Karin Lambrecht: Pintura, Desenho e Anotação

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karin lambrecht  pintura, desenho e anotação (9 de agosto de 1949) karin lambrecht  painting, drawing and notes (august 9th, 1949)

No quarto com Camus “Em teu recolhimento interior, regozija-te com ele, pois ele está muito perto de ti” (São João da Cruz)

In the room with Camus “In your inner retreat, rejoice with him, for he is very close to you.” (St John of the Cross)

Há dois Albert Camus; um pied-noir pobre e tuberculoso,

There are two Albert Camus; one is a poor and

nascido em 7 de novembro de 1913, numa pequena cidade da

tuberculous pied-noir, born on November 7, 1913,

Argélia chamada Mondovi,; ou o ensaísta, novelista, filósofo

in a small town in Argelia called Mondovi; the

genial, morto em 4 de Janeiro de 1960, numa pequena cidade

other one is the essayist, novelist, outstanding

da França chamada Villeblevinem? Qual dos dois escolher?

philosopher, dead on January 4, 1960, in a samall

Os dois, pois sem um o outro não existiria. É este homem

town in France called Villeblevin. Which one shall

que une duas culturas que afirmou que “sem a cultura, e a

we choose? Both, for one would not exist without

liberdade relativa que ela pressupõe, a sociedade, por mais

the other. It was this man bridging two cultures

perfeita que seja, não passa de uma selva. É por isso que

that stated once that “without culture and the

toda a criação autêntica é um dom para o futuro”. Foi assim

relative freedom it assumes, society, no matter how

publicado em 1947. Posteriormente dedica-se com intensidade ao teatro

que viveu o pobre Albert que lutou entre a doença do corpo e

perfect it may be, is nothing but a jungle. That is

escrevendo O Equívoco; Calígula; O Estado de Sítio; Os Justos,

o preenchimento do espírito através dos livros. Foi assim que

why all authentic creation is a gift for the future”.

exercícios fundamentais do teatro filosófico. Em 1951 publica O Homem

morreu o galardoado Camus – numa morte estúpida numa

Thus lived the poor Albert that fighted against

Revoltado, e escreve A Queda e os contos de O Exílio e o Reino.

estrada, três anos após receber o Prêmio Nobel de Literatura.

the bodily disease and for the fulfilling of spirit

Entre o nascimento e a morte, exerceu o jornalismo no qual

through reading. Thus died the awarded Camus – a

absurdo, numa reflexão sobre o suicídio, a solidão e a morte, dirigindo-se

acting mostly in the newspaper

atuou sempre de forma combativa. Em 1940, já em Paris,

stupid death on a road, three years after receiving

gradualmente para a esperança e a solidariedade humanas como possíveis

Combat. In 1942 he is acclaimed

participa da resistência contra a invasão alemã, sobretudo,

the Nobel Prize for Literature. Between birth

soluções do drama do absurdo. Por outro lado, a límpida perfeição

with the novel The Stranger, an

através do jornal Combat. Em 1942 consagra-se com o

and death, he practiced journalism, always in an

estilística da sua escrita e a sobriedade da sua inspiração novelesca

icon of existentialism, and the essay

romance O Estrangeiro, epítome do existencialismo, e

audacious way. In 1940, already living in Paris, he

contribuem, em grande medida, para a eficácia da sua expressão literária.

The Myth of Sisyphus. His next

o ensaio O Mito de Sísifo. Segue-se A Peste, romance

joined the resistence against the German invasion,

Alguns dos seus livros serão publicados após a sua morte e, dentre todos,

major work is the novel The Plague,

Céu/Sky

Na base da sua obra ficcional e ensaística está a reflexão sobre o


published in 1947. Afterwards, he intensely devotes himself

São os sambas, os verdadeiros, que exprimem melhor o que

soccer, the modernist poets, children on the

to theathre, writing The Misunderstanding; Caligula;

quero dizer”…

streets, prostitutes, and he hated the turistical side

The State of Siege; The Just Assassins – fundamental

sintético, placas de cobre, grafite, óleo sobre papel /silk paper satin synthetic felt copper plates graphite oil on paper -- 50 x 65 cm

of Rio, with its ubiquitous Christ the Redeemer. He

experiments for a philosophical theatre. In 1951 he publishes

narra os terríveis enjôos sentidos na travessia atlântica que

walked through Recife, Salvador, Rio de Janeiro,

The Rebel, writes The Fall and the short stories from Exile

o trazia de Marselha ao Rio de Janeiro. “Não existe pátria

São Paulo and went as far as Porto Alegre, a city

and the Kingdom.

para quem desespera e, quanto a mim, sei que o mar me

that has pervaded his memory. One only day –

precede e me segue, e minha loucura está sempre pronta.

August 9, 1949 – was enough for him to outline

reflection on the absurdity, with the concern for suicide,

Aqueles que se amam e são separados podem viver sua dor,

observations such as “the light is beautiful... lack

loneliness and death, steadily heading for hope and

mas isso não é desespero: eles sabem que o amor existe. Eis

of air... the city is ugly... in spite of its five rivers...”

human solidarity as possible resolutions for the drama of

porque sofro, de olhos secos, este exílio. Espero ainda. Um

the absurdity. On the other hand, his writing’s crystal-

dia chega, enfim...” escreveu sobre o sentido de sentir-se um

Camus’ visit to Porto Alegre, and now this visit is

clear stylistic perfection and the sobriety of his novelistic

homem em exílio, ou em permanente viagem, tendo cruzado

revisited by artist Karin Lambrecht (Porto Alegre,

inspiration contribute in a large measure to the effectiveness

o atlântico trazendo consigo a melancolia mediterrânica. No

1957) in an exhibition reviving the short time the

of his literary expression. Some of his books would be

Brasil viu o candomblé, o futebol, os poetas modernistas, as

essayist has been in the city. The artist shows an

published after his death. Among them, the most peculiar

crianças nas ruas, as prostitutas e odiou o lado turístico do

installation in which time – the essential matter that

is Voyage Journals, assembling together journalism and

Rio de Janeiro com seu Cristo Redentor sempre onipresente.

embodies Existentialism – also embodies the work

philosophical-anthropological essayism on a journey he

Cruzou o Recife, Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e chegou

of art. The environment is a small sleeping room

made to Brazil. In a passage among a handful of short, acute

a Porto Alegre, cidade que ficou impregnada em sua memória.

– perhaps the very place where the writer may

and lapidary statements, he says: “my life in this country

E bastou-lhe apenas o dia 9 de Agosto de 1949 para tecer

have written a few lines – in the form of a cross

is the most important thing that happened to me in a

comentários como: “a luz é bela… falta de ar… a cidade é

outlined on the floor, whose center is occupied by

considerable number of years. What a cruel land!” ... “No use

feia… apesar dos cinco rios…”

a bed and a table. This space without “true” walls

On the basis of his fictional and essayistic work is the

Sem Título/Untitled  2008 -- papel de seda, cetim, feltro

O começo do livro é, por si, uma epifania, onde escritor

for skyscrapers, they still haven’t won the spirit of the forest,

Fazem quase cinquenta anos desta visita de Albert Camus

Almost fifty years have passed since Albert

is traversed by an intense blue light, reminding

the immensity, the melancholy. The sambas, the true ones,

a Porto Alegre, e esta visita agora é revisitada pela artista

the observer the city’s sky (“a lumière est belle”,

express better what I want to say”...

Karin Lambrecht (Porto Alegre, 1957) numa exposição que

says Camus in a passage of his journals). Yet it

revive o pouco tempo que o ensaísta passou naquela cidade.

also brings to mind that intense metaphysical blue

a obra mais singular é Diário de Viagem, pois

which the writer tells the terrible attacks of sickness he felt

A artista produz uma instalação onde o tempo – matéria

which is present in Giotto’s skies, Cézanne’s and

alia jornalismo e o ensaio de carácter filosófico-

while crossing the Atlantic from Marseille to Rio de Janeiro.

essencial que dá corpo ao Existencialismo – também dá

Matisse’s marines, Yves Klein’s infinity, being them

antropológico sobre uma viagem que empreendeu

“There is no homeland for who desperates, and as for

corpo à obra de arte. O ambiente é um pequeno quarto de

all Mediterranean, just as Camus. The artist mixes

ao Brasil. A dada alturas, em meio a uma torrente

me I know the sea precedes me and follows me, and my

dormir – talvez o lugar onde o escritor tenha escrito algumas

the writer’s real existence with his work’s existential

de frases lapidares, curtas e precisas, escreve:

madness is always ready. Those who love each other and

linhas -, num formato de cruz rebatida no chão, onde o

sense, evoking the accomplice sky of Meursault’s

are set apart may live on their pain, yet this is not despair:

núcleo é ocupado por uma cama e uma mesa. Este espaço,

act in The Stranger, or even the writer’s childhood

que ocorreu há um número considerável de anos...

they know love exists. That is why I suffer this exile with

sem paredes de “verdade”, é trespassado por uma luz azul,

in a distant Algery, by means of a projection. There

terra cruel! Como fazer para não tocar em nada?

dry eyes. I still hope. There may come a day, at last...”, he

intensa, que nos faz lembrar o céu da cidade (“la lumière est

is a copious amount of blue matter, such as lead

Que exílio definitivo encontrar?”… “Não adianta

wrote on the sense of feeling like an exiled man, or in an

belle”, diz ele, numa passagem). Mas também refaz aquele

linen and overseas satin, besides other cobalt-

o arranha-céu, ele ainda não conseguiu vencer o

everlasting journey, crossing the Atlantic bringing with him

intenso e metafísico azul que está nos céus de Giotto, nas

blue materials. These are for Karin “like a cluster of

espírito da floresta, a imensidão, a melancolia.

the Mediterranean melancholy. In Brazil he saw candomblé,

marinhas de Cézanne e de Matisse, no infinito de Yves Klein,

planes from an unpainted painting. In an equation

The beginning of the book is in itself an epiphany in

“minha vinda a este país é a coisa mais importante


todos estes meditarrâneos, como Camus. A artista mistura a

painting is body and light = matter + light...”

existência real do escritor com o sentido existencial de sua obra

In the general space, almost in half-light, shines

evocando o céu cúmplice do ato de Meursault (O Estrangeiro),

a beam of light on Camus’ handwriting.

ou ainda, o da infância do artista na distante Argélia numa

In this installation, Karin Lambrecht embodies

projeção. Há uma profusão de matérias em azul, como o linho

all of Albert Camus’ tension as a sharp-eyed

grafite e o cetim ultramar, além de outros materiais em azul

traveller, enclosed in this metaphysical space,

cobalto. Estes são para Karin “como um agregado de planos de

meditating about a city where the light is the

uma pintura não pintada. Numa equação pintura é corpo e luz =

only thing he finds beautiful. It would fail to

matéria + luz...” No espaço geral, quase na penumbra, um foco

refer to Bill Viola’s work Room for St. John of

de luz sobre a caligrafia do escritor.

the Cross (1983). In it, the videoartist creates

Nesta instalação, Karin Lambrecht corporifica toda a tensão

e terra em emulsão acrílica, pastel seco, cetim e fio de cobre sobre linho grafite /pigments and earth in acrylic emulsion dry pastel and satin and copper thread on linen graphite -- 140 x 190 cm

a space-time work. The mystical St. John of the

de Albert Camus como um viajante atento, confinado neste

Cross is forced to inhabit a cubicle where he

espaço metafísico, meditando sobre uma cidade onde a luz é a

can’t stand up, with no more than a table, a jug

única coisa que acha bela. Não deixaria de fazer uma referência

and a glass of water. In such a place, he writes

à obra de Bill Viola, Room for St. John of the Cross (1983).

Dark Night of the Soul (1578), the beautiful

Nesta obra, o vídeo-artista cria uma obra espaço-tempo.

Sem Título/Untitled  2008 -- pigmentos

poem on “enduring and later dying”.

O místico São João da Cruz é obrigado a habitar num cubículo,

In Bill Viola’s environment, besides these objects

onde não podia estar de pé, tendo apenas uma mesa, uma jarra

there is a small video screen showing the image

e um copo d´água. Neste lugar, escreve Noite escura da alma

of a mountain and the sound of the wind only.

(1578), o belo poema sobre “padecer e depois morrer”.

Behind this box-dwelling-prison one sees the

No ambiente de Bill Viola, além destes objetos tem um pequeno

image of the same mountain projected in a

monitor de vídeo que projecta uma imagem de uma montanha,

wide size, creating a dichotomy of the space

ouvindo-se apenas o silêncio do vento. Por trás desta caixa-

as it was lived and seen, a phenomenology

moradia-prisão, brota uma imagem da mesma montanha que se

between the eye and the spirit. With this work,

Sem Título/Untitled  2008 -- papel de seda, cetim, feltro sintético, placas de cobre, grafite, óleo sobre papel/silk paper satin synthetic felt copper plates graphite oil on paper -- 65 x 50 cm

projecta no espaço em grande dimensão, criando uma dicotomia

Bill Viola inaugurates his aesthetical-religious

do espaço vivido e visto, uma fenomenologia entre o olho e o

period, recreating central works of the history

espírito. Com esta obra, Bill Viola inaugura sua fase estética-

of Western painting. Karin Lambrecht’s room

religiosa recriando obras centrais da história da pintura ocidental.

is impregnated of Albert Camus’ existence, just

O quarto de Karin Lambrecht está prenhe da existência de Albert

as Bill Viola’s is impregnated of St John of the

Camus, tal como o quarto de Bill Viola está prenhe de São João

Cross – two mystical writers that knew how to

da Cruz – dois místicos que souberam no recolhimento interior,

rejoice in their inner retreats. In the room with

regozijarem-se. No quarto com Camus, de Karin Lambrecht

Camus, by Karin Lambrecht, is to be in front of

agradecimento/thanks to

é estar diante da dualidade existencial e conceitual de uma

the existential and conceptual duality of a work

Miguel Chaia, Jacques

obra de arte.

of art.

Leenhardt, David Leplé, Yole Lambrecht Chapman, Agnaldo Farias e Justo Werlang


texto/text

abertura/opening

[capa/cover] detalhe de

24.06.2008

/detail from Sem Título

encontro com o artista

/Untitled  2008 -- papel de

/meeting with the artist 19h

seda, cetim, feltro sintético,

abertura/opening 20 > 23h

placas de cobre, grafite, óleo/silk

paulo reis fotografia/photography karin lambrecht produção/production

paper satin synthetic felt copper

exposição/exhibition

plates graphite oil

25.06 > 19.07.2008 seg/mon > sex/fri 10 > 19h sáb/sat 11 > 15h

teresa halfin projeto gráfico/graphic design tecnopop assessoria de imprensa/press agent marcy junqueira tradução/translation sergio alcides revisão/revision claudia pinheiro apoio/support

avenida europa 655 são paulo sp brasil 01449-001 t 55 (11) 3063 2344 f 55 (11) 3088 0593 info@nararoesler.com.br www.nararoesler.com.br


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