Ann lethbridge coração leal (historicos 125)

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CORAÇÃO LEAL The Laird’s Forbidden Lady

Ann Lethbridge

Mantenha os amigos por perto... E os inimigos mais ainda. Ian Gilvry, laird de Dunross, é rude e selvagem como os espinheiros das Terras Altas. Mas o retorno de Selina e sua família reivindicando suas posses despertam nele ódio e paixão em iguais medidas. Lady Selina está dividida entre a lealdade a sua linhagem e o desejo luxuriante que nutre por Ian. Levada a se casar, ela descobre o quanto a virilidade dele satisfaz sua volúpia. Mas para Ian o dever vem em primeiro lugar. Como Selina terá certeza de que o coração daquele laird pertence não somente a seu clã... mas a ela também? Digitalização: Projeto Revisoras Revisão: Paula Lima


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Querida leitora, Você conheceu Selina antes, em Coração feroz. Selina era tão diferente de Alice que eu achei a amizade entre elas intrigante, e quis descobrir mais. Eu não esperava descobrir que, como eu, Selina tinha passado parte de sua juventude nas áreas montanhosas da Escócia. Apesar de tudo que ela disse a si mesma, nunca foi capaz de esquecer o lugar... Ou o jovem que capturara suas fantasias juvenis. Ian é tão rústico quanto seu país, e igualmente difícil de conhecer. Espero que você ache a história deles tão divertida de ler quanto achei escrever. Parece que a Escócia tem lutado contra a desigualdade ao longo dos séculos, e durante o período Regencial não foi diferente. Uísque ilegal acalmava, e contrabando era uma questão de sobrevivência para muitos... Mas não valeu á pena terem resistido e lutado tanto? — Dunross e seu povo são invenções de minha imaginação, mas foram inspirados em fatos históricos. Boa leitura, Ann Lethbridge

Tradução Elaine Moreira HARLEQUIN 2013 PUBLICADO SOB ACORDO COM HARIEQUIN ENTERPRISES II B.V./S.à.r.I. Todos os direitos reservados. Proibidos a reprodução, o armazenamento ou a transmissão, no todo ou em parte. Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas é mera coincidência. Título original: THE LAIRD’S FORBIDDEN LADY Copyright © 2012 by MichEle Ann Young Originalmente publicado em 2012 por Mills & Boon Historical Romance Projeto gráfico de capa: Nucleo i designers associados Arte-final de capa: Isabelle Paiva Diagramação: Editoriarte Impressão: RR DONNELLEY www.rrdonnçlley.com.br Distribuição para bancas de jornais e revistas de todo o Brasil: FC Comercial Distribuidora S.A. Editora HR Ltda. Rua Argentina, 171,4° andar São Cristóvão, Rio de Janeiro, RJ — 20921-380 Contato: virginia.rivera@harlequinbooks.com.br

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Capítulo Um

Escócia - 1818 Como ela pôde achar que voltar à Escócia seria uma boa ideia? Olhando o candelabro de ferro fundido suspenso nas antigas vigas de carvalho e as paredes de pedra cinzenta cobertas de tapeçarias esfarrapadas, espadas imensas e lanças enferrujadas, lady Selina Albright reprimiu a vontade de fugir. Depois de largar dois pretendentes muitíssimo aceitáveis, fugir de mais um seria o mesmo que ficar além dos limites do aceitável. Nem mesmo a considerável influência de seu pai impediu que ela fosse declarada uma coquéte. E, além do mais, essa era uma escolha sua. Finalmente. Ao redor dela, cavalheiros trajando casaca escura e mulheres com vestidos suntuosos, suas joias faiscando a cada movimento, enchiam o medieval salão de banquete do castelo de Carrick. — Não esperava que estivesse tão cheio — observou Chrissie, a nova lady Albright, esposa de seu pai há apenas um ano e quem encorajou Selina a concordar com a viagem. Mas ela nunca seria indelicada a ponto de dizer a verdade para Chrissie. — Ele deve ter convidado cada membro da nobreza escocesa — disse Selina. — Acho que a qualquer momento verei o fantasma de Banquo ou três bruxas curvadas sobre um caldeirão. — Um calafrio percorreu sua espinha. — Eu devia ter aguardado pelo fim do serviço militar de Algernon em Londres. Ela olhou de relance para o outro lado do salão, onde o Muito Honorável Tenente Algernon Dunstan conversava com outro oficial diante da enorme lareira decorada com galhadas de veado. De cabelo claro e esguio, ficava atraente em seu uniforme militar vermelho. Não exatamente o bom partido que seu pai esperava, mas era um rapaz de boa família e gentil. O tipo de homem que seria um marido distinto. Dunstan percebeu que estava sendo observado e se curvou num cumprimento. Ela inclinou a cabeça e sorriu. Dunstan era o motivo de sua presença ali: precisava induzi-lo ao desejado pedido e sair da casa do pai, onde se sentia decididamente oprimida. — Acho tudo isso muito romântico — disse Chrissie, apreciando seu entorno com olhos arregalados. — É como se eu tivesse sido transportada para as páginas de Waverley. A fortaleza de Dunross é tão encantadora assim? — Dunross é tão romântica quanto um barco no mar do Norte no inverno. — Era difícil imaginar que Selina tivesse se apaixonado pela fortaleza quando a viu, dez anos atrás. Tinha sido uma criança bastante impressionável, era de se supor. — Não é tão grandiosa quanto esta, mas é tão fria e úmida no verão que, sem dúvida, se torna um gelo no inverno. Papai lhe contou que o povo do local nos odeia porque somos ingleses? Eles nos consideram usurpadores, sabia? — Por alguma razão obscura, seu pai, o senhor daquelas terras, queria visitar a fortaleza logo em seguida — algo que não havia mencionado antes de deixarem Londres. Esse era o verdadeiro motivo para Selina 3


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lamentar acompanhá-lo naquela viagem. Dunross era o último lugar no mundo que ela queria visitar. — Ah, minha nossa! — ofegou Chrissie. — Quem é aquele? Selina acompanhou a direção do olhar dela. Sentiu uma batida forte do coração quando reconheceu o homem alto trajando a vestimenta das Terras Altas, emoldurado pela entrada arqueada de pedra. Ian Gilvry. O auto proclamado laird de Dunross. Seu motivo para odiar a Escócia. Enquanto seu olhar o assimilava, um nó se formou em seu estômago e dificultou sua respiração. Ele não era o jovem magro do qual se recordava, embora fosse reconhecê-lo em qualquer lugar. Era viril e musculoso e, apesar do saiote verde e vermelho, extremamente másculo. Suas feições eram rudes e sombrias demais para que fosse considerado bonito nas salas de estar de Londres, e o rufo de renda branca nos punhos e na garganta em nada suavizava a aura de perigo. A crua vitalidade que ele exalava atraiu e capturou o olhar de cada mulher no salão. Inclusive o dela. Ele era o último homem que esperava ou queria ver na festa de lorde Carrick. Felizmente, Ian não estava ali para criar problemas. O olhar dele varreu o salão e, para a mortificação de Selina, seu coração disparou enquanto esperava algum reconhecimento de sua presença naqueles olhos azul-celeste. Quando o olhar de Ian a alcançou e se deteve, Selina não conseguiu respirar. Seu coração deu uma cambalhota. Uma expressão de horror adejou o rosto de Ian, depois o olhar seguiu adiante. A pontada da rejeição a atingiu de novo. Ridículo! Ela não dava a mínima para a opinião de Gilvry. Ele podia ter sido o primeiro homem, ou melhor, garoto, a beijá-la, mas tinha sido uma tentativa desajeitada na qual não valia a pena pensar. Especialmente quando suas famílias estavam em pé de guerra. — Quem é ele? — sussurrou Chrissie. — Ian Gilvry de Dunross — murmurou ela. Maiores explicações eram desnecessárias. Chrissie o olhou com desdém. — Aquele é Ian Gilvry? O que ele está fazendo aqui? Pensei que só a verdadeira nobreza tinha sido convidada. Selina se encolheu diante da súbita vontade de protestar daquele tom debochado. — Ele é um primo distante de lorde Carrick. Pelo lado materno. — Aquela fantasia é realmente indecente num ambiente civilizado. — Chrissie fungou, claramente refletindo a opinião do marido a tudo que se referia a Gilvry. Em qualquer outra pessoa, Chrissie teria considerado o traje romântico. — Ele parece um verdadeiro bárbaro. Parecia mesmo. Deliciosamente bárbaro. Ah, não era o que devia estar pensando a respeito do homem que desprezava a ela e sua família; — É o traje tradicional das Terras Altas. — Fico surpresa por você defendê-lo — disse Chrissie, com um leve inclinar de 4


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cabeça. Selina se sentiu ruborizar. — Estou afirmando um fato. — Quando Chrissie a encarou com as sobrancelhas erguidas, ela percebeu que tinha falado com mais veemência do que pretendia. Então deu de ombros. Pelo canto do olho, notou Ian atravessando o salão para cumprimentar um amigo com um sorriso que iluminou seu rosto e o transformou num homem charmoso. Nossa, ainda se deixava enganar por aquele sorriso? Dificilmente. Ela não dava a mínima para Ian Gilvry e seus irmãos. Eles eram homens orgulhosos e arrogantes que não se deteriam por nada para expulsar seu pai das terras que consideravam suas. Como que percebendo que estava sendo observado, ele olhou na direção dela. Seus olhares se encontraram por não mais que um segundo. Um calor lhe inundou as bochechas. Selina foi rápida ao desviar o olhar. — Olhe, Sei — disse Chrissie. — Lá está lady Carrick. Seu pai insistiu para que eu a conhecesse melhor, e esta é a primeira vez que ela não está cercada por uma multidão de pessoas. Você vai ficar bem sozinha? Selina engoliu a resposta afiada. Chrissie estava sendo doce como sempre e ela havia prometido a si mesma que eliminaria o incômodo que sentia com a tentativa da moça de bancar a mãe. — Estou bastante satisfeita por ficar aqui e esperar seu retorno. — Deu uma leve agitada no leque e esperou que Chrissie não notasse o esforço que lhe custava não demonstrar impaciência. Chrissie saiu apressada, com uma determinação marital que levou um sorriso genuíno aos lábios de Selina e uma sensação calorosa ao seu coração frio. Não esperava gostar da nova esposa do pai, mas elas se davam bem na maior parte do tempo. Infelizmente, a solicitude persistente e a gentileza incessante de Chrissie faziam Selina se sentir cada vez mais como uma convidada na casa do pai. Isso havia se tornado uma fonte crescente de irritação desde o acidente que a manteve confinada em casa por tantos meses. Com tempo para refletir, ela decidiu que era mesmo a hora de encontrar seu próprio lugar no mundo. E a única opção disponível era se tornar uma esposa. Sem intenção, seu olhar mais uma vez vagou na direção de Ian. Ele parecia estar circulando o salão, indo de grupo em grupo, chegando mais perto de onde ela estava sentada a cada minuto. O coração dela acelerou. A boca ficou seca. Será que ele teria a audácia de se aproximar dela? Selina parou de apertar o leque e manteve o olhar em movimento, para o caso de alguém notar seu interesse. E lá veio Dunstan, para garantir que estava tudo bem com ela. Ele se grudava em Selina como um cãozinho que reencontra seu osso novo, depois de deixá-lo perdido por um tempo. Ela não sabia se o afagava na cabeça para fazer um agrado ou se atirava um graveto para mandá-lo para longe. Nenhuma das opções era apropriada, claro. Não caso quisesse manter o pretendente. O terceiro filho de um conde poderoso, Dunstan era um par perfeito para a filha de um barão, ainda que, certa vez, Selina quase tivesse fisgado o jovial herdeiro de um título de conde, tendo ainda a ousadia de segui-lo até Lisboa. Mas, quando ele fez o pedido, ela entrou em pânico e fugiu. Quando isso aconteceu pela segunda vez, com um visconde, ela foi rotulada como uma coquete e se tornou objeto do fascínio dos cavalheiros que gostavam de um desafio. Ou ao menos foi assim até o acidente torná-la digna de pena. 5


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Mas ela agiu bem ao fugir naquela primeira vez. Seu pretendente, segundo diziam as fofocas, depois se mostrou ser um marido intratável. Dunstan apresentava uma perspectiva inteiramente diferente. Ele seria um marido perfeito. Maleável. Gentil. E completamente apaixonado. Não seria trabalhoso manipulálo. Selina só queria que ele estivesse lotado em Bath ou Brighton, não nos ermos da Escócia. Ela sorriu em boas-vindas quando Dunstan se aproximou de sua cadeira. — Posso dizer o quanto está adorável esta noite? — disse ele, ansioso. — Obrigada, tenente Dunstan, você é muito gentil. Os olhos dele deram uma espiada no busto de Selina e depois buscaram o rosto. O desejo brilhava nos olhos de Dunstan, que levou as costas da mão dela aos lábios. Uma demonstração pública de posse. Novamente, a vontade de fugir surgiu no sangue de Selina, mas isso seria covardia. Ela acenou para que ele tomasse a cadeira vaga por Chrissie. — O castelo de lorde Carrick é uma maravilha, não acha? Mais uma vez, seu olhar errante recaiu sobre Ian. Ele estava bem mais perto agora. Perto demais. Ah, por que ele tinha que estar justamente ali? Selina não conseguia se concentrar em nada do que Dunstan estava dizendo. Remexeu-se na cadeira, virandose para concentrar toda a sua atenção no homem ao seu lado. Mas ela ainda podia sentir a presença de Ian, como uma sombra escura assomando no canto de um cômodo. Ela se obrigou a sorrir para Dunstan, que piscou. — Acho que vai gostar da casa do meu pai em Surrey — disse ele. — Sairei de licença no fim do mês. Espero que você e seu pai nos deem a honra de uma visita. Perfeito! Um homem que só está interessado em flertar não convida uma mulher para conhecer seus pais. E parecia que Dunstan era tão pouco enamorado pela Escócia quanto ela. — Nós adoraríamos, tenho certeza. E espero ver você na fortaleza de Dunross antes que parta para a Inglaterra. — A fortaleza seria o seu dote. Sua contribuição para um arranjo conveniente. Ele podia muito bem conferir o que estaria ganhando. — Será um prazer, já que tenho assuntos naquela área. — Assuntos militares? — Certamente — disse ele, o tom cheio de importância. Mas, já que ele não falou mais nada, Selina deixou o assunto de lado. — Há muita gente aqui que eu não conheço — disse ela, animada. Aposto que você conhece todos aqueles que são significantes. Eu ficaria grata com suas indicações. — Se tinha aprendido uma coisa nos seus anos na cidade, era como fazer um homem se sentir importante. O sorriso um tanto orgulhoso que Dunstan deu ao examinar o salão lhe provocou uma pontada de culpa, mas ele parecia apreciar a oportunidade de exibir seus conhecimentos. — O casal que está conversando com seu pai é o condestável da região e sua esposa. O coronel Berwick lutou em Waterloo com a Guarda Negra. — Um homem corajoso, então. — Selina memorizou o rosto do soldado. Uma boa esposa prestava atenção naqueles que podiam auxilar seu marido. E ela seria uma boa esposa. Estava determinada a manter sua parte na barganha. 6


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— Um escocês indisciplinado, mais provavelmente — resmungou Dunstan. — Eles deram muitos problemas ao regimento. — Ele agora estava fitando Ian. O sangue dela ficou gelado. Era como se um vento frio tivesse varrido o salão. — Que tipo de problemas? — Destiladas ilegais de uísque. Contrabando. — Ele estreitou o olhar. Se Ian estava envolvido em contrabando, ele era mais idiota do que ela tinha imaginado. Sem pensar, notou a maneira como o tartã roçava o topo das meias enquanto ele se dirigia com ágil leveza a um grupo de convidados não muito longe da cadeira dela. O coração de Selina bateu tão alto que ela teve certeza de que Dunstan devia estar ouvindo. Será que ele falaria com ela? Claro que não. O que ela diria se ele o fizesse? As palavras dele no último encontro, uns nove anos atrás, tinham sido horríveis. Chocantes. Mas, recentemente, ele havia atendido ao seu pedido feito por escrito e chamou seu irmão de volta para casa com uma diligência surpreendente. Devia-lhe a gratidão ao menos por isso. Agora não era o momento, entretanto. Com sorte, Ian passaria direto. A sorte, como sempre, não era sua amiga. O aborrecimento transpareceu no rosto de Dunstan quando Ian parou diante deles. Mas, sendo sempre um cavalheiro, Dunstan apontou para Selina. — Ian Gilvry, permita-me apresentar lady Selina Albright. Ian fez uma reverência. — Lady Selina, é realmente uma honra encontrá-la mais uma vez. A suave aspereza de seu sotaque escocês fez com que a pele dela se arrepiasse da mesma maneira como quando os lábios dele antigamente tocavam os seus. Ou seria apenas a sensação da mão dele na sua, a sensação do hálito morno que ela não poderia sentir através da luva? Ou seria meramente a admissão da recordação? O calor lhe inundou as faces. Ele era o único homem que sempre teve o poder de perturbar seu equilíbrio. Os anos de treinamento cuidadoso, porém, colocavam-na em vantagem, por isso Selina exibiu seu sorriso mais animado. — Ora, senhor Gilvry, eu mal o reconheci, depois de todos esses anos. Os brilhantes olhos azuis a encararam com frieza. A boca se curvou num sorriso amargo. Por que ele sentiria amargura? O orgulho dela é que tinha sido esmagado no chão quando pediu ajuda em favor de Alice. Mas os Gilvry e os Albright sempre foram inimigos. Talvez ela estivesse lendo mais na expressão dele do que deveria. — Você também mudou bastante, lady Selina. O tom dizia que ele estava conversando por mera educação. Só estava falando por falar. Dunstan franziu a testa, depois sua expressão clareou. — Ah, certo. Você passou algum tempo na fortaleza de Dunross quando era menina. Devem ter se visto na época. — Brevemente — disse ela. — Uma vez ou duas — disse Ian, no mesmo instante. Ela puxou a mão de volta. 7


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— Nenhuma pedra no bolso hoje, espero? Um sorriso relutante curvou os lábios carnudos de Ian. — Hoje não, minha senhora — disse ele, com candura. Selina arqueou uma sobrancelha. — E como estão todos em Dunross? Sua mãe está bem? Os olhos dele escureceram num cinza tempestuoso. — Tão bem quanto se pode esperar nessas circunstâncias. — Um músculo saltou no queixo dele. — Soube que em breve honrará a fortaleza de Dunross com sua visita. As fofocas abundavam. O autodeclarado laird de Dunross sabia de tudo a respeito da propriedade que alegava ser sua, quando, na realidade, pertencia ao pai dela. Selina ergueu o queixo, encarando o olhar dele sem hesitar. — Acredito que ela esteja na nossa lista de pontos de interesse exóticos. — Ela sorriu com doçura. Ele se enrijeceu levemente. O ressentimento transpassou o rosto dele, antes que se transformasse numa imperturbável indiferença. — Você tem muitos lugares exóticos na sua lista? — Alguns. É de praxe ficar encantado com a Escócia desde que Waverley foi publicado. Já leu Sir Walter Scott, presumo? Dessa vez, uma verdadeira raiva flamejou nos olhos dele. — Por que eu leria? Dunstan puxou o colarinho. — Também visitarei Dunross. — Que satisfação a sua — retrucou Ian, o olhar fixo no rosto de Selina. — Fico contente por vocês, sassenachs, sentirem tanto interesse por nós, pobres escoceses. — Ah, senhor, agora você se faz passar por um inseto sob o foco de uma lente. Ele deu uma forte risada. — Touché, lady Selina. Aquilo estava ficando inconveniente. Selina se virou para Dunstan. — Lady Albright está encantada com o país. E conhecer a Escócia tão bem quanto eu conheço dá à visita um charme especial. — Dizem que a familiaridade gera o desprezo — retrucou Ian, antes que Dunstan pudesse responder. Ela ergueu uma sobrancelha. — Não precisa ser rude, Gilvry — murmurou Dunstan. A orquestra deu início a um reel. Ian inclinou a cabeça. — Vejo que devo ,me desculpar. Posso solicitar a próxima dança, lady Selina? O ar abandonou os pulmões dela num jorro. Selina não esperava por aquilo. Por um instante, quase disse “sim”. Talvez fosse sua única oportunidade de falar com ele sozinha, de proferir seu agradecimento pelo favor prestado à amiga. Uma dança era o máximo de privacidade que ousaria com Ian Gilvry. Mas dançar estava fora de cogitação. 8


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Será que ele sabia? Será que estava fazendo uma provocação, sabendo muito bem que ela não podia dançar? Seria o tipo de coisa que Gilvry sentiria prazer de fazer. — Não estou dançando esta noite, senhor Gilvry. Os olhos permaneceram reservados, sem dar qualquer indício dos pensamentos dele. — Então, com licença — disse ele, educadamente. — Prometi à senhorita Campbell que a conduziria na primeira oportunidade. — Ele fez uma brevíssima reverência, uma flexão arrogante do pescoço que dizia que ele não se curvava para nenhum homem ou mulher, e se afastou, o kilt balançando a cada passada, os ombros largos erguidos. A sensação de seus braços agarrados àqueles ombros como se sua vida disso dependesse perturbaram a memória de Selina. Mesmo que naquela longínqua tarde não fossem assim tão excitantentemente largos. Ela arrastou seus pensamentos de volta para o presente e viu Chrissie e o pai aproveitando mais uma dança. Apesar da diferença de idades, formavam um bonito casal. E ela não podia deixar de se sentir feliz pela felicidade do pai, mesmo que isso significasse que ela precisava abandonar o lar. Seu olhar perambulou até Ian e a senhorita Campbell. Ele estava com toda a atenção concentrada no rosto da parceira. A moça ficou ruborizada diante de um comentário murmurado e um lampejo de sorriso. Algo apertou dentro do peito dela. Ciúme? Claro que não. Uma pontada de inveja? Talvez. Não era surpreendente. Não porque a moça estava dançando com Ian Gilvry — ela não dava a mínima para isso. Não. Era da dança que ela sentia falta. Um sorriso melancólico surgiu em seus lábios. Tinha sorte porque a sua imprudência só lhe privava da oportunidade de dançar. Podia ter perdido a vida. Selina exibiu seu sorriso mais radiante para Dunstan. — Presumo que seu coronel tenha dado ordens rigorosas de entreter as damas solteiras esta noite e, como eu não posso dançar, não devo afastá-lo de seu dever. A expressão dele exibiu alívio. — Você é graciosa por ser tão compreensiva, minha senhora. — O dever de um soldado deve vir primeiro. — E ela realmente precisava se livrar dele por um tempo. Seu coração ainda batia desconfortavelmente rápido depois da discussão com Ian. — Eu a acompanharei no jantar, logicamente. — Ficarei aguardando. Enquanto isso, não se preocupe comigo. Estou bem entretida. Dunstan se curvou e partiu, e logo estava conduzindo uma bonita e jovem matrona. O estranho, porém, é que Selina não sentiu nadinha de inveja enquanto o observava. Nem sentiria, disso ela tinha certeza, quando ele continuasse a dançar com outras damas depois que estivessem casados. Era o costume no mundo deles. Quando a música terminou, lorde Carrick assumiu posição sobre o tablado diante da orquestra. — Senhoras e senhores, tenho uma atração especial para vocês antes do jantar. Se fizerem o favor de me acompanhar até o terraço lá fora. — Um burburinho de 9


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animação percorreu o ambiente e as pessoas se encaminharam para as portas duplas no lado oposto do salão. Ian Gilvry, ela notou, saiu pelo arco por onde havia entrado. Sem escolha senão seguir o resto do grupo, ela se colocou de pé. Chrissie e seu pai vieram para perto dela. — O que está acontecendo? — Não faço ideia — disse Selina. Uma mulher parada ali perto se dirigiu a eles. — É uma competição. Os rapazes da região competirão por um prêmio para a nossa diversão. — Que não seja boxe, espero — disse Chrissie, com um estremecimento. — Ai, não. Algo melhor. Espere e verá. — Ela desapareceu na multidão. O grupo dos Albright se aproximou de lorde Carrick, que indicou que deviam se sentar na fileira da frente, e conduziu Selina até uma cadeira ao lado de Chrissie. Chrissie lhe deu um sorriso doce. — Como está se sentindo? — Animada com o espetáculo que está por vir — disse ela, fingindo não entender o que Chrissie realmente queria dizer. Chrissie se debruçou e sussurrou algo ao ouvido do marido. O pai dela sorriu com afeição, murmurando algo que fez Chrissie dar risadinhas. Sentindo-se uma intrusa, Selina desviou o olhar e fingiu não notar. Iluminado por tochas e uma lua cheia, o pátio enfeitado de bandeiras parecia genuinamente medieval. Lorde Carrick se sentou numa cadeira com dossel, semelhante a um trono, entalhada com símbolos de seu clã. Estava claro que ele seria o juiz e o jurado da iminente competição. Ao som agudo de gaitas de fole, cinco homens de kilt marcharam para dentro da área aberta, saindo de baixo da sombra de um arco, segurando espadas atravessadas sobre o peito. Entre eles, mais alto do que qualquer um, estava Ian. Dois de seus três irmãos o acompanhavam. Os homens se abaixaram e deixaram as espadas cruzadas em ângulo reto sobre as pedras de pavimentação. A música cessou. Lorde Carrick se colocou de pé e os cinco homens se curvaram. Sendo o chefe deles, sinalizou para que começassem e o gaiteiro tocou as primeiras notas. Os homens dançariam por uma bolsa. Era uma visão magnífica. Homens jovens e fortes em seus tartãs e renda branca pulando lépidos sobre suas espadas, saltando mais alto e rápido em padrões cada vez mais complexos. O pesado kilt de Ian balançava alto, revelando coxas bastante musculosas e... nada mais. Uma pena! Aquele pensamento provocou rubor nas faces de Selina. Como ela poderia ser tão pecaminosa? Mas a visão de Ian dançando, a selvageria controlada de seus movimentos, a demonstração de sua força e graça masculinas, invocava algo primitivo dentro dela. O controle de ferro na ligeireza de seus pés a fez segurar o fôlego com espanto e medo. Um 10


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homem tocou na própria espada, jogando-a para longe com um clangor. Ele parou de dançar imediatamente, curvou-se e se afastou derrotado. Ela não suportaria assistir caso Ian também falhasse, mas tampouco conseguia desviar o olhar. O ritmo da música acelerou. Outro homem saiu. E outro, até restarem apenas dois dos irmãos Gilvry mais velhos. Ian e Niall. Não havia sinal de Andrew. Ian saltava sem esforço, os pés tão próximos das lâminas que ele mal se afastava do centro da cruz. O que a deixava pasma era a intensidade, o sangue quente de batalha expresso na posição dos braços, o ângulo orgulhoso da cabeça e o fogo em seus olhos desafiadores. Por mais que parecesse impossível, ela sentiu que seus olhares se prendiam e, naquele momento, era como se Ian dançasse apenas para ela. Não, não para ela, percebeu Selina. Dançava da cara dela, rejeitando tudo o que ela representava. Uma guerra declarada. Os últimos saltos causaram suspense no grupo ali reunido. Mesmo assim, eles aterrissaram com leveza, livres das espadas, cada homem mantendo posição até a última nota desvanecer. A conexão foi rompida. Juntos, os dois homens fizeram reverência e permaneceram parados, esperando o julgamento do chefe enquanto a platéia aplaudia é vibrava. Até Chrissie e seu pai pularam de pé, aplaudindo. Selina não teve dúvida de quem ganharia. Ainda assim, ficou ansiosa até o chefe chamá-lo à frente. Ian subiu os degraus do terraço numa leve corrida, apertou a mão de Carrick e pegou a bolsa apresentada com uma inclinação de cabeça. Não olhou nenhuma vez na direção dela. Não havia acontecido conexão nenhuma entre eles. Ian provavelmente não conseguia enxergá-la no terraço escuro. Tinha sido sua imaginação. Não era a primeira vez que ela se enganava quanto ao interesse dele. A única conexão que possuíam era o da antipatia mútua. Lá no fundo, Selina sentiu uma pontada de tristeza. Talvez porque, fosse lá para quem estivesse dançando, Ian tivesse se expressado através de movimentos — uma liberdade e graça que ela jamais poderia atingir. Os dois homens trocaram algumas palavras, depois Ian desceu correndo os degraus e se foi. Só quando ele sumiu de vista foi que o pesar dentro dela diminuiu. Selina acreditava estar resignada quanto ao futuro que havia traçado, mas, por alguma razão, ela agora se sentia inteiramente incomodada. Ficou de pé com um leve encolher de dor. — Sua perna está doendo? — perguntou Chrissie. Minha nossa, a mulher era como uma águia. — Só estou um pouco rígida por ficar sentada, só isso. — E por causa da tensão de assistir Ian.

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Capítulo Dois

Ian se juntou aos membros de seu clã reunidos ao redor do gaiteiro nas sombras do portão que levava do pátio à cozinha. Sua respiração tinha abrandado, mas seu sangue ainda corria quente — a febre da batalha excitada pela música. Houve uma época em que ele dançava apenas pelo mero prazer disso. Agora ele se sentia pouco mais do que um urso dançarino numa corrente atuando para aqueles sassenachs. Ian engoliu a raiva. Aquilo agradou Carrick e as moedas proporcionariam um alívio bastante necessário à sua gente. Lorde Carrick poderia facilmente ter gastado seu dinheiro com algum outro entretenimento. Ele esvaziou a bolsa do prêmio na palma da mão, primeiro pagando o que era devido ao gaiteiro, depois dividindo os espólios igualmente. — Bom trabalho, rapazes. — O que é isso? — perguntou Logan, seu irmão caçula, apontando para a outra bolsinha que Carrick havia colocado na palma de Ian. — Você tem olhos aguçados, jovem Logan — resmungou Ian. — Carrick quer que façamos outra viagem até a França. — Pensei que tivéssemos todo o sal de que precisamos — disse Niall, tirando os olhos do mapa que estivera lendo sob a luz da tocha. — Ele quer conhaque — disse Ian. — Quase todo o suprimento dele terá acabado ao fim deste baile. — Trazer conhaque é querer arranjar problemas — disse Niall. — É bastante difícil passar com o conhaque pela fronteira até a Inglaterra. Ian o silenciou com uma olhada. — Como eu poderia recusar, depois de tudo o que ele fez por nós? Além disso, o dinheiro dele vai ajudar a pagar pela cevada desse outono. Niall sacudiu a cabeça. — Admita, você gosta do perigo. Será? Ele queria ser um soldado, muito tempo atrás, mas, quando seu pai morreu, Ian abarcou os deveres de um laird sem pensar duas vezes. Era a sua responsabilidade. Fugir de tal dever nunca resultou em nada que não fosse problemas, para ele e sua família. E o contrabando era um mal necessário. Parte do trabalho, caso quisesse que o clã sobrevivesse. E ele queria, desesperadamente. Era só nisso que pensava, dia e noite. — Que me diz de descermos para celebrar na taberna? — disse Tammy McNab, remexendo a moeda na mão. Ian bateu no ombro de Tammy. — Gastaria seu dinheiro com bebida quando seus bebês estão com fome? Um homem ruivo de 25 anos que já tinha três filhos, Tammy bailou a cabeça. — Só pensei em me divertir um pouco. — Por que pagar por isso se Carrick tem comida e bebida para Iodos vocês no 12


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salão dos criados? — perguntou Ian. Tammy se alegrou de imediato. — Você vem também, laird? Ian sacudiu a cabeça. — Tenho que procurar um capitão de navio agora que tenho essa nova tarefa. Divirtam-se com o dinheiro de lorde Carrick. Vocês o mereceram. Os homens se dirigiram para a entrada de criados nas baixas construções de palha contíguas ao castelo. Ian se virou para partir pela ponte levadiça. Logan agarrou o ombro dele. — Você viu quem estava assistindo? Os Albright. Eu reconheceria lady Selina em qualquer lugar. Porque ela era danada de linda. Mais linda como mulher do que tinha sido quando era uma menina de 16 anos. E também a mesma fonte de problemas que tinha sido na época. — Eu a encontrei lá dentro. — Ele curvou os lábios. — Eu a convidei para dançar, como Carrick ordenou. Ela me rejeitou. — Ian não sabia se ficava contente ou insultado. Durante a dança de espadas, ele tinha sentido a intensidade do olhar dela. Havia se perdido na beleza das notas finais, tirando força de seus olhos brilhantes e lábios entreabertos. Tinha voltado no tempo, dançando para a garota que vagava livremente pelo urzal daquele verão distante. Ele havia ficado encantado com seu rosto bonito e seu espírito, até recobrar a razão e se lembrar de quem ela era filha. Algo que seria bom lembrar agora também. Selina Albright só havia causado problemas para sua família. E ele, feito um idiota, tinha ajudado. — Não me surpreende que não quisesse dançar com você, Ian. Ele ficou tenso. — Sim. Os Albright sempre estiveram um pouco acima do clã Gilvry. — Ela pode pensar assim, mas duvido que possa dançar. Não mancando daquele jeito. Espantado e com uma súbita pontada de consternação, Ian girou a cabeça. Seus olhos se estreitaram enquanto observava o progresso da beldade morena no vestido branco que atravessava o terraço de braço dado com o pai, a hesitação em cada passo cruelmente óbvia sob a luz das tochas. Ela o rejeitara por uma razão diferente da que ele havia imaginado. Ian sentiu uma estranha onda de alívio. Virou-se e empurrou Logan para que seguisse os outros. Chamou Niall de volta e baixou a voz. — Fique de olho em Logan. Ele está começando a se interessar por mulheres e Carrick tem muitas delas na cozinha. Niall suspirou. — Você é tão cruel quanto nossa mãe, sempre se preocupando com o garoto. Vai deixá-lo pior. — Nossa mãe já perdeu um filho. — Porque ele havia deixado que sua afeição por um rosto bonito sobrepujasse seu bom senso. — Não quero que ela perca outro. 13


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— Então talvez devesse pensar duas vezes antes de fazer contra-bando. — Quem é que se preocupa demais agora? — Ian tomou o papel da mão de Niall. — Pode ler isso depois. — Devolva — disse Niall, a voz perigosamente baixa. Ian atirou o papel de volta com um sorriso. Guarde no seu bolso então, e concentre-se no que está ao seu redor para variar. Niall fez uma careta, os olhos ficando sérios. — Faça dessa viagem para a França a última, irmão, senão nos veremos pendurados numa corda. Ian deu um tapinha no ombro do irmão com uma confiança que parecia grudar no fundo da garganta. — Vou ficar bem. Contra a vontade, ele olhou para o terraço lá atrás, seu olhar procurando a garota cujos olhos falavam com ele das maneiras mais inesperadas. Ela tinha sumido. Melhor assim. Ele tinha trabalho a fazer.

Topaz não precisava de estímulo para galopar. Selina a conduziu para fora da estrada através de um campo aberto, deliciada com a velocidade e o frio da brisa contra suas faces. Ao menos podia respirar. E, no lombo de um cavalo, ela poderia esquecer sua incapacidade. O cheiro da urze preenchia suas narinas. Doce como o mel proveniente das abelhas daquela parte do país, ainda que terroso também. Ela encheu o olhar com a beleza das colinas. Um terreno selvagem e imperdoável, mas tão grandioso que fazia seu coração doer. Havia esquecido a facilidade com que a criança dentro dela tinha se apaixonado por aquele lugar à primeira vista. Esquecido deliberadamente. As recordações só traziam de volta a dor da solidão e da traição. Algo que nunca sofreria novamente. Selina sorriu consigo mesma. Tais pensamentos sentimentais não tinham lugar em sua mente num dia tão glorioso. Viveria o presente, planejaria o futuro e deixaria que o passado fosse entregue ao demônio. Deus sabia que havia erros suficientes em seu passado que mereciam ser esquecidos. Trinta minutos depois, Selina estava desejando ter ficado na trilha. Após meses de inatividade, seus músculos estavam reclamando da força de manterem-na firme na sela, embora tivesse cavalgado o terreno acidentado escarranchada, sem esforço. Cavalgar escarranchada não era uma opção para a mulher que havia se tornado. Selina esfregou a coxa com uma careta ao lembrar que tinha sorte de sequer estar cavalgando. Foi sorte não ter matado a si mesma ou alguma outra pessoa. Ela desacelerou o passo do cavalo e o fez dar a volta. Um collie preto e branco saiu chispando da urze. Latindo, tentou abocanhar os calcanhares de Topaz. O cavalo recuou. Desequilibrada, Selina agarrou-se na crina. O animal aterrissou com estrondo sobre as patas dianteiras, sacolejando-a novamente. 14


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— Calma, garoto — gritou ela, lutando com as rédeas enquanto Topaz inclinava a cabeça e girava, tentando observar o cachorro. Ele deu um chute com um dos cascos traseiros. Desalojada com o sacolejo, Selina não teve escolha senão soltar o pé e se deixar escorregar até o chão. Aterrissou sobre o traseiro com um gemido. — Cachorro maldito! — berrou. Olhou para Topaz, que estava com olhos arregalados. Droga! Nunca conseguiria montá-lo outra vez. Teria que levá-lo para casa andando. Sua primeira chance de cavalgar em meses havia terminado em desastre. Selina esticou o braço para agarrar as rédeas de Topaz. — Está tudo bem, garoto — murmurou ela. O capão agitou a cabeça e empinou para mais longe ainda. Maldição dupla! A coxa latejou um protesto. Será que tinha quebrado a perna outra vez? Tal pensamento fez o estômago dela revirar. Não. Não tinha ouvido aquele horrível som de estalo e era o seu traseiro que estava machucado, e o seu orgulho, não a perna. Respirar. Acalmar-se. Tudo o que ela tinha que fazer era se levantar e apanhar Topaz. Seria uma longa caminhada até em casa, mas ela conseguiria dar conta. Selina se forçou a ficar de joelhos. — Lady Selina! É você? Ela gemeu por dentro. Com tanto azar, só podia mesmo estar ouvindo aquela voz profunda da qual se recordava tão bem. Selina ergueu os olhos. De kilt e aparência selvagem, o cabelo escuro bagunçado pela brisa, Ian Gilvry parecia completamente à vontade entre as colinas revestidas de urze enquanto caminhava na direção dela. Ele sempre parecia estar assim. Para uma menina de 16 anos, ele parecera heróico e romântico. Especialmente porque, na primeira vez em que se encontraram, Ian a carregou para casa e a beijou, uma coisa tímida e desajeitada quando a colocou no chão junto ao portão. Verdadeiramente embriagada, Selina arquitetou maneiras de encontrá-lo de novo. E de novo. Em sua inocência, tinha presumido que Ian gostava dela. — Está machucada? — perguntou ele quando chegou perto, a preocupação exposta no rosto, uma grande mão bronzeada estendendo-se para puxá-la de pé. Selina a ignorou e se deixou ficar sobre a urze florida, cobrindo empertigadamente o pé com o traje de montaria. — Estou bem. Ian recuou, colocando as mãos nos quadris estreitos, a cabeça inclinada. — Você caiu do cavalo? Ela deu uma olhada em Topaz, que agora estava muito satisfeito mastigando o capim bem fora de seu alcance. — Eu desmontei de maneira mais rápida do que esperava. O cavalo ficou apavorado com seu cachorro. O sorriso nos lábios bem-desenhados se alargou. — Ora, uma excelente amazona como você atirada ao chão por um cachorrinho? — Esse cachorro devia estar amarrado. O cavalo podia ter se machucado e isso 15


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lhe custaria um bom dinheiro. — O que ela estava fazendo? Não queria entrar numa discussão com aquele homem. Devia simplesmente se levantar e ir embora. Os olhos dele, azuis como o céu acima de sua cabeça, se estreitaram. — Gilly está em treinamento. Peço desculpas se ele afligiu seu animal. O queixo dela caiu. Os Gilvry não se desculpavam com os Albright. Era uma questão de honra. — Desculpas aceitas. — Selina olhou para longe, querendo que ele se fosse. — Permita-me recolocá-la no cavalo — disse ele, a voz não mais do que um murmúrio. Gentil. Cheio de pena. Como todo mundo. Selina rangeu os dentes de frustração. Um ano antes, teria sido fácil se levantar num pulo e deixar que ele a colocasse sobre a sela. No momento, voltar para aquele cavalo e tentar controlá-lo com os músculos doloridos estava fora de cogitação. Ela não devia ter cavalgado tão longe. Selina exibiu seu melhor sorriso e teve a satisfação de ver os olhos dele se iluminarem um pouco. — Acho que ficarei aqui para apreciar a paisagem por enquanto. Não precisa se incomodar. As sobrancelhas escuras se ergueram. Ian resmungou baixinho alguma coisa em gaélico. Uma praga, sem dúvida. Ela também estava com vontade de praguejar. — Então lhe desejo um bom-dia, lady Selina. Venha, Gilly. — Ele fez uma rígida e curta reverência e subiu a colina. O cachorro ficou deitado ao lado dela. — Vá — disse ela, dando-lhe um empurrão. O cachorro a encarou com a testa franzida e olhos sorridentes. Ian assobiou sem olhar para trás. O cachorro permaneceu onde eslava. Com um suspiro pesado, Ian se virou e desceu, puxando uma corda do bolso do paletó. — Mais uma vez devo me desculpar pelos maus modos do meu cachorro. — Ele passou a corda enlaçada pela cabeça do animal e deu um puxão forte. O cachorro puxou de volta com um choramingo. Enfiou o focinho debaixo da mão dela, que descansava sobre a coxa. — Vá — disse ela, desesperada para que os dois fossem embora, para que pudesse ir mancando para casa com o resto de seu orgulho intacto. Os olhos azuis de repente se tornaram perspicazes. — Consegue se levantar? Ele sabia. Claro que sabia. Ele a tinha visto no baile de Carrick. — Não estou pronta para partir. Por que você e seu cachorro simplesmente não vão embora? — É claro que não daria a ele a satisfação de observá-la mancar atrás do cavalo. Ian encarou a beldade morena e miúda sentada aos seus pés na urze e não acreditou em uma palavra que saía daquela boca. A tensão ao redor da boca falava da dor e de um bocado de humilhação. 16


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— Irei quando você estiver a salvo em casa. — Ele estendeu a mão para ajudá-la a se levantar. Selina deu um suspiro impaciente e pôs sua mão pequena na de Ian, que a puxou. O rápido arfar de dor quando ela se levantou provocou nele uma ponta de remorso. Maldita mulher teimosa! Ele a abaixou com cuidado e se agachou ao lado dela. — Eu sabia que estava machucada. Ian baixou os olhos para os tornozelos dela, onde o traje tinha se amontoado, exibindo um par de resistentes botas de montaria. — É a sua perna? As faces dela ficaram vermelhas. — Em parte, se quer saber. Mas, na verdade, é porque essa é a primeira vez que cavalgo em muito tempo. Fiquei muito tempo aqui fora. Garanto que estarei bem em breve, mas agradeço sua preocupação, senhor Gilvry. Antigamente ele tinha sido simplesmente Ian e ela, uma menina estouvada que num verão vagou pelas colinas de Dunross e enfrentou uma batalha correndo de seus irmãos mais novos, já que os Gilvry e os Albright eram inimigos mortais. Ele havia ficado na casa de seu tio Carrick quase o verão inteiro. Voltou para casa poucos dias antes de retornar à escola em Edimburgo e a conheceu por acidente numa tarde de verão. Ele, a princípio, não sabia quem ela era, então foi ao resgate quando Selina torceu o tornozelo numa toca de coelho e a carregou para casa. Além do rosto bonito e da feminilidade florescente, Ian considerou sua alegria e sua conversa natural cativantes. Selina o tratava como um homem, não um garoto, e havia a idolatria dedicada a um herói naqueles cálidos olhos castanhos — uma agradável mudança frente aos livros de estudo e as lições de mordomia. Eles se encontraram diversas vezes depois daquilo, até serem descobertos em Balnaen Cove pelos seus irmãos. E essa situação não terminou nada bem. — Então parece que devo carregá-la para casa outra vez — disse ele, imaginando se Selina também se recordava daquilo, mas depois quis dar um chute em si mesmo quando as sombras escureceram aqueles olhos castanhos como xerez. Claro que ela se recordava. Mas, sem dúvida, recordava-se de suas palavras ríspidas também. Como um idiota, Ian tentou reparar sua crueldade quando ela voltou a pedir sua ajuda, mesmo que anos tivessem se passado. Muito coração mole, seu avô sempre dizia. Drew tinha pagado o preço por causa desse pouquinho de brandura. Bem, ele já não era mais um coração mole. Muitas pessoas dependiam dele agora. Mas também não podia, em sã consciência, deixá-la ali. — Não me parece necessário — disse Selina, afastando a mão dele com um tapinha. — Posso me virar muito bem sozinha. Só preciso de uns minutinhos. Aquela garota sempre teve muito espírito. E agora parecia realmente linda. Era como um banquete estendido na urze para um homem faminto. Ian sacudiu a cabeça. Não tinha tempo nem inclinação para travessuras na urze. Ele sempre havia deixado isso para Drew. E, por causa da fraqueza de Ian por essa mulher, Drew não existia mais. Um bom Gilvry a abandonaria ali e deixaria que o Albright se preocupasse com a filha sumida, mas um verdadeiro cavalheiro das Terras Altas jamais abandonaria uma mulher em apuros. Nem mesmo a filha do pior inimigo. Ian a encarou de cara feia. 17


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— Você sabe que não posso deixá-la aqui. E nem posso deixá-la voltar andando para casa com dor. — Darei um jeito, obrigada. Ele pôs as mãos nos quadris e sorriu para ela. — Então monte no seu cavalo pulguento e vá embora. — Quando eu estiver pronta — murmurou ela. Ian se sentou de pernas cruzadas ao lado de Selina. O leve perfume de rosas invadiu suas narinas. Rosas e urze. Jamais havia inalado uma combinação tão estonteante, embora suspeitasse que tivesse a mais ver com Selina do que com o perfume da vegetação ao redor. Cruzou os braços sobre o peito. — E eu ficarei sentado aqui até você partir. Ou até você recobrar o bom senso. Selina rolou para longe para ficar de joelhos, apresentando uma visão do traseiro curvilíneo, o que disparou um golpe de luxúria em sua virilha. Se não fosse pelo tartã e pela escarcela, ela, não o consideraria melhor que um animal. Gilly a rodeou e lambeu seu queixo. Selina o empurrou, lutando com as saias e o cachorro. Com um pequeno gemido, ficou de pé e deu alguns passos hesitantes na direção do cavalo. Ian levantou num pulo, colocando a mão por baixo do cotovelo dela. — Ora, menina, seu orgulho não aceita a minha ajuda? Ela baixou a cabeça, até que tudo o que ele podia ver era o topo do chapéu de veludo verde e as prímulas de seda que adornavam a fita verde. — Parece que não tenho escolha — disse ela, numa voz baixa e derrotada. — Não consigo mais cavalgar hoje. A angústia da admissão arrancou o ar dos pulmões dele. Que droga! — Isso é tudo culpa minha. Não devia deixar o cachorro sem correia. A cabeça dela se ergueu. Escuros olhos castanhos, suaves como veludo, encontraram os dele. — A culpa é minha. Eu não devia ter deixado a trilha. — Bem, parece que só existe uma resposta para o nosso dilema. — Passando um braço pelos ombros dela e o outro cuidadosamente por baixo dos joelhos, ele a ergueu. Selina ofegou. — Coloque-me no chão. Não vou deixar que me carregue o caminho inteiro até Dunross. — E eu não pretendia — disse ele, olhando para aqueles profundos olhos castanhos e sentindo como se estivesse para se afogar. Essa não era uma reação que deveria ter, não com essa mulher. Ian rangeu os dentes e agarrou as rédeas do cavalo. O cachorro acompanhou de perto como se fosse o mais bem treinado da Escócia. Naturalmente. — Então para onde estamos indo? Sem qualquer razão aparente, o medo na voz dela provocou uma aflição em seu peito, mas Ian estaria perdido se a deixasse ver isso. 18


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— Encontrar um meio de transporte menos censurável. E, assim, ela riu. Foi como se o sol tivesse saído de trás de uma nuvem e ele não conseguisse deixar de sorrir, mesmo que só um pouquinho.

Capítulo Três

Selina permaneceu tensa, tentando manter certa distância entre ela e o peito dele. Impossível, já que estava em seus braços. Braços fortes que sustentavam suas costas e seus joelhos. As batidas regulares do coração dele ressoavam nas costelas dela. Uma sensação de segurança fazia com que Selina quisesse passar o braço pelo pescoço dele e descansar a cabeça em seu ombro bronzeado. Segura? Com ele? Será que tinha batido a cabeça quando caiu? Os Gilvry eram selvagens e indomáveis. Na última vez em que viu Ian, ele havia se juntado aos irmãos, chamando-a de sassenáche ladra. E ele agora era o líder da família. Um homem que faria qualquer coisa para tirar o pai dela da terra que considerava sua. Mesmo que não pudesse recusar a ajuda dele, Selina não devia confiar em suas razões. Ao pé da colina, eles se depararam com uma sinuosa trilha de carroça. Os passos de Ian ficaram mais longos conforme ele acompanhava os fundos sulcos de rodas ao redor de uma extensa curva até onde um lago longo e estreito cintilava como aço batido sob o sol fraco. Ao lado dele havia uma coleção de construções brutas de pedra. O velho moinho d’água. Parecia diferente — não tão abandonado —, e a chaminé, que era semelhante a um pagode num dos lados, parecia nova. — Pensei que os Gilvry não usassem mais o moinho. — Meu pai não. Eu uso. — E acrescentou uma chaminé? — Sim. Que taciturno! — E por que o moinho precisa de uma chaminé? Ele hesitou, a expressão tomando-se cuidadosamente neutra. — Para manter o moleiro aquecido no inverno. Uma mentira. Embora soasse bastante lógica. E daí que ele não lhe contava a verdade? Não importava para ela o que os Gilvry faziam naquele velho moinho quase desabando. Ian a carregou para o celeiro e a deixou sobre um fardo de feno. EIa imediatamente sentiu a perda da força que rodeava seu corpo, o calor sedutor, mas Ian parecia contente por se livrar dela. Será que da não tinha nem um pouquinho de 19


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orgulho? Aparentemente, uma parte dela não tinha. A parte infantil e ingênua que o admirou desde o primeiro momento em que o viu. A parte que ela havia enterrado há muito tempo. Em silêncio, ele amarrou Topaz a um poste; Gilly se enroscou aos pés dela. Sua coxa já não doía tanto quanto antes. Havia sofrido um choque e os ossos que não remendaram direito decidiram protestar do tratamento bruto. Mas, mesmo que a dor tivesse diminuído, Selina duvidava que teria forças para manejar o cavalo. Teria que aceitar o modo de transporte alternativo de Ian. O único ocupante do celeiro era um pequeno pônei baio, que ele tirou da baia para, em seguida, prendê-lo a uma carroça de base achatada. — Sua carruagem a aguarda, minha senhora — disse ele, sorrindo torto. Selina ficou de pé, mas ele não lhe deu chance nenhuma de caminhar, simplesmente a ergueu e colocou sobre alguns sacos vazios que havia estendido sobre as tábuas expostas. Ian era incrivelmente forte e muito diferente da maioria dos cavaleiros da sociedade, que se definiam por suas roupas, não por seus atributos masculinos. Tão diferente do elegante Dunstan. Ah, agora realmente estava sendo desleal! Selina se remexeu até suas costas ficarem apoiadas nas tábuas das laterais. O cheiro de cevada subiu. Um cheiro doce e poeirento. Ian franziu o cenho. — Não há cobertores, mas posso lhe dar meu paletó. Não. Ela não iria para casa enrolada no paletó dele. Já era bem ruim que tivesse que suportar sua ajuda. Não era? — Isso vai servir. — Ela apanhou dois sacos, cobriu as pernas com um e colocou outro ao redor dos ombros. Exibiu um sorriso e bateu os cílios numa paródia. — Como estou? — Parece a esposa de um funileiro — disse ele, um brilho surgindo nas profundezas daqueles olhos, tornando-o mais atraente do que nunca. Um brilho no qual não devia confiar. Selina manteve a voz leve e audível, o sorriso radiante. — Mas é da mais alta moda, não é? O canto da boca dele se ergueu como se quisesse sorrir mais do que era conveniente. — Tão alta quanto o topo das árvores, minha senhora. Algo naquele tom de gracejo fez com que Selina se sentisse enternecida e abrandasse o sorriso. Eles sorriram um para o outro como costumavam fazer naquelas longínquas tardes de verão, antes que ele tivesse dado as costas para ela de maneira tão cruel. O olhar dele baixou para lhe observar a boca. O coração dela deu um pulo. A respiração ficou presa. Muitos homens tinham olhado para ela com ardor desde que fora apresentada à sociedade. Mas seu coração nunca deu cambalhotas de maneira tão ridícula. Era ela quem arrasava corações. Os 20


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homens não tocavam no dela. Jamais. Era assim que as pessoas se machucavam. Além disso, ela estava praticamente comprometida com um homem de muito valor que estava completamente encantado com ela. Selina virou o rosto. — Devemos ir. — Sim. Vou amarrar seu cavalo atrás. Ela engoliu em seco diante da sensação de perda quando Ian se afastou, tentou esconder suas reações estúpidas ao sorriso dele pensando no seu pai e na reação dele quando descobrisse que a filha fora conduzida para casa por um homem que desprezava. Seu pai não ficaria nada contente. Cavalo atrelado, Ian pulou no assento do condutor com tamanha agilidade que a fez se sentir ainda mais desajeitada e esquisita do que costumava ficar ultimamente. Ele girou no assento, um pé repousado sobre o assoalho, o tartã pendurado de modo a revelar o joelho e o começo de uma panturrilha firme e musculosa com pelos escuros que desapareciam sob a meia. Tão másculo. Tão intrigante. Tão fora dos limites. Selina se obrigou a desviar o olhar. — A trilha é acidentada — disse ele. — Irei o mais suave que eu puder. — Não sou uma inválida. — Nunca disse que era. — Ele estalou a língua e o pônei começou a andar. Gilly pulou pela lateral da carroça e aterrissou ao lado de Selina. Depois se deitou entre suas pernas. — Saia — disse Ian. O cachorro baixou as orelhas, mas não se mexeu. — Deixe-o — retrucou Selina. — Ele está me mantendo aquecida. — Sorte a dele — murmurou Ian. Ela ficou boquiaberta. Será que ele tinha mesmo falado o que ela achava ter ouvido? Ou só estava sendo sarcástico? Ian fitava a estrada à frente com apatia. — O que aconteceu com a sua perna? — perguntou. — Eu a vi andando no baile. Tanto esforço para caminhar com suavidade! — Minha carruagem tombou e caiu sobre mim. Ian se encolheu. — Espero que o idiota do condutor tenha sido devidamente punido. — Eu fui. Quebrei minha perna. As bochechas dele ficaram vermelhas. — Ah, eu não pretendia... — O acidente foi minha culpa. Eu estava dirigindo rápido demais sem olhar para onde estava indo. — Pensando em sua recente conquista masculina, caso a verdade fosse dita. — Eu tive sorte por ser a única ferida por minha estupidez. Já não dói tanto, mas os ossos não se encaixaram muito bem. — Sinto muito. — Ele parecia lamentar. Mas no passado ele também pareceu gostar dela, até seus irmãos os pegarem juntos. 21


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Sassenach. Ladra. Os desaforos dançavam em sua mente. A guerra entre os escoceses e os ingleses podia ter acabado, mas suas famílias batalhariam até não restar mais ninguém que pudesse empunhar uma espada verbal.

A TRILHA se uniu à estrada principal, onde os solavancos eram poucos, e o progresso deles melhorou. Logo estavam passando pela aldeia de Dunross, onde um grupo de meninos esfarrapados estava chutando uma bexiga de porco de um lado para o outro da via. Quando viram a carroça, vieram correndo. — Laird, laird — gritou um dos meninos, dizendo, em seguida, algo em gaélico. Ian respondeu na mesma língua. Depois se voltou para Selina. — Querem que eu vá brincar com eles. Um dos meninos a viu na carroça, seus olhos se arregalaram no rosto encardido. Ele apontou para ela e berrou algo. Todos os meninos deram risadinhas. Ian sorriu e respondeu, claramente uma negação. Ela ergueu os ombros, compôs o rosto numa calma despreocupação, mesmo que por dentro estivesse encolhida como uma bola. — O que ele disse? Ian riu. — Garotos. Possuem mentes limitadas. Queriam saber se você é a minha mulher. Eu disse que não, que você é uma dama que deve ser tratada com respeito. Selina relaxou, percebendo que os meninos tinham retomado o jogo. — As crianças não deviam estar na escola? — Deviam. Será que ele não conseguia falar mais do que uma palavra por vez? — Você se diz o laird. Por que não convence as famílias a dar educação às crianças? Ele lhe deu uma olhada, as sobrancelhas abaixadas, os olhos, duros. — Eles me chamam de laird porque é o que sou. À escola mais próxima fica a mais de 2O quilômetros daqui. — Por que não dá início a uma escola na aldeia? — Onde? — Ele parecia frustrado. Selina se recolheu ao silêncio. Seu pai é quem devia abrir uma escola. Ele era dono de praticamente tudo, exceto o velho moinho e a fazenda dos Gilvry. — Vou falar com meu pai sobre a instalação de uma escola. Talvez no saguão da igreja. Agora Ian parecia surpreso e, se é que era possível, contente. — Seria uma grande coisa para as famílias das redondezas. As crianças lá dos vales poderiam vir também, quando não forem necessárias nas tarefas de casa. Assim teriam um futuro melhor. Selina lhe lançou uma olhar astuto. 22


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— E ficariam longe de encrencas. Ele deu uma risada. — Talvez, minha senhora. Eu e meus irmãos arrumávamos todo tipo de encrenca, apesar de termos um tutor. Mas é verdade que tínhamos menos tempo para arranjar problemas. Ela foi tomada por uma sensação de ternura, uma sensação de que estavam começando a conversar como amigos de novo, não mais como inimigos. Gostava dessa sensação. Quando se aproximaram da taberna no centro da aldeia, um jovem que estava varrendo o pavimento tirou o chapéu. Ele sorriu para Ian. — Tenha um bom-dia, laird. Ian retribuiu o cumprimento com um aceno de cabeça. Então o olhar do homem recaiu em Selina e todos os traços de bom humor desapareceram de seu rosto corado. — É a cria do Albright. Devia largá-la no primeiro pântano e deixar que se afogasse, não ficar conduzindo ela pelo campo. Seria muito bom o Albright ver como é perder alguma coisa. — Basta, Willy Gair — disse Ian. — Você sabe que esses não são os modos das Terras Altas. O jovem o olhou de cara feia. — O povo das Terras Altas deve cuidar de seus semelhantes, não dos ingleses que não têm assunto nenhum aqui. Você é um traidor do próprio clã, Ian Gilvry, se tem qualquer relação com a gente da fortaleza. — Foi se aproximando da carroça, endereçando a Selina um olhar tão cheio de ódio que ela sentiu a boca seca e o coração disparado. — Falo com você mais tarde, Willy — disse Ian com seriedade, incitando o pônei a trotar. Selina mordeu o lábio. Nada havia mudado ao longo dos anos. — Por que ele está tão zangado? — Ele foi despejado no mês passado — disse Ian, diretamente. — A família dele tem sido arrendatária das terras de Dunross há gerações. Quando ele não conseguiu pagar o aluguel, teve que partir, ele é um dos sortudos. O cunhado dele é dono da estalagem e pode lhe dar algum trabalho e um teto. — Papai não me falou nada sobre despejos. A expressão dele dizia que ela não sabia de nada que o pai fazia. — Por que ele faria isso? — Ovelhas. Outra resposta curta que era tão clara quanto lama. Estava óbvio que ele não diria mais nada. Bem, ela só precisava perguntar ao pai. — Quase lá — anunciou Ian. Mais adiante, a fortaleza de Dunross sobressaía no céu azul. Na outra vez em que a carregou para casa, Ian não passava de um garoto 23


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desengonçado, mas para Selina parecia um cavaleiro em armadura reluzente, e ela, sua dama. Bobagens românticas e infantis. Ele virou de leve a cabeça, ainda olhando à frente. — Angus Mclver está vindo a pé nesta direção. Selina se encolheu. — Eu disse que voltaria em uma hora. — Ela se aprumou e espiou por cima do ombro de Ian. Angus, com ar severo e uma bengala de punho saliente, se encaminhava até eles. Selina acenou. Ian apertou os lábios. Parou a carroça quando ficou diante do escocês grandalhão. — Minha senhora. Laird. — Angus tocou o gorro que trazia na cabeça. — Obrigado por trazer a menina para casa. Selina soltou a respiração. Nada de gritos. Nada de palavras ríspidas. Uma simples cortesia austera, mas o povo das Terras Altas era conhecido por seus modos impecáveis. Alguns deles. Queixo trincado, Ian assentiu. — Eu a levo até lá. — Melhor não. Eu levo a menina e o cavalo para dentro. — Angus — ofegou ela. — Não tenho vontade nenhuma de entrar na fortaleza — disse Ian, ríspido. Ele estalou a língua e o cavalo seguiu em frente. — Não enquanto pertencer a outra pessoa. O chicote de suas palavras a pegou desprevenida. Selina estava enganada a respeito dele. Ian se ressentia dela agora tanto quanto antes. E havia uma coisa que ela estava adiando fazer. Estava esquecida disso até o momento. Precisava agir depressa caso não quisesse que Angus ouvisse. — Ainda não agradeci por ter chamado seu irmão Andrew de volta para casa depois que lhe escrevi. Ele ficou tenso, o rosto parecendo um rígido granito. — Caríssima, ela está feliz e casada agora. Tudo... tudo resultou no melhor. — Será? — Você agiu bem. — A expressão de granito tornava difícil prosseguir. — Eu só queria lhe agradecer. Os lábios dele se contorceram numa linha amarga. — E uma boa ação merece outra. Não contará ao seu pai sobre as mudanças no moinho. — A carroça parou ao lado do arco de pedra. O estômago dela se contorceu. Não era exatamente a reação que ela esperava ao seu agradecimento. Ian estava esperando por sua resposta. Ela aprumou os ombros. — Não. Não direi nada. Então ali estava Angus, ajudando-a a descer da traseira da carroça. O cachorro arreganhou os dentes e rosnou baixinho. Selina riu, embora o som fosse um pouco frágil, mesmo que verdadeiro, mas Angus pareceu não notar. 24


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— Terá que passar pelo meu protetor, senhor Mclver. Angus deu uma olhada em Ian. Que esquisito! Ela tinha se referido ao cachorro. — Gilly — resmungou Ian. — Deite-se. O cachorro abaixou as orelhas e bateu o rabo, erguendo uma lufada de poeira. Angus a colocou no chão. — Consegue andar, menina? — Ele lhe estendeu a bengala. Um pedaço sólido e retorcido de espinheiro. Ela lhe deu um sorriso agradecido. — Isso, com certeza, vai ajudar. O velho escocês soltou Topaz, segurou-o pelas rédeas. Juntos, eles se encaminharam para o portão. Ao som da carroça se afastando, Selina olhou para trás e encontrou o olhar sombrio de Ian. Ele assentiu, um leve movimento de cabeça, como se dissesse: Acredito que não vai me trair. E ela não trairia. Jamais traiu.

O coração dela estava batendo como se tivesse corrido um quilômetro, quando na verdade só havia dado uns poucos passos desde o presbitério. Era a empolgação que fazia seu coração bater depressa, não o medo de ver Ian outra vez. Ou a perspectiva de ver o prazer que de sentiria com a notícia que ela levava. De boca seca, bateu na porta da casa dele. Uma das poucas que não pertenciam ao seu pai. Muitíssimo tempo atrás, o avô de Ian tinha feito um bom casamento, dando à família a casa, algumas terras e o moinho, segundo dissera seu pai. E eles eram uma pedra no sapato de cada Albright desde então. Se eles ao menos trabalhassem juntos... Talvez conseguissem agora, se o orgulho de Ian lhe permitisse aceitar sua oferta. Quase temendo que pudesse se virar e fugir, Selina bateu de novo. Segurando a respiração, ouviu o som de passos do outro lado. A porta foi aberta e Ian a encarou, boquiaberto. Ele estava com uma camisa sem mangas e colete. A garganta estava nua, já que não colocara um plastrão. Parecia tremendamente dissoluto e indecente. Ela estremeceu por dentro. Claro, devia ter avisado que pretendia visitá-lo. Ian esfregou o queixo com um polegar manchado de tinta enquanto tentava claramente se recuperar da surpresa. — Lady Selina? — Ele olhou por cima do ombro, depois saiu para se juntar a ela no primeiro degrau, puxando a porta até quase fechá-la, como se não quisesse que quem estivesse lá dentro soubesse que ela estava ali. Um calor lhe tomou as bochechas. Um sorriso radiante se formou nos lábios dela. Era sempre assim quando ficava nervosa. Ela acenou a cabeça regiamente. — Boa tarde, senhor Gilvry. O ar cauteloso permaneceu no rosto dele. — O que está fazendo aqui? — Tenho uma coisa para lhe mostrar. 25


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— Que tipo de coisa? Sempre desconfiado. Ela puxou uma chave de sua bolsinha. — Isso. — Quem é, Ian? — A voz de uma mulher chamou de dentro da casa. — Ninguém, mãe — gritou ele de volta. — Espere um instante — disse a Selina. Ele entrou apressado e fechou a porta. Ele realmente não queria que quem estivesse lá dentro soubesse quem estava à porta. Provavelmente, a mãe dele. O clérigo havia dito para ela e Chrissie que a senhora Gilvry estava doente há algum tempo. Selina desceu a pequena trilha do jardim até a alameda. Não queria que sua presença causasse qualquer embaraço. Tampouco queria ser pega no degrau da frente por um dos irmãos dele. Alguns instantes se passaram até ele reaparecer, devidamente vestido com seu paletó e um cachecol amarrado no pescoço. — Lamento deixá-la esperando — disse ele educadamente. — Tudo bem. — De que se trata? A maneira como ele disse “trata” fez com seus dedos dos pés se encolhessem dentro das botinas delicadas. — É uma surpresa. — Uma surpresa agradável, espero. Selina lhe deu uma olhada por debaixo da aba de seu chapéu de palha trançada. — Acho que até você vai achar que sim. Caminharam em silêncio por alguns minutos, na direção do presbitério, depois Selina entrou numa alameda estreita com paredes de pedra de cada lado que levava até os fundos da igreja. A empolgação borbulhou no peito dela outra vez. Ian ficaria contente. Não poderia rejeitar o presente dela. Bem, dela e de Chrissie. Eles ficaram tramando por dois dias, falando e explicando, até seu pai erguer as mãos no ar e dizer que elas podiam fazer o que quisessem, já que o fariam, com ou sem a permissão dele. Chrissie ficou muito satisfeita em lhe deixar a tarefa de contar ao laird o plano delas. Ela parou numa falha no muro. A trilha até o antigo prédio à frente deles estava tomada por mato. — O celeiro do dízimo? Essa é a sua surpresa? — Sim. — Selina acelerou o passo e, em vez de entrar pela porta dupla do celeiro, ela se encaminhou para uma porta menor no canto oposto, tendo o cuidado de evitar os cardos e as urtigas pinicantes, algumas tendo crescido tão alto quanto seus ombros. Ela destrancou a porta e a arreganhou, revelando um cômodo vazio empoeirado com uma escrivaninha e um conjunto de estantes de madeira divididas em compartimentos encostado a uma parede. — Não tem sido usado há anos — disse ela. 26


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— O dízimo de nada é nada — retrucou Ian. — O vigário retira seus tributos diretamente do ofertório. O que você queria que eu visse? — Este não seria o lugar mais perfeito para manter uma escola para as crianças daqui? Os olhos dele se arregalaram. — Está me dizendo que o vigário aceitou que usássemos este prédio como escola? — O celeiro está nas terras do meu pai. — Selina mordeu o lábio. Não devia ter mencionado quem era o dono das terras. — Ele aceitou que o celeiro fosse usado para uma escola. Ian entrou e deu um giro, olhando para o teto e examinando as paredes, semelhante ao que ela havia feito no dia anterior. Virou-se para encará-la. Não parecia particularmente contente, mas também não parecia aborrecido. — Acha que não vai funcionar? — perguntou ela, lutando contra o desapontamento com um sorriso. — É um bom espaço. Poderíamos construir mesas de cavalete, encontrar algumas banquetas. — Lady Albright reservou fundos para uma professora. Poderíamos colocar um anúncio em Edimburgo. O que você acha? Vai apoiar a ideia? — perguntou ela. — Os membros do clã não mandarão seus filhos se você for contra. Ele a encarou. — Por que isso a preocupa agora? Não precisamos da sua caridade. As suspeitas dele eram como uma faca enfiada entre suas costelas. — Prefere que as crianças corram soltas, sem nenhuma chance de educação? Ele se aproximou um passo, aproximou-se demais, olhando para ela, os olhos faiscando vividamente. Raiva, pensou Selina. Depois não teve tanta certeza. O azul de seu olhar era muito intenso, o calor do corpo dele, a poucos centímetros do dela, era fortíssimo, chocava-se com a frieza de sua pele. O coração dela golpeou as costelas, o som alto aos seus ouvidos. A respiração ficou difícil, como se o único ar do cômodo pertencesse a ele. Agarrou-se à estranha sensação de que seria beijada, puxada para mais perto; Selina podia jurar que seu corpo se inclinava para o dele com um anseio selvagem. Ian se afastou. Ela podia ter jurado que ofegou com o choque do movimento, mas seus ouvidos ainda não escutavam som nenhum, Era tudo imaginação dela, a conexão,a atração física. — Isso não vai fazer com que tenham melhor opinião sobre seu pai — retrucou ele, a voz mais ríspida que de costume, a respiração menos regular do que antes. Ela deu de ombros, fingindo indiferença às palavras obviamente repudiantes. — Não esperava que fizesse. — Niall será o professor deles. Duas manhãs por semana. Então isso significava que ele apoiava a ideia? — Ele pode falar com o vigário sobre o pagamento. — Ele não precisa de pagamento. 27


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Aparentemente, o orgulho dele não permitiria que o dinheiro dos Albright fosse gasto, mas ele aceitaria com relutância o empréstimo do local. — Tem certeza de que Niall estaria disposto a trabalhar sem pagamento? — As crianças não se aproximariam de um estranho. E eles precisam de alguém que fale gaélico. — As crianças obedeceriam a você. Um pequeno sorriso curvou os lábios dele. — Sim. — Ian passou por ela e saiu. Parou e olhou para trás. — Agradeça ao seu pai por ceder o uso do celeiro. Mandarei Will Gair fazer algumas mesas e cavaletes. A ele seu pai pode pagar. Não era surpresa que estivesse tão satisfeito consigo mesmo. Tinha encontrado uma maneira de fazer seu pai consertar o que ele via como um erro. — De nada, senhor Gilvry. As faces dele ficaram um tanto vermelhas. — Obrigado, lady Selina. — Ele se foi andando. Um homem orgulhoso, mas mesmo assim ela conseguia manejá-lo muito bem. E daí que ele se encarregasse do professor e de cobrar seu pai pela mobília? As crianças ganhariam instrução. Isso era tudo o que importava. Uma sensação de satisfação a preenchia. Uma sensação de trabalho bem-feito, apesar da reação dele. Talvez as pessoas de Dunross reconhecessem a generosidade de seu pai, mesmo que o laird não. E por pensar que ele a beijaria, ora... tinha sido apenas imaginação. Era mais provável que ele quisesse mandá-la para o inferno, mas havia colocado o bem-estar de sua gente acima de suas próprias preferências.

DOIS DIAS depois, uma fina garoa pairava pelo cenário montanhoso feito névoa. Era quase como se as nuvens, tendo passado pelas colinas revestidas de urze, quisessem se demorar mais tempo. Não havia como pensar em colocar os pés lá fora, nem mesmo numa carruagem,então Selina se esticou no sofá da sala de estar com um livro para passar o tempo até a hora do jantar. A porta da sala abriu e Chrissie entrou apressada. — Nunca vai adivinhar quem está aqui. Selina baixou o livro. — Quem? — Tenente Dunstan. O coração deu um mergulho desagradável. Não esperava por ele assim tão cedo. Mas quanto antes melhor, não? — Ele veio me ver? — Ele está com seu pai no escritório. — Chrissie juntou as mãos. — Garanto que está aqui para fazer o pedido. 28


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Uma boa notícia. Então por que sentia um pouco de pânico? Era o que ela queria. Tinha sido tudo ideia dela. Um novo começo depois do acidente. — Papai mandou me chamar? Chrissie enrugou a testa. — Não. Mas garanto que ele vai querer vê-la quando concluírem seus assuntos. Chrissie estava tão ansiosa com o casamento quanto Selina. Não havia dito nada, mas ela e Selina às vezes discordavam nas questões domésticas. Até seu pai enfim anunciar que isso já não era mais preocupação dela. Tinha sido uma dolorosa verdade. Selina pôs os pés no chão e deixou o livro de lado. Ajeitou o cabelo e alisou as saias, de musselina verde-maçã. — Devo me trocar? O que você acha? — Você está linda — disse Chrissie, com um sorriso. — Sempre está. — Obrigada. — Antes do acidente, ela não ligava para a aparência. Hoje em dia, no entanto, sentia-se insegura. Respirou fundo e tentou manter a maior firmeza possível nos passos. A antecâmara para o escritório estava vazia. O senhor Brunelle, secretário do seu pai, devia estar com ele lá dentro, fazendo anotações, registrando acordos. Devia bater e entrar, ou esperar que eles saíssem? Enquanto se decidia, a porta do escritório abriu. Ela colocou um sorriso no rosto. — Lady Selina! — O tenente parecia surpreso. Ela olhou para o pai. Ele franziu o cenho. — Queria alguma coisa, filha? Droga! Parecia que ela não era esperada, ou desejada, o que significava que não estavam discutindo o noivado. Ela foi varrida por uma sensação de alívio, mesmo percebendo que eles estavam esperando por algum tipo de explicação. O calor tomou suas faces enquanto a mente trabalhava. — Soube que o tenente Dunstan estava aqui e vim lhe dar as boas-vindas. — Esperava não soar muito medíocre. — Vim convidá-lo para tomar chá comigo e lady Albright na sala de estar. O rosto de Dunstan se iluminou. — Muita gentileza sua, lady Selina, devo dizer. Creio que não posso me aproveitar desta ocasião. Tenho assuntos urgentes nas vizinhanças e vim discuti-los com seu pai, o magistrado local. — Problemas? — perguntou ela. — Selina — disse o pai, num tom de aviso. — Contrabandistas — disse Dunstan, exatamente no mesmo momento. — Ah, minha nossa, temos mesmo vilões desse tipo por aqui? — disse ela, com a mão na garganta e expressão de espanto. Deu-lhe uma olhada que dizia que ele era um herói. 29


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— Não se preocupe, lady Selina, meu regimento não os deixará escapar, posso lhe garantir. Você não tem nada a temer. — O tom paternalista a fez ranger os dentes. Mas Dunstan só estava tentando acalmar os nervos femininos que ela colocara em exibição; não havia nada nos modos dele que devesse lhe causar ressentimento. Selina bateu os cílios. — Então fico muito contente por você estar no comando. Dunstan se curvou, tomou-lhe a mão e a beijou. — Até nosso próximo encontro. O toque dele a deixou fria, calma, desinteressada. Nenhum alvoroço selvagem invadindo seu corpo — exatamente como ela preferia. — O tenente Dupstan se comprometeu a jantar conosco na semana que vem, Selina — disse seu pai. — Terão então muito tempo para conversar. Na semana que vem. Seu futuro seria decidido na semana que vem. A demora parecia o adiamento do momento de ser amarrada à forca, quando deveria estar impaciente para que a ocasião chegasse logo. — Estarei esperando ansiosa — disse ela, dando-lhe o mais radiante dos sorrisos e observando-o corar com uma sensação de agouro. Será que tinha cometido um erro com esse homem? Será que ele era mais fraco do que ela havia imaginado? Queria que ele fosse maleável, é verdade, mas não alguém sem atitude. Era tarde demais para pensar duas vezes. Tarde demais para mudar de ideia. Havia feito sua escolha e devia tolerá-la, ou ser duramente criticada. Dunstan se voltou para o pai dela. — Esse será o fim deles, eu prometo. Desejo-lhe uma boa-tarde, lorde Albright. Com uma rápida reverência, ele saiu da sala, suas esporas retinindo a cada passo dado nos degraus de pedra que levavam ao saguão lá embaixo. — O fim de quem? — perguntou Selina. O pai ignorou a pergunta dela com um aceno. — Você parecia extremamente ansiosa. Fez bem em fisgar um homem de uma família tão importante. Não queremos afugentá-lo. — Afugentá-lo? Eu duvido muito — retrucou ela, escondendo a mágoa. — Dois pretendentes abandonados é o suficiente para que qualquer homem pense duas vezes. Parecia que a sociedade tinha memória longa. — Serei mais circunspecta na próxima vez em que ele aparecer, papai — disse ela, afundando-se numa mesura. — Ótimo. — Ele esfregou as mãos. — Se tudo der certo esta noite, acredito que terei um comprador para Dunross também. Selina ofegou. — Vai vender Dunross? — Dunstan não precisa de uma fortaleza nos ermos da Escócia. Você não quer viver aqui. Com o lucro, ele pode comprar uma casa de campo para os pais dele em Sussex e uma casa na cidade, exatamente como você queria. 30


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Por alguma razão, ela nunca imaginou que Dunross seria vendida. Era o seu dote. Pensou que seria deixada para um dos seus filhos. Selina franziu o cenho. — O que o êxito na captura dos contrabandistas tem a ver com a venda da fortaleza de Dunross? — Ian Gilvry não passa de uma pedra no meu sapato e um impedimento para qualquer comprador interessado. Com ele fora, devemos conseguir um bom preço. O sangue dela gelou. Tudo o que conseguiu fazer foi ficar olhando. — Algum problema? — perguntou o pai dela. — Eu... nada. Eu vou procurar Chrissie para avisar que não teremos a companhia do tenente no chá. — Não se preocupe. Eu farei companhia a vocês. Droga! Agora ela tinha que mandar a governanta levar a bandeja à sala de estar, quando o que queria era ficar sozinha para pensar.

Capítulo Quatro

Selina socou o travesseiro, certa de que alguém havia colocado pedras em vez de penas dentro dele. Ela se deitou de costas. Se os planos de Dunstan rendessem frutos, Ian se veria atrás das grades, ou pior. Que tolo! Como podia arriscar a vida se tantas pessoas dependiam dele? As cabanas na aldeia estavam em péssimo estado — obviamente muito pior do que há sete anos, quando partiu dali. As crianças que brincavam na rua não estavam apenas esfarrapadas e sujas, mas terrivelmente magras. O povo estava ficando faminto, aos poucos. Ian deveria estar ajudando as pessoas a venderem suas colheitas, não procurando riqueza com atividades criminosas. Batatas e cevada eram as únicas plantações adequadas ao solo pobre das Terras Altas. E eles usavam a cevada para fazer uísque em vez de pão. Era uma das razões pela quais seu pai os desprezava tanto — a preferência que tinham pelas bebidas fortes em vez da comida. O povo das Terras Altas valorizava muito o uísque, atribuindo propriedades medicinais ao líquido maltado. Davam-no até aos bebês. E não eram apenas os arrendatários iletrados que se agarravam às velhas ideias. Os nobres também. Uma escola, a educação, os levaria ao século XIX, mas ela não funcionaria se Ian terminasse deportado ou coisa pior. Será que ele não percebia isto: que, ao arriscar a própria vida por alguns barris de conhaque, ele estava arriscando o futuro de todos? 31


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Ou será que o contrabando era para colocar comida na barriga de todos? Seu pai não dava a mínima para o povo naquela terra. Seu sangue gelou. Selina não queria acreditar, mas seu pai era completamente implacável quando o assunto era dinheiro e poder. Era o que o tornava tão poderoso. Ele ficaria satisfeito de ver os Gilvry fora do caminho. A lembrança dos braços fortes de Ian ao redor de seus ombros, debaixo de suas coxas; assombrava-a como se ainda fosse uma menina bobinha. Só que pior, pois outras sensações a atormentavam também, pequenos pulsos de desejo que não conseguia controlar. E a maneira como ele olhou para ela no celeiro do dízimo só tornou esses pulsos ainda piores. Acalorada e aborrecida, Selina saiu da cama e foi até a janela com pinázios. Céu limpo. As nuvens de chuva tinham ido embora. As estrelas piscavam provocadoramente. A noite perfeita para fazer contrabando. A noite perfeita para uma armadilha. Ela olhou na direção da aldeia. Era imaginação, ou ela conseguia enxergar homens guiando fileiras de pôneis pelo urzal entre a fortaleza e a aldeia? Imaginação. Estava escuro demais para distinguir qualquer coisa que não fosse a forma escurecida das colinas distantes contra o céu. Será que Ian estava lá fora? Prestes a ser preso na odiosa rede dos homens do fisco? Devia ter ido avisá-lo naquela tarde, em vez de dizer a si mesma que o assunto não era da sua conta. Ela lhe devia mais do que um agradecimento por ter ajudado Alice. E, mesmo que o povo de Dunross a odiasse, ela possuía esse estranho senso de responsabilidade. A fortaleza de Dunross podia ser o seu dote, mas Ian Gilvry era o laird dali. Selina nunca conseguiria conviver consigo mesma se ao menos não tentasse avisálo. Um relógio deu 11 badaladas. O que parecia ter durado horas foi apenas uma única volta do ponteiro. Talvez não fosse tarde demais para avisá-los. Não era como se todos ignorassem o contrabando. Bom Deus, seu próprio pai tinha uma adega cheia de vinho contrabandeado em Londres. Desde que os responsáveis não ferissem ninguém no processo, o contrabando, mesmo sendo um crime aos olhos da lei, era visto quase como um jogo. Um jogo que Ian devia evitar, uma vez que seu pai estava residindo na fortaleza. Com as mãos trêmulas diante da necessidade de se apressar, ela escolheu as roupas no armário. O espartilho. Como amarraria o espartilho sem a criada? Pegou uma saia vistosa que tinha usado num baile de máscaras em Lisboa. Ela tinha se fantasiado de dançarina portuguesa. Em algum lugar estaria a blusa de camponesa e o corpete, que era amarrado na frente. Mas, se quisesse montar Topaz, precisaria de calças, pois teria que cavalgar escarranchada. Encontrou a calça que usava nas aventuras da infância, quando seu pai a deixava com os criados e não se importava com o que Selina fazia na maior parte do tempo. Esta noite, ela a usaria debaixo das anáguas. Qualquer um que a visse, tais como os homens do fisco, por exemplo, presumiriam que era uma das aldeãs. Desde que não se deparasse com Dunstan. 32


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O estômago dela revirou da maneira mais desagradável. Se ela fosse pega, seria o fim de todas as suas esperanças de um bom casamento. Ela só precisava garantir que não seria vista. Só precisava ir à aldeia e voltar. Ian estaria aguardando pelos contrabandistas na praia. Com sorte, em vão. Vestiu-se rápido, atirou uma velha capa de lã sobre os ombros e desceu as escadas com pés descalços, carregando os sapatos. Ela os calçou junto da porta lateral e foi ao estábulo. Droga! Uma luz brilhava na janela acima das baias, onde Angus vivia. Ele a ouviria e impediria se tentasse pegar Topaz. Então teria que ir andando. O portão, claro, estava fechado e trancado. Qualquer um pensaria que estavam em guerra, dado o modo como trancavam a fortaleza à noite. Existia outra maneira: a velha porta de saída — uma rota de fuga caso a fortaleza fosse sitiada. Há muito tempo tinha sido sua rota para a liberdade e alguns encontros secretos com Ian. Felizmente, ninguém a bloqueara nesse ínterim. Selina tomou as escadas para descer à velha caverna. Nos tempos medievais, a cozinha ficava localizada ali; hoje em dia, o espaço era usado como depósito. O lance de degraus seguinte mal oferecia espaço para seus pés e se retorcia em círculos apertados. Selina desejava ter levado um lampião. O ar úmido e bolorento enchia seus pulmões e envenenava a língua enquanto ela tateava pela escuridão até alcançar a porta lá embaixo. Da última vez em que esteve ali, Selina havia escondido a chave no dintel. Ela procurou no escuro e estremeceu com o toque grudento das teias de aranha. Seus dedos encontraram um objeto de metal. Ela sorriu. Parecia que sua antiga saída permanecia desconhecida. A chave virou fácil na fechadura. Selina a enfiou no bolso e entrou no túnel, um lugar úmido, cheirando à terra, cravado dentro do declive da colina. Ele dava para uma pilha de rochas a certa distância da fortaleza. Uma vez lá fora, o ar ficou fresco e até morno, se comparado ao frio úmido embaixo da terra. Enquanto descia depressa a colina ate a aldeia, as estrelas lhe forneceram luz suficiente para evitar os sulcos e, em poucos minutos, ela estava parada diante da casa de Ian. A luz nas duas janelas do térreo lhe deram a esperança de ter chegado a tempo. Selina bateu à porta. Ouviu O som de alguém tossindo lá dentro, mas ninguém veio abrir. Ela bateu outra vez. — Entre — soou uma voz de mulher, e a tosse recomeçou; A senhora Gilvry. Será que isso significava que Ian já tinha partido? O que devia dizer? Acusar o filho daquela mulher de ser um criminoso? Aquilo sem dúvida não seria bem recebido. Talvez devesse apenas ir embora. — Entre — chamou novamente a voz, mais forte dessa vez. Selina não podia deixar a mulher imaginando quem teria batido a porta e temendo pela própria segurança. Empurrou a aldrava e a porta abriu. 33


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— Aqui dentro — disse a voz, vindo de uma porta aberta à direita. Selina entrou no cômodo, esperando que fosse uma sala de visita, mas encontrou uma grande cama com quatro colunas e uma mulher de rosto pálido e cabelo grisalho enfiado debaixo de uma touca simples, deitada sobre uma pilha de travesseiros. — Senhora Gilvry? — Sim. — Os dedos pálidos apertaram os lençóis sob o queixo. Um par de olhos da cor da grama de primavera a examinaram com gravidade. Andrew e Logan haviam herdado aqueles olhos. Ian devia ter puxado ao pai. — E quem é que vem chamar tão tarde da noite? — Sua voz, era ruidosa, ofegante. — Selina Albright. Estou procurando por seu filho, Ian. Ele está em casa? A mulher arregalou os olhos. — Ian, não é? E por que a filha do Albright estaria procurando por ele a esta hora da noite? Será que sua família já não fez o bastante com nossa gente? Os pecados dos pais ainda estavam sendo revertidos sobre os filhos. — Preciso lhe dar um recado. Os olhos verdes se aguçaram. — Ele está com problemas? Selina assentiu. — Os homens do fisco estão por aí esta noite. A mulher na cama retorceu suas mãos finas. — Eu pedi que ele não fosse. — Ian? — Não, Logan. O meu caçula. Ele deveria ficar comigo, mas não conseguiu resistir. Ele seguiu os irmãos não faz nem meia hora. Ele já não me escuta mais. Será que perderei todos os meus filhos? O coração de Selina se condoeu da tortura que ouviu na voz da mulher. — Sabe para onde eles foram? Eu... eu poderia avisá-los. A mulher a fitou com suspeita no olhar. — Por que você faria isso? Selina encolheu os ombros. — Ian é um amigo. — Era verdade, mesmo que não refletisse exatamente a nuance do relacionamento deles. Uma amizade inquietante. A mulher virou a cabeça sobre o travesseiro, fitando o fogo, a boca era uma fina linha reta. Em seguida, voltou-se para Selina. — É ir contra a natureza confiar num Albright. Se você me enganar, eu a amaldiçoarei pelo resto dos meus dias, por poucos que sejam. Selina se retraiu diante da amargura nos olhos da mulher. — Diga onde eles estão. — Balnaen Cove. O nome abriu uma cicatriz que ela acreditava estar curada há muito tempo, mas 34


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que agora estava sendo descarnada outra vez. Ian a levou lá certa vez, na última vez em que se viram. Compartilharam um beijo, um momento cheio de magia e sensações estonteantes, e passearam pela areia de mãos dadas, até esbarrarem com os irmãos dele. Então Ian só lhe dedicou desprezo. Selina se obrigou a não pensar naquele dia, mas na tarefa que tinha diante de si. A angra ficava a uns cinco quilômetros da aldeia, ela não chegaria lá antes da meia-noite. — Você tem um cavalo? — Tem um no estábulo. Pegue-o se precisar — grasnou a senhora Gilvry. — Mas não é um cavalo amigável e não há quem a ajude. Claro que não era. Nada nos Gilvry era amigável ou prestativo. — Darei um jeito. — Vá pela cozinha e saia pela porta dos fundos. As instruções a levaram direto ao estábulo, onde um lampião bruxuleava acima da porta. Ela o levou para dentro e encontrou três baias vazias, uma delas com um grande garanhão negro. Ele se remexeu inquieto quando Selina entrou. Uma pequena sombra saiu da escuridão, agitando o rabo felpudo. — Você — disse ela, olhando para o castigo que era aquele cachorro. — Eu devia ter adivinhado que você viria causar problemas. Ela pendurou o lampião numa viga, encontrou o arreio e a embocadura e os levou para a baia. O cavalo mostrou o branco dos olhos. Não era um bom sinal. Os dentes arreganhados também não. — Calma — murmurou baixinho. — Não estou aqui para machucá-lo. — Ela afagou a face dele e deslizou a mão pela cernelha. O danado do cachorro veio se intrometer. Criatura incômoda! Sentou-se aos pés de Selina e se recostou em sua perna. O garanhão viu o cachorro, depois baixou a cabeça. Focinho com focinho, as criaturas se cumprimentaram. O garanhão se acalmou. Selina afagou a cabeça do cachorro. — Ora, isso é algum tipo de apresentação formal ao seu amigo? Era o que parecia, pois enquanto o cachorro ficava ali sentando sorrindo o grande cavalo negro permitiu que ela lhe colocasse os arreios. Mas será que ele a aceitaria no lombo? Ou será que ela só estava ali perdendo tempo? Ela bem que já poderia ter andando um bom pedaço da estrada. Não havia tempo para uma sela. Nem poderia fazer isso sozinha. Um cobertor que encontrou sobre a grade teria que servir. Montar num cavalo em pelo? Ela nem sabia se era capaz. Mas precisava tentar. Levou o garanhão ao bloco de montaria no quintal e pendurou-se no lombo do cavalo, uma mão segurando as rédeas, a outra agarrando a longa crina negra antes que o animal fizesse objeção. Ele se remexeu, mas não arremeteu. O cachorro latiu em encorajamento e disparou pelo pátio até a alameda. O cavalo o seguiu. Selina manteve o garanhão num trote. Não ousava ir mais rápido pela aldeia porque poderia atrair atenção indesejada. O cachorro corria ao seu lado. O sacolejo fez os dentes dela baterem e a espinha chacoalhar. Quando passaram 35


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pela última cabana, ela incitou o cavalo num leve galope. As passadas longas suavizaram e ela já não se sentia tanto como um saco de batatas. Talvez conseguisse mesmo fazer os cinco quilômetros sem cair. Na encruzilhada, Selina hesitou, A bifurcação da direita levava à trilha ao longo dos penhascos e uma descida suave até a angra. Seguindo em frente, ela teria que atravessar a campina. A descida até a praia era difícil e íngreme. Era a mais rápida. De focinho no chão, o cachorro disparou pela trilha da frente. O cavalo o seguiu. Parecia que a decisão tinha sido tomada. Ir pelo caminho mais curto e mais rápido era melhor. Ela deixou que o garanhão tomasse o curso e se concentrou em manter o equilíbrio e vigiar qualquer perigo. Depois de dez minutos ou mais, o cachorro se enveredou na direção do mar. Se havia uma trilha, Selina não conseguia enxergar, só conseguia ouvir o rugido e o estrondo constante da arrebentação. O sal cobria seus lábios, que ela lambeu, inalando o odor penetrante das algas. “Algina”, era como as pessoas dali chamavam aquele cheiro. Se lembrava bem, o resto do caminho era rochoso. Perigoso para um cavalo. Ela fez o animal parar e desmontou. Seu traseiro estava dolorido, mas sua perna machucada sustentou seu peso com facilidade. Cavalgar escarranchada, mesmo sem sela, aparentemente era mais fácil para a sua perna do que numa sela para damas. — Onde eles estão, garoto? — perguntou ao cachorro, olhando ao redor com receio. Uma coisa que não queria era esbarrar com os homens do fisco ou, pior ainda, com o exército de Dunstan. O cachorro começou a trotar. Ela o seguiu, puxando o cavalo. Será que ainda estava em tempo? O cachorro a rodeou, como que para ter certeza de que estava tudo bem. Ou será que ele, segundo a natureza de sua raça, estava tentando pastoreá-la na direção que ele queria que ela fosse? Tropeçando no chão irregular, Selina acompanhou Gilly, esperando que ele a levasse ao seu mestre, e não até uma toca de coelho. Uma fenda escura nas pedras, onde um pequeno riacho descia numa valeta até o mar, dizia que ela se lembrava corretamente. Ela havia descido acompanhando o riacho até a praia numa das suas explorações proibidas. Um som atrás dela. O estalar de gravetos. Selina girou, a mão no coração. Um vulto grande assomou para fora dos arbustos rasteiros à esquerda, um contorno contra o mar vazio e o céu estrelado. Ele veio na direção dela. — Pare — uma voz masculina sussurrou alto. Por que o cachorro não tinha avisado? Amigo ou inimigo? Será que ela tinha alguma chance? Selina se virou para fugir. O homem se atirou nas pernas dela e a jogou ao chão. Dor. O ombro dela se torceu. O rosto foi arranhado pela urze. Selina gritou. O homem praguejou. Uma mão cobriu sua boca. Com o coração batendo selvagemente, Selina o chutou. 36


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Errou. Chutou outra vez. Um braço musculoso a ergueu e colocou de pé. — Fique calada — disse ele, num murmúrio baixo. Escocês, pensou ela. — Silêncio, homem — sussurrou alguém, não muito longe. — O que, diabos, está fazendo? — Ah! — exclamou o captor. — Parece que encontrei uma espiã.

Capítulo Cinco

O gosto de sal era forte no fundo da garganta de Ian. Ele fitou o escuro, percebendo vislumbres ocasionais das ondas cobertas de espuma. O arrebentar e sibilar constante das ondas quebrando na areia e o rugido alto da água atingindo as rochas enchiam seus ouvidos. Mas a mente dele continuava se dispersando. Inferno! Ele quase havia beijado Selina lá no celeiro do dízimo. A vontade de provar aqueles lábios carnudos, sentir o corpo dela junto ao seu e explorar as curvas suaves com as mãos tinha corrido quente por seu sangue. E, se não estivesse enganado quanto ao modo como aqueles lábios se entreabriram e o olhar dela abrandou, Selina teria permitido. A atração entre eles não havia diminuído ao longo do tempo. De fato, se não estivesse muitíssimo enganado, havia crescido exponencialmente. Droga, ele havia traído a família por causa dela uma vez. Não faria a mesma coisa outra vez. Ficar tão distraído num momento assim era insanidade. Ian obrigou a mente a se concentrar no trabalho em mãos. Essa última receptação de conhaque lhe daria o dinheiro que precisava para comprar todo o cobre necessário para a destilaria. Estava tudo preparado para o barco. Nada podia dar errado. Ele olhou para o homem parado na beirinha do promontório com um lampião de prontidão. — Algum sinal dele? Gordy, o sinaleiro, sacudiu a cabeça. — Nada. Ian fez uma, careta. O tempo estava correndo. Ele estreitou os olhos para olhar além das tochas e da faixa de praia para a valeta onde seus homens e pôneis aguardavam o sinal, Eles só viriam para a praia quando o barco estivesse quase na costa. Bem versados nas respectivas tarefas, ele descarregariam o barco e transportariam as mercadorias pelos penhascos em menos de dez minutos. Ele examinou o topo dos penhascos. Nenhum sinal dos seus guardas. E nem deveria haver. Mas eles estavam lá, prontos para alertar sobre intrusos. Ian sorriu com 37


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melancolia. Como sempre, tinham logrado os almotacéis. Tudo estava indo de acordo com o plano. Exceto pelo maldito barco, que estava atrasado. Os pelos se arrepiaram em sua nuca. A sensação nada tinha a ver com a brisa firme que vinha rodopiando as ondas. Ele tentou se livrar da sensação de que nem tudo estava bem. Ao longo dos anos, ele havia aprendido a confiar nos seus instintos. Por que os ignoraria agora? Deu uma olhada no mar. Ainda nenhuma luz do barco. — Vou subir para dar uma olhada por aí. Gordy assentiu sem se virar, depois ficou rígido, apontando. — Lá! — sussurrou ele, remexendo a cobertura do lampião. — A luz afundou entre as ondas, mas... sim, lá está ele. — Ian também conseguiu enxergar o fraco brilho lá longe na água. Gordy refletiu a luz quatro vezes. Dois clarões voltaram. — São eles — disse Ian. — Guie-os para cá, rapaz. Qualquer problema, lance dois lampejos longos e dois curtos, para lá e para Cá, na direção dos penhascos também. — Conheço o meu serviço, laird. Ian lhe deu um tapinha no ombro. — Sabe mesmo, rapaz. Só estava lembrando a mim mesmo. Vou avisar aos homens que avistamos o barco. — Então subiu o penhasco para verificar seus guardas. Escalou pelas rochas que guardavam cada lado da pequena baía, permanecendo na sombra. Uma vez na valeta, longe da luz das estrelas e abrigado da brisa do mar, Ian sentiu o cheiro dos pôneis. Esterco e o cheiro de cavalo trabalhador. E homens trabalhadores. Um cheiro pungente e familiar. Cheiro que o envolveu por grande parte da vida. Assim como o perigo. Mas a alegria tinha sumido desde a partida de Andrew. Seu irmão amava esse tipo de aventura. Essa seria a última remessa. Tinham bastante dinheiro nos cofres para comprar o alambique novo. Uma destilaria que seria legalizada cm qualquer lugar na Bretanha, menos ali nas Terras Altas. — Tammy — chamou ele, numa voz baixa. O homem saiu de trás de uma rocha. — Ele está vindo. — Certo — respondeu Tammy, que acotovelou o homem ao seu lado. — Passe a notícia. — Eu volto antes de o barco atracar. — Ian passou pela fileira de cavalos e homens. Homens nos quais havia confiado sua vida mais de uma vez. Bons homens, que confiavam nele e que perderiam suas casas se não fizessem tudo certo. Um ou dois murmuraram cumprimentos quando ele passou. Ao fim da fila, Ian passou por um vulto delgado que segurava as rédeas de um burro. Ele franziu o cenho. Aquilo fazia um total de nove homens. Ele tinha pensado que eram oito. Seria essa a fonte da sensação incômoda que ele teve lá no promontório? O homem tinha um chapéu puxado sobre os olhos e estava tentando se esconder do outro lado de sua pequena fera. Outra coisa que não estava certa. Eles usavam pôneis porque eram mais dóceis. Ian se aproximou do animal e agarrou o homem pelo colarinho. Um rosto familiar lhe sorriu. 38


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— O quê, diabos? Droga, Logan, você devia estar cuidando da nossa mãe. O irmão o empurrou. — Isso é serviço de mulher — retrucou ele, emburrado. Ian fechou os olhos numa oração silenciosa pedindo paciência. — Você sabe o que mamãe fará se algo lhe acontecer. Tenha certeza de ficar longe de problemas. — Ela sabe onde eu estou. Não sou criança para ser deixado em casa. Você estava por aí aos 18 e eu tenho quase 20 anos. — Foi diferente. — Naqueles tempos, não havia a quem recorrer. O clã acreditava que ele e Andrew os ajudariam a sobreviver ao inverno. Mas, apesar da sua estatura delgada, Logan estava certo, ele era velho o bastante. E mais um par de mãos não faria mal nenhum. — Certo — disse ele. — Mas se os almotacéis chegarem, você tem que correr. Conto com você para que não seja capturado. Terá que alertar a aldeia. Logan sorriu, os dentes um rápido lampejo branco na escuridão. — Certo. Correrei como o vento. Pode contar comigo. Ian sabia que podia. E, se tentasse protegê-lo, Logan se rebelaria e tomaria seu próprio rumo, como Andrew havia feito. — Veja se consegue manter essa maldita fera quieta. Um cachorro choramingou. Pulou em cima de Logan, que o empurrou para baixo. — Mas o quê, em nome do demônio, Gilly está fazendo aqui? — perguntou Ian. — Eu não sei. Eu o tranquei com Beau. Deve ter escapado. — Quanta negligência! — disse Ian. — Mantenha esse maldito animal quieto. Logan fez cara feia e tentou agarrar o cachorro. Ele disparou para longe de seu alcance. O homem ao lado dele na fila deu uma risadinha. Ian conteve uma praga e deixou o irmão cuidando daquilo. Os arrepios em sua nuca não tinham desaparecido. Estavam piores, se é que isso era possível. Ele subiu o caminho íngreme pela parede da valeta em vez de seguir a trilha ao longo do riacho que tombava no mar. Quando ergueu a cabeça acima da borda, um fiapo de fumaça de cachimbo fez coceira em suas narinas. — Droga, homem. Apague isso. Pode ser visto há quilômetros daqui. Davey tinha músculos, mas nenhum cérebro. Bateu a cabeça do cachimbo no calcanhar e pisou nas cinzas. — Está tudo certo com o pessoal lá na valeta. O vento está danado de frio aqui em cima, laird. — Vai ficar quente como o inferno se você levar um tiro. — Ian varreu com o olhar a paisagem ao redor. — Ouviu alguma coisa? Davey deu uma risada convencida. — Ah, ouvi, com certeza. Primeiro pensei que fosse um coelho. Fui andando ao 39


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longo da trilha por um bom pedaço. — E? — Peguei uma moça se esgueirando até a gente. Ranald está com ela. O que antes era uma leve inquietação que arrepiava sua pele agora era um verdadeiro alerta em seu estômago. — Uma mulher? — Uma sassenach, pela voz. Aquilo não era nada bom. — Fique aqui e mantenha a vigia. — Sim, laird. Ian foi a passos largos até a margem do riacho, até chegar ao ponto em que ele desaparecia no subsolo. — Ranald? O troncudo estalajadeiro se ergueu da urze. — Aqui. — Davey disse que você capturou uma moça espionando. — Sim, laird, eu a deixei amarrada lá ao lado do cavalo. Nada bom mesmo! Mesmo assim, algo ficou mais leve dentro dele. Era uma sensação muito estranha. Deixando-a de lado, foi até o amontoado de pedras indicado por Ranald. Ele ergueu o lampião e olhou diretamente para um par de olhos castanhos muito zangados. — Lady Selina. Eu devia saber. — Ajoelhou-se ao lado dela e desfez a mordaça. — Seu homem é um idiota — sibilou ela. — Eu falei que tinha um recado para você. Eu mandei que o chamassem, mas eles não me ouviram. Ian puxou uma faca e serrou as cordas que envolviam seus punhos. — Que recado? — Ele começou a soltar os tornozelos, mantendo o olhar fixo no trabalho e sem deixar que ele se desviasse para a panturrilha torneada. Não muito, pelo menos. — Os homens do fisco sabem sobre hoje à noite. Armaram uma armadilha. Você precisa sair daqui agora mesmo. Então seus instintos não estavam enganados, droga! Se fossem embora sem as mercadorias, custaria mais um ano para que ele colocasse seu plano em execução. E lorde Carrick não ficaria nada contente. — Como sabe disso? — Ele cortou a última corda e a ajudou a ficar de pé. Nossa, ela era pequena. O topo da cabeça dela mal chegava ao seu ombro. Selina esfregou os punhos. — Não importa. Você tem que ir. Agora. — Onde estão nos esperando? — Por mais surpreendente que possa parecer, eles não me deram detalhes. O sarcasmo na voz dela fez Ian querer rir. 40


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— Como chegou aqui? — E então ele mesmo viu. Beau. E sem nenhuma sela visível. — Cavalgou sem sela? — Eu não podia selá-lo sozinha. Ian sacudiu a cabeça. Parecia que ainda havia algo da menina espirituosa por dentro da mulher sofisticada. Selina puxou a capa sobre o corpo. — Agora vou indo. — Não. — Por que não? — Porque eu disse “não”. — Os almotacéis não hesitariam em disparar os seus mosquetes nas sombras, ainda mais num cavalo em disparada. — Ranald — chamou baixinho. O estalajadeiro apareceu feito mágica. Era óbvio que estava parado bem pertinho, ouvindo. — Mantenha-a aqui. Alertarei os homens na praia e volto para levá-la para casa. E, Ranald, não fale disso com ninguém, entendeu? Ranald assentiu. Ian deu uma olhada no movimento obstinado do queixo de lady Selina. — Faça o que fizer, mantenha-a aqui. O que eles precisavam agora era de uma distração.

Selina olhou feio para Ranald. — Eu disse que ele gostaria de ouvir o meu recado. O homem resmungou alguma coisa baixinho, depois cobriu seu lampião. Selina piscou furiosamente para acostumar a visão ao escuro. Precisava partir. Poderia estar em casa, na cama, antes que qualquer um notasse sua saída, com a consciência limpa. O que Ian fazia era apenas problema dele. Mas, se ela fosse pega dando ajuda, seu pai ficaria mortificado. E furioso. Se Dunstan descobrisse que ela havia alertado os contrabandistas, depois de deixar escapar informação sobre a missão na presença dela, desistiria do noivado. Mais do que isso, um homem esperava lealdade de sua esposa. E isso significava que Selina teria que recomeçar a procurar um marido adequado. A menos que o escândalo a arruinasse completamente. E provavelmente arruinaria. Mas Selina sabia dos riscos quando se pôs a caminho. E faria tudo isso outra vez se necessário, pois estava obrigada a ajudá-lo da mesma forma como ele a ajudou quando pediu. Sem falar que ela não gostava de imaginá-lo sendo enviado para a prisão. Mas agora precisava ir para casa. Selina esfregou as mãos frias, olhou para o cavalo e depois para Ranald. — Deixe-me ir. Devolverei o cavalo pela manhã. — Você fica aqui — disse o homem troncudo. — Foi o que o laird mandou. — O laird é um idiota. 41


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— Dê um passo e eu a amarro outra vez. — O tom da voz dele deixou bem claro que era verdade. Selina bufou. Homens. Sempre queriam cantar de galo. Os minutos se estendiam. Selina observava Ranald, esperando que ele perdesse o interesse, que lhe desse uma chance de escapar. Os homens do fisco surgiriam a qualquer momento ou, pior ainda, Dunstan e sua milícia. Aquilo seria realmente o seu fim. O som de pés abotinados nas rochas fez com que ela girasse a cabeça. Homens. Subindo da costa às pressas, guiando dois pôneis com cascos abafados e cestos escalonados nos lombos. Cestos vazios. Eles conduziram os animais para a trilha ao longo do topo do penhasco em direção à aldeia. Mas o que é que eles estavam fazendo? Outro pônei surgiu da valeta. Ele estava carregado com tonéis e não foi na direção da aldeia, desaparecendo na escuridão. Maldito homem! Ian não tinha nem ligado para o seu aviso e estava agindo como se nada estivesse errado. Ela era uma tola por pensar que podia ajudar. Um grito veio do promontório, da direção que os dois primeiros pôneis tinham tomado. Um lampejo. Um estouro alto. Claramente um tiro. Em seguida vieram mais lampejos e estouros, que ficavam cada vez mais próximos. Estavam atirando nos homens que ele havia despachado pela beira do promontório. Alguém acabaria morto. Será que Ian estava louco? A comitiva dos pôneis carregados continuava, um atrás do outro, enquanto ela mordia os nós dos dedos para não dar voz aos seus temores. Os homens que guiavam os pôneis passaram depressa, as cabeças abaixadas e os rostos cobertos com cachecóis, E então não havia mais ninguém. Como fantasmas, eles haviam desaparecido. Onde estava Ian? Ela espiou no escuro, aproximando-se da trilha rochosa. Gritos vinham de um ponto bem distante dos penhascos. O som de homens lutando corpo a corpo. Ranald praguejou baixinho, claramente impaciente para ir embora. Será que Ian tinha conseguido, de alguma forma, passar sorrateiramente por ali para entrar na briga agora que os contrabandistas tinham partido com a pilhagem? Outro vulto surgiu da trilha vinda da praia, praguejando e xingando enquanto puxava a rédea de um animal que resistia. O bicho guinchou indignado. Seu manejador passou o braço por seu focinho para abafar o som. O burro bufou em protesto. Selina compreendia bem como ele se sentia. Então o danado do animal empinou de repente, como se estivesse apavorado. O homem que o segurava praguejou outra vez. Um lampejo branco junto às patas do animal disse a Selina tudo o que ela precisava saber. — Gilly — murmurou. O manejador deteve o burro e a encarou. — Lady Selina? — Logan Gilvry. Outro idiota. Onde está Ian? Ele sacudiu a cabeça. — Ele não demora a subir. Está ajudando o barco a se afastar da costa. Dando-nos a chance de sumir. — Então vá — disse ela. — Sim. Gilly, coloque-o para andar. 42


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O cachorro mordiscou o casco traseiro do burro. O animal deu um pulo à frente e disparou numa corrida desajeitada com Logan como guia e Gilly seguindo logo atrás. Os sons ao longo do penhasco cessaram. Os contrabandistas — um chamariz, supôs ela — deviam ter fugido. Sem dúvida, os homens do fisco e a milícia logo perceberiam que tinham sido enganados e se encaminhariam até ali. Ela precisava partir antes que fosse pega. Ranald também pulava de um pé para o outro, parecendo preocupado. — Vá — disse ela. — O laird mandou que eu a vigiasse. Aqui. — Os soldados podem chegar a qualquer momento. Vou a cavalo avisar laird Gilvry, enquanto você segue seus homens. Ajude-me a subir no cavalo e depois pode ir embora. Ranald coçou a cabeça. — Vai até ele? Selina assentiu. — Ta certo, minha senhora, mas estou acreditando que vai manter sua palavra. — Ele a ergueu no lombo do grande garanhão e guiou o cavalo até o topo da trilha. — Cuidado onde pisa. É muito íngreme. — Ele tocou o topete e saiu atrás dos outros. Ela incitou o garanhão a descer a encosta acidentada e rezava muito para que o animal não tropeçasse enquanto o deixava seguir o curso. Milagre dos milagres, o cavalo parecia saber o caminho pela trilha polvilhada de rochas. Ian já devia ter descido com ele por ali no passado. Era um pedacinho solitário de praia ao longo de uma costa rochosa, conhecida por poucos que não fossem os habitantes locais. Ou foi assim que Ian tinha descrito o lugar naquele dia longínquo. Um lugar onde poderiam ficar sozinhos. Selina percebia agora que ele tinha vergonha de ser visto com ela. Ao pé do declive, encontrou Ian caminhando pela praia na direção dela; atrás dele, um barco a remo seguia firmemente para o mar. Ele fez cara feia quando Selina parou ao seu lado. — O que, diabos, está fazendo aqui? Ranald vai... — Shhh! Os homens do fisco estão bem atrás de mim. Ian franziu o cenho. — Eles seguiram você? Droga! Que jogo você está fazendo? — Eles não me seguiram. Eles sabem exatamente onde estão indo e estarão aqui a qualquer momento. Enquanto eles descem por aqui, podemos subir pela trilha do outro lado. Ele apertou os lábios. — Sim. Segure-se firme, então. Selina agarrou a crina do garanhão. Ian deu alguns passos rápidos, em seguida pulou atrás dela. Impressionante! O som de homens com botas pesadas ecoava pelas paredes da valeta junto com 43


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xingamentos conforme eles deslizavam e escorregavam pela trilha traiçoeira. — Hora de sair daqui. — Ian se debruçou e eles partiram. A sensação das coxas firmes aninhando seu traseiro era positivamente indecente. Assim como o braço ao redor da sua cintura. Mas, presa naquele abraço forte, Selina se sentia perfeitamente segura, quando devia estar se sentindo apavorada. Um grito soou atrás deles. Os homens do fisco deviam ter ouvido a batida dos cascos do cavalo na areia. Isso também significava que não estavam muito atrás, mas um homem a pé não seria páreo para aquele cavalo, mesmo carregando duas pessoas. Selina conduziu o cavalo na direção da trilha ziguezagueante na outra ponta da angra. Uma subida mais fácil até o promontório. Estavam quase chegando lá, quando uma torrente de homens se derramou na praia por aquela direção. — Um movimento de pinça — gritou Ian. — É como eles queriam nos pegar. — Ele puxou a cabeça do cavalo. O animal virou num circulo enquanto Ian examinava os penhascos e os homens se aproximavam deles correndo dos dois lados ao mesmo tempo. — Parece que só nos resta uma opção — avisou ele. — Mantenha a cabeça abaixada. — Ele pôs o cavalo para correr para o mar. A boca dela secou. O coração ribombou. O que Ian estava pensando? Eles se afogariam. Do lombo do cavalo, a areia parecia muito longe. Longe demais para que pulassem. Naquela velocidade, não havia nada que Selina pudesse fazer senão se agarrar firme. O vento arrancou os grampos de seu cabelo, que voou selvagem em seus olhos. Ela se debruçou bastante sobre o pescoço do cavalo para que Ian pudesse ver para onde estavam indo. Aonde eles estavam indo? A espuma espirrava ao redor deles. Ian não diminuiu a velocidade do cavalo. A água atingiu o rosto dela feito agulhas geladas e ensopou suas pernas através do tecido grudento das saias até a cintura e, em seguida, pelo tecido de lã do calção curto. Selina ofegou. Um berro de ódio veio dos homens que corriam atrás deles. — Carregar! — O grito terrível veio de trás deles. Eles iriam atirar! O cavalo tentou dar meia-volta quando sentiu que suas patas perderam contato com chão firme. Ian deslizou do lombo dele para a água. — Venha, Beau — gritou. — Está tudo bem, rapaz. — As orelhas do cavalo apontaram para a frente, seu corpo fundo na água, a respiração rápida e dificultosa. Uma saraivada vinda da praia levantou esguichos de água por Ioda a volta. Selina fechou os olhos, esperando pela dor. Nada. — Aguente firme — gritou Ian. — Estamos quase fora do alcance. — Ele nadava vigorosamente, com o cavalo seguindo atrás. Deitada sobre o lombo do garanhão, suas saias um emaranhado entre as pernas, Selina segurava a crina do cavalo com desespero. Ondas atingiam seu rosto com um tapa carregado de sal, fazendo-a ofegar e piscar para limpar o ardor dos olhos. Era impossível que o cavalo conseguisse nadar muito longe. Outra saraivada. Selina olhou por cima do ombro e viu os esguichos d água alguns 44


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metros atrás e, se seus olhos não a enganavam, os homens já estavam com água na cintura dentro do mar. Certamente não tinham chance de atingi-los agora. Ela rezou para estar certa e se concentrou em segurar-se no animal ofegante. Ian desacelerou e veio nadar ao lado deles. — Venha, velho amigo, você consegue. — Ele direcionou o cavalo a nadar paralelo à costa, rumando para o sul. Selina não sabia como Ian continuava nadando em água tão fria. Suas mãos e pernas estavam dormentes, os dentes batiam. Tentou lembrar se a praia seguinte ficava muito longe e imaginou se conseguiriam chegar lá antes que se afogassem. Ou perecessem de frio. Talvez fosse melhor se afogar do que ser pega com um contrabandista conhecido. Seu pai nunca a perdoaria, e o plácido Dunstan jamais se casaria com ela. Quando finalmente havia encontrado o homem perfeito e reunido coragem para se lançar ao matrimônio, ela terminava no mar com água até o pescoço. Só precisava chegar em casa sem que ninguém descobrisse.

Capítulo Seis

O frio se infiltrava nos ossos de Ian. Ele queria virar de costas e flutuar, enquanto o pouco calor gerado com seus movimentos era tragado pela frieza do mar. Com esforço, olhou para Beau e sua passageira. A garota tinha fibra e não se equivocou, mas estava claro que não aguentaria muito. E o cavalo estava resfolegando e bufando forte, começando a cansar. Ele espiava através do borrifo do topo de cada onda, examinando a costa, vendo apenas o leve brilho fosforoso do mar quebrando nas rochas. Ali. Uma mancha escura. Ele se enveredou naquela direção, rezando para que não houvesse olhos vigiando-os do penhasco. Improvável. Os homens lá na praia levariam muito tempo na subida, e certamente estariam mais interessados em perseguir o contrabando.

Era como se anos tivessem passado até ele sentir a areia debaixo dos pés e ouvir o ruído suave da espuma na praia. Não que houvesse muita praia. Uma lasca, só revelada na maré baixa. Mas era o suficiente. O cavalo passou por ele, ansioso para se livrar da água, e empinou sobre o chão seco feito um potro, enquanto lady Selina se agarrava a ele com desespero. Ian arrastou suas pernas cansadas pela arrebentação, sentindo o peso do kilt, e 45


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agarrou as rédeas. — Tudo bem — sussurrou, afagando o pescoço encharcado. — Você conseguiu, velho amigo. Ele estendeu a mão para a garota. Ela caiu em seus braços como se fosse um peso morto. Bom Deus, que ela não tivesse sido atingida. Ele não achava que os tiros tivessem chegado tão perto. — Selina. Está ferida? — C-com f-f-frio. — Os dentes batiam. Ian tinha resposta para isso, se ela pudesse aguentar por tempo suficiente. — Consegue andar? — N-n-não sinto minhas pernas. Ah, diabos, no que ele estava pensando? Não era problema para ele nadar no mar, pois tinha sido criado ali, nadando nos lagos frios das colinas quando não havia onde tomar banho, mas essa criatura delicada não estava acostumada a tal sofrimento. Ele a ergueu nos braços. — Não. Você deve estar cansado. — Estou. — Ele estava. Mas estava acostumado a continuar batalhando, por mais exausto que estivesse. O sofrimento era um fato da vida nas Terras Altas. Cambaleou pela praia estreita, estalando a língua para que o cavalo o seguisse. Rochas sobressaíam nos penhascos, formando uma baía particular invisível do topo do penhasco acima. Do mar, na maré alta, era preciso um barco, mas naquele exato momento a entrada para a caverna era uma ladeira suave na escuridão. Uma caverna lavrada pela água do mar e um antigo rio subterrâneo. Ele se abaixou e entrou. O som das ondas se tornou um rugido abafado — quase como escutar uma concha que foi levada à orelha. O corpo frágil em suas mãos vibrou. Tremores. Ele não estava com frio, mas não era nada mal ficar longe do vento. Beau se sacudiu, gotas d'água voaram. Ele obviamente aprovava o lugar seco e seguiu Ian com boa vontade. A inclinação se tornou mais íngreme, mais rochosa. Os cascos do cavalo escorregavam aqui e ali, mas o animal seguia bem de perto, confiante. Deus, o clã inteiro tinha confiado no êxito dessa noite. E agora ele estava preso ali, sem ideia do que estava acontecendo. Se não fosse pela garota, provavelmente estaria morto. E agora ela estava inerte em seus braços, o cabelo escuro pendurado feito água-marinha, o corpo frio e subitamente imóvel. Ele devia ter suspendido a coisa toda no momento em que a viu. Despachado os homens. Ignorado o barco. Ou isso ou ter se entregado, mas não mergulhado no mar. Deus, que ele conseguisse aquecê-la e secá-la antes que sucumbisse ao frio. A caverna estava gélida e negra como piche, mas ele a conhecia tão bem quanto ao próprio quarto no escuro. Seus sentidos avisaram quando a passagem deu espaço 46


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para a caverna em si. Seus sentidos e também o leve toque do ar roçaram seu rosto. Pôs a frágil mulher que estava em seus braços na areia. Ela lutou para se sentar, e Ian se sentiu tomado de alívio ao som de outra rodada de dentes batendo. — Espere aqui — disse ele, tateando até um canto, onde encontrou vários pacotes embrulhados em papel encerado. Não demorou para que ele estivesse com velas acesas, gravetos e turfa arrumadas para uma fogueira e cobertores espalhados no chão. Acendeu os gravetos com uma vela e cuidou de aumentar fogo, soprando de leve as brasas até as chamas tremularem e afastarem um pouco da escuridão. — Q-q-que lugar é e-e-esse? — A voz dela era um sussurro ecoante. Felizmente, Selina estava alerta o suficiente para falar. — É uma velha caverna usada por pescadores. — Ian manteve um tom trivial de voz. Não havia por que Selina saber o quanto havia temido por ela. Aproximou-se. — Sente-se perto do fogo. Há mais cobertores. Vamos livrar você das roupas molhadas. Ele a ajudou a ficar de pé. Tentou erguê-la nos braços. — Eu consigo andar — retrucou ela. Cambaleou alguns passos, mas, incapaz de suportar a visão da fraqueza dela, Ian a ergueu e carregou para o calor da fogueira. — Estou com frio também, menina. Não quero esperar uma semana para que você se aproxime do calor. Ele a deixou sobre os cobertores e lhe entregou mais um. — Coloque este ao seu redor e tire essas roupas molhadas. Ian se virou de costas, cada vez mais ciente da roupa ensopada grudada às pernas e gotejando no chão. Puxou Beau pela rédea e o levou até a manjedoura de ferro que algum antepassado empreendedor havia afixado à parede rochosa. Havia aveia e feno num saco, esperando exatamente por uma ocasião como esta: a necessidade de se esconder das autoridades ou salvar um pescador surpreendido por una tempestade. Não era usada há tempos, segundo ele sabia, mas um dos pescadores dali tinha o serviço de mantê-la abastecida para o caso de um naufrágio. Depois de despejar o feno na manjedoura, ele usou o saco para esfregar o cavalo, então adentrou mais no túnel pelo lado da terra, até o barril de água da chuva. Estava com gosto de turfa, mas era limpa e fresca; Ele encheu uma pequena panela para o cavalo e dois odres de couro. Ocupou-se com o trabalho, pois tudo no que conseguia pensar era Selina tirando as roupas, desnudando o corpo magnífico. Ian rangeu os dentes. Não era o adolescente daquele longínquo verão, imaginando-se apaixonado por uma garota com quem não deveria ter relação nenhuma. Contudo, as imagens estavam mesmo aquecendo seu sangue. E isso não era uma coisa tão ruim. Quando ele retornou, as roupas de lady Selina estavam estendidas perto do fogo e o cobertor estava bem enrolado ao redor de suas curvas deliciosas. Ela estava linda. Pálida, os lábios um pouquinho azulados, mechas de cabelo úmido enroscando ao redor do rosto, grudado à pele. Uma lenda que ganhava vida. Ian sorriu. — Você parece uma selkie. — Uma bruxa do mar? Eu me sinto mais como um destroço lançado na praia. — O 47


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sorriso corajoso que surgiu nos lábios enquanto ela passava os dedos pelo cabelo cativou o coração dele. — Está mais aquecida? — perguntou. Selina assentiu. — E você? Não deveria...? — As palavras sumiram e ela desviou o olhar, envergonhada. Moças como ela, da nobreza, não pensavam em homens tirando a roupa. De fato, elas provavelmente não pensavam que um homem tivesse qualquer coisa debaixo das roupas. As roupas faziam o homem, caso fôssemos acreditar nos pomposos pavões de Edimburgo. Ora, ele não ficaria ali pingando para lhe poupar as sensibilidades. — Sim. Há um kilt extra aqui, mas nada que sirva para uma dama vestir. Terá que secar suas roupas antes de partimos. Ele pegou os suprimentos deixados ali por homens impedidos de aportar seus barcos de pesca no cais durante uma tempestade. Ou contrabandistas forçados a fugir do braço longo dos almotacéis. Ian saiu da luz da fogueira, enrolou-se num cobertor e tirou o paletó e a camisa, usando outro cobertor como toalha. Quando se virou, Selina o olhava por baixo dos cílios. Provavelmente não percebia que a luz do fogo, embora distorcesse suas feições com sombras bruxuleantes, não escondia sua expressão do interesse. O calor subiu do pescoço até o rosto. Corando feito um garoto. Claro que não! — O que você pensou que estava fazendo, descendo para a praia? — perguntou ele, a voz mais ríspida do que pretendia. — O que você fez foi corajoso, mas imprudente. — Pronto, isso soava menos ingrato, mesmo que ainda ressentido. — Você é um tolo, Ian Gilvry — disse ela, zombeteira. — Todo esse perigo por causa de conhaque. Atormentado, ele a olhou de cara feia. — O conhaque paga pelas outras coisas. Ela o encarou, pasma. Ian deu de ombros. O que uma garota privilegiada como ela sabia sobre os sofrimentos que sua gente enfrentava? Tudo o que importava para o pai dela eram caçadas e tetrazes. — Assim que suas roupas estiverem secas, eu levo você para casa. O olhar dela buscou o cavalo. — Nunca vi um cavalo nadar assim. Eu perdi um cavalo num rio uma vez. Ele entrou num vau e ficou confuso. Eu jurei nunca perder outro cavalo para a água. Selina descansou o queixo nos joelhos. Posso ver o porquê. Eles se tornam amigos... — Ela hesitou. — Sua mãe me deu permissão para montar nele. 48


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— Ela sabia quem você era? — Ian se sentou ao lado dela no cobertor. O calor do fogo era doloroso sobre sua pele fria. — Sim. Aquilo realmente o surpreendeu. A mãe sempre se opôs a tudo que fosse inglês — era uma questão de honra. Se ela sequer descobrisse que Ian havia despachado Drew para a América a pedido da filha do Albright, jamais o perdoaria. Ele havia feito isso pelas recordações de um breve período em que se sentiu feliz e despreocupado, quando se esqueceu de seus deveres e responsabilidades. Razões muito egoístas envoltas em sonhou e desejos juvenis. A realidade na forma do choque dos irmãos aos vê-los juntos o trouxe de volta ao chão, mas Ian nunca deixou de se sentir culpado pela mágoa no rosto dela por causa da rejeição e das palavras cruéis ditas na despedida. Essa culpa levou Drew à morte. Ele não a deixaria influenciá-lo contra a família outra vez. Mas Selina havia, pelo menos em parte, compensado isso com o aviso daquela noite. — Obrigado por vir esta noite. Sem seu aviso, nós teríamos sido presos. Mas não queria que você tivesse descido até a praia. Eu teria cuidado de tudo sozinho. Selina suspirou. — Eu pensei que os homens do fisco seguiriam a mercadoria e que nós poderíamos subir pela trilha do outro lado. Ian estava surpreso com a resignação na voz dela. — Como você sabia dos planos deles? — Pelo meu pai. Eu devia ter procurado por você mais cedo. — Selina suspirou. — Eu quase cheguei tarde demais. — Sacudiu a cabeça. — Por que arriscar vidas por alguns tonéis de conhaque? Como as mulheres e crianças sobreviverão sem seus homens? Ela estava lhe dando um sermão? Depois de tudo o que o pai dela havia feito para destruir o modo de vida deles? — Eles não podem viver só de ar. — Ora, eles não podem viver de conhaque. — Você é uma sassenach. O que você sabe das necessidades do meu povo? Ela se retraiu e ele se sentiu um bruto. Seus modos francos e rudes não cabiam a uma senhorita elegante. Não que ela parecesse realmente uma dama ao cavalgar sem sela em seu resgate. — Fornece dinheiro para que comprem o que puderem para continuar vivendo — explicou ele. Mais do que isso, na verdade — era um investimento no futuro. Depois de alguns momentos de silêncio, ela se voltou para encará-lo. — Acha que nós fomos reconhecidos? Ian sacudiu a cabeça. — Eles estavam muito longe. Selina deu um suspiro de alívio. Aquele pequeno suspiro, aquela marca de contentamento, encheu o peito dele de calor. Um calor Idiota. Ela era a filha do pior inimigo do seu clã. Seria bom que ele mantivesse isso em mente. Mas Selina tinha se arriscado muitíssimo naquela noite e ele não queria que ela 49


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sofresse por isso. — Quanto antes nós a levarmos de volta à fortaleza, melhor. Antes que sintam sua falta. Erga suas roupas junto ao fogo para que sequem. Selina fez como ordenado e os dois ficaram sentados secando as roupas, vendo o vapor subir delas para se misturar com a fumaça do fogo. — Por que seu povo tenta voltar no tempo? O belo príncipe Charlie jamais vai retornar, — Ela não entendia nada. — Meu povo estava aqui muito antes dos ingleses. Sim, eles precisam acompanhar os novos tempos, mas não desistir de quem são, das tradições ou de sua terra natal. Todos os grandes proprietários estão entregando suas terras às ovelhas. Ou usando as terras como passatempo. Não estão deixando nada para os membros dos clãs. Se você lhes tira o sustento, então eles precisam de outro trabalho para repô-Io. Em vez disso, eles são deixados desamparados, trabalhando nos campos de alga ou contrabandeando uísque. Centenas deles partiram para a América. Logo não restará ninguém nas Terras Altas. Selina franziu o cenho. — Os arrendatários não ganham o suficiente para pagar os alugueis? — Os aluguéis vivem subindo. — Ian passou os dedos pelo cabelo quase seco enquanto procurava uma maneira de explicar sem entregar seus planos. — Os costumes antigos, como o arrendamento, já não são mais viáveis, mas acredito que é possível encontrar outros meios de manter as pessoas aqui. Na Escócia. Mas os ingleses, homens como seu pai, submetem leis que tornam impossível o nosso sustento. São as leis que precisam mudar. O silêncio dela dizia que Selina não estava convencida. Diabos, ele estava pouco convencido de que uma mudança nas leis faria diferença. Porém, alguns homens estavam obtendo êxito com isso, mas eram homens que tinham suas próprias propriedades, que tinham o poder de decidir a melhor maneira de agir. Se Albright decidisse esvaziar as terras, no fim, havia pouco que Ian pudesse fazer a respeito. — Teremos que nadar de volta? — perguntou ela. Enfim uma pergunta que ele podia responder com confiança. — Não. A caverna tem uma porta dos fundos. Ou porta de entrada, dependendo do seu ponto de vista. — Então devemos ir. Não posso estar fora da cama quando a criada for avivar o fogo. — Ela estremeceu. Instintivamente, o braço dele a rodeou. Ian tocou sua bochecha. A pele estava quente e viva sob seus dedos; a boca, deliciosamente convidativa. As costas pareciam frígidas sob seu braço. Não era surpresa ela estar tremendo. — Precisamos deixar você bem seca primeiro. — Estou bem mais aquecida do que antes. — Sim, mas não o bastante. — Ele a ergueu com facilidade e a colocou entre suas pernas, de modo que as costas ficassem contra o calor do seu corpo, o traseiro pequeno e redondo, aninhado entre suas coxas. Quase gemeu de prazer quando o corpo enrijeceu, então rezou para que ela não pudesse senti-lo através do cobertor. Ian se forçou a ignorar a sensação deliciosa e preferiu se concentrar na sensação das costas frias permeando o cobertor dela e o seu. Então a puxou para junto do seu peito. 50


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— O que está fazendo? — perguntou ela, ofegante. — Calor corporal. Quanto mais perto nos sentarmos, mais quente nós dois ficaremos. Algo que aprendi nas noites frias, quando saía pura caçar com os homens do clã. Selina se recostou e arrulhou sua aprovação. O som o atingiu fundo. Sua excitação inchou dolorosamente. Ian se obrigou a respirar e pensar. Essa mulher não era para ele. Ela deu uma risadinha. — O que foi? — perguntou ele, os dentes trincados. — Estou pensando num bando de homens aconchegados juntinhos. — Nada agradável, acredite. Os homens fedem depois de dias nas colinas. Mas nos salvou de morrer congelados ou retornar de mãos vazias. — O clã sempre protege seus membros. — Sim. — Um deles o entregou esta noite. — Possivelmente. — Um traidor entre eles. Tal ideia lhe provocou um frio na barriga. Mas isso teria que ser discutido. Tão logo o clamor por justiça cessasse. — Você não ouviu quem foi que deu com a língua nos dentes? — Não. Claro que não seria assim, tão fácil, não é? Ele esfregou os braços torneados com as mãos, tomando o cuidado de não machucá-la. O calor aflorou sob suas palmas. — Que sensação boa. — Ela suspirou. Ian queria fazer mais do que lhe aquecer os braços. Queria levá-la consigo até as estrelas e voltar. O antiquíssimo sonho de um garoto. Não era mais adequado hoje em dia do que tinha sido naquela época. Quanto antes a levasse para casa, mais cedo se livraria da tentado. Aquilo não causaria nada além de problemas para todos eles. Pensar na partida dela fez o fogo parecer menos brilhante e o lugar, mais cavernoso e vazio. Desde a partida de Drew ele não desfrutava de uma dessas aventuras noturnas, percebeu, ou compartilhava suas preocupações com o futuro. Poderia ser ainda mais desleal à memória do irmão? Provavelmente muito mais quando o assunto era essa mulher, a menos que fosse cuidadoso. Ele sempre era cuidadoso. Sempre estava no controle. Esta noite não seria diferente.

Capítulo Sete

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Selina deixou que o abençoado calor do corpo de Ian às suas costas e o calor do fogo à sua frente a recuperassem e a colocassem à sua mercê. Sentia-se segura com os braços dele ao seu redor, protegida do mundo que estava além da caverna. Os homens geralmente a deixavam nervosa. Eles precisavam ser observados, avaliados e mantidos a distância. Quando eles se aproximam demais, sempre encontram uma forma de infligir algum tipo de mágoa. Ian havia lhe ensinado tal lição quando ela era uma menina impressionável. Como poderia se esquecer desse fato agora? Ou será que a menina havia mais uma vez dominado sua mente e seu corpo, lembrando-lhe daqueles velhos e tolos anseios? Claro que não. Ela sabia o que era, o que sempre foi: um desejo proibido. Uma mulher frágil sempre suscita num homem a vontade de protegê-la. Portanto, ela estava em vantagem, desde que não se deixasse entregar ao encanto. Sob tais condições, não havia nada de errado com um pouquinho de luxúria mútua. Desde que não fosse longe demais. Uma dama devia ser cuidadosa com a própria reputação, especialmente se tinha esperanças de se casar. Então por que esta sensação penetrante de bem-estar por estar envolvida pelos braços dele se havia arriscado tudo naquela noite? Selina ergueu o rosto, olhando para o queixo forte e quadrado coberto por uma sombra de barba. Seu olhar traçou a sombra da bochecha e o malar cinzelado. E o anseio dentro dela pareceu aumentar com a expansão e contração das costelas dele em suas costas. Um suspiro silencioso, porém ela o sentiu com cada osso de seu corpo. — Eu nunca me perdoei pelo o que lhe disse, naquele dia na praia — Ian murmurou baixinho em seu ouvido. — Crianças são cruéis, mas eu era bastante velho para evitar aquilo. Eu possuía orgulho em excesso naquele tempo. Surpresa, Selina se contorceu nos braços dele para ver melhor sua expressão, garantir a si mesma que ele não estava zombando. De fato, os lábios dele sorriam, mas era um belo sorriso generoso, jovial, tocado pelo pesar, os olhos cintilantes por causa da luz do fogo. Suas entranhas se contraíram, pulsaram com uma sensação que fez suas pálpebras baixarem e o corpo amolecer. Olhando para ela, Ian inspirou com rapidez. O brilho em seus olhos irrompeu em chamas abrasadoras. O ar estalou e esquentou. Ao redor, o calor conspirava para deixá-los sem fôlego e sem palavras. Os braços dele apertaram o corpo dela, a cabeça inclinou-se até a boca chegar bem perto de lhe roçar os lábios. A suave carícia de cada expiração lhe excitava os lábios; o perfume dele, sal e ar marinho, e algo bastante masculino preenchiam seus sentidos. — Parece que estávamos destinados a resgatar um ao outro de tempos em tempos — disse ela, com uma risada ofegante. Mas isso nunca aconteceria de novo. Sem pensar, Selina levou os braços ao pescoço dele, inclinou a cabeça e lhe beijou a bochecha, como fazia quando era uma menina— Estou contente por ter encontrado você a tempo. 52


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Um gemido irrompeu da garganta dele. — Eu também. — A mão foi até o rosto, envolvendo-lhe o queixo, angulando a cabeça para melhor beijá-la. Seus lábios firmaram-se sobre os dela, testando e provocando. Ian entreabriu os lábios e deixou a língua lamber o lábio inferior de Selina. Arrepios percorreram furiosamente o corpo dela, fazendo-a ofegar chocada com o prazer do toque tão íntimo. Sensações divinas correram pelas veias e transformaram seus ossos em líquido. Seus lábios se uniram e, com as bocas abertas, se mesclaram e moveram numa harmonia pela qual Selina não esperava. Hesitante, tentou ela mesma provar. As línguas se encontraram, dançaram e brincaram, primeiro com delicadeza, cuidado, mas, em seguida, com fervor selvagem. Tonta, respirando com dificuldade, ela se largou nos braços dele. Á magia do beijo a tirou do próprio corpo. E, se antes estava flutuando, agora ela voava, planava, livre das correntes do mundo. Por dentro, Selina tremia. Nunca, em sua vida adulta, havia perdido tão completamente o senso de si mesma como agora, como se uma parte de seus sentidos tivessem se fundido e se transformado em algo inteiramente diferente. Era jubiloso. E aterrorizante. O medo a fez se rebelar. Ian se afastou, respirando com dificuldade, fitando-a de frente com uma expressão de granito, com olhos da cor da meia-noite, ardentes e exigentes. — Não devemos — disse ele, a voz irritada. — Não — concordou ela, encarando-lhe a expressão severa. Mas o desejo estava ali, no jeito como o olhar devorava seu rosto, no jeito como as mãos tremiam enquanto ainda tocavam seu rosto, leves e gentis como uma borboleta. Um querer proibido. Ou seria apenas seu sangue fervente que afazia querer que fosse isso? Selina fechou os olhos diante de pensamentos tão traidores. Tinha feito a própria escolha. Quando abriu os olhos, viu raiva nos dele. Talvez até repugnância. Porém, não parecia tão dirigida a ela quando lan se ergueu, deixando-a fria e abandonada. — Já deve estar aquecida agora — disse ele, sendo prático. Aquecida? Ela estava ardendo. — Sim. Obrigada. — Ora, ela também não estava soando igualmente calma? Igualmente indiferente? — Aqui. — Ele lhe entregou as saias e o corpete. — Estes estão secos. — Franziu o cenho para o calção caído no chão. — Para cavalgar — explicou, defensiva. — E você? — Selina deu uma olhada no cobertor que ele havia enrolado na cintura e depois para a massa ainda fumegante que era o kilt dele. Levaria horas para secar. Um pequeno tremor lhe percorreu as costas ao pensar nas horas de tentação naquela caverna. — Há roupas sobrando aqui. — Ian pegou um dos pacotes e o desembrulhou. Fascinada, Selina o observava. 53


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— Você pouparia seus rubores de donzela se olhasse para o outro lado agora, lady Selina. — A zombaria havia retornado à voz dele. Rubores de donzela. Depois do beijo, ele sem dúvida suspeitava que não passavam de fachada. Com as bochechas mais quentes que os fogos do inferno, Selina virou o rosto e afofou o tecido enfunado de suas saias. Apesar de todas as boas intenções, não conseguiu deixar de dar uma espiada pelo canto do olho quando Ian deixou o cobertor cair silenciosamente no chão. A margem da luz do fogo, o brilho da pele era como mármore. A imagem dos ombros largos e entalhados estreitando-se numa cintura esguia e flancos firmes, da curva das nádegas firmes e magras e das coxas fortes, marcaram sua visão. Seu corpo se contraiu diante daquela pura beleza. Tão grande e tão másculo. Gracioso e perfeitamente formado. Atlético e seguro de seus movimentos enquanto se curvava para ajustar o tecido. O completo oposto de sua estatura miúda, das curvas arredondadas e do desalinho de seu andar claudicante. A silhueta da ereção a fez ofegar. Será que ele tinha ouvido ou adivinhado que ela estava observando? Se fosse o caso, Ian não deu nenhum sinal. Selina abaixou a cabeça e se ocupou com as próprias roupas. Engolindo, apesar da secura na boca, manteve o olhar fixo na tarefa. O fogo estava quente e o leve tecido de algodão secava rápido, Ela se concentrou em estender o calção perto das chamas. Ergueu o olhar quando Ian retornou, de peito nu. Outra deliciosa contração em suas entranhas. Ele pegou a camisa e a aproximou do calor. A calça era pequena e curta demais, fazendo as coxas parecerem enormes. Não que ela estivesse medindo. Não estava. Mas uma mulher teria que ser cega para não notar como as pernas dele eram fortes e corno os pés eram grandes, exatamente como o... Ela forçou tal pensamento a sumir. Mas ela jamais se esqueceria da imagem do corpo dele, como ele ficava de perfil. Diferente. Glorioso. — Agora é hora de você se vestir — disse ele. — Caso queiramos que você esteja em casa antes do amanhecer. Selina pulou ao som da voz dele. Ian estava certo. Não deviam mesmo se demorar. — Vire de costas enquanto me visto. Ian levantou uma sobrancelha. Selina, sem dúvida, pareceu ríspida demais, mas ele se afastou e foi até o cavalo sem mostrar nenhum Interesse em espioná-la. E daí que tivessem se beijado? Um momento de paixão depois de uma fuga transloucada. O que tinha acontecido entre eles foi apenas resultado do choque. Conforto mútuo. Nada mais. Tirou o cabelo do rosto; estava emaranhado e um pouco úmido, mas ela não se incomodou. Fez uma trança grosseira para segurá-lo, depois se vestiu por debaixo do cobertor. Não porque temia que Ian fosse espiar, mas para bloquear um pouco do frio da caverna. Vestida, virou-se e descobriu que ele estava esfregando o cavalo com o cobertor que havia descartado antes. Ela apanhou seu xale, ainda saturado do mar, e o dobrou. Um cobertor serviria melhor como capa e seria mais quente, embora só Deus soubesse o que sua criada diria a respeito. Envolveu os ombros e o amarrou por trás da cintura, como as camponesas faziam, depois recolheu o kilt dele, dobrando-o para dar às mãos algo para fazer enquanto esperava por Ian. 54


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— Está pronta? — perguntou Ian, levando o cavalo na direção dela. Selina assentiu. Era mentira. Um nó se formou em seu estômago. A ideia de voltar para casa fazia com que se sentisse como um fugitivo retornando à prisão. Uma prisão criada por ela mesma. O que não fazia nenhum sentido, pois estava para se casar com o homem que havia escolhido para si mesma. Ela lhe estendeu o kilt., — Vai querer isso. Ian usou uma das cordas para amarrá-lo, depois o pendurou sobre a cernelha do cavalo. — Vamos montar lá fora. — Ele apanhou um balde e o despejou no fogo. Uma fumaça sufocante encheu a caverna. Selina tossiu e esfregou os olhos lacrimejantes. — Seu idiota. Não podia esperar até termos saído? Ele deu uma risadinha. No momento seguinte, estava atrás dela, colocando-a sobre o cavalo. — Precisamos nos apressar agora. — Puxou as rédeas e guiou o animal pelo túnel, segurando no alto uma tocha para que pudessem enxergar à frente. Foram subindo pelo espaço estreito. Às vezes, quando a arrebentação estava quieta, Selina conseguia ouvir água corrente — o que havia restado do riacho que havia escavado a rocha em seu caminho até o mar, sem dúvida. E então eles saíram para o ar frio da noite. Ian molhou a tocha, atirou-a sobre os penhascos e continuou guiando o cavalo de volta para a estrada. Ela se agarrou à crina do garanhão e rezou para chegar em casa a tempo.

A POUCOS metros da entrada da fortaleza, Selina o guiou através da campina. — Existe um afloramento de rochas na parte de trás da colina — murmurou baixinho. — Sei qual é. — Por que ele nunca suspeitou que o afloramento pudesse esconder uma entrada? Seus irmãos, quando garotos, teriam ficado extasiados. Estremeceu ao pensar nos problemas que poderiam ter criado. Precisavam se apressar. O amanhecer já estava tornando cinza o preto do lado leste do céu. Beau se assustou quando alguém saiu da urze. Ian puxou as rédeas para que o cavalo parasse. — Angus! — gritou Selina. — Shhh! — sibilou Angus. — Por tudo que há de sagrado, o que é que você está pensando, Ian Gilvry? — O que você está fazendo aqui? — perguntou Selina. Ian sentiu um peso no estômago. Quem mais estaria esperando por lady Selina? Angus deu uma olhada na fortaleza. — Acha que eu não conheço cada canto e fenda da casa do meu mestre, minha senhora? Então é verdade. — O que você está insinuando, senhor Mclver? 55


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Ian jamais a ouviu soar tão altiva. Tão parecida com as nobres convencidas que Andrew lhe descreveu ao voltar de Londres. — O que está acontecendo, Angus? — perguntou Ian, saltando de cima de Beau. — A jovem dama não foi encontrada em sua cama e o noivo dela está furioso, é isso o que está acontecendo. — Noivo? — O estômago se revirou. Ian encarou lady Selina. Será que ela estava fazendo algum joguinho com ele lá na caverna? O tipo de flerte apreciado pelas moças da sociedade, segundo o que Andrew havia contado. — Não há nada formalmente anunciado — respondeu ela, soando defensiva. Escorregou do cavalo e parou ao lado de Ian. — Pode não ser oficial — disse Angus —, mas ele está muito zangado. Ameaçando arruinar a sua reputação e a do seu pai. Interferir em assuntos oficiais faz de você uma cúmplice aos olhos da lei. — Ele não pode ter certeza — retrucou ela, agitada. — Ninguém me viu. Ian tinha a sensação de que Selina estava com os dedos cruzados quando falou isso. — Alguém a viu? — Essa informação eu não tenho. Só sei que o jovem Dunstan está fora de si de tanta raiva. Sem dúvida esperava um bocado de glória no incidente desta noite. Em vez disso... Selina se retraiu. — Papai sabe que eu sabia o que estava sendo planejado para esta noite e acha que eu o traí. — Ora, você traiu, não foi? — murmurou Angus, a voz profunda se tornando um rosnado baixo de frustração. — Lady Albright esta em lágrimas, falando de ruína e desgraça. Seu pai... — Ele meneou a cabeça. Ian ficou rígido, pois, apesar de toda a raiva que sentia, precisava admitir que, se alguma palavra sobre a escapada dela se espalhasse, lady Selina estaria arruinada para sempre. Ajudar um Gilvry a fugir dos almotacéis não seria visto pela gente dela como algo heróico Também poderiam ponderar por que Selina o ajudara, e não seria para o mérito dela. — Eu só tenho que enfrentar o problema — disse lady Selina numa vozinha ofegante. — Não é da conta de ninguém o que eu estava fazendo esta noite, e é o que eu direi a ele. Papai vai me perdoar, um dia. — Eu não a aconselho a tomar tal atitude — disse Angus, a voz tão seca quanto areia. — Aquele homem não ficará satisfeito enquanto — Você não admitir onde esteve esta noite e der evidências contra o laird. Se ele convencer o seu pai de que está com a razão, enfrentá-los vai ser uma tarefa difícil. Ian cerrou os punhos ao imaginar Selina sendo intimidada. — E, uma vez que conseguirem o que querem — prosseguiu Mclver , O laird será preso. — Mas o que mais eu posso fazer? — perguntou ela. Angus lhe deu uma olhada sagaz. — De acordo com aquela sua criada, não seria a primeira vez que você 56


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desaparece por capricho no meio da noite. Tudo o que você precisa fazer é sumir por um tempo e aparecer em outro lugar, sã e salva. — Então Mary andou fazendo fofoca, não foi? — disse ela, com frieza. — Mary está morrendo de preocupação de levar a culpa. Lady Selina arriou os ombros, depois sacudiu a cabeça. — Claro que papai não culparia uma criada por minhas ações. Alem disso, ele sabe que não faço mais esse tipo de coisa. — Quem pode dizer que ideias as mulheres têm na cabeça? — retrucou Angus. — Não existe algum lugar aonde você poderia ir, alguma amiga que pudesse visitar que pudesse confirmar seu paradeiro? EIa se virou para Ian, o rosto cheio de preocupação, — Tem a Alice. Lady Hakwhurst é o nome dela agora. Hawkhurst um homem formidável. Talvez ele consiga convencê-los de que saí antes de tudo isso acontecer. Papai lhe daria ouvidos. — Vocês precisam ser cuidadosos — avisou Mclver. — Eles sairão à procura de vocês dois pela manhã. Ian encarou Mclver. — Está propondo que eu a escolte até lá? — Sim. A não ser que você tenha uma ideia melhor. Uma imprecação brotou nos lábios de Ian; ele a engoliu. — Talvez, se pudesse pestanejar seus belos olhos para eles, lady Selina, e dizer que saiu para dar um passeio, eles acreditassem em você. — Estou disposta a tentar — retrucou ela, com uma curta e leve erguida de cabeça. — Laird, podemos ter uma palavrinha em particular? — disse Angus, que então se dirigiu a lady Selina. — Assuntos do clã, você sabe, minha senhora. — Creio que está com medo de que eu vá contar a eles os seus segredos. Pois bem, não sou tão pobre de espírito. Mas pode falar em particular se é o que quer. — Ela se afastou alguns passos. Ian chegou mais perto de Angus. — O que foi, homem? Mais notícias ruins? — Isso depende do seu ponto de vista. — Angus segurou-lhe o braço com força. — Eu devia enchê-lo de pancadas por ter envolvido a menina nos seus assuntos. Com a raiva aumentando por dentro, Ian andou lado a lado com o homem. Mclver era grande, mas Ian era mais alto e estava mais cm forma. Cerrou os punhos e abaixou bastante a voz. — Fale logo, homem. — Case-se com a menina. As palavras o atingiram como um soco no queixo. Foi impossível formar palavras por um instante ou dois. Mais chocante ainda era a sensação de anseio enchendo o peito, como se uma esperança desconhecida até o momento tivesse sido forçada a atingir a superfície Sem dúvida, a parte errada de sua anatomia estava raciocinando. — Está louco? Ela é a filha do Albright. 57


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A filha do inimigo de sua família. Foi por isso que a repeliu tanto anos atrás, quando percebeu que estava correndo o perigo de perder a si mesmo naqueles olhos castanhos e aveludados; quando sentiu as agitações em seu sangue; e em seu coração — e viu o horror dos irmãos. Albright jamais teria aprovado a amizade deles, quanto mais algo mais íntimo. E Andrew. Andrew o assombraria a cada momento caso fizesse tal coisa. Se não fosse pelo pedido de Selina, e a culpa persistente pela maneira com que a tratou, Drew ainda estaria vivo. Em vez disso, Ian forçou o irmão a deixar Londres e a perseguição à herdeira, sua resposta aos problemas financeiros do clã, que por acaso era amiga de Selina. Mais do que isso, Ian despachou um furioso Drew para a América, onde ele foi morto. Como poderia se casar com a mulher que o fizera de gato e sapato em detrimento do irmão? Ele certamente não merecia a onda de felicidade que a idéia lhe trazia. — Você perdeu o juízo. — Estou sendo prático, rapaz. Case-se com ela e, mesmo que a atormentem sem cessar, a palavra dela não servirá num tribunal. — Não acredito que lady Selina vá dar evidência contra mim. — Ela pode se esforçar para manter segredo, mas ela fez aquele jovem sassenach de bobo. Se a deixar entrar agora, você pode muito bem acompanhá-la, com uma corda no pescoço. Vai ser o fim do pessoal das redondezas. Sem você por aqui, nada vai impedi-los de limpar as terras. Como eu disse, Dunstan está ameaçando se vingar dela e do pai. Quem você acha que ela vai escolher, depois que Você estiver escondido nas colinas? — Suas sobrancelhas grisalhas se uniram. — Pense nisso, Gilvry. Não importa o que aconteça, ela está arruinada. E duvido que ela vá deixar que o pai seja envolvido nisso também. Mas que inferno! Era uma escolha muito difícil para uma filha, Selina não devia nada a Ian, e devia tudo ao pai. Mas casamento? — Deve existir outra maneira. Angus parecia inflexível. — Seu irmão Andrew fez um estrago com as moças de cada vale daqui até Edimburgo, mas você é o laird e ela é uma dama. Não tem honra nenhuma? O ressentimento com o desagrado no tom de Angus incendiou seu humor. — Não toquei na menina. — Ficou vermelho ao se lembrar do beijo e ficou contente pela pouca luz. Mas tinha sido apenas um beijo. — Não pedi a ela que viesse atrás de mim esta noite. Mclver suspirou. — Mas ela foi. Vai deixar que ela sofra por tentar ajudar? Você não é o homem que pensei que fosse se não fizer a coisa certa. Ian fechou bem os olhos, tentando se concentrar, para clarear os pensamentos. Precisava de tempo para pensar. Tempo para planejar. — Eu a levo até a amiga, mas é tudo o que farei. Mclver sacudiu a cabeça, como se estivesse desapontado. — Pense no que eu disse, rapaz. Enquanto isso, vá o mais longe que puder antes que a luz surja. Será bem-vindo nos vales enquanto for seguindo para o sul. Não perca tempo. Haverá um preço por sua cabeça pela manhã. 58


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Tonto com os pensamentos conflitantes em sua cabeça, Ian se aproximou de Selina com Mclver em seu encalço. — Pois bem? — disse ela. Ian lhe deu um sorriso melancólico. — Levarei você até a sua amiga. Ela se voltou para Mclver. — Tem certeza de que é a única maneira? Angus assentiu. — Vá com Gilvry ou sua ajuda não terá servido de nada. — Ele tirou um alforje das pedras onde estava escondido antes. — Tem água aqui, aveia e suprimentos, algumas moedas. O bastante para ajudar no caminho. Mande uma mensagem para o seu irmão, laird, quando tiver ajeitado as coisas. — Ele enfatizou as últimas palavras com um olhar grave. Ian não gostou da eloqüência de Mclver. Parecia ter pensando em tudo, como se possuísse um propósito particular. Mas ele não via alternativa. Certamente não seria o casamento. Ian ergueu os olhos. O amanhecer estava atingindo o céu e agora ele conseguia enxergar com mais clareza as feições de Selina e a ansiedade em seus olhos. — Precisamos ir. Agora — disse ele. Cansada, ela assentiu em concordância e deixou que Ian a colocasse sobre Beau. Agarrou-se ali, olhando para ele com preocupação e confiança. Se é que era possível, isso fez Ian se sentir pior. Precisava encontrar uma maneira de sair daquela confusão. Pelo bem dos dois. Montou à frente dela e baixou o olhar para Angus. — Diga a Niall que mando notícias. Girou Beau e bateu seus pés.

Capítulo Oito

Selina não teve escolha senão se agarrar à cintura firme do homem à sua frente enquanto atravessavam o campo. Uma dor pesada tomava seu peito. Ao tentar ajudar Ian, ela havia arruinado o próprio futuro. Se ao menos tivesse ficado em Londres, nada disso teria acontecido. E Ian teria sido preso. Era tudo culpa daquele estúpido do Ranald. Se ele simplesmente tivesse levado o 59


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seu aviso a Ian, ela poderia ter voltado para casa e ninguém saberia de nada. Olhou por cima, para a fortaleza, o contorno já distinguível contra o céu. Será que agora estava fazendo a coisa certa acompanhando Ian? Enquanto seu coração dizia “sim”, razão pela qual não discutiu muito a questão, sua cabeça achava que isso era um grande erro. Ela havia aprendido há muito tempo a não escutar o coração. Uma sensação fria lhe invadiu a boca do estômago, quando percebeu que estava depositando sua fé num homem que mal conhecia e no qual não tinha razão nenhuma para acreditar. Mas Dunstan estava ameaçando acusá-la de cumplicidade no contrabando, então ela precisava de um álibi. Alguém que pudesse atestar sua presença em outro lugar. Alice foi a única pessoa em quem conseguiu pensar. Mas seu marido, Hawkhurst, poderia não aprovar. Selina sempre teve a sensação de que ele não gostava muito dela. Viajaram para o oeste, para longe do mar e da fortaleza. Depois de uma hora ou mais, Ian foi reduzindo a velocidade da cavalgada. A cabeça do cavalo pendia baixo, espuma branca envolvia a embocadura. Ele passou a perna por cima da cernelha do cavalo e pulou para o chão. E tirou Selina de cima dele também. — Vamos caminhar um pouco. Ela esfregou a coxa, aliviando a rigidez que sempre a atacava depois de ficar muito tempo sentada. Era bom deixar o cavalo e ficar sobre os próprios pés. Os médicos tinham recomendado muita caminhada para fortalecer os músculos da perna, embora nada fosse curar a hesitação em seu passo. Teve sorte por Dunstan não ter se importado com o fato de ela não ser um diamante perfeito, não mais a perfeita miniatura de uma deusa, mas o dinheiro, porém, resolvia muitos problemas também. — Para onde vamos primeiro? — perguntou ela. Ian sorriu e pegou as rédeas. — Para os vales. Aonde os escoceses sempre vão quando são atormentados pelos ingleses. Ela acompanhou o passo dele. — Isso eu sei. Mas onde? — Conheço um lugar onde podemos passar a noite, se conseguirmos chegar lá antes do anoitecer. É uma caminhada longa e pesada, então poupe o que puder do seu fôlego. Selina tropeçou numa pedra escondida pela urze. Ele lhe segurou o braço antes que caísse. — Tenha cuidado. Sempre me esqueço de que você é uma coisinha pequena. — Tentarei ser mais alta. — Ela deu passos maiores. Ian riu. — Você é uma mulher surpreendente, lady Selina. Qualquer outra dama que eu conheço estaria retorcendo as mãos e lamentando seu destino. — Se retorcer as mãos servisse para alguma coisa, garanto que eu faria bom uso disso. Ian olhou por cima do ombro. 60


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— Já estamos bem longe de Dunross para podermos reduzir nosso passo, eu acho. — Não sou uma inválida. Sou perfeitamente capaz de caminhar. — Estou vendo. Ainda assim, ela não deixou de reparar que ele tinha ajustado o passo ao dela. Selina concluiu que de nada serviria dizer coisa alguma. Estava claro que não faria bem nenhum. Ian a via como uma aleijada, independentemente do que ela dissesse.

Depois do que pareciam horas, sendo o som dos maçaricos e do vento os únicos ruídos, Ian parou perto de um riacho. — Vamos deixar o cavalo beber e depois montamos um pouco. Selina tentou não suspirar de alívio por não ter que caminhar mais, quando se abaixou para apanhar água com as mãos, aproveitando o frescor que escorria por sua garganta ressecada. Ian também bebeu água, depois de cuidar do cavalo, e se agachou ao lado dela. — Seria melhor, no caso de encontrarmos alguém, você não usar seu nome verdadeiro. Selina sentiu uma dor apertar o peito. Claro que ele não queria que ninguém soubesse que ela estava em sua companhia. Então Selina exibiu um sorriso radiante. — Quem devo ser? Mary, a rainha dos escoceses? Ele franziu o cenho. — A prima de um amigo, a caminho de encontrar a família. Suponho que não fale nada de gaélico. — Uma ou duas palavras, mas consigo falar com a pronúncia de vocês — disse ela, no dialeto escocês. Ele assentiu. — Ai, lembro-me de você ter feito isso antes. Foram dias até que eu percebesse que você era inglesa. — Eu sou um camaleão — disse ela, com uma risada que foi um pouquinho mais irritadiça do que ela pretendia. — Eu me adapto ao ambiente. Não era verdade. Ela se adequava em Londres. Não ali. — Podemos dizer que estudou na Inglaterra e perdeu o gaélico. Venha, temos que continuar andando. — Quanto tempo você acha que vão demorar para desistir de procurar por nós? Ele deu de ombros. — Por você? Até mandar alguma notícia dizendo que está bem, eu presumo. — Ele se curvou e entrelaçou os dedos no flanco de Beau. — E você? — perguntou ela, quando Ian se ergueu. — Sem qualquer evidência, não há razão para que me procurem. E mais uma vez ela se viu agarrada à cintura de Ian, os pensamentos girando em 61


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sua cabeça. Só queria ter certeza de estar fazendo a coisa certa ao fugir com Ian em vez de procurar o pai e negar tudo. Infelizmente, esse tipo de mentira ostensiva não era o seu forte. Se ela ao menos conseguisse pensar numa explicação lógica para ter sumido no meio da noite! Algo que não deixasse suspeitas de que havia traído o que devia ser uma confidência, embora ninguém tivesse especificamente lhe pedido para não falar no assunto. Infelizmente, Mclver estava certo: a fuga dos contrabandistas e o seu desaparecimento eram muita coincidência. E ela nem tinha certeza de que Hawkhurst poderia, mesmo que quisesse, dar o álibi de que ela precisava. Por outro lado, Selina não tinha sido vista por ninguém senão os contrabandistas. Ficou olhando para as costas de Ian. Ele tinha sido traído por um dos seus homens; se Selina tinha sido vista por essa pessoa, não importaria o álibi, haveria uma testemunha contra ela. Seria por isso que Mclver tinha puxado Ian de lado? Será que ele sabia quem os havia denunciado para os homens do fisco? Ela mordeu o lábio. Talvez fosse melhor não saber. Tal pensamento lhe provocou um embrulho no estômago. Claro que Ian não... Os contrabandistas eram conhecidos por serem extremamente perigosos quando traídos. Ah, nossa! Será que tinha saído da frigideira para o fogo? Não podia, não queria acreditar que Ian lhe faria algum mal. Ele só estava tentando ajudá-la a fugir das conseqüências de sua tolice, pois havia sido ajudado por ela. Nada mais. — Tem alguma ideia de quem entregou vocês? As costas dele enrijeceram. — Andei pensando nisso, mas não adiantou de nada. — Ele deu uma pequena risada. — Ele, sem dúvida, foi forçado a isso pelas circunstâncias. — O que quer dizer? Ian ergueu e abaixou os ombros. — Quem pode saber o que as pessoas escondem? Poderia ser uma dívida. Uma doença. Ou medo de ser expulso. Existem muitas maneiras de fazer um homem trair sua lealdade. E isso dependia do que era considerado ou não lealdade. — O que significa que nós não podemos confiar em ninguém no seu clã. Ele só respondeu depois de um longo tempo. — Vamos colocar assim. Há pessoas em que sei que posso confiar e pessoas de que não tenho certeza. — E quanto a mim? — Selina se retraiu. Precisava perguntar? Como ele poderia sequer confiar numa Albright? Uma sassenach. — Eu confio em você. — Ian parecia quase surpreso. — Mas tenho que ser honesto, também acredito que sua primeira lealdade seja para com o seu pai. Selina não podia negar isso, embora seu pai talvez não visse o assunto exatamente dessa maneira naquele momento. 62


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CONTINUARAM AVANÇANDO o dia inteiro, às vezes cavalgando, às vezes andando, as colinas ficando mais altas e íngremes a cada hora que se passava. E Selina sempre sentia a urgência de Ian, mesmo que ele jamais desse sinal de achar que ela o atrasava. E ele nem precisava — ela sabia disso. Selina às vezes tinha a sensação de que ele só parava porque ela precisava descansar. Quanto mais se afastavam de Dunross, mais começava a temer que a fuga não tivesse sido uma boa ideia. Ela certamente teria conseguido se safar da confusão. Pestanejando seus belos olhos, como Ian dissera. Ele achava que seus olhos eram belos. Quando Ian falou isso, ela estava preocupada demais para assimilar as palavras. Agora, estranha mente, elas faziam com que Selina se sentisse quente por dentro. Mais uma vez a pé, ela ergueu o olhar e tomou conhecimento dos arredores. Era tudo muito selvagem e bonito. Colinas nevoentas se espalhavam em todas as direções, seus contornos suavizados pelo urzal e escoriados pelo estranho afloramento de granito antigo. Selina havia se encantando com aquilo tudo naquele distante verão em que o pai a levou para lá, depois da morte da mãe. Ele estava desolado e quis retornar ao lugar onde havia passado a lua de mel. Depois fugiu para Inverness — por questão de negócios, dissera ele —, deixando-a prantear sozinha. Mais tarde, seu pai admitiu que ela era muito parecida com a mãe é que ele não conseguiu suportar, mas, naquela época, Selina se sentiu abandonada. Pelos dois. Com 16 anos e completamente solitária, estava pronta para se apaixonar pelo primeiro rapaz bonito que atravessasse seu caminho. Naturalmente, tinha que ser a pior pessoa possível. Se, naquela época, Ian tivesse de fato sugerido que fugissem, ela teria dito “sim” num piscar de olhos. Ele foi o cavaleiro de armadura reluzente no dia em que a carregou nos braços de volta para a fortaleza. Fez com que ela se sentisse suave e feminina. Uma onda de anseio por aquela sensação preencheu o lugar que ela se recusava a admitir que estava vazio em seu coração. Não devia estar notando isso agora, quando tinham tantas coisas mais importantes para pensar. — Acha que vamos chegar nesse lugar que você conhece até o cair da noite? Ian olhou para o céu. — Sim. Não faltam mais do que um ou dois quilômetros. Você se saiu muito bem para uma moça sassenach. Muito mais do que eu esperava. Um elogio, de fato. Embora ela pudesse passar sem o lembrete de que era inglesa. Era estranho se sentir feliz em circunstâncias tão peculiares. — Quanto tempo acha que ainda vai levar para chegarmos em Hawkhurst a partir de lá? — Assim que atravessarmos a fronteira e pegarmos uma diligência, não deve demorar mais do que dois dias. Eles chegaram ao topo de uma colina e, como nada além de colinas se estendia diante deles, a enormidade da distância que teriam de viajar se tomou real. — O que você vai fazer depois? 63


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Ian deu de ombros. — Voltar e continuar como antes. — Mais contrabando, suponho. Até finalmente capturarem você. Ele lhe lançou um olhar que, ao mesmo tempo, revelava que não se importava e que estava cansado do mundo. — Não vão. E o que mais podemos fazer até a lei que separa as terras Altas do resto da Escócia e torna impossível sobreviver aqui, e que nos pune por apoiar o verdadeiro rei ser mudada? Tanta amargura. — A lei pode ser mudada? — Quem poderia tomar nosso partido em Westminster? Não o pai dela. Ele não tinha interesse na propriedade escocesa, exceto como local de esporte e instrumento de vantagem política. — Lorde Carrick? — Ele faz o que pode, mas Carrick é uma voz entre muitas. O povo das Terras Altas não é popular com a aristocracia inglesa. — Não devia ser uma questão de popularidade. As leis devem ser justas. Ian sorriu para ela. — Deviam ser. Mas, já que não são, lidamos com elas à nossa própria maneira. Havia bastante orgulho na maneira com que ele falava. Claro que seria preocupante para um homem como Ian implorar ajuda. Mas, se ele tivesse levado o caso ao pai dela, será que ele não teria tentado ajudar? Selina parou e olhou para ele. — Pediu ajuda ao meu pai? — Albright? Só pode estar brincando. A amargura e a zombaria na voz dele a cortaram como uma lata. Um tiro foi disparado, o som ecoando pelas colinas. Ian pulou e agarrou o braço com um grito, depois girou. Agarrou o braço de Selina e a puxou para o chão. — Mantenha a cabeça abaixada. — Estão atirando em nós. — O choque a deixou tonta. — Sim. — Ele se ergueu sobre os joelhos e olhou para baixo da colina que tinham acabado de subir. Praguejou. — Soldados. Não vão demorar a nos alcançar. Abaixado, correu alguns passos até o garanhão, puxou o cobertor das costas do animal, enrolou-o e amarrou ao comprido no lombo. — O que está fazendo? Ian lhe deu uma olhada impaciente, depois começou a falar baixinho na orelha agitada de Beau. Para o choque dela, ele deu um forte tapa nas ancas do animal, que saiu disparado num galope. Deitada na urze, ela fitava o cavalo com pavor. 64


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— Por que fez isso? Abaixando-se, Ian pegou o alforje e puxou a mão dela. — Para ganhar tempo. Mantenha a cabeça abaixada até chegarmos ao cume da colina. E em seguida estavam correndo, primeiro abaixados, depois, uma vez que tinham passado o cume e já desciam a encosta, completamente inclinados. O coração dela batia contra as costelas. A respiração vinha em lufadas curtas. Ela escorregava atrás dele, tentando manter a cabeça baixa, imaginando uma bala atingindo suas costas a qualquer momento, ao mesmo tempo em que queria se deitar no chão e colocar as mãos sobre a cabeça. Pressentia que não estava indo rápido o bastante para Ian. O ar chispava para dentro e para fora dos pulmões. As pernas, já cansadas, pareciam pesadas como chumbo. Selina realmente não conseguiria ir adiante. Largou a mão dele e se deixou cair sobre a urze, tentando recuperar o fôlego. — Vá. Deixe-me aqui. A olhada que ele lhe deu por baixo das sobrancelhas foi feroz e intransigente. Antes que Selina percebesse o que ele pretendia, Ian a ergueu nos braços e a atirou sobre o ombro. E disparou, numa desajeitada corrida saltitante. A cada passo, o ombro afundava na barriga dela e empurrava o ar para fora do peito. O sangue correu para a cabeça, pendurada às costas dele. Selina não sabia o que era pior, a dor sob as costelas ou a dificuldade para respirar, mas suportou em silêncio, contente porque Ian não a abandonou para salvar a própria pele. Ele nem parecia notar o preso. Tinha tanta agilidade e firmeza nos passos quanto os cervos que vagavam por aquelas colinas. Mas, depois de algum tempo, até a respiração dele ficou rasa e acelerada. Subiram mais duas colinas e depois ele parou. — Abaixe a cabeça. — Ele se atirou ao chão e ela fez o mesmo, deitada de costas, tentando recuperar o fôlego. — Se eu mandar você correr, siga para o riacho lá embaixo — instruiu ele, a voz uma lixa áspera. Arrastando-se como um caranguejo, ele foi à elevação atrás deles e mais uma vez se deitou, espiando, Selina tentou ouvir, mas só conseguia escutar o sangue correndo pelos ouvidos. Manteve o olhar fixo em Ian, pronta para correr se ele desse sinal. Ou ao menos tentar correr. Ela não tinha certeza de que poderia dar outro passo. Ele voltou até ela com um sorriso no rosto. Parecia, de fato, estar se divertindo. Selina queria sacolejá-lo, então conseguiu ficar de pé. — Presumo que tenham fisgado a isca. — Fisgaram, sim. — O sorriso dele se alargou. — Se tivermos sorte, Beau os levará de volta para Dunross. Ela não pôde deixar de sorrir também. A expressão de Ian se tornou séria. — Não estamos fora do bosque ainda. Eles, sem dúvida, possuem uma luneta e, se perceberam que não há ninguém montado, farão meia volta. Temos de correr. — Correr para onde? Ian sorriu. Seus olhos azuis dançavam. 65


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— Para lá. Dessa vez, ele a conduziu cruzando a encosta, em vez de descer. Parecia estar vasculhando o chão, mas ela não conseguia imaginar por quê. Não havia nada ali. Ian se ajoelhou e abriu a urze ao redor de um grande rochedo. — Ah, está aqui. — Puxou o que parecia serem moitas retorcidas de urze morta sobre o chão firme, mas era como se fosse um telhado cobrindo uma cavidade funda na encosta da colina. — Pode entrar. Ela inspirou um pouco de ar fresco e entrou rastejando. Um cheiro estranho encheu suas narinas. Fumaça de turfa e mais alguma coisa. Confiando que ele sabia o que estava fazendo, Selina se virou e esperou. Ele veio em seguida, puxando o mato de volta ao lugar. Não estava inteiramente escuro lá dentro. Quando os olhos se acostumaram, Selina percebeu que estavam em alguma espécie de sala terrosa e que a luz do dia entrava pela fenda no teto feito de arbustos. O espaço, uma espécie de caverna terrosa, continha dois banquinhos, um colchão de palha podre num canto e um objeto de metal enferrujado de pé nos restos de uma fogueira. Um pedaço retorcido de metal pendia ao lado da chaminé. — Que lugar é esse? Ian a puxou e levou um dedo aos lábios dela. — Escute. Mais alto que as batidas de seu coração, ela ouviu um tipo diferente de batida. Cavalos. O som vibrava pelos pés dela. Pareciam estar bem perto. Será que pisoteariam aquele teto frágil e terminariam caindo em cima deles? O som da própria respiração e das batidas do coração enchiam seus ouvidos. Só podia imaginar o que estava acontecendo lá fora. Sem pensar, ela se aproximou do corpo grande e protetor de Ian. Braços fortes a envolveram, abraçando-a com firmeza. Selina se aconchegou nele, ouvindo-lhe as batidas fortes e constantes do coração em vez do som dos cavalos que se aproximavam, tirando força e coragem do calor e da proximidade de Ian, querendo se enterrar ainda mais quando os soldados se aproximaram a ponto da respiração acelerada dos cavalos ser audível. Lentamente, os ruídos cessaram. — Seja lá quem estiver no comando, tem cérebro — murmurou Ian, junto ao cabelo dela. — Acho que o resto do grupo seguiu Beau, mas ele despachou um par para esse lado por garantia. Voltarão no Instante em que descobrirem que foram enganados, sem dúvida. — Que consolador! — disse ela, afastando-se dele. Parecia que Ian estava relutante em soltá-la, como se tivesse encontrado certo conforto em tê-la nos braços. Que imaginação ela tinha! Quanto antes saíssem dali, melhor. EIa ajeitou o cabelo, alisou as saias, esperando não estar com cara de quem tinha se agarrado nele como se fosse uma criança assustada. Ian deu um sibilo alto. Um sibilo de dor. Selina se lembrou do salto e do grito dele logo após o tiro. — Acertaram você? 66


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EIa se sentiu enjoada. Nauseada. O pai não ordenaria que atirassem. Não mesmo. — Um arranhão. Foi munição perdida. Os joelhos dela ficaram fracos. — Eu devia dar uma olhada nisso. — Está tudo bem. Selina queria acreditar nele. — Não é melhor dar uma olhada só para ter certeza? Está escuro demais aqui para ver alguma coisa. Vamos lá fora. — Ainda não. Não enquanto não tivermos certeza de que não estão voltando. Vai ser difícil que voltem a este ponto exato. Já que imaginam que estamos correndo, vamos ficar parados. Partiremos pela manhã. Com mais cautela. — E Beau? — Ele está acostumado com essas colinas. Vai voltar para casa. — E se o pegarem? Ian deu de ombros. — Pegarão em algum momento. Ou correndo ou na minha casa. Ele foi um cavalo do exército antes que eu o comprasse. Provavelmente ficará feliz em reintegrar a força militar. Mas Ian não estava feliz. Selina conseguia ouvir isso na voz dele. Ela, mais uma vez, olhou ao redor da caverna. O cheiro possuía um aroma musgoso subjacente. — Que lugar é esse? Ian apertou a boca, como se preferisse não falar. Ela aprumou o corpo para conter a mágoa com a desconfiança dele. — Era uma destilaria ilegal de uísque. Ele confiava nela, afinal. Algo dentro de Selina se abrandou. Ela se sentou num banquinho, olhando para Ian. — Como sabia que estava aqui? Ele sorriu, os dentes brancos faiscando na penumbra. — Fervilhando de perguntas, não é, lady Selina? — Como sabe que os soldados não sabem sobre este lugar? — Ninguém sabe. — Ele se agachou e cutucou ao redor da fogueira. — Não é usado há anos. Era do meu pai. Não era surpresa que ele não quisesse dizer para onde estavam indo. De um modo estranho, ela se sentiu honrada. — Seu braço está mesmo bem? — Arde como fogo. Selina se encolheu. — Você poderia ter sido morto. — Ou talvez ela. — Sim. — Ian apanhou e vasculhou o alforje, colocando seu conteúdo no chão. — 67


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Pederneira. Duas velas. Aveia. Broas enroladas num pano. Um odre. — Ele o sacudiu e algo gorgolejou lá dentro. — O que é, água? Ian abriu a rolha e cheirou. — Uma coisa melhor. Uísque. Selina bufou. — Água seria melhor. Ele deu uma risada, e o som foi cálido, baixo e fácil. — Tem água limpa no riacho, menina. — Então agora ficamos sentados aqui e esperamos amanhecer — disse ela, com um suspiro. — Você tem algum lugar para onde possa ir depois? — Tenho um amigo a sudeste daqui. Capitão Hugh Monro. Ele tem contatos. Talvez nos empreste um cavalo. Ou até uma carroça. Ian olhou para ela. — O problema é que não sei se ele entenderia o meu lado. Ele é um homem muito temente às leis. Duvido que aprove o contrabando, qualquer que seja a razão por trás disso. E, além disso, fica a mais de um dia de caminhada. Mais caminhada. E preocupação com tiros. — Vamos nos acomodar da melhor forma possível esta noite — disse ele. — Quando escurecer, eu busco água no riacho. Comemos a broa e deixamos a aveia de molho para amanhã de manhã. — Parece muito apetitoso — murmurou ela. Ian deu uma gargalhada. — Um banquete. Ela esfregou os braços. O calor adquirido na caminhada e na corrida havia acabado. O frio agora se infiltrava da terra úmida ao redor. Logo estaria escuro e muito mais frio. — Podemos acender uma fogueira? — Se não tivéssemos sido vistos, eu arriscaria, mas eles podem voltar depois que pegarem Beau. Teriam que passar sem calor, então. Havia um cobertor para os dois. Infelizmente, o outro tinha ido embora com o cavalo. Mas Ian tinha seu kilt, que havia secado no transcorrer do dia. — Por que sua família abandonou a destilaria? Ian fez uma careta. — Os almotacéis descobriram e destruíram tudo. Vê, a caldeira foi amassada com um martelo. Ela deu uma olhada no fogão estranho. — Como isso funciona? — Essa caldeira de metal é o primeiro alambique, e quando é aquecido com o fogo da turfa o vapor contendo o álcool sobe pela chaminé e depois desce a serpentina, aquele cano espiralado ali, e entra no segundo alambique. Tudo o que restou aqui é a primeira 68


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parte do processo. Meu pai costumava preparar a mistura no celeiro de um fazendeiro daqui e depois a trazia para cá para transformá-la em uísque. E era um bom uísque. Ainda temos um ou dois tragos sobrando na nossa adega. Havia orgulho na voz dele. Orgulho do uísque ilegal. Era um mundo no qual ela era uma estranha. Tal pensamento a deixava um tanto abatida. — Melhor comermos agora, enquanto ainda conseguimos enxergar. — Ele ergueu o olhar e ela percebeu que a luz tinha baixado muito. Ele desembrulhou as broas e lhe entregou uma. Eram surpreendentemente saborosas. Ou ela estava tão faminta que qualquer coisa teria gosto bom? Eram seis no total. Selina comeu duas. Quando Ian já havia devorado três delas, olhou para a que restava. — Você quer essa? — Ah, não — disse ela, tranqüila. — Não conseguiria comer mais nada. Você termina. Ian não falou nada. Selina ergueu o olhar e viu que ele a observava. Era difícil desvendar a expressão dele; os olhos pareciam muito escuros. — Alguma coisa errada? — Por que está fazendo isso? — Fazendo o quê? — Mentindo para mim nessa vozinha estúpida. Coma a broa. Ela ficou corada. — Você precisa mais do que eu. — Certo, e eu sou o tipo de homem que tira comida da boca de mulheres e crianças. — Ele se levantou e curvou para revirar os entulhos no canto. Um resmungo de satisfação disse que ele tinha encontrado o que estava procurando. Quando Ian ficou de pé, Selina viu que ele estava com um pote de metal velho e amassado na mão. Ela não entendia por que ele estava tão satisfeito. Ian pareceu perceber o espanto dela. — Eu me lembro de ter usado isso da última vez em que estive aqui. Se tivesse sumido, teríamos que usar o odre de água. — E jogado o uísque fora — disse ela. — Nunca. — Você prefere ficar sem água a jogar o uísque fora. Eu devia ter adivinhado. — Uisge-beatha, menina. A água da vida. Selina o observou sair, com um sorriso nos lábios, depois atacou a ultima broa.

Capítulo Nove 69


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Quando ele retornou com a água, a habitação deles estava escura como breu e o frio permeava o ar. Sentada no banquinho, enrolada no cobertor, Selina queria muito que pudessem acender uma fogueira. Forçou os dentes a não baterem, embora conter os tremores fosse mais difícil. O som da respiração de Ian encheu o pequeno espaço. Ela o pressentiu revirar coisas por ali, ouviu o retinir de metal na rocha e adivinhou que ele tinha colocado o pote d 'água no chão. — Esqueci o quanto a noite pode ser escura aqui — murmurou ele. E fria, Selina queria acrescentar. Ela estremeceu. — Tem certeza de que não podemos acender uma fogueira? Ian hesitou, depois suspirou. — Seria um erro. Mas acho que podemos acender uma das velas A chama é muito pequena para ser vista de grande distância. O som de aço raspando na pederneira só a fez pensar mais num fogo quentinho. Mas, quando o pavio pegou e a pequena luz acendeu, lançando sombras nos cantos do pequeno covil, o lugar pareceu mesmo mais quente. Então ela notou a careta e a maneira como Ian flexionou a mão esquerda. Selina se levantou do banquinho. Era coisa velha e não assentava direito no chão, mas era tudo o que tinham. — Sente-se para que eu veja o seu braço. — Está ficando um pouco mandona, não é? — Sente-se. Ele se sentou. Selina respirou fundo. — Talvez você deva tirar o seu paletó, para que eu possa ver como o ferimento realmente está. Ficar doente não vai nos adiantar de nada. — É, acho que você tem razão. — Queria ter pó de basilicão. Parecendo surpreso, ele tirou um braço do paletó e depois, encolhendo-se, puxou devagarinho o outro braço. O tecido estava escuro de sangue. Selina ofegou. Seu estômago revirou. O sangue pareceu drenar da cabeça e o pequeno espaço começou a girar. O paletó dele tinha escondido a extensão do ferimento. — Ah, Ian! — sussurrou ela. — Você precisa de um médico. — Não é tão ruim quanto parece — respondeu ele com os dentes trincados, enquanto puxava o tecido do ferimento. Então praguejou baixinho. Com a garganta seca, Selina engoliu. — Melhor nós limparmos isso. 70


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Olhando para cima, ele ergueu uma sobrancelha. Seus olhos pareciam brilhar com divertimento. — Nós? EIa respirou fundo, para se tranqüilizar. — Eu, então. Olhe, está sangrando de novo. Tire a camisa. Agora Ian parecia realmente espantado. — Tudo bem. — Ele remexeu no colarinho com a mão boa. Selina lhe afastou a mão. — Permita-me. — Parando diante dele, com a luz que vinha do alto tornando cada tendão e osso tão definido e claro quanto um retrato conforme cada respiração expandia e contraía o peito, Selina sentiu as mãos tremerem. De fato, seus próprios ossos tremiam com uma força que ela não conseguia conter realmente. Quando respirou para se controlar, foi como inspirar o ar, a essência dele. Ela sentiu um choque. Como poderia ser? Não podia. Estava sendo estúpida, assim como quando era menina. Na vida real, eles estavam em lados opostos de uma linha desenhada num mapa. Obrigou as sensações inapropriadas a ficarem de lado. Aquele homem estava ferido e esperando pacientemente sem reclamar, com o queixo erguido para que ela desfizesse o maldito nó. A gravata se soltou e Selina deixou o tecido de lado e foi cuidar dos botões. Despindo um homem, nunca na vida ela tinha feito algo tão ousado. O colarinho abria a cada botão que ela livrara do aprisionamento, revelando lentamente o vale na garganta forte, os ossos da clavícula, uma nesga de peito levemente forrado com caracóis escuros que roçaram os nós dos dedos ao soltar o último gancho, enfeitiçantes para as pontas de seus dedos e seu olhar. Tais pensamentos só levavam em uma direção. Por uma trilha que não lhe faria bem nenhum. Selina deixou as mãos caírem e recuou um passo. Ergueu o olhar e descobriu o dele fixo em seu rosto. Intenso. Abrasador. Ian estava respirando mais rápido do que antes. Ele também sentia desejo. O desejo pairava entre eles, quente e pesado. Aterrorizante. Com esforço, Selina fez um leve gesto com a mão. — Você devia ser capaz de tirar a camisa sozinho. O fogo no fundo dos olhos azuis acendeu, depois morreu. — Sim, eu sei fazer isso. — Ele soltou a camisa da calça e usou o braço bom para tirá-la pela cabeça, desvelando o corpo de um deus nórdico que ela só havia ousado espiar na caverna à beira do mar. Os músculos dos seus braços eram entalhados e rijos; o peito, vasto e esculpido por baixo dos pelos superficiais. Em face de tamanha magnificência, respirar estava quase fora de questão. Mas ela precisava respirar. — Estenda o braço. 71


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Selina se ajoelhou perto do joelho dele. Ian segurou o braço com a nutra mão, inclinando a cabeça para olhar o ferimento. As testas deles colidiram. Uma risadinha nervosa escapou dos lábios dela. O calor incendiou seu rosto. A garotinha de escola estava de volta. Selina se sentia tonta, e não era porque estava vendo sangue. Ian resmungou. — Não está tão ruim. — Não consigo ver. Ele se inclinou para o lado. Um talho feio sulcava o braço. A bile subiu até a garganta. Selina a engoliu. — Tem razão, parece que não passa de um corte na carne. — Ela controlou o tremor. — Vou limpar e fechar isso. O sangue escorria livremente até o cotovelo depois que ele havia livrado a pele da camisa. Selina pegou o frasco. — Se eu me recordo bem, isto é melhor do que água para um ferimento. — Um desperdício terrível, menina. — Guardarei um gole para você. Dê-me a sua faca. Ele a olhou de esguelha. — Porquê? — A menos que tenha um lenço bem limpo, preciso de algum pano para comprimir o ferimento. Vou usar a sua gravata para mantê-lo no lugar. — Selina olhou para a camisa dele. Ele precisaria vesti-la outra vez, com ou sem manga ensangüentada. Levantou a saia e olhou para a bainha de suas anáguas. A renda da primeira estava em farrapos depois de ficar encharcada de água salgada, cavalgar um cavalo e se arrastar pelo urzal. Agora serviria para estancar o sangue. Ian puxou o punhal de dentro da meia e o entregou para ela, pelo punho. Selina sacudiu a cabeça. — Eu estico o tecido e você corta. Tenho certeza de que fará um trabalho melhor do que eu. Ele ergueu uma sobrancelha e a olhou de uma maneira um tanto admirada, mas se curvou para cumprir a tarefa. Era um pouco estranho ficar com o rosto tão perto das pernas dela, mesmo que só pudesse ver pouco mais do que os sapatos, já que havia mais duas camadas de pano debaixo da primeira anágua. Mulheres portuguesas adoravam anáguas. Ian logo estava com uma longa tira cortada da barra. — Corte-a em dois — disse ela — para que eu use um pedaço como trapo para lavar o ferimento. Uma ruga surgiu na testa dele. — Onde aprendeu tal habilidade? 72


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— Não chamaria de habilidade. Eu não suporto ver sangue. Mas minha amiga, lady Hawkhurst, me convenceu a ser voluntária no hospital para marinheiros feridos que ela custeia. Eu lia para eles e enrolava bandagens. — Ela encharcou um dos trapos com uísque. — Então não tem experiência em fechar ferimentos e coisas do tipo? — Nenhuma — disse ela, animada —, mas vi como se faz. — Não precisava contar que tinha vomitado no primeiro penico por ter olhado no momento errado. Em vez disso, trincou os dentes e tocou o corte escabroso com o pano. Ele inspirou sibilando e Selina esperou por uma enxurrada de imprecações. Ian permaneceu completamente calado. Impressionada, ela continuou limpando. Se ele conseguia suportar a dor, ela poderia suportar a visão. Embora, se é que era possível, a tontura de antes tivesse piorado. Ela continuou tocando e limpando até o sangue seco sumir. O ferimento estava feio — com bordas rasgadas e vertendo sangue novo. O negro tomava as margens de sua visão. Selina sentiu-se cambalear. Apertou bem os olhos, recuperando o equilíbrio e lutando contra o enjoo. O ferimento não era tão ruim quanto o da sua própria perna. Uma rápida olhada naquilo e ela havia desmaiado, fria. Trincando o queixo, ela tentou se lembrar do que Alice havia dito sobre os sintomas de uma infecção em andamento. Vermelhidão? Pus amarelo? Nenhum sinal de algo parecido. Ainda. Ela desviou o olhar e respirou fundo pelo nariz. — Não há muito que eu possa fazer, exceto fechá-lo. — Fico contente por ouvir isso — disse ele, irônico. O olhar dela se voltou depressa para o rosto dele. A boca estava tomada por linhas de dor. Selina ficou tão ocupada tentando não desmaiar que não pensou no quanto aquilo devia estar doendo, já que ele não fez som nenhum. — Porque ele era forte e ela, fraca, — Fique parado — disse ela bruscamente. Então colocou o pano sobre o ferimento e enrolou a gravata ao redor dele, amarrando-o com um nó. Ian flexionou a mão e Selina observou, fascinada com a maneira como o músculo no braço se avolumava sob a bandagem. Ian fez de novo. Dessa vez, algo aconteceu com o peito dele: pareceu ficar mais firme e desenvolver mais definição. Ela quase se esqueceu de como estava se sentindo enjoada, até o olhar bater na camisa rasgada e ensangüentada. O cômodo oscilou, entrando e saindo de foco. Os joelhos dela se dobraram e as sombras saíram dos cantos para tomar a sala. E ela estava caindo. — Selina? — perguntou Ian, como se estivesse muito longe. Um braço forte lhe envolveu a cintura. E a puxou contra algo quente e rijo. Ela desabou, a barriga ofegando enquanto a vela se recusava a permanecer num lugar só. — Selina. Ian. Ian a segurava. Ela fechou os olhos e esperou que as sensações terríveis passassem. Lentamente, ficou ciente de que estava sentada nos joelhos dele, aninhada em seus braços. Ele afagava suas costas. Selina abriu os olhos e ficou contente por ver 73


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que nada estava girando. — Sentindo-se melhor? — murmurou ele, a voz baixa ao seu ouvido, a ondulação do seu “r” uma doce sensação de conforto na boca do estômago. Ela sempre parecia se sentir melhor quando Ian estava com os braços ao seu redor. Era uma pena que ele não pudesse mantê-los assim. — Sou tão covarde — disse ela, tentando se sentar, mas Ian a manteve junto ao peito e Selina percebeu que ele a embalava gentilmente. — Não, você não é. Foi muito corajosa. Eu prometo que tudo ficará bem — sussurrou ele. — Eu a levarei em segurança até sua amiga e vamos resolver tudo isso. Selina gemeu e riu ao mesmo tempo. — Não estou preocupada com isso. Ver sangue sempre me deixa enjoada. Ele deixou de embalá-la um pouquinho, depois continuou. — Então eu fico ainda mais grato, menina. Ah, aquela maravilhosa e profunda voz aveludada, tão próxima ao seu ouvido, Selina estava derretendo, ardendo com uma febre de anseio e desejo. — Você deve me achar uma inútil completa. — Você é mais corajosa que qualquer um que eu conheço, pois sabia como isso poderia afetá-la. Mas ela não tinha pensado. Tinha agido por instinto. Parecia nunca pensar direito quando estava por perto dele. Uma pontada de consciência fez com que Selina erguesse o rosto. Uma leve curva na boca e o brilho nos olhos fez o coração dela apertar. Não conseguiu resistir à tentação. Ergueu as mãos, levou-as à nuca dele e o beijou em cheio nos lábios. Ian gemeu baixinho. Os lábios dele se entreabriram junto aos dela. A língua traçou o entorno dos lábios. Parecia delicioso. Ela sentiu uma comichão nas costas, as mãos envolveram a cabeça dele, sentindo o suave caracol do cabelo entre os dedos. A mão de Ian foi ao rosto dela, os dedos tremendo com o poder daquele momento. Nunca o coração dela bateu tão rápido ou o corpo esquentou tanto com um toque tão leve. Ele era um homem grande, imenso se comparado a ela, e que tremesse ao mero toque dos seus lábios era de fato inebriante. Muitos homens a desejaram ao longo dos anos, cobiçando-a e declarando amor, mas eles só tinham visto o que ela queria que vissem. A perfeita filha de um nobre. O diamante de primeira água. Os modos impecáveis. A sagacidade paqueradora. Este homem conhecia suas fraquezas, e ainda assim tremia. Tal conhecimento derreteu seus ossos. Ela entreabriu os lábios e o admitiu dentro de sua alma. O beijo não era unilateral. Ah, não. A língua dela deslizou lascivamente pela dele, com gosto de uísque e homem sensual, enquanto ela inalava o cheiro de cavalo, couro e ar fresco, permeado com fumaça de turfa. Sensações sensuais ondulavam no corpo dela a cada batida do coração. Selina se arqueou contra ele, pressionando os seios na rígida parede de seu peito, 74


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envolvendo o pescoço dele com seus braços e submetendo-se à própria fome. Ele deu um gemido que veio do fundo da garganta, remexendo-se debaixo dela, deixando-a ciente da parte masculina que pressionava sua coxa através das camadas de roupa. Selina lhe aspirou o perfume, maravilhando-se com o calor e a sensação dos músculos e tendões firmes sob suas mãos exploradoras. Respirando com dificuldade, Ian se afastou lentamente, olhando no rosto dela. Será que conseguia ver em seu rosto o assombro e o espanto desenfreados por seu corpo? Será que conseguia sentir o calor queimando em seu ventre, em seus seios, fluindo por suas veias? Impotente diante da necessidade, Selina ergueu o olhar, esperando. — Você tenta o próprio demônio, lady Selina. Ela não queria o demônio. Queria Ian. Olhou para ele mais uma vez com anseio e desejo, e uma doce suavidade que fez com que suas entranhas parecessem abertas e ansiosas. Ian se libertou das mãos que seguravam seu pescoço, mas as manteve presas nas dele. — Isso tem que parar — disse ele asperamente, desvencilhando as mãos das dele. — Não me quer? — perguntou ela, sentindo-se subitamente atordoada, mesmo sabendo que a pergunta era injusta. Sentia o desejo dele, insistente, rampante sob suas nádegas. — Não quero? — rosnou ele. A boca desceu num beijo castigador, cheio de ardor, paixão e calor. A mente de Selina se recusava a formar um único pensamento. As mãos dela, livres das dele, vagaram pelo peito amplo e escultural, flutuaram pelas costas, medindo-lhe a largura e a força. — Sem ar, eles se separaram devagar, os peitos subindo e descendo em perfeita harmonia enquanto Ian mordiscava e lambia seus lábios, seu queixo, sua mandíbula. Ele provocou o ponto sensível abaixo da orelha, respirando em seu pescoço. — Quero você. Mas, se fizermos isso agora, não terá volta. Teremos que nos casar. As palavras foram como um jato de água fria. Ter que casar? Estava claro que era algo que nenhum dos dois queria. Não era? Ian gemeu e ficou em pé com ela ainda nos braços. Colocou-a no banquinho e abriu a abertura que levava lá para fora. — Aonde você está indo? — Para o desapontamento dela, o pânico pormeava a voz. — Volto logo. — Isso não é uma resposta — reclamou ela. Tarde demais. Ele já tinha saído. Seu estômago revirava por causa da vergonha que sentia pela própria covardia. Por que ele a abandonaria ali? Não fazia sentido, mas o medo era bastante real. O medo de ser abandonada como seu pai havia feito no ano em que a levou para Dunross. Selina temeu por anos que ele a esquecesse novamente, quando ela estava na escola, quando ele se ausentava a negócios. Mesmo agora, quando sabia a razão, Selina odiava saber que pessoas importantes para ela podiam simplesmente partir. Era melhor não deixar que 75


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se tornassem importantes, pois assim não haveria motivos para preocupação. E Ian não tinha partido. O som era de quem estava vasculhando o urzal. Estaria caçando? Ele voltou em seguida, empurrando algo à sua frente. O cheiro de vegetação recém-cortada encheu a caverna. Combustível para o fogo? Mas, não, ele não se encaminhou até a lareira. Ele a espalhou num dos cantos. — Dê-me seu cobertor — disse ele. — Por quê? — Até a ideia de perder mesmo o pouco calor que o cobertor oferecia era desagradável. — Precisamos dele para fazer uma cama. — Uma cama? — Sim. Não podemos dormir sentados. A urze está bastante flexível para nos servir por uma noite. Com um cobertor debaixo de nós e meu kilt como manta, ficaremos mais quentes que torrada. Drew e eu sempre fazíamos isso quando éramos garotos. Uma cama. Com ele, depois de seu comportamento lascivo? Selina corou da cabeça aos pés. Esse devia ser o momento para fazer objeção. Mas, de alguma forma, as palavras não se formavam. Ela se levantou e lhe entregou o cobertor. Ian o estendeu sobre as folhagens. — Deite-se. — A voz era soturna. E, quando Selina fitou o rosto dele, viu a boca disposta numa linha severa. Qual era o problema dele? Selina se acomodou num dos lados da cama improvisada, olhando para ele. Ian levou as mãos ao cinto, depois deu uma olhada em Selina. Pegou a camisa e a enfiou pela cabeça. — Feche os olhos. — Um pouquinho tarde para modéstia, não é? — comentou ela contendo a vontade de dar risadinhas. Ian virou de costas, murmurando um som que ficava entre uma imprecação e uma risada. Um sopro dele apagou a vela e um momento depois veio o som do cinto sendo desafivelando. A mente rebelde de Selina viajou de volta para a cena na caverna, com ele lá parado se vestindo. Agora ele estava se despindo. Ela não precisava de uma vela para ver. Praguejando em silêncio, Selina tentou não visualizar o que estava acontecendo. Um momento depois, sentiu o calor dele ao seu lado e o peso da Iã grossa do kilt assentar sobre seu corpo. A lã ainda retinha um pouco do calor dele. Selina havia dormido em colchões mais macios, coberta por lençóis mais finos, mas, dado o estado de sua exaustão, não podia dizer que alguma tinha sido melhor que aquela cama de urze. — Obrigada — agradeceu ela. — De nada. Selina estremeceu. 76


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Ian lhe envolveu os ombros com o braço e a puxou para si, prendendo-a junto dele de modo que a cabeça de Selina ficou descansava em seu peito. Imediatamente, ela se sentiu aquecida pelo calor dele, pela sensação da mão em sua cintura. Mas era mais do que isso, eIa se sentia segura. Protegida. Era maravilhoso. Selina se aconchegou mais. — Calor corporal — disse ela, rindo suave, sentindo-se maliciosa e um pouco tonta por causa da súbita falta de fôlego. — Boa noite — murmurou, erguendo a cabeça para beijar o rosto dele. Ao menos estava segura de que era isso o que pretendia, mas, em vez disso, encontrou-lhe a boca. Foi correspondida com um beijo, longo e profundo, até seus sentidos planarem. Ian a virou sobre as costas, invadindo sua boca com a língua, envolvendo delicadamente os seios, afastando-lhe cuidadosamente as pernas com a coxa firme. Selina gemeu quando seu centro feminino reagiu à pressão. Os quadris arquearam para cima quando aceitou o beijo cada vez mais profundo de Ian. De repente, ele se afastou como se tivesse sido picado e murmurou uma imprecação. Rolou para longe de Selina, que conseguia ouvir o som de sua respiração entrecortada no escuro. — Ian — chamou ela, hesitante. — Vá dormir, pequena sassenach. Eu não toco em você e você não toca em mim. Estamos de acordo? — Parecia que o que para ela tinha sido um momento de felicidade, tinha sido para ele... bem, algo inconveniente. Ian ficou perfeitamente imóvel ao lado dela, desacelerando a respiração, fingindo dormir, sem dúvida. Inacreditável! Estava deitada junto a um homem quase nu, nos ermos da Escócia, um homem consideravelmente atraente que lhe dera um beijo de fazer perder os sentidos, e ele estava agindo como se fosse um irmão. Talvez a ideia de fazer amor com uma aleijada fosse mais do que ele poderia suportar. Seria difícil culpá-lo sé esse fosse o caso. Selina precisava admitir que as cicatrizes eram muito feias e seu passo manco não era nada atraente. Teve sorte por Dunstan estar disposto a ignorar seus defeitos. Seu estômago pesou. Dunstan tinha feito isso por dinheiro. Mas também era um bom homem. Gentil. Doce. Um pensamento, claro como cristal e temerário, surgiu do nada. Pela primeira vez desde que deixaram a fortaleza, a mente dela parecia afiada. Selina empurrou o ombro dele. — O que foi agora, menina? — resmungou ele, como se estivesse mesmo dormindo. — Meu pai vai adivinhar que fui procurar Alice. Eu sempre procuro. — E daí? — Ah, agora ele parecia mais desperto. — E se ele chegar até ela primeiro? — Qual o problema disso? — Assim o álibi não vai funcionar.

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Capítulo Dez

Na manhã seguinte, eles seguiram para o sul. Enquanto caminhava do lado dele, Selina notou que a perna mal doía. Os médicos estavam certos, andar lhe fazia bem, embora eles não tivessem visualizado seus dias de perambulação pelo urzal. Mesmo assim, ela precisava de toda a concentração para não tropeçar nas moitas e nos afloramentos rochosos. Enquanto caminhavam, Ian sempre examinava as colinas, à frente e atrás, especialmente antes de chegarem ao topo de cada uma. Sempre que ele sinalizava para que se abaixassem, o coração dela subia até a garganta. Ian estava claramente disposto a não ser surpreendido como no dia anterior. A travessia pela colina seguinte os conduziu a um vale tão pequeno que era mais uma fenda. Um sítio estava aninhado em seu penhasco escarpado. Era uma minúscula cabana com telhado de turfa preso por uma teia de cordas atadas a rochedos. Duas pessoas conversavam diante da porta de entrada, uma velha encarquilhada e uma menina esfarrapada com uma cesta no braço. Galinhas cor de ferrugem estavam ciscando na areia aos pés delas. — Vamos esperar que vovó tenha uma panela de cozido no fogo — disse Ian. — E uísque na mesa. O estômago de Selina roncou ao pensar em comida quente. Ela acelerou o passo. Ian a deteve com um toque no braço. — Espere aqui. Vou ver se as coisas são o que parecem. Se dependesse dela, teria avançado a esmo; os outros que ficassem para trás. Era bom que um deles tivesse algum juízo. Suspirando de alívio pela oportunidade de descansar, Selina se sentou numa pedra e o observou descer a colina. Ele parecia um rapaz muito bonito sob a luz do sol. O coração dela flutuou ao ver os ombros largos e a maneira como o kilt revelava as panturrilhas fortes e os joelhos másculos. Ele parecia estar à vontade e muito no comando. As galinhas se espalharam com cacarejos e granidos com a chegada dele. A velha senhora protegeu os olhos do sol. A menina o fitou com espanto. A idosa abriu um sorriso, obviamente por reconhecê-lo. Ela bem poderia estar recebendo o Príncipe Regente, tão efusivos eram os gestos para que ele entrasse, empertigando-se como uma menina em função de tamanha ansiedade. A criança fez uma mesura. O sorriso charmoso no rosto do Ian faria qualquer mulher se empertigar. Ele ficava tão bonito quando sorria. Ian olhou na direção dela, indicando que tinha companhia. Mais uma vez a mulher ergueu a mão para proteger o rosto. Num instante, o comportamento dela mudou. Uma discussão começou. Selina podia ouvir a voz alta da idosa, mas não as palavras. Ela encerrou a discussão, apontando um dedo reprovador no rosto dele. A menina fugiu. 78


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Que esquisito! As pessoas das Terras Altas eram conhecidas pela cortesia, especialmente com viajantes, mesmo que apenas para oferecer um rápido trago de uísque e um bolo de aveia. Para a surpresa de Selina, a mulher desapareceu dentro da casa e bateu a porta. O som reverberou nas rochas e no penhasco e desvaneceu em ecos cada vez mais fracos. Ian voltou até ela com passos pesados. Conforme se aproximava, Selina conseguiu enxergar o olhar de raiva no rosto dele e, por trás disso, a preocupação. Ela se colocou de pé. — O que aconteceu? A boca de Ian formou uma linha fina. — Os soldados estiveram aqui. O coração dela acelerou. — Procurando por nós? — Sim. Ela os despachou com um passa-fora. — Pensei que ela o deixaria entrar. — Sim. — Mas ela percebeu que eu estava com você. — A rejeição doía. — Eu falei que você era a minha prima, mas, dado o que os soldados falaram, ela se recusou a acreditar. — E, como sou uma Albright, ela não sentiu a necessidade de oferecer hospitalidade. — O filho dela foi deportado por caçar nas terras do seu pai. — Ah, minha nossa! — O filho dela foi um dos sortudos. Tearny geralmente atira primeiro. Tearny era o feitor. — Não por ordem do meu pai, posso assegurar. Ian deu de ombros. — Seja como for, nós não temos escolha senão seguir em frente. Selina o olhou de cara feia. — Se o senhor Tearny está atirando nas pessoas na terra dos Albright, ele será punido. Ele inclinou a cabeça de lado. — Tudo bem. Você vai falar com o seu pai. Vamos deixar isso como está. Mas vamos andar muitos quilômetros até encontrarmos outra casa onde possamos pedir comida. — E eles, sem dúvida, vão nos rejeitar também. — Nem todos são tão amargos quanto a vovó. Era o que ele esperava, ou seria uma longa e faminta caminhada até a diligência postal. 79


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Ian olhou ao longe. — Acho que vou falar com Niall antes de nos afastarmos muito. Descobrir o que os soldados estão fazendo. Talvez eu mesmo tenha de ir até Dunross. Uma sensação de pânico percorreu a espinha dela. — Você não pode me deixar aqui. — Laird. — A voz estridente veio de trás deles. — Laird. Ian olhou para trás. Selina se virou. Era a menina que estava à porta da idosa, correndo atrás deles, o cesto estendido para o lado como se temesse que o conteúdo se quebrasse. — Espere — Selina disse a Ian, que parecia inclinado a continuai andando. — Não a faça correr. A menina chegou, ofegante e com olhos brilhantes. Cachos ruivos escapavam de baixo do xale esfarrapado que estava puxado sobre a cabeça e os olhos verdes espiavam, arregalados, Ian e Selina. As bochechas estavam ruborizadas. — Ora — disse Ian, já que ela não falava nada —, o que você quer, Marie Flora McKinly? — Ian, você vai assustá-la. Dê a ela uma chance de recuperar o fôlego. A menina ainda continuava calada. Ela encolheu os dedos dos pés sobre um ramo de urze, olhando para o chão, espiando Ian como se ele fosse algum ogro. Ian disse algo em gaélico num tom mais gentil. A criança tomou fôlego e tagarelou por um ou dois minutos. Ele sacudiu a cabeça para a criança e voltou a falar em gaélico. A criança ergueu o queixo. Seus olhos faiscaram. — O que você disse? — perguntou Selina. — Por que ela está zangada? Ian praguejou baixinho. — Ela está nos oferecendo comida na casa do pai dela, que fica a dois quilômetros daqui. Não quero colocá-los em perigo. — Só tem o papai, senhorita — disse a criança, num adorável sotaque escocês. — E eu e meus dois irmãos. Meu pai nunca me perdoaria se você não tomar um trago com ele, laird. Ele está louco por um pouco de companhia e notícias há semanas. Temos comida na despensa. Selina olhou para Ian. A criança olhou para Ian. A frustração no rosto dele era evidente. Não era apenas sua gente que tinha um dever com ele; não aceitar uma oferta de hospitalidade seria um insulto. — Muito bem. Vamos visitar seu pai por uma ou duas horas e depois seguimos caminho.. Marie Flora deu um pulinho de contentamento. — Por aqui. Ela começou a subir uma colina que parecia ainda mais íngreme que todas as outras que tinham atravessado. Em vez de seguir para o sul, ela estava indo para o oeste. Selina deu uma olhada na montanha em miniatura e gemeu. 80


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— Você acha que consegue? — murmurou Ian, segurando-lhe a mão para ajudála. — Talvez seja melhor se não usarmos seu sobrenome com essa gente. — Ela não sabe? — Selina indicou a criança. — Vovó McLeod adivinhou de imediato, mas não falou seu nome. E nem eu. — McLeod. Agora me lembro. Ela costumava viver na aldeia. — Sim, até um ano atrás, quando não pagou o aluguel e foi expulsa. Aquela era a casa do filho dela. Quando o filho dela foi despachado daqui, ela amaldiçoou o nome dos Albright por tudo o que há de sagrado. Selina se encolheu. — Não fico surpresa por ela ter se zangado. — Ela é uma velhinha malvada. Amaldiçoou o feitor também — disse Ian. — Ele apareceu com um furúnculo enorme na ponta do nariz um dia depois de ter lacrado a porta dela. Ian estava provocando Selina. Tinha que ser. — Foi bem feito. — Isso não tem graça. Ela amaldiçoou o velho Willie McLaughlin e ele morreu em uma semana. Um ano atrás foi quando ela sofreu o acidente. Pensar que a maldição da velha encarquilhada era responsável pelo acidente provocou arrepios em seus ombros. — Bobagens supersticiosas. — Ainda assim, ela estremeceu. — Acredite no que quiser, minha senhora. Selina bufou. Agora Ian estava todo rígido e formal outra vez. Selina olhou adiante e viu que eles tinham alcançado o topo da elevação. Suas panturrilhas e coxas doloridas estavam ansiosas pela inclinação do declive. No vale lá embaixo, uma cabana se assentava ao lado de um pequeno riacho, mais comprido e baixo que o que tinham acabado de deixar e tão pequeno quanto uma casa de boneca. Ainda tinham uma boa distância a percorrer e Marie Flora acenava para eles com impaciência.

A PREOCUPAÇÃO consumia Ian. Sua respiração fria dominava o cérebro dele, o estômago atingia fundo o peito. Você seqüestrou a filha do Albright, tinha dito vovó, repetindo o que os soldados disseram. Ficou louco?Ele vai enforcar você e qualquer um que ajudar você. A velha bruxa bateu a porta na cara dele. Uma cara que provavelmente parecia culpada, porque, apesar de não ser um seqüestrador, havia passado a noite com a moça nos braços. E teria gostado de fazer bem mais do que isso, depois do beijo. A força do que ele sentia por esta sassenach era bem diferente de qualquer coisa que ele tivesse experimentado na vida — e ele e Drew tinham provado uma boa cota de mulheres em sua selvagem juventude. Mulheres bem mais experientes em seduzir um homem do que lady Selina. Diabos, ele até tinha pensado em se casar com uma viúva calorosa e confortável com quem se encontrava há anos, até a carta de Selina chegar e 81


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virar sua vida de cabeça para baixo. Felizmente, Ian teve controle suficiente para não arruiná-la na noite anterior. Mas ela estava arruinada. De alguma forma, os soldados sabiam que lady Selina estava com ele: Ou suspeitavam, pelo menos. A única maneira de evitar isso seria se casando com ela. Admitir a verdade era como levar um soco no estômago. E ele não queria pensar nisso. A própria ideia deixava sua cabeça girando. Não podia sustentar uma esposa, certamente não uma do calibre dela, uma mulher acostumada a tudo do melhor. E a filha do Albright, ainda por cima. Mas ele estava começando a achar que não tinha outra opção, assim como Angus havia sugerido. A cabana no fundo do vale estava ficando cada vez mais próxima. William McKinly era um homem orgulhoso, teimoso. Se ele admitisse um pagamento pela acomodação sem considerar o gesto como caridade, Ian não se sentiria tão mal por aceitar comida e bebida. Mas ele não admitiria e ponto. Antes que percebesse o que ela pretendia, Selina tinha saído do lado dele e atravessado a encosta da colina, seguindo para um riacho. Praguejando, Ian a seguiu, observando como ela estava parada junto à margem, examinando a água. O que, diabos, ela estava aprontando? Será que ela tinha ideia de como parecia deliciosa naquelas selvagens saias ciganas, com o cabelo escuro pendendo numa massa desgrenhada pelas costas? Parecia uma moça depois de uma boa noite de amor, era isso o que ela parecia. Mesmo que nada tivesse acontecido. A constante excitação que ele vinha enfrentando desde que ela o beijou por vontade própria e uma noite inteira encolhido perto da maciez de suas curvas, o perfume dela enchendo suas narinas, enrijeceu-o como pedra. Ele queria alcançá-la e puxá-la para seus braços, beijar aqueles lábios lindos e se mergulhar em seu calor. Conhecê-la, da maneira que um homem realmente quer conhecer uma mulher. E, se ele fosse honesto, parecia só questão de tempo até ele ceder ao tormento da luxúria. Bem, aparentemente a decisão estava tomada. Ele só podia imaginar o que ela diria. — Não vá cair — disse ele, chegando perto dela. Selina lhe deu uma olhada zombeteira. — Não sou tão atrapalhada assim. Ela não era nada atrapalhada. Era graciosa, mesmo com a pequena hesitação que aparecia em seus passos quando estava cansada, pequena e delicada como uma frágil fada. E ele só conseguia pensar em levá-la para cama. E só havia uma maneira de conseguir isso, Casamento. Parecia que a semente plantada por Mclver havia fincado raiz. Ele a viu se equilibrar numa rocha, agachar e abarcar água com as mãos, bebendo delicadamente enquanto a água escorria entre o dedos. Uma sílfide que havia usado sua magia para capturá-lo. Ela sacudiu as mãos e as secou na saia antes de pular dali. Era assim que se lembrava dela menina. Um espírito livre vagando pelas colinas. Escapulindo da fortaleza para encontrá-lo dia após dia, até deixá-lo completamente encantado. Mas ela não era um elfo. Era a filha de um homem poderoso. Seu inimigo. E, 82


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se o homem odiava a sua família antes, isso só pioraria as coisas. Selina olhou por cima do ombro. Percebeu o olhar dele e sorriu. — A água está ótima. Mas que inferno, ele estava olhando feito um bezerro abobalhado. — Se já terminou, vamos andando, senão McKinly vai pensar que desistimos da visita. Ele não pretendia rosnar, mas era melhor do que sorrir para ela leito um idiota. O sorriso abandonou os lábios dela. Selina subiu a margem rasa. Ian se virou e foi descendo a colina, deixando que ela se virasse como pudesse. Era isso ou tomá-la em seus braços e beijá-la até deixá-la sem sentidos. Esta noite. Ele revelaria o destino dela esta noite, depois do jantar. Casamento com uma sassenach. E uma Albright, ainda por cima. O que, diabos, sua mãe diria? E o clã? Que todos se danassem, porque, se não gostassem, teriam que tolerar. Ele era o laird. Eles teriam que acatar sua decisão. Marie Flora e o pai estavam esperando à porta da cabana, onde o urzal tinha sido vencido por uma macia grama verde. Uma pequena horta atrás da cabana estava pelada de tudo, exceto alguns rabanetes. — McKinly — cumprimentou ele, estendendo a mão conforme se aproximava do patamar do homem. Para variar, Selina ficou atrás, Temendo a recepção, sem dúvida. — Laird — disse McKinly. Seu cabelo era da cor do cobre. Mais escuro que o da filha e permeado de prateado. Era um homem curvado e envelhecido que poderia estar entre os 4O e 6O anos de idade, mas Ian sabia que ele estava no fim da faixa dos 30. Lavrar nas Terras Altas fazia um homem envelhecer cedo. — Está tudo bem? — perguntou Ian. — Sim. Entre. Entre. Tome um trago comigo. A menina disse que você está precisando de sustância. — O olhar dele buscou Selina, a curiosidade brilhando em seus olhos azuis. — Sim, se puder nos ajudar. Minha esposa aqui está morrendo de cansada. Esposa. No momento em que ele viu o olhar avaliador de McKinly, Ian percebeu que não havia alternativa honrada. Tendo dito isso, Ian teve uma sensação de realização. Selina tinha se enfiado naquela confusão tentando ajudá-lo por amizade, ou por algum errôneo senso de obrigação, e um Gilvry sempre pagava os seus débitos. E também não arruinava mulheres inocentes. Ele levaria o clã a pensar como ele. De fato, não era da conta de ninguém quem ele tomava por esposa. Eles tinham aceitado suas decisões até agora e teriam de aceitar essa também. Sua mãe e seus irmãos seriam um caso diferente, além do pai dela. Era costume pedir ao pai a mão da filha, mas não era como se Albright pudesse recusar agora. Não sob aquelas circunstâncias. Casar-se com Selina não seria uma coisa tão ruim. Ele realmente a queria em sua cama, mais do que a qualquer mulher que tivesse conhecido. Ficou sofrendo a negação durante a noite inteira. E não tinha dúvida de que ela o queria também. Era um ponto de partida, o que não era nada mal. Ciente do olhar aguçado de Selina e do dedo que cutucava suas costelas, Ian olhou para o rosto que estava erguido para o seu. 83


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— Não é mesmo, minha querida? — Pensar que ela poderia negar suas palavras fez seu estômago arder. — Então você está casado? — perguntou McKinly. Ian olhou para Selina, alertando-a com o olhar. — Sim — disse ela, por fim. — Estamos casados. E pronto. Ele sentiu o estômago revirar de culpa por não ter discutido o assunto com ela, mas haveria tempo para isso depois. Selina sorriu para o anfitrião. — Lamento pelo inconveniente, senhor McKinly. Ficamos agradecidos por nos receber sem aviso. Não queríamos causar nenhum problema. A própria educação, sem qualquer maneirismo artificial da sociedade, sem nenhuma vozinha ofegante, só um modo calmo e amigável com uma leve musicalidade na voz. Ian deixou escapar um suspiro de alívio. McKinly sorriu, — Bem-vinda, senhora. Mesmo que acordado em cima da hora, seu instinto estava certo. Como sua esposa, ela perdia a condição de sassenach. De estrangeira. Como sua esposa, qualquer descortesia com ela seria uma descortesia com ele. Um menino de aproximadamente 6 anos enfiou a cabeça entre as pernas do pai. — Esse é o laird, papai? — Ele ergueu o rosto para olhar para Ian. — É ele? — A criança falava em gaélico. — Ah! — exclamou Selina. — E quem é você? — Meu filho caçula, Tommy — disse o pai, sacudindo a cabeça para o rostinho travesso. — Saia daí, menino. Deixe-me passar. Como o laird vai passar pela porta se a sua cabeça está bloqueando o meu caminho? A cabeça desapareceu. McKinly deu um passo para o lado e gesticulou para que eles entrassem. Ian se curvou para Selina e acenou para que ela seguisse à frente. — Obrigada, senhor McKinly — disse ela, ao passar pelo homem e entrar na casa. — Fico honrada com sua hospitalidade. Ian se sentia orgulhoso como um galo de terreiro enquanto a seguia para dentro de casa. Um fogo de turfa fumaçava numa baixa lareira de pedra com uma panela de cozido suspensa sobre ele. A habitação era pobre, mas limpa. O menininho foi se acomodar perto do fogo e tirou uma faca de entalhar do bolso e um pequeno pedaço de madeira. Ian observou a maneira como Selina examinava a casa, o rosto cuidadosamente neutro, mas podia imaginar o que ela estava pensando. Uma ponta de culpa lhe atingiu o peito. Esse não era o tipo de habitação para uma mulher acostumada aos luxos da vida, uma mulher criada para viver na sociedade londrina. Casada com ele, sua situação seria um pouco melhor. Ele a tornaria melhor. — Fico contente por vê-lo bem, McKinly — disse ele num tom um tanto cordial demais, mas McKinly aparentemente não pareceu no ar nada de errado. — Teve sorte por me achar em casa — disse McKinly, despejando doses em copos 84


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de barro. — Eu estava saindo para colher feno no vale próximo esta tarde. — Ele ofereceu um a Selina, que sorriu e sacudiu a cabeça. McKinly ergueu as sobrancelhas, mas não fez qualquer alegação. McKinly não merecia que menosprezassem sua hospitalidade. A voz de Ian saiu áspera quando ele falou: — Tome uma dose conosco, senhora minha esposa. De olhos arregalados, Selina parecia pronta para discutir, num apertou os lábios quando McKinly lhe entregou o copo rejeitado e se serviu de outro. Selina deu uma olhada em Ian enquanto o homem estava de costas. Ele sem dúvida, ouviria um sermão, mas estava contente por ela ter decidido esperar que estivessem sozinhos para lhe dar uma bronca. Era uma mulher esperta, sem dúvida. — Não soube que estava para se casar, laird — disse McKinly. O rosto cheio de curiosidade. Ele sacudiu a cabeça. — Mas não há razão para que eu soubesse, não vejo ninguém faz semanas. Mas parabéns a você. — Ele sorriu, mesmo que um tanto severamente. — Ei você, minha senhora. Por favor, sente-se. O sorriso de Selina enquanto se acomodava na cadeira de madeira foi tenso. — Você é muito gentil, senhor McKinly. Marie Flora ficou de pé ao lado dela, fitando-a com adoração. Ian conhecia essa sensação. Mesmo ali, num lugar terrível como aquele, e depois de passar uma noite nas piores circunstâncias, ela estava linda. — A você e sua esposa — brindou McKinly. Ian engoliu sua dose. Selina molhou os lábios e os olhos lacrimejaram. Ao menos não tossiu e se engasgou. Enquanto McKinly se virava para reabastecer os seus dois copos, Ian pegou o dela e engoliu o conteúdo. Selina lhe deu um sorriso de gratidão e recusou a outra dose oferecida por McKinly. O homem gesticulou para que ele se sentasse no cavalete de uma mesa, os olhos aguçados e brilhantes. — O que faz o nosso laird caminhando pelas montanhas a pé? — Almotacéis — retrucou Ian, sem ver motivo para mentir. Todos os habitantes das Terras Altas desprezavam os homens do Fisco do Rei. McKinly fez cara feia. — É uma tolice se meter com eles e você acabou de se casar. — Sim — sorriu Ian. — Foi a necessidade. — Não gostaria de receber teto por uma ou duas noites? — perguntou McKinly. — Pelo menos uma noite, se puder nos ajudar. Um canto perto do fogo ou no estábulo das vacas. McKinly pareceu chocado. — Claro que não. Selina parecia sentir dúvidas. — Nós devíamos ir andando. 85


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Ian sacudiu a cabeça. — Não até sabermos como estão as coisas em Dunross. Ela parecia querer argumentar, mas deu de ombros. — Obrigada então, senhor McKinly. — De nada — disse o escocês, que olhou para a filha. — Marie Flora, coloque lençóis limpos na cama. A criança abriu um sorriso. — Sim, papai. Selina sorriu para a menina. — Mostre-me onde está e eu a ajudo.

A garota estava se esforçando para não envergonhá-lo. De alguma forma, ela sabia que isso era importante. O coração dele pareceu ficar grande demais no peito, como se realmente fosse um marido orgulhoso. Bem, ele era, de fato, não era? Ian lhe deu um sorriso de aprovação. Ela ergueu uma sobrancelha em resposta e se levantou para seguir a menina. — Vejo você na ceia — disse McKinly, ficando de pé. — Meu garoto mais velho já saiu para o campo. Eu estava esperando a menina retornar com os ovos antes de ir me juntar a ele. — Sobre o seu menino mais velho... Tenho uma missão para ele. — Ah, sim. — Preciso que ele leve uma mensagem para Niall. McKinly pareceu soturno, mas acenou em concordância. Ian fazia uma boa ideia da fonte da preocupação dele. — Eu fico com a foice enquanto ele estiver fora. Vai ser bom um pouco de exercício. O rosto de McKinly se abriu num sorriso, claramente aliviado. — Bem, sempre há muita coisa a se fazer por aqui. — Posso ir, papai? — perguntou o menino, sentado no canto. — Não, Thomas — retrucou o pai. — Você tem seu próprio trabalho para fazer. E eu preciso de você aqui para cuidar das mulheres. O menino estufou o peito magro e retomou seu trabalho com a faca. Ian se aproximou para ver no que ele estava trabalhando, mas o menino se curvou sobre a peça. — Ainda não está pronto. — Deixe-o, laird. O garoto é um pouco estranho com seus entalhes. Não deixa ninguém ver enquanto não estão prontos. — Ele ergueu a voz. — Marie Flora? — A menina mostrou a cabeça no quarto ao lado. — Até a hora da ceia. Quero uma refeição boa esperando pela gente. — Sim, papai. 86


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Selina apareceu ao lado da criança. Ian se inclinou, beijou-lhe os lábios e quase riu quando ela ofegou surpresa. — Conversamos mais tarde — murmurou ele, junto de sua boca. Quando se afastou, viu o rubor surgir nas bochechas brancas. Porque ele a beijou em público. Ian queria fazer isso de novo. — Sim — disse ela, um sorrisinho tenso. — Nós vamos conversar mais tarde. — Aquilo soava como uma ameaça. Selina voltou a sumir dentro do cômodo. Ian deu de ombros e seguiu McKinly até lá fora. Só precisava encontrar uma maneira de fazer com que ela visse que ele estava certo.

Que patife, pensou Selina, olhando para a cama com quatro colunas que tomava o pequeno quarto ao lado da cozinha. Além da cama, havia um baú num canto e um tapete desbotado e remendado no chão. As mentiras foram despejadas pela língua de Ian como se ele fosse o próprio demônio. Selina podia ter negado tudo. Mas não conseguiu. Não sem envergonhá-lo diante de sua gente. — De quem é este quarto? — perguntou a Marie Flora, enquanto a menina puxava com experiência os lençóis da cama e os empilhava sobre o tapete. — Costumava ser o quarto de mamãe e papai — disse a menina. — Agora eu durmo aqui e ele dorme no sótão com os meninos. — Ah, nossa. Não queremos colocar você fora da sua cama. — É um privilégio e uma honra servir ao laird. — À menina sorriu com timidez para Selina. — E sua esposa. A culpa revirou o estômago dela. Aquelas pessoas ficariam muito zangadas se soubessem quem ela era. Selina pegou a ponta do lençol ao pé da cama e Marie Flora pegou a ponta mais próxima à cabeceira. E, juntas, elas o soltaram. O colchão tinha visto dias melhores, mas estava claro que era o melhor que tinham, e Selina certamente não reclamaria. A criança tirou lençóis do baú, finos e remendados aqui e ali, mas impecavelmente limpos. Juntas, elas arrumaram a cama. Quando terminaram, Marie Flora afofou o cobertor com um sorriso. — É uma cama confortável. Muitos não têm uma como esta. Papai a fez quando se casou. Mamãe morreu quando Thomas nasceu. — Sinto muito — disse Selina. A menina encolheu os ombros. — Nós a enterramos no topo da colina. Ela gostava de subir lá e olhar as montanhas. Havia um pouco de pesar na voz da menina, mas, em grande parte, aceitação. — Quantos irmãos vocês são? — Quatro. Meu irmão mais velho foi para as minas no sul e mau da dinheiro quando pode. — Marie Flora rumou para o cômodo principal e Selina a seguiu. 87


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— Sabe descascar semilha? Temos que aumentar o cozido. — Semilha? Ah, você quer dizer “batata”. — Fazia muito tempo que ela não ouvia aquela palavra ser usada. Não desde quando costumava ficar perambulando pela cozinha de Dunross, entrando no caminho da cozinheira. — Sim, tenho certeza de que sim. — Não deve ser difícil.

Capítulo Onze

Marie Flora entrou trazendo, com dificuldade, um balde d'água e com uma ruga no rosto. — Thomas, você ainda está aqui? Papai não mandou você levar a vaca para o outro pasto? O menino enfiou a escultura no bolso e saiu sem dizer nada. — Ele é um sonhador — disse Marie Flora. Colocou o balde entre elas e foi até um cesto num canto, de onde voltou com um avental cheio de batatas, que ela deixou ao lado do balde. A menina entregou uma faca a Selina. — Está afiada. Cuidado para não se cortar. Já se comportava como uma pequena mãe, e não estava mais nem um pouco tímida. Selina não pôde deixar de sorrir. Observou a criança descascar a primeira batata e depois começou a trabalhar na sua. — Não tão fundo — disse a menina, sagaz. Selina ergueu o olhar. — Você está cortando muito da carne — disse Marie Flora. — Não vai sobrar nada. Observe. Estava claro que, se ela não fizesse isso direito, seu valor diminuiria perante aquela mocinha. Selina observou com atenção, viu como ela apoiava o polegar contra o legume e raspava a casca. Então tentou novamente. Dessa vez, ela se saiu melhor e a menina assentiu com satisfação. Ela riu consigo mesma. Isso era bom, ficar sentada ali trabalhando em algo útil com uma companhia, em vez de fazer pontinhos bonitos dentro de um bastidor num pedaço de tecido que só serviria para adornar algo que já estava suficientemente bonito. — Tire os olhos assim — disse Marie Flora, mostrando-lhe como torcer a ponta da faca nos buraquinhos marrons. Ela colocou a batata descascada na bacia e lavou outra antes de descascá-la com a faca. Selina terminou a primeira batata quando Marie Flora já havia descascado três, mas a menina não fez mais críticas, então ela presumiu que estava fazendo certo, mesmo 88


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que devagar. Thomas entrou com um balde de madeira cheia de leite cremoso. O leite espirrou no chão quando ele fechou a porta. A irmã murmurou alguma coisa em gaélico e ficou de pé num pulo. O menino ficou vermelho. Ela lhe tomou o balde da mão, enquanto ralhava. O menino deu uma olhada considerável em Selina. — Você não fala nada de gaélico? — perguntou ele. — Não exatamente. — Ela sabia alguns palavrões, mas seria melhor não dizê-los. Ela os guardaria para quando Ian retomasse. Casada, de fato. Ele ao menos poderia ter lhe avisado. E agora ele dividiriam uma cama ali. Seu corpo traidor ficou tenso ao pensa nisso e ela ficou toda corada e quente. Mas seria como na noite anterior, lembrou a si mesma. Eles dormiriam. Nada mais. As batatas acabaram e suas mãos estavam vermelhas, ásperas e dormentes por causa da água gelada. Esse seria o tipo de coisa que teria que aprender se estivessem mesmo casados. Seria uma vida diferente. E cheia de perigo, sem dúvida. Uma sensação de empolgação se espalhou por ela. Marie Flora lhe entregou uma toalha e se virou para o irmão. — Thomas, leve essas cascas para fora, depois vá buscar lenha para o fogo. Thomas pegou o balde e o carregou porta afora. — Vou colocar essas semilhas no cozido e depois vamos fazer as broas — disse Marie Flora. — Você vai ter que me ensinar isso também. — A esposa do laird não sabe fazer broa? Selina se retraiu. — Acho que não. — Ah, sim, você vai morar naquele casarão na aldeia. Papai me levou lá uma vez para vender... — Ela levou a mão à boca. A menina correu e foi se ocupar na mesa, cortando as batatas e acrescentando-as à panela sobre o fogo, que já estava exalando um aroma delicioso. Primeiro Marie Flora colocou uma grande pedra achatada sobre o fogo. — Essa é a pedra da broa — disse ela, ao reparar a expressão surpresa de Selina. — Não temos um tableiro. — Ela queria dizer “tabuleiro”, supôs Selina. A menina então despejou farinha numa bacia e a misturou com água. Depois de transformá-lo num pão redondo achatado, ela o colocou com cuidado na pedra quente. — Não vai demorar muito. O estômago de Selina roncou alto. A menina a encarou com espanto. — Está com fome? Foi então que Selina percebeu que não tinha comido nada desde a hora do jantar da noite anterior, só um punhado de aveia pela manhã. Como poderia pedir comida se aquelas pessoas possuíam tão pouco? — Um copo d’água é tudo o que eu preciso — respondeu, pegando uma caneca de uma prateleira na parede e despejando água do jarro sobre a mesa. Aquilo a seguraria 89


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até a ceia. A não ser que, por algum maravilhoso golpe de sorte, eles comessem ao meiodia. Marie Flora terminou de limpar a sujeira do preparo do pão e Selina lhe sorriu. — E agora? — Eu tenho costura para fazer, se não se importar de me ajudar. Com papai e dois garotos, sempre tenho um monte de remendos para fazer. Selina riu. — Bem, isso é uma coisa que eu sei fazer. Marie Flora puxou um cesto cheio do que pareciam trapos, mas, ao erguê-los, Selina viu que eram camisas grosseiras e meiões tecidos em casa que tinham sido remendados e cerzidos inúmeras vezes. Imediatamente, ela se acomodou para fazer os reparos necessários e, enquanto trabalhava, pediu que Marie Flora lhe ensinasse as palavras gaélicas referentes às coisas que estavam ao redor. O tempo voou.

SELINA não se lembrava de alguma vez ter se sentido mais à vontade consigo mesma ou ter passado uma tarde de maneira tão agradável. Ainda estava se indagando sobre a estranha sensação de contentamento, quando um barulho lá fora fez Marie Flora se levantar num pulo. — É o papai voltando para o jantar. Ela guardou a costura no cesto e pegou a camisa de Selina, que tinha terminado de virar o punho da manga, e começou a arrumai a mesa. Selina foi à janela e viu um homem desmontando de um cavalo. Não usava uniforme, mas mesmo assim o coração dela disparou. Seria alguém procurando por ela e Ian? O que devia fazer? — Marie Flora, não é o seu pai. A criança largou o que estava fazendo e foi até a janela. Ela franziu a testa. — Ora, é o senhor Tearny, o cobrador do aluguel. Não é o dia em que ele vem. Tearny. Um empregado de seu pai. Era coincidência ele estar ali? — O laird e eu não queremos que ninguém saiba onde estamos — disse ela depressa. O rosto da menina perguntava por quê. — Por favor, Marie Flora, não mencione que nos viu. — Ela se esgueirou para dentro do quarto, ouvindo a garota atender à batida na porta, escutando o trovão da voz do homem, mas sem entender com clareza suficiente para distinguir as palavras. O coração dela batia desesperadamente. Ela sentia o corpo vibrar com a força das batidas, ao mesmo tempo em que se sentia tentada a simplesmente sair e pedir que ele a levasse para casa. Deixar Ian sem uma palavra de despedida? Ela não podia. Seria errado. Além disso, ela não fazia ideia de que tipo de recepção a aguardava lá. Podia ser atirada na prisão como contrabandista. No momento em que Marie Flora fechou a porta lá fora, Selina saiu do quarto. O 90


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rosto da criança estava branco; ela parecia pronta para desmaiar. Segurava um papel na mão como se temesse que a mordesse. — O que foi? Ela ergueu o olhar e Selina viu lágrimas se acumulando nos olhos verdes como musgo. — Eu não abri. Está endereçado ao papai, mas Tearny disse que é um aviso de desocupação. — Ela estendeu o papel e Selina viu o selo dos Albright. — Porquê? — Não pagamos nosso aluguel neste trimestre. Papai precisou de um pouco mais de tempo. O estômago dela apertou. O que seu pai estava querendo? Era errado arrancar famílias de seus lares. Ele podia ser ambicioso, mas Selina jamais o imaginou cruel. O som de vozes lá fora fez Selina voltar para dentro do quarto e Marie Flora correr à janela. — Está tudo bem — avisou Marie Flora. — É papai e o laird se lavando no riacho para o jantar. Selina fechou os olhos com alívio, mas a tristeza permaneceu. Era errado expulsar aquela família.

COM O cabelo úmido, a camisa molhada e grudada aos ombros largos por ter se banhado, Ian parecia cansado, mas também deliciosamente atraente. Selina achou difícil não olhar. Estava fugindo desse problema desde o momento em que o vu no baile de lorde Carrick! Era patético. No que dizia respeito a Ian Gilvry, ela era patética. E agora ela concentrava nele todas as esperanças de ajudar aquela pequena família. — Foi um bom dia de trabalho o que tivemos hoje, menina — disse McKinly, o rosto cansado tomado por um sorriso quando seu olhar pousou na filha. — O laird fez a parte dele e a do jovem Willy juntos. — Que notícia boa, papai — disse Marie Flora, cujo olhar recaiu na carta sobre a mesa. — O que é isso aqui? — perguntou ele. — O senhor Tearny saiu faz poucos minutos. Fico surpresa que não o tenha encontrado. Toda a alegria sumiu e as sombras dos cantos da sala pareceram invadi-la quando McKinly pegou o papel. Seu olhar procurou por Ian, que lhe deu uma única e pesarosa sacudida com a cabeça. O pequeno Thomas entrou com afobação. — Pai! — berrou. — Tem soldados cavalgando no vale. — Ah, que os santos me deem forças. Não tão rápido. — Ele abriu a carta com um rasgo. Olhou para o papel, os lábios se movendo enquanto lia as palavras. 91


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Os ombros de Ian ficaram tensos. Parecia querer tomar o papel e Ier ele mesmo. Em vez disso, foi até a janela e olhou lá fora. — Eles estão muito longe? — perguntou a Thomas. — Estavam na casa da vovó. O pai o encarou diretamente. — Menino idiota, pensei que eles estavam vindo para cá. O menino pareceu ofendido. — Eles podem vir aqui depois. Estavam perguntando à vovó se ela tinha visto algum viajante nos últimos dois dias. Ian ficou tenso. — O que ela disse? O garoto deu um sorriso malicioso. — Ela disse que a única coisa estranha num raio de 20 quilômetros era o bichopapão que ela tinha visto na noite passada vagando para o norte pelas colinas. Eles saíram cavalgando naquela direção. Ian relaxou. — Ela é uma mulher demoníaca, mas não é uma traidora. McKinly baixou os olhos para o papel em sua mão e o entregou a Ian. Temos uma semana para arranjar o aluguel devido ou devemos juntar as coisas e sair. — Mãos espalmadas sobre a mesa, ele curvou a cabeça, os olhos fecharam. — Eu poderia... — principiou Selina. Ian a cortou com um gesto rápido da mão e um olhar sério. — Vamos vender nossa vaca e o bezerro — disse McKinly. — Eu a levarei ao mercado. — Mas, papai — disse Marie Flora —, nós precisamos do leite. O pai deixou escapar um longo suspiro. — Tem razão, menina. — Ele olhou para Ian. — Você compraria minha cevada? Logo vai estar pronta para ser colhida. Ian fez um rápido movimento com o queixo, — E o pão das suas crianças? O que ele estava querendo dizer, afinal? — Acontece que vão sobrar cobres suficientes para comprar pão depois que Albright for pago. — Ele parecia esperançoso. Selina se sentia enjoada. Como seu pai podia fazer uma coisa dessas? O pequeno Thomas se agachou ao lado da lareira, o rosto pálido, os olhos assustados. Um peso desceu sobre o peito de Selina. Desejava oferecer conforto, garantir àquela pequena família que tudo ficaria bem, mas não conseguia. Tinha abandonado qualquer esperança de influenciar seu pai ao alertar os contrabandistas e fugir com Ian em seguida. E, se não tivesse feito nada disso, agora não saberia o que estava acontecendo. Mas devia haver algo que pudesse fazer. McKinly olhou com cara feia para o papel. — Estes avisos têm aparecido há semanas para qualquer um atrasado com o aluguel. Você compraria a minha cevada antes de ser colhida? Correria o risco? — Sim — disse Ian, assentindo. — Parece ser uma boa plantação, é uma pena que não soubéssemos disso antes de o seu garoto partir, ele poderia ter trazido o dinheiro de 92


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volta com ele. Ian estendeu a mão com um sorriso. — É um trato. Amanhã trabalharemos na limpeza de outro campo de rochas, então você poderá plantar mais cevada no ano que vem. McKinly se voltou para a filha. — Vê o que é um laird que se preocupa com sua gente, menina. Agora, onde está esse jantar que está cheirando tanto? Meu estômago está colado nas costas, estou muito faminto. Ver McKinly agindo com animação, quando devia estar se sentindo desesperado, fez Selina se sentir pior do que nunca. Só podia estar agradecida por ele não saber quem ela era. Ele certamente não teria convidado a filha de seu senhorio para se sentar à sua mesa. A sensação de estar sendo observada fez com que ela desse uma olhada em Ian, cujos olhos estavam fixos nela, estreitados, os lábios pressionados, como se estivesse contendo as palavras, mas o olhar que pousava sobre Selina era lascivo. Em resposta, um calor incendiou o corpo dela. — Depois do jantar, nós conversamos. — A voz profunda carregava uma promessa.

Com a ceia encerrada e as crianças na cama, Selina sentou-se ao lado de Ian no banco de madeira com a obrigatória dose de uísque na mão. Ela tomou um gole cauteloso. Dessa vez, não queimou tanto. Segurando o copo entre as duas mãos sobre o colo, ouvindo os homens conversando tranquilamente sobre o tempo e as plantações, ela quase conseguia se imaginar vivendo dessa maneira para sempre. Preparar comida para marido e filhos, e depois sentar à noite para falar sobre o dia. Não seria uma vida fácil, mas seria uma vida com propósito. Pela primeira vez, em muitíssimo tempo, ela tinha a sensação de pertencer a algum lugar. Selina suspirou. Ian apertou a mão dela. Espantada, ela o encarou. — O copo estava quase caindo — disse ele, com um sorriso. — Você deve estar exausta. Era um tipo agradável de exaustão. Não do tipo que experimentava depois de um baile, quando a cabeça ficava latejando e os pés doendo de tanto serem pisoteados. Era uma sensação boa. Selina assentiu. — Eu devia ir para a cama. — Um brinde antes que se vá — disse McKinly, enchendo o copo dele e o de Ian. — Ao laird e sua esposa. Que vocês sejam abençoados com muitos filhos. Slainte! Os dois homens entornaram a bebida num gole. Selina deu outra bebericada. McKinly encheu de novo o copo dele e o de Ian. Selina pôs a mão sobre o dela. — Para mim chega, obrigada. Ian ergueu seu copo. — Ao meu convidado. Que seus filhos e filha cresçam fortes e saudáveis. 93


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McKinly pareceu ficar contente e os dois homens engoliram jun tos seus uísques. Ian olhou enfaticamente para o copo dela. Ah, droga. Ela virou o copo e engoliu, ficando completamente imóvel enquanto o calor viajava por sua garganta até a barriga, tentando não engasgar. Os dois homens riram, mas havia um ar satisfeito nos olhos de Ian, um calor que a esquentou bem mais que a bebida. — Vai ajudar você a dormir — disse ele. — Sim, e afastar o frio — disse McKinly. — Não tem fogo no seu quarto, mas tem privacidade. — Vá para a cama, esposa — disse Ian, sendo bastante gentil, mas não havia como se enganar quanto à ordem. Selina ficou indignada. Ele pareceu perceber, pois ergueu uma sobrancelha. — Tenho alguns assuntos a discutir com McKinly, mas vou estar logo lá. Você não vai ficar sozinha por muito tempo, eu prometo. O calor tomou o rosto dela. Ele estava agindo como se, como se... Bem, como se eles fossem mesmo marido e mulher. Ela se levantou com um sorriso e lhe deu uma olhada estreita para que ficasse claro que eles realmente conversariam. O sorriu que ele exibiu foi deliciosamente exagerado. Aquele homem era impossível. E inacreditavelmente bonito. Mesmo assim, ele só estava encenando seu personagem, um marido apaixonado, quando a verdade não poderia ser mais diferente. Ian lhe entregou um castiçal e a conduziu até a porta do quarto, onde levou a mão dela aos lábios. — Virei logo — murmurou ele, a voz oferecendo uma promessa sensual. Ela não sabia se dava um tapa nele ou se ficava na ponta dos pés para beijar aquela boca sorridente. Correu para dentro do quarto antes que acabasse fazendo qualquer coisa e fechou a porta, recostando-se a ela. Ouviu a risada profunda antes que ele se fosse. O som a envolveu como fumaça, enfraquecendo suas pernas, fazendo seu coração abrir com uma pontinha de esperança. Não. O mundo tinha virado de cabeça para baixo. Seu coração estava mentindo. Ian era um homem perigoso. Ele florescia na adversidade. Tudo o que ela queria era um marido agradável, uma casa numa parte boa da cidade e uma vida confortável com as pessoas que ela conhecia na sociedade à qual pertencia. Essa marcha pela Escócia era o mesmo que Maria Antonieta fingir ser uma leiteira nos jardins de Versalhes. Não era real. Não era a vida que havia planejado para si. O quanto antes se separassem, melhor seria para sua paz de espírito. Fugir da fortaleza tinha sido loucura. Ela podia ter lidado com a raiva do pai. E não teria se curvado diante de atormentações insistentes. Afinal, quem poderia realmente acreditar que uma desmiolada senhorita da sociedade sequer sairia dos limites de sua propriedade para ajudar contrabandistas? 94


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Seu pai poderia suspeitar do pior depois de Lisboa, quando fugiu sem a dama de companhia, mas suspeita não era prova. Olhando em perspectiva, fugir com Ian tinha sido um erro de proporções monumentais. Sua única esperança era alcançar Alice antes do pai. Ficar ali esperando notícias de Niall? Eles tinham que prosseguir depressa, logo pela manhã. Já tinham desperdiçado muito tempo.

— É uma esposa bem bonita a que arranjou, laird — disse McKinly, a voz profunda sendo carregada através da porta. — E uma boa moça, pelo que vi, mas delicada. É uma pena que seja manca. As Terras Altas não são lugar para os fracos. Vai precisar cuidar bem dela. — Sim — disse Ian, sem se comprometer. Uma explosão de raiva lhe encheu as veias. Mas ela não sabia se era por ele não tentar negar sua fraqueza ou por causa das mentiras que estavam contando a um homem que não lhes mostrara nada além de respeito. De qualquer forma, só cerrando os punhos é que ela não abriu a porta para dizer a eles que conseguia ouvir cada palavra. As vozes se reduziram a um baixo ribombar, provavelmente falando de outros assuntos. Não havia razão para alardear suas queixas com Ian diante de um membro de seu clã. Ela guardaria suas palavras para quando estivessem a sós. Deixou o castiçal sobre a mesa que continha um jarro de água e uma bacia e tirou o corpete, as saias e o calção que estava por baixo, deixando só a combinação, lavandose depressa com o trapo oferecido e apertando o queixo para que os dentes não batessem por causa da água fria na pele. Se Ian podia se lavar num riacho frio lá fora, era claro que ela suportaria isso, mesmo que estivesse certa de que conseguia ver sua respiração aparecendo diante do rosto. Ela puxou o cobertor de cima da cama e o deixou sobre o pequeno tapete, depois estendeu a capa sobre o áspero lençol de linho antes de se deitar. Tremendo debaixo da fina coberta, ela foi tomada por uma sensação de desapontamento. McKinly estava certo, afinal. Ela não era resistente o suficiente para essa vida. Observou as sombras da dança da vela no teto grosseiro e tentou conter os espasmos de tremor esfregando os braços e as pernas para gerar calor. Será que sua vida um dia voltaria ao normal? Não haveria casamento, claro, nenhum lar ou pequeninos Dunstans, mesmo que sua visita a Alice fosse considerada verdadeira. Presumiriam que ela tinha largado o jovem tenente. Seria a fofoca na cidade por semanas. Um homem não toleraria tal tipo de embaraço. Ela teria que recomeçar de novo, procurar pelo tipo certo de homem para marido. Estranhamente, a perda de Dunstan não a aborrecia tanto quanto era de se esperar. De fato, era como se estivesse carregando um peso enorme e alguém o tivesse tirado de seus ombros. Talvez Dunstan não tivesse sido uma boa escolha, afinal. Talvez nunca se casasse com ninguém. O pouco dinheiro deixado por sua mãe permitiria que vivesse com independência, mesmo que sem luxos. Ela seria uma proscrita. Considerada excêntrica. Depois de passar os últimos anos tentando se encaixar nas expectativas da sociedade. Todo o seu esforço destruído num momento de loucura. Um momento de temor por um homem que ela deveria ter ignorado 95


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completamente. As vozes do outro lado da porta ficaram silenciosas. A porta se abriu, e a lufada de vento fez a vela gotejar. Selina se sentou. O olhar dele bateu de relance nos seios e se voltou para o rosto dela, as sobrancelhas erguidas. Ah, certo. Ela não estava vestindo nada além da combinação. O calor lhe inundou o rosto. Selina puxou a ponta da capa até o queixo e abriu a boca para falar. Ian pressionou um dedo sobre os lábios dela e inclinou a cabeça na direção da porta, obviamente não querendo que McKinly ouvisse a conversa. Ele fechou a porta e olhou para o cobertor no chão, e depois para Selina. Ela não conseguia ler a expressão dele. — Precisamos conversar — sussurrou ela. Ele se aproximou da cama. Parecia grande sob a luz fraca. Imenso. De certa forma, ele lembrava um predador vigiando sua presa. Por outro lado, era um homem resguardando sua mulher. De qualquer forma, era a sua imaginação pregando peças. Ele, sem dúvida, lamentava aquela louca fuga tanto quanto ela. Tal pensamento fez com que Selina se sentisse vazia. Ian sentou-se na beirada da cama. As cordas rangeram e seu corpo se inclinou na direção dele como se buscasse o conforto de seu calor e força. Selina resistiu à tentação, inclinando-se para longe, apertando o tecido nas mãos com mais força. — Pensei que já estaria dormindo — murmurou ele. — Mas aqui está você, esperando por mim. Ela ofegou com a audácia das palavras dele, mesmo que estivesse derretendo por dentro. Ian parecia tão bonito, vigoroso, um ar de barba escurecendo o queixo, os lábios cheios se curvando num pequeno sorriso provocante. Selina inspirou rápido para se tranqüilizar, determinada a resistir ao seu encanto. — Como é que foi dizer a McKinly que nós somos casados? Pensei que usaríamos um nome falso. Que diria a ele que somos primos. — Ele conhece todos os meus primos. Foi melhor do que dizer a ele que você era minha... — Ele fechou a boca num estalo. — Sua amante? — É uma das palavras possíveis. — Ele não vai ficar satisfeito quando descobrir quem eu sou e que não somos casados. Eu me sinto mal por mentir. Ian apertou à boca. — Temos que contar a ele. — Não podemos ficar aqui. Nós devemos partir logo pela manhã. Temos que alcançar Hawkhurst o mais rápido possível. — Vamos esperar notícias de Niall. — Ele tocou um dedo no rosto dela. — Fiquei orgulhoso pela maneira como ajudou a menina com a refeição. 96


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Um quente rubor se espalhou pela pele dela. Furiosa consigo mesma pela maneira como reagia àquele homem, ela virou a cabeça. — Fiz o que qualquer um faria. Ian, escute, se eu ainda quiser salvar a minha reputação, eu devo chegar em Hawkhurst logo. Os olhos dele se tornaram abrasadores. — Seus olhos são lindos quando está apaixonada. — O baixo sussurro dedilhou cordas em seu ventre. A respiração ficou presa na garganta. O coração palpitou. A brasa se tornou fogo e, em resposta, ela viu a chama de calor no rosto dele. E então as bocas estavam unidas e ela estava se entregando às deliciosas sensações do cálido deslizar da língua dele, a sensação do sólido corpo grande sob suas mãos. Levada pela paixão que ele parecia despertar nela com tanta facilidade, Selina correspondeu ao beijo. Uísque. Ela não devia ter bebido aquele uísque. A bebida parecia ter confundido sua cabeça, roubado sua vontade e a deixado ansiosa por seu toque, pelas deleitáveis sensações da noite anterior. Ela afastou os lábios, sentiu uma ponta de remorso. — Não devemos. O olhar dele deu uma rápida olhada para o cobertor no chão. — Ah, isso é uma dica, não é? Pois me parece injusto, já que é a noite do nosso casamento. Ela o encarou com expressão vazia, encarou o contorcer pesaroso de sua boca, o cansaço de seus olhos. E o remorso. Um truque da luz? Ou algum tipo horrível de zombaria? Do tipo que os irmãos dele lançaram nela naquele longínquo verão. Seduzindo-a, para depois fugir. No passado, ele tinha surgido e virado seu mundo de cabeça para baixo. — Não acho muita graça nessa piada. Ele esticou a mão e forçou os dedos dela a largarem a capa. Franziu a testa. — Você sempre sente tanto frio assim? — Ele envolveu os dedos dela nos seus, e Selina sentiu seu calor permear sua pele. Uma calidez sedutora. Selina puxou a mão, mas ele não a soltou. Os olhos dele a fitavam com intensidade. — Não é piada. Veja — murmurou ele —, segundo a lei escocesa, se um casal diz que é casado e age como se fosse casado, perante testemunhas, então é o que são. Nós nos declaramos casados antes de colocarmos os pés nesta casa. McKinly é nossa testemunha. Ela deu um grito de horror. Ele logo lhe cobriu a boca com a mão. — Shhh! Quer fazer o McKinly vir até aqui? Sua mão era grande, quente e gentil. Ela o encarou com cara feia. — Fale baixo — disse ele. — Não sou escocesa — sussurrou ela. — Foi apenas uma história, para... para proteger a minha reputação. Não podemos estar realmente casados. — Sua voz se elevou em pânico. 97


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Uma emoção lampejou no rosto dele. Raiva? — A lei se aplica a quem estiver dentro de nossas fronteiras falou ele de imediato, o rosto como granito. — Quando McKinly questionou, você confirmou por sua própria vontade: Nós estamos casados. — V-você me enganou — acusou ela. — Não quer estar casado comigo. A resignação preencheu a expressão dele. — Não temos escolha neste caso. Magoada com o óbvio arrependimento, ela esbravejou. — Ninguém além de McKinly sabe. Podemos simplesmente fingir que isso nunca aconteceu. Ian baixou as sobrancelhas e a expressão se tornou rígida. — Só porque sou escocês não quer dizer que não tenho honra. A lei é a lei. — O que me diz da lei banindo o contrabando? — Isso é diferente. É uma lei injusta. — Então você seleciona as leis que segue? Ele apertou os lábios. Sacudiu a cabeça. — Você não vê que não tivemos escolha? Você mesma disse. Seu pai alcançará sua amiga antes de você. — Ele a fitou por um longo momento, como se estivesse considerando o que dizer em seguida. — Não estou descontente a esse respeito. — Nada aconteceu entre nós. — Nós nos beijamos — murmurou ele, os olhos azuis dançando. — Você dormiu ao meu lado. E lá estava de novo. A atração dentro dela. A vontade de se derreter junto dele. O desejo de ceder e aproveitar. Nenhum outro homem teve esse tipo de poder sobre ela. Se ao menos pudesse realmente acreditar que ele desejava o casamento! Que ele não se arrependeria depois. Já não tinha visto o arrependimento no rosto dele? Ouvido Ian concordar com McKinly que ela não era o tipo de moça que poderia viver nas Terras Altas? — Meu pai jamais permitiria. Ele faria com que o casamento fosse dissolvido. — Será que ele conseguiria? A expressão dele ficou séria. Ian murmurou baixinho algo em gaélico. — Deixe que ele tente. Isso não estava funcionando. Ian não estava escutando. Selina lhe tocou o braço e sentiu uma comichão nos dedos. Viu o braço dele se contrair em resposta. Ela se obrigou a ignorar as centelhas que lançavam entre eles e abrandou o tom. — Ian, você não quer isso. Nenhum de nós quer. Simplesmente me leve para Hawkhurst e eu invento uma maneira de sair dessa confusão. Ele sacudiu a cabeça. — Está feito. Feito. Por que parecia que ele tinha recebido uma sentença de prisão? Porque não era isso que ele queria. Sem dúvida, sentia-se tão encurralado quanto ela. 98


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— Alice não vai dizer nada se eu pedir. Mesmo que papai a alcance antes e ela diga que não me viu, ela vai desdizer. Ela poderia dizer que temia por mim e me manteve escondida dentro da casa o tempo inteiro. — Ele acreditaria que você chegou lá andando sozinha, sem dúvida? Será que ele tinha que ser tão prático? E era esperança o que ela ouvia na voz dele? O vazio no peito dela aumentou. — Garanto que consigo inventar uma explicação plausível. Uma carona com um transportador. — Ela lhe deu um doce sorriso e bateu os cílios. Ian ergueu as sobrancelhas. — Dias e noites na estrada sozinha. Sua reputação estaria arruinada. — Ele sacudiu a cabeça. — Você me ajudou, agora eu ajudarei você. Nosso casamento é a única opção.

Capítulo Doze

Ian jamais tinha visto uma mulher mais bonita. O rosto em formato de coração era a perfeição feminina, a pele macia era translúcida sob a luz da vela. Contudo, a expressão dela era de determinação. Por um instante, quando ele mencionou o casamento, Ian achou que ela tinha ficado satisfeita, mas seus argumentos diziam o contrário. Desapontador, mas nada surpreendente. Sua única opção era garantir que a barganha fosse devidamente firmada, irrefutável. Ele teria que apelar para a sedução. Seu sangue esquentou. Acariciou a pequena palma com o polegar e sentiu o tremor dela em resposta. Os lábios vermelhos, tão luxuriosos e tão delicadamente arqueados, se entreabriram numa pequena arfada. Selina era uma mulher apaixonada e a reação dela estava a favor dele. — Não importa o que diga, garota. Aos olhos do mundo, nós estamos casados. Ela mordeu aqueles lábios carnudos e adoráveis com seus dentes pequenos e regulares. Ele queria mordê-los também. Ian se debruçou, observando os olhos dela se arregalarem e pressentindo o movimento da garganta quando ela engoliu em seco. Selina endireitou os ombros. E era isso o que ele achava tão atraente. Sim, ela era miúda e delicada, mas possuía resistência interior. Enfrentava a vida de frente. Era o tipo de mulher que um homem teria orgulho de chamar de esposa, e não só por causa da beleza. — E agora? — bajulou ele. — O que me diz? Selina virou a cabeça, olhando-o de esguelha, sorrindo só um pouquinho. — Eu disse que não reconheço essa sua lei. — O tom era provocador, como se ela soubesse que estava derrotada, mas enfrentando-o de uma maneira que ele não podia 99


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deixar de admirar, mesmo que isso o enfurecesse. Era como se o selvagem sangue escocês de seus ancestrais tivesse dominado seu corpo e mente. Ian queria urrar como um berserker e girar sua claymore contra o inimigo — só que não existia inimigo nenhum, não um inimigo que pudesse ser visto. O problema era a história deles e isso ele não podia mudar. Suas melhores armas eram a lógica e as palavras macias, mas Ian estava com dificuldades para manter isso em mente. — Você prefere que a noite de núpcias espere até acharmos um clérigo? — Não era uma pergunta justa. Ela já estava excitada. Já estava respirando rápido. Mas ele não a apressaria. Essa noite era muito importante. Selina se reclinou sobre os travesseiros, olhando para cima, considerando, estimando. — Está dizendo que se casaria comigo contra a minha vontade? — Não pensei que fosse uma tola, lady Selina — resmungou ele, a voz parecendo pedra, o corpo rígido com o desejo que ele tentava conter. — Nenhum homem vai querer você depois de ter fugido comigo, especialmente porque, sem qualquer palavra de protesto, você fingiu ser minha esposa. Você não tem escolha senão se casar comigo. Ou eu com você. — Você faz tudo parecer tão romântico. Ian se retraiu. Claro que ele não tinha os modos de um cortesão com as palavras, mas o brilho nos olhos dela dizia que Selina estava brincando com ele. — Estamos nessa juntos, quer queiramos ou não. — Ele olhou para aquele rosto adorável, para a sugestão do corpo deleitável que ele mantinha perto sem tocar. Ian baixou a voz, deixou o anseio transparecer no rosto. — Por que não tirarmos bom proveito disso? — Ele lhe acariciou a bochecha com o polegar. — Não tente relutar comigo, menina. Nós dois sabemos o que queremos. As palavras chocantes contraíram o íntimo de Selina. Ela combateu o desejo dentro de si, exibiu um beicinho e um olhar comovente, deixando um sorriso provocador brincar nos lábios. — Não, senhor, você é mesmo muito persuasivo em seus argumentos — disse ela, numa voz sussurrada —, mas eu não sei se nos entenderíamos bem. Os olhos dele chisparam fogo. — Não faça isso. Forçando-se a não se retrair, ela ergueu uma sobrancelha. — Fazer o quê? — Sorrir para mim de maneira afetada como se eu fosse algum janota da Bond Street e estivéssemos envolvidos em algum flerte casual. — É mais do que isso? Um murmúrio em gaélico cortou o ar. Ian esfregou a nuca. — Claro que é. Sua reputação está em risco. — Seu sotaque escocês parecia se aprofundar, se tornar cada vez mais sedutor e delicioso. Soava mais como ele mesmo, porém as palavras eram sofridas de ouvir. Uma admissão de que não importava que mulher o resgatara, ele se sentiria impelido pela 100


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honra a se casar com ela. Então ele estava feliz por estar ligado a ela, e não a outra mulher? — Nossas famílias são inimigas. — Ela ergueu uma das sobrancelhas arqueadas como se estivessem discutindo a última moda, não conseqüências horrendas. — Seu pai se reviraria no túmulo. Ele sacudiu a cabeça. — Não sou o meu pai. Além disso, um casamento entre nós pode ser uma maneira de fazer as pazes entre as famílias. Uma maneira de deixar o passado para trás. Irracionalmente magoada com o frio raciocínio, Selina fechou os olhos brevemente. Fazia sentido. Tanto quanto uma aliança com a família de Dunstan, se é que isso não seria mais sensato. Os Dunstan eram uma família tradicional, mas não particularmente ambiciosos.— uma das razões pela qual ela o considerou um bom pretendente. — Seu pai poderia enxergar as vantagens do casamento com o tempo. — Uma esposa não arruinaria seu estilo de vida? Você teria que desistir do contrabando. Os ombros dele enrijeceram. — Essa é uma decisão que cabe a mim. Ele então não seria conduzido por uma esposa.. A maioria dos homens não era, razão pela qual teve tanto cuidado ao escollw Dunstan. Estranhamente, pensar num casamento com Ian fazia seu coração bater forte — uma reação muito diferente da ideia de se casar com Dunstan. Dunstan representava segurança. Ian Gilvry representava tudo o que era perigoso. — A ideia de me casar com você me assusta. — As palavras saíram da boca antes que Selina pudesse detê-las. Ele ergueu uma sobrancelha. — Eu a vejo como alguém que não tem medo de nada. — A voz dele estava carregada de divertimento. — Você costumava se safar tão bem quanto os meus irmãos. — Até você tomar o lado deles. Ele inspirou fundo. — E lamento isso a cada dia desde então. — Ian se debruçou e roçou os lábios nos dela. — Você era uma coisinha tão corajosa. — Ele suspirou. — E nunca contou ao seu pai. Ele teria nos esmagado com apenas uma palavra sua; porém, você nunca reclamou. — Não sou dedo-duro. — Ela fez cara feia. — É por isso que você deveria ter confiado em mim o bastante para me deixar voltar para casa. — Isso nada teve a ver com confiança. E tudo a ver com a segurança de seu clã. Selina suspirou. Era tarde demais para se preocupar com o que teria acontecido. Ian estava certo. Fosse lá o que fizesse agora, ela estaria arruinada. Tinham descoberto que ela não estava em sua cama. Nem mesmo Alice poderia protegê-la de tamanho escândalo. — O que você diz, Selina? — murmurou ele, fitando-lhe a boca como um lobo faminto. Ele puxou a mão dela para sua boca e roçou os lábios sobre os nós de seus dedos. — Consumamos esse casamento esta noite? Ou esperamos até encontrar um 101


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sacerdote e eu me retiro para minha dura e fria cama no chão?

Então, ele havia feito o desafio. Provavelmente uma coisa tola a se fazer com uma mulher tão voluntariosa quanto essa, mas ele não via outra maneira de proceder. Ian apenas desejava que ela confiasse nele para decidir o que era certo e errado. Ela enxergava o contrabando como crime, não uma maneira de alimentar sua gente, Precisava aprender a confiar no seu julgamento, assim como seu clã fazia. Ian lhe afastou o cabelo do rosto, desejando que ela compreendesse que ele tinha deveres e responsabilidades além do prazer. A pele dela aqueceu ao seu toque. As pálpebras adejaram, os lábios reabriram, maduros e prontos para Ian, que os tomou com calma. Como na última noite, quando a reação dela foi faminta e cheia de fogo. Teve muita força de vontade para deixá-la como encontrou. Uma inocente. Mas não esta noite. Esta noite ele era um homem casado. Uma pulsação de calor apertou-lhe a virilha e ele quase gemeu alto com aquela onda de prazer. Tomou o queixo dela e angulou n cabeça para ter melhor acesso ao seu beijo açucarado. A mão dela abandonou a forte pressão exercida sobre a capa e se aplainou sobre o peito dele. Por um momento, ele pensou que Selina o afastaria, num último esforço de rejeitálo, mas a pequena palma acariciou os contornos do peito, o toque leve como o de uma pena, mas abrasador. Então os braços dela se esgueiraram pelo pescoço dele, puxando-o mais, derretendo-se junto ao peito dele onde os corpos se tocavam, o coração batendo violentamente, a respiração soprando acelerada |e furiosa na bochecha dele. A vibração de um leve gemido no fundo de sua garganta disparou um jorro de prazer pela barriga dele. Debaixo da lã pesada do kilt, ele se enrijeceu. Ian foi tomado por uma rígida satisfação e sentiu a língua com gosto de uísque e a escuridão daquela boca doce. Ele a persuadiu com os lábios e os dentes, enquanto as mãos acariciaram com gentileza os ombros frios, contendo um gemido de frustração. A menos que Selina aceitasse que eles estavam devidamente casados, ele não poderia fazer nada a respeito do desejo que atormentava seu corpo.

Com a boca de Ian em seus lábios, as mãos grandes em seus ombros a manipulavam com uma gentileza inesperada. Sensuais. Sedutoras, o calor corria por suas veias, abrasando sua pele, deixando-a formigando e ardente. Os seios pressionados contra o peito dele, pareciam pesados e cheios. Seu íntimo latejava e pulsava, implorando pelo prazer que Ian havia lhe proporcionado antes. A cabeça dela nadava com as sensações que ondulavam por seu corpo. Não era gentileza o que ela queria. Não queria ser uma boneca de porcelana numa prateleira, um ornamento de vidro a ser apreciado, mas que permanecia intocado devido ao medo de que se quebrasse. 102


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O toque dele era delicioso, delicioso demais, mas não era o bastante para que a mulher dentro dela — a mulher tempestuosa com quem passou anos batalhando para pôr em submissão. Aquela que, no domínio de si mesma, assumia riscos. Aquela que queria que este escocês rude e grande a raptasse para as colinas. Explorando os ombros sob a camisa, Selina estava plenamente consciente da magnífica largura e do poder dos músculos que se juntavam e encrespavam sob suas mãos. Seus dedos correram pelo cabelo macio como seda. Ela enrolou as mechas nos dedos e puxou. Uma hesitação na respiração dele. Surpresa. Uma aceleração nas batidas do coração. Mais urgência em seu beijo. A língua dele lhe varreu a boca, depois começou a recuar. Selina não sabia por qual loucura fora tomada, mas ela capturou a língua com os dentes. Ian ficou paralisado. Selina o soltou. Ele se afastou, quebrando o contato entre eles, exceto pelas mãos, as dele pousadas sobre os braços dela, as dela afundadas nos espessos fios negros. Os olhos dele cintilavam e o peito subia e descia a cada respiração áspera. Ah! Parecia que ela tinha conseguido a completa atenção dele. Seus lábios estavam formigando, o rosto ardia pelo contato com o áspero da barba, e ainda assim ela exibiu um sorriso atrevido. — Então, Ian Gilvry — sussurrou ela, numa vozinha de menina que havia colocado os homens da cidade de joelhos — esta é a nossa noite de núpcias. O olhar dele procurou sua boca e depois se ergueu para encontrar o dela. Ian sorriu. — É sim, de fato. Ele parecia aliviado, como se realmente desejasse aquele casamento. Selina deixou que seus temores, suas suspeitas, se apagassem. O coração disparou como se ela tivesse corrido uma longa distância. Seu peito foi pressionado quando o grande corpo de Ian se debruçou sobre o dela, os dedos apertando seus ombros, a respiração resvalando em sua bochecha. Seu peito parecia tão cheio de anseio que ela não conseguia respirar. — Bem, o chão parece muito duro e muito frio. Eu não poderia deixar você passar uma noite tão desconfortável. Os lábios dele se curvaram num sorriso de pura sedução, os olhos se iluminaram, reluzindo como safiras. Ela nunca havia visto Ian parecer tão jovem ou tão maroto. — Então essa rendição é só por minha causa, não é? Ela sorriu. — Ah, acho que isso me traz alguns benefícios também. Ian se debruçou e lhe mordeu o lábio inferior. O prazer disparou pelo corpo dela, assentando-se bem em seu íntimo. Ela ofegou com a impetuosidade da sensação. Numa risada suave, Ian lhe invadiu a boca com a língua, ordenando lhe ceder, pressionando-a contra o colchão enquanto os corpos se alinhavam, pressionando a coxa entre as dela. O peso dele lhe derreteu os ossos. Era como se Selina pudesse absorvê-lo na pele, como se pudessem se fundir em um único ser. E enquanto isso Ian lhe provocava os lábios a língua invadia sua boca, instigando-a, encorajando-a a acompanhar 103


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Encorajada, ela tentou uma lambida hesitante. Ian lhe capturou língua com os dentes, depois sugou. Arrepios de prazer se espalharam nela, da cabeça à ponta dos pés. Algo bem lá no fundo se convulsionou. Ela ofegou diante do ataque violento. Ian a soltou. — Seu gosto é tão bom que eu poderia engolir você inteira — murmurou ele, beijando-lhe a ponta do nariz. Selina mordiscou seu lábio inferior. — Não se eu comer você primeiro. — Ele deu uma risada, como se ela tivesse feito uma grande piada. Selina mordiscou o queixo áspero, a maçã do rosto, o lóbulo, quando ele virou a cabeça. O rápido sibilar da respiração dele aumentou o nó lá embaixo, no ventre. Interessante. Não era apenas o que ele lhe fazia que parecia bom, mas como reagia ao que ela fazia, acelerando e queimando seu corpo. Ele lhe capturou o rosto nas mãos, os polegares deslizando pelas maçãs do rosto, o olhar intenso. — Eu juro, deste dia em diante, honrá-la como minha esposa por todos os dias da minha vida, na saúde e na doença até que a morte nos separe. Um voto de casamento. Aquilo fez o coração dela se apertar dolorosamente, um tipo de dor alegre que parecia comprimir seu peito. — E eu também — Selina conseguiu dizer, apesar do embargo na garganta. E logo estavam se beijando outra vez. Através da neblina de sensações deliciosas produzida pela boca de Ian em seus lábios, Selina estava ciente da pungente urgência entre suas coxas conforme o joelho dele as forçava a abrir. A pressão do quadril sobre a sua púbis era ao mesmo tempo maravilhosa e torturante. Um polegar resvalou pela base do seio, deixando uma trilha ardente de calor, mas ainda assim o toque era muito leve, muito gentil. De sua garganta emitiu-se um som, metade rosnado, metade ronronado, que ele capturou com a boca. Selina nem sabia se ele o ouvira. Devia ter ouvido. A mão dele subiu mais, cobrindo o seio, explorando e massageando. EIa estremeceu com o toque e um som de aprovação ribombou no peito dele. O polegar provocou o mamilo através da fina proteção da combinação. Outro espasmo de chocante prazer. Selina arfou. Não havia lugar para o choque naquele ato amoroso. Eles agora eram marido e mulher, e ela estava se derretendo e formigando ao mesmo tempo. Sob as palmas dela, a vasta planície das costas parecia quente debaixo da camisa. Seus dedos exploradores sentiam músculo e osso; o cheiro dele, de sabão e homem, invadiu suas narinas, e seu coração ficou pleno. Ela estava nos braços do homem que sempre... amou? Selina fechou as portas para tal pensamento. Fazia com que ela se sentisse vulnerável demais. Eles estavam casados por conveniência, o que vinha acompanhado de benefícios agradáveis. Ian se afastou dela, interrompendo o sedutor encanto. A mente dela foi clareando lentamente, enquanto o olhar dele descia por Selina, os olhos ardentes, a expressão faminta. Durante toda a vida, ela ficou fugindo de homens que a, olhavam com ardor. Colocando barreiras. Ele era o único homem de quem ela ia ao encontro. O que tinha sido feito não podia ser desfeito. As conseqüências viriam no futuro. 104


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Ele se ajoelhou, soltou a camisa do cinto e a puxou pela cabeça, atirando-a no chão. Selina o fitou com assombro, como havia feito na primeira vez. Ian era glorioso. Uma beleza esculpida. Um deus da guerra, com cicatrizes de batalha e uma bandagem ao redor de seu mais recente encontro com o perigo. Em vez de macular, as linhas esbranquiçadas das velhas cicatrizes acentuavam a pureza de sua forma. Não como a carne arruinada de sua coxa. Será que ele a acharia tão feia quanto ela? Será que se arrependeria da oferta de casamento quando visse o dano que sua tolice havia provocado? Com hesitação, traçou com a ponta dos dedos uma cicatriz que cortava duas costelas. Ele pegou sua mão e a levou aos lábios. Ian saiu da cama e desafivelou o cinto. — Não teremos segredos entre nós. — A voz dele era um baixo gemido. E um desafio brilhava em seus olhos. — Nada de coito desajeitado no escuro. — Ele deixou o kilt cair. O falo estava ereto, escuro e imenso, brotando agressivamente do escuro ninho de caracóis. Era enorme. Uma pérola úmida se destacava em sua ponta. Ela engoliu em seco. Lambeu os lábios, a boca seca. Selina ergueu o olhar em busca do dele. — Não tenha medo, menina — murmurou ele. — Não de mim. Eu jamais faria algo para machucar você. — Não estou com medo — garantiu ela, num sussurro. Não fisicamente, na verdade. O que mais temia era o que veria no rosto dele quando Ian visse seu corpo. As cicatrizes. Talvez visse repulsa ou, pior, pena. — O que aflige você? — perguntou ele. Seus temores deviam estar estampados no rosto — algo que ela não costumava permitir. Selina respirou fundo. Não havia volta. Não havia como mudar o passado, então era melhor acabar com aquilo. — Sem segredos. — Ela afastou a capa, que tinha escorregado para a cintura junto com o lençol. Inspirando depressa, como antes de pular na água fria, ou antes de dizer a verdade quando seria mais fácil mentir, ela ergueu a combinação até a cintura e a puxou pela cabeça. Arrepios cobriram sua pele. Os mamilos enrijeceram de frio e nervosismo. Determinada a não se esconder, Selina encarou o rosto dele, observando a reação. A princípio, Ian pareceu surpreso. Provavelmente não esperava que ela fosse tão ousada. Depois, quando o olhar varreu seu busto farto, um busto que foi o objeto da ode de vários libertinos, a expressão dele abrandou para uma sincera apreciação. Ele deu um longo suspiro. — Lindos. Selina resistiu à vontade de cruzar os braços sobre os seios. Os homens de Londres, afinal, tinham visto tudo, exceto pelos bicos rosados, através da escassez de sedas e musselinas. Cobiçavam sua figura desde o momento de sua chegada e deviam ter uma boa noção do que havia por baixo. O que ela realmente queria fazer era virar de lado, esconder a perna direita com a 105


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esquerda, mas era tarde demais. O olhar dele já havia alcançado o umbigo e estava viajando até o ninho de caracóis debaixo da curva da barriga. Selina soube quando ele viu as cicatrizes. As sobrancelhas se uniram e ele ergueu o olhar para o seu rosto. Mesmo estando pronta, ela virou a cabeça e puxou o lençol para esconder sua feiúra, mas a mão dele já estava afagando uma das coxas, depois a outra. Ela ousou espiar a expressão dele. Nada de pena, só pura sensualidade. Será que não tinha notado? Selina pôs a mão sobre a carne arruinada, detendo a leve carícia da mão que vinha subindo desde o joelho. Ian a fitou como se estivesse surpreso. Selina sentiu o rosto arder. — Não é uma imagem muito bonita, eu acho. Fui muito idiota e sortuda por não ter ferido mais ninguém. Hawkhurst viu a coisa toda e conseguiu soltar os cavalos antes que causassem qualquer estrago. — O marido da sua amiga? O tom trivial a deixou um pouquinho menos insegura. Ele ao menos não estava agindo com horror. — Sim. Seu rápido raciocínio salvou a minha perna. Os médicos disseram que eu não voltaria a andar. — Ela estalou de leve os dedos na carne arruinada, esperando que a voz não revelasse seu embaraço. — Se isso lhe der nojo, podemos soprar a vela. Ou podemos esquecer isso tudo. — Ah, leannan, querida, é isso o que pensa? Ian pegou sua mão e beijou a palma. O calor saiu estremecendo por suas veias. Ian a colocou sobre a cicatriz em seu peito. — Acha desagradável de olhar? Selina engoliu em seco. — Faz você parecer um guerreiro. Uma risadinha vibrou sob sua palma. — Pensei a mesma coisa. Eu me cortei com uma foice quando linha 15 anos, mas disse para todas as mulheres que era o corte de um sabre. — É de se esperar que homens tenham cicatrizes. Mulheres devem ser perfeitas. Ele sacudiu a cabeça. — Isso agora é parte de você. E é tão bonitinho quanto o resto. — O olhar ardente varreu seu corpo até o rosto. Ian provavelmente viu dúvida, pois continuou falando, o tom baixo e sedutor. — Uma mulher precisa de bem mais do que mera beleza física. Precisa ter espírito também, sabia? Mas você é tão bonita para mim aqui... — os dedos traçaram o enrugado emaranhado de linhas rosadas e músculos deformados, o toque gentil, quase reverente em sua leveza — ... quanto aqui. — Fez cosquinhas por trás dos joelhos dela. Lágrimas turvaram seus olhos, ainda que estivesse sorrindo. Era muita emoção. Era muita felicidade. — Não chore, benzinho — murmurou ele. — Prometo ser cuidadoso. — Inclinou-se para deixar beijos suaves ao longo do ferimento. 106


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Ela se sentiu frágil outra vez. — Não — disse ela, agarrando os ombros dele, forçando-o a olhar em seu rosto. — Não me trate como uma inválida. Ou uma boneca. Sou uma mulher. Não vou quebrar. Um sorriso surgiu lentamente. Um calor azul incendiava seus olhos. — Sim — ele assentiu. — Você é uma mulher. Toda cheia de garras. Tomou sua boca num beijo de punição. Duro. Exigente. Apertando as mãos nos ombros musculosos, Selina fez suas próprias exigências. Puxou-o para perto, até Ian tombar ao seu lado na cama, abrindo as coxas para acomodar seu peso sobre os quadris dela. Ele se afastou resmungando uma praga, deslizando pelo corpo dela, deixando uma trilha de beijos abrasadores e carícias ardentes. Parou no vale entre os seios, moldandoos com as mãos, puxando primeiro um mamilo para a boca, depois o outro. Sem gentileza. Sem afagos delicados. Seu toque violava, assim como a boca. O toque de um homem que adorava a sensação da carne em suas mãos. Banhou um mamilo com a língua, despertando calor, seguido de um súbito frio quando dava a mesma atenção ao outro seio. Os lábios e a língua provocavam o seio, e ela observava com pálpebras quase cerradas e apertando convulsivamente o cabelo dele a cada pulsão em seu íntimo. Enquanto a boca provocava uma dor magnífica, as mãos acariciavam e massageavam as costelas, o quadril, a barriga, um lento movi mento descendente da pele quente e áspera numa pele tão viva que sua mente parecia prestes a se estilhaçar.

Capítulo Treze

Permissão para perder o controle? Encorajamento para deixar a fera primitiva sair da jaula? O desejo dominava Ian. A vontade de marcá-la como sua, marcá-la com lábios e dentes, deixar que a força de seu desejo o levasse a uma felicidade negligente, era violentamente tentadora. Além da razão. A mordida das unhas em suas costas e nádegas, a maneira como saboreava seu ombro com a língua, os lábios e os dentes, tudo isso o deixava louco. Sufocando um gemido, respirou fundo várias vezes. Ela estava pronta para ele. Não tinha escolha senão machucá-la, mas ele lhe daria prazer antes da dor. Arqueando as costas, resistindo ao puxão dela, tomou a boca, o leve gosto do uísque com sabor de fumaça de turfa persistindo na língua. Enquanto as bocas se derretiam e brincavam de dar lambidas certeiras e sugar, sua mão direita espalmou a púbis, os caracóis úmidos, a carne quente. 107


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Pressionou a base da mão e ela choramingou de prazer em sua boca. Selina arqueou o corpo contra sua mão, sem saber do que precisava. Não ainda. Lenta e calmamente, abriu suas dobras com o toque, explorando a entrada, ansioso para ver. Não desta vez. Não era a sua hora. Deslizou o dedo, maravilhadíssimo com a compressão. Com a barreira que conseguia sentir em sua entrada. Selina ficou paralisada. Sua respiração chiou. Ele respirou pelo nariz de maneira profunda e entrecortada, e ficou parado enquanto ela se acostumava com a invasão. Interrompeu o beijo para olhar no rosto dela. Seus olhos estavam enevoados de paixão, os lábios vermelhos dos beijos, as bochechas também, por causa do toque abrasivo da barba. Era uma espécie de marca. Com o polegar, ele fez carícias circulares até encontrar a pequena protuberância que proporcionava prazer por si só. Ela estava lânguida. Entregue. Seu membro pulsava com exigência, arrancando todos os pensamentos de sua cabeça na busca pela saciedade. Ian circulou mais forte e mais depressa. Ela ofegou, arremetendo os quadris com violência. O olhar dela buscou o rosto dele, os olhos arregalados de choque e enevoados de prazer. A respiração parou. Rígida, ela atingiu o ápice. E tombou num clímax de tremores. Agora. Ele a invadiu. Perdendo-se dentro de suas profundezas, ainda sentindo que ela se encolhia de dor, mesmo enquanto a felicidade urrava em seu sangue e a reclamava. Seu próprio clímax veio rápido. Fora de controle, nem um pouco cuidadoso como pretendia. Selina se agarrou nele com joelhos e calcanhares, as mãos em seus ombros, enquanto os quadris dele socavam. E Ian a cavalgou até a saciedade, enquanto as íntimas contrações do prazer dela o estimulavam. Extenuado, tremendo como um garanhão exausto, ele a beijou no ombro. Olhou o pequeno osso, cujo contorno delicado era revestido por pele macia, e ficou horrorizado por ver marcas dos seus dentes. Tanto esforço para manter o controle! Ele afastou a gloriosa nuvem de cachos negros das têmporas molhadas de suor e beijou a batida pulsante delineada de azul sob a pele, depois os lábios. — Você é maravilhosa — ofegou ele. — Minha esposa. — Meu marido — sussurrou ela em resposta, reclamando-o do mesmo modo que ele a reclamara. Ninguém poderia separá-los agora. Ian rolou de lado e a manteve apertada junto ao seu corpo, sem deixar de cobri-los com o lençol e a capa. Levantaria daqui a pouco para pegar o cobertor. Daqui a pouco. Fechou os olhos e saboreou o calor que fluía por seu corpo. PUNHOS bateram numa porta. Alguém gritou. — Abra! A voz sonolenta de McKinly praguejou. 108


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Eles tinham sido encontrados. Ian se sentou, a mente em disparada. Será que tinham sido inadvertidamente entregues pelo menino de McKinly? Ele pulou da cama e passou depressa o cinto pelo kilt, sem se preocupar com uma camisa. — Quem é? — perguntou Selina. Na escuridão das primeiras horas da manhã, ele conseguia ouvir a preocupação na voz dela, mesmo que não conseguisse ver o seu rosto. — Não sei. Vista-se e espere aqui. Ele abriu o trinco na janela e a escancarou. — Caso tenhamos de sair depressa — explicou ele, num sussurro. Selina já estava tateando em busca das roupas. Sem palavras, sem pânico, apenas fazendo o que precisava ser feito. Ele se esgueirou porta afora e a fechou. — Abra! — a voz berrou outra vez. A voz de Niall. A tensão nos ombros dele diminuiu. Ian assentiu para que McKinly abrisse a porta, então o homem levantou a trave de madeira. A porta se escancarou. — Ian! — exclamou Niall, adentrando a sala com Logan logo atrás. Ele socou o ombro de Ian. — Graças a Deus tivemos notícias suas a tempo. — O que foi, homem? Logan foi ao fogo esquentar as mãos, o jovem rosto aturdido. Para variar, a expressão de Niall era séria. E preocupada. — Albright colocou a milícia para esquadrinhar a região à sua procura. Por contrabando e seqüestro. O desgraçado finalmente encontrou uma maneira de enforcar você. Você terá que partir. Vá para França. Para a América. Até parece! A boca de McKinly estava totalmente aberta. — E quem supostamente eu seqüestrei? — perguntou Ian. — A filha dele, Logan disse que ela estava lá no promontório. Agora ela está desaparecida. Logan arregalou os olhos, olhando por cima do ombro de Ian. Ian girou. A porta atrás dele estava aberta e Selina saiu. O cabelo escuro pendia sobre os ombros, o vermelho vivo da saia rodopiava ao redor dos calcanhares. Com o rosto corado e os lábios rosados, ela parecia uma mulher que tinha sido bem amada. O queixo de Niall caiu. — Por Deus, Ian, o que você fez? Nós todos seremos enforcados. McKinly parecia espantado. Ian puxou Selina para seu lado, sentindo a rigidez nos ombros dela. Medo, quando, até agora, tinha sido destemida. Ele lhe deu um sorriso encorajador. — Lady Selina me deu a honra de se tornar minha esposa. — Sua... — Ao ler o olhar de Ian, Niall se resignou ao silêncio. Logan estreitou os olhos. 109


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— Você é uma desgraça para o clã, Ian Gilvry. Como pôde? Depois que a família dela roubou nosso direito nato? — O olhar dele o percorreu, os lábios se retorceram de maneira amarga. — Eu posso entender que queira se deitar com ela. Mas casamento? Nossa mãe jamais irá perdoá-lo. Selina ofegou, tentou se desvencilhar dele. Ian a manteve presa, — Mamãe terá que aceitar. Assim como você. — A filha do Albright? — ecoou McKinly. — Na minha casa? Ian lhe deu uma olhada séria, depois dirigiu sua ira aos irmãos. — Esta dama é minha esposa. Vocês a tratarão com o respeito que lhe é devido. Logan abriu a boca para discutir e Ian achou que teria que levá-lo para fora e lhe socar um pouco de senso. Uma coisa que um laird não podia permitir era que um de seus homens, qualquer um, desobedecesse uma de suas ordens. Ele devia saber como seria. Se essa era a reação de seus irmãos, os outros membros do clã agiriam pior. Ele fez cara feia. — Estou falando sério, Logan. O rapaz ergueu as mãos. — Tudo bem. — Inclinou ligeiramente a cabeça. — Peço desculpas a sua esposa. — O desgosto gotejou de sua língua e Ian quis socá-lo. A expressão de Niall era uma de simples horror e confusão. O rosto de Selina estava pálido, os lábios, apertados, mas ela se manteve firme ao seu lado. Ele devia ter avisado como seria, mas pensou que haveria mais tempo. McKinly afundou na cadeira e esfregou a nuca. Depois ergueu o canto da boca. — Não há crime em casar com uma moça disposta. É um ótimo plano de vingança esse que armou para o Albright. Fugir com a filha dele. Selina ofegou novamente. Olhou para ele, uma pergunta no rosto. — Você planejou isso? — Você sabe muito bem que não — retrucou ele, enfurecido com — o tom de acusação na voz dela. Niall parecia pensativo. — Seu cão ardiloso — disse de repente, um sorriso vagaroso despontando no rosto. Desferiu um soco contra o estômago de Ian e errou quando ele deu um pulo para trás. — A fortaleza. Depois de todos esses anos, a fortaleza de Dunross está de volta à família. — Está? — disse Logan, erguendo o olhar para o rosto de Ian, que encarou Niall. — Sim — retrucou Niall, que olhou para Selina. — Eu ouvi das garotas no castelo de Carrick que ela estava comprometida com um sassenacs e que a fortaleza era parte do acordo. Ela será sua agora. O queixo dele caiu. Selina se livrou da mão dele, a expressão cautelosa. — Esse era o assunto que você tinha com Angus que dizia respeito ao clã, não era? Esse é o estratagema que vocês dois estavam tramando sem que eu ouvisse? O remorso o atingiu fundo. Angus tinha lhe colocado a ideia de casamento na 110


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cabeça, mas ele não sabia de nada sobre a fortaleza, a culpa devia estar transparecendo em seu rosto, pois a expressão de ultraje de Selina se transformou numa de desgosto. — Eu devia saber — disse ela, afastando-se. — Você não é melhor do que Andrew. Enganando para conseguir uma herdeira. As palavras foram um tapa no rosto dele. O orgulho se eriçou como uma fera em seu sangue. — Fico orgulhoso de qualquer comparação com meu irmão. Logan e Niall se postaram de cada lado dele, punhos cerrados. Pareciam prontos para despedaçá-la membro a membro. Uma semana antes, ele teria feito o mesmo. Em vez disso, uma urgência esmagadora de protegê-la o forçou a virar e encarálos enquanto a puxava para detrás de si. — Basta! — urrou ele. Virou-se para ela. Selina o fitava, desafiadora como uma gatinha diante de um mastim, garras prontas para arranhar. — Estamos casados e ponto final. Logan girou. — Espere até nossa mãe saber da novidade. — Dito isso, desapareceu noite adentro. Ian saiu atrás dele. Niall estendeu a mão. — Deixe-o ir. Ele vai recobrar o bom senso em breve. — Então olhou para Selina. — Ele vai ver a sensatez disso quando o sangue esfriar. Assim como nossa mãe. E o clã. Numa tacada só, você resolveu todos os nossos problemas. O rosto de Selina estava pálido como o de um fantasma, os olhos, escuros e acusadores. — Você me enganou. — Ela se voltou para McKinly, que parecia capaz de apanhar uma mosca com a língua de tão caído que estava o queixo. — Não é verdade. Não estamos casados, senhor McKinly. Não houve cerimônia nenhuma. Casamento nenhum. O repúdio o machucou fundo no peito. Uma sensação visceral de perda. Não. Era raiva. Ela não tinha se incomodado com a ideia do casamento uma hora atrás e agora o envergonhava diante de membros do seu clã. E a si mesma, por sinal. Ian queria sacudila. Manteve os punhos cerrados ao lado do corpo, lutando para conter a fúria. McKinly coçou a pouca barba que havia crescido no queixo durante a noite e olhou para Ian. — O que você diz agora não faz diferença, minha senhora. Você disse que eram casados, depois vocês dormiram na minha cama como marido e mulher. As bochechas dela se incendiaram num vermelho vivo. Embaraço. Vergonha. Mágoa. Foi essa última que deixou Ian enjoado. — Eu não sabia nada sobre a fortaleza. Ela talvez nem seja transferida. Selina se postou em toda a sua altura, encarando-o com uma arrogância que ele não podia deixar de admirar, mesmo que o ressentimento dela o enfurecesse. — Foi por isso que se afastou com Angus. Ele contou, não foi? Por isso que você estava se sentindo tão culpado ainda agora. Foi por isso que me enganou a aceitar esse 111


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casamento. — Não. — Não acredito em você. Esse casamento jamais se validará num tribunal inglês. — Validará — disse ele, com aspereza. — Sempre se valida. Negue que estamos casados e o que será de você? Ian desejou ter segurado a língua quando a viu se retrair. — Selina — disse, com mais gentileza. — Esse casamento aconteceu por sua própria vontade. Ninguém a forçou. Para seu pesar, lágrimas se empoçaram nos olhos dela. Ian estendeu a mão para puxá-la para seu lado, mas ela se esquivou do alcance dele. Ele se enganou quanto às lágrimas. Os olhos dela estavam chispando de raiva. — Eu odeio você. Droga! Se o clã pressentisse que ele não estava no controle da esposa, então haveria uma briga entre aqueles que o consideravam certo e aqueles que o consideravam errado. Isso os dividiria. — Vamos discutir isso mais tarde. Vá se deitar. Tenho assuntos a tratar com os membros do meu clã. Ela curvou os lábios. — Mais conversinhas secretas. — Assuntos do clã. Já faço companhia a você. Ela o fitou de cara feia, viu que Ian não cederia, então virou a cabeça. — Se me dão licença, cavalheiros, eu nunca fico onde não sou desejada. Aquilo tinha o som de uma ameaça. A maneira como os olhos dela faiscavam irritação era magnífica, e o rodopio das saias ao redor das pernas incendiou o corpo dele quando ela seguiu para a porta do quarto. E para a sua cama. — Pequena sassenach mimada — disse Niall, baixando a voz, mas não o bastante para que ela não ouvisse. Ian soube, pela maneira como ela esticou a espinha. Mas agradeceu a Deus quando ela não disse nada e fechou a porta do quarto com uma forte batida, — Eu apoiarei sua escolha, rapaz — disse McKinly. — Ela não é uma moça tão ruim. Veja como ajudou minha Marie Flora. Niall sorriu. — Acho que foi uma atitude brilhante. A resposta para todas as nossas orações, seu cachorro astuto. Eu até beberei em sua saúde, se McKinly repartir um gole do seu uísque. Brilhante. Se ele ao menos conseguisse convencer Selina a pensar o mesmo. Seduzi-la outra vez? O corpo dele enrijeceu. Outra vez. Ele não tinha tantos surtos de excitação desde que era um rapaz. Mas não queria uma esposa indisposta. Diabos, ele nem queria uma esposa antes conseguir liquidar as dívidas dos Gilvry. Ao menos não até essa mulher cruzar seu caminho novamente. — Precisamos voltar a Duriross e conversar com Albright — disse ele. — Sem nos depararmos com a milícia. Eles parecem dispostos a atirar primeiro e fazer perguntas depois. 112


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Niall olhou para a bandagem no braço dele e assobiou. — Parece que estão querendo mesmo trabalhar. — Eu também. Vamos tomar aquela dose, McKinly. — Ele precisava de um fortificante antes de encarar a esposa. O soM dos canecos sendo perfilados e cheios infiltrou-se pela porta do quarto. A verdade era uma lâmina brilhante e afiada em seu coração. Não Importava o que Ian dizia, estava bem claro que ela tinha sido usada por ele. Enganada por ele. Selina se afastou da porta, socando o punho cerrado na palma, a raiva grande demais para que aceitasse tudo com calma. Raiva e mortificação. Ela se sentia uma idiota pior, ela se sentia traída. Se ao menos não o tivesse beijado na caverna. Só uma vez um beijo havia subjugado seus sentidos. E ela acabou sendo ferida. Muito. O beijo também fora de Ian. Ele a deixou para se juntar aos irmãos nas provocações. Não havia atirado nenhuma pedra, mas disse que ela não era desejada. Parecia que ela não tinha aprendido a lição. Só que, dessa vez, a dor em Seu peito parecia muito pior. Ela inspirou fundo para se controlar. Não havia razão em lamentar o que não podia ser mudado. Ao menos ela sabia a verdade. Poderia elaborar suas opções. Olhou para a janela aberta. Não seria difícil sair e desaparecer na noite. E ir para onde? Para a casa de Alice. Negar que o casamento sequer havia acontecido? Ou ir para casa, bater os cílios para seu pai e fingir que estava perdida durante aquele tempo inteiro e não sabia nada sobre contrabando e contrabandistas? Mas, como havia percebido antes, era tarde demais para salvar sua reputação. Qualquer esperança de se casar com Dunstan tinha sumido no momento em que saiu para alertar Ian. Seria por isso que tinha agido dessa maneira? Como forma de escapar? Ela apertou bem os olhos. Tentou retornar ao momento em que tomou a decisão, para testar suas verdadeiras intenções. Teria mesmo usado isso como desculpa para evitar se casar com Dunstan? Uma forma de fugir? Da maneira como tinha fugido de Lisboa? Mas não importava como ela olhasse para a situação em que se encontrava agora, fugir não era uma opção. Ian a levara para a cama. E ela havia consentido, pois achava que eles tinham encontrado algo significativo. A amargura subiu até sua garganta. Ele a tomou como esposa para que pudesse recuperar a fortaleza de Dunross. Como pôde ser tão estúpida? Ele a enganou com beijos e sedução. E ela tinha caído nas mãos dele como uma fruta madura. Ou melhor, a fortaleza tinha. Selina rosnou. Seu pai ficaria furioso quando descobrisse que ela havia entregado a fortaleza aos Gilvry. E devia estar preocupado. Por que mais ele teria colocado a milícia à procura de seu suposto seqüestrador? Uma milícia que parecia pronta para atirar à primeira vista. Seu sangue gelou. Ela abriu a porta. Os três homens ao redor da mesa de cavalete ofegaram quando a viram. Ian se 113


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colocou lentamente de pé, um franzido na testa. — Selina — disse ele, a voz um alerta. — Se vamos para Dunross, devemos partir agora — anunciou ela.— Antes que chegue a luz e nós nos tornemos um alvo fácil para algum soldado ambicioso. Um sorriso se espalhou no rosto de Ian. Ela o encarou feio. — Isso não significa que estou contente com essa situação. Você conseguiu sua fortaleza e um casamento de conveniência. Niall a encarou com um olhar estreito. — Você seria um tolo por confiar nela, Ian.

Capítulo Catorze

Para surpresa dela, Ian concordou que deviam partir imediatamente. Despediramse de McKinly e Selina deixou uma mensagem de adeus para Marie Flora. Ela montou em Beau, enquanto os homens seguiam caminhando à frente, falando em gaélico, excluindo-a da conversa. Típico! O sol, escondido por trás de uma mortalha de nuvens cinzentas, não estava muito alto no céu quando adentraram o pátio de Barleycorn. Willy Gair saiu do estábulo e os fitou, boquiaberto. Olhou para Ian, depois para Selina, e franziu o cenho. — Ian lhe deu uma ordem brusca em gaélico. O homem parecia disposto a discutir, depois curvou a cabeça e sumiu. Selina se debruçou sobre o pescoço de Beau para que Ian a ouvisse melhor. — Pensei que fôssemos para a fortaleza. — Tudo ao seu tempo. — Ian a ajudou a descer do cavalo e a conduziu para dentro da estalagem. — Minha lealdade pertence primeiro ao meu clã. Eles devem estar preocupados. E ele achava que o pai dela não estava preocupado? Zangado, sim, mas preocupado também. E agora ela estava se sentindo tão culpada e tão estúpida que queria vê-lo e implorar por seu perdão. Enquanto Niall cuidava do cavalo, Ian a conduziu para dentro da estalagem e a sentou num canto do bar. Passos ruidosos e apressados ecoaram por degraus estreitos por trás de uma cortina num canto da sala. A cortina foi puxada para o lado. — Estamos fechados. 114


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— Que bela recepção, Ranald — disse Ian, com um fantasma de sorriso. — E eu aqui pensando que você gostaria de me oferecer um gole em comemoração ao meu casamento. — Ele falou em inglês, sem dúvida para o proveito dela. — Laird? — O estalajadeiro esfregou os olhos e olhou novamente, como se para garantir que não estava vendo coisas. — Está louco? Tem soldados procurando você por toda parte. — Ele espiou por cima do ombro de Ian. — E a garota ainda está com você? Você vai ser enforcado, com certeza. — Acho que não ouviu o que eu disse. Lady Selina me deu a honra de se tornar minha esposa. O choque, seguido rapidamente pelo horror, cruzou o rosto dele. A boca se abriu e fechou. — Gostaria de um café, querida? — perguntou Ian, dando a Ranald tempo de se recuperar. — Isso se o meu anfitrião conseguir se lembrar das boas maneiras. — Chá, por favor. O homem engasgou. — Chá, certo. — Escolheu uma garrafa, desarrolhou-a com os dentes e tomou um longo trago. Ele apertou a garrafa como se fosse um salva-vidas, encarando Ian. — Chá — repetiu Ian. — Mandarei Bridie colocar a chaleira no fogo. Largou a garrafa e correu para trás da cortina. Ian foi para trás do bar e tirou uma nova garrafa da prateleira. Despejou uma dose num copo e olhou para ela com um sorriso torto nos lábios. — Nós nos saímos muito bem, não acha? — Não. — Vai melhorar, prometo. — Ian engoliu o uísque e serviu-se de outro copo. Em seguida, serviu um copo para Niall, que surgiu porta adentro. Bridie, uma mulher rechonchuda e de bochechas rosadas de cerca de 4O anos, trouxe uma bandeja com um bule e leite. Olhou feio para Selina, mas não falou nada. Olhou da mesma forma para Ian e sibilou algo em gaélico antes de desaparecer por trás da cortina. — O que ela disse? Ian hesitou. — Posso pedir que ela repita em inglês. — Ela disse que ele devia se envergonhar — retrucou Niall. — As palavras foram diferentes, más foi o que ela quis dizer. Selina sentiu as bochechas arderem. — Acho mesmo que... Dois homens entraram no bar — Tammy e Colin Gilvry, o ferreiro, primo de Ian. Os dois homens a olhavam como se ela fosse um inseto nojento que eles gostariam de esmagar. Um tremor percorreu o corpo dela. Selina achava ter escondido bem o seu desalento até Ian se aproximar dela. Ela não pôde deixar de sentir conforto com a proximidade dele. Respirou fundo e respondeu aos homens com o olhar também. Afinal, depois de ela mesma ter provocado 115


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tudo aquilo, não podia se acovardar agora, podia? Depois deles dois, outros homens chegaram e logo o pequeno salão estava quase transbordando de escoceses imensos e vingativos. Ela realmente desejava que Ian a tivesse levado à fortaleza e enfrentasse seu clã sozinho. Covarde. Este era o povo dele. O clã dele. Se seu marido a desejava ali, então ela não tinha escolha. Selina tinha desistido de todos os seus direitos com o casamento. Seu sangue gelou diante de tal pensamento, mas ela retribuiu os olhares sinistros com toda a calma e indiferença que conseguiu reunir. E conseguia reunir bastante, dado o seu treinamento nos salões de baile em Londres. A maioria deles deixou o olhar se desviar. Exceto Willy Gair. Ele possuía uma expressão muito estranha no rosto. Não de horror, embora houvesse um tanto disso também — algo mais semelhante ao medo. Douglas McTavish sorriu. — Vejo que se esquivou dos soldados, Ian Gilvry. Você tem a sorte do próprio demônio. — Seu olhar foi até Selina e voltou, claramente exigindo uma explicação. — Malditos almotacéis — um homem lá atrás gritou. Ian sorriu. — Fico contente por saber que todos vocês chegaram bem em casa e agradeço por garantirem que a mercadoria chegasse em segurança ao seu destino. Ela vai colocar moedas em seus bolsos e bastante comida na mesa que dure o inverno também. — Muita saúde ao laird. — Sim, um brinde — gritou alguém. Ian ergueu a mão. — Temos mais um motivo para celebrar hoje. Ranald, sirva uma dose para todos — disse Ian. — Depois farei um brinde. Niall tirou o rosto do livro que tinha puxado do bolso quando entrou. — Tem certeza de que quer fazer isso aqui e agora? — murmurou, ao ouvido de Ian. Parecia que, apesar de seu apego aos livros, Niall percebia mais coisas do que se poderia supor. Ele ficou junto de Ian enquanto Ranald entregava um copo aos dois. — Rapazes — disse Ian, o rosto rígido como granito —, deixem que eu apresente minha esposa, lady Selina. Um brinde à minha esposa. Ninguém se mexeu. — Vendeu sua alma aos Albright, não foi? — disse alguém. Os olhos ao redor do salão a fitavam. O ódio no ar ali dentro do salão era espesso e acre. Selina manteve o queixo erguido, mas não conseguiu deixar de se aproximar da figura grande de Ian. Ele pôs uma mão protetora sobre o ombro dela. — Não há necessidade de insultos — disse ele. — Lady Selina arriscou a reputação dela para ajudar todos nós. Sem o alerta dela, não haveria lucro nenhum e a maioria de nós estaria na prisão. — Sim, bem, por mais que estejamos agradecidos, laird, ninguém aqui quer uma 116


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espiã dos Albright no nosso meio. Willy Gair estava quase verde. Ele se virou e empurrou a multidão até desaparecer pela porta. — Sim, e o que o seu avô teria dito? — acrescentou outro. Selina sentiu Ian suspirar de desapontamento. — Aceitem-na ou encontrem outro laird — disse Ian, com frieza. O rosto dos homens se tornou soturno, descontente, mas nenhum deles se retraiu diante do exame firme de Ian. Por alguma razão, ele não havia contado o que o casamento significava com respeito à fortaleza: Por quê? Niall deixou seu olhar vagar pelo salão. Não havia como não perceber sua raiva. — Não olhem para mim. Não usurparei o título de laird do meu irmão. Nem agora, nem nunca. Selina ergueu o olhar para Ian, cujos olhos estavam cheios de sombras, mas também de resolução. Ele sabia como seria, porém não estava usando seu argumento mais persuasivo. O estalajadeiro olhou para Ian; de todos os homens presentes, o olhar dele não era tão inamistoso. — E os planos que você tinha, Ian Gilvry? As promessas. O moinho. A... — Ele deu uma rápida olhada em Selina. — Você sabe. O plano. — Sim, e o plano? — Várias vozes se juntaram ao coro. Estava claro que eles não confiavam nela o bastante para revelar a natureza do dito plano. E ela não podia culpá-los. Era uma Albright e provavelmente sempre seria aos olhos deles. Ah, por que Ian não lhes contava sobre a fortaleza? Claro que isso melhoraria as coisas. Ian deu uma olhada considerável ao homem que puxou a gritaria. — Os planos não mudaram. Os homens pareciam incertos. — Seu sogro é o magistrado. Não me diga que você está com ele no bolso. Não vou acreditar. — O pai dela não sabe ainda do nosso casamento. Eu vim aqui primeiro. Minha lealdade pertence primeiro ao clã. Sem o apoio de vocês, não haverá plano nenhum. Futuro nenhum. — Ian sacudiu a cabeça. — Vocês podem convencer Logan a ficar no meu lugar. — Não. Não vão. — Logan devia ter se esgueirado pela porta que Willy Gair deixou aberta. Ele avançou pela multidão até parar junto de Niall. — Não estou dizendo que estou feliz com esse casamento — prosseguiu ele, ficando vermelho até a raiz do cabelo claro —, mas respeito a escolha dele até que se prove ruim para o clã. Alguns dos homens assentiram. Outros remexeram os pés. Um homem de barba grisalha que estava ao canto olhou para o copo em sua mão com ânsia. — Então o laird se casou com uma sassenach. Claro que qualquer homem com um cérebro pode ver que ela é uma moça bastante atraente. O fato de ela ser a filha do senhorio não pode ser tão ruim. Será que não podemos fazer o brinde? O uísque está 117


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evaporando diante dos meus próprios olhos. Risadinhas se espalharam pelo salão. — Qualquer homem que não quiser beber em saúde à minha esposa, deixe o copo e saia agora. — A ordem na voz de Ian soou forte do salão. Ninguém se moveu. — A Ian e sua esposa, lady Selina — disse Niall. — Ao laird. Lady Selina. Slàinte! — As vozes masculinas foram um forte trovão. Por pura força de vontade, e pela confiança que tinham em sua liderança, eles aceitaram o casamento. A admiração dela não tinha limites. Embora nada transparecesse no rosto dele, Selina pressentia o alívio. Niall, por outro lado, estava sorrindo. — Essa foi por pouco, irmão — murmurou ele. — Eu ainda tinha um ás na manga — disse Ian. — A fortaleza — afirmou Logan, dando as costas para o salão. — Quando vai contar a eles? Ian examinou o salão. — Quando estiver acertado. Quem sabe? Meu sogro pode tentar escapar do acordo. Ele não podia. Era parte das determinações do casamento da mãe dela. A fortaleza pertenceria a Selina quando se casasse. Mesmo assim, não havia motivo para sossegar a mente dele — Ian descobriria em breve. — Bem, posso dizer que mamãe não está muito satisfeita — disse Logan. — Ela verá as coisas de maneira diferente depois que eu conversar com ela — respondeu Ian. — Eu acho que ela não vai querer uma Albright na casa. Ele acenou para Selina. Ian viu o rosto de Selina empalidecer e as costas enrijecerem. — No momento, é o pai dela que eu preciso encarar. Uma batalha por vez. — Ele ergueu a voz. — Outra rodada por minha conta Ranald. Acerto com você depois. Só mais uma rodada, viu, e depois despache todos para casa ou não haverá ninguém para trabalhar amanhã. O estalajadeiro assentiu. — Não se preocupe, eu mando todos embora. — Pegarei seu trole emprestado, se me permitir. Ranald sorriu. — Quer causar uma boa impressão com seu futuro sogro. — O rasto dele ficou sério. — Você tem alguma ideia de quem nos entregou aos almotacéis? — Nenhuma. Mas vou descobrir. — Sim. Vamos esperar que sim. Não podemos correr o risco de sermos capturados novamente. Selina estreitou os olhos em desaprovação. Bom Deus, mulher, agora não, não quando o clã mal tinha aceitado o fato do casamento deles. Eles poderiam tornar a vida 118


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bem difícil se achassem que ela estava tentando interferir nos negócios dele. Ian queria que eles a conhecessem e vissem seu valor. Ele a levou logo para fora antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, acompanhado de perto por seus irmãos. Eles observaram Logan atrelar uma pequena égua castanha ao trole. — Espero conseguir lidar tão bem com meu pai quanto você com seus homens — disse Selina. Ian franziu o cenho. — Cabe a mim lidar com seu pai. — Acho que não. Eu lhe devo desculpas e também uma explicação. Ele a encarou por um bom tempo. — Muito bem. Deixarei que você fale primeiro, mas deixe bem claro que você agora é responsabilidade minha, não dele. Agora, Ian, sem dúvida, considerava-a uma posse ou um fardo. — Ele é meu pai. Ele fechou os olhos por um breve tempo, como se lamentasse as palavras ríspidas. — Só quero que lembre a ele que você é a minha esposa. É meu dever mantê-la segura. Selina se sentiu abrandar por dentro diante do tom protetor da voz dele. Sua nuca ficou arrepiada. Depois ela soltou a respiração. Ele tinha se casado para reconquistar furtivamente o que a família dele foi incapaz de reclamar à força. Como mais ele soaria? Ian queria proteger o que tinha ganhado. Sem dúvida, Ian acreditava que ela deveria estar agradecida por ter permissão para falar com o próprio pai. — Pronto para ir — disse Logan. Ian se voltou para Niall. — Vocês dois ficam aqui, cuidando para que as coisas permaneçam calmas e razoáveis. — Você não vai até a fortaleza sozinho — disse Logan, o rosto chocado. — Eu vou. — E se ele o deixar aprisionado lá dentro? — Estamos no século XIX — retrucou Selina, rabugenta. — Não no XVII. Meu pai jamais faria tal coisa. E, sem evidência, não pode haver julgamento. Logan não parecia muito convencido, mas deu de ombros e foi para junto de Niall. — Você é um tolo por confiar num Albright. Eu não ficaria surpreso se ele estivesse envolvido no que aconteceu com Drew. A expressão de Ian se fechou. Os lábios se apertaram. — Não seja tolo. A morte dele não é culpa de ninguém senão minha. — A dor enchia a voz e a expressão dele. A culpa também. E uma profunda tristeza. Ele pôs o cavalo em movimento, deixando que o irmãos virassem as costas e entrassem na estalagem. 119


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Selina o fitou com curiosidade. — O que você fez com Andrew? Ele inspirou bem fundo e deixou o ar sair devagarinho, como estivesse pensando no que diria. — Eu fiz com que ele embarcasse num navio para o Novo Mundo. Eu o mandei para ver se havia algum lugar onde o clã pudesse se assentar, caso fôssemos forçados a deixar estas terras. — Por causa da minha carta? — Eu nem saberia se você não tivesse escrito, com certeza. — Ian estalou a língua para encorajar o cavalo a subir a colina. — Mas o que ele fez com aquela jovem foi errado. Trouxe desonra ao nosso nome, e foi o que eu disse a ele. Selina se encolheu. Ele não tinha feito a mesma coisa com ela? Talvez não fosse tão desonroso enganar uma Albright quanto enganar um perfeito estranho. Drew tinha agido mal com Alice, fingindo amá-la quando o que realmente queria era o dinheiro dela. Fingiu ser rico e a seduziu para garantir que ela não se recusaria a casar com ele. Pior ainda, espalhou fofocas a respeito disso como uma espécie de garantia. Alice não aceitou ser chantageada e, quando Selina percebeu justamente quem estava partindo o coração de sua melhor amiga, escreveu para Ian e pediu que ele intercedesse junto ao irmão. Drew deixou a cidade em uma semana. — Ele não queria ir. Pedi que Carrick o forçasse a entrar no navio. Meses se passaram sem recebermos notícias, então presumi que ainda estivesse zangado. Depois recebemos uma carta. Ele tinha filtrado para um grupo de exploração de novas terras. Jamais retornaram. Drew sempre foi imprudente. Ele não conseguia resistir a uma aventura, eu suponho. Ele partiu para ver mais do país em vez de aceitar minha autoridade. Um conhecido nos escreveu e contou o que aconteceu. Minha mãe me culpa pela morte dele. — Isso não é justo. — Eu não devia ter mandando Drew para longe. Ele era meu irmão mais novo. — O que ele fez foi crueldade. — Sim, mas com as melhores intenções. Mas eu nunca contei a ninguém que foi você quem me avisou do que ele estava aprontando. — Oh! — E você também não deve. — A expressão dele era feroz. — Eles jamais a perdoariam.

Capítulo Quinze

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O som de patas galopando atrás deles fez com que Ian se virasse no assento. Ele praguejou. Selina se virou para olhar e o coração apertou quando viu os uniformes vermelhos com as condecorações, o retinido cada vez mais próximo. Ian parou o cavalo. — Nós não demos a ideia de estarmos fugindo — disse ele, fazendo uma careta. — Um ferimento à bala por semana é suficiente num qualquer homem. Mais do que suficiente. Selina se preparou para o encontro iminente. Os cavalos passaram por eles e depois os rodearam. O líder sul da fileira e levou seu cavalo para perto da carruagem. Tenente Dunstil, claro. Havia círculos escuros debaixo dos olhos azuis e seu rosto parecia cansado. A pistola na mão dele apontava para a cabeça de Ian. Dunstan se curvou. — Lady Selina. Ian Gilvry, em nome do rei, está preso pelo crime de seqüestro. Venha comigo calmamente ou se arrisque a mais acusações. — E quem é que eu supostamente seqüestrei? — perguntou Ian. Dunstan olhou na direção dela. — Essa dama. — Essa dama é minha esposa. Dunstan franziu o cenho. Suas faces ficaram rosadas. A pistola baixou. Ele olhou para Selina outra vez. — É verdade? Vocês estão casados? — Sim. O rosa se tornou vermelho, a pistola voltou a subir.— Coagida? Essa era a chance de se livrar de um marido que a enganou para que se casassem. Ian estava olhando para ela, esperando que ela o rejeitasse, mas era tarde demais para isso. Ele, sem dúvida, reuniria testemunhas que diriam exatamente o que ela tinha feito. Selina sacudiu a cabeça. — Não fui coagida. Ao lado dela, Ian relaxou. Bom Deus, será que ele tinha planejado iniciar uma briga? A expressão de raiva no rosto de Dunstan se dissolveu numa de desapontamento. Ele devolveu a pistola ao coldre. — Entendo. Selina se sentia péssima. — Eu lamento muito. Por um longo instante, ele apenas a fitou e depois se curvou. — Eu também lamento muito. Lamentava ter perdido seu dote, sem dúvida. Não havia absolutamente nenhuma diferença entre ele e Ian. Selina se sentiu um osso entre dois cães. Um foxhound e um wolfhound. Ela não tinha dúvida de qual venceria. 121


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Ian se remexeu no assento e Selina o fitou. Ele estava olhando feio para Dunstan. Um osso, sem dúvida. — Estávamos nos dirigindo à fortaleza para ver meu pai — disse ela. — Meus homens e eu acompanharemos vocês — disse ele. — Para garantir que cheguem em segurança. — Eu sou perfeitamente capaz de dirigir meio quilômetro até a fortaleza — disse Ian, com severidade. — E até bem mais do que isso, garanto — disse Dunstan, num tom gélido. Deu uma breve ordem ao sargento e os homens foram seguindo atrás da carruagem. Dunstan guiou seu cavalo ao lado de Selina. — Presumo que seu namoro tenha sido do tipo tão intempestivo quanto um vendaval — disse Dunstan, depois de alguns instantes. Ian fez um som que parecia um rosnado baixo. Um aviso. Selina lhe deu uma cotovelada. O tenente poderia facilmente resolver prendê-lo por alguma ofensa pequena, se tivesse a oportunidade — De fato, tenente — disse ela, batendo os cílios. — Um verdadeiro furacão. Apesar de o senhor Gilvry e eu já nos conhecermos há muito tempo. Mas só quando nos reencontramos foi que percebemos que nossas afeições ainda existiam. Não era uma má história. Romântica. Do tipo que os janotas poderiam perdoar depois que recuperados do escândalo. Não que a opinião do janota fosse importar ali nos ermos da Escócia. Mas importava ao pai dela, e Dunstan havia provocado uma boa repercussão do assunto. Parecia fazer isso sem qualquer dificuldade, pois continuava sorrir mesmo que seus olhos azuis, geralmente calorosos, parecessem cinza como o inverno. Selina deu uma olhada em Ian. A expressão dele era tempestuosa. Provavelmente preferia que ela permanecesse calada. Selina inclinou um pouquinho mais perto de Dunstan. — Conseguiram capturar os contrabandistas? O soldado ficou vermelho. — Você sabe que não. Soube que havia uma mulher envolvida. Uma verdadeira aventureira, é o que alguns estão dizendo. Eu duvido muito. — Ele ergueu uma sobrancelha. Será que ele estava tentando fazê-la dizer algo? Ian lhe lançou um olhar que teria feito qualquer mulher tremer, mas não uma que tinha aprendido a lidar com as farpas disparadas pelas mulheres da sociedade. Selina estremeceu. — Não imagino uma dama fazendo tal tipo de coisa. — Ela sorriu para o tenente. — É muita gentileza despender seu tempo nos escoltando com esses criminosos ainda à solta. Ian bufou o que parecia ser uma risada abafada. Dunstan o olhou feio e deixou o cavalo ir desacelerando o passo. — Vai terminar queimada se continuar brincando com fogo — murmurou Ian. 122


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— Ele tentou me apanhar em falso. Eles passaram pelo pesado portão de madeira da fortaleza e Ian fez o cavalo parar sobre as pedras arredondadas do pavimento. Os soldados pararam atrás deles num ressoar de cascos. O que Ian havia lhe dito na última vez em que a levara para casa? Ah, sim. Ele não adentraria os portões enquanto a fortaleza pertencesse a outro. Bem, ela logo seria dele. Dunstan, mais uma vez, trouxe o cavalo para junto deles. — Uma pergunta a você, Gilvry. — A voz dele era afiada, a mão estava na pistola. — Como conseguiu arranjar um casamento em menos de dois dias? Ian olhou por cima do ombro. Seus olhos se estreitaram. Selina virou-se para olhar os soldados que guardavam o portão atrás deles. Não havia como escapar. Ah,Deus, eles estavam definitivamente em dificuldade. Ela olhou para Ian com consternação. Ele ergueu uma sobrancelha de maneira arrogante e encarou o outro homem. Será que pretendia lutar por ela, afinal? Se Ian agisse como ele mesmo, haveria de lutar. Ele sustentou o olhar do outro homem. — A lei escocesa não requer proclamas ou uma licença. Dunstan franziu o cenho. — Mas existem formalidades, de certo? — Todas cumpridas, e agradavelmente cumpridas, por sinal. — O sorriso de Ian se alargou e seus olhos mostraram um conhecimento que o outro homem imediatamente compreenderia. Selina corou. O cavalo que Dunstan montava empinou para o lado a um súbito puxão nas rédeas.

Um tiro certeiro, pensou Ian. Não exatamente o de uma bala numa arma, mas bem perto disso. Ian voltou sua atenção para o corpulento cavalheiro que descia os degraus até o pátio. Albright. Seu sogro. A coloração dele era de um vermelho doentio. Ele correu até o trole e ajudou Selina a descer, segurando-a num abraço apertado. Algo correu dentro das veias de Ian num fluxo quente. Ele se obrigou a descer devagar, contornar pela frente do cavalo e parar atrás da esposa. Albright a afastou de si, seu olhar examinando a filha. — Graças a Deus que está bem. Você me deu um susto muito grande. Lágrimas iluminavam os olhos de Selina. — Sinto muito, pai. — O rubor tomou suas faces. Ian esperou pela apresentação. Será que ela estava envergonhada de admitir sua condição de recém-casada? Ele não ficaria surpreso se estivesse. Um pouco desapontado, talvez até um pouquinho magoado, mas não surpreso. Albright percebeu a presença dele. Seu olhar frenético foi até Dunstan, que 123


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permanecia mais atrás com seus homens. — Prenda esse homem. Ele é um contrabandista. Ele seqüestrou minha filha. O soldado loiro curvou o lábio. — Não houve seqüestro nenhum. Lamento informar, meu senhor. Ele astutamente garantiu que sua filha não desse evidência contra a acusação de contrabando. — O esnobe engomadinho assentiu de maneira rígida. — Se me dá licença, meu senhor, tenho que tratar dos assuntos do rei. — Ele fez o cavalo girar a cabeça e partiu. Selina franziu a testa. Ian conteve o fôlego, esperando que ela percebesse o que Dunstan queria dizer. Que ela percebesse seu verdadeiro propósito com o casamento: A única coisa que não podia negar. Seu olhar intrigado acompanhou o soldado, depois foi tomado pela compreensão, a que se seguiu rapidamente a fúria quando Selina se voltou para ele. — Então isso também era parte do jogo. Você é realmente desprezível. A raiva dele aflorou. — Conte ao seu pai a notícia, Selina — disse com rispidez. — Senão digo eu. Os ombros de Selina tombaram ao se voltar para o homem que também observava os soldados partirem, o queixo frouxo de espanto. Ela respirou fundo. — Pai, gostaria que cumprimentasse meu marido, Ian Gilvry. — O quê? — disse ele, a boca se abrindo e fechando, as papadas balançando. — O quê? Ian pensou que o homem cairia morto na hora de apoplexia. — Estou casada com Ian Gilvry. — Não. — O olhar dele voou para Ian. — Não é possível. Não houve tempo suficiente. — Sob a lei escocesa, é bastante possível — disse Ian. Estava ficando cansado de ficar explicando as leis de seu país. A esposa de Albright veio correndo degraus abaixo, o rosto cheio de alegria. — Selina, querida. Você está bem? — Aparentemente não — retrucou o pai. — Ela se casou com esse sujeito. Ele também não gostou de ser chamado de sujeito. — Meus ancestrais na nobreza escocesa remontam muito mais longe que os seus nas linhas inglesas. Pode me chamar de Gilvry, ou laird. Mas eu não respondo por sujeito ou rapaz. Albright recuou. — Você é bastante insolente, senhor. — Senhor é aceitável também. — Pai, papai — disse Selina com tom tranquilizador, a voz leve e ofegante. — Estou casada com Ian Gilvry. Não há nada que se possa fazer para mudar isso. E, mais uma vez, ele sentia uma pontada na consciência. Não era como se ela tivesse recebido um pedido por sua mão e aceitado. Não da maneira que uma jovem de 124


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sua posição esperava. Ele a enganou, exatamente como ela havia dito. Não que ela tivesse relutado em participar da sedução resultante, pensou ele secretamente. — Devo dizer o quanto estou satisfeito por lady Selina ter aceitado meu pedido — disse educadamente. O barão parecia prestes a explodir. Ele manteve o rosto fixo em Selina. — Por quê? Você poderia ter bem mais! — É tarde demais para arrependimentos — disse ela, mas o arrependimento transparecia em seu rosto. Ian queria socar alguma coisa. — Você poderia ter um duque ou um conde. — Antes do acidente, pai. — Eu teria oferecido o bastante para que isso acontecesse. Eu te disse. Mas você disse que queria Dunstan. E agora isso? Um criminoso? Um escocês, ainda por cima. — Ele olhou com fúria para Ian. — O que fez com a minha filha? — Melville — sua bonita esposa sussurrou, colocando a mão em sua camisa. Ele olhou para a mão dela e pareceu se recompor. Aquilo ao menos deteve o seu discurso. Os olhos de Selina estavam cheios de lágrimas. — Sinto muito, pai. Foi tudo culpa minha. Realmente não havia outra opção. O rosto de Albright ficou ainda mais vermelho. — Devia se envergonhar. Ele já estava cansado de ouvir o pai castigando sua esposa. — Qualquer que seja a opinião que faz de mim, meu senhor — disse ele, rigidamente —, sua filha agora é legalmente a minha esposa. Como é de costume nessas circunstâncias, acredito que temos certos ajustes a fazer. A cor sumiu do rosto do barão. E do de Selina também, Ian notou. O quê? Ela achava que ele não insistiria em receber seu dote? Será que achava que ele permitiria que ela vivesse na pobreza? — Muito bem — disse Albirght. — Venha ao meu escritório, Gilvry. Pegue seu espólio. — Ele encarou a esposa. — Lady Albright, esteja pronta para partir em uma hora. E quanto a você, filha, prefiro não olhar no seu rosto antes de partir. Selina estendeu a mão. — Papai, não consegue entender que isso pode ser uma coisa boa? A justificativa dela o surpreendeu, mas Ian viu que era inútil. — Não vejo nada de bom. A expressão desolada nos olhos de Selina fez Ian se sentir culpado. Albright, o braço enlaçado ao da esposa, virou-se e começou a subir pesadamente os degraus. — Venha agora ou nem venha, Gilvry. Por mais que quisesse ficar para confortar Selina, ele tinha que acertar esse assunto. Deu-lhe um rápido abraço. — Espere aqui. 125


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Ela parecia pronta para discutir. — Espere.

Capítulo Dezesseis

Selina olhou para as velhas paredes de pedra que estavam para se tornar seu lar. Permanentemente. Anos atrás, maravilhada com seus beijos, ela havia sonhado com isso. Agora o sonho de uma tola menina tinha se tornado realidade. Mas não da maneira que ela havia esperado. Não havia nenhum amor envolvido. Só vantagem. Que idiota! Um sorriso, uma olhada no rosto dele e as defesas que havia construído ao longo dos anos tinham ruído instantaneamente. E se seu pai jamais a perdoasse por essa sua nova tolice? E se ele jamais quisesse revê-la? Talvez Chrissie pudesse amenizar a raiva dele. Ela olhou para a janela do escritório do pai. Ele e seu marido sem dúvida ficariam entretidos durante algum tempo. Subiu correndo os degraus e seguiu para o aposento de Chrissie com esperança no coração. Atravessou o cômodo que, antes, era o aposento do senhor, cuja janela ogival dava vista para o pátio, mas que agora servia como sala de estar de Chrissie. Adentrou o quarto, onde ouviu o som de movimentação. Chrissie estava orientando sua criada na arrumação das malas. Ela ofegou ao perceber a entrada de Selina. — Ah, Selina — disse ela, parecendo pesarosa. Olhou para a criada e entrou na sala de estar antes de falar. — Seu pai estava fora de si de preocupação. E agora isso? — Eu sei que ele está aborrecido e desapontado, mas talvez, com o tempo, me perdoe, não acha? Chrissie a fitou. — Não por um bom tempo, eu acho. O coração dele está ferido, ele guardava grandes esperanças em Dunstan. Era mais provável que o orgulho dele estivesse ferido. Um lacaio bateu à porta. — Vim buscar a bagagem, minha senhora. Elas permaneceram em silêncio enquanto ele carregava as caixas e baús de Chrissie, na companhia da criada, que ia logo atrás avisando para que tivesse cuidado. — Vai me escrever? — perguntou Selina. — Dizer como ele está de tempos em tempos? — Se ele não proibir. — Chrissie exibiu seu doce sorriso. — Mas é melhor não pedir a permissão dele, presumo. E intercederei ao seu favor, quando ele estiver mais calmo. Era hora de dizer adeus. Selina estendeu a mão. 126


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— Ah, Chrissie, lamento muitíssimo ter estragado sua visita à Escócia. Chrissie sacudiu a cabeça, um tanto lastimosa. — Foi bem mais... agitada do que eu imaginava. Chrissie juntou as mãos e se aproximou da janela, depois girou para encarar Selina. — Queria nunca ter pedido a Melville que nos trouxesse aqui. — Eu também — disse Selina. Não pôde deixar de suspirar. — Eu pensei que tinha o futuro tão bem planejado. — E ela tinha desistido de tudo por um maldito beijo. Um ruído à porta fez Selina erguer a cabeça. Ela se encolheu quando viu Ian parado ali, parecendo um trovão. — Pensei que tivesse mandado você esperar — disse ele. — Eu queria me despedir de Chrissie. — Bem, faça isso agora. A carruagem de sua senhoria a espera. Com lágrimas cintilando nos olhos, Chrissie atirou os braços ao redor dela e a abraçou forte. — Intercederei por você. — De cabeça abaixada, sem olhar para Ian, ela passou correndo pela porta. A expressão rígida de Ian se abrandou. — Seu pai aprova tanto esse casamento quanto a minha família. Só podemos esperar que os dois lados reconsiderem. Venha. — Ele estendeu a mão. — Vamos vê-los partindo da muralha. Ele segurou a mão dela debaixo do braço e a conduziu pelo corredor até a porta que abria para uma escadaria espiralada que levava à pequena plataforma por trás da guarnição de ameias da torre. Os degraus estreitos faziam com que seguissem em fila. Selina pressionou a tranca da porta ao topo e saiu. Fazia muito tempo que não ia ali e ofegou com a força do vento e a maneira como golpeava seus ouvidos. A carruagem de seu pai já estava passando pelo arco. Ele se foi sem nem ao menos se despedir, quanto mais deixar sua bênção. Selina tinha a sensação de que talvez jamais fosse revê-lo. Ferroadas ardiam por trás de seus olhos. Sua visão ficou embaçada. Ela engoliu o nó na garganta e olhou para a carruagem que se afastava, desejando de todo o coração que as coisas tivessem sido diferentes. Se soubesse o que resultaria de sua tentativa de ajuda, teria saído durante a noite? A resposta não estava tão clara em sua mente quanto ela achava que devia estar. Ian olhou para suas costas eretas e a maneira como as saias de um vermelho tão chocante se grudavam às pernas esguias, mantidas ali pelo vento, e não sabia o que dizer enquanto Selina observava a carruagem do pai desaparecer. Queria lhe oferecer conforto, mas as costas eretas e o corpo rígido o rechaçavam. Ele tinha a sensação de que qualquer coisa que dissesse pareceria errado. Estava casado, mas, de certa forma, neste momento, ele estava se sentindo mais solitário do que nunca durante todos os seus anos como laird. Estar a cargo de seu povo era um dever que não podia dividir com mais ninguém. Exceto uma esposa, talvez. O tipo certo de esposa. 127


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No passado, ele havia tomado decisões das quais não estava orgulhoso, cometido erros também, e esses eram fardos que devia carregar. Mas ele sempre imaginou que o casamento lhe ofereceria alguém com quem compartilhar suas alegrias e, droga, suas tristezas de uma maneira que seus irmãos ou membros de clã não poderiam. Mas o clã não parecia nem um pouco pronto a aceitá-la. E eles sabiam ser cruéis com forasteiros. Um tremor lhe percorreu a espinha quando lembrou o que seus irmãos haviam dito a ela quando eram mais novos. Ele faria de tudo para protegê-la da raiva deles. Com o tempo, eles aceitariam a ideia. Precisavam. Se seu casamento não tinha começado da melhor maneira, com certeza poderia melhorar daí em diante. Ian pôs a mão sobre o ombro dela. Selina enrijeceu sob seus dedos, mas se virou para encará-lo. Seu estômago se revirou. Ela esteve chorando. Ele conseguia ver a umidade em seus olhos. Uma emoção que ele não esperava subiu pela garganta. — Então você lamenta tanto assim ter perdido Dunstan? Droga, por que ele tinha que perguntar isso? Ela o encarou por um instante, piscando para conter as lágrimas antes de falar: — Ele teria sido o marido perfeito. Ele foi a minha escolha. — Selina mordeu o lábio e virou o rosto, como se estivesse consternada com o que havia dito. As palavras não deviam magoar, pois eram honestas, mas magoavam. Ian deixou escapar um suspiro. Não importava o que ela queria. Ela estava presa a ele agora. Selina parecia tão linda, com seus cachos de cabelo escuro balançando ao redor do rosto. E tão vulnerável. Queria fazer todas as sombras em seu olhar desaparecerem com um beijo. E também seus temores. Se ela ao menos lhe permitisse. Ian ofereceu um sorriso de encorajamento. — Vai ficar tudo bem. Você vai ver. A expressão dela abrandou um pouquinho, os lábios se entreabriram. Ian se inclinou, aspirando seu perfume, sentindo a respiração dela em seu queixo. Esse era um terreno comum aos dois. Era ali que ele ganharia a batalha. Selina franziu a testa. — Por que não contou aos homens na estalagem sobre a fortaleza ser parte do acordo? Isso era uma armadilha. Sem dúvida. Ele precisava pisar com cautela. — Eu não sabia se seu pai me ofereceria os mesmos termos que os de Dunstan. A boca de Selina se curvou para baixo numa careta amarga. Resposta errada, percebeu ele. Abriu a boca para dizer mais, mas ela virou a cabeça outra vez e o encarou em cheio, o olhar duro e frio. — Parece que você conseguiu tudo o que queria. — Ela abriu um braço para englobar as colinas ao redor. — Deixe-me ir. Para a casa de Alice. Como tínhamos planejado. As palavras aterrissaram sobre o peito dele como as rochas do muro do castelo, 128


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duras, frias e pesadas. — Você é minha esposa. — Minha esposa. Soava como se fosse um bem. Soava medieval. Ele estava se sentindo bastante medieval no momento, conforme uma urgência primitiva de reclamá-la explodia por suas veias. — Apenas no nome. — Ela falou com tanta calma que poderia estar comentando sobre o tempo. Depois sorriu, uma pequena curva nos lábios. — Você não precisa de mim. Você tem o que os Gilvry sempre quiseram. A fortaleza de Dunross. — Seu lugar é aqui. — Puxa, agora ele realmente soava medieval. Ele tentou segurar as mãos dela e quase praguejou quando Selina as escondeu atrás do corpo. — Dê-me três meses — disse ele. — Se não tiver mudado de ideia até lá, eu a deixarei partir. — Se ele não conseguisse conquistar a esposa em três meses com o tipo de paixão que compartilhavam, ele não merecia mantê-la. Ela não parecia contente. Porque sabia que ele ganharia, pensou Ian com uma sensação de triunfo. — Uma semana — disse ela. Ah, sim, ela sabia que ele venceria. Ian sacudiu a cabeça. — Um mês. Nada menos, ou é melhor esquecermos toda essa tolice. Selina o encarou com fúria. — Não é tolice querer deixar um lugar onde todos a odeiam. — Eles precisam de tempo para se acostumar à ideia. — E, enquanto isso, ele faria o seu melhor para garantir que ela jamais desejasse partir. A raiva, acompanhada pela determinação, persistia no rosto dela. — Muito bem. Um mês. Por que agora ele tinha a sensação de ter caído numa armadilha? Ian estendeu a mão. — Então temos um acordo. Ela aceitou. Em vez de apertar a mão dela, ele levou seus pequenos dedos frios aos lábios, virou a palma para cima e beijou seu punho. Sentiu que ela estremeceu, mesmo que ligeiramente, e viu o rubor de calor em seu rosto. Ian sorriu. Estava se preocupando por nada. Um mês seria tempo suficiente. Ele a soltou. — Vamos descer. Selina tentou passar por ele. Ian barrou seu caminho. — Deixe que eu vá na frente, menina. Os degraus são muito íngremes e traiçoeiros. — Seria melhor se você me desse um bom empurrão pelas costas. Talvez eu acabasse quebrando meu pescoço, então você poderia se casar com alguém que seu clã aprove. O vermelho nublou a visão dele. Ian lhe agarrou o braço, manteve-a imóvel enquanto olhava naqueles faiscantes olhos escuros, notando o ar petulante do carnudo lábio inferior. Selina ergueu o queixo em desafio. Provocando-o. Incitando-o a provar sua 129


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vilania. Ganhá-la talvez não fosse tão fácil quanto ele pensava. Ian respirou fundo e sorriu com o que esperava ser calma, não a careta que realmente levava no rosto. — Enquanto eu estiver respirando, você jamais será ferida por mim. — Não mais, é o que você quer dizer — retrucou ela, com um sorriso extremamente doce. — Ian não cairia no jogo dela, não agora. — Venha, vamos descer, a ceia vai estar logo pronta. E então chegaria a noite e a batalha começaria para valer. Seu corpo enrijeceu. Essa guerra entre eles definitivamente possuía suas compensações. Ian seguiu escada abaixo, segurando com força a mão dela por todo o trajeto.

Capítulo Dezessete

A ceia foi servida e retirada, as velas e o fogo, acesos, e eles ficaram sozinhos no velho solar, o cômodo próximo ao quarto que Chrissie havia usado. Do outro lado das tábuas de madeira escurecida da antiga mesa de cavalete, Ian estava estatelado numa cadeira de madeira entalhada, bebericando seu uísque como um cavalheiro medieval e observando-a debaixo de suas pálpebras pesadas. Como se ela fosse a iguaria que ele tinha escolhido para provar. Ele tinha conseguido sua preciosa fortaleza. Por que ele a desejaria também? Felizmente não tinha feito nenhuma daquelas tolas confissões de amor na noite anterior. Aquilo o teria tornado insuportável. Ela só precisava sobreviver a um mês e depois poderia seguir seu próprio caminho. Era um arranjo ainda melhor que o que teria com Dunstan. Eles teriam que viver juntos. Com Ian, ela teria liberdade e respeitabilidade. Devia estar se sentindo satisfeita, não infeliz. Não havia nenhum motivo para se sentir infeliz. Em momento nenhum Ian indicou que se importasse mais com ela do que com qualquer outra mulher. Atração, sim. Cobiça, sim. Mas nada mais. E veja a rapidez com que aceitou deixar que ela se fosse embora dentro de um mês caso não se entendessem. Sem dúvida, ele queria garantir que o casamento não poderia ser contestado. Mas, por enquanto, teria que viver com ela um pouco mais. Não que o pai fosse aceitá-la. Ela ainda não entendia por que ele tinha ficado tão zangado. Podia compreender o desapontamento mas era como se houvesse algo de importante atrelado ao seu casamento com Dunstan. Ian se levantou. O coração dela bateu mais rápido. A boca ficou seca. Ela se sentiu agitada. Incerta. 130


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Em Londres, este seria o momento em que ela se retiraria à sala de visita para tomar chá e ele tomaria seu vinho do porto em algum domínio masculino. No escritório, se estivesse sozinho, ou na sala de jantar, se tivesse companhia. Mas este aposento era o domínio da senhora da fortaleza. Ela não tinha para onde ir, exceto seu quarto. Ian estendeu a mão. — Venha. Vamos nos sentar junto ao fogo. Duas cadeiras largas flanqueavam a lareira que ardia alegremente Então ele pretendia prolongar a noite. Continuar a fingida alegria matrimonial. Sem dúvida para manter as aparências, já que metade do clã agora estava empregada na fortaleza. Com um suspiro, ela se levantou e se encaminhou para uma das cadeiras. Antes que pudesse se sentar, Ian a tomou nos braços e colocou Selina em seu colo. — O que está fazendo? — ofegou ela. — Desfrutando uma noite agradável com minha esposa. A maneira como a voz profunda acariciou a palavra “esposa” foi um tremor lhe percorrer a espinha. Selina se fortaleceu contra as traidoras gotas de calor que se incendiaram em suas veias. Olhou para o fogo, tentando fingir que não sentia nada, que os braços fortes que a seguravam junto ao peito não eram cálidos e protetores. Que a sensação das batidas do coração contra seu ombro não parecia pequenos tremores de expectativa por seu corpo. Mas ela era sua esposa. E não podia lhe negar o corpo, sussurrou uma vozinha, com alegria e empolgação um pouco exageradas demais. — Estou cansada — retrucou ela. — Gostaria de me retirar. — A cama me parece uma boa ideia. — O divertimento coloriu a voz dele, junto com o desejo. O calor se espalhou por ela. A raiva. O desafio. — Foi um dia muito cansativo. Vai mesmo se impor a mim esta noite? Ela se encolheu diante da fragilidade em seu tom. Agarrar-se a raiva não era tão fácil quando aninhada suavemente nos braços dele. Mas a completa imobilidade dele disse que sua farpa havia atingido o alvo. O peito subiu e baixou com uma longa respiração. Um homem tentando manter a paciência. Talvez, se ela o deixasse bem zangado, ele a deixasse ir embora mais cedo. Dedos calejados pelo trabalho agarraram o queixo dela com uma força gentil e obrigaram seu rosto a girar. Olhos azuis que dançavam com a luz do fogo miravam seu rosto. Ele não parecia particularmente zangado. De fato, Ian estava como sempre, bonito, atraente, másculo. Então um misterioso sorriso curvou sedutoramente seus lábios. — Assim é melhor — disse ele. — Seu rosto fica adorável à luz do logo. Eu não me canso de olhar. Ian não era o primeiro homem a elogiar sua beleza, mas as palavras ditas de maneira suave a emocionaram mais do que quaisquer outras. De alguma forma, o poder que ela sempre arrancou da própria beleza desbotava na presença dele. Ian a deixava fraca. Necessitada. 131


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Necessitar de alguém era sempre um erro. Selina retribuiu o sorriso. — Ora, marido, você me lisonjeia. O olhar dele escureceu um pouquinho. — Não é lisonja dizer a verdade. — Os lábios tocaram os dela, gentis, galanteando, provocando. Ela tentou resistir, fingir que os beijos dele não a deixavam tonta, que não roubavam sua razão. De fato, ela até chegou ao ponto de espalmar a mão no ombro dele para afastá-lo, mas, em vez disso, seus dedos seguravam a lapela do paletó, apertando-a como se quisesse agarrá-lo. Os lábios se abriram e a língua dele a invadiu num leve movimento sedoso. E ela estava perdida. Perdida na paixão. O corpo se comprimia ao pensar no prazer que estava por vir. Um baixo gemido ribombou pelo peito dele quando suas línguas se enroscaram na chocante dança de intimidade que Selina havia aprendido na noite anterior, mas cujos passos agora parecia saber de cor. O ato de dar e receber prazer. Com as mãos moldando-lhe a cabeça, o cabelo sedoso roçando sua pele, Selina se pressionou na rígida parede do peito, enquanto as mãos dele vagavam por suas costas, seu traseiro, sua coxa. Debaixo dela, a evidência do desejo dele a pressionava. Selina deixou que a paixão afastasse seus temores e sua raiva, deixou a sensação física preencher todos os cantos de sua mente. O corpo tremeu com o ataque sensual da boca, das mãos, do corpo dele. O calor se dispersava em ondas. O cheiro dele preenchia suas narinas, o cheiro limpo das Terras Altas, o perfume do sabão, mas, mais forte ainda, era a essência dele. E então Ian se levantou, erguendo-se da cadeira com ela nos braços como se Selina não pesasse nada. Liberta da magia do beijo, ela tentou se recompor. — O que está fazendo? — Levando minha esposa para a cama. — Ele exibiu um sorriso maroto que fez com que ela encolhesse os dedos dentro das sapatilhas. — É o que você queria, não é? — Não exatamente — ela conseguiu dizer, embora fosse difícil respirar, quanto mais falar com qualquer sensatez. Ele ergueu uma sobrancelha de maneira arrogante. — Diga que eu agi errado depois que estiver feito, menina. — Ele se encaminhou para o quarto, abriu a porta com um chute e a colocou de pé com gentileza. Agora era o momento de mandá-lo sair, antes que sucumbisse completamente, Antes que ele lhe roubasse o senso de si mesma. A resolução no rosto dele e a determinação nos olhos diziam que ele não aceitaria que seus direitos de marido fossem negados. Nem ela queria negá-los. Droga! No quesito da atração, do desejo físico, parecia que eles pensavam igual. Mesmo assim, ela se ressentia da maneira como ele a havia feito de boba. Ora, ela já não era mais boba. E possuía seu próprio arsenal de armas. Enquanto resguardasse seu coração, enquanto o mantivesse longe, ela estaria segura. Ian havia proposto o trato, e pela honra ele não possuía escolha senão mantê-lo, 132


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assim como ela não possuía escolha senão aceitar o casamento. Desfrutaria seu mês de vida de casada e, ao final dele, ela partiria. Sem arrependimentos. Ou muito poucos. Ficou na ponta dos pés, entrelaçou os braços no pescoço dele e puxou a cabeça para baixo. Os olhos dele se arregalaram de surpresa e se incendiaram com um calor contido. Então ela o saboreou num beijo lento e comedido, provocando-lhe os lábios com a língua, mordiscando com os dentes. As mãos dele deslizavam por seu corpo como se soubessem exatamente como e onde tocar, então seus ossos derreteram e sua mente virou mingau. Uma mão grande e quente foi até o seio, circulando delicadamente e provocando, enquanto a outra explorava o formato dos quadris e as nádegas. Cada estocada da língua, cada carícia da mão, reavivava chamas internas, até que seu corpo assumiu vontade própria, fundindo-se ao dele, exigindo mais. O fogo do desejo reanimou, o calor se espalhou, a tensão dentro dela aumentou. Quando ele interrompeu o beijo para puxar os cordões do corpete, ela tateou os botões do paletó. Quando ele se ajoelhou para tirar suas meias, ela brigou com o nó do plastrão. Quando ele desamarrava os fios das anáguas, ela desabotoava a combinação. A urgência fazia de cada peça de roupa uma barreira á ser quebrada. Por fim, Selina ficou diante dele com nada senão a combinação. E ele estava nu. Belo. Um guerreiro pagão excitado. Manteve-se parado e orgulhoso, deixando que ela olhasse. A visão roubou o fôlego, dela. Uma pena que tivesse que deixá-lo. Uma dor oprimiu seu coração. Ele deu um passo na direção dela. — Selina — murmurou ele, e havia conforto em sua voz, junto com uma rouca ranhura de luxúria. Agora não era hora de conforto. Não era o que ela precisava. Era algo que chegava bem perto de emoções que nunca admitiria. Jamais. Ela desfez a amarração da combinação e a deixou, deslizar pelos ombros e escorregar até o chão. Não conseguiu conter o sorriso quando o olhar ardente e misterioso de Ian acompanhou o movimento, parando só um segundo para se demorar nos seios, na barriga e, por fim, no coração de sua feminilidade. Ele a puxou num gemido, a boca descendo sobre a dela, violando, pilhando e se satisfazendo. Selina se entregou ao prazer do corpo forte e rijo pressionado ao seu e se rejubilou quando Ian a deitou na cama, sem jamais interromper o beijo. Isso era tudo o que ela precisava. Tudo o que sempre aceitaria. Ela já não era mais criança e ele não partiria seu coração outra vez. Passou as mãos por seus ombros, por suas costas fortes e largas. Era maravilhoso senti-los sob as palmas, a pele feito seda, os músculos parecendo tiras de ferro ondulando sob suas mãos. A leve inspiração do ar fez com que Selina soubesse que ele gostava do toque dela tanto quanto ela gostava do dele. Talvez Selina não fosse a única a sofrer a perda quando partisse. 133


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Tal pensamento a agradou. Provocou-lhe uma onda de confiança, devolveu um pouco do poder feminino no qual ela sempre se apoiou. Quando ele, por fim, interrompeu o beijo, ergueu a cabeça para olhar o rosto dela, como se tivesse notado algo diferente. Parecia intrigado. Selina sorriu para ele. Ian engoliu em seco. — Leannan — sussurrou. — Minha adorável esposa. — Havia deslumbramento na voz dele. Não havia nada de novo em sua beleza ou na admiração masculina, mas algo de deslumbrante na maneira como ele dizia as palavras parecia acariciar um cantinho de seu coração. Ela não queria ternura. Estendeu as mãos de modo a lhe agarrar a nuca, puxandoo para provocar seus lábios com a língua e o dente. Um gemido baixo preencheu os ouvidos dela quando Ian pressionou a coxa entre suas pernas. Selina se remexeu, entreabrindo as coxas, aninhando-o de bom grado em seus quadris, dizendo que estava pronta para a união e o prazer que ela tinha aprendido que isso traria. — Selina, amor — murmurou ele, em sua boca. — Devagar. Você vai acabar comigo. — E isso é ruim? — perguntou ela, com uma nota de provocação na voz. Ele inspirou de maneira bastante entrecortada. — Talvez. — E logo ele estava deixando beijos ardentes na garganta dela, lambendo a elevação dos seios, banhando os mamilos com a língua, fazendo-a se contorcer e estremecer debaixo dele enquanto o impulso da tensão aumentava dentro dela. As mãos dele desceram até o vértice das coxas para entreabrir as dobras macias, e ela sentiu quando os dedos entraram por sua passagem escorregadia. Ela gritou ao ser varrida por um estremecimento de prazer quando ele a provocou com seu toque. Selina quis praguejar quando Ian parou e ergueu a cabeça para olhar o rosto dela com um misterioso sorriso de satisfação. Deixou as mãos descerem por suas costas até a elevação das nádegas e o puxou com força contra o coração de sua feminilidade, que latejava ansiando pela carne dele junto à dela. A expressão dele era de sofrimento. Ver o efeito de suas ações no rosto dele foi o mesmo que ser atingida por um raio, uma ardente faísca de luxúria que obscureceu as margens de sua visão e a deixou perto das bordas da felicidade, ainda que fora de alcance; Selina quis gritar de frustração. Seu âmago palpitava e contraía, então ela ergueu os quadris, envolvendo-lhe a cintura com as pernas. E então, como que obedecendo à sua vontade, ele encontrou seu lugar. Bem dentro dela, ele a preencheu e permaneceu completamente imóvel. Num gemido, ela contorceu os quadris, lutou para achar o prazer maior que estava quase ao alcance. Uma mão grande veio por trás dela, apertando seu corpo ao dele. A outra se curvou sobre o seio. Ian inclinou a cabeça e tomou o mamilo com a boca. E depois sugou. A mais aguda e doce das dores que sequer poderia imaginai aguilhoou seu íntimo. Ele avançou dentro dela de novo e de novo. Uma feroz explosão de luz surgiu por trás dos olhos enquanto seu âmago pulsava em volta do membro dele. O som que veio lá 134


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do fundo da garganta e os tremores convulsivos dele aumentaram a felicidade dela. Foi como se horas tivessem passado até que as batidas do seu coração normalizassem e ela notasse o peso quente dele sobre seu corpo. Poderia não ser mais do que alguns momentos, mas o calor persistia, suas ondas deixando-a lânguida e satisfeita. Quando ele se retirou e a puxou para junto do peito, Selina se sentia repleta e completa. Era perigoso, pensou ela, mas inegavelmente maravilhoso.

DEPOIS DE uma semana, a vida de Selina na fortaleza de Dunross ganhou ritmo próprio. Noites de paixão tumultuosa, seguidas por dias tremendamente chatos. Naquela noite, como sempre, seu marido estava sentado com uma dose de uísque ao lado da lareira, lendo as notícias de Londres, enquanto ela, com o estômago dando nós, fingia ler um livro. Não podia deixar de espiá-lo por baixo dos cílios, a maneira como Ian se estatelava na cadeira, as pernas longas estendidas diante de si revestidas pela calça de camurça, a camisa fechada com um prático lenço, não um plastrão, e as mangas arregaçadas. Ele havia descartado o paletó por causa do calor da noite. Parecia lindo, relaxado e realmente o laird da fortaleza de Dunross. Aquele era o lugar dele. Não o dela. Não havia nada para Selina ali. Nenhum convívio. Nenhum amigo. Nenhum propósito. Ela não passava de uma boneca de porcelana a ser admirada, acariciada e deixada de lado ao começo de cada dia. Mais três semanas e ela estaria livre pra partir. Por mais que Ian a cortejasse no quarto, ela estava determinada a fazê-lo cumprir o trato.

Capítulo Dezoito

Ian a levou a pensar que havia mais entre eles, mas ela não fingiria o contrário. Todos os dias, ele a deixava sozinha e saía para o moinho. A cada dia, ela levantava razões pelas quais não devia se entregar àquele homem. E, a cada noite, era ridícula a facilidade com que ele desmontava tais objeções com seu jeito de fazer amor. Selina não tinha ilusões quanto ao motivo de terem se casado. Ele podia atormentar seu corpo todas as noites até ela gritar de prazer, mas não tocaria seu coração. Não pela segunda vez. Ian pareceu perceber que estava sendo observando, pois ergueu o olhar. Ela mordeu o lábio. — Coloque para fora, menina — disse ele calmamente. — O que a aflige? 135


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— Como sabe que algo me aflige? — É a expressão que você faz com o rosto. — Ian encolheu os ombros. — Não sei explicar exatamente. — Estou preocupada com a ideia de você fazendo contrabando outra vez. Não que eu me importe com você se colocando em perigo, compreenda, mas acho que as pessoas de Dunross merecem coisa melhor. Os lábios dele se curvaram de maneira estranha. — É gentileza sua se preocupar, mas as pessoas de Dunross são preocupação minha. — Não acha que tenho o direito de saber se você está envolvido numa atividade criminosa? Algo que pode fazer a lei recair sobre minha cabeça também? Ele dobrou o jornal e o colocou de lado com um suspiro. — Estamos transformando o moinho numa destilaria comercial— retrucou ele calmamente. — Uma destilaria clandestina, é o que quer dizer. Está louco? Ian fez uma careta. — Minha família, minha gente, está fazendo uísque há séculos. É nosso direito. — Ele deu uma risada seca. — Em qualquer outro lugar da Grã-Bretanha, fora as Terras Altas, o que eu estou fazendo é perfeitamente legal. — Como assim? — Quando aprovaram a lei delimitando as Terras Altas, o parlamento inglês também aprovou a lei para que nenhuma destilaria além desta linha devesse ter capacidade inferior a quinhentos galões. Qualquer quantidade menor está fora da lei. — E é isso o que você está construindo? — Ela sentiu uma ponta de alívio. Não por ele, mas pelas pessoas de Dunross. — Isso — declarou ele — é praticamente impossível. Não conseguimos cultivar cevada suficiente para uma destilaria desse tamanho. — Nem com todos os fazendeiros juntos? Ele assentiu. — Podemos chegar perto. Caso contrário, ainda seremos taxados como se tivéssemos produzido. E ainda assim só poderemos vender o que produzimos nas Terras Altas. Inútil, já que cada homem que valha o que come produz seu próprio uísque. Estamos sendo penalizados pelos pecados de nossos ancestrais. — Ele franziu o cenho. — Sem falar que as destilarias na Inglaterra não gostam da competição porque sabem que nosso uísque é melhor do que qualquer genebra que possam fazer. — E por que fazer uísque? Ou o seu maior desejo é ir para a prisão? — Ou pior. — Você não compreende. — Compreendo muito bem que você está assumindo riscos com as vidas de outras pessoas. Uma ruga se formou entre as sobrancelhas dele. — Você saiu hoje. Aonde foi? Mudando de assunto, porque a opinião dela não valia de nada. 136


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— Fui dar um passeio. O que mais há para que eu faça? — Selina se encolheu, sabendo que estava parecendo uma criança emburrada. — Fui até Balnaen Cove. Topaz precisava de exercício. Ian franziu o cenho.. — Não devia se afastar tanto da fortaleza. — Por quê? Tem medo que eu vá ver mais contrabandistas? Ele lhe lançou um olhar misterioso, — Ainda não sabemos quem nos delatou aos almotacéis. Ou se ainda pretende causar mais prejuízos. Se quiser exercitar seu cavalo, terá que fazer isso em minha companhia. — Você nunca está aqui durante o dia. Um sorriso sedutor curvou os lábios dele, os olhos se tornaram pesados e iluminados por um brilho malicioso. — Está dizendo que está sentindo minha falta durante o dia, menina? Selina foi tomada de calor. Pequenas e indesejadas agitações correram por seu sangue. Ela se fortaleceu contra elas. — Claro que não. Estou dizendo que não pretendo ficar presa dentro dessas paredes o dia inteiro sem nada para fazer. Ele franziu o cenho. — Você tem muitas coisas para fazer. O gerenciamento da casa. — Ela praticamente se gerencia sozinha. Não é como se eu tivesse um vasto número de criados ou convidados para entreter. Tentei visitar sua mãe, mas fui dispensada na porta. Ian baixou o olhar. — Você sabe que ela não está bem. — Pensei em pedir a ela que morasse aqui na fortaleza. Ela ficaria mais confortável. Poderia ter sua própria suíte. — É gentileza sua, menina — disse ele. Havia calor em sua expressão, mas Ian sacudiu a cabeça. — Ela ainda não se acostumou à ideia do nosso casamento. Você precisa lhe dar mais tempo. — Não se acostumou à ideia? Ela a odeia. — Selina deu de ombros. — Não me importa. Terei ido embora em breve. O calor nos olhos dele sumiu, substituído por uma expressão de mágoa. Ou estaria ela enganada, como tanto costumava se enganar a respeito daquele homem? Mas agora havia determinação no rosto dele. O olhar de Ian desceu até seu busto dela e depois se ergueu novamente. O calor a inundou. Seu corpo formigou. Selina lutou contra a súbita onda de desejo. Sem serventia. Ele já estava ficando de pé, uma mão estendida para ela. Parecia que a conversa tinha terminado.

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IAN QUIS praguejar quando olhou pára sua bela esposa. A cada dia, ela ficava mais e mais infeliz. Uma mulher como ela devia estar dançando em bailes, ser o centro da sociedade, não ficar presa num lugar atrasado como Dunross. O que ele esperava? Que ela vivesse feliz ali porque estava com ele? Ela lhe dera quatro semanas. E a cada noite ele se esforçava para prendê-la a ele. E a cada manhã ele via que não estava funcionando. Ainda. Um Gilvry nunca desistia. Sentar-se com ela em sua sala de estar depois do jantar sempre o ajudava a relaxar. Fazia com que esquecesse as preocupações do dia em preparação à noite que estava por vir. Mas a culpa que sentia por causa de Andrew estava sempre ali, uma sombra que se assomava entre eles. Ian não a culpava pelo que tinha feito. Ela só havia pedido sua ajuda. A vontade de ganhar sua gratidão o fez agir contra seu irmão de maneira mais rígida do que a justificada. Felizmente, mais ninguém sabia o que ele tinha feito. E também jamais deixaria que Selina o influenciasse daquela maneira outra vez. Ele não permitiria que ela o manipulasse outra vez. Ele era o laird de Dunross e ela devia obedecer às suas decisões assim como o resto de seu povo. Mesmo assim, ele era consumido pela culpa, por uma sensação em seu estômago de que Drew tinha morrido para que ele tivesse tudo o que ele sempre quis. Dunross. Selina. Só que ele não possuía Selina de feto. Estava claro que ela ainda tinha toda a intenção de partir. Ele simplesmente a deixaria ir. Seria mais fácil para todos. Mas a ideia de Selina voltando para seus amigos em Londres, uma mulher casada, livre para fazer o que desejasse, levava-o à loucura para tentar conquistá-la. E Deus sabia que eram compatíveis na cama. Jubilosamente compatíveis. Não que ela se entregasse como uma ovelha. A cada noite ele tinha que seduzi-la outra vez. Mas o prazer não era unilateral Não mesmo. Ian foi tomado de desejo. E algo mais. Um tipo de brandura que ele não queria examinar de perto. Já era fraco demais no que dizia respeito àquela mulher. Tomou-a nos braços, olhou no rosto dela e viu que seus olhos estavam da cor do uísque. Não havia sombras agora. Apenas desejo. Quaisquer que fossem as diferenças entre eles, os dois combinavam igualmente no desejo que sentiam um pelo outro. E isso era o bastante para ele. Não era? Tinha que ser. Era mais do que ele merecia. O calor correu por suas veias e ele seguiu para a cama deles. — O que está fazendo? — perguntou ela, sabendo muito bem o que ele estava fazendo, mas atormentando-o mesmo assim. — Já basta de discussões por uma noite. E de falar sobre partir. Ele a colocou de pé e puxou para seus braços, beijando e mordiscando aqueles luxuriosos lábios carnudos, provocando-os com a língua até sentir que o corpo dela começava a derreter sob suas mãos, como sempre acontecia. Só queria que ela, ao menos uma vez, desse início à noite de amor. O corpo dele enrijeceu como granito ao pensar nisso, e Ian quase gemeu alto só de imaginar tal coisa. 138


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Às vezes ela fazia coisas com as mãos e a boca que o deixavam rapidamente bem perto do ápice, e ele se perguntava se era intencional. Mas duvidava. Selina estava zangada demais com ele por ter sido enganada a se casar para se importar com seu prazer. Ian não sabia se um dia ela abandonaria aquela raiva, mas podia continuar tentando convencê-la. Enquanto ela permitisse. Assim como tentaria fazer com que ela se esquecesse de Dunstan. Invadiu com a língua a boca de Selina, que deslizou os braços ao redor de seu pescoço numa entrega sensual. Talvez esta fosse a noite em que ele ganharia mais do que o corpo dela.

Estava desabando uma chuva na manhã seguinte, por isso Selina ficou surpresa quando Angus, de cara amarrada, levou à mesa do café da manhã a mensagem de que o senhor Tearny queria ver Ian urgentemente no salão. — Alguma coisa errada? — perguntou ela. — Isso é o laird quem irá dizer. — Angus não gostava do feitor, que era ao mesmo tempo empregado de Carrick e das terras de Dunross, tendo permanecido após a partida de seu pai. Assim como Angus. Por vontade própria. Ian baixou a faca e o garfo. Seu rosto assumiu linhas duras quando se levantou da mesa. — É melhor ir vê-lo imediatamente. — E seguiu Angus porta afora. Selina franziu o cenho para a torrada. Ele não tinha pedido para que ela o acompanhasse. Nem tinha dito que ela não deveria. E a fisionomia sisuda de Angus tinha despertado sua curiosidade. Era um amplo espaço, usado apenas pelo laird para reunir seus ajudantes de ordens e os criados da fortaleza. Ainda possuía, num dos lados, o tablado elevado, onde, nos velhos tempos, o senhor e sua família faziam a refeição. Agora o espaço era usado principalmente como depósito. Seu pai também o havia utilizado, quando ali fixava residência, como local para cumprir suas responsabilidades como juiz de paz. Parecia que Ian estava fazendo o mesmo. Uma cadeira solitária e uma pequena mesa estavam ao centro do tablado e Ian já estava sentando, quando Selina chegou ao pé da escada atrás dele. Permaneceu nas sombras. Silenciosa. Observando. Era a primeira vez que o via no papel de laird. Ele parecia severo, talvez até cruel, já que a luz de uma janela no alto da parede lançava seu rosto na sombra. Tearny se apresentou diante dele segurando com firmeza o braço de um rapazinho. Dois coelhos estavam aos seus pés. O garoto afastou o cabelo ruivo dos olhos verdes com ar de desafio. Havia uma grande marca vermelha em seu rosto, como se fosse recente o recebimento de um soco. Selina julgou reconhecê-lo, mas acreditava não conhecer o rapaz. — Pois bem, Tearny? — disse Ian, sem expressão. Estranho como tanto escoceses quanto irlandeses falassem gaélico, mas que um não conseguisse entender a língua nativa do outro. Significava que tinham de recorrer ao inglês. — Peguei o jovem McKinly roubando caça, laird — disse Tearny, seu sotaque irlandês inconfundível. 139


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McKinly. Selina conteve o susto e levou a mão ao peito. Devia ser o menino mais velho que ela não tinha conhecido. Era por isso que acreditava reconhecê-lo. Ele possuía o semblante de Marie Flora. O feitor empurrou os coelhos com o pé. — Ele não nega. — Em que terras você o pegou? — perguntou Ian. De que importava de quem eram as terras? Ninguém se importava com uns coelhos. — Ele estava na sua terra, laird, quando eu o peguei. Mas poderia ter capturado os coelhos no lado de Carrick. Ele não quer dizer. As terras de Carrick faziam limite com as dele ao sul. Ian fez cara feia para o garoto. — O que tem a dizer a seu favor? — Meu irmãozinho Tommy anda com febre. Vovó McDonald disse que ele precisava de uma sopa para se recuperar. — Ele encarou Tearny com raiva. — Eu só peguei o que precisava para um cozido. — Quem bateu em você? — perguntou Selina, que se encolheu quando todos os olhares se voltaram para ela. Ela se manteve firme enquanto Ian a fitava com indagação. Ele indicou uma banqueta ao lado de sua cadeira. — Minha esposa, você é bem-vinda a assistir aos procedimentos, mas, por favor, não interrompa. Ela enrubesceu, mas, endireitando os ombros, subiu os degraus até o tablado e se acomodou na banqueta. — Quem bateu em você? — Ian perguntou ao garoto, com gentileza. — Eu bati — disse Tearny, antes que o rapaz tivesse a chance de responder. — Ele me chutou nas canelas, tentando fugir. Ele sabia que estava fazendo uma coisa errada. — Você me bateu antes que eu o chutasse — murmurou o menino. Ian olhou para os coelhos. — Se foram encontrados nas minhas terras — disse ele, olhando para Tearny —, então nós devemos presumir que são meus coelhos. A menos que você tenha evidência do contrário...? O irlandês sacudiu a cabeça. — Não importa de quem é a terra. Ele roubou. Se queria coelhos, ele que fosse às terras comuns e os caçasse por lá. — Ninguém nunca vê coelhos nas terras comuns — disse o garoto. Tearny olhou feio para o garoto, depois se dirigiu a Ian. — Isso é que é gratidão. Eu lhe disse que não seria nada bom dar terras de graça para que eles criassem seus animais. Eles sempre querem mais. Os olhos de Ian se estreitaram. — Roubar caça é um crime grave, rapazinho. Selina não conseguiu conter o espanto diante da severidade no tom dele. 140


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— São só alguns coelhos — disse ela. Ian o olhou com zanga. — Ora, é verdade — prosseguiu Selina. — Podemos muito bem viver sem alguns deles. Fazem buracos por toda parte. — Parece que minha esposa não aprecia tocas de coelhos, Tearny.— A voz dele continha um toque de secura. Selina franziu o cenho. Será que ele estava se referindo à época em que ela torceu o tornozelo numa toca? A primeira vez em que a beijou. Ela ficou vermelha. Se não fosse por aquela toca de coelho, era improvável que tivessem sequer se falado um dia. Ela o encarou com zanga. Ele ergueu uma sobrancelha em resposta, depois se concentrou na questão em mãos. O machucado no rosto do menino estava ficando roxo. Não era certo que um homem do tamanho de Tearny batesse num menino. — Terá de fazer dele um exemplo, laird — disse Tearny, com gravidade. — Logo eles estarão limpando as terras de todas as aves. A raiva, quente e selvagem, aumentou dentro dela. Selina ficou de pé. — O que está sugerindo? Que ele seja enforcado? Ou deportado?— Ela se voltou para Ian. — Ele é apenas uma criança. Precisava de carne para o irmão. Não pode fazer uma coisa tão perversa. O rapazinho estava boquiaberto. Tearny parecia chocado, depois olhou para Ian com um sorriso debochado nos lábios. O rosto sério de Ian se tomou tempestuoso. — Fique quieta, mulher. Ela se levantou. — Não ficarei aqui sentada ouvindo tamanha... tamanha desumanidade. — Vai ficar sentada e escutar meu julgamento — murmurou Ian, e havia mais perigo em seu tom calmo do que em toda a turbulência de Tearny. Mas ela não ligava. O que ele estava fazendo era errado. Às cegas, pulou do tablado e saiu correndo do salão até o pátio e para a chuva forte. Não importava que sentença Ian impusesse, ela encontraria uma maneira de devolver o menino ao pai, antes que algo ruim lhe acontecesse. Ian meio que se ergueu da cadeira, depois percebeu que precisava deixá-la ir. Tearny já o considerava bastante fraco com as concessões que fizera ao clã; não precisava vê-lo ir atrás da esposa, uma mulher que havia acabado de esfolá-lo com a língua. Podia muito bem imaginar uma tira de um metro de pele sendo arrancada de suas costas. Tanto esforço para conseguir o respeito da esposa! Teria que, de alguma forma, fazer com que ela compreendesse que era importante que formassem uma frente unida diante do mundo. Em particular, eles podiam discutir. O clã se voltaria completamente contra ela se pensassem que estava tentando tomar as decisões. Era o costume do local. Era preciso lhes dar tempo de se acostumar com ela, para vê-la como a esposa do laird, não uma forasteira, antes que ela desse suas opiniões. Era uma discussão que teriam mais tarde, de portas fechadas. No momento, ele tinha um assunto mais importante em mãos. Um que acertaria o tom com seus membros 141


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do clã no futuro. — Ora, rapaz — disse Ian, com severidade. — O que tem a dizer em seu favor? — Não somos irlandeses ladrões — cuspiu o garoto. Ian concentrou o olhar no rapaz. — Diga o que quer dizer. O menino deu uma olhada no semblante furioso de Tearny e sacudiu a cabeça. Ian passou a falar em gaélico. — Sou seu laird. Deve responder minha pergunta. Seja um homem. Se você tem a razão ao seu favor, nada irá lhe acontecer. O menino endireitou a espinha. — Todos sabem que Tearny... — Em inglês, rapaz — disse Ian. O menino respirou fundo, olhou para Tearny, depois começou a falar. — Todos sabem que Tearny vende gansos e narcejas para um açougueiro em Wick e embolsa o dinheiro. — É verdade? — perguntou Ian. O irlandês remexeu os pés. — É um dos meus benefícios. Lorde Albright me deu permissão, Carrick também. Não tem nada a ver com ele roubando coelhos. — Eu sou o laird aqui agora e não lhe dei permissão — disse Ian calmamente. — A propriedade requer o lucro de qualquer ave aqui criada. — Como quiser. Mas não sou eu que estou em julgamento aqui, o menino que está. Ian voltou o olhar mais uma vez para o garoto, que se encolhei um pouquinho. Com expressão rígida, Ian se recostou na cadeira e cruzou os braços, considerando o homem e o menino diante de si. Ele tinha que tomar uma decisão imediatamente, provar que era o laird de verdade, não só no nome. O menino se contorceu um pouquinho, mas susteve seu olhar. Tearny, por outro lado, evitava olhá-lo. Por alguma estranha razão, tinha o pressentimento de que aquele homem estava causando problemas. — Suponho que o garoto deva se considerar afortunado por você não ter atirado primeiro e feito perguntas depois. — Ele manteve a voz neutra. Tearny sorriu. — Sim, mas pergunte a ele, laird. Vai descobrir que o pai sabia o que ele estava aprontando. Que o encorajou. É ele quem devia estar à sua frente. — Não! — gritou o garoto. — Papai não... — Ele olhou para Ian, depois ficou muito vermelho. Apertou os lábios com força. — Mas você bateu mesmo no menino? — perguntou Ian, ameno. — Ele me xingou, me chutou, depois tentou fugir. Ian assentiu. 142


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— Senhor Tearny, não aprovo homens feitos que batem em crianças. Tearny cerrou os punhos. — Pois bem, laird. Eu me lembrarei disso no futuro. — De fato, não aprovo nenhum dos seus métodos. Acho que é hora de Dunross dispensar seus serviços. Esteja no meu escritório em uma hora para acertarmos as coisas entre nós. Você pode ir. O rosto de Tearny ficou vermelho como um tijolo. Abriu a boca como se quisesse discutir, mas pareceu pensar melhor, pois ergueu a cabeça de repente. — Como quiser. — Ele olhou com cara feia para o garoto. — Esteja certo de que Carrick não vai admitir sua invasão, garoto. Certifique-se de não vagar nas terras dele. — Ele girou e saiu a passos duros do salão. O menino McKinly sorriu e fez um gesto rude para as costas de Tearny. — Basta! — retrucou Ian, com gravidade. — Por que não está frequentando a escola no celeiro do dízimo? O menino encolheu os ombros. — Sou velho demais para estudar. — Nenhum homem é velho demais para aprender algo novo — afirmou Ian. — Como punição por não pedir permissão para pegar coelhos nas minhas terras, terá que freqüentar a escola todas as tardes depois que tiver cumprido as tarefas para o seu pai. Agora leve estes coelhos para casa. O menino abaixou a cabeça obviamente aliviado. — Sim, laird. — Apanhou as carcaças no chão e correu para a porta. — Ah, McKinly — chamou Ian. O menino parou e girou, a ansiedade escrita em seu rosto. — Nada mais do que dois por quinzena entendeu? E isso vale para todos, senão não teremos mais coelhos deste lado de Edimburgo. O rosto dele se iluminou. Ele saiu disparado pela porta e sumiu. Ian deixou escapar um longo suspiro. Agora tinha que lidar com uma esposa zangada. Ficava um pouco chateado por saber que ela pensava tão mal ao seu respeito para achar que machucaria o menino. Encaminhou-se ao pátio. A chuva salpicou seu rosto enquanto olhava os arredores. Angus, conversando com um dos cavalariços, apontou o queixo na direção do estábulo. Com um peso no peito que ele odiava sentir, Ian entrou no celeiro. Demorou um instante para que se acostumasse à escuridão, depois a viu na baia com seu capão, escovando a pelagem lustrosa do animal com movimentos ritmados. O que ele não faria por esse tipo de atenção da esposa? Aproximou-se de Selina, que se virou ao som de seus passos. Uma ruga apareceu em sua testa e ela retomou a escovação. — Planejando ir a algum lugar? — perguntou ele, ciente de que havia uma ponta de raiva na voz, apesar da tentativa de soar agradável. — Pensei em dar um passeio. — E quando pretendia me pedir para acompanhá-la? Ela continuava escovando. 143


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— Eu pretendia pedir a Angus. Outro belo golpe em seu orgulho. Claro que ela preferiria a companhia do mordomo. — E aonde pretendia ir? À fazenda do McKinly, por acaso? — Dessa vez ele não fez qualquer esforço para esconder a amargura na voz. — Talvez. — Com que propósito? — Contar que o filho dele estava aqui...Que ele devia vir e... e... interceder por ele. Resgatá-lo. Qualquer coisa. Não conseguiu ver como o menino estava apavorado? — Você correu antes que eu tivesse terminado com ele. — Ele estava ressentindo com o insulto à sua integridade. — Achei que deveria procurar o pai dele imediatamente. — Então, por que ainda está aqui? Ela girou para encará-lo. — Porque Angus não me deixou sair sem a sua permissão. Parece que sou uma prisioneira. Lágrimas assomaram aos olhos dela, e Ian se sentiu um tirano. — É para a sua própria segurança. Eu falei. — Deu um suspiro impaciente. Pretendia deixar que ela acreditasse no pior, que pensasse que ele era tão insensível quanto imaginava, e que descobrisse por conta própria que não. Mas isso a colocaria numa posição muito embaraçosa. E isso ele não podia permitir. — Deixei o menino ir embora com uma advertência — disse ele. Ela se grudou à baia, como se não confiasse que as pernas a sustentariam. — Dispensei Tearny — continuou. — Ele é rude demais. Não me associo com homens que batem em crianças. Devia saber disso, Selina. Devia ter me dado o benefício da dúvida. Não sou o seu pai. Esta é a minha gente. O rosto dela empalideceu. Selina olhou para a escova em sua mãe e depois o encarou. — Eu... eu sinto muito. Ele lhe deu um sorriso melancólico. — Lamento não ter explicado minhas intenções, mas eu realmente espero que me apoie, ao menos em público, se quiser ser aceita pelo clã. — Entendi. Ian queria ter certeza de que ela entendia. Ainda havia uma expressão teimosa em seu queixo. — Podemos falar sobre isso depois. Agora estou com Tearny esperando no meu escritório. Selina ainda estava olhando na direção que ele havia tomado muito depois de a porta ter se fechado. Sentindo-se insatisfeita. Vazia. Muito errada. Porque ele estava certo. Ela devia saber que ele não faria nada para machucar o menino McKinly. Ela só queria acreditar no pior porque isso alimentava nela a determinação para não confiar em Ian. Se confiasse nele, outras emoções se aproveitariam de sua guarda baixa e a 144


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pegariam de surpresa. Selina não podia permitir tal coisa. Seria muito fácil ceder, entregar seu coração e deixar que ele o desprezasse. Ela acariciou o focinho de Topaz. — Acho que não vamos sair para cavalgar hoje. — Suspirou. — Mas engolirei meu orgulho e pedirei que ele nos acompanhe amanhã. — Afinal, ela não podia viver em estado de guerra com Ian. Ele não merecia.

Capítulo Dezenove

As duas semanas seguintes passaram depressa. Depressa demais para o sossego de Selina. Eles se sentavam no solar todas as manhãs para tomar o café da manhã, ler cartas e planejar as atividades do dia. Como um casal feliz. Estava chegando o dia em que ela partiria, por isso agora desejava ter concedido os três meses que ele havia pedido. Não porque não partiria — ela não voltaria atrás em sua palavra mas porque estava aprendendo muito sobre as Terras Altas e seu povo. Ela e Ian cavalgavam juntos nos dias em que ele não estava ocupado no moinho, passeando pela aldeia e ao redor da propriedade, visitando os arrendamentos afastados. As boas-vindas que ela recebia raramente eram efusivas, mas as pessoas do clã eram educadas na presença de Ian. Não conseguia evitar a sensação de que ele estaria muito melhor casado com alguma das mulheres da localidade. Algumas delas eram bem bonitas. E todas falavam gaélico. Embora tivesse aprendido algumas palavras, Selina não conseguia acompanhar as rápidas conversas de Ian com seus arrendatários, então ela sempre tinha que perguntar o que havia sido dito quando retomavam a cavalgada. Ela tinha a impressão de que ele apenas revelava as partes que não a magoariam. Selina realmente não tinha feito amigo nenhum, a menos que Marie Flora McKinly contasse. Então, sem as noites de paixão, ela teria ficado louca sem ninguém para conversar que não fosse a cozinheira, que vinha da aldeia todos os dias e com quem decidia os cardápios, e as ocasionais conversas com Angus acerca dos suprimentos que ela precisava para a casa. Ela deu uma espiada no marido, que estava do outro lado da mesa do café da manhã. Tão bonito. Quanto mais tempo permanecia, maior era a afeição que sentia. Ele era um laird gentil e justo. E ela só podia admirá-lo. No momento, ele estava franzindo a testa para a carta que havia recebido naquela manhã: Parecia mais distraído que de costume nos últimos dois dias. Mais distante. Ian ergueu o olhar e percebeu que era observado. 145


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— O que a preocupa? Será que ele tinha que fingir que se importava? Aquelas perguntas gentis sempre a desarmavam. Ela partiria em uma semana. Não podia permitir que ele notasse qualquer trinco em sua armadura. — Gostou da maneira como penteei o cabelo? Eu vi numa das ilustrações de moda que Chrissie deixou para trás. A ruga na testa dele aumentou. — Você suspirou. Duas vezes nos últimos dez minutos. Ela tinha suspirado? — Eu só fiquei cansada de ver sua cara enterrada nessa carta. São más notícias? Ian deu uma olhada no papel. — Não. — Ele sacudiu a cabeça como se tentasse se convencer. — Só não são tão boas quanto eu esperava. Selina aguardou que ele dissesse mais. Não que ele geralmente o fizesse. Ele lhe disse para não se preocupar com os assuntos do clã; tinha tudo sob controle. Ela era apenas uma boneca de porcelana, que podia ser admirada sem problemas, mas que quebrava com facilidade. Uma expressão de horror cruzou o rosto dele. — Sinto muito, eu esqueci. — Ele puxou uma carta amarrotada do bolso. — Logan a trouxe do correio esta manhã. Eu queria lhe entregar imediatamente. — Mas ficou entretido com sua própria carta, que contém assuntos de pequena importância. — Ian a fitou com ar vazio e Selina se perguntou por que ainda se incomodava. Ele deslizou a mensagem sobre a mesa, e o coração dela levitou ao ver o timbre familiar no selo. — É da Alice! — Não conseguiu evitar a animação na voz, mas depois se lembrou que provavelmente era melhor não mencionar Alice. O nome dela sempre o deixava amuado. Provavelmente porque trazia lembranças de Drew. Já bastava a sombra dele, que parecia pairar sobre os dois no momento. Ela quebrou o selo e leu com avidez, preenchendo a mente com imagens de Alice e Hawkhurst e o recente acréscimo à família. Deu risadinhas com a descrição que Alice fazia de Hawkhurst remando com o filho pelo lago e brincando de pirata. Ele já tinha sido um pirata. Ou um corsário, pelo menos, o mais perto de um pirata que se podia ser nos dias de hoje. Ele havia capturado o navio no qual ela e Alice voltavam de Lisboa para a Inglaterra. No fim, foi ele quem terminou nos ferros. Mas a guerra havia acabado e ele havia deixado tudo no passado. Quando terminou a leitura, Selina tinha um sorriso nos lábios. Ergueu a cabeça e descobriu que o marido a observava com atenção. A expressão no rosto dele estava cuidadosamente vazia. — Sua amiga está bem? — perguntou, com voz descompromissada. — Sim. Ela fala sobre o filho. Histórias maternas. Ela me implora por uma visita. — Não posso levá-la agora, nem tão em breve. Em uma semana, ela teria o direito de escolher se partia ou ficava. 146


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— Eu os visitarei depois, quando nós... — Ela encolheu os ombros enquanto apertava os lábios numa fina linha e enrijecia o queixo. Ian se irritou e apanhou a própria carta. — Não há nada que me prenda aqui, Ian — disse ela, sentindo a necessidade de explicar quando viu a mágoa nos olhos dele. Uma profunda mágoa. Algo que ela acreditava notar de tempos em tempos, quando falava em partir. Dessa vez, ela teve certeza. Se ele ao menos dissesse alguma coisa. Dissesse o que estava pensando. — Ian? Ele se colocou de pé. — Já que ser minha esposa não é razão para ficar, o que mais resta a dizer? Com licença. Tenho um dia cheio pela frente e preciso cancelar o passeio a cavalo que planejamos para esta tarde. Saiu a passos largos, e ela só pôde acompanhá-lo com o olhar. Era tudo imaginação. Se ele quisesse que ela ficasse, se houvesse algo além da atração física, será que ela já não teria percebido? Ian teria dito alguma coisa. É, afinal, por que ele ficaria magoado? Ele possuía tudo o que queria com aquele casamento. Foi ela a enganada. Foi ela quem perdeu tudo o que estimava porque havia tentado ajudá-lo. Às vezes, à noite, quando estavam sozinhos, quando ele estava fazendo amor com ela, Selina sentia que Ian se importava mais do que gostaria de dizer — mas, se este era o caso, por que ele a expulsava do resto da sua vida? Não, era Dunross o que ele queria, não ela. E agora ele possuía a fortaleza. O casamento deles era pura conveniência. Para ele. Ele havia estabelecido as regras e ela tinha aceitado todas elas. Agora estava chegando o fim. Mais alguns dias e ela poderia seguir para o sul, como Ian havia prometido. Algo se contorceu no peito dela.

— ESCUTOU O que eu disse, Ian? — A voz de Niall soou aguda de impaciência. Ian sacudiu a cabeça. — Sinto muito, eu estava pensando em outra coisa. Repita. Niall bufou com impaciência. — Eu avisei a todos que trouxessem a colheita para o moinho nos próximos dois dias. O tempo promete se manter firme por pelo menos uma semana. Poderíamos aceitar alguma coisa dos campos mais distantes, se conseguirem trazer. — Eles sabem que devem trazer durante à noite? — perguntou Ian, olhando para os dois desenhos dos dois alambiques que Niall havia espalhado num banco no estábulo. Desenhado para que se encaixassem um no outro, poderiam enganar as autoridades se não fossem examinados com muita atenção. Niall assentiu. — Eu dei a eles todas as trilhas que estão sendo observadas pelos almotacéis. Eles sabem que devem evitá-las. Logan sorriu. — E a milícia está vigiando a costa depois da visita que eu fiz à taberna em Wick. 147


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Ian assentiu. Dunstan não era um completo idiota, mas, já que esperava que fossem traficar conhaque, parecia disposto a acreditar em seus olhos e ouvidos. Mesmo assim, era melhor não subestimar o homem. — Mande Tammy ficar de olho em Dunstan e seus homens nos próximos dois dias. Uma vez que a cevada estiver lá dentro, as coisas ficarão calmas novamente até a época da destilação. Niall baixou os olhos para os desenhos. — Pena não podermos pedir uma licença e fazer tudo isso legalmente. Era mesmo uma pena. Mas quinhentos galões de uma vez estava além de seus parcos recursos. — Não podemos. Não com a lei como está. Eu soube por Carrick no outro dia que, mesmo com o apoio de lorde Gordon, não há esperança de que o parlamento inglês mude de ideia. Seguiremos como planejado. O som pelo qual ele estava esperando, a razão para a sua distração, chegou aos ouvidos dele. Rodas de uma carruagem sobre o pavimento. Dizer adeus a ela seria a coisa mais difícil que ele já tinha feito. Mas, depois de pensar cuidadosamente, concluiu que Selina estaria mais segura com a amiga. Se ela queria ir, era melhor que fosse agora, antes que colocassem a destilaria para funcionar, pois depois poderia alegar que não sabia de nada caso ele fosse capturado. Ela já ficaria muito manchada por ser sua esposa; ele não desejaria que Selina testemunhasse sua desgraça. E o clã não a queria ali. Por mais que ele sempre a defendesse e por mais que sempre argumentasse, alguns ainda a culpavam pelo último fiasco. A presença dela minava sua autoridade. O casamento deles estava condenado desde o princípio. O mundo de cada um era diferente demais. Ele a viu descer os degraus vestida para a viagem. Os baús já estavam ao pé dos degraus. Mesmo que tivesse se preparado para aquele momento durante a manhã inteira, a aparição dela foi um verdadeiro choque. O quê? Tinha pensando que ela não partiria quando chegasse a hora, sabendo que ele não era o homem que ela queria? A leve hesitação no andar dela ao descer provocou um aperto sofrido no peito dele. Selina parecia muito fria e silenciosamente indiferente, mas ele sabia o quanto era vulnerável, frágil, e a necessidade de protegê-la superou o lamento. O cocheiro e o guarda se apressaram em levar a bagagem para o bagageiro. Ele se juntou a ela ao pé da escada. — Está de saída bem cedo — disse ele, para preencher o silêncio entre os dois, quando, na verdade, queria pedir para que ela ficasse. Ah, aquela seria uma bela cena para os seus homens, o laird implorando à esposa que não o deixasse. Especialmente se ela partisse mesmo assim. E ele não tinha dúvida de que ela partiria. — Não quero fazer mais paradas que as necessárias na estrada. — A voz era fria, desprovida de emoção, leve. Enquanto a solidão se estendia adiante, Ian olhou no rosto dela. Havia uma reluzente fragilidade na determinação dela naquela manhã. A mesma fragilidade que ela havia usado para manter o mundo a distância no baile de Carrick, e quando caiu do cavalo. Era impressionante, assim como sua beleza. 148


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Fazia com que ele se maravilhasse e se sentisse rude e desajeitado. Da maneira como se sentiu quando era rapaz, quando a encontrou saltitando estoicamente de volta para casa depois de ter caído numa toca de coelho e torcido o tornozelo. Ele nunca havia encontrado uma garota tão bonita. Ou ouvido alguém falar com tanta ousadia. Ian foi incapaz de resistir aos belos lábios carnudos e roubou um beijo. Quantas vezes se encontraram naquele longínquo verão? Quatro. Cinco. Todas se misturavam numa única memória de felicidade que ele julgava ter esquecido. Todas voltaram de maneira esmagadora no momento em que recebeu a carta falando sobre Drew. Junto com a culpa. Quando seus irmãos os encontraram na praia, ele ficou envergonhado por ser pego se associando à família do inimigo. Ele disse coisas bem cruéis. Ao menos, impediu que seus irmãos atirassem pedras enquanto ela saía correndo. A vontade de dizer que precisava dela ali, com ele, subiu em sua garganta. Zangado consigo mesmo, zangado com sua incapacidade para pensar com lógica quando se tratava dessa mulher, por ser o laird que ele foi criado para ser, Ian ignorou os sentimentos e se concentrou no que devia ser feito. Abriu a porta e estendeu a mão para Selina. Sem luvas. A mão dela se aninhou na dele como um passarinho machucado. Ele a havia machucado. Via isso no rosto dela, nas sombras em seus olhos. Ele havia lhe roubado a liberdade de escolha e agora devia ficar satisfeito em devolvê-la, não se sentir como se alguém tivesse enfiado a mão em seu peito e arrancado seu coração fora. Um raio de compreensão o atingiu em cheio. Enquanto estava ocupado tentando seduzi-la, ele tinha se apaixonado, não por sua beleza, embora também fosse adorável, mas pela coragem e o espírito, seu coração carinhoso. Amor. Então era esse o motivo para todo esse tumulto em seu peito? Aparentemente era um capataz brutal, pois havia tornado um homem sensato num idiota e o fizera querer coisas que não poderia ter. Como o amor dela. Como ela poderia amá-lo? Ele havia esmagado os sonhos dela em favor do avanço dos seus. Bem, ele não faria mais isso. Então, mesmo contra todos os seus instintos — de fato, ele percebeu que as mãos estavam tremendo enquanto a ajudava a subir no veículo —, Ian fechou a porta. Selina se recostou nas almofadas. Um homem desceu correndo os degraus da fortaleza. Angus. — Fogo! — berrou. Sem fôlego, o peito arquejante, ele lutava para falar. — No moinho — ofegou. — Eu estava nas ameias esperando para observar a carruagem, quando vi uma coluna de fumaça. Não pode ser outra coisa. Precisa mandar os homens para lá imediatamente. Todos olharam para Ian, boquiabertos. — Levarei Beau até Barleycorn e reunirei quantos eu puder por lá. Você vai na carruagem, Niall, por favor. Leve Logan com você. Façam o que puderem até nós chegarmos. Os irmãos já estavam pulando no teto da carruagem quando ele terminou de falar. O cocheiro girou a carruagem enquanto Ian corria até o cavalo. Ele olhou por cima do ombro. Droga! Selina estava lá dentro. E enfrentaria uma corrida acidentada. Só esperava que ela compreendesse que isso era importante. 149


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QUANDO a carruagem parou de repente e os três homens pularam, Selina espiou o moinho pela janela. Espantada, viu a fumaça ser cuspida pelos beirais do telhado e subir alguns metros, antes de ser carregada pelo vento. Duas pessoas, uma pequena, uma grandalhona, subiam correndo do riacho para jogar o conteúdo de seus baldes de couro por uma porta aberta para o coração do incêndio. Ávidas chamas vermelhas. O cocheiro abriu a porta, enquanto Niall e Logan corriam para ajudar. — Melhor sair, minha senhora, antes que os animais entrem em pânico. Com o coração disparado, ela pulou. — Vá. Eu vou ficar bem. Lá fora, o rugido do fogo era predominante, assim como o cheiro da fumaça. Ela olhou ao redor, imaginando o que poderia fazer para ajudar. Mais homens chegavam à colina e mulheres vinham da aldeia. Carregavam baldes de todos os formatos e tamanhos, correndo para formar uma fila desde o riacho até o moinho. Outra fila se formou ao lado da primeira. Selina entrou nela, apertando-se ao lado de uma menininha que estava soluçando com o esforço de passar os recipientes pesados. Selina acrescentou sua força à da criança, e logo estavam num sofrido ritmo de erguer, arfar e passar, até suas costas doerem. O suprimento de água parou por um momento. Será que estavam vencendo? Ela ficou de pé e esticou as costas, olhando na direção da ponta da fila. Chamas lambiam em volta da estrutura da porta. Uma pessoa familiar correu lá para dentro. Ian? Não tinha visto quando ele chegou, mas ele devia estar com o resto dos homens. O que, diabos, ele estava fazendo? Um dos meninos mais novos, com o rosto coberto de fuligem, correu na direção do riacho com vários baldes vazios. E a mulher atrás dela lhe deu um tapinha nas costas. O ritmo foi retomado. Uma pausa, vários baldes depois, lhe deu a oportunidade de erguer a vista. Ian e vários dos homens estavam rolando barris pela entrada, protegendo-se com paletós molhados sobre a cabeça. Bebida. Estavam arriscando as vidas por causa de bebidas contrabandeadas? Outra vez. Ela devia ter adivinhado. A raiva se agitou no estômago dela. Como podiam ser tão estúpidos? A qualquer momento, a milícia poderia ver a fumaça e chegaria depressa para prender todos eles. Deviam ter deixado que a bebida queimasse. A criança ao seu lado puxou sua mão. — Minha senhora? Por baixo da fuligem e das lágrimas que escorriam pelo rosto da criança, havia muitas sardas. — Marie Flora? O que está fazendo aqui? — Papai veio trazer a cevada. Depois o fogo começou. 150


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Selina se virou para pegar a próxima leva de baldes da mulher às suas costas e o trabalho pesado recomeçou. — Apagou! — berrou alguém. Todos comemoraram. Selina ergueu os olhos. A fumaça, acre e sufocante, ainda redemoinhava pelo pátio pavimentado, mas estava rareando, sendo limpa por lufadas de vento. — Continuem trazendo água — gritou alguém. — Só para garantir. — Ela passou os outros baldes seguintes até não haver mais nada para passar e saiu da fila. Marie Flora saiu correndo, sem dúvida procurando pelo pai. Selina examinou o estrago. Parte do telhado havia desabado, mas grande parte da construção de pedra permanecia intacta. O fogo ficou confinado ao lado em que a roda d’água girava as imensas mós. Felizmente, eles tinham chegado a tempo. Ela olhou ao redor. Não havia sinal de Ian. Nem dos barris. Então ela percebeu que o cocheiro estava colocando os cavalos para andar. Estava partindo sem ela? Conforme a carruagem se afastava, revelou-se Ian do outro lado, o rosto sujo de fuligem e a mão erguida em despedida. Malditos! Sem dúvida, a carruagem estava lotada com seus preciosos barris. O estômago dela pesou. Não deixaria a aldeia esta noite, afinal. Não sabia ao certo se estava chateada ou contente. Contente, maldito coração mole!

Capítulo Vinte

Parecendo tão selvagem quanto um dos antigos guerreiros, Ian colocou os homens para jogar as cinzas para fora onde as mulheres despejavam água sempre que viam fumaça subindo. Um puxão em sua saia tirou a atenção de Selina no trabalho. — Tommy sumiu — disse Marie Flora. Por um instante, as palavras não foram assimiladas. — Seu irmão, Tommy? — Eu mandei que esperasse ao lado do riacho enquanto eu ajudava papai. — Ignorando a dor nas costas, Selina se agachou para ficar olho a olho com a criança. — Quer que eu ajude a procurá-lo? O alívio inundou os olhos arregalados. Marie Flora assentiu. Com um gemido, Selina se levantou e pegou a mão da criança. — Mostre-me onde o deixou. 151


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Pelos céus, que o rapazinho não tivesse caído no riacho. Caminhou ao lado da criança, seguindo riacho acima, afastando-se do moinho, toda dolorida por causa da falta de costume com o trabalho pesado, mancando mais do que o normal. — Ali — disse Marie Flora, apontando para uma rocha achatada. — Eu mandei que ele se sentasse ali com Milly e esperasse. — Milly? — Vovó deu uma das galinhas dela para ele, Papai só descobriu quando já estávamos na metade do caminho. — Como vocês chegaram aqui? — Pegamos emprestada a carroça da vovó. Está no celeiro. Depois iríamos até a aldeia andando, para fazer uma visita. O celeiro ficava do outro lado do pátio, mas uma portinha que dava para os fundos ficava na lateral que estava de frente para as duas. A porta estava entreaberta. — Acha que ele está se escondendo lá dentro? — Parecia improvável mesmo enquanto ela falava. O lugar devia estar cheio de fumaça. Ou não. O vento estava soprando na direção contrária. — Se estiver se escondendo, papai vai esquentar o traseiro dele — disse a menina. Juntas, marcharam colina acima até a porta, duas mulheres zangadas prontas para batalhar com um garotinho teimoso. Selina já estava ficando com pena do pequeno Tommy. Ela empurrou a porta. — Tommy — chamou Marie-Flora. — Saia daí. Espere até eu contar ao papai. Nenhuma resposta. Só o suave ruído dos animais em suas baias. — Tommy — chamou Marie Flora mais uma vez, agora com lágrimas na voz. Ela temia que o irmão não estivesse ali. — Tommy, saia agora — disse Selina —, e não contaremos nada ao seu pai. — Deu mais um passo para dentro do celeiro, os olhos se acostumando à luz fraca que vinha da porta e da abertura para o pátio. Conseguiu enxergar a carroça e o burro. E o pônei que Ian havia atrelado à carroça com que a levou para casa quando caiu de Topaz. Algo correu pelo chão. Um rato? Ela deu um grito de protesto. — Milly! — exclamou Marie Flora, mergulhando para apanhar a galinha. — Tommy! — gritou ela. Disparou algo em gaélico, mas o sermão em seu tom tornava a tradução desnecessária. O traseiro quente de novo, sem dúvida. Espiando na escuridão, Selina esperava ver Tommy sair a qualquer momento do esconderijo com um sorrisinho furtivo no rosto. Apertando a galinha junto ao peito, Marie Flora girou. — Tommy. — Agora ela parecia furiosa. Pequenos pedaços de capim vieram flutuando até cair no ombro e no cabelo da menina. Alguns aterrissaram no rosto de Selina. Ela ergueu os olhos. Um palheiro! Uma escada estava encostada numa abertura no andar superior. 152


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Levou os dedos aos lábios e apontou para cima, depois para a escada. Os olhos da menina exibiram entendimento. Ela apertou os lábios e baixou as sobrancelhas. Ah, nossa, Tommy estava numa encrenca. — Acho que ele não está aqui — falou Selina, em voz alta. — Melhor procurarmos em outro lugar. — Ele vai ver quando papai o encontrar — disse Marie Flora, com rápida compreensão. Ela enfiou a galinha no bolso do avental encardido. Foram andando pesado e abriram a porta como se estivessem saindo, depois se esgueiraram até a escada. Marie Flora subiu quietinha até sua cabeça sumir, depois o corpo. Selina acompanhou com mais vagar, a saia atrapalhando os movimentos. Quando a cabeça passou pela abertura, ela ficou paralisada de choque. As duas crianças a encaravam, os olhos arregalados e apavorados sob a luz que se infiltrava pela janela da empena. Uma faca reluzia perigosamente. O ar sumiu dos pulmões num jorro e ela se agarrou à beirada. O homem que mantinha as crianças num braço, apertadas contra o peito, e a faca apontada contra a garganta de Marie Flora, sorriu. — Parece que a sorte está comigo, afinal. Termine de subir, lady Selina — disse Tearny.

IAN OLHOU a bagunça ao seu redor. O fogo tinha sido bem deliberado. Quem, entre aqueles que sabiam da destilaria, desejaria vê-la danificada? Mesmo que o sucesso do moinho não representasse muito dinheiro para o clã, nenhuma pessoa das Terras Altas em seu juízo perfeito desejaria ver um bom uísque pegando fogo. Podia imaginar que o roubassem e bebessem, mas não isso. Correu o olhar pelo pátio. Todos ali estavam cobertos de fuligem e trabalhando com afinco para limpar a bagunça. Niall se aproximou, também olhando ao redor. — Alguém ferido? Ian sacudiu a cabeça. — Não. E o dano é mínimo. Quem quer que tenha colocado o fogo não deve ter percebido que não era no moinho que estávamos colocando todos os nossos esforços. — Acha que Albright pode estar por trás disso? Ele respirou fundo. Seu sogro estava mais triste do que zangado, embora tivesse ficado zangado também. — Não sei, mas não faz sentido nenhum. Que benefício ele teria com isso? — Vingança. Ian olhou ao redor procurando pela esposa. A última vez em que a viu, ela estava passando baldes de água. Um grupo de mulheres estava ali perto, lavando-se com um balde. Ele deu um tapinha no ombro da mais próxima. 153


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— Viu lady Selina? A mulher sorriu. — Sim, laird. Subindo a colina por trás do celeiro com a menininha McKinly, não faz mais de cinco minutos. McKinly se aproximou então; o rosto estava soturno. — Não vai levar muito tempo para consertar o moinho. Tivemos sorte de salvar meu uísque. — Sim, sorte. Mas como, diabos, ele começou? — É a coisa mais esquisita. Meu menininho disse que sentiu cheiro de fumaça de cachimbo quando nós chegamos. Não senti cheiro nenhum. Eu descarreguei os barris como você instruiu e fui descarregar os sacos de cevada no celeiro quando Tommy começou a berrar “fogo” lá fora. — Ele esfregou a nuca. — A porta do moinho estava aberta. Eu podia jurar que tinha passado a tranca ao sair, mas eu estou danado de cansado da colheita... Lamento, laird. Pode ter sido uma faísca dos cascos do burro, ou talvez minhas botas. Não consigo pensar em mais nada. Será que ele tinha fumado e agora estava tentando colocar a culpa em outra coisa? O olhar límpido não revelava sinais de culpa. Mas uma faísca de cascos parecia pouco provável. — Tommy viu alguém? — Não perguntei. Eu mandei as crianças descerem a colina e ficarem perto da água. O fogo se alastrou muito depressa. Era quase como se tivesse começado em vários pontos ao mesmo tempo. Eu só agradeço a Deus porque a cevada estava segura no celeiro. Ian deu um tapinha no ombro de McKinly. — E eu agradeço a Deus por você ter agido tão rápido. Nunca poderei recompensá-lo. O outro homem exibiu um sorriso tímido. — Fico satisfeito por ajudar, laird. — Ele olhou ao redor. — Agora não acho Marie Flora. Mandei que cuidasse do irmão. Depois eu a vi passando baldes. — Aparentemente ela está com lady Selina. Venha, homem, vamos procurá-las juntos. A encosta por trás do celeiro estava deserta. Ian franziu o cenho. — Uma das mulheres disse que as viu vindo nessa direção. McKinly apontou para uma rocha achatada. — Foi ali que mandei que ela e o menino esperassem.

Forçada pela ponta de uma faca a ficar parada num canto com as crianças, Selina observou Tearny espalhar palha de uma pilha de fardos pelo chão em montinhos. O corpo dela ainda estava tremendo por causa do choque de ver a faca junto ao pescoço magro de Tommy. Tentou engolir o nó que estava na garganta. Tearny deixou a faca no chão e puxou o isqueiro. 154


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Bom Deus! O estômago dela revirou. — Você colocou fogo no moinho. Ele sorriu com terrível triunfo. — De fato. Eu avisei ao Gilvry, quando acertou as minhas contas, que ele teria o que merecia um dia desses. O melhor de tudo é que veio com uma recompensa. Uma boa recompensa. — Do que está falando? A resposta dele foi um sorriso irônico. Ele riscou a pederneira no aço. O estalo soou horrivelmente alto naquele tenso silêncio. Tommy virou o rosto para a saia dela. Marie Flora a olhava com expectativa, acreditando que ela os salvaria. A isca não acendeu. Ela suspirou de alívio. Tearny remexeu a pederneira com nervosismo. Selina avaliou a distância até a faca e soube que estava longe demais. Precisava distraí-lo de alguma forma. — Ora, senhor Tearny, qualquer que seja o ressentimento que guarde contra meu marido, duvido que queira machucar uma mulher e duas crianças. — Senhor Tearny — imitou ele. — Como vai, senhor Tearny? Mas você nunca esperou uma resposta, não é? Vadia arrogante. Mas eu vi como ficou satisfeita no dia em que ele me dispensou. Você se casou com o homem errado, minha senhora. Aquilo não estava fazendo sentido. — Não sei o que o meu casamento tem a ver com você, senhor Tearny. — Não, aposto que não. O galinho do Ian Gilvry não devia ter trazido você aqui hoje. Pode culpá-lo por isso. Seu olhar voltou para o isqueiro. — Ele não devia ter colocado as mãos dele em Dunross. — Ele apertou a pederneira contra o aço. Nada de faísca. Um pensamento horrível entrou na mente dela, no qual não queria acreditar. — Esta fazendo isso em nome do meu pai? Ele ficou espantado, depois riu com deboche. — Isso não tem nada a ver com o seu pai. Mesmo assim, não lamentarei saber que ele também logo lastimará sua perda. O coração dela parou diante da desumanidade em sua voz. — De uma forma ou de outra, meu pai não dará a mínima. — Ela deu um passo adiante. — Acha que não? Não foi a impressão que ele deu quando pensou que você tinha sido raptada. Que meretriz, fugindo com Gilvry durante a noite e deixando todos preocupados! — Ele a olhou com raiva. Se ele tivesse sido apanhado pelos almotacéis naquela noite, teria sido melhor para todos nós. — Alguém o pagou para traí-lo. 155


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— Rápida, não é? Ela avançou mais um passo. — Obrigada. Quem foi? Ele ergueu o olhar, os olhos cintilando de esperteza. — Você não adoraria saber? Maldito homem! — Tão logo você sair daqui, eles saberão que você é o culpado. Deixe-nos ir e eu não direi nada. Ele curvou os lábios. — Ninguém me viu entrar e ninguém me verá sair. Posso não ser um escocês, mas sei andar por essas colinas melhor do que muitos. Mais dois passos e ela estaria suficientemente perto para apanhar a faca, se ao menos conseguisse mantê-lo falando. — Não tenho o direito de saber quem está por trás da minha morte? Ele apertou a pederneira de novo. A palha acendeu. O pequeno Tommy gritou. Os olhos de Tearny grudaram no menino. Ele apanhou a faca e a agitou. — Chega de conversa. Eu já devia ter saído daqui. Tenho uma bolsa para buscar. — Ele enfiou a faca no cós da calça. O coração dela disparou. A voz tremeu. — Se é a mim que você quer ferir, deixe as crianças saírem. Ele olhou para Marie Flora. — Ora, garotinha? Você seria capaz de me reconhecer? — Ele falou com tanta gentileza, tanta mansidão, que parecia quase inofensivo. — Sim, eu conheço você — disse Marie Flora, os cachinhos eriçados em desafio. — Você é um homem mau. Selina gemeu. Resposta errada, criança. Não que ela acreditasse que a resposta certa teria servido de alguma coisa. Tearny já tinha tomado uma decisão em sua mente distorcida. Ele se agachou e soprou de leve a centelha. A pequena pilha de palha entre seus joelhos fumaçou, depois pegou fogo. Ele pegou o pacote e recuou pela escada, até que tudo o que eles conseguiram ver foi seu rosto, como o de um demônio debochado saindo do poço do inferno. Ele tocou chamas na palha que cercava o buraco no chão e atirou o pacote contra eles, fazendo-os recuar. Naquele breve segundo, eles perderam qualquer chance de escapar. — Grite o quanto quiser, lady Selina — disse ele. — Com sorte, Gilvry virá correndo salvá-la e será o fim dele também. Quando ele desapareceu, ela correu até a abertura. O calor das chamas a afugentou. Enquanto ela girava, procurando outra maneira de escapar, as chamas se espalhavam, chegando mais perto. As vigas secas do chão começaram a queimar. A fumaça encheu sua boca e seu nariz. Era inútil. 156


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Capítulo Vinte e Um

Ian e McKinly tinham caminhado uma boa distância colina acima sem qualquer sinal de Selina ou das crianças. — Ela é uma ótima moça, a sua esposa — disse McKinly. — Marie Flora só sabe falar dela desde que esteve lá. Como descascou as semiIhas e remendou minhas camisas. E o jeito como ajudou as mulheres com os baldes. Ninguém jamais diria que é uma dama nascida. Deve estar orgulhoso dela. — Estou — disse Ian. Bastante orgulhoso para perceber que ela era boa demais para o seu gosto. Seu maior temor agora era que ela fosse pega ali pelos almotacéis ou a milícia local. Precisava levá-la dali. — Aonde, diabos, eles foram? McKinly olhou para baixo, na direção do moinho, e gelou. — Bom Deus, de novo não — murmurou. — O celeiro está pegando fogo. Espantado, Ian se virou. Fiapos de fumaça subiam encaracolando do telhado. Ele praguejou. — Fogo! — urrou ele, correndo colina abaixo. Ele precisava tirar os animais. E a cevada, senão todos os seus esforços anteriores não teriam significado nada. — Não entendo — ofegou McKinly, correndo ao lado dele. — A fumaça vem de dentro do telhado. Talvez devêssemos ter olhado lá primeiro. Minha nossa! — Acha que as crianças estão lá? A expressão de terror nos olhos de McKinly foi resposta suficiente. Ian acelerou o passo. Se as crianças estavam lá, então... Ele não ousou concluir o pensamento. Abaixou-se para atravessar a pequena entrada arqueada ao mesmo tempo em que a figura de um homem saía correndo pelas portas duplas no pátio oposto. Ele hesitou, olhando ao redor. — Lá em cima! — gritou McKinly. Duas perninhas balançavam pelo alçapão onde deveria haver uma escada. Ela estava no chão. Um instante depois, o resto de Tommy apareceu, em uma blusa sem manga, as mãos acima da cabeça, balançando muito acima do chão. Ian e McKinly correram para debaixo da abertura, onde a cabeça e os ombros de Selina agora eram visíveis. Ela estava segurando o menino, as mãos apertando os cotovelos dele, a fumaça se retorcendo à sua volta. — Solte-o! — gritou Ian. — Eu o pego. Ela ergueu o rosto, o esforço de segurar o menino marcado em suas feições, junto 157


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com o lampejo de alívio ao perceber que havia chegado ajuda. O menino caiu com um grito. Coração na garganta, Ian o pegou e entregou ao pai. Ergueu de novo a escada contra a borda da abertura e subiu depressa. O calor o atingiu no rosto como uma parede. Ali perto, fardos de feno pegavam fogo. O assoalho estava fumaçando. De alguma forma, Selina e a menina estavam de pé numa pequena área livre de chamas, os resquícios chamuscados de um paletó infantil nas mãos dela. Estava tossindo e arfando, o fogo se ajuntando sobre elas. Selina combatia as chamas com o paletó. Ele agarrou a criança e a entregou ao pai, que aguardava atrás dele, na escada, depois, sem saber exatamente como havia acontecido, estava com Selina sobre o ombro e descendo em busca de segurança. Quando chegou ao chão, os homens já entravam correndo com baldes de água. Outro homem estava levando os animais para fora do celeiro; outros, ainda, estavam carregando os sacos de cevada. Parecia que conseguiriam a tempo. Ele carregou Selina para fora, colina acima, para longe do perigo. Para longe das chamas, segura. Era onde ele a queria. Segura em seus braços. Ian a colocou no chão, inspecionou suas mãos, o rosto coberto de fuligem, os braços desnudos e avermelhados. Viu a barra chamuscada do vestido e foi tomado por um profundo tremor. Mais alguns instantes e talvez tivesse sido tarde demais. Puxou Selina para junto do peito. — Diga-me que está bem. — Seu coração estava batendo tão forte que ele achou que faria um buraco no peito. Ela lutou para se desvencilhar, então ele a largou. — Eu estou bem — disse, olhando para ele, os olhos cheios de choque. — As crianças. — Estão em boas condições — disse McKinly, logo atrás dele. — Tommy, não me diga que fez isso? Ian se virou para olhar o menino encolhido de medo. — Não — disse Selina. — Foi Tearny. O homem que ele viu saindo correndo. Tinha se esquecido dele completamente na pressa de chegar até Selina. A raiva queimou nas veias por causa do perigo que ela correu. Uma fúria mais ardente do que as chamas no palheiro. Só havia uma maneira de se livrar disso. Ele passou o olhar pelo pátio e não viu ninguém que parecesse seu antigo feitor. Então empurrou Selina na direção de McKinly. — Cuide deles. — Ian, espere! — chamou Selina. — Ele é perigoso. Ele não pôde evitar o sorriso que surgiu em seus lábios. — E eu também, menina. Deixando-a com McKinly, ele saiu em busca de Tammy McNab. — Viu Tearny passar por você? Tammy parecia intrigado. 158


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— Ele correu na direção da estrada. Para conseguir mais ajuda, ele disse. O roedor estava correndo de volta para a sua toca. Ian o pegaria muito antes disso. Alargou as passadas e rumou para a trilha que levava à estrada. Não demorou muito a ver sua presa curvada, recuperando o fôlego a poucos metros da estrada principal. Tearny achava que tinha escapado. Um sorriso tocou seus lábios. O outro homem pareceu pressentir que não estava sozinho, pois se aprumou, virando-se para olhar para trás. Seu queixo caiu. Choque. Horror. Abaixou a cabeça e correu, mas com aquela barriga grande não era páreo para as longas passadas de Ian. Percebendo o perigo, ele desistiu da estrada e seguiu colina abaixo, sem dúvida esperando despistar Ian no urzal. Na pressa, tropeçou no terreno acidentado, o pé ficando preso numa touceira que, em certos pontos, chegava à altura dos joelhos. Em poucos instantes, Ian o alcançou. Tearny girou, puxando uma faca, segurando-a diante de si, o peito ofegante, os olhos enlouquecidos. Ian enfiou a mão na meia e puxou seu punhal. — Desista, Tearny. Não vai escapar dessa. — Ele avançou. Tearny se esquivou, depois atacou com a faca. Ela cortou a camisa de Ian. Doeu como o diabo. O sangue escorreu quente pelo peito. Uma rápida olhada mostrou pouco mais do que um arranhão, mas o homem era rápido com a faca. Ian precisava ser mais cuidadoso. Tearny sorriu. — Que bondade a sua vir atrás de mim. Posso terminar o que comecei. Nada daquilo fazia sentido. — O que você quer? Eu paguei seu salário inteiro. O sorriso do homem não titubeou. — Albright colocou você nisso? — A resposta não importa para um homem morto. Ian investiu outra vez. Se conseguisse ficar atrás de seu oponente, conseguiria passar o braço por sua garganta. Tearny se esquivou num giro, empunhando a faca ao mesmo tempo. Errou. Seus olhos se encheram de precaução. Depois seu olhar mudou de direção. Ele olhou além de Ian. O queixo caiu. Os olhos arregalaram. Um cúmplice? Ian girou, recuando para ver o que havia chamado a atenção do homem. Gemeu quando viu Selina correndo na direção deles. Sozinha. Á força da postura determinada dos ombros o deixou orgulhoso. E zangado. A palavra “esperar” não existia no vocabulário dela. Mas Selina não estava sozinha. McKinly apareceu sobre a colina, seguido por Tammy. Ian se voltou para Tearny. — Parece que você foi vencido. O homem se virou e fugiu. 159


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Idiota! Não havia para onde ir. Ian correu atrás dele e viu com surpresa quando o homem tropeçou e voou longe. Ele quase teve pena dele quando aterrissou no capim, atordoado demais para ficar de pé. Ele não se mexeu quando Ian o alcançou. Desconfiado, ele puxou o homem de costas pelo ombro. Os olhos estavam arregalados e cheios de dor. Por um instante, Ian não entendeu. Então viu o cabo da faca se projetando no peito. Tearny havia caído sobre a lâmina. O estômago de Ian revirou. Ele caiu de joelhos. O olhar de Tearny se concentrou em Ian, parecendo se reavivar. — Não acabou, Gilvry. Você vai ver. Eu paguei minha dívida, mas a sua aguarda. — De que diabos você está falando? — perguntou Ian, tirando o paletó, pensando em estancar o sangue de alguma forma. A respiração de Tearny arranhou na garganta e depois seus olhos estavam olhando sem vida para o céu. Selina surgiu atrás dele. Ian se ergueu e bloqueou a visão do corpo enquanto os outros homens chegavam. — Ele está morto. Pelas próprias mãos. Selina virou o rosto, a expressão cheia de dúvida. — Eu juro. Eu não toquei nele. — Eu sei. Então por que a dúvida? O olhar dela pousou no peito dele. — Você está ferido. — Um arranhão. — Ele disse quem estava por trás disso? — perguntou ela. — Não. — Ian não queria dar voz às suas suspeitas. — Ele admitiu que não foi o meu pai. Será que ela conseguia ler a mente dele? — Eu perguntei a ele, pouco antes de nos deixar no celeiro. Ele achou a minha pergunta uma grande piada. Mas não disse quem foi. Ian a puxou para perto e ergueu seu rosto marcado pelas lágrimas que escorriam. — Então temos um motivo para ficarmos felizes, certo? Selina assentiu e lhe deu um sorriso trêmulo. Tammy estava olhando para o homem no chão. — Ele costumava ir ao Barleycorn. Nenhum de nós entendia por que ele ia todas as noites. Não era para ter companhia. Nós raramente falávamos algo que não fosse em gaélico. Esse irlandês estúpido nunca conseguiu entender uma palavra. Selina ergueu a cabeça. — Ele ameaçou Tommy McKinly em gaélico. Eu ouvi. Tammy parecia escandalizado. — Ele nunca demonstrou que pudesse falar gaélico. 160


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— Acho que a mãe dele era escocesa. Ele era algum parente distante do Carrick. Ele o recomendou ao meu pai — disse Selina. Tammy ficou pálido. — O patife deve ter nos ouvido falando. Ele nos entregou aos almotacéis. — O rosto dele encrespou. — Laird, nunca percebi que ele compreendia uma palavra. — Ele praguejou. — Um mistério está resolvido — disse Ian, contente por não ser alguém do clã. Mas Tearny não estava trabalhando sozinho, caso pudessem acreditar nas últimas palavras dele. A nuca de Ian ficou arrepiada. Ele queria muito ter conseguido arrancar mais do homem. — Quem quer que esteja por trás dele, pode tentar atacar de novo. Nós teremos que ter cautela quando precisarmos confiar em alguém. Espero que ele tenha sido bem pago, pois pagou o preço final. — Porém, a ameaça ainda estava ali. Selina podia ter sido morta, por causa do uísque e do seu clã. E, se Tearny tinha falado a verdade, o perigo não havia acabado. Era bom que ela estivesse partindo. Indo para um lugar onde ficaria salva. Ele se virou e apontou para o corpo no chão.. — Tammy, leve-o de volta para a aldeia. Precisamos informar ao legista. — Vou buscar a carroça — disse McKinly. Ian passou o braço pelos ombros de Selina, querendo abraçá-la e oferecer conforto, e receber conforto também, por saber que ela estava salva, embora soubesse que era a última coisa que devia estar fazendo. Ela estremeceu, não de frio, mas do fulgor do reconhecimento entre eles. Ian o sentiu correr pelo sangue. — A carruagem deve estar de volta a qualquer momento — avisou ele. Selina não respondeu. Ele diminuiu o passo, esperando que McKinly e Tammy ficassem um pouco à frente deles. Parou e a girou de modo a encará-la. — Tearny poderia ter matado você. Não é seguro ficar aqui. — Enquanto olhava seu rosto, ele se viu segurando-lhe a nuca e buscando seus lábios. Um beijo de despedida. Era provável que fosse a última vez em que a veria. Ela virou a cabeça no último instante e o beijo aterrissou na orelha. Beijos na orelha eram bons. E, mesmo que ele pudesse sentir o cheio da fumaça do incêndio nela, podia também sentir o perfume que ela preferia. Algo leve e floral. Ian olhou por cima do ombro e viu a carruagem a poucos metros dali, esperando. Precisava deixar que ela se fosse. Era a coisa certa a ser feita. Segurou o queixo dela entre o polegar e o dedo indicador, virando-lhe o rosto. A raiva cintilava em seus olhos. — Não, Ian, não deixarei que faça isso comigo outra vez. — Ela apertou os lábios. — Sempre foi por causa de Dunross. Eu lhe desejo felicidade. Espantando, ele a encarava. Depois percebeu a verdade. Tudo estava realmente acabado. Ian apertou os dentes com força. Cerrou os punhos junto às laterais do corpo. Seu coração se contorcia por saber que havia utilizado mal seu tempo com ela. Teve sua 161


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chance; se ela já não respondia mais aos seus beijos, então ele não tinha nada a oferecer. — Eu a acompanho até lá. Tomou-lhe o braço e a conduziu lentamente colina acima até a carruagem que estava à espera. Seu coração estava tão pesado quanto chumbo. Queria dizer algo para preencher o silêncio, mas, quanto mais o silêncio persistia, mais difícil isso se tornava, como se, quanto mais se aproximassem da carruagem, maior ficasse a distância entre eles. O abismo entre eles sempre foi grande demais para se conquistar, mesmo quando eram jovens. Uma vez assentada nas almofadas, Selina se debruçou e baixou a janela. Ian se permitiu pensar que ela estava enfrentando dificuldades para partir. — Eu realmente lhe desejo felicidades, Ian — murmurou ela. — Queria que tudo tivesse sido diferente. Nas ultimas semanas, ele tinha observado seus sorrisos se tornarem cada vez mais brilhantes, ouvido sua risada se tornar mais e mais frágil. E, se era Dunstan quem ela queria, então não importava o que sentia. Devia endireitar as coisas. Devia. Olhando para ela agora, com as manchas de fuligem na bochecha, o selvagem emaranhado do cabelo escuro ao redor do belo rosto em formato de coração, ela não parecia nada desloçada ali nos ermos das Terras Altas, mas ele a induziu ao casamento pelo bem de seu clã. Era um débito que jamais poderia ser pago, mas, por mais que ele quisesse que ela ficasse, queria acima de tudo a felicidade dela. Já que não podia mudar o passado, tinha que deixar que Selina escolhesse como viveria seu futuro. Ele tinha que lhe dar esse presente. Um aro parecia apertar seu peito. A dor da perda. Mas ela merecia alguém melhor do que um laird sem um tostão. Ela merecia brilhar entre sua própria gente. Encontrar o amor. Ian esfregou uma mancha na bochecha adorável. — Parece que você esteve no inferno e voltou. O sorriso dela foi aguçadíssimo. — Repararei o dano quando pararmos para trocar os cavalos. Ela não podia esperar para partir. Ian só podia culpar a si mesmo. Não devia ter permitido que a fraqueza que sentia por ela, o desejo, influenciasse sua decisão na noite em que ela foi alertá-lo. Devia ter deixado Selina na fortaleza e acreditado que ela guardaria silêncio. — Sempre será bem-vinda em minha lareira quando quiser — disse ele, a voz soando rouca. Esperava não estar soando tão patético quanto se sentia. O olhar dela examinou seu rosto. — Obrigada. Ele lutou contra a vontade de arrastá-la para fora da carruagem e beijá-la para que ficasse, seduzi-la para que esquecesse a maneira como havia sido enganada. A paixão era a única coisa honesta entre eles. Mas a paixão só durava até a manhã. Sob a fria luz do dia, ele, mais uma vez, encararia a verdade. Ele a fazia infeliz. Ian cobriu com a sua a pequena mão que segurava a janela e percebeu que estava 162


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gelada até os ossos. Selina era tão frágil, tão delicada, tão incrivelmente forte. — Devemos partir agora, chefe? — perguntou o cocheiro, na cabine. — Mais um momentinho — pediu ele, quando Selina já recuava para dentro da carruagem. Havia mais uma coisa a ser dita, um presente que ele precisava dar, por mais que isso o partisse em dois. Ele respirou fundo. — Tem algo que preciso dizer a você. Selina ergueu uma sobrancelha. Era esperança o que via nos olhos dela? Esperança de quê? Ian ignorou tal ideia. Não havia lugar para a esperança no que ele estava prestes a dizer. — Sinto muito ter enganado você para que se casasse comigo. Nosso casamento estava... bem, ele está fundamentado em condições instáveis mesmo para a Escócia. Provavelmente poderíamos anulá-lo. Ela ofegou. Parecia chocada. — Eu sei. — Ian sacudiu a cabeça. — Pode não funcionar. Mas um divórcio também não está fora de questão. O rosto dela parecia estar pálido sob a sujeira da fumaça. — Você não falou nada disso antes. — Não. — Ele ainda tinha esperanças de que ela desejaria ficar. Mas só esteve pensando em si mesmo. — Conversarei com um procurador assim que puder e mandarei notícias. Os olhares se encontraram e Ian imaginou ver lamento nas profundezas dos olhos dela. Ele não tinha esperado por isso. Seria motivo para ter esperanças? — Entendo — respondeu ela, com frieza. — Teria sido muito mais fácil se você tivesse me deixado partir no mesmo dia em que meu pai, como eu sugeri. Ele nunca tinha ouvido Selina soar tão fria. E agora sabia o motivo para o lamento dela. — Sim. Sinto muito. Eu abrirei uma conta para você no Coutts's Bank. Retire o que julgar necessário até as coisas se acertarem. Eu escreverei para informá-la dos detalhes. Ela assentiu com gravidade e, por um momento, era o elfo de olhos imensos por quem ele havia se apaixonado quando era jovem e, sentindo-se como um cavalheiro de armadura brilhante, ele a havia conduzido ao seu castelo. Tão suave e sentimental. Tão fraco quanto ao que dizia respeito àquela mulher. E ele tinha deixado que sua fraqueza a machucasse. Ian se afastou. — Prometa-me que será cuidadoso. — Ele ouviu lágrimas na voz dela, mas, quando olhou em seus olhos, viu que estavam límpidos e secos. Muito cheio de emoção para dizer qualquer coisa, ele ergueu a mão e caminhou até a frente da carruagem. — Dirija com cuidado — avisou ao cocheiro. — Ou vai se ver comigo. O cocheiro tocou o chapéu com o chicote, e a carruagem partiu. Ian observou a poeira subir atrás do veículo até a imagem permanecer apenas em sua imaginação. Estava fazendo a coisa certa para ela. Selina poderia mudar de ideia quando quisesse. Ele estaria ali, esperando. 163


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Sorriu com melancolia. O amor era uma coisa muito estranha. Fazia com que se fizesse a única coisa que não se queria fazer, para que a pessoa amada pudesse ficar feliz. E isso doía demais. Agora ele sabia como Drew devia ter se sentido quando foi forçado a entrar naquele navio para a América. Perda. Desespero. Raiva. Interminável solidão. Abandono, apenas.

Capítulo Vinte e Dois

Selina Já estava em Hawkhurst há duas semanas e se encontrava sentada com Alice na sala de estar, embalando o filho de 4 meses e herdeiro da amiga, David, no colo. — Ele é um menino tão bom — disse Selina. — No momento, ele é, sim. — Alice, as sardas mais evidentes do que nunca, exibiu seu sorriso calmo. — Às 3h, ele se torna um monstro faminto e me lembra do pai. Selina fez cócegas na bochecha acetinada e ele sorriu sonolento. Tão adorável! — Você deve se casar de novo tão logo se divorcie daquele escocês tenebroso — disse Alice. — Devia ter seus próprios filhos. A nota de censura na voz prática da amiga a deixou tensa. Palavras em defesa de Ian pairaram na ponta da língua. Ela as manteve atrás dos dentes. Alice só estava refletindo sua própria raiva. A mágoa que havia despejado nos ouvidos da amiga quando chegou à porta da frente de Hawkhurst. A raiva tinha passado, mas ainda permanecia a mágoa por ter se deixado enganar. Mas será que ela queria mesmo cortar todos os laços? Seu casamento com Ian não parecia ter causado muita agitação. Parecia que Dunstan havia dito muito pouco ou nada sobre o fim do entendimento deles, e nada sobre as atividades criminais de Ian haviam vindo à tona até o momento. Ela e Ian não seriam o primeiro casal a viver separado, cada um tomando seu caminho. Não era como se ele precisasse de um herdeiro. Ele tinha seus irmãos para isso. Tal pensamento a lembrou de algo. — Ah, eu estava querendo lhe contar: Chrissie está na expectativa de um evento feliz. Talvez meu pai finalmente tenha um filho homem. Alice, como boa amiga que era, deixou que ela mudasse de assunto. 164


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— Não deixe de dar os meus parabéns quando for escrever outra vez. Como está seu pai? — Em êxtase. Muito orgulhoso de sua realização, segundo Chrissie. Ela perguntou se eu gostaria de visitá-los. Alice a fitou com atenção. — Com o consentimento do seu pai? — Aparentemente sim. — Isso é bom — respondeu Alice, com um sorriso. — As famílias devem ficar unidas. E Ian não era da família, era? Ele era um marido inconveniente. Selina só queria não sentir falta dele. Ela conteve um suspiro. Ian possuía sua própria família. Eles também só queriam Dunross. Receberam a fortaleza de bom grado. Ela só queria se livrar da dor no peito. Tempo. Levaria tempo para que a ferida sarasse. Só queria não ter a sensação de que jamais se sentiria inteira novamente. A porta se abriu. Um homem alto e de cabelo escuro entrou na sala para beijar Alice nos lábios. — De volta tão cedo? — perguntou Alice, com carinho. — Eu convidei Jaimie para o chá — disse Hawkhurst, cumprimentando Selina, em seguida pegando o filho do colo dela para erguê-lo bem acima da cabeça. — E como está o meu alegre filho? Mais dois homens entraram na sala num passo mais relaxado. O pai de Alice, Alex Fulton. Ele não era um homem saudável, mas havia alegria em seus olhos enquanto observava Hawkhurst beijar seu neto. O outro homem era o primo de Hawkhurst, Jaimie, lorde Sanford. Cabelo loiro, esguio e impecavelmente vestido, passava a maioria das noites com os Hawkhurst quando não estava na cidade, Alice havia explicado. — Essa criança está pronta para dormir — ralhou Alice com o marido. — Deixe que eu o leve — disse Alex Fulton. Hawkhurst entregou a criança ao avô e o observou sair da sala. — Seu pai está tendo um bom dia hoje — disse à esposa. A expressão de Alice se tornou triste. — Dias assim são poucos e espaçados, mas ele parece feliz. — Alex Fulton tinha sofrido bastante de seu excesso de indulgência ao álcool, mas ele não havia bebido uma única gota nos últimos anos. Era só por causa dessa abstinência que sua vida tinha se prolongado. Simpson, o mordomo, que antigamente era o comissário de Hawkhurst no mar, entrou com a bandeja de chá, deixou-a ao lado de Alice e saiu, seu passo ondulante de marinheiro ainda evidente. Jaimie entregou uma xícara a Selina e se sentou ao lado dela, equilibrando com precariedade a xícara com o pires sobre o joelho. — Posso dizer o quanto está encantadora hoje, senhora Gilvry? — Os olhos dele estavam ardentes de admiração. Ele se entregara a um leve flerte desde que ela havia chegado. Era um tremendo farrista, segundo Alice, e Selina tinha se sentido apenas um 165


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pouco envaidecida com suas atenções. Tinha gostado das disputas verbais. Faziam com que ela parasse de pensar em Ian. Ao menos por algumas horas durante o dia. As noites eram uma história completamente diferente. Sentia falta dele o tempo inteiro, mas à noite, quando estava sozinha com seus pensamentos, ela sentia toda a força de sua infelicidade. — É muita gentileza dizer isso, lorde Sanford. — Ela lhe deu um sorriso radiante. — Essa é uma maneira nova de amarrar o plastrão? — Não o encoraje — disse Hawkhurst. — Ele já se veste com apuro demais. O som de alguém batendo à porta da frente ecoou pela casa. Alice olhou para o marido, que se levantou. — Mas que diabos? — disse Hawkhurst. Jaimie foi até a janela. — Não reconheço o cavalo, mas é um belo espécime. Provavelmente algum irado dono de navio saído de seu passado — disse a Hawkhurst. O mordomo entrou apressado. — Temos um bárbaro à porta, meu senhor — disse ele, completamente sem fôlego e secando a testa com um pano. — Devo pegar sua espingarda? As batidas recomeçaram. — Está dizendo que deixou o homem lá fora? — perguntou Sanford. — Ele parece decidido a matar alguém — retrucou Simpson. — O que quer dizer com “bárbaro”? — perguntou Hawkhurst, franzindo o cenho. — Está usando uma espécie de saia. Com o coração disparado, Selina ficou de pé. — Como é esse bárbaro? — Ela descobriu que mal conseguia dizer as palavras; sentia-se sem fôlego. — Quanto a isso, minha senhora, é difícil dizer, pois uma barba cobre quase o rosto inteiro. Uma barba. Então não devia ser Ian. O coração dela afundou. Talvez ele tivesse enviado um dos seus homens com uma mensagem. Talvez estivesse com problemas. — Qual a cor do tartã do kilt? — Minha senhora? — A saia. — Não notei a cor, minha senhora, mas ele estava exigindo que você fosse à porta se eu não o deixasse entrar. Devia ser alguém da parte de Ian. Sua boca ficou seca. — Não seria melhor descobrirmos o que ele quer? — Que bom que a sua porta é sólida — observou Jaimie, retomando assento ao lado dela. Embora parecesse bastante insolente — de fato, ele parecia um verdadeiro dândi —, havia uma característica letal em seus movimentos que, às vezes, faziam-na imaginar se ele não era mais do que o chapeleiro que seu primo geralmente o acusava de 166


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ser. O mordomo olhou para o patrão. — Devo soltar os cachorros em cima dele? — Claro que não — disse Alice, olhando para Selina. — Mande-o subir. Hawkhurst baixou as sobrancelhas e deu uma olhada considerável na esposa. Ela deu de ombros, então ele não falou nada, mas caminhou até a lareira e encostou um cotovelo na cornija, observando a porta. Selina apertou as mãos, certa de que não podia ser Ian e rezando para nada ter acontecido com ele. Como ter sido preso. Ou deportado. Ou, a bile subiu à garganta, enforcado. Se fosse o caso, esperava que a gente dele estivesse devidamente agradecida, pensou ela com uma onda de amargura. A porta se abriu. Selina arfou. O homem parado à entrada de fato parecia um rufião. — Ian — ofegou ela. Ela nunca o viu com aparência tão pavorosa. Uma barba cobria o queixo e as bochechas magras. Manchas roxas debaixo dos olhos safira que faiscavam de fúria faziam parecer que ele não dormia há dias. Seu olhar enfurecido estava cravado em Sanford. — Você é o fidalgote que fica passando o tempo com a minha esposa? — perguntou ele, com voz perigosa. Jaimie deu uma breve olhada em Hawkhurst, que não tinha se mexido, então encolheu os ombros, a boca debochada. — Já que não fomos apresentados, não sei qual das damas com que passo o meu tempo é a sua. Ian cerrou os punhos. — Ela está sentada ao seu lado, seu vira-lata. Vamos lá fora, para que eu lhe ensine alguns modos. — Isso é rústico demais, meu camarada. — Jaimie se levantou. Selina pulou na frente dele. — Ian, pare com isso, neste instante. Não tem ninguém passando o tempo comigo. De onde foi que tirou essa ideia? E, além disso, mesmo que alguém estivesse, por que isso lhe importa? O olhar dele deixou Jaimie para se concentrar nela. — Porque você é minha esposa. — Querida lady Selina, você se casou mesmo com esse grosseirão pavoroso? — perguntou Sanford, com a voz arrastada. Ergueu o monóculo e o examinou da cabeça aos pés. — Basta, Jaimie! — ordenou Hawkhurst, andando até o centro da sala. Ian se virou e pareceu surpreso, como se não tivesse visto Hawkhurst até o momento. E depois percebeu Alice. Parte da fúria em seu rosto diminuiu. 167


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— Peço desculpas. Eu tive a impressão de que esse... esse dândi estava sozinho com a minha esposa. Jaimie tirou um fiapo de algodão da manga e o observou cair até o chão antes de buscar o olhar de Ian. — Isso quer dizer que não quer se engalfinhar no gramado? Ian estreitou os olhos. Depois olhou para Selina. — Quer dizer que ainda estou avaliando a situação, então não vá a lugar nenhum ainda. Ele soava tão escocês quando estava enfurecido! O som daqueles “erres” vibrantes e a cadência musicada fazia com que ela se sentisse fraca por dentro. Sem falar da maneira como ele a olhava, como se quisesse comê-la inteira. — Acredito que apresentações se fazem necessárias — disse Hawkhurst, com amenidade. — E também uma explicação. — Mais uma vez o olhar dele recaiu na esposa, que parecia suspeitamente inocente. Selina a encarou. — Alice? Alice sacudiu a cabeça. Hawkhurst prosseguiu como se Selina não tivesse falado. — Eu sou Hawkhurst. — Ele estendeu a mão. Era tão alto quanto Ian, mas nem de perto tão largo. E não parecia nem um pouco intimidado, enquanto Selina. sentia os joelhos vacilarem, da maneira mais estranha. — Essa é minha esposa, lady Hawkhurst. Não ligamos para formalidades, então Michael e Alice bastam. Ian se curvou sobre a mão de Alice com tamanha graça e charme que Selina se sentiu orgulhosa. — Esse jovem depravado é o meu primo, Jaimie, lorde Sanford — prosseguiu Hawkhurst. Os lábios dele se curvaram num sorriso duro. — Posso lhe assegurar que ele não seria bem-vindo nesta casa se seus modos com a convidada da minha esposa não fossem impecáveis. Ian deu uma olhada em Alice. — Não foi o que eu soube. — Entretanto — disse Hawkhurst, num tom que não aceitava argumentos —, é esse o caso. Jaimie ergueu uma sobrancelha e estendeu a mão com languidez. Ian olhou para a mão dele, depois a apertou. — Sanford. — Então sorriu. — Você tem uma mão mais firme do que imaginei. Jaimie fez uma curtíssima reverência e quis se encaminhar para o assento ao lado de Selina. Ian fez cara feia, então ele abafou uma risada e foi se sentar na cadeira ao lado direito de Alice. — Como podemos ajudá-lo? — perguntou Hawkhurst. Ian parecia aturdido. — Presumo — disse Hawkhurst, com a voz arrastada — que veio aqui com algum 168


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propósito. — Eu gostaria de conversar com lady Selina. — Fique à vontade — disse Hawkhurst, apontando para o sofá. — Sozinho — disse Ian. — Se não se importar. — Isso é decisão da dama, não? — disse Hawkhurst. Todos os olhos se voltaram para ela. O calor subiu pelo pescoço até as bochechas, que arderam dolorosamente. Selina engoliu o nó na garganta. — Não sei se temos algo a ser dito. — Eu tenho algo a dizer — afirmou Ian. E parecia muito determinado a arrancar isso do peito. — Pois bem. Eu escutarei. Ele olhou ao redor da sala. — O que eu tenho a dizer não precisa de platéia. Eu prefiro ficar sozinho com a minha esposa, se não se importam. — Eu, pelo menos — disse Jaimie —, temo pela segurança da dama. Que garantia você nos dá de que não tentará intimidá-la depois que tivermos saído? — Ou enganá-la? — acrescentou Alice. Ian corou. Selina se encolheu. Ele talvez não ficasse satisfeito em saber que tinha sido tão franca com Alice. — Eu lhe dou a minha palavra — disse Ian, o olhar fixo no rosto dela. Selina não tinha, de fato, o direito de rechaçá-lo. Ele era o seu marido, mas ela estava contente por ver que ele não salientou esse fato. Embora tivesse a sensação de que ele poderia se valer disso, caso ela o rejeitasse. — Está tudo bem, Alice — disse ela. — O senhor Gilvry me deu a palavra. Se ele tem algo de natureza particular para discutir comigo, estou disposta a ouvir. Hawkhurst se curvou e levou a esposa consigo. — Estaremos na biblioteca, logo no fim do corredor, a um grito de alcance, caso você precise de nós. — Foi um prazer — disse Jaimie, com uma leve inclinação da cabeça. — Lady Selina, estarei esperando para vê-la no jantar desta noite. Ian parecia pronto para estrangular Jaimie, que seguiu o primo Hakwhurst porta afora. — Bem, Ian — disse ela, contente porque as arremetidas do coração dentro do peito não afetavam a calma de sua voz. Ou, pelo menos, esperava que não. Ela estava tremendo demais para ter certeza. Ele apontou para o sofá. — Por favor, sente-se. Selina se sentou. Ele, não. Elevava-se sobre ela, fitando-a com olhos estreitos como se quisesse garantir a si mesmo que ela ainda estava inteira. 169


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Um calor subiu do ventre dela. Um calor semelhante flamejou nos olhos dele. Mas essa tinha sido a melhor parte no casamento deles. Ela inspirou depressa. — Você queria falar comigo. O que queria dizer? Ian aprumou os ombros. — Você quer o divórcio? A dor tomou o coração dela e o retorceu com crueldade. Selina baixou o olhar para as mãos, fixando-se nos dedos para que ele não visse o quanto as palavras a magoaram. Forçou um sorriso antes de erguer a cabeça. — Foi por isso que veio? Ora, senhor, uma carta ao seu procurador ou mesmo para mim bastava. Isso tudo foi mesmo necessário? — Ele é o tipo de homem com quem deveria ter se casado. Esse cachorrinho que acabou de sair. Outro dândi de sala de visitas. — Ele é um cavalheiro muito bem criado, tenha certeza. — O que aconteceu com Dunstan? Pensei que o quisesse. — Não. — Será que ela estava sendo acusada de alguma coisa? Ian se afastou e ficou andando de lá para cá, diante dela, sobre o tapete. — Quando sua amiga me escreveu na semana passada dizendo o quanto você estava infeliz e que você deveria ficar livre o quanto antes porque havia certo cavalheiro... — ele parou para encará-la com cara zangada — ... outro cavalheiro, com interesse, eu pensei em vir aqui e tomar a atitude correta, oferecer a sua liberdade se fosse o seu desejo. Mas, quanto mais perto eu chegava, menos nobre eu queria ser. — Alice escreveu para você? — Ela foi tomada por uma sensação de traição. — Imagino que tenha sido com boas intenções. — Só que, no momento, ela queria estrangular a amiga. Ian parou de andar e a encarou. — Foi o que pensei também. O coração dela já nem parecia ainda estar batendo. Ele ainda doía, mas não parecia estar funcionando. — Pensou? — Então vou perguntar outra vez — disse Ian, com rispidez. — Devo dar início ao nosso divórcio? Deveria? — E Dunross? Ele respirou fundo. — Volta para você. Selina o encarou. — Foi a única razão para ter se casado comigo. Ele lhe deu uma longa olhada. — Não foi, não. 170


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— É parte do acordo, não é? Do arranjo que fez com o meu pai. Ele sacudiu a cabeça. — Seu pai me entregou Dunross, sem quaisquer condições. Não sou esse tipo de patife, Selina. Sim, eu queria Dunross. Os Gilvry sempre quiseram Dunross, mas eu nunca imaginei consegui-la. Eu queria você também, mas também nunca esperei consegui-la. Não mereço uma mulher tão boa quanto você. E não vou roubar seu dote. Era um discurso bem longo, mas algo no meio dele era bastante importante. — O quê quer dizer com “sempre me quis”? Ian deu um longo suspiro. — Acho que me apaixonei por você quando tinha 18 anos, embora não quisesse admitir, dada a história entre as nossas famílias. Foi o meu próprio orgulho idiota que me fez lhe dar as costas quando meus irmãos apareceram naquele dia em Balnaen. Fiquei envergonhado por não cumprir o meu dever de odiá-la da mesma maneira que eles. — Ele deu uma curta risada. — Nunca cumpri o meu dever no que lhe dizia respeito. Você embaralha qualquer pensamento decente na minha cabeça. Selina sabia exatamente o que ele queria dizer. Bastava que Ian a olhasse para embaralhar seu cérebro. — Você disse que me amava? O rubor manchou as bochechas acima da barba repreensível. Ian respirou fundo. — Sim. Eu Amo Você. Não havia engano. Algo semelhante à alegria borbulhou no peito dela. E esperança. — Por que nunca falou disso antes? Ian ficou paralisado, olhando para ela, e naquele olhar surpreendentemente azul ela enxergou a esperança. Só que era mais forte do que esperança. Era anseio. Misturado ao pavor. — Teria acreditado em mim? Não pareceria ser uma bagatela bem conveniente? Além disso, você me disse que amava Dunstan. Não exatamente. — Eu disse que o escolhi. — Selina tinha certas confissões de sua parte a serem feitas. — Eu o escolhi porque sabia que meu coração não estava envolvido. Eu sabia que ele não poderia me machucar da mesma maneira que você. Ian piscou. — Quando eu a vi outra vez no baile de Carrick, eu quis odiá-la. Por causa do Drew. — Você me culpou. — Eu culpei a mim mesmo por querer agradá-la. Jurei que não deixaria você me manipular outra vez. — Ele deu uma breve risada. — Então você preferiu deixar o meu coração confuso. — Ele respirou tão fundo que as costuras do paletó pareceram prestes a estourar. — Bem. Vai ser o divórcio? Ela sacudiu a cabeça. 171


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— Se for para permanecer como minha esposa, então terá que viver como minha esposa. Não aceito de outra maneira. E farei tudo ao meu alcance para provar o meu amor. Eu lhe prometo. — A voz dele terminou num tom baixo e sedutor. O calor se espalhou pela pele dela enquanto os benefícios de ser a esposa dele surgiam com força em sua mente. Mas ela ainda não tinha terminado de torturá-lo. Afinal, ele havia oferecido o divórcio e deixado que ela ficasse ali por quase duas semanas, sabendo, durante esse tempo todo, que a amava. — E onde moraríamos? O rosto dele se contorceu numa careta. — Onde preferir. Ah, o delicioso som dos “erres” vibrava por todo o seu corpo e descia até os dedos dos pés. Mas será que ele estava mesmo falando sério? — Em Londres, então? A expressão dele se tornou estóica. Lembrou-lhe o momento em que cuidou do ferimento à bala no braço dele. Ian estava determinado a não deixar que ela visse que tal pensamento o afligia. — Se é o que quer. — Onde eu quiser? Ele assentiu, mesmo que um tanto contido. Sentou-se ao lado dela e tomou-lhe a mão, entrelaçando e depois soltando os dedos. — Senti sua falta. Selina quase não ouviu as palavras; ele as falou bem baixo. — Não conseguia dormir — revelou ele, mais alto. — Não conseguia forçar a comida a descer pela minha garganta. Tudo o que conseguia fazer era trabalhar e tentar não pensar. Tentar não imaginar se as coisas teriam sido diferentes se eu tivesse encontrado coragem para dizer de verdade como eu me sentia. — Ah! — exclamou ela, o coração flutuando ainda mais do que parecia possível. — E você finalmente encontrou coragem. — Sim. Encontrei. Pois não havia como negar, por mais que eu tentasse. — Ian levou as mãos dela aos lábios e a beijou numa gentil reverência que destoava muito daquele homem grande e rude, exceto quando estava com ela. Seu interior tremeu de anseio. — Senti sua falta — disse ele. — Senti falta dos seus sorrisos e senti falta da sua risada. Até senti falta da sua testa franzida. Meu peito doía como se uma grande rocha o espremesse. Os sintomas dele pareciam com os dela. — Ah, Ian. Eu não pretendia machucá-lo. — Não foi sua culpa. — Ele se levantou. — No que diz respeito a você, eu não tenho força nenhuma. — Ele se colocou de joelhos. — Selina, leannan, por favor, volte para mim. Eu sei que a tratei mal. Eu realmente a enganei para que nos casássemos, mas foi apenas pelo seu bem tanto quanto o meu. Eu juro, eu não sabia sobre o dote. Você tem que acreditar em mim. Enquanto ele olhava o rosto dela, Selina soube que não era mentira. 172


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— Acredito em você. — Então vai voltar para mim? — Ele deu outra daquelas respiradas profundas e trêmulas e olhou nos olhos dela com anseio e esperança, com uma vulnerabilidade que fazia seu pobre coração se contrair da maneira mais maravilhosa. — Eu a amo, lady Selina, e passarei o resto da minha vida tentando fazê-la feliz. Isso eu juro. O nó na garganta se transformou num formigamento quente por trás dos olhos. Selina tentou respirar e as lágrimas assomaram. Um esgar feroz contorceu os lábios dele. — Agora fiz você chorar. Sinto muito. Ele quis se levantar, mas ela se atirou em seu peito, pendurando-se em seu pescoço. — Você é um idiota, Ian Gilvry — soluçou ela contra a plastrão. — Um idiota. Eu o amo também. Sempre amei. Eu estava com medo de dizer, no caso de perdê-lo. E parecia que eu tinha perdido. Hesitante, as mãos grandes envolveram-lhe as costas, circulando e afagando. — Sim, parece que sou mesmo um idiota — murmurou ele. Selina se afastou com uma pequena risada, mas ele não a deixou ir. Ah, não, o bruto ergueu o braço dela e a sentou em seu colo. Ian deu um suspiro de contentamento. — Este é o seu lugar. Ela ficou sentada com a cabeça no peito dele enquanto Ian secava suas lágrimas com um lenço. Ele beijou a ponta do nariz dela. — Você sempre me amou? — balbuciou ele. Sentindo-se terrivelmente tímida, Selina sorriu para ele. — Foi por isso que nunca consegui me casar. Sempre que eu chegava perto de aceitar um pedido, eu me lembrava do nosso beijo, daquele pequeno toque dos seus lábios nos meus e da excitação que senti. Nenhum outro homem jamais me fez sentir daquela maneira, então eu sempre fugia. — Até Dunstan? — A voz dele soou ríspida. — Pobre Dunstan. Ele foi minha lastimosa esperança. Eu tinha que me casar com alguém. Não podia mais viver com papai e Chrissie. Era doloroso demais ver o amor deles crescer e saber que eu nunca teria o mesmo. — Terá e tem. Muito mais. — Ele acariciou o braço dela. — Agora eu sei disso. — Eu vivia com esperanças de que você talvez estivesse grávida. De um filho meu — acrescentou ele depressa. — Assim eu a teria de volta. — Creio que teremos que tentar de novo. — Ela lhe deu um suave sorriso. Ian capturou sua boca num beijo. — Mal posso esperar para começar — disse, quando, enfim, tentou recuperar o ar. — Então vai me levar para Londres? Ele assentiu com ar soturno. 173


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— Se é o que quer. — E quem vai cuidar de Dunross e as pessoas de lá? — Niall e Logan. — Ele parecia bastante preocupado, mas determinado. — Embora eu deva dizer que, depois do incêndio, o pessoal tem perguntando por você. Parece que sentem falta de sua senhora. Selina o fitou com espanto. — E sua mãe? — Nem tanto. Eu não entendo. Ela não é uma mulher vingativa. Garanto que vai se retratar. A mente dela navegava em sonhos para o futuro. — Ian, você acha que podemos ter um casamento decente? Numa igreja? — Na St. George, na Hanover Square, suponho. — O rosto estava mais uma vez estoico, e ela teve que se controlar para não rir. Então ela imaginou a cerimônia e a pompa, e a sociedade chegando para testemunhar. — Não. Quero que seja na igreja da aldeia de Dunross. Com as pessoas da sua família que quiserem ir. E os McKinly. E o resto do clã também, desde que não me atirem pedras. — Eles não ousariam. — Ian olhou no fundo dos olhos dela. — Tem certeza? — Sim. Eu estive falando com Hawkhurst sobre a lei. Você sabe, o volume das destilarias na Escócia. Ele acha que é muito injusto. Ele sabe tudo sobre o contrabando e não expressou nenhuma inquietação. — Ela franziu a testa. — Não com o conhaque, mas com a ideia de trazer uísque da Escócia para a Inglaterra. Ele disse que não consegue enxergar nenhuma outra maneira de lidar com essa lei estúpida. Ele gosta de uísque. Ian lhe deu uma olhada Indagadora. — Se não estou enganado, Hawkhurst também acha que não é problema nenhum ser pirata. Selina sorriu. — Corsário. E ele deixou de fazer isso. Eu ficaria feliz se você desistisse do contrabando também, mas não antes que o povo de Dunross esteja seguro. Ian a fitava com atenção. — Está me dizendo que quer voltar comigo para Dunross? Nós ainda não sabemos quem está por trás de Tearny, ou se atacarão novamente. Não estou inteiramente seguro de poder manter sua segurança. Selina respirou fundo. — Eu o amo, Ian. Dunross é o seu lugar e o meu, como sua esposa. Mas só se você não me mantiver afastada. Meu pai me afastou da vida dele quando mamãe morreu. E de novo quando se casou com Chrissie, embora Chrissie tentasse evitar. Você me manteve longe também, e não quero ficar de fora da sua vida. Seja lá o que fizermos, faremos juntos. Ele deu um gemido e beijou-lhe a boca, de maneira longa, lenta e persistente. E era como que uma promessa. E, quando terminou, Ian a recolocou no sofá e voltou a se ajoelhar. 174


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— Lady Selina, prometo-lhe minha eterna fidelidade e que sempre, deste dia em diante, compartilharei contigo tudo o que sou, se você fizer o mesmo. Ela tomou aquele amado rosto barbado entre as mãos e deixou um beijo em seus lábios. — Eu prometo, Ian — sussurrou ela. — Você sabe que fez de mim o homem mais feliz, leannan? Ela respirou com tremor. — Eu gostaria de convidar Alice e Hawkhurst para a cerimônia. — Ian assentiu. — E o meu pai. — Convide o mundo, meu amor. Quero que todos vejam minha linda esposa e que homem sortudo eu sou. — Ele ficou de pé num pulo. — E agora vou levá-la para casa, que é o seu lugar. Casa. Soava como uma doce palavra em seus ouvidos. E Ian estava certo. O lugar de Selina era lá, com ele. — Você veio com Beau? — perguntou ela. — Sim. — Bem, como é longe demais para cavalgar no seu arção, acho que teremos de pedir uma carruagem emprestada a Hawkhurst. E já que está tarde demais para partirmos hoje, então acho que você talvez devesse ficar aqui esta noite. Podemos partir pela manhã. — Ela lhe lançou um olhar malicioso. Os olhos azuis dançaram de contentamento. — Só se você tiver espaço para mim na sua cama. — O quê? Antes de nos casarmos, senhor? Selina riu da cômica expressão desapontada de Ian, então ficou na ponta dos pés e passou os braços ao redor do pescoço dele para deixar um beijo naquela boca sensual. — Senti tanto a sua falta, meu amado Ian. Esperei por você por anos e anos, mesmo sem perceber que era o que eu estava fazendo, e agora não vou esperar mais nenhum momento. Ian a ergueu nos braços. — Graças a Deus! Agora, qual é o caminho do quarto? Ela deu um gritinho de surpresa enquanto ele a carregava pela escadaria, mas não ouviu a porta no fim do corredor abrir nem os sussurros e gargalhadas na biblioteca. Selina estava ocupada demais olhando para o amor que brilhava nos olhos do marido e tentando beijar seus lábios, enquanto ele subia os degraus de dois em dois.

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Históricos O AMOR DE UMA DAMA BRONWYN SCOTT O interior do quarto do doente, mantido na penumbra, estava carregado de silêncio mal-humorado. — O testamento deve ser modificado. — O velho conde chegou a tremer em sua cadeira com a força de sua declaração. — Eu o ouvi da primeira vez — respondeu Markham Marsbury, por dez anos advogado do Conde de Audley, com uma paciência adquirida através de muita prática. O conde não era seu primeiro cliente com dúvidas de última hora sobre suas decisões finais. Mas os pedidos dele eram possivelmente os mais inusitados. — Você discorda de minha decisão — desafiou o conde, soando agora mais parecido com sua habitual irascibilidade do que soara em meses. Talvez isso fosse um bom sinal, pensou Marsbury, cheio de esperança. Talvez o velho melhorasse mais uma vez. Deus sabia que o condado mal poderia suportar sua perda agora. Por outro lado, ele não era tão ingênuo. Qualquer pessoa que tivesse passado algum tempo perto da morte iminente conhecia os sinais: uma súbita melhora, uma breve explosão de energia que poderia durar um dia ou dois... E então, nada. — Sim, eu discordo, Richard. — Eles tinham se tornado amigos durante a década que o advogado passara em Audley. — Posso entender que você queira fazer da herança uma regência, algo parecido com uma curadoria. Depois do que aconteceu com Alex, é um caminho lógico — Marsbury balançou a cabeça —, mas dividir a governança em cotas e deixar 51 por cento para ela não faz sentido. Você tem dois herdeiros do sexo masculino viáveis na família, um dos quais é seu segundo filho. Pelo amor de Deus, Richard, ela nem mesmo é inglesa. É americana. — Ela é exatamente do que a propriedade precisa. Provou isso no ano que passou aqui — interrompeu o conde com vigor, sem querer ouvir sua decisão ser discutida. — Um pouco do modo de pensar americano irá rejuvenescer o lugar, e ela se tornou a filha que eu nunca tive. E talvez até mesmo uma substituta para o filho que não vem para casa há dez anos. — Ashe virá para casa — disse Marsbury, mas tirou seus papéis e tinta, começando a escrever. Ele reconhecia os sinais de intratabilidade prematura. Não haveria jeito de dissuadir o conde. — Não enquanto eu estiver vivo — disse o conde, sem expressão. — Nós discutimos e ele deixou sua posição muito clara. Então o filho era bem parecido com o pai, disse Marsbury a si mesmo, silenciosamente, enquanto terminava de redigir o codicilo e levava o papel até o conde. Ajudou a manter firme a mão do velho enquanto ele assinava. O conde não vinha sendo capaz de escrever sozinho há tempo. Mesmo com ajuda, sua assinatura era um rabisco que mal chegava a ser legível. Marsbury passou um mata-borrão no documento e cuidadosamente o guardou com os outros papéis. Estendeu a mão para cumprimentar o amigo. — Talvez não haja necessidade disso, afinal. Você parece estar melhor hoje — disse, oferecendo um sorriso. O sorriso não foi retribuído. 176


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— Há completa necessidade disso — latiu o conde. — Eu fiz o que era preciso para trazer meu filho para casa. Conheço meu garoto. O que ele não faria por mim, fará por Bedevere. Ele ama Bedevere, e apenas por esse motivo, ele virá. Marsbury assentiu, pensando nos outros dois nomes do codicilo, os outros dois “sócios” nomeados na curadoria. A morte de seu pai traria o filho errante para casa, mas saber que Bedevere estava cercada por inimigos que tinham estado à espreita para tomála caso ele hesitasse poderia ser o suficiente para fazê-lo ficar. — Eu o verei amanhã — disse Marsbury, fechando seu estojo com um estalido. O conde lhe deu um sorriso vago, parecendo mais cansado do que havia aparentado poucos minutos antes. — Duvido bastante. Se você pretendia dizer-me adeus, sugiro que o faça agora. — Você é teimoso demais para essa conversa sentimental — brincou Marsbury, apertando a mão do velho uma última vez.

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