REVISTA ALGARVE INFORMATIVO #371

Page 1

1 ALGARVE INFORMATIVO #371 ALGARVE INFORMATIVO 21 de janeiro, 2023 #371 250 ANOS DE CONCELHO DE LAGOA | PÁTIO DAS GERAÇÕES | ROTA LITERÁRIA DO ALGARVE «OPERA ROCKS» | «BRASA DOIRADA» | «A LINHA DE ÁGUA E O DESENHO DO MAR»

ÍNDICE

Inauguração do Pátio das Gerações (pág. 22)

Concelho de Lagoa festeja 250 anos (pág. 32)

Rota Literária do Algarve (pág. 42)

Sean Riley e The Legendary Tigerman nos encontros do DeVIR (pág. 54)

«Choque Frontal ao Vivo» regressa com «Brasa Doirada» (pág. 70)

«Opera Rocks» no Teatro Municipal de Portimão (pág. 80)

«A Linha de Água e o Desenho do Mar» em Quarteira (pág. 92)

OPINIÃO

Paulo Cunha (pág. 102)

Mirian Tavares (pág. 104)

Ana Isabel Soares (pág. 106)

João Ministro (pág. 108)

ALGARVE INFORMATIVO #371 10
11 ALGARVE INFORMATIVO #371

Academia Sénior Cultural de Lagoa ganhou uma nova casa no seu 13.º aniversário

Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina agoa iniciou, no dia 13 de janeiro, as comemorações dos 250 anos da criação do concelho (1773-2023) com a inauguração do Pátio das Gerações, um espaço que resulta de uma aposta arquitetónica arrojada, do arquiteto da Câmara Municipal de Lagoa, José Paulo Vitoriano, aproveitando um espaço devoluto da cidade de Lagoa e colocando-o ao serviço da população. Trata-se de um edifício com uma área de

implantação de 557 metros quadrados, com um pátio exterior, uma receção, uma zona de estar, duas salas de estudo, uma cozinha, uma sala polivalente, que servirá para acolher a Universidade Sénior e as suas atividades diárias, bem como os alunos do pré-escolar e da EB1 de Lagoa, em atividades ocasionais. Possui um pátio interior que permite o acesso entre o edifício e a EB1 de Lagoa, bem como ao refeitório escolar, possibilitando dessa forma realizar atividades entre as várias gerações.

ALGARVE INFORMATIVO #371 22

O edifício situa-se no Largo do Convento de S. José, em Lagoa, atrás do refeitório escolar, onde eram as antigas instalações do viveiro municipal. O investimento do Município de Lagoa é de 476 mil e 8,98 euros e vem responder à necessidade de criar melhores condições para os utentes da Academia Cultural Sénior de Lagoa, uma instituição que comemorou, precisamente no dia 13 de janeiro, 13 anos de existência e que conta com cerca de 60 alunos. “Fico muito feliz por ver tanta gente nesta inauguração, porque eu sou de uma geração em que, para tirar as pessoas de casa, é uma carga de trabalhos”, começou por dizer Luís Encarnação, presidente da Câmara Municipal de Lagoa, com um sorriso de satisfação.

A criação do Pátio das Gerações era um desejo antigo da população e do executivo camarário “e resulta de um aproveitamento extraordinário de um espaço devoluto, num projeto arrojado, mas muito bem conseguido”, descreveu Luís Encarnação. “É um espaço intergeracional, junto à EB 1 de Lagoa, que tem a particularidade de aqui puderem conviver as crianças com aqueles que têm dentro de si o saber angariado e acumulado ao longo de uma vida através da educação formal e informal. É muito importante que esse saber seja transmitido aos mais novos, pois é assim que se

ALGARVE INFORMATIVO #371 24

passam valores, princípios e conhecimentos que de outra maneira se perderiam”, destacou o edil lagoense. “Este é um espaço que reafirma Lagoa enquanto Cidade Educadora que promove a aprendizagem ao longo da vida, porque o saber não ocupa lugar”, reforçou.

Uma sexta-feira 13 não de azar, mas de felicidade para a Academia Cultural Sénior de Lagoa, que assim recebeu este Pátio das Gerações como prenda do seu 13.º aniversário. “A nossa existência é o resultado da colaboração de vários intervenientes, a quem queremos expressar o nosso enorme agradecimento, bem como aos associados, por

quererem aprender mais e partilhar os seus saberes e vivências; aos professores, pela sua dedicação, que de forma despretensiosa contribuem para a concretização dos nossos objetivos; à União de Freguesias de Lagoa e Carvoeiro; e, em especial, ao Município de Lagoa, que nos tem apoiado desde o início, através da cedência das instalações, da comparticipação das despesas e, mais recentemente, da disponibilização de técnicos da área do desporto e de uma funcionária que tem permitido o funcionamento permanente da nossa secretaria”, declarou a presidente da direção, Licínia Lourenço, acrescentando que “a

25 ALGARVE INFORMATIVO #371

Academia pretende continuar a ser um espaço de encontro dos «adultos maiores», tendo como objetivos principais desenvolver atividades de ação social, promoção cultural, formação e convívio, em especial de indivíduos em situação de inatividade profissional, tanto de Lagoa como dos concelhos vizinhos”

Academia Cultural Sénior de Lagoa que tem realizado diversas peças de teatro, encontros de cantares, visitas de estudo e palestras temáticas nestes 13 anos de existência, mas que não escapou aos efeitos negativos da pandemia. “Estivemos praticamente parados durante dois anos, mas estamos a reerguer-nos com a ajuda de todos

e a chave para o sucesso está na união de toda a equipa, que se reflete no dia-a-dia e na constante tentativa de fazer mais e melhor, com o grande objetivo de dar uma melhor qualidade de vida a todos aqueles que ambicionam um envelhecimento com qualidade”, apontou Licínia Lourenço. “Com os olhos postos no passado propomonos mudar o futuro, por meio de ações inovadoras e com a colaboração de todos, para assim pudermos crescer e orgulhar-nos de deixar um contributo para as gerações vindouras. Muito obrigado por podermos fazer parte da história deste concelho”, concluiu a dirigente associativa .

ALGARVE INFORMATIVO #371 26

Concelho de Lagoa comemora 250

anos,

com orgulho no passado e os olhos postos no futuro

Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina agoa vai estar em festa ao longo de todo o ano de 2023 para comemorar o seu nascimento enquanto concelho que, durante o século XVIII, foi desagregado do concelho de Silves, tendo como presidente da Comissão de Honra das Comemorações o ilustre lagoense Vasco Joaquim Rocha Vieira, General do Exército Português e último Governador de Macau sob a administração

portuguesa. O programa começou, no dia 16 de janeiro, com o hastear da bandeira em frente ao edifício da Câmara Municipal, o lançamento do novo portal do município, uma arruada pelo concelho e a Cerimónia de Abertura das Comemorações dos 250 anos da Criação do Concelho de Lagoa 1773-2023, que teve lugar no Auditório Carlos do Carmo e que contou com um momento artístico por Miguel Velhinho ao piano e Lara Leal a dançar e com o espetáculo musical «As Canções de Carlos do Carmo», com

ALGARVE INFORMATIVO #371 32

Marco Rodrigues e a jovem fadista lagoense Luana Velasquez.

O programa comemorativo integra ciclos de conferências e ações de formação, capacitação das equipas técnicas da autarquia e das empresas locais, mas também dos agentes desportivos e educativos, trazendo a Lagoa investigadores, decisores e pensadores. Haverá ciclos de reflexão e partilha de conhecimento e saber, que serão pensados numa articulação entre a memória e a construção do território e os novos desafios que hoje se levantam aos municípios e ao mundo. A arte pública marcará também este momento celebrativo nas várias freguesias do concelho, assinalando a identidade e a memória dos lugares.

Será ainda fomentado um conjunto de eventos onde o trabalho com a comunidade possa continuar a fortalecer a identidade de Lagoa e dos Lagoenses, num diálogo permanente do Município com os agentes sociais e culturais do concelho, de forma a que estes também construam programações comemorativas, conscientes de que todos contribuem para o desenvolvimento do concelho. “Presidir à Câmara Municipal de Lagoa quando comemoramos 250 anos da criação do concelho é para mim um privilégio sem igual. Todos sabemos que atrás dos tempos vêm tempos e que outros tempos virão, mas é o passado que nos estrutura enquanto comunidade e

projeto de futuro. Comemorar Lagoa será, em primeiro lugar, celebrar o orgulho no passado, com os olhos postos no futuro”, declarou o edil Luís Encarnação, acrescentando que “as nossas origens radicam em alicerces históricos e culturais muito mais profundos”. “Somos herdeiros de um legado histórico milenar onde a nossa região foi o ponto-de-charneira na confluência de diferentes culturas e vivências. É este legado cultural e civilizacional do Mediterrâneo que ainda hoje explica a abertura ao mundo das nossas gentes e nos distingue pela forma ímpar como

sabemos acolher quem escolhe Lagoa para viver ou visitar”, sublinhou.

O presidente da Câmara Municipal de Lagoa destacou ainda o legado de uma vila rural onde trabalhar a terra era sinónimo de sabedoria, sustento, dificuldade e sacrifício. “Uma vila rural fértil que permitiu desenvolver atividades agrícolas pelas quais ainda hoje somos reconhecidos por esse mundo fora. E somos igualmente herdeiros de uma vila piscatória, onde a dureza desta atividade secular nos esculpiu com idêntica força à que a natureza

ALGARVE INFORMATIVO #371 34

empregou na criação das arribas alcantilares que marcam a beleza das nossas praias e a força natural e resiliência das nossas gentes”, declarou Luís Encarnação, perante um Auditório Carlos do Carmo completamente esgotado.

Um orgulho na história e nos lagoenses que construíram este território ao longo dos séculos, e o orgulho no património, cultura e identidade, na evolução urbana e nas gerações, que vai estar bem patente no programa comemorativo que foi desenhado pela autarquia. “Comemorar 250 anos da nossa vida coletiva será também analisar e ter consciência do presente. Importa valorizar os tempos que vivemos, agindo na certeza de estarmos a dar o nosso melhor contributo para a prosperidade e

qualidade de vida no território e, naturalmente, para a nossa história e memória coletiva. E este é um tempo de muitas incertezas e enormes desafios para o nosso país, para a Europa e para o Mundo, a que Lagoa não é alheia”, assumiu Luís Encarnação.

Apesar das dificuldades e obstáculos que estão pela frente, o presidente da Câmara Municipal de Lagoa assegurou que, “tal como a ação reformista de 1773 que elevou Lagoa a vila e a sede de concelho, definida no plano de modernização política gizado pelo Marquês de Pombal, encaramos o futuro com redobrado otimismo”. “Estamos confiantes e temos motivos para acreditar no rumo da nossa ação

ALGARVE INFORMATIVO #371 36

para o concelho. Tal como o Reino do Algarve contou com Lagoa no século XVIII, Portugal conta hoje com um município de referência, quer na sua organização administrativa e financeira, como na sua base económica cada vez mais consolidada”, frisou Luís Encarnação, recordando que o ano de 2022 terminou “com reconhecimentos externos e insuspeitos que muito nos honram”. “Somos um dos melhores concelhos para viver e temos sonhos, estratégia e as pessoas certas para projetar as próximas décadas, construindo um futuro melhor para todos”, garantiu.

Comemorar Lagoa será também, por isso, preparar esse futuro, tendo sido convidados investigadores, pensadores, decisores e outros agentes para refletir sobre os desafios e oportunidades do mundo atual e para se construir uma agenda estratégica para o concelho alinhada com a Agenda 2030 das Nações Unidas para a sustentabilidade. Nesse sentido, foi preparado um programa com atividades para toda a comunidade, públicos e gerações, que serão convocados para os compromissos da Cidade Educadora, Criativa, Inclusiva, Ativa, Saudável, Resiliente e Sustentável que está a ser construída.

“Impulsionaremos também um conjunto de investimentos relevantes para o

37 ALGARVE INFORMATIVO #371

desenvolvimento, bem-estar social, preservação da memória e promoção de uma cidadania ativa, criativa e colaborante, tais como: a construção de habitação condigna para quem não a tem; a renovação das principais condutas de distribuição de água no concelho; a Casa da Cidadania de Lagoa; o Espaço Gamboa no Centro Cultural Convento de São José; a ampliação da área desportiva do concelho; e os parques urbanos de Lagoa e do Parchal, entre muitos outros. Ao longo de todo o ano vamos festejar e afirmar Lagoa no contexto regional, nacional e no mundo, juntos e orgulhosos de ser Lagoa”, revelou Luís Encarnação.

O edil expressou ainda a sua admiração

por todos aqueles que, enfrentando dificuldades de diversas naturezas, escolheram Lagoa para viver, criar família e raízes, assim como por aqueles que escolheram Lagoa para investir, criar negócios e assim contribuir para gerar riqueza e emprego. Reconheceu igualmente o trabalho de todos os autarcas de diferentes cores políticas que o antecederam e que dedicaram o melhor das suas vidas à causa pública, “empenhando o seu saber em prol da comunidade e, com espírito de missão, serviram os interesses da população”. Luís Encarnação agradeceu ainda a todos os trabalhadores do município, “homens e mulheres que, independentemente das lideranças políticas, dedicam o seu trabalho a Lagoa, de forma abnegada e zelosa do serviço público” .

ALGARVE INFORMATIVO #371 38

Rota Literária do Algarve já está no terreno, vai continuar a crescer e deve ser um orgulho para todos os algarvios

Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina e Rota Literária do Algarve

«Rota Literária do Algarve», projeto aprovado no âmbito do Orçamento Participativo Portugal de 2018, foi lançada pela Direção Regional de Cultura do Algarve no final do ano transato. Desenvolvida pela Universidade do Algarve, com a coordenação das professoras Rita Baleiro e Sílvia Quinteiro, a Rota pretende oferecer um

olhar diferenciado sobre a região, com a grande maioria destes itinerários a sugerir localidades do interior algarvio, mas também procura combater a sazonalidade do turismo na região e promover a literatura portuguesa.

Tendo como ponto de partida textos literários de autores algarvios e de outros que referiram o Algarve nas suas obras, foi estabelecida uma relação entre estas referências e o espaço físico que gerou lugares literários, posteriormente

ALGARVE INFORMATIVO #371 42
Rita Baleiro, Adriana Freire Nogueira e Sílvia Quinteiro

organizados e interligados através de narrativas que estabelecem a coerência entre pontos de paragem. Narrativas que são sobre um determinado local, ou que resultam da interseção da seleção de textos literários e da interpretação da paisagem, complementadas com outras informações pertinentes sobre história, demografia, gastronomia, lendas e tradições de cada um destes lugares que acompanharão os visitantes numa experiência única e enriquecedora. Estes passeios têm ainda um grande potencial em contexto escolar, na ocupação dos mais idosos, na formação de guias locais e na promoção dos autores algarvios junto de um público internacional no âmbito do Turismo Literário. Depois, a cada itinerário corresponde uma brochura e um percurso sinalizado no terreno, para que o visitante o possa realizar autonomamente.

A Rota foi «desenhada» em 2018 e devia começar a ganhar contornos no

terreno em 2019, mas, conforme sabemos, pelo meio tivemos uma pandemia e, mais recentemente, uma guerra na Europa. Contudo, e apesar do atraso, o projeto não sofreu alterações de fundo, indica Sílvia Quinteiro.

“Conseguimos fazer exatamente aquilo que idealizamos, mas não nos dois anos que tínhamos previsto inicialmente, porque as pessoas estiveram muito tempo fechadas em casa e as bibliotecas estiveram encerradas. Trabalhamos o máximo que conseguimos online, o percurso foi sendo feito, só que a guerra depois também veio complicar a aquisição dos materiais necessários. Mas, mesmo com todos estes imprevistos, aqui está a Rota tal e qual a tínhamos imaginado”, declara a investigadora, com um sorriso.

Rota Literária do Algarve que é constituída por 16 passeios literários, um número que deverá ser expandido numa segunda fase do projeto, com uma forte presença dos territórios do interior, num processo inicial que teve, naturalmente, avanços e recuos. “Numa primeira visita ao terreno conseguimos identificar um determinado número de pontos com interesse que estão de alguma forma relacionados com os autores aos quais queremos dar destaque. No entanto, nem sempre conseguimos encontrar os textos de que precisamos, o que nos obriga a descobrir outro ponto de paragem”, descreve Rita Baleiro, esclarecendo ainda que os 16 percursos não correspondem a 1 por cada um dos

16 concelhos algarvios. Tal não significa que não haja matéria-prima para se realizar passeios literários nos concelhos que ainda não estão presentes nesta Rota Literária do Algarve, antes pelo contrário, garante Adriana Freire Nogueira, Diretora Regional da Cultura do Algarve. “É uma Rota, não tanto de autores, mas de lugares, de como eles são vistos por determinados autores. Claro que associamos Loulé ao António Aleixo, Alte ao Cândido Guerreiro, Portimão ao Manuel Teixeira Gomes e Messines ao João de Deus, mas é preciso saber se eles escreveram efetivamente sobre esses lugares. Adorei logo o projeto, elas foram brilhantes”, elogia, aproveitando para explicar que os vencedores do Orçamento Participativo Portugal são

ALGARVE INFORMATIVO #371 44

normalmente geridos pela entidade que tutela a Cultura em cada território. “Podia ter sido a Direção Regional da Cultura a avançar com o projeto, mas não houve dúvidas nenhumas de que o mais lógico seria realizar uma parceria com a Universidade do Algarve, porque as duas proponentes eram suas docentes e investigadoras”.

Sílvia Quinteiro e Rita Baleiro recordam, entretanto, que a ideia da rota surgiu de um primeiro passeio literário que foi concebido para Alte, onde se podem encontrar diversos painéis de azulejos com os poemas de Cândido Guerreiro, mas quem visitava esta aldeia do concelho de Loulé nem sempre se apercebia do que ali estava a acontecer. “A nossa vontade foi criar um contexto para que conseguissem interpretar os textos. A Fonte Pequena pode ser vista apenas

como um local bonito para se fazer um piquenique, mas também como o lugar onde o Cândido Guerreiro escreveu os seus primeiros poemas. Tentámos dar unidade na interpretação de um determinado espaço do Algarve a partir do prisma da literatura”, aponta Rita Baleiro, adiantando que os passeios literários já existem há muito tempo e em vários pontos do globo. “Em Dublin, por exemplo, há um em torno do James Joyce e do livro «Ulisses» e em Lisboa há alguns sobre Fernando Pessoa”. “A Rota Literária de KwaZulu, na África do Sul, é bastante antiga e extraordinária, deu inclusive origem a uma obra premiada internacionalmente. Foi a primeira a ser realizada de forma estruturada, com base num trabalho académico, e inclui

Fernando Pessoa”, acrescenta Sílvia Quinteiro.

Passeios com muitas histórias para contar

De Alte passou-se ao Ameixial, por ocasião do Festival de Caminhadas do Ameixial, e assim surgiram os dois primeiros percursos literários, com o apoio da Câmara Municipal de Loulé. Mais um é concebido para a própria cidade de Loulé e eis que as duas professoras e investigadoras decidem então fazer o esboço da Rota Literária do Algarve que depois seria proposto ao Orçamento Participativo Portugal em 2018, do qual veio a verba de 120 mil

euros para tornar o projeto uma realidade. “Escrever 16 itinerários envolve imenso trabalho, tivemos que contratar um bolseiro – o Luís Caramelo – que foi responsável por cinco. Nós abdicamos de receber qualquer remuneração pelo nosso trabalho, mas há muitas coisas que têm que ser pagas, a sinalética, o design e impressão dos livros, a construção do sítio na internet, fazer a tradução”, indica Sílvia Quinteiro.

Passar depois da teoria para a prática, do papel para o terreno, foi “a fase do sofrimento”, lembram, durante a qual

receberam bastante ajuda da parte da Direção Regional de Cultura do Algarve e dos Serviços Financeiros da Universidade do Algarve, porque todos os concursos envolvem imensa burocracia. O sítio da internet está online, as brochuras em papel já existem e também podem ser descarregadas em formato digital, seguese a parte da colocação da sinalética nos percursos, um processo que se atrasou porque a guerra na Europa levou ao disparar dos preços e à escassez de muitos materiais. Depois, a ideia é que qualquer pessoa possa fazer um destes 16 passeios literários quando bem lhe apetecer, sem estar dependente de um guia ou de um grupo formal. “O texto tem todas as indicações necessárias para não nos perdermos no percurso, vire à

direita, pare, olhe para a esquerda, siga em frente. Queremos que os passeios tenham vida própria, que os visitantes sejam completamente autónomos nessa experiência, e para isso fizemos testes iniciais com diferentes pessoas, umas com melhor sentido de orientação do que outras”, conta Rita Baleiro, sorridente. “Esta rota tem a vantagem de nos percursos existirem diversos totens com QR Codes numerados que sugerem logo, mesmo a quem esbarre neles por acaso, que ali existe algo maior”, salienta Adriana Freire Nogueira.

47 ALGARVE INFORMATIVO #371

Cada percurso da Rota Literária do Algarve corresponde a uma narrativa, a uma história que as duas autoras pretendem contar, e cada ponto de paragem implica a leitura de apenas um ou dois excertos de textos, um número que é facilmente suportável de fazer, em pé, parado num sítio. “Cada passeio tem um tema subjacente – a herança árabe, a água, o século XIX – e o visitante vai percorrer aquele percurso acompanhando uma narrativa que os textos ajudam a ilustrar. Como é óbvio, não sabemos tudo e colocamos em cada sítio os autores que sentimos

que eram mais pertinentes para cada sítio e história. Mas também há fatores que não controlamos”, sublinha Sílvia Quinteiro, dando o exemplo de uma passagem num itinerário que prevê a entrada num monumento que era gratuita e que, posteriormente, passou a ser paga. Um pormenor que Adriana Freire Nogueira acredita ser solucionável através da realização de parcerias com essas entidades. “Com um género de passaporte em papel ou eletrónico alusivo à Rota Literária do Algarve podia ter-se acesso gratuito aos locais em que os visitantes normais têm que pagar entrada. O

ALGARVE INFORMATIVO #371 48

objetivo é que as pessoas vejam as coisas, que respirem cultura, e que não fiquem limitadas ou impedidas de o fazer por causa do preço de uma entrada”, entende a Diretora Regional de Cultura do Algarve.

Uma rota que orgulha o Algarve

Ultrapassadas as dificuldades, umas previstas, outras inesperadas, a Rota Literária do Algarve já pode ser percorrida, resta saber por quem, se por qualquer cidadão ou se estamos perante um nicho de mercado específico. “Esta rota é para todas as pessoas, não

apenas para quem é amante de literatura ou do Algarve, mas para todas”, garante Rita Baleiro. “A linguagem com que escrevemos estas narrativas é perfeitamente acessível a qualquer cidadão, não é a linguagem da Academia e dos doutorados em Literatura. É uma linguagem diretiva e informativa e, mesmo quando apresentamos um poema ou um excerto de um texto literário, fazemos uma interpretação fácil de entender por todos”, reforça, com Adriana Freire Nogueira a chamar a atenção para a importância desta acessibilidade

intelectual. Já Sílvia Quinteiro considera ser também importante que os guias profissionais ou quem organiza passeios pedestres utilize esta nova ferramenta para criar novos produtos, seja para turistas ou inclusive para estudantes. “Um guia traz sempre coisas que enriquecem um passeio e adaptam também a conversa aos diferentes públicos. A Rota Literária do Algarve está disponível gratuitamente para toda a população, como está preconizado no Orçamento Participativo Portugal, mas isso não impede que possa ser utilizada por outras entidades para dinamizar novos

conceitos que ajudem a impulsionar a economia local”, considera a professora. “Para além dos guias profissionais, também seria bastante interessante aproveitar os guias locais, pessoas que tenham vontade de mostrar o seu lugar, vila ou aldeia aos visitantes e que têm histórias e lendas para contar e que nós desconhecemos”, prossegue Rita Baleiro.

As mais-valias da Rota Literária do Algarve são evidentes para Adriana Freire Nogueira, numa região que já é sobejamente reconhecida pelas suas riquezas naturais, pela sua gastronomia,

vinhos e doçaria, mas não tanto pelos seus homens e mulheres das letras. “Há autores que toda a gente conhece, a Lídia Jorge, o Nuno Júdice, o Gastão Cruz, a Teresa Rita Lopes, o António Ramos Rosa, o Casimiro de Brito, mas muitas pessoas nem sabem que são do Algarve. Esta rota vai trazer orgulho aos algarvios, vai mostrar a riqueza literária que aqui existe. E, para fazermos o resto dos percursos, vai ser fundamental o contributo de todos, porque nós não sabemos tudo”, salienta a Diretora Regional de Cultura do Algarve, confirmando que, com esta segunda fase do projeto, toda a região vai ficar representada. “Vamos envolver os guias, as autarquias e

as escolas e, convém frisar, as bibliotecas são as grandes parceiras nos locais para manter esta rota viva. E uma pessoa, depois de fazer um percurso, se calhar fica com vontade de percorrer os outros”, refere Adriana Freire Nogueira. “Cada itinerário tem uma lógica diferente, por isso, quem faz um, não faz todos, vai ser sempre surpreendido. O objetivo é enaltecer o texto literário, os autores que escreveram sobre os locais, as paisagens, mas há muitas portas por onde podemos entrar”, garantem Sílvia Quinteiro e Rita Baleiro.

51 ALGARVE INFORMATIVO #371

SEAN RILEY E THE LEGENDARY

TIGERMAN APRESENTARAM «ANDALUZIA» NO CAPa

Texto: Daniel Pina| Fotografia: Daniel Pina

terceiro momento do Festival encontros do DeVIR realiza-se de 14 de janeiro a 25 de fevereiro, no CAPa – Centro de Artes Performativas do Algarve, em Faro, com o ciclo de programação «d’Outra maneira» composta por concertos, performances e espetáculos de dança com Sean Riley e The Legendary Tigerman, a Garota Não, Redo | NL, Lula Pena e José Laginha.

Depois de cumpridas as duas primeiras fases, num formato híbrido e com uma programação dirigida ao público escolar com o objetivo de sensibilização para a ecologia ambiental e social, o ciclo «d’Outra maneira», que representa a fase final deste Festival, é destinado ao

público adulto. “Todos temos de mudar, de encontrar «Outra(s) maneira(s)» e não nos focarmos na ideia confortável e desresponsabilizante de ser os outros a mudar o Mundo e a inverter a marcha galopante da crise climática, em direção ao não retorno. Fazer d’outra maneira é também assumirmos com firmeza a defesa da diferença e dos direitos dos seres humanos, dos animais e do reino vegetal”, afirma José Laginha, diretor artístico dos encontros do DeVIR.

O festival arrancou, no dia 14 de janeiro, com um concerto de Sean Riley com The Legendary Tigerman, que retomaram, em novembro de 2021, a sua viagem,

57 ALGARVE INFORMATIVO #371

partindo de onde tinham ficado em 2018 com California – álbum gravado em motéis durante uma road trip naquele estado norte americano, e desembocando no novo disco «Andaluzia». Apontando inicialmente para Tânger, seguindo na rota da beat generation, quiseram as contingências e vicissitudes da pandemia que, cansados de esperar, se metessem no carro e conduzissem até ao sul de Espanha. Apaixonados pela fotografia de uma antiga cabana de pescadores, rumaram até à costa e lá encontraram o abrigo onde, mais uma vez, improvisaram um estúdio num espaço inusitado.

Durante três noites e três dias gravaram este EP de olhos postos no mar. A gravação e produção ficou mais uma vez a cargo de Paulo Furtado (The Legendary Tigerman), que desta vez foi também responsável pelos arranjos e por toda a instrumentação adicional à guitarra e voz de Afonso Rodrigues (Sean Riley). Registado de forma simples e despida, «Andaluzia» é uma homenagem à amizade e ao amor à música que encantou a plateia que esgotou por completo, na noite de 14 de janeiro, o CAPa para escutar Afonso Rodrigues, Paulo Furtado e Filipe da Rua .

«CHOQUE FRONTAL AO VIVO» REGRESSOU PARA NOVA TEMPORADA COM OS «BRASA DOIRADA» Texto: Daniel Pina| Fotografia: Vera Lisa

«Choque Frontal ao Vivo» voltou a esgotar o TEMPO – Teatro Municipal de Portimão, no dia 12 de janeiro, ao som dos «Brasa Doirada», iniciando-se deste modo a nova temporada de gravações ao vivo do popular programa da rádio Alvor FM e que se prolongará até 18 de maio.

Grupo musical criado em 2015 por três enfermeiros e um engenheiro, todos a residir atualmente no Algarve, os «Brasa Doirada» são «embaixadores» do cante alentejano em terras algarvias, através de uma musicalidade própria onde predominam os instrumentos de corda. Ao mesmo tempo que procura reinventar o cante, sem nunca ferir as suas origens,

o grupo também pretende inovar e trazer novas sonoridades e formas de apresentação, levando a uma maior aceitação pelo público.

No dia 16 de fevereiro, o «Choque Frontal ao Vivo» recebe os «Alcoolémia», banda da Amora criada em 1992, com uma linhagem de composição baseada no rock, variando a textura sonora entre punk rock, hard rock e pop, na busca de uma sonoridade própria. A 16 de março, o convidado é Tozé Brito, reconhecido cantor, letrista e compositor português, antigo executivo das editoras Universal Music e BMG e atual vice-presidente da direção da Sociedade Portuguesa de Autores, tendo escrito mais de 500 canções, das quais cerca de uma centena são temas infantis ou criados para teatro, cinema e televisão.

ALGARVE INFORMATIVO #371 72

Segue-se, a 15 de abril, a entrega de Prémios Choque Frontal Ao Vivo, depois do interregno de dois anos devido à pandemia, durante a qual vão ser distinguidas várias personalidades com o principal objetivo de incentivar a atividade musical no Algarve e em Portugal, não esquecendo outros géneros de arte. A 18 de maio acontece o derradeiro programa da primeira temporada de 2023 do «Choque Frontal Ao Vivo», com a participação da cantora Filipa Sousa, natural de Albufeira, que venceu o Festival RTP da Canção em 2012.

Considerado um dos mais originais programas radiofónicos a sul do Tejo, o «Choque Frontal ao Vivo» convida mensalmente 125 pessoas para assistirem às gravações e a conviverem com os artistas, sob realização, produção e apresentação de Júlio Ferreira e Ricardo Coelho. As gravações dos programas são realizadas a partir das 21h, com posterior transmissão na rádio Alvor FM, devendo os interessados levantar na bilheteira do TEMPO os respetivos convites, que são gratuitos .

«OPERA ROCKS» ESGOTOU MUNICIPAL DE PORTIMÃO

ESGOTOU TEATRO PORTIMÃO

81 ALGARVE INFORMATIVO #371

o âmbito dos seus planos de produções musicais para 2023, as associações culturais Marginália (Portimão) e Ideias do Levante (Lagoa) apresentaram no TEMPO – Teatro Municipal de Portimão, no dia 14 de janeiro, com o apoio do Município de Portimão, o projeto musical «Opera Rocks», com a interpretação de Carla Pontes (soprano), Ray van Duijvenbode

(voz e guitarra), Cristiana Silva (piano) e Mário Rui Filipe (narrador).

«Opera Rocks» é uma história de amor clássica na qual uma estrela de rock (Freddy) entra na vida de uma diva, a soprano Maria. A história é apresentada ao público por um narrador (Mário Rui Filipe) que nos coloca na vida de ambos. Maria é interpretada por Carla Pontes e Freddy por Ray van Duijvenbode, sendo acompanhados ao piano por Cristiana Silva .

ALGARVE INFORMATIVO #371 82

«A LINHA DE ÁGUA E O DESENHO DO MAR» EM EXPOSIÇÃO NA GALERIA DE ARTE DA PRAÇA DO MAR

stá patente, até dia 4 de fevereiro, na Galeria de Arte da Praça do Mar, em Quarteira, «A linha de água e o desenho do mar», exposição coletiva com Christine Henry, Milita Doré, Rúben Gonçalves, Tiago M. C. de Sousa e Vasco Marum que tem curadoria de Miguel Cheta.

A mostra nasce de um convite a cinco artistas visuais, tendo como ponto de partida «Com os pés na terra e as mãos no mar», uma outra exposição, permanente, em Quarteira, que aborda o

arco temporal dos últimos 6 mil anos, revelando todas as camadas e alterações vividas no lugar onde hoje encontramos esta cidade. “Se, na segunda exposição mencionada, nos direcionamos rumo ao passado, nesta, os artistas futuram este mesmo território e trabalham questões ligadas aos desafios ambientais que teremos de enfrentar. Tal como o passado nos ensinou, o futuro reservanos grandes mudanças. A vida? Terá de se adaptar”, refere Miguel Cheta. A exposição pode ser visitada de terça-feira a sábado, das 10h à 13h e das 14h às 18h.

ALGARVE INFORMATIVO #371 94

Falar música

Paulo Cunha (Professor)

uando, a meio da primeira semana de aulas do segundo período escolar, recebi da diretora de turma Carla Gago uma mensagem, informando-me que tinha sido integrado na turma um aluno ucraniano que tinha chegado a Portugal com os seus pais, na condição de refugiados, e que o mesmo não falava nem escrevia qualquer outra língua para além da sua língua materna, senti o misto de sensações que todos os meus colegas devem ter também experienciado. Saber que o iria ter na sala de aula no dia seguinte durante duas horas, sem com ele poder comunicar, tendo de usar apenas a universal mímica, seria desafiante, mas, ao mesmo tempo, confrangedor e, possivelmente, frustrante para todos os intervenientes.

Vê-lo parado no meio da sala, sem saber o que fazer e com um olhar totalmente vazio e perdido, fez-me ter de utilizar todos os recursos que a minha imaginação então providenciou. Já devidamente sentado, apresentei-o, mais uma vez, à turma, lendo em voz alta o seu nome, caracteristicamente ucraniano, para que sentisse que o seu ser pertencia também àquele espaço. Explicando a préadolescentes o que é hoje ser refugiado, tentei que entendessem também que ao

contrário da colega nepalesa que, pelo menos, comunicava em inglês, este apenas o fazia em ucraniano.

Fruto de quatro décadas a lidar com situações inusitadas e inesperadas enquanto professor, em boa hora me lembrei que poderia dar as boas-vindas ao novo aluno através da música e, ao mesmo tempo, contextualizar e explicar a sua atual situação à turma onde foi inserido. Para tal, tive apenas de perguntar ao coletivo se sabia qual tinha sido o país que tinha ganhado o Festival Eurovisão da Canção 2022. Embora poucos alunos tenham visto o concurso através da tv, quase todos sabiam que tinha sido um grupo ucraniano a ganhá-lo (Kalush Orchestra). Procurei o vídeo oficial da canção ganhadora (Stefania) e sem qualquer explicação adicional projetei-o para a turma.

Ver a atenção e o interesse com que mais de vinte almas dividiam as imagens baseadas em acontecimentos reais com a reação do novo colega foi um momento único e irrepetível. No final, bastou-me apontar para o ecrã e com o polegar questionar se tinha gostado. Foi então que se registou um momento mágico e encantador. Observar o seu sorriso franco e sincero de orelha a orelha enquanto abanava afirmativamente a cabeça, acompanhado pelos olhos de alguns colegas lacrimejando, deu-me a plena noção que aqueles cerca de três minutos

ALGARVE INFORMATIVO #371 102

de música tinham constituído a melhor receção e apresentação que a sua nova turma lhe poderia ter feito no seu primeiro dia de aulas presenciais em Portugal. E foi assim que símbolos escritos e posteriormente interpretados e cantados em ucraniano se transformaram em linguagem musical, dando azo a que numa mesma sala se comunicasse através da música.

Partindo da ideia de que “a música é a linguagem universal da humanidade”, expressa há cerca de duzentos anos pelo

escritor norte-americano Henry Wadsworth Longfellow, uma equipa de investigadores de Universidade de Harvard quis perceber se, de facto, existem pressupostos que tornam a música uma manifestação cultural transnacional. Durante cinco anos pesquisaram centenas de gravações fonográficas em vários suportes, em bibliotecas, arquivos, coleções públicas e privadas e reuniram cinco mil entradas de canções representativas de sessenta culturas etnograficamente diferentes, abrangendo trinta regiões do planeta. Analisando os dados, em diferentes pressupostos técnicos, literários, mecânicos e interpretativos, os investigadores perceberam que há uma base comum na música que é composta e escutada, independentemente do ponto geográfico.

Naturalmente, concordo com as teses dos investigadores Manvir Singh e Samuel Mehr que através dos resultados obtidos na investigação realizada sustentam que qualquer cultura humana é construída a partir de uma base psicológica comum e isso influencia a música que é criada (associada a comportamentos como cuidar, curar, dançar, amar, fazer o luto e lutar), podendo assim suportar uma «gramática da música» universal. Assim sendo, é caso para desejar: “Que a música nos una a todos, sem exceção. Sempre!” .

103 ALGARVE INFORMATIVO #371
Foto: Daniel Santos

VEE SPEERS – FASHIONED FROM NATURE (Exposição -27 de janeiro, , Loulé) Mirian Tavares

(Professora)

“Photographs are

perhaps the most mysterious of all the objects that make up, and thicken, the environment we recognize as modern. Photographs really are experience captured, and the camera is the ideal arm of consciousness in its acquisitive mood”.

uma das primeiras cenas do filme Le Fantôme de la liberté (1974), de Luis Buñuel, um homem com ar duvidoso mostra a duas meninas uma série de fotos. Mais tarde descobrimos que as fotos, consideradas escandalosas pelos pais, não eram pornográficas, mas simplesmente fotos de monumentos de Paris. No contexto do filme, as imagens da Paris napoleónica eram tão ou mais perigosas que imagens de corpos nus. O que me interessa desta passagem é a ideia da imagem fotográfica como algo capaz de provocar danos, de seduzir ou de perverter. Em 1977, Susan Sontag publicou um conjunto de ensaios sobre fotografia e, para ela, a câmara era equivalente a uma arma – capaz de violentar, ou de fazer mal, ao retratado pela sua capacidade de captar, e de congelar, um esgar, um sorriso, um olhar mais ou menos esquivo, pela sua capacidade de revelação. O fotógrafo como que se apropria da coisa fotografada e estabelece assim uma relação de poder sobre a imagem. Não nos podemos

esquecer de que a leitura de Sontag recaía sobre obras de artistas como Diane Arbus ou Richard Avedon, grandes retratistas de universos que podem ser paradoxais, mas que se encontram num ponto: suas fotos, sejam os freaks de Arbus ou as modelos de Avedon, são extremamente reveladoras, quase pornográficas, não pelo que mostram, mas pelo que deixam emergir. Cada rosto diz demasiado de si mesmo, expõe-se em completa confiança, entregase ao artista. Talvez como os modelos de Goya, no passado, ou, mais tarde, os retratos de Manet.

Vee Speers é uma fotógrafa australiana, baseada em Paris, em cuja obra podemos entrever Avedon e também Arbus, ou mesmo Goya. Sua especialidade – os retratos – trazem-nos rostos e corpos diversos, isolados, destacados do mundo, muitos a olharem para nós, desafiadores, outros ocultados por máscaras, físicas ou digitais. Todos a querer dizer-nos quase o mesmo, a gritarem a sua especularidade, representando, simultaneamente, um rosto e uma ideia, cada um universal a sua maneira.

ALGARVE INFORMATIVO #371 104

Sontag disse que “The subjects of Arbus’s photographs are all members of the same family, inhabitants of a single village”, referindo-se aos Estados Unidos como sendo esta single village. Os sujeitos das fotografias de Speers fazem parte de uma vila mais alargada – o mundo globalizado e impessoal, singular e múltiplo, diferente e quase sempre o mesmo. Na série Immortal, de 2010, a artista retrata jovens modelos em poses em que aparecem de peito aberto, desafiadores, mas, na maior parte das fotos, estão com os ombros encolhidos, ou as mãos sobre o peito, numa mistura de displicência e recato, mas sobretudo de abandono, de solidão e de receio. O cenário escolhido é um misto de génese e apocalipse – o começo e o fim, um motu perpétuo. As imagens aparentam excessiva pós-produção, são quase artificiais, como avatares que permanecem para além do corpo que lhe deu origem, como imagens que subsistem mesmo que os corpos pereçam.

Uma das experiências feitas por Speers foi a de convidar pessoas a usarem

máscaras antigas, muitas delas disformes, bizarras, e fotografá-las com a câmara do seu telemóvel, dando assim um ar mais casual e espontâneo à sessão que decorria durante um jantar.

My masks are full of imperfections just like a human face, so they seem to fuse with the person wearing them. The fixed and frozen expression poised on a human form is at once disturbing and fascinating. The body language suddenly takes on more importance with the face hidden, and every angle seems to reveal a different aspect of the mask. The two elements become one*.

Em Câmara Clara, Roland Barthes afirma que a pose revela mais do que esconde. Que, quando posamos para uma fotografia, deixamos que algo de verdadeiramente nosso, de verdadeiramente íntimo, sobressaia. Talvez por isso, Sontag comparasse a câmara a uma arma que, quando apontada a cada um de nós, é capaz de remexer em camadas profundas. Mas não é qualquer fotógrafo que consegue executar de forma precisa este gesto – o da autêntica revelação. Speers é uma artista que trabalha com fotografia de moda, mas é, antes de tudo, uma retratista que segue uma já secular tradição de pintores e de fotógrafos, capazes de transformar o quotidiano num universo fantástico e de fazer, ao mesmo tempo, o processo inverso, tornar fantástica cada foto, mesmo a mais vulgar, a mais quotidiana ou aparentemente banal .

* Vee Speers, https://www.lensculture.com/articles/veespeers-vintage-masks-spontaneous-iphoneportraits.

105 ALGARVE INFORMATIVO #371
Foto: Vasco Célio

Septuagésima tabuinha: Carta a muito jovens poetas

ntre fevereiro de 1903 e dezembro de 1908, o poeta alemão Rainer Maria Rilke escreveu a Franz Xaver Kappus uma série de cartas a comentar as «tentativas poéticas» do jovem militar de dezanove anos. Leitor de Rilke, Kappus soube que o poeta fora, como ele, pupilo na mesma academia e ganhou ânimo para lhe enviar os seus versos e pedir «o seu juízo». As cartas, que hoje são conhecidas e traduzidas por todo o mundo como Cartas a um jovem poeta, são tidas como uma espécie de «compêndio» (José Miranda Justo, um dos seus tradutores para língua portuguesa, usa este termo) –mas não se usa chamar-lhes «manual». Talvez a distância entre um «compêndio» e um «manual» venha da diferença entre um conjunto de princípios mais ou menos teóricos, mais ou menos abstratos, acerca de determinada tarefa ou função (que seria o primeiro) e uma lista de procedimentos concretos, de indicações precisas, relacionadas com alguma materialidade que a ideia de trabalho manual traz consigo.

Tenho um problema em mãos: um dos meus sobrinhos pede ao pai e o meu mano pede-me a mim que ensine o pequeno: “Pai, quero escrever versos, daqueles com rimas”. Não sendo eu Rilke,

a circunstância de o meu sobrinho não ter ainda escrito os tais versos que pretende aprender a escrever torna a apelativa ideia de manual numa dificuldade: em vez de me pôr a martelar, limar, serrar e colar palavras já feitas madeira ou barro, é preciso trabalhar no vazio, na prospeção, de olhos vendados, só com o futuro, com a ideia da palavra num torno imaginário – e, por isso, tão elusivo, fugidio. Que conselho se dá a alguém que quer escrever poemas, “desses que rimam”, pergunto-me? E que conselho se dá a uma criança que acredita que “escrever versos que rimam” é uma ação desejada, cujas dinâmicas criativas são do domínio dos adultos, que existem para ensinar tudo o que se quiser aprender? Escreveu outro poeta, antes de Rilke, que “a Criança é Pai do Homem”, e eu, romântica confessa, creio mais nessa ordem das coisas. Seria fugir ao problema responder ao meu sobrinho “És tu que tens de nos ensinar?”. O próprio Rilke sugere ao “jovem poeta” que recorra às “imagens dos seus sonhos” e aos “objectos [sic] da sua recordação”, e que a infância é “essa preciosa riqueza régia, essa câmara de tesouro das recordações” – é no lugar da criança que se pode visitar a matéria da poesia. Sem dúvida, mas para navegar nesse mundo é o compêndio que ajuda, e o meu sobrinho precisa do manual

ALGARVE INFORMATIVO #371 106

Quis o fortuito do quotidiano que me pusesse a pensar nisto no dia em que se completam 100 anos do nascimento de um poeta celebrado, Eugénio de Andrade; e em que as televisões e as rádios o dizem, o dão a ouvir, gesto típico de comemoração pontual que os restantes 364 dias do ano diluem, dissolvem. Estava entregue às mais prosaicas atividades matinais, quando a telefonia jorra “Toda a manhã procurei uma sílaba”, verso do poema «A Sílaba», do poeta nascido a 19 de janeiro de 1923. Escreveu-o já adulto, com obra publicada, (sobre)vivente das angustiantes buscas poéticas (“... faz-me falta. Só eu sei / a falta que me faz”, diz no poema), e fico a pensar no meu pequeno de oito anos, poeta por experimentar. Se lhe disser, como Eugénio, que a sílaba encontrada é

uma “salvação”, que “Só ela [o] podia defender do frio de janeiro” (ainda «A Sílaba»), o meu sobrinho olhará para mim, interrogativo, e passará além da citação, para me trazer de volta ao busílis: “Sim, mas diz-me é como se encontra”. Vou oferecer-lhe um dicionário de rimas, ou, se o descobrir, o Dicionário Inverso do Português. E, pelo sim, pelo não, um escopo e um martelinho .

NOTAS: O poema de William Wordsworth (1770-1850), «My Heart Leaps Up», pode ser lido aqui no original. As Cartas a Um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke, foram editadas, por exemplo, pela Antígona, na tradução de José Miranda Justo, numa bela edição bilingue de 2007.

107 ALGARVE INFORMATIVO #371
Foto: Vasco Célio

A perseguição João Ministro (Engenheiro do Ambiente e empresário)

uriosa esta persistente vocação: perseguir problemas. Não ultrapassá-los, mas somente perseguilos. Assim tem sido desde há muito e assim será, até ver, por muito mais. Apesar de toda a informação disponível, dos incontáveis índices, indicadores, relatórios e estudos, dos conselheiros e especialistas, das declarações e directivas europeias, das orientações e dos pactos internacionais, das centenas de conferências, seminários e congressos ou da miríade de comentadores para todos os assuntos, nunca deixámos de correr atrás dos problemas. E eles são sobejamente conhecidos. Não há como disfarçar ou encobrir com uma qualquer operação de marketing. Basta ler os mesmos relatórios, consultar as estatísticas ou simplesmente «andar no terreno» para verificar a quão difícil é a realidade que nos circunda em vários domínios da nossa sociedade.

A Habitação, um dos mais sérios problemas que enfrentamos hoje em Portugal – e no Algarve ainda mais – tem sido denunciado há mais de 15 anos, pelo menos. Agiu-se em conformidade? Preveniu-se o problema? Resolveu-se? Mitigou-se? Não. Hoje corremos atrás dos danos numa tentativa de amenizar os efeitos de uma enfermidade que está

metastizar-se em várias dimensões. Vejase, por exemplo, a proliferação descontrolada de «barracas e barracões» por esse campo fora, longe das regras de ordenamento, dos licenciamentos e até das mais básicas regras de segurança. Uma autêntica reação alérgica à gritante falta de habitação e a preços acessíveis.

O Emprego Jovem tem sido outra das nossas cruzes que teimosamente procurámos não dar demasiada atenção, mas que agora é-nos impossível escamotear. E porquê? Porque os dados não são bonitos de se ver. O recentemente publicado «Livro Branco Mais e Melhores Empregos para os Jovens» pela Fundação José Araújo, revela-nos como a qualidade desse emprego é fraca, como o desemprego tem crescido a um ritmo 2,5 vezes superior ao global (3,5 durante a pandemia), com prevalência das relações contratuais temporárias involuntárias –sendo essa superior à média europeia – e com salários baixos. No Algarve tal devese, particularmente, ao facto da principal actividade empregadora inserir-se num sector considerado “(…) pouco intensivo em conhecimento ou tecnologia e absorver muita mão-de-obra jovem apesar de oferecer condições pouco atrativas (…)” ou seja, o Turismo, nas suas diferentes componentes como seja a hotelaria e restauração. Não espanta por isso que menos jovens procurem trabalho nessas áreas e que hoje a falta de trabalhadores

ALGARVE INFORMATIVO #371 108

seja um verdadeiro «bico-deobra»! Sabíamos disto? Sim. Fizemos algo? Pouco. E agora? Corremos a Cabo Verde e a Marrocos para angariar rapidamente mão-de-obra (barata, diga-se!).

Sobre a Água pouco mais há a dizer. Já se repetiu até à exaustão a mensagem sobre a gravidade do problema no Algarve em relação à disponibilidade em recursos hídricos e a total incoerência com o modelo de desenvolvimento vigente, assente na massificação, intensificação e pouca (ou nenhuma mesmo) prevenção e remediação. Sprintamos agora a fundo para as soluções de última instância, caras e impactantes, como a dessalinização.

A Biodiversidade, esse parente pobre das preocupações ambientais, está também em linha com os restantes exemplos. Pouco fizemos para precaver a perda de espécies de fauna e flora. Pelo contrário. Monocultivou-se, destruiu-se, transformou-se e pouco se geriu ou protegeu. Falo da Paisagem e dos respectivos Habitats. Agora assumem-se metas ambiciosas – como a de criar áreas protegidas que cubram, pelo menos, 30 por cento da superfície terrestre e marítima da UE – como se isso bastasse para resolver os problemas. Os dados foram sendo repetidos ao longo das últimas décadas, mas o problema, esse, manteve-se e desenvolveu-se (para pior). Aceleremos, pois, o passo para combatêlo. Mas não criemos muitas expectativas quanto à celeridade dos resultados. Esses

hão-de vir um dia (ou não). Lembra-se da prometida Reserva Natural da Lagoa dos Salgados? Aquela proposta pelo ICNF, suportada pelo estudo técnico da Associação Almargem, que recebeu elogios e apoio de milhares de pessoas, das associações de ambiente e das instituições locais (algumas, pelo menos)? Passou exactamente um ano desde a consulta pública desse projecto e até hoje… Esperemos que o percurso deste processo em nada se assemelhe ao do novo aeroporto de Lisboa!

Tudo isto está interligado, tudo isto se reflecte no que observamos no dia a dia e tudo isto tem implicações no nosso modo de estar. Queiramos reconhecer ou não. E, porém, a calmaria prevalece, como aquele momento tenso e silencioso antes do disparo da pistola com que o árbitro dá início a uma corrida. Uma corrida que, ao invés da saudável competição desportiva, aqui nos leva em perseguição de um problema, o qual um dia esperemos ver ultrapassado e fora definitivamente das provas! .

109 ALGARVE INFORMATIVO #371

DIRETOR:

Daniel Alexandre Tavares Curto dos Reis e Pina (danielpina@sapo.pt) CPJ 3924 Telefone: 919 266 930

EDITOR:

Daniel Alexandre Tavares Curto dos Reis e Pina Rua Estrada de Faro, Vivenda Tomizé, N.º 67, 8135-157 Almancil

SEDE DA REDAÇÃO:

Rua Estrada de Faro, Vivenda Tomizé, N.º 67, 8135-157 Almancil Email: algarveinformativo@sapo.pt Web: www.algarveinformativo.blogspot.pt

PROPRIETÁRIO:

Daniel Alexandre Tavares Curto dos Reis e Pina Contribuinte N.º 211192279 Registado na Entidade Reguladora para a Comunicação Social com o nº 126782

PERIODICIDADE: Semanal

CONCEÇÃO GRÁFICA E PAGINAÇÃO: Daniel Pina

FOTO DE CAPA: Daniel Pina

A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista regional generalista, pluralista, independente e vocacionada para a divulgação das boas práticas e histórias positivas que têm lugar na região do Algarve.

A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista independente de quaisquer poderes políticos, económicos, sociais, religiosos ou culturais, defendendo esse espírito de independência também em relação aos seus próprios anunciantes e colaboradores.

A ALGARVE INFORMATIVO promove o acesso livre dos seus leitores à informação e defende ativamente a liberdade de expressão.

A ALGARVE INFORMATIVO defende igualmente as causas da cidadania, das liberdades fundamentais e da democracia, de um ambiente saudável e sustentável, da língua portuguesa, do incitamento à participação da sociedade civil na resolução dos problemas da comunidade, concedendo voz a todas as correntes, nunca perdendo nem renunciando à capacidade de crítica.

A ALGARVE INFORMATIVO rege-se pelos princípios da deontologia dos jornalistas e da ética profissional, pelo que afirma que quaisquer leis limitadoras da liberdade de expressão terão sempre a firme oposição desta revista e dos seus profissionais.

A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista feita por jornalistas profissionais e não um simples recetáculo de notas de imprensa e informações oficiais, optando preferencialmente por entrevistas e reportagens da sua própria responsabilidade, mesmo que, para tal, incorra em custos acrescidos de produção dos seus conteúdos.

A ALGARVE INFORMATIVO rege-se pelo princípio da objetividade e da independência no que diz respeito aos seus conteúdos noticiosos em todos os suportes. As suas notícias narram, relacionam e analisam os factos, para cujo apuramento serão ouvidas as diversas partes envolvidas.

A ALGARVE INFORMATIVO é uma revista tolerante e aberta a todas as opiniões, embora se reserve o direito de não publicar opiniões que considere ofensivas. A opinião publicada será sempre assinada por quem a produz, sejam jornalistas da Algarve Informativo ou colunistas externos.

ALGARVE INFORMATIVO #371 112

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.