cao guimarães memória e outros esquecimentos
cao guimarães: memória e outros esquecimentos
cao guimarães: memory and other forgetfulness
michael asbury
michael asbury
A paisagem, uma estranha paisagem estrangeira, aparece em ambas as direções à medida em que a câmera, obviamente posicionada dentro de um veículo, captura tanto a imagem vista pelo pára-brisa quanto pelo espelho retrovisor. A natureza alheia do lugar é enfatizada pelo rádio, com um locutor falando continuamente em um tom monótono para aqueles que não entendem o idioma: nenhuma música, só a verborragia incompreensível. A princípio esse vídeo parece ser só um registro de férias, daqueles capturados por turistas obsessivos, que querem tanto abarcar todos os aspectos da experiência que ao fazêlo acabam sem tempo para vivenciar o lugar sem a mediação da câmera. Esse filme é, dessa maneira, contínuo, sem cortes, sem edição, uma só tomada, em outras palavras, é uma forma de cápsula de um tempo determinado. Ele captura o tempo que o veículo, talvez um táxi ou ônibus, leva para navegar pelas ruas tortuosas encrustradas em uma paisagem costeira montanhosa. O mar parece estar sempre na iminência de aparecer no horizonte, mas seu ultramar magnífico nunca se materializa. Também não se trata de uma paisagem atraente, com prédios intermitentes anunciando
The landscape, a strange foreign landscape, flashes by in both directions, as the camera, obviously placed inside a vehicle, captures both the windscreen and the rear-view mirror. The foreignness of the place is emphasised by the radio, with the DJ continuously speaking in a monotonous tone for us who do not understand the language: no music just an incomprehensible rant. At first this video seems nothing more than a holiday souvenir, one of those captured by an obsessive holidaymaker, who is so intent in capturing all aspects of the experience that in doing so has no time left to experience the place itself without the mediation of a camera. The film is in this way continuous, with no cuts, no editing, just one single take, it is in other words, a capsule of time itself. It captures the time that the vehicle, perhaps a local taxi or a bus, takes to navigate the torturous roads that are carved out from the hilly costal landscape. The sea seems to be always about
Memória 2008 -- hdv/ntsc -- 5’00’’
seus comércios para turistas em cartazes e bandeiras, diferenciando-se dos outros numerosos prédios ainda em construção no meio de uma vegetação esporádica e árida. A arquitetura vernacular à beira da estrada e a vila que se aproxima, no topo da montanha, sugerem que a locação seja a Grécia ou uma de suas ilhas e, embora incompreensível, o rádio corrobora essa hipótese. Se essa fosse uma projeção privada do filme, uma forma de alguém descrever suas férias a amigos e parentes, um auxílio à memória, seria realmente descrita como um souvenir. No entanto, está em exibição pública, em uma galeria, e se intitula Memória. Portanto, assim como a dupla visão do próprio filme, com as vistas da frente e da traseira do veículo, Memória adquire um duplo significado. O anonimato dos passageiros sugere, ainda mais, que isso não é o que a princípio parece. Não é nem uma lembrança de férias nem um trabalho de arte auto-indulgente que coloca as questões ordinárias da vida do artista no pedestal do espetáculo. Memória, uma meditação no presente sobre o passado, feita à luz do que o futuro pode trazer, torna-se cúmplice do local do filme, a Grécia. Estamos então falando de duas
to appear on the horizon, but its ultra-marine magnificence never quite does materialise. Neither is it a particularly scenic landscape, with intermittent buildings announcing their trade to incoming tourists by way of flags and banners, differentiating themselves from the numerous other buildings still under construction amidst barren fields. The roadside vernacular architecture and the approaching hill-top village, suggest that the location may be Greece or one of its islands and, although incomprehensible, the radio further confirms the hypothesis. Had this been a private projection, a means of better describing one’s holiday to friends and family, a memory-aid, it might have indeed been described as a souvenir. However, it is on public display, in a gallery, and it is entitled Memory. Like the double vision of the film itself, with the views of the front and rear of the moving vehicle, Memory thus gains a double meaning of its own. The anonymity of the passengers further suggests that this is not
memórias, a pessoal, do registro de férias, e nossa memória coletiva da Grécia, o berço da civilização ocidental. Ambas as visões são confrontadas com o que há de vir. Mas o que o pára-brisa anuncia, ou o que o espelho retrovisor deixa para trás, não é certamente uma visão da arcadia. Vemos uma visão da contemporaneidade, das movimentações do turismo globalizado. E à medida em que o veículo atinge seu destino, diminui sua velocidade, manobra no estacionamento, podemos finalmente ler os cartazes e bandeiras dos estabelecimentos comerciais, todos eles, sem exceção, escritos em inglês. Talvez possamos especular que este trabalho é o resultado da reflexão do artista sobre a colisão das duas memórias, a coletiva e a pessoal: um ensaio visual, como é frequentemente o caso de Cao Guimarães, sobre o estranhamento que se encontra no ordinário, literalmente uma reflexão do passado sobre o presente, livre de idealismo e nostalgia. Como Memória, a série Campo Cego, produzida em colaboração com Carolina Cordeiro, apresenta uma elaboração similar que interrompe a vista da paisagem. Novamente o trabalho envolve o ato de viajar e o advento do registro, dessa vez através de fotografias. São registros de encontros fortuitos que trazem realidades distintas para uma espécie de conflito lúdico-poético. A série registra instâncias nas quais os artistas encontraram casos de sinalização em rodovias cuja informação o tempo obscureceu, ou por
what it may at first appear to be. It is neither a holiday souvenir nor a self-indulgent artwork that places the ordinariness of the artist’s life on the pedestal of spectacle. Memory, a meditation in the present about the past, exercised in the light of what the future might hold, becomes complicit with the location of the film: Greece. We are speaking therefore of two memories, the personal, holiday snap, and our collective memory of Greece, the cradle of Western civilization. Both these visions of the past are placed in confrontation with what lies ahead. But what the windscreen announces, or indeed what the rear-view mirror leaves behind, is certainly not a vision of arcadia but the contemporaneity of the globalised tourist trade. And as the vehicle reaches its destination, slows its pace, as it manoeuvres into the parking slot, we are finally able to read the banners and flags in the commercial establishments, all of which, without exception are written in English. Perhaps one could speculate that this work, is the result of the artist reflecting on the clash of both memories, the collective and the personal: a visual essay, as is often the case with Cao Guimarães, on the strangeness encountered within the ordinary, literally a reflection of the past upon the present
Campo cego 2008 -- fotografia/photograph -- 100 x 150 cm cada/each
oxidação ou, o que é mais frequente, pelo depósito de poeira ou lama. Estas placas se transformam em metáfora de um conflito, no qual o impulso moderno, com seu discurso auto-afirmativo de progresso, é massacrado, exposto em sua efemeralidade e fragilidade, pelo poder avassalador da natureza. No entanto, se as realidades da modernidade e da natureza são postas em confronto, acredito que se possa dizer que são, acima de tudo, as qualidades formais dessa justaposição que interessam ao artista. Uma dessas fotografias me parece especialmente significativa: ela mostra uma placa, centralmente, como um tipo de ponto de fuga. A estrada asfaltada é ladeada por uma parede baixa de concreto, que na imagem corre quase verticalmente até atingir a placa, ou o centro da fotografia. Isso por sua vez age como uma linha divisória entre o asfalto e uma clareira que, parece, em sua dimensão, uma estrada de terra. A rodovia então acha sua imagemespelho na estrada de terra. Esse jogo com a perspectiva leva ambas estradas ao mesmo ponto, a placa sinalizadora, na verdade um não-sinal, o território de confronto, já que sua cobertura monocrômica nega qualquer possibilidade de sinalização. Mas a sinalização da rodovia não só age como ponto de convergência dessas duas realidades distintas, que poderiam poeticamente figurar também como metáforas
free from idealism and nostalgia. Like Memory, the series Campo Cego, produced in collaboration with Carolina Cordeiro, presents a similar devise that interrupts the view of the landscape. Again, the work involves the act of travelling and the advent of registering, this time through photography, chance encounters that bring distinct realities into a kind of poetic/ludic conflict. The series registers instances in which the artist/s came across road signage whose information time has obscured, whether through oxidation or, as is more often the case, through the deposit of dust or mud. A struggle is portrayed, where the modern drive, with its self assertive discourse of progress, is nevertheless burdened, shown its ephemerality and fragility, by the overwhelming power of nature. Yet, if the realities of modernity and nature are played against each other, I think it is safe to say that it is the formal qualities of this juxtaposition that are of interest to the artist. One such photograph strikes me as particularly telling: it displays the sign, centrally, as a form of escape point. The tarmac road is bordered by a low-level concrete wall, which in the image runs almost vertically until it reaches the sign, or the centre of the photograph. This in turn acts as a dividing line between the tarmac road and a clearing which resembles, in its dimension, a minor dirt track. The road thus finds its mirror image in the dirt track. This play on perspective takes both roads towards the same point, the road sign, actually the non-sign, the territory of confrontation, as its monochrome cover denies any possibility of signalling information. But the road sign, the non-sign, does not only act as the convergence point of these two distinct realities, which could poetically stand in as metaphors for the duality of Brazil itself. Even the clouds seem complicit in this
da dualidade do próprio Brasil. Até as nuvens são cúmplices desse jogo composicional. A sinalização rodoviária é também confrontada com o horizonte, cobrindo-o inteiramente, exceto pelos topos das árvores que se insinuam acima da placa. Isso produz um trompe-l’oeil interessante. A uniformidade da cor da terra, seja na pequena parede ladeando a estrada ou na estrada de terra é replicada nos depósitos de poeira que obscurecem a sinalização rodoviária, transformando-a em um campo monocrômico, uma pintura. Por estar posicionada bem no centro, no ponto de fuga da composição, não se pode saber sua posição relativa; ela essencialmente escapa do posicionamento. Poderia ser uma placa pequena, não tão distante da câmera, ou poderia ser enorme, colocada na beira da curva da estrada. Na verdade, se nos deixarmos levar por essa ambivalência, a placa poderia ser um corte na encosta da montanha como poderia ser uma pintura na superfície da fotografia. A memória poderia também ser um tema implícito na série Espantalhos de Cao Guimarães, também apresentada nessa exposição. Às vezes grotescos, às vezes cômicos, a aparente personalidade atribuída a essas figuras trai sua
compositional play. The road sign is also placed in relation with the horizon, covering it entirely other than the tips of some trees that just about manage to appear over its top. This produces an interesting trompe-l’oeil. The uniformity of the colour of the earth, whether on the roadside, whether on the small concrete bordering wall, whether on the dirttrack is replicated in the dust deposits that obscure the road sign, that transform it into a monochrome field, a painting. Because it is positioned at the very centre, at the escape point of the composition, one has no means of assessing its relative position, it essentially escapes positioning. It could be a small sign placed not so far from the camera as it could be a gigantic sign placed on the verge of the bend in the road. Indeed, if we are to let ourselves be taken away by this ambivalence, it could be a gash in the hillside as much as it could be a painting on the surface of the photograph. Memory could also be an implicit theme within Cao Guimarães’ Espantalho series of photographs also
detalhe de/detail from Espantalhos 2009 -- 16 fotografias e áudio 5.1 -- 110 x 70 cm cada/16 photographs and audio 5.1 -- 110 x 70 cm each/trilha sonora original O Grivo/original soundtrack by O Grivo
funcionalidade. Sua precariedade é às vezes afirmada pela simplicidade da construção: algumas garrafas penduradas em gravetos. Em outros casos, essa simplicidade é anulada pelo cuidadoso posicionamento da figura. Ao contrário de Campo Cego, que apresenta a natureza vencendo o homem, é intrigante como em muitos casos as roupas usadas para os espantalhos, que dão forma às figura, parecem estar muito limpas, muito bem arranjadas. A própria natureza dos espantalhos guarda a informação de que essas roupas foram descartadas, mas no entanto estão tão bem colocadas nos espantalhos que nos lembram manequins de vitrines. Há então uma memória implícita nessas imagens, a memória daqueles que os produziram, os trabalhadores rurais que em suas supostas vidas simples e agrárias demonstram tanta criatividade inata, tanto cuidado e sensibilidade. Suas ausências também são lembradas, sendo incorporadas pelos próprios espantalhos que, vestindo suas roupas tornam-se espectros daqueles que os produziram. E se a limpeza de suas roupas demonstra seu orgulho, auto-respeito, aquelas que estão puídas e rasgadas tornam-se testemunhas do peso de seu trabalho.
present in this exhibition. At times grotesque, at times comical, the functionality of the figures that these pictures portray is betrayed by the apparent personality that they possess. Their precariousness is sometimes affirmed by the simplicity of the construction: a few bottles hung from some sticks. In other instances such simplicity is counteracted by the careful positioning of the figure. As opposed to Campo Cego, which presents nature overpowering man, it is striking how in many instances the clothes utilised for the scarecrows, placed upon the figure, appear to be so clean, so well arranged. The very nature of the scarecrow entails the understanding that these clothes have been discarded, yet they are often so carefully placed that one is reminded of mannequin displays in shop windows. There is thus an implicit memory held in these images, the memory of those who produced them, the rural workers, who in their seemingly simple agrarian life display such innate creativity, such care, such sensibility. Their absence is also remembered, indeed embodied, by the scarecrows themselves, who, wearing their clothes become the spectres of those who produced them. And if the cleanliness of some of the clothes is demonstrative of their pride, their self-respectfulness, those that are ragged and torn become testimonies of the harshness of their labour.
texto/text michael asbury
abertura/opening 02.04.2009 20 > 23h
produção/production fernanda engler projeto gráfico/graphic design tecnopop
[capa/cover] detalhe de /detail from Campo cego 2008 -- fotografia/ photograph -- 100 x 150 cm
exposição/exhibition 03.04 > 16.05.2009 seg/mon > sex/fri 10 > 19h sáb/sat 11 > 15h
diagramação/design fernanda figueiredo assessoria de imprensa/press agent marcy junqueira tradução/translation paula braga apoio/support
avenida europa 655 são paulo sp brasil 01449-001 t 55(11)3063 2344 f 55(11)3088 0593 info@nararoesler.com.br www.nararoesler.com.br