Grupos Organizados de Adeptos (GOA), sendo que o Cartão do Adepto mereceu reprovação geral do universo futebolístico (adeptos; treinadores; dirigentes). Os GOA questionam sistematicamente a legitimidade da lei. Argumentam que não pode existir acção estatal que limite, injustificadamente, o exercício do direito de associação, pois, na construção do Estado Moderno o direito de associação impôsse como extensão dos direitos fundamentais dos indivíduos. O projecto de modernização do futebol português sustentou-se na manipulação mental da sociedade e em medidas de cariz repressivo. O plano desenvolvido inicialmente conotou
negativamente as emoções do adepto de futebol e distinguiu-o do novo conveniente tipo de frequentador dos estádios. O “consumidor” de futebol vê o futebol preferencialmente sentado, não revela espírito crítico em relação ao contexto em que está inserido e adquire serviços de canais desportivos com assinatura, portanto serve os propósitos do aburguesamento do futebol e daqueles que com ele pretendem enriquecer. O adepto de futebol vê o jogo preferencialmente em pé, questiona práticas e comportamentos das organizações e das pessoas que as constituem, contribui activamente para a valorização da figura do adepto, organiza-se e mobiliza-se em acções ruidosas de apoio ou protesto e critica os canais de desporto de subscrição paga pelos malefícios que trouxeram ao futebol, portanto é um agente incomodativo para os poderes instalados que pretendem mercantilizar a modalidade. A necessidade de desgastar a imagem e conotar negativamente o adepto de futebol constituiu-se uma estratégia para posteriormente legitimar a perseguição e a censura sobre eles e sobre o seu direito de associação. Todo o constructo estruturado de castração dos direitos associativos do adepto de futebol vai em sentido oposto em relação aos princípios de liberdade e democracia difundidos pelos estados após a II guerra mundial. A liberdade de associação é um direito fundamental individual consagrado ao longo do século XX em inúmeros
textos constitucionais. O direito de associação está vinculado ao princípio de protecção da dignidade da pessoa, aos preceitos de livre iniciativa, da autonomia da vontade e da garantia da liberdade de expressão. A atitude reiterada de desprezo dos órgãos governamentais e dos órgãos de tutela do futebol português pela liberdade de expressão dos adeptos e pelas suas reivindicações, demonstram a sua falta de zelo por uma saudável e harmoniosa democracia no contexto desportivo. A criminalização da figura do adepto e do livre associativismo, preteridos em relação ao processo de mercantilização do futebol, acabaram em última instância por desertificar as bancadas e, em função disso, a atmosfera de um jogo de futebol em Portugal tornou-se estéril e pouco interessante. Este fenómeno agudizouse com a realidade pandémica que vivemos nos últimos 2 anos, sendo que o regresso dos adeptos aos estádios nesta temporada desportiva, em comparação com a última época sem restrições, ditou uma perda de 1,2 milhões de espectadores. O esmorecimento dos protestos e das denúncias sobre o actual quadro legislativo vigente, poderá ditar a morte definitiva do futebol de massas em Portugal. Por J. Oliveira
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Union Berlin x Furth
O Union Berlin é um clube bastante peculiar, sendo até chamado por algumas pessoas de “clube de culto”. Apesar de ser dos principais clubes de uma grande capital europeia, o Union sempre militou nas divisões inferiores e só em 2019 passou a frequentar o principal escalão do futebol alemão. Para contextualizar um pouco do porquê de ser um clube bastante peculiar, estamos a falar de um clube cujos adeptos, em 2004, doaram o seu próprio sangue para salvar o clube (na Alemanha os cidadãos recebem dinheiro pela doação de sangue e os adeptos usaram esse dinheiro para o clube) e que, em 2008, usaram as suas próprias mãos para remodelar o estádio, que é um dos poucos da Bundesliga que mantém o nome original. Passando para o jogo em si, não foi nada fácil arranjar bilhete para assistir ao mesmo. Depois de tentar pelas vias oficiais, a minha salvação foi ter postado uma mensagem num fórum do Eisern Union (como é chamado pelos seus adeptos, que significa “União de Ferro” em alemão) e ter encontrado um Unioner que não podia ir ao jogo e que me cedeu o seu cartão de época para ir assistir à partida. Chegado a Berlim no dia do jogo, a minha primeira preocupação foi ir a casa da pessoa que me arranjou o cartão para o ir buscar, o que ainda me levou quase 1h de transportes públicos. Com o cartão na mão, o próximo ponto era a estação de Koepenick, e o destino final o estádio An der Alten Foersterei. À medida que a estação de Koepenick se ia aproximando era cada vez mais notório o aglomerado de adeptos do Union. Chegado à estação, o vermelho era a cor predominante e logo à saída do comboio já se respirava o verdadeiro ambiente do futebol. De seguida
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esperava-me o mítico trajecto pela floresta até ao estádio, e aquilo com que me deparei à volta do mesmo foi um cenário pouco habitual em Portugal, com os adeptos já em peso nas redondezas do estádio mais de 2 horas antes do início da partida a beber nos pubs e bares à volta do mesmo. Depois de dar por lá uma volta e de ver que uma boa parte das pessoas se estava a dirigir para o estádio, decidi ir para lá também. Lá encontrei a minha primeira surpresa. Depois de uma rápida passagem pela loja do clube, entro no estádio e deparo-me com roulottes, dentro do estádio!!! Adorei aquele cenário de ver o pessoal a comer e a beber com o relvado ao lado, algo a que nunca tinha assistido em nenhum dos vários estádios que já visitei por essa Europa fora. Com mais de 1h para o início da partida, o estádio já estava muito bem composto, com o pessoal sempre em zig-zag entre as bancadas e as roulottes. Subo para a bancada dos ultras da casa e recebo uma fanzine entregue pelo pessoal dos grupos na qual era explicado o tifo que iam fazer no jogo e um resumo dos jogos anteriores, algo que também já tinha visto em Itália, mas que é completamente utópico na realidade portuguesa. Depois de arranjar o meu lugar na bancada (o estádio tem apenas uma bancada com lugares sentados e as restantes são todas com lugares em pé), começo a aperceber-me verdadeiramente da ligação que o clube e os seus adeptos têm com a cultura punk rock. Para além das músicas do género que passavam nas colunas do estádio, era também notório na roupa de vários presentes na bancada a ligação das pessoas a essa cultura. Aproxima-se a hora do jogo e começase a preparar o tifo inicial, com um plástico pintado à mão a subir pelo topo acima e com
várias bandeiras distribuídas pela bancada a acompanhar dos lados. Após o apito inicial começa o apoio, que foi constante durante o jogo todo e que teve um grande acompanhamento por parte do resto do estádio. Apesar do apoio partir maioritariamente do sector dos ultras da casa, houve alguns momentos em que os cânticos começaram da bancada lateral e foram também vários os momentos de kop-a-kop entre ambas as bancadas. Notória também a presença de várias faixas e bandeiras nas restantes bancadas, o que demonstra a cultura de adepto presente e não apenas uma cultura de espectador passivo. O Greuther Furth, que apesar da distância e de ter a descida garantida se fez acompanhar dos seus adeptos, que praticamente encheram o sector visitante, foi o primeiro a marcar, arrefecendo um bocado os ânimos dos adeptos da casa, que precisavam de pontuar para manter vivo o sonho de chegar à Liga Europa. O Union só marcou na segunda parte, já depois dos 70 minutos, e conseguiu apenas um empate, o que se veio a revelar suficiente para, no final da época, garantir o 5º lugar e com isso a primeira presença do clube na Liga Europa. No final da partida ainda fiquei uns 10 minutos na bancada a assistir à comunhão entre jogadores e adeptos, mas só no dia seguinte soube que a festa se prolongou pela bancada dentro mais de 1 hora e meia após o apito final, sendo que nem o resultado menos positivo foi capaz de tirar o entusiasmo aos adeptos da casa (podem encontrar o vídeo disso no youtube). A partida foi acompanhada de um desejo de regressar ao An der Alten Foersterei e de poder vivenciar este ambiente mais vezes. Espero que o Union se mantenha na Bundesliga muitos anos, que se consiga manter fiel a si mesmo, que não abdique dos seus valores, que continue a ser um clube característico no cenário europeu e, agora que vão estar presentes na Liga Europa, que consigam mostrar a mais gente por esse mundo fora aquilo que são, na esperança de que o seu exemplo seja contagiante. Por J. Rocha
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Mafra x Tondela Uma segunda mão marcada para meio da semana, com mais de 500km de estrada para fazer. Completamente incompreensível a quantidade de gente afastada deste momento histórico devido ao horário. Ainda assim mais de 300 adeptos tinham lugar reservado no sul do país, apesar do mau momento no campeonato. E o sonho do Jamor continuava vivo, com uma vantagem de três golos. Mais uma deslocação épica, entre cerveja, amigos e festa, Mafra estava cada vez mais perto, e o Jamor a um passo. Entre gentes saídas da cidade de Tondela e tondelenses que já se encontravam a Sul, estava preenchido o sector visitante em Mafra. Um apoio incondicional durante 90 minutos. Um sofrimento enorme como esta gente está habituada. Desvantagem de golos no jogo não calava esta gente. No início da segunda parte, penalti assinalado para o Mafra. O coração parava, as vozes tremiam, o sonho do Jamor podia ganhar contornos difíceis. Babacar defende o penalti e é o “primeiro golo” festejado no sector visitante. Entre abraços, pirotecnia e gritos, o Jamor não podia fugir às gentes de Tondela. Muitos minutos de cânticos e quando a voz já começava a falhar, eis que surge o golo que carimba a passagem para Oeiras. Não era mentira. O Tondela estava no Jamor. As lágrimas de alegria corriam pela bancada. Os cânticos corriam dos mais novos aos mais pequenos. Estava feito. A pequena cidade conseguiu. Tondela vai ao Jamor. Uma vitória para todo este povo e para todos aqueles que lutam para contrariar a lógica do futebol em Portugal. Hora de voltar a pensar no campeonato, mas o sonho do Jamor já não era apenas um sonho. Era a realidade de cada Tondelense. A história estava feita. Dá-me a primeira e o Jamor. Já só falta a primeira. Por Pedro C.
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Um dos mais belos cenários nas bancadas é vê-las recheadas de estandartes. Infelizmente, a conjuntura actual não contribui para que esses cenários sejam habituais. Contudo, não é por isso que vamos deixar de “tifar” e que os estandartes vão desaparecer por completo do movimento. O primeiro pano que fiz tinha um desenho e composição muito simples. Era composto por três faixas horizontais de duas cores intercaladas. A faixa central tinha o fundo que mais se destacava e lá havia uma inscrição referente ao meu clube. As letras eram do mesmo tecido, tendo sido desenhadas e cortadas por mim e um amigo meu. Depois, a costureira tratou de coser tudo e nós tratamos de dar ainda mais significado ao pano, apresentando-o nas bancadas do país sempre que possível. Nos anos seguintes, fomos fazendo mais material. Usamos o retroprojetor, reutilizando acetatos ou desenhando em micas. Passamos para o projetor digital que era, de facto, muito mais avançado e facilitador. Eis que emigro e então não tinha acesso a esses equipamentos... Uma maneira de me sentir um bocadinho mais próximo da curva era ir pintando uns panos. Tive que improvisar e usar a “técnica” que vou apresentar para conseguir realizar a minha vontade. Talvez seja a maneira mais complicada de concretizar, mas talvez seja a mais acessível a todos. Haja interesse, e verão que a concretização será muito mais saborosa do que mandar imprimir.
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O primeiro passo é ter uma motivação para criar. Fazer por fazer não faz sentido. Até porque aquela peça tem de ser um espelho de uma identidade própria. Há que ser original e para tal é preciso idealizar o que fazer. Neste caso, fui desenhando e, não satisfeito com os dois primeiros desenhos, fui à procura de elementos próprios da Cultura de Bancada. A inspiração surgiu da foto de capa do Facebook da fanzine,
criada pelos nossos designers. A ideia foi-se maturando ao longo do processo.
O passo seguinte foi desenhar o projeto à escala real. Colei várias folhas A3, que formaram uma base para o que viria a ser um pano de 1,10 metros por 75cm de altura. Fiz uma esquadria de dois centímetros à volta da folha. É importante
fazê-la, pois ajuda a saber a área que temos para usar, a encontrar o meio da folha, a fazer “caixas de texto”, etc. À posteriori há que saber usá-la e desenhar.
imperfeições, mas original e com um sentimento de pertença acrescido. Vai para a costureira, para coser as dobras para os tubos e estar presente no próximo convívio da equipa da Cultura de Bancada... Até lá! Por L. Cruz
Correções feitas, o esboço passa a ser mais do que isso e vai ser o guia para a concretização do projeto. Pus (neste caso) o lençol por cima do desenho e, de seguida, com uma caneta marquei todas as linhas. Estava feito o trabalho do projetor. Trabalhoso, mas suficientemente eficaz. Agora, era altura de juntar as tintas. Ir buscar algumas ao armário, comprar outras e misturar algumas para obter outras cores. Era hora de mexer os pincéis e de pintar o lençol e as mãos. Tentar ser, ao máximo, perfeccionista e não estragar tudo. Confesso que sou um “sapateiro” na escolha do tipo de tinta, uso qualquer uma das que são destinadas a pintura de paredes e madeiras.
Pintura concluída, aí está o resultado final! Um bocado borratado e com outras
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A transferta começou cedo, ainda o relógio não marcava 9h e já os dois autocarros do Colectivo seguiam marcha, rumo ao último jogo da temporada, com vista à conquista de mais um título e a tão desejada “dobradinha”. Como é habitual nestas andanças, o contingente de geleiras supera o de pessoas, sendo de realçar a criatividade exibida em algumas das criações por parte dos Ultras! Viagem bastante animada e algo descontraída, talvez fruto do calibre do adversário, o habitual nervoso miudinho não se fazia sentir. O Jamor estava mais do que composto aquando da chegada e reinava um ambiente festivo e de grande partilha, o qual perdurou até próximo da hora do jogo. Presença massiva dos nossos adeptos, mais de 90% do estádio estava pintado de azul e branco, com especial reforço promovido pelo Futebol Clube do Porto ao distribuir inúmeros modelos de bandeiras afetas ao Clube. Apesar de os Super Dragões terem tambores e megafone, o apoio não foi fácil de coordenar. Eram milhares de pessoas, muitas delas sem grande cultura Ultra, aliando a isso os habituais excessos, que deturpam os sentidos ao povo. Visto não haver rivalidade, a tensão poderia surgir internamente ou com os moços de farda. Um ou outro foco de discórdia, mas sem grande expressão. Realce apenas para o contingente absolutamente despropositado
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que foi colocado entre a bancada e o relvado desde aproximadamente o final do jogo. Neste final de época foi apanágio por terras Britânicas e também por Itália, “invasões pacíficas” do relvado. Por cá, nem num dia tradicionalmente familiar, nos deixam, sequer, ter essa ideia. Um pé no tartan e os bastões estão prontos a cair! Quanto ao jogo, foi bem disputado, mas acabou por correr mais ou menos como era expectável. No final, uma bonita festa azul e branca, clubismos e rivalidades à parte, creio que é unânime que fomos a força maior desta temporada. Já cá fora e antes da animada viagem de regresso, tempo para um último convívio com famílias completas à mistura, gente de todas as faixas etárias, estando grande parte destas pessoas completamente fora do espectro do movimento, no entanto, isso pouco importa nestes dias... Isto é o Jamor! Isto é futebol! Por S. Peixoto
Na ressaca do dia mais triste da nossa história surge a contagem decrescente para o nosso auge enquanto grupo e clube. Que mistura de sentimentos terrível! Depois da raiva e das lágrimas, cada dia perdido fazia começar uma corrida contra o tempo. Começava a semana que todos pensavam que ia ser mágica e de felicidade, mas tornou-se uma mistura de sentimentos difícil de digerir. Começava a contagem para o mítico Jamor, e a vontade de marcar presença de forma notória era muita. 24 autocarros partiriam de Tondela no domingo, juntar-se-iam muitos mais, mas para nós começou muito antes. Entre muitas horas, muito dinheiro, muito esforço, era tempo de juntar as tropas e pintar um tifo que nos representasse da melhor maneira no Jamor. Dias de pintura, de ideias, de convívio, mas acima de tudo, de cada um mostrar que o Tondela está vivo e estará sempre. Estava tudo pronto, o material empacotado, estava lançado o mote para um dia memorável em cada um.
E não desiludiu, uma caravana de 24 autocarros em festa, milhares de Tondelenses no parque 3 que parecia uma minicidade de Tondela. Carregados de esperança, de orgulho e de muito álcool, em cada pessoa se via entusiasmo. Um momento único que passou rapidamente para a bancada. Estávamos em clara minoria e rodeados de adeptos adversários (com muitas provocações devido à descida à segunda liga, mas também muitos aplausos de pé, perante a raça desta gente). 90 minutos de apoio absoluto de cada uma das pessoas da bancada. Um jogo que se sabia que ia ser muito difícil, face aos dois momentos distintos, mas a nossa maior vitória já estava conquistada. 5 mil adeptos no momento após a descida de divisão a carregar com orgulho o símbolo do Tondela ao peito, que explodiram com o golo que deu esperança. Uma festa tremenda que invadiu cada uma das pessoas e que, mesmo com resultado final, não desapareceu. A maior vitória já estava feita para nós. A cidade estava unida, as pessoas mostravam orgulho, os adversários aplaudiam de pé. A pequena cidade do centro, uma vez mais, deixava perplexos até os mais atentos. A taça não veio para Tondela, mas a maior vitoria sim. União, mudanças de mentalidade e esperança no futuro. O Tondela vive! Voltaremos! Por Pedro C.
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Por volta do final de Março, eu e alguns colegas de bancada mais chegados recebemos um convite dos nossos amigos de Toulouse para assistir aquele que, à partida, seria o jogo da subida do clube. Rapidamente se gerou um interesse por parte de todos na viagem, mas estaríamos dependentes do dia em que iria jogar o nosso clube nesse fim-de-semana, não podia calhar no mesmo dia. Infelizmente, a Liga Portugal apenas anunciou a data do mesmo 2 semanas antes e, com os preços dos voos já bastante elevados, fui o único com disponibilidade para comparecer. Para melhorar, qual não foi o meu espanto quando, uns dias depois, ao jantar, vejo vídeos nas redes sociais da festa... da subida! O motivo da viagem parecia ter morrido, mas os franceses prometiam espetáculo à mesma.
Assim, aguardei. O meu voo ficou marcado para as 6h00 e o meu clube jogava fora na noite anterior, pelo que fui direto para o aeroporto, na tentativa de conseguir dormir um pouco. Tal não aconteceu e, por isso, cheguei a França ainda a arrastar os olhos. Como combinado, pelas 9h00 os colegas franceses foram-me buscar ao aeroporto. Dirigimo-nos diretamente para o estádio onde já se encontrava grande parte do grupo a organizar a coreografia. Fui sendo apresentado enquanto ajudava com as tarefas. Primeiro a distribuir bandeiras pela bancada, depois a colar a frase e,
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por último, a pendurar os vários tifos no topo do estádio. Foram três horas nisto, que passaram a correr. Com tudo terminado era altura de almoçar algo e ir para o ponto de encontro. Fomos a pé para o centro da cidade, comemos uma sandes pelo caminho, até que chegamos ao pub onde o grupo se iria juntar. Todos os membros vestiam uma t-shirt igual com uma alusão à cidade, que me foi prontamente oferecida para não estragar o dress code. É então feito o cortejo desde o centro da cidade até ao estádio, com vários adeptos “normais” a juntarem-se pelo caminho. Muita pirotecnia, muitos cânticos, o que se esperava. Saliento que havia zero presença da polícia, o que me causou alguma confusão. Já na zona do estádio, foi altura de esperar pela chegada do autocarro. Ainda mais pirotecnia e ainda sem polícia, o que me deixou incrédulo, dado estar habituado a ter que ver o autocarro da minha equipa quase a 15 metros de distância, por motivos de segurança. Mais umas cervejas antes do jogo e estávamos prontos para entrar. Entramos 30 minutos antes, com bancadas já bem compostas. Fiquei encarregue de segurar uma das partes de baixo do tifo. O público em geral foi bastante receptivo e pronto a ajudar, seguindo as ordens dos ultras. Correu tudo como planeado e, já com o estádio cheio, foi difícil descer até à curva com tanta gente. Quanto à curva, pareceu-me bem organizada. Dois capos e toda a gente a contribuir, apesar de as laterais não interagirem muito. Da primeira parte não há muito a descrever. Pouco vi do jogo (explico o porquê mais à frente) mas o Toulouse perdia por 0-1, o que, apesar de já terem subido, não garantia a conquista do campeonato. Ao intervalo, apareceu um homem com uma camisola do Nantes (rival do Toulouse) na bancada, que lhe foi rapidamente retirada.
A grande surpresa estava guardada para a 2ª parte, mais concretamente aos 80 minutos. O Toulouse fez o 1-1 e, como não havia melhor timing possível, fez o 2-1 aos 77 minutos. Após os festejos, foi hora de organizar e esperar pelas ordens. Já espalhados pela bancada, vestidos de igual e com todo o público novamente receptivo e a tentar ajudar, as tochas foram todas levantadas no ar, o que proporcionou um belo momento. Com o apito final, e a conquista da vitória, o Toulouse ficava consagrado campeão. Imediata invasão de campo com os ultras, obviamente, a aproveitar para tentar chegar ao sector visitante. Tentativa essa que foi controlada pelos stewards. Muita festa, durante largos minutos, enquanto caía o pôr-do-sol sobre o estádio. Já cá fora, continuaram os festejos com muita pirotecnia à mistura. A noite acabou num pub
com o grupo todo. O estádio é bastante peculiar por dois motivos: por ficar numa “ilha” (é cercado pelo rio) e por as bancadas terem sido construídas por cima de uma pista de atletismo. Graças ao 1º motivo, só há duas estradas que permitem aceder ao estádio, o que torna interessante a movimentação dos adeptos visitantes. No fim do jogo, os adeptos do Toulouse aproveitaram a festa do campeonato para bloquear uma das pontes, impedindo a saída dos adeptos do Nimes. Em relação ao 2º, as bancadas foram construídas com um ângulo bastante horizontal de modo a cobrir a pista. Por isto, foi-me praticamente impossível conseguir ver o jogo em condições. Infelizmente a maioria dos franceses não falava inglês, o que não facilitava a comunicação, apesar de existir interesse em partilhar experiências de ambos os lados. De registar o
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espanto dos ultras quando eu explicava as leis em vigor em Portugal e a repressão que sofremos o que, para mim, ganhou uma maior dimensão negativa por conseguir compará-la com outra realidade. O que me causou mais impressão foi sem dúvida a polícia. Do cortejo ao estádio, mesmo lá dentro, não vi um único polícia, muito menos polícia de intervenção. Apenas uma espécie de “spotters” franceses mas, pelo que me foi explicado, eram voluntários e não tinham muita influência. Em conclusão, foi uma experiência bastante positiva. Fui muito bem recebido e foi enriquecedor conhecer uma realidade diferente da que estamos habituados. Por M. Ribeiro
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CULTURA DE ADEPTO Por P. Alves e M. Bondoso
“A memória é o essencial, visto que a literatura é feita de sonhos e os sonhos fazem-se combinando recordações”. Jorge Luís Borges
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Bad Blue Boys Internacional Autor: N/A Equipa: Dínamo Zagreb Ano: 2021 Páginas: 383 Preço: 35eur Este livro insere-se nas comemorações dos 35 anos dos Bad Blue Boys e é uma foto monografia bastante completa, organizada por capítulos. Deixamos aqui a descrição de alguns deles: Até ao último homem, capítulo sobre a guerra e o jogo onde a mesma começou. Um celebre Dínamo - Estrela Vermelha em 1990. Também neste tema é abordada a luta dos BBB contra o presidente do clube Mamic. Deixem que a Europa inteira trema, dedicado às deslocações europeias, algumas delas bastante famosas, como a de 1990 a Bergamo. Os meus ideais e as minhas cores: coreografias variadas, desde as primeiras fumaradas e tochadas até mosaicos mais elaborados nos anos 2000.
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Ultras Nacional Autor: Miguel d’Almada Equipa: N/A Ano: 2007 Páginas: 116 Preço: N/A Durante a época de 2006, Miguel d’Almada, famoso adepto para os lados Leoninos, decide compilar em livro um conjunto de eventos que ocorreram na pátria do tifo – Itália. Durante pouco mais de 100 páginas, o autor relata alguns dos principais eventos ultras. De certa forma, replica um pouco aquilo que algum tempo depois seria banal nos blogs, páginas de Facebook ou, mais recentemente, no Instagram e Telegram. O livro é composto por duas secções: o prefácio – onde o autor tenta explicar e resumir um pouco a origem e evolução do panorama ultra, - e as crónicas – pequenos relatos de acontecimentos ao nível de jogos, confrontos, decisões políticas ou judiciais, dos mais variadíssimos grupos italianos, mas com especial relevo aos da Serie A. As mesmas são acompanhadas por fotos ou traduções de comunicados que o autor considerou relevantes. Não sendo um livro espetacular – longe disso, pode-se encarar o mesmo como uma espécie de diário/resumo de uma época desportiva em Itália o qual não teve seguimento em anos posteriores, mas que, no entanto, serve de recordação ou de peça de colecionismo.
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Bad Blue Boys
Ultras
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Na primeira metade do filme, a história vai-se desenrolando à volta das tricas pessoais da vida de Príncipe, personagem representada por Claudio Amendola que, na vida real, é um fervoroso romanista que em tempos chegou a frequentar a Curva Sud. Príncipe, capo da Brigata, sai da prisão e regressa ao “activo”, mas durante o período que esteve encarcerado, a sua namorada Cinza envolveu-se amorosamente com Red, também ele um dos membros mais respeitados do grupo. Na segunda metade do filme, as coisas começam a aquecer e é retratada uma transferta
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dos ultras romanistas até Turim, para um escaldante jogo com a Juventus. Durante a viagem noturna realizada de comboio, vão se desenrolando conversas, cânticos, copos e todas as habituais peripécias expectáveis numa transferta. Depois de uma paragem forçada de várias horas, que os rapazes “mataram” com um jogo da bola no meio de um campo, dá-se a chegada a Turim e logo começam os incidentes entre “Gialorossi” e “Binconeri” que levariam os romanistas a ficar retidos pela polícia mais umas horas. Apesar de todos estes contratempos, a Brigata Veleno chega finalmente aos arredores do estádio, onde é rapidamente atacada pelos Drughi e desencadeia-se um verdadeiro “arraial” à moda antiga. Entre socos, pontapés, arremesso de pedras, uso de barras de ferro, um romanista é esfaqueado e acaba por morrer à entrada do estádio, ficando os companheiros de grupo com muitas dúvidas sobre as circunstâncias que motivaram a tragédia. Embora se possa considerar que existe
uma certa estigmatização e que os defeitos da cultura sejam, de certa forma, exacerbados, este retrato é compreensível para dar “sal” à obra e, mesmo assim, esta película figura como a melhor representação ficcional alguma vez feita sobre o movimento ultra. Por entre as tricas pessoais, vislumbram-se inúmeras representações fidedignas da cultura, nomeadamente em termos de faixas, bandeiras, cânticos e até algumas expressões utilizadas nos diálogos. Esta capacidade de representar com precisão alguns elementos da cultura pode justificar-se com a presença no elenco de actores que passaram pela bancada na vida real. Opinião diferente tiveram muitos integrantes da Curva Sud, que à época vivia um período áureo com a dominância dos míticos CUCS, que inclusivamente chegaram a tentar boicotar a exibição do filme em alguns cinemas da cidade eterna. Ainda hoje Ultrà é um filme de culto para os amantes do movimento, mas, no caso particular do nosso país, é extremamente difícil encontrar a película devidamente legendada em português. Certo é, que a obra influenciou gerações de ultras e é ainda hoje uma delícia assistir a este pedaço da história desta cultura. Por J. Sousa
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A HISTÓRIA DOS EMBLEMAS Um emblema, também chamado de brasão, escudo ou distintivo, tal como qualquer símbolo de uma instituição, é a face principal de um clube. Por essa razão, quando os adeptos olham para o seu emblema, conseguem identificar uma série de valores e características próprias que definem o clube. A sua história não é recente nem pertence ao domínio do futebol. Na verdade, faz muitos anos que a iconografia existe e, naturalmente, acabou por evoluir até à criação do seu ramo mais académico, a heráldica, que muito nos ajuda na interpretação. Foi com esta disciplina que se desenvolveram os brasões, fossem eles de reinos, de famílias ou até de sociedades civis. Só muito mais tarde acabariam por se transportar para o mundo do futebol. Não sei qual o primeiro clube a usar um emblema cosido na camisola, mas parece que posso afirmar que, no início, a grande maioria dos clubes só usava o seu emblema em ocasiões importantes e apenas mais tarde se convencionou o seu uso generalizado. Em Inglaterra, o berço do futebol, os primeiros brasões de muitos clubes prestaram homenagem à história da cidade e suas indústrias ou marcos relevantes. Até aí não havia nenhum problema, até porque os governantes da cidade ficavam contentes ao ver partilhada a imagem da sua cidade. O problema veio quando outras instituições da cidade usavam o mesmo símbolo, ou até quando tentaram registar o brasão da cidade e viram-se obrigados a procurar um símbolo que os identificasse exclusivamente. Também devemos ter em conta que os brasões eram símbolos mais complexos, com pormenores em demasia, o que impossibilitava que elementos individuais se realçassem. Assim, os novos emblemas seriam simples, de uma figura, que possibilitaria a memorização e a distinção com maior facilidade. Ao longo dos tempos os homens escolheram animais ferozes, armas ou até outros elementos que acrescentassem algo à
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caracterização do clube, fortalecendo a sua imagem exterior. Algo que merece uma atenção particular é que, por consequência da presença dos novos elementos nos símbolos, vários clubes ganharam alcunhas que se popularizaram entre os adeptos até aos dias de hoje. Também interessa dizer que a heráldica ajudou os historiadores, e mesmo os próprios adeptos, a entender melhor os aspectos sociais e culturais presentes na génese dos clubes. Não é à toa que os clubes usam determinadas cores e figuras, tudo tem uma explicação e, se facilmente os adeptos identificam o emblema do seu clube, por outro lado, dificilmente têm o real entendimento sobre o que ele significa e qual a razão que o justifica. Deixamos aqui alguns exemplos de significados presentes nos emblemas de quatro clubes: Vitória SC: O preto e o branco são cores que “simbolizam a abertura do Vitória Sport Clube para receber todos, sem discriminação de raça ou estatuto social” e o D. Afonso Henriques, nascido em Guimarães e primeiro Rei de Portugal, é um dos maiores símbolos da cidade.
Leixões SC: O Leixões nasce da fusão de três grupos desportivos. Os três elementos constituintes do símbolo representam a modalidade Futebol, Ténis e Cricket.
Arsenal FC: O canhão, presente no seu símbolo, deriva do facto dos seus fundadores serem trabalhadores na fábrica de munições do Royal Arsenal.
AS Roma: Saídos da lenda sobre a fundação da cidade de Roma, a Loba Capitolina, que alimenta os irmãos gémeos Remo e Rômulo, é um dos símbolos mais importantes da cidade.
Apesar da grande importância dos símbolos, os clubes vão rompendo com os símbolos, reformulando-os para se adaptarem aos novos tempos. Esta é uma mudança que, no geral, os adeptos têm dificuldade em aceitar e acaba por ser fácil de compreender o porquê. Afinal, o emblema é o símbolo máximo da identidade dos adeptos, onde conseguimos intensificar as imensas memórias e os nossos sentimentos. Concluindo, o emblema é um rótulo da identidade, produz o efeito de manter vivo o sentimento de ligação ao clube e distingue-o dos demais adversários. Não é por mera casualidade que o emblema está colocado, sobre o coração, do lado esquerdo do peito. Por J. Lobo
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BALANÇO DA ÉPOCA A época terminou, os estádios vão fechar e é, por isso, hora de fazer um balanço sobre o que ocorreu ao longo do último ano. Longe vão os tempos em que as fanzines podiam avaliar as coreografias, o material da curva e as deslocações dos grupos de cada clube. Hoje, ao contrário desses anos, pouco tempos para falar sobre a bancada. Salva-se, quase como excpeção, alguma violência, onde a maior parte das ocorrências são por posse ou uso de pirotecnia, mas sobre isso já não há muito a dizer. Na verdade, já disseram tudo e mais alguma coisa sobra esse tema. O que nós queríamos mesmo era fazer o balanço da beleza que os adeptos acrescentam ao desporto só que, infelizmente, os sucessivos governos e autoridades afastaram deliberadamente os adeptos desse propósito. Pois é, longe vão os tempos em que os grupos podiam criar coreografias, levar as suas belas bandeiras e não tinham problemas em alugar autocarros para se deslocarem em grupo. Actualmente os grupos estão a ser empurrados para a clandestinidade e cada vez menos se nota uma organização no seio dos mesmos, refletindose assim o efeito da forte repressão que tem abalado as nossas bancadas. Não sendo fácil a tarefa de avaliar e tendo a consciência que a mesma é condicionada pela subjectividade, seja pela informação escassa ou
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até por falta dela, tentaremos dar o nosso melhor. Em sequência do facto de estarem a empurrar os grupo para a clandestinidade, deixamos cair uma primeira nota sobre a evolução do movimento casual ou, se o nome não for o correcto, de um contexto semelhante ao mesmo. O início desta época não foi fácil e, seja por culpa do COVID ou do já extinto Cartão do Adepto, os adeptos tiveram enormes condicionantes que problematizaram o seu regresso aos estádios. Deve ter-se em especial consideração o número de associados que os clubes perderam pela acumulação das quotas no período em que fecharam os estádios. A par disso temos os “restos” da anulação do Cartão do Adepto, principalmente as zonas com condições especiais de acesso e permanência, que mostram ser um impedimento para que mais adeptos se desloquem aos estádios. Contas feitas e os estádios perderam 1,2 milhões de adeptos. É preocupante que as entidades responsáveis pelo futebol em Portugal (a FPF, a Liga e mesmo os clubes) nada tenham feito para se precaver e contrariar esse cenário. Pelo contrário, a FPF, no seu plano estratégico denominado de Futebol 2030, continua a apelidar os adeptos como consumidores, mostrando bem a forma como nos percecionam. Nem nos vamos dar ao trabalho de justificar o nosso comentário. No que toca a este tema, essa gente é apenas show off e as suas intenções são bem claras. Jamais poderemos esquecer que o actual presidente foi a pessoa que levou a sugestão do Cartão do Adepto ao parlamento! Já no que diz respeito à Liga de Pedro Proença, continua a cobiçar mais medidas repressivas para os “consumidores”. É impossível esquecermos as propostas que apresentaram à APCVD onde, entre várias,
surge uma onde pede a intervenção efectiva da polícia nas bancadas. Isto, poucos dias após aquela intervenção das forças policias, onde colocaram em risco milhares de adeptos, durante um Vitória SC x Sporting CP. São estes os novos responsáveis pelo pacote repressivo que se está a preparar nos bastidores da política portuguesa e, com este governo de maioria absoluta e o seu historial nestes temas, nada de bom nos espera. Também queríamos deixar uma palavra de contentamento pelo fim da novela entre Belenenses vs SAD, com a vitória do clube nos tribunais. Nessa linha, também nos mostramos satisfeitos com o início da caminhada do Leixões para se separar da sua SAD. Estes exemplos serão o motor para que, no futuro, muitos outros clubes tomem a mesma direção, libertando-se das algemas dos interesses do capital privado. É preciso perceber a importância que a comunidade tem junto da sua instituição desportiva. Se hoje estamos neste patamar, muito devemos à força popular que sempre suportou os seus clubes. Por curiosidade, a FPF, no seu plano estratégico, quer potenciar a relação dos adeptos com os clubes locais. Não admira, basta olhar para os mapas com a localização dos clubes das competições profissionais e facilmente entendemos que a maior parte de Portugal é uma verdadeira paisagem. A Associação Portuguesa de Defesa do Adepto também merece o nosso destaque. Esta foi o elo de ligação entre adeptos que os conduziu à luta. Deixamos este exercício: Qual de vós imaginava que, há 10 anos atrás, em Portuga, ia aparecer uma Associação de Adeptos e que, a mesma, teria a capacidade de lutar contra a Tessera del Tifoso (cartão do adepto) em tempo record, como nunca havia acontecido em
nenhum outro país... Finalmente fomos um bom exemplo para o exterior! Não podíamos deixar de tocar neste nosso cantinho, a Cultura de Bancada. Estamos agora a um número de concretizar o fecho do segundo ano. Fomos sempre regulares, expandimos as nossas áreas temáticas, soubemos lidar com os “terramotos” internos de quem não teve possibilidades de continuar a trabalhar no projecto, tentamos inovar na construção... A nosso ver, só há uma coisa que piorou que foi o interesse dos adeptos na revista. Isto é algo que continuamos a ter muitas dificuldades em compreender. Talvez seja o reflexo da realidade do país, mas seja como for, desmotiva bastante. Nós também temos vida própria e, como todas as vidas, também temos os nossos problemas e desafios. Por isso temos de perguntar, será que vale a pena tentar construir algo para uma comunidade que não mostra interesse no que construímos? Enquanto não temos a resposta definitiva resta-nos continuar a sonhar e a trabalhar por uma Cultura melhor. Deixamos agora uma palavra final. Sabemos bem que os grupos vivem uma fase má e, inclusive, perderam alguns elementos. Isso nota-se na bancada, mas não desanimem, vocês têm uma capacidade acima dos demais adeptos. Não estamos a dizer que são melhores ou piores, apenas que tem a capacidade de organizar e expandir a vossa voz. Trabalhem dentro dos vossos valores, permaneçam unidos e solidários, mas acima de tudo, mostrem a verdadeira razão pela qual existem! Jamais alguém contribuiu para a festa das bancadas como vocês! Um jogador pode marcar um golo e pôr o estádio em festa, mas vocês, Ultras, até com a vossa equipa a perder, conseguem pôr o estádio todo a vibrar!
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