Tipografia e Mitologia em Mil e Uma Noites Bรกrbara Hayashi Bige
Bรกrbara Hayashi Bige
2018
Centro Universitรกrio Senac Santo Amaro
Tipografia e Mitologia em Mil e Uma Noites Bรกrbara Hayashi Bige
Sรฃo Paulo 2018
Bárbara Hayashi Bige
Tipografia e Mitologia em Mil e Uma Noites Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro Universitário Senac - Santo Amaro, como exigência parcial para obtenção do grau de Bacharel em Design Gráfico
Bige, Bárbara Hayashi
Orientadora: Prof. Ana Lúcia Reboledo Sanches
Tipografia e Mitologia em Mil e Uma Noites / Bárbara Hayashi Bige - São Paulo (SP), 2018. 118 f.: il. color. A banca examinadora dos Trabalhos de Conclusão, em sessão pública realizada em __/__/____ ,
Orientador(a): Ana Lúcia Reboledo Sanches, Tadeu Costa, Nelson Urssi
considerou o(a)aluno(a):
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Design Gráfico com Linha específica ) - Centro Universitário Senac, São Paulo, 2018. Mil e Uma Noites, Tipografia, Mitologia, Livro Objeto I. Sanches, Ana Lúcia Reboledo (Orient.) II. Costa, Tadeu (Orient.) III. Urssi, Nelson (Orient.) IV. Título
________________ ________________ ________________ 1. Examinador(a)
2. Examinador(a)
3.Presidente
Resumo
Por várias vezes na história, as mitologias utiliza-
processo de leitura, suas armações básicas ataram-se as
ram a escrita como um meio para expressar o indizível,
convenções, enquanto os entornos e os detalhes acom-
o que está além da nossa consciência. Campbell e Jung
panharam as mudanças culturais. Do mesmo modo, as
mostram como as mitologias representam os arquétipos
mitologias evoluíram suas metáforas conforme essas
do inconsciente humano, inseridos em um contexto cul-
mesmas mudanças. No entanto, é questionável se este
tural e temporal, refletindo o pensamento comum – a
processo está dando conta da rapidez com que as trans-
“psique comum” – da sociedade na qual se encontra-
formações ocorrem atualmente. Assim, partindo dos
vam. Ao mesmo tempo, a escrita acompanhou o desen-
arquétipos do inconsciente e da escrita como tradução
volvimento cultural de cada local, também refletindo a
gráfica para os mesmos, utilizou-se a história de Mil e
cultura e o tempo nos quais estava inserida. Embora não
Uma Noites da versão de Antoine Galland a fim de re-
se possa falar de atemporalidade na forma básica das le-
modelar suas metáforas e modos de leitura.
tras, elas são, contudo, duradouras. Influenciadas pelo
Palavras-chave: Mil e Uma Noites, Tipografia, Mitologia, Livro Objeto.
Sumário
11
Apresentação
73
Requisitos de Projeto
13
Objetivos
77
Tipografia
15
Justificativa
79
Livros-objetos
17
Procedimentos metodológicos
81
Decoração geométrica e simbólica
19
Mitologia e Tipografia
83
Estudos de Concepção
21
A importância da Mitologia para o Ser Humano
85
Tipografia
27
A relevância das metáforas e a cultura do fã
91
Caixa-Puzzle
33
O poder da escrita
99
Diagramação
39
Símbolos e sinais
103
Demonstração do Produto
43
As Mil e Uma Noites
109
Considerações finais
45
Contexto e Intertextualidade
111
Referências
51
O arquétipo da Anima e do Animus
115
Lista de Imagens
57
Ler e Ver – O embate da legibilidade
67
O símbolo do labirinto e a geometria islâmica
Apresentação
Objetivos
Objetivo Geral Explorar a relação entre a tipografia e a mitologia.
Objetivos Específicos Explorar a mitologia em Mil e Uma Noites; Explorar os arquétipos em Mil e Uma Noites; Estudar o processo de leitura; Estudar a relação de sinais e símbolos com a decoração; Explorar a tipografia como suporte narrativo verbal e visual; Explorar encaixes e módulos nos níveis verbal, bidimensional e tridimensional.
13
Justificativa
“Contamos histórias para tentar entrar
herdado se manifesta através do inconsciente.
em acordo com o mundo, para harmonizar
Contudo, com o avançar acelerado de nossa socie-
nossas vidas com a realidade. [...] Mitos
dade, ocorre uma desarmonia entre as necessidades
são histórias de nossa busca da verdade, de
morais da vida real e os modelos de vida oferecidos
sentido, de significação [...]” (CAMPBELL,
pelos mitos. O processo de atualização das metáforas
2001, p.4-5).
fica, então, em defasagem. Além disso, os choques culturais geraram, por vezes, consequentes intolerâncias.
Além disso, os mitos se adaptam as necessidades
Enquanto mitologias e religiões tradicionais lutam entre
morais de cada sociedade e por isso modificam-se não
si e se prendem à uma visão antiga, outras histórias pas-
somente conforme as épocas, mas também conforme as
sam a ter papel relevante na vida dos indivíduos, ainda
culturas. Contudo, compartilham entre si os mesmos
que não sob o caráter sagrado. Antigos mitos são colo-
cernes, uma vez que falam dos magnos problemas hu-
cados em novos contextos e novos personagens surgem.
manos. Jung denomina estes cernes de arquétipos, os
Em paralelo, a escrita foi usada pelo ser humano
quais reúnem personagens e histórias que parecem nas-
desde sua invenção como expressão de uma cultura. As
cer com o ser humano. Como uma herança genética de
religiões em especial usaram-se do poder de influen-
nossos ancestrais, no período em que o instinto animal
cia dela para propagar ou reter informações. Alinhan-
prevalecia. No mundo contemporâneo, esse instinto
do símbolos e escrita, construíram templos e registros
15
sagrados. Entretanto, a escrita também voltou-se para
zzle, afim de representar o complexo avanço das rela-
usos práticos, mesmo que sempre como expressão da
ções dualistas da mitologia e da tipografia.
cultura na qual estava inserida.
“Em outro nível, o criador de uma fon-
Procedimentos metodológicos
te tipográfica despersonaliza-se ao máximo para entrar na pele de um personagem mítico representando a sociedade dos leitores [...]. À medida que a sociedade, carregada de toda sua herança cultural, se reconhece no
1. Levantamento e leitura de referências sobre mitologias e arquétipos;
espelho oferecido pelo criador dos caracteres,
2. Levantamento e leitura de referências sobre leitura e legibilidade;
a escrita torna-se dela, a marca e a imagem
3. Levantamento e leitura de referências sobre sinais e símbolos;
desta sociedade.” (Mandel, 2007, p.173)
4. Levantamento e leitura de referências sobre tipografia, focando em criação, formas e proporção; 5. Leitura dos livros Mil e Uma Noite Volume I e Mil e Uma Noites Volume II;
Assim, chegou até nossos tempos, carregando dico-
6. Análise da história Mil e Uma Noites com base nos arquétipos presentes;
tomias entre legibilidade e expressividade. Oposições
7. Criação da correlação simbólica entre tipos de leitura e estados dos arquétipos;
que se complementam, permitindo ao ser humano
8. Seleção e definição das histórias base, ou seja, quais entrarão para o produto final;
adaptar a comunicação às circunstancias.
9. Seleção dos símbolos e sinais base;
Neste trabalho, a exploração gráfica da relação exis-
10. Estudo de formas, proporções e combinações para criação tipográfica;
tente entre tipografia e escrita se realizará através do
10. Estudo de modularização, junção e encaixes em caixas puzzle;
texto Mil e Uma Noites, de origem islâmica, mas inseri-
11. Definição e criação da tipografia base;
do na sociedade ocidental através de Antoine Galland.
12. Definição dos materiais da caixa puzzle;
Desta forma, pretende-se unir o desenvolvimento da
13. Criação da caixa puzzle;
história citada com nosso contexto social atual e mani-
14. Diagramação do texto na caixa puzzle com a tipografia criada.
festá-la através da adequação tipográfica. Além disso, as composições serão diagramadas sobre uma caixa pu-
16
17
Mitologia e Tipografia
A importância da Mitologia para o Ser Humano
Segundo Campbell (2001) as narrativas mitológicas,
se trata afinal, e é o que essas pistas nos
são, por si só, parte da história humana, intrínsecas à
ajudam a procurar, dentro de nós mesmos.”
busca das sociedades e dos indivíduos por sentido e
(Campbell, 2001, p.5).
significado no decorrer do tempo. Surgem da necessidade por um alinhamento entre a vida exterior e a vida
Acrescenta que a mitologia é uma amplificação do
interior, uma busca pela compreensão dos mistérios do
universo interior, um sonho público, e os mitos também
mundo. Sendo assim, mitos são pistas das potencialida-
podem ser encontrados nos sonhos. Carl G. Jung (2008)
des espirituais do ser humano.
continua neste mesmo contexto teórico, agregando os conceitos de “imagens coletivas” e “sonhos arquétipos”.
“Penso que o que estamos procurando
Segundo ele, facilmente formamos a falsa ideia de que
é uma experiência de estar vivos, de modo
o homem nasce com uma mente vazia, a qual se cons-
que nossas experiências de vida, no plano
tituí apenas com a experiência individual. Contudo, do
puramente físico, tenham ressonância no
mesmo modo que o corpo humano encontra muitos
interior de nosso ser e de nossa realidade
traços no molde anatômico geral dos mamíferos, a psi-
mais íntimos, de modo que realmente sin-
que também apresenta analogias com as expressões do
tamos o enlevo de estar vivos. É disso que
homem primitivo. É nesta psique antiga que se funda o
21
substrato de nossa mente atual, um sistema instintivo
consciência e inconsciência.
pré-formado e sempre ativo, característico do homem,
Campbell cita uma temática na qual o homem, sen-
estabelecido muito antes de o mesmo desenvolver uma
do concebido do útero da Mãe-Terra sobe por uma cor-
consciência reflexiva (Jung, 2008). Esta mente deriva
da até a superfície. Contudo, os últimos indivíduos, os
da linguagem esquecida dos instintos, base da mente
maiores e mais pesados, acabam por arrebentar a corda
animal e é dela que surgem as imagens coletivas e os
ao tentarem subir. Segundo esta metáfora, a função des-
sonhos arquétipos.
sas histórias é reatar a corda rompida, ou seja, reaproxi-
Sendo assim, embora muitos sonhos possam ser
Fig.1 - As partes junguianas da psique
mar a consciência e ego do seu lado instintivo.
interpretados por associações pessoais, há aqueles
Jung apresenta como exemplo a função compensa-
que ecoam da “mente primitiva” e só conseguem ser
tória dos sonhos, nos quais a narrativa onírica compen-
interpretados na esfera mitológica. Isto pois, segundos
sa as deficiências na personalidade do ser.
ambos autores, os sonhos e os mitos se expressam na mesma linguagem, a dos símbolos. Jung define estes
“Quanto mais a consciência for influen-
como palavras ou imagens que implicam alguma coisa
ciada por preconceitos, erros, fantasias e
além de seu significado manifesto e imediato, seu as-
anseios infantis, mais se dilata a fenda já
não está contido inteiramente na nossa dimensão espa-
pecto “inconsciente” é mais amplo. Portanto, eles nunca
existente, até chegar-se a uma dissociação
ço-tempo consciente e esta condição o faz ser retratado
são precisamente definidos ou inteiramente explicados,
neurótica e a uma vida mais ou menos ar-
muitas vezes como um ser onipresente – o Homem Cós-
pois estão em uma esfera que a consciência racional não
tificial, em tudo distanciada dos instintos
mico. É este ser que representa o centro regulador, o qual
consegue abarcar.
normais, da natureza e da verdade.” (Jung,
é responsável pelo crescimento psíquico. É dele que pro-
2008, p.56)
vém as imagens oníricas e seus símbolos, afim de guiar o
Ou seja, toda a mitologia presente no mundo afo-
Elaborada pela autora
ego e a consciência pelo todo da psique, amadurecendo o
ra é, na verdade, uma amplificação dos sonhos, do universo interior. Por isto, apesar de assumirem rou-
Para ele, a mente é como uma esfera, na qual o todo e
indivíduo para lidar com a vida e permitindo que o mes-
pagens diferentes, transmitem as mesmas imagens
o núcleo são o self. Já a zona iluminada na superfície é a
mo explore suas próprias potencialidades, experimen-
e os mesmos problemas. Ambos, sonhos e mitos, são
consciência e o seu foco de luz, o ego. Segundo o estudio-
tando uma existência mais profunda e fundamental. A
manifestações da psique primitiva, a qual nos fala por
so, o self é o centro criador e orientador, o qual subsiste
este processo de “reatar a corda”, Jung nomeia processo
símbolos para restaurar o equilíbrio psicológico entre
além do fluxo da vida de que temos consciência. Ou seja,
de individuação.
22
23
Já Campbell afirma que o transcendente nos mitos
Destes pontos de vista, o conjunto de sonhos
com o transcendente, a reconexão da corda rompida.
nos damos conta das maravilhas e mistérios do univer-
Contudo:
so e da nossa existência.
provém de uma era de não-tempo e que, quando colo-
de um indivíduo é o quadro geral de sua jornada psí-
cado na esfera do ciclo da vida (temporal), esta unidade
quica e a mitologia, da jornada psíquica da sociedade
partiu-se e fez-se presente em todas as coisas de modo
na qual surgiu. Segundo Campbell, a mitologia tenta,
“A triste verdade é que a vida do homem
dual. As religiões dos mistérios permitem que o indiví-
por meio de símbolos e metáforas, orientar as pessoas
consiste de um complexo de fatores inexorá-
duo abra seu interior para a profundidade dentro de si
sobre suas relações uns com os outros, com si mesmas,
veis: o dia e a noite, o nascimento e a morte, a
mesmo, até dar-se conta de que é mortal e imortal ao
com o cosmos e da sociedade com o cosmos. Uma po-
felicidade e o sofrimento, o bem e o mal. Não
mesmo tempo. Pode-se fazer uma analogia entre essa
esia feita por atos e aventuras que permite ao ser hu-
nos resta certeza de que um dia um desses fa-
entrada na esfera do tempo e o surgimento da consciên-
mano se sentir em acordo com a vida perante as suas
tores vai prevalecer sobre o outro, que o bem
cia, enquanto as tentativas humanas de reaproximação
dualidades – horrores e maravilhas.
vai se transformar em mal, ou que a alegria há de derrotar a dor. A vida é uma batalha.
da unidade assemelham-se ao reconhecimento do deus (o ser onipresente) dentro de si mesmo.
“Pois bem, um dos grandes problemas da mitologia é conciliar a mente com essa
“Em termos práticos, isso significa que a
pré-condição brutal de toda vida, que sobre-
existência do ser humano nunca será satis-
vive matando e comendo vidas” (Campbell,
fatoriamente explicada por meio de instintos
2001, p.44).
isolados ou de mecanismos intencionais como
24
Sempre foi e sempre será. E se não for assim, ela chegaria ao fim.” (Jung, 2008, p.107) Por este motivo, o ser necessita de ambas as partes de sua psique, não devendo limitar sua atenção ao lado consciente. Para auxiliar o indivíduo em sua vida,
a fome, o poder, o sexo, a sobrevivência, a per-
Segundo o autor, a dualidade representa a vida, o
a mente não só acumula percepções e associações do
petuação da espécie etc. Isto é, o objetivo prin-
transcende na esfera do tempo. Pensar nesses termos
passado no inconsciente, mas também trabalha novas
cipal do homem não é comer, beber etc., mas
opostos é “a natureza de nossa experiência da realida-
ideias neste plano, fazendo-as surgirem da “escuri-
ser humano. Acima e além desses impulsos,
de” (Campbell, 2001, p.51). Jung também comenta so-
dão” como “lótus” – germes de ideias e situações psí-
nossa realidade psíquica interior manifesta
bre ao afirmar que uma outra imagem comum para o
quicas futuras (Jung, 2008). Por isto Campbell afirma
um mistério vivo que só pode ser expresso por
Homem Cósmico é o ser bissexual ou o casal heterosse-
que a mitologia tem, entre outros papeis, a função pe-
um símbolo; e, para exprimi-lo, o inconscien-
xual, o qual representa a união de opostos – o pessoal
dagógica e a mística. Ou seja, quando nos envolvemos
te muitas vezes escolhe a poderosa imagem do
e temporal ego com o impessoal e atemporal não-ego.
com os mitos, não só aprendemos como viver uma
Homem Cósmico.” (Jung, 2008, p.270)
Esta união seria o alvo das religiões, ou seja, a união
vida humana sob qualquer circunstância, mas também
25
A relevância das metáforas e a cultura do fã
Como já dito anteriormente, os mitos propagam as
do que teria se a metáfora para a sabedoria
mesmas imagens e os mesmos problemas devido aos
e o mistério do mundo fosse a mãe. E am-
vestígios biológicos de uma mente primitiva. Segundo
bas são metáforas perfeitamente adequadas.
Campbell (2001), o que lhes dão aparências diferentes
Nenhuma delas é um fato. São metáforas. É
uns dos outros são as metáforas. Ou seja, os elementos
como se o universo fosse meu pai, ou como
racionais do pensamento que estruturam os temas mi-
se o universo fosse minha mãe.” (Campbell,
tológicos (atemporais) conforme época e cultura (tem-
2001, p.21)
poral). Sendo assim, as histórias dependem do enfoque particular de quem as conta, além de serem influencia-
Uma vez que as ideias por trás destas histórias es-
das pelo contexto histórico e geográfico. Por isso, para
tão além da realidade visível, o canal de comunicação
interpretá-las, você precisa estar ciente deste “conjunto
com elas é feito através de uma poética. Descrever as
de sinais” a fim de não cair na ilusão de que os mitos
experiências que transcendem o pensamento é difícil,
são muito divergentes.
portanto toda tentativa de expressá-la simbolicamente é imperfeita (Campbell, 2001). Para o estudioso, os
“... ao se defrontar com uma mitologia
povos primitivos tinham consciência da natureza ale-
em que a metáfora para o mistério é o pai,
górica de suas histórias. “Eles o faziam como se fosse
você terá um conjunto de sinais diferentes
assim. A noção de que alguém literalmente fez o mun-
27
do – isso é tido como artificialismo. É uma maneira
ciando uma harmonia entre o consciente e o inconscien-
começar a comer o cardápio” (Campbell,
infantil de pensar [...]” (Campbell, 2001, p.56). O que
te. Portanto, quando perante novas descobertas psico-
2001, 59).
conta, neste cenário, é a experiência vivenciada e com-
lógicas e detalhes não ortodoxos, conseguem encará-los
partilhada, com o intuito de ajudar outros a terem a
sem receio ou preconceitos. Além disso, quando tais
Posto tais raciocínios e retornando à mutabilidade
encontrar”. [...] Os mitos de participação e
mesma experiência transcendente.
elementos aparecem em sonhos, conseguem integrá-los
das metáforas segundo Campbell, ressalta-se que elas
amor dizem respeito apenas aos do grupo, os
facilmente no conjunto geral de suas crenças.
mudam conforme as necessidades morais da vida real e
de fora são totalmente outros” (Campbell,
o problema atual é:
2001, p.23).
Já Jung comenta que o processo de individuação
“Por exemplo, os Dez Mandamentos dizem: “Não matarás”. Aí o capítulo seguinte diz: “Vai a Canaã e mata a todos os que
é frequentemente contagiante. Ou seja, um indivíduo
No segundo, estão aqueles que abandonaram com-
acaba por influenciar o outro, sem intenção de o fazer.
pletamente a fé e focam-se nas opiniões conscientes e
Enquanto isso, as religiões “cristalizam” (delimitam e
racionais. Logo, não lhes causa incomodo defrontar-se
“o que era aceitável há cinquenta anos
Por consequência, o que nota-se é a falta do proces-
definem melhor) para o coletivo as experiências vindas
com investigações oníricas e explorar o inconsciente
não é mais, hoje. As virtudes do passado são
so natural e necessário de atualização das metáforas mi-
do inconsciente, afim de ajudar as pessoas a guiarem-se
para provar-lhes a veracidade.
os vícios de hoje. E muito do que se julgava
tológicas. Como resultado, há uma tendência ao aban-
serem vícios do passado são as necessidades
dono das antigas religiões, principalmente por parte
de hoje” (Campbell, 2001, 13).
das novas gerações.
por ele. Contudo, ao fazerem isso, afastam-se da expe-
No terceiro encontram-se aqueles que, por um lado
riência original. “Se você não teve a experiência, como
negam as tradições, mas por outro continuam a acredi-
saber de que se trata?”(Campbell, 2001, p.63). “Parece-
tar nas mesmas. Sendo assim, receiam voltar-se para as
-me, na verdade, que com a aproximação da consciên-
pistas do inconsciente – seja por receio de alterar ou en-
Isto, pois, mudanças sociais ocorreram rapidamen-
“Escreveu [Jung], em 1937: “Sei – e ex-
cia, o conteúdo subliminar da psique se “apaga” (Jung,
fraquecer os símbolos religiosos oficialmente reconheci-
te, em questão de anos. Dessa forma, as novas metáfo-
presso aqui o que inúmeras pessoas também
2008, p.77).
dos, seja por resistência em admitir ainda possuírem fé.
ras não tiveram tempo de tornarem-se mitológicas.
sabem – que a época atual é a do desapareci-
Consequentemente, as metáforas das religiões po-
Somado a esse fato, as fronteiras delimitadas dos
mento e da morte de Deus”. Durante anos
dem tanto ajudar como dificultar o processo de “reatar
“Toda religião é verdadeira, de um modo
mitos dissolveram-se, gerando colisões e relações entre
ele observara como a imagem cristã de Deus
a corda”, dependendo da relação que o indivíduo tem
ou de outro. Verdadeira quando compreen-
os mesmos. Isto é, não há mais um território exclusivo
vinha se enfraquecendo nos sonhos dos seus
com elas. Em um contexto mais atual, Jung define três
dida metaforicamente. Mas se ela se aferrar
para tal mitologia. Várias delas entram em contato e a
pacientes – isto é, no inconsciente do homem
tipos de relação entre a religião e o homem, três tipos de
às suas próprias metáforas, interpretan-
tendência é a criação de uma mitologia mais complexa.
moderno. A perda dessa imagem é a perda
leitura de metáforas.
do-as como fatos, então haverá problemas.
Porém, a presença da intolerância religiosa – advinda
do fator supremo que dá significação à vida.”
No primeiro, há aqueles que verdadeiramente cre-
[...] Aceitar a metáfora como auto-referente
da restrição do conceito de Irmandade das metáforas
(Jung, 2008, p.345)
em nas suas doutrinas religiosas. Os símbolos destas se
equivale a ir ao restaurante, pedir o cardá-
antigas – acaba por dificultar o processo.
ajustam muito satisfatoriamente ao individuo, eviden-
pio e, deparando ali com a palavra “bife”,
28
E esta falta, segundo Campbell, provoca efeitos de
29
especial realce nos jovens, os quais acabam sem tradi-
la espécie de responsabilidade que impreg-
cipativa.” (Jenkins, 2006, p. 41 apud Marlet,
acordo com os termos do texto original da obra alvo.
ções para norteá-los. Assim, precisam fabricar por sua
na o sacerdócio, num ritual. Este é um dos
2016, p.40)
No segundo, reescrevem os textos para melhor servir
conta iniciações e caminhos para jornada social e espi-
nossos problemas, hoje em dia.” (Campbell,
ritual. Contudo, sem uma tradição guia, muitas vezes
2001, p.86)
acabam em situações perigosas – como a participação
aos interesses dos fãs. Portanto, não é a simples repetição das histórias
Como proposto por Jung, as metáforas podem aju-
favoritas que sustenta a cultura do fã, mas o seu diálo-
dar ou dificultar o processo de individuação. Assim,
em gangues e o uso de drogas. Todavia, outras possi-
Isto é, além de defrontarem-se com as desatualiza-
go ativo e frequente com elas. De tal interação, surgem
quando os fãs envolvidos identificam-se e são estimula-
bilidades perante este cenário incluem a busca de pers-
das tradições, precisando posicionar-se perante elas,
produções como: discussão em fóruns online, fanfiction,
dos pelas metáforas já apresentadas, mas apresentam-se
pectivas mitológicas nas histórias atuais e o interesse
ainda lidam com a confluência e o significado das his-
e-zine (fanzine), fanarts, fanvídeo, cosplay, fanhit, sin-
abertos para discorrer sobre as mesmas, encontram-se
juvenil pelas mitologias mais antigas. Na primeira,
tórias. Dentre as múltiplas formas de leitura destas,
cronizações, recapitulações, paródias, finais alternativos,
na primeira classificação junguiana. Nada impede, con-
encontram-se os que são arrebatados pelas histórias e
destaca-se a figura do fã, pois, identifica-se nela uma
falsos avanços e aberturas, mashups e adaptações (Mar-
tudo, que determinados indivíduos estejam mais próxi-
acabam por engajarem-se nelas além do entretenimen-
forma de interiorização e interação mais profunda com
let, 2016 apud Scolari, 2013; Miranda, 2009; Vargas, 2005).
mos da segunda ou terceira classificação, incorporando
to. Na segunda, encontram-se aqueles que buscam o
as metáforas mais atuais, gerando semelhanças com o
Percebemos assim a articulação dos valores, conceitos e
mais ou menos as metáforas e fazendo críticas menos
conhecimento acadêmico e histórico sobre os mitos e
diálogo religioso apresentado por Jung.
metáforas das histórias na vida cotidiana, de modo prin-
ou mais fervorosas a favor ou contras elas. Isso, pois,
cipalmente cultural. A participação constante por meio
os fãs absorvem as histórias incorporando significados
da criação e desfrute de conteúdo e demonstrações de
e ao fazerem isso de múltiplas formas, abrem-nos as
opiniões teve trampolim também nas redes sociais e
mesmas possibilidades que o diálogo religioso. “A pala-
religiões, sendo naturalmente atraídos pois “a mitologia lhes ensina o que está por trás da literatura e das
Os fãs demonstram maior grau de encantamento e seriedade perante as histórias. Mais ainda:
artes [...]” (Campbell, 2001, p.12). Seja na literatura atual ou antepassada (ou na mescla de ambas), o que buscam
“Não se torna um fã apenas por assistir
na internet como um todo, pois, segundo Jenkins (2006
vra religião significa religio, religiar. Se dizemos que há
é reconectarem-se com a experiência transcendente,
regularmente um determinado programa,
apud Marlet, 2016), os fãs se adaptam mais facilmente às
uma única vida em nós ambos, então minha existência
criando motivações e direções para suas próprias vidas.
mas por traduzir essa experiência em algum
novas tecnologias por serem canais alternativos de valor
separada foi ligada à vida una, religio, religiada” (Cam-
tipo de atividade cultural, por compartilhar
e significado da cultura underground.
pbell, 2001, p.224). Segundo Marlet (2016) as respostas
30
“[...] mas o que é penoso, para nós, é que
ideias e impressões sobre o programa com os
Quando unidos em uma comunidade – o fandom
emocionais, geralmente inconscientes, variam em níveis
muitas das pessoas incumbidas de escrever
amigos, por ingressar em uma comunidade
– possuem certo grau de comprometimento e lealdade
conforme as experiências e predisposições particulares.
histórias não têm noção da sua responsabili-
de fãs que compartilham interesses em co-
com o coletivo maior. Dividem-se em dois, então, se-
Essa relação semelhante à religiosa pode ser identi-
dade. Essas histórias fazem e desfazem vidas.
mum. Para os fãs, é natural que o consumo
gundo Jenkins et al (2014 apud Marlet, 2016): o fandom
ficada quando, durante o livro O homem e seus símbolos,
Mas os filmes são produzidos simplesmente
deflagre a produção, a leitura gere a escrita, a
afirmacional e o fandom transformacional. No primei-
os arquétipos e histórias base são explicados não só com
para fazer dinheiro. Não se encontra aí aque-
cultura do espectador se torne cultura parti-
ro, os indivíduos buscam construir suas fantasias de
exemplos mitológicos, mas com histórias modernas (re-
31
ais do período ou fictícias):
plesmente aceitar o que recebe, insistindo no direito de se tornar um participante pleno”.
“Nesses sonhos, Berlim era símbolo de algum ponto psíquico fraco – Berlim, o local
(Jenkins, 2009a, p. 188 apud Marlet, 2016, p.53)
perigoso – e, por isso, lugar que o self está
O poder da escrita
pronto para frequentar. [...] Encontrei tam-
Ou seja, as motivações internas dos grupos de fãs
bém um número extraordinário de sonhos
acabam por gerar impactos exteriores, como o interes-
relacionados com o filme Hiroshima, meu
se do mercado em ouvir e atender as demandas dos
amor. A ideia principal expressa nesses so-
mesmos. Marlet (2016) aponta que a segunda onda de
Segundo Adrian Frutiger (2007), há certa de 60.000
nhos era a de que ou os dois amantes do fil-
estudos sobre os fãs colocou-os no patamar de consu-
anos atrás, na era glacial, desenhos eram riscados, es-
me deveriam unir-se (simbolizando a união
midores especializados e principal alvo do marketing
culpidos e pintados sobre rochas, buscando satisfazer o
dos opostos interiores) ou a de que haveria
das indústrias. Adquirem, assim, importância dentro
instinto animal, auxiliando na sobrevivência. Tais sinais
Assim, conviviam no mesmo âmbito imagens de ca-
uma explosão atômica (símbolo de uma total
da lógica capitalista.
denotam usos práticos ou evocações mágicas e medo
ráter “mágico” (símbolos) e de funções mais pragmáti-
perante fenômenos “sobrenaturais”.
cas (sinais), como aqueles para contagem de bens e indi-
dissociação, equivalente à loucura).” (Jung, 2008, p.297)
cias megalíticas e outras formas.” (Mandel, 2006, p.23)
cações de direção. Contudo, embora sejam percursores
“É evidente que em lugares e em tempos
da escrita, foi somente depois que os desenhos passa-
Vemos, então, que histórias de grande impacto
muito diferentes, porém levados pelas mes-
ram a se correlacionar sempre as mesmas imagens que
adentram o imaginário das pessoas. Vimos também
mas necessidades de proteger suas vidas
o registro do pensamento e da fala passou a ter repre-
que os fãs possuem tanta incorporação delas a ponto
e de assegurar sua perenidade, os homens
sentação. Assim, tornaram-se passiveis de leitura em
de geraram criações culturais. O importante de fato é
aprenderam a ler os sinais do meio ambien-
qualquer época. O progresso conjunto da associação de
que a figura do fã busca relevância e identificação nas
te biológico [...]. Depois, naturalmente, eles
sons e sinais foi crucial para esse processo, assim como
histórias de modo semelhante aos adeptos de alguma
foram levados à sacralização dos lugares
os alinhamentos destes, afim de demonstrar a linearida-
mitologia. Além disso:
ou dos objetos presumidamente habitados
de de pensamento (Frutiger, 2007).
32
pelos poderosos espíritos reinantes na na-
O hábito e a ordenação linear acarretaram, então,
“Os fãs são o segmento mais ativo do pú-
tureza [...] por meio de marcações gráficas
na escrita contínua. Contudo, embora haja semelhan-
blico das mídias, aquele que se recusa a sim-
como entalhes, gravuras, pinturas, referên-
ças entre as linguagens quanto as representações de
33
alguns objetos (como armas) e elementos da nature-
precisa do pensamento a ser traduzido em
za (como a Lua e as montanhas), as escritas seguiram
palavras” (Mandel, 2006, p.33).
Fig.2 – Escrita dos Deuses, stoicheion, Ágora de Atenas
para caminhos distintos. Cada povo desenvolveu sons e desenhos próprios a despeito da influencia de inter-
Mandel (2006) concorda com a importância do pen-
Mandel (2006) exemplifica isso ao correlacionar a
câmbios culturais, não apresentando aparente origem
samento linear e com a correlação entre interinfluên-
pesada e categórica escrita gótica vertical ao norte da
comum na formação de sinais. Enquanto algumas es-
cias e repertórios locais, acrescentando que a seleção
Europa – com sua natureza hostil somada ao pensa-
critas firmaram-se nos ideogramas, outras abstraíram-
dos materiais usados tinha influência direta não só do
mento escolástico de ordem e de rigor da sociedade
-se mais e mais até a criação de alfabetos. Árabe, latim
ambiente, mas dos objetivos do intelecto humano. As-
local. Complementando, o autor também afirma que a
e hebraico, por exemplo, desenvolveram-se a partir do
sim, as escritas desenvolveram-se conforme a cultura
escrita respondeu as funções materiais e espirituais de
sistema fonético fenício, sendo, portanto, do ramo se-
de cada povo, que modificava não só os materiais e os
cada povo, acompanhando a sua evolução dinâmica.
mítico-arábico. Contudo, seus desenvolvimentos lin-
estilos utilizados (características gráficas e formas de
Refletia, então, não só a sociedade, mas o papel desig-
guísticos geraram escritas bem diferentes. Já o japonês
leitura), como também a linguística (fonética, gramática
nado a ela. Os gregos, por exemplo, adaptaram alfabeto
mais recentemente desenvolveu um sistema simplifi-
e vocabulário):
semítico reduzindo-o a formas geométricas e libertando-o da iconicidade. Fato só possível devido a “des-
cado para registro de sons individuais e silábicos, mas
“As formas escriturais estão bem enrai-
sacralização” da escrita egípcia pelos semíticos. Con-
zadas no terreno humano, nos demonstra
tudo, havia uma escrita grega, a stoicheion, disposta
Esta pluralidade de sinais deriva, entre outros fato-
Ladislas Mandel. Elas se nutrem das ten-
indiferentemente no sentido horizontal e vertical, sem
res, de substratos e materiais diferentes escolhidos para
sões interiores individuais e dos movimentos
separação de palavras. Esse estilo cobria grandes áreas
o registro, bem como das diferenças fonéticas de cada
culturais que sacodem e despertam os povos;
murais, com função sagrada, usada especificamente em
língua. Mesmo o chinês, citado acima, sofreu influencia
as ferramentas e as práticas artesanais in-
textos santificados.
dos sons:
terpretam as sugestões da esfera intelectual
sua inspiração inicial, o chinês, conserva ainda seu sistema pictórico (Frutiger, 2007).
e se limitam em enquadrar as pedras e em
34
“De uma maneira muito rápida, todas as
cozinhar os tijolos para uma casa que, no en-
escritas ideográficas, como a chinesa, cunei-
tanto, é construída obedecendo a um plano
forme e hieroglífica, enriqueceram-se de ele-
criado pela inteligência humana.” (Montec-
mentos fonéticos para uma transcrição mais
chi, 2006 apud Mandel, 2006, p. 14)
Fonte: Mandel, 2006, p.54
35
“A escrita sempre foi um dos veículos
poder misterioso estava contido nessa escri-
forma, conquistadores privavam os subjugados de sua
“Com a produção industrial dos caracte-
mais importantes na transmissão da cultu-
ta que tinha a genialidade de tornar visível
língua e escrita como forma de impor-se. Não por aca-
res, a escrita tornou-se uma mercadoria com
ra. Mais do que a economia, o direito e as
a palavra fugidia, imaterial e invisível? O
so, uma das primeiras reinvindicações de um povo para
destinação universal, alijada de qualquer
ciências, as religiões foram as principais
poder mágico atribuído à escrita dissemi-
recobrar sua liberdade é usar os sinais de sua identida-
particularidade aparente, objetivando uma
usuárias das escritas. Frequentemente mo-
nou durante muito tempo entre os povos a
de. Por isso, a democratização da escrita:
melhor rentabilidade” (Mandel, 2006, p.141).
nopolizavam a arte de escrever como um ato
crença de que ela era de origem divina [...].”
sagrado. Por isso, de maneira geral, cada
(Mandel, 2006, p.33-35)
cultura gráfica mencionada pode ser associa-
“do sagrado ao profano, dos hieróglifos
De um lado, ficaram aqueles predispostos à uma
até o alfabeto mostra a importância da fun-
ambição “universal”, influenciados pela globalização,
da à religião correspondente, em parte ainda
Contudo, apesar da expansão das religiões ter con-
ção social que transformou as formas escri-
pelas necessidades da indústria e pelas intenções de
hoje responsável por sua difusão.” (Frutiger,
tribuído para a disseminação das escritas alfabéticas,
turais, até mesmo as estruturas do sistema”
alto alcance da publicidade. Do outro, existe os interes-
2007, p.121)
foram as relações comerciais e as decorrentes unida-
(Mandel, 2006, p.43).
sados em conservar e prolongar as heranças culturais
des culturais as principais responsáveis pelo fato. No
(Mandel, 2006).
Essa relação mitologia/escrita se dá pelo fato
campo gráfico, isso também acarretou na redução da
Sobre o alfabeto latino, Charles Higounet afirma “se
Unger (2007) descreve essa dicotomia através do
de que toda escrita é um código, completamente enrai-
figuração, “[...] é evidente que a atividade mental cada
foi o único a sobreviver entre eles,” (referindo-se aos al-
embate entre tipografias serifadas (junto ao grid simé-
zado na linha de raciocínio de uma sociedade, mas que,
vez mais intensa do ser humano sempre foi acompa-
fabetos grego e etrusco) “é porque se tornou o alfabeto
trico) e não serifadas (junto ao grid assimétrico). Estas
até o momento no qual é decifrado, carrega consigo um
nhada por uma abstração crescente” (Frutiger, 2007,
do povo vencedor, que o impôs inicialmente à Penínsu-
últimas eram correlacionadas à filosofia da “tentativa
significado oculto.
p.207). Desta forma, simplificava-se a reprodução da
la Itálica, depois a todo Ocidente antigo, com sua língua
sincera de um novo mundo. Às vezes, isso significava
escrita, acelerando a memorização das formas e con-
e sua escrita” (Higounet, 2003, p.105).
que perspectiva e nuance se perdiam de vista, quan-
36
“[...] a despeito do caráter profano da
sequentemente a compressão. Mais do que isso, trans-
A diversidade dos sinais é, portanto, fruto dos cho-
do não eram deliberadamente evitadas” (Unger, 2007,
escrita alfabética amplamente difundida,
formava as escritas em figurações diretas das palavras
ques e desenvolvimentos culturais, fruto dos objetivos
p.23). Já a tradição se apoiava no argumento do con-
ela não perdeu inteiramente a sacraliza-
(Mandel, 2006).
e raciocínios humanos. Não é por acaso então que, no
servadorismo dos leitores, que não deixava espaço para
ção [...]. Poder transmitir o pensamento
Outro fator determinante na história da escrita são
contexto ocidental, a proliferação de escritas despren-
mudanças drásticas. Para Morison (1962 apud Unger,
sob uma forma material e transportável,
as relações de poder. Como já vimos, o clero egípcio
didas de contextos funcionais e culturais apareça justa-
2007), a infinidade e complexidade do público leitor
poder conservá-lo no tempo para gerações
limitava o conhecimento escrito a fim de controlar os
mente na confusão do mundo moderno.
acabava por tornar o alfabeto rígido e irreformável.
futuras, isto supunha uma presença que só
mistérios e o saber (leis, ciência, economia, etc). Deti-
Contudo, segundo Unger (2007), desde 1925 nenhu-
poderia estar ligada ao sobrenatural. Que
nham, assim, poder perante a população. Da mesma
ma das visões sobrepujou a outra. Houveram apenas
37
predominâncias em algumas décadas, enquanto outros
e automático. O volume do material lido ao longo da
movimentos relevantes aconteciam e enquanto mistu-
vida de um indivíduo amplia cada vez mais sua fami-
ravam-se os lados do embate.
liaridade não só com os caracteres, mas com os espaços
Para o autor, a indústria gráfica e as convenções
inerentes da escrita (contraforma, kerning, espaçamen-
foram questionadas, acarretando em conquistas e fra-
to e entrelinha). Aumenta-se assim as referências para
cassos por parte dos designers. Acontece que não há
criação da “matriz”. Bruce Mau (2000, p.436 apud Un-
pontos de partida científicos para a realização de mu-
ger, 2007, p.32) expõe “a tipografia, no entanto, é uma
danças (como há, por exemplo, na aeronáutica). São as
prática que funciona exclusivamente por convenção”.
Símbolos e sinais
experiências dos próprios designers que os guiam para
Não quer dizer, entretanto, que mudanças radicais
novas modificações. Afinal, como já vimos, as tensões
sejam inúteis. Retomando, Unger (2007) afirma que a
Segundo Frutiger (2007), a arqueologia encontrou
coisas. Como dito anteriormente, segundo Jung (2008)
individuais e culturais são as responsáveis pelas modi-
subserviência calma, completa e disciplinada à con-
vestígios de alguns sinais primários com formas idênti-
símbolos são palavras ou imagens que implicam algu-
ficações da escrita. Assim, explica-se porque no séc. XX
venção divide espaço com a liberdade e a variedade,
cas em várias regiões da Terra e “não se pode descartar
ma coisa além de seu significado manifesto e imedia-
expandiu-se a experimentação tipográfica. Contudo,
adequando-se ao meio, assunto e tempo. Mistura-se a
a hipótese de que tenham tido significados semelhan-
to, seu aspecto “inconsciente” é mais amplo. Frutiger
“virtualmente todos os esforços para alterar as formas
curiosidade pela mudança e o desejo pelo familiar. “[...]
tes para as diversas populações de épocas diferentes”
(2007) coloca-os como intermediários da realidade re-
básicas das letras, ou substituí-las por outras inteira-
é possível influenciar costumes e hábitos tipográficos já
(p.23). Esses sinais limitam-se ao quadrado, triângulo,
conhecível com os reinos místicos invisíveis da religião,
mente novas, ao fim, fracassaram” (Unger, 2007, p.31).
estabelecidos, mesmo que isso leve tempo e aconteça
círculo, cruz e flecha (seta). Parte-se da ideia de que
filosofia e magia, indo do consciente para o inconscien-
Entramos então no mecanismo de leitura, o qual
a um pequeno passo de cada vez” (Unger, 2007, p.38),
um sinal é elementar quando sua imagem é totalmen-
te. Ele diferencia imagem simbólica de sinal simbólico.
explica a permanência das formas familiares básicas.
como ocorreu do séc. XX para o XXI com a prosperida-
te inequívoca, compreendida com um todo e não como
No primeiro, busca-se a perfeição estética. No segun-
Como crescemos com figuras, imagens e esquemas
de de tipos sem serifa que não modificavam as formas
a junção de várias partes. Então, pressupõe-se que o
do, tende-se a simplificação, derivada da necessidade
elementares, os mesmos ficam gravados em nosso sub-
básicas das letras. Novamente, os gostos e as limitações
ser humano nasce com certo senso geométrico. Unger
de portar uma versão da imagem original, transferindo
consciente, tornando a produção de uma ordem mais
de cada época serão responsáveis pelos usos duradou-
(2007) cita a parte posterior do córtex cerebral esquer-
para si as forças daquele conteúdo simbólico.
fácil que de uma desordem. A memória entra como
ros e pelos usos particulares.
do, responsável pelo reconhecimento de informações
ponto de partida para interpretação, ou seja, a figura
geográficas elementares. É nesta região, inclusive, que
“Além disso, consideramos que um sím-
percebida confrontasse com a “matriz” assimilada an-
pesquisas demonstram serem reconhecidos os textos e
bolo de forma reduzida produz uma imagem
teriormente (Frutiger, 2007). É dessa forma que a leitura
suas partes.
mais fácil de ser lembrada do que uma figura
se torna, em nossa sociedade, um processo inconsciente
38
Contudo, sinais e símbolos não são as mesmas
comum, e que um código secreto num sinal 39
não-figurativo é justamente o que oferece
carregados das mesmas virtudes mágicas para afastar
mais estímulo à meditação e a uma associa-
a infelicidade e a morte,” não refletiriam, portanto, “a
ção mais próxima com o que está oculto.”
imagem eterna do homem nu e desarmado diante do
(Frutiger, 2007, p.207)
destino?” (Mandel, 2006, p.26).
O autor ainda afirma que em sinais simbólicos abstratos, é comum a adoção da simetria, baseada no princípio mais ou menos oculto do centro. Para isto, graficamente usam-se da representação frontal ou da dupla ornamentação. Também comenta que é difícil ter certeza sobre o conteúdo simbólico de qualquer figura da expressão gráfica não-alfabética de nosso meio. Dois ossos cruzados, por exemplo, podem ser uma assinatura heráldica (navios piratas, bandeiras de guerreiros), ou uma advertência de venenoso (remédios), ou um símbolo da aceitação de desafios (jaqueta de um motoqueiro). “É muito curioso constatar que nunca se utilizou como hoje em dia sinais e símbolos tanto de caráter sobrenatural como pragmático” (Mandel, 2006, p.25). Sinais e símbolos de prevenção e instrução de comportamento social evoluíram muito – vide a sinalização e a publicidade – enquanto os de caráter mágico continuaram a ser utilizados frequentemente – nas religiões, superstições, tatuagens, talismãs. As leituras dos símbolos “já duram trinta mil anos,
40
As Mil e Uma Noites
Contexto e Intertextualidade
É importante dizer que a história de Mil e Uma Noi-
ço, que, a menos que os mitos e as metáforas
tes não faz parte da religião islâmica, no sentido de texto
se mantenham vivos, por constante recria-
oficial de cunho religioso. Fabrice Dubosc (2013c) expli-
ção através das artes, a vida simplesmente os
ca que enquanto alguns colocam a narrativa como mera
abandona.” (Campbell, 2011, p.62)
fantasia vã outros, como Ibn Dawud, consideram-na como uma fonte de conhecimento esotérico. Segundo
Como exemplo disto, utiliza a Idade Média e suas
Fabrice, a obra representa uma das tentativas de ques-
três fontes geradoras dotadas de criatividade mitologia
tionar a enigmática condição humana, fruto do proces-
e folclórica: a catedral, o castelo e a cabana. Mesmo sen-
so paralelo das organizações de defender suas identida-
do fontes diferentes, pertenciam a mesma civilização e,
des perante a transitoriedade. Campbell (2011) explica
portanto, ao mesmo campo simbólico. De um lado, a
como a mitologia ultrapassa o campo exclusivamente
religião começa a formular suas histórias e, do outro, a
religioso ao explicar o conceito de campo simbólico:
própria civilização baseia-se nelas e cria suas próprias narrativas. Em Mil e Uma Noites, Dubosc (2013c) conta
“O campo simbólico se baseia nas experiências das pessoas de uma dada comunidade,
como fica-se impressionado pelo campo simbólico dinâmico presente.
num dado tempo e espaço. Os mitos estão tão
Esse dinamismo pode ser explicado pela própria
intimamente ligados à cultura, tempo e espa-
trajetória da obra no mundo árabe. Segundo a apresen-
45
tação da edição da Nova Fronteira (2015) feita por Mal-
voritas por narradores e ouvintes. Juntamente notamos
neh – Mil histórias. Segundo Clemente Huart, os persas
Jarouche (Literatura Universal - Livro das Mil e
ba Tahan, a cultura árabe dá a suas histórias relevância
que a preocupação com o conteúdo dá tom especial a
colheram os principais enredos do livro na Índia. Du-
Uma Noites - Mamede Jarouche - Pgm 03, 2013) certi-
singular. As cidades habitualmente tinham contadores
narração. De fato, como a própria história mostra, con-
bosc (2013a, 2013b) conta que o tema da mulher a qual
fica, contudo, que a historia mostra diversos aspectos
de histórias e, nas maiores – como Cairo, Damasco e
tos são considerados valiosos, equivalentes à parte da
conta histórias toda noite para salvar sua vida é men-
do imaginário árabe. Segundo ele, a história do prólo-
Constantinopla –, costumavam reunir-se em “sindica-
vida humana:
cionado pela primeira vez por Massudi, em 956 d.C.. Já
go, explicada acima na sinopse, demonstra a fantasia
o orientalista e historiador Gustavo Weil (apud Tahan,
machista na qual o homem preda a fêmea e a exter-
tos”. Os líderes ganhavam o título de cheik el-medah – chefe dos contadores do café. O texto também cita uma
“[...] após ter descoberto a traição da sua
2015 apud Galland, 2015) declara que os contos árabes
mina. Ao possuí-la satisfaz seu instinto biológico e ao
descrição de uma dessas autoridades feita pelo italiano
mulher, o sultão Shahriar casa-se a cada noi-
Alf Lailah oua Lailah diferem totalmente das primitivas
mata-la elimina a possibilidade de qualquer relacio-
Edmundo De Amicis:
te com uma jovem diferente que será morta
formas indianas e persas. A autoria, portanto, fica ene-
namento. Destrói, portanto, qualquer necessidade de
ao amanhecer. Mas a filha do grão-vizir, a
voada no tempo e resta apenas o resultado cristalizado
respeito e cooperação. Entra em conflito, então, com a
“Era um homem de cinquenta anos, qua-
impetuosa Sherazade, decide enfrentar o
nos diversos manuscritos.
essência do casamento:
se negro, a barba negríssima e dois grandes
desafio e interromper esse ciclo vingativo,
Mamede Jarouche (Literatura Universal - Livro das
olhos cintilantes; trajava, como quase todos os
oferecendo-se para a noite seguinte. Noite
Mil e Uma Noites - Mamede Jarouche - Pgm 03, 2013)
“Casamento é uma relação. Quando vocês
outros narradores de Bagdá, um enorme pano
que se multiplica, assim como as histórias
confirma que os nomes dos autores, copistas e de mui-
se sacrificam no casamento, o sacrifício não
branco apertado, em torno da cabeça, por
de Sherazade, adiando sua morte indefinida-
tos compiladores perdeu-se, devido a tradição oral dos
é feito em nome de um ou de outro, mas em
uma corda de pelos de camelo, que lhe dava a
mente. Até que passadas mil e uma noites,
narradores e da grande difusão, a qual também ocasio-
nome da unidade da relação. A imagem chi-
majestade de um antigo sacerdote.” (Amicis
o sultão, apaixonado pela envolvente narra-
nou o surgimento de diversos ramos como o egípcio e
nesa do Tao, com a treva e a luz interagindo,
apud Tahan, 2015, apud Galland, 2015)
dora, suspende a ordem cruel.” (Saraiva loja
o sírio, por exemplo. O registro mais antigo, datado de
mostra a relação entre yang e yin, masculino
Online, acesso em 2018)
879 d.C., mostra um fragmento de início de história. O
e feminino, e é isso que vem a ser o casamento.
documento mais denso seria do séc. XV. Como os per-
É nisso que vocês se tornam quando se casam.
Essa narrativa labiríntica demonstra a riqueza
gaminhos antigos não possuíam a quantidade exata de
Você deixa de ser aquele um, solitário; sua
do trechos, personagens e acrescentando novos fatos.
que a mistura de histórias consegue atingir. A própria
mil e uma histórias, o enredo ficou aberto para comple-
identidade passa a estar na relação. O casa-
Eles também buscavam criar ganchos e cadeias para
origem de Mil e Uma Noites é carregada de intertex-
mentos. Ou seja, a quantia de contos que se dizem das
mento não é um simples caso de amor, é uma
estimularem os ouvintes a voltarem posteriormente.
tualidade. Tahan (2015 apud Galland, 2015) afirma que
Mil e Uma Noites são “muito mais de dois mil” (Litera-
provação, e a provação é o sacrifício do ego em
Nota-se, então, que não por acaso a narrativa de Mil e
segundo Massudi (escritor do século XI) as histórias
tura Universal - Livro das Mil e Uma Noites - Mamede
benefício da relação por meio da qual dois se
Uma Noites – Alf Lailah oua Lailah – era uma das fa-
foram tiradas de um livro persa chamado Hezar Afsa-
Jarouche - Pgm 03, 2013, 29:35 min.).
tornam um.” (Campbell, 2011, p.7)
Tahan comenta que era comum os contadores colherem histórias de viajantes e de terras distantes, alteran-
46
47
Jarouche (Literatura Universal - Livro das Mil e Uma Noites - Mamede Jarouche - Pgm 03, 2013) tam-
ficações na obra, as quais são listadas na apresentação
de mais nada, em uma questão de gênero, pois a dife-
da edição da Nova Fronteira (2015):
rença biológica dos sexos é a metáfora mais usual para a
bém destaca a relação mercantil derivada da cultura
imagem coletiva do dualismo, dos opostos. E isto causa
Dubosc (2013a, s/p.) ainda acrescenta:
“Em uma sociedade fortemente patriar-
árabe, como os relacionamentos/paixões se baseiam na
“a) Aproveitou, apenas, uma quarta par-
troca e como contos equivalem a vidas. O inferior/do-
te dos contos originais. A sua escolha foi re-
Já vimos que Jarouche (Literatura Universal - Li-
levam o ouvinte a um lugar encantado, onde
minado conta histórias ao superior, uma forma de in-
cair sobre as lendas mais curiosas e de enredo
vro das Mil e Uma Noites - Mamede Jarouche - Pgm
a sabedoria do Eros feminino é preservada
terceder/influenciar, ou seja, uma permuta diplomática.
mais palpitante.
03, 2013) cita a questão da supressão do feminino como
para a cura das gerações futuras.”
impactos culturais.
cal, as rainhas 'traidoras' eróticas das Noites
Além disso, comenta que as histórias “absurdas” são
b) Teve o cuidado de abolir todas as ce-
uma das temáticas da obra. Segundo ele, outro tema
propostas justamente como absurdos e foram interpre-
nas que pudessem ferir os princípios morais
que aparece é a sororidade, protagonizado por Shera-
Ele explica essa necessidade ao contar que, antes
tadas pelo ocidente equivocadamente como realismo.
cristãos.
zade quando a personagem afirma que ou a morte de
de Maomé, Alá era cultuado juntamente com suas três
suas iguais parará ou ela morrerá junto. Perante isto,
filhas – Banat Allah.
Esta visão ganhou posteriormente o nome de orientalismo por Edward Said (1996). O autor define o termo
c) Suprimiu do enredo dos contos todos os versos, poemas e citações poéticas.
como “um modo de resolver o Oriente que está baseado
d) Procurou fazer uma tradução que fos-
no lugar especial ocupado pelo Oriente na experiência
se isenta de expressões chulas ou pouco edi-
ocidental européia” (Said, 1996, p.13). Isso por causa
ficantes.” (Tahan, 2015 apud Galland, 2015)
de três fatores: as grandes, antigas e ricas colônias no
mesmo a autoria das Noites sendo nublada, é relevante citar a declaração de Malek Cheleb:
Já no cristianismo, no qual Galland estava inserido, também ocorre a supressão do Eros feminino. A obra parece, portanto, compensar a anulação do feminino
“[...] os autores das Noites eram de fato
realizada em ambas as religiões. É o confronto das ener-
mulheres segregadas no harém, que conse-
gias atribuídas ao masculino e ao feminino que permeia
oriente; a concorrência cultural; e a própria localização
Assim, o autor adequou o texto ao seu contexto
guiram reinventar um mundo no qual de-
as Mil e Uma Noites, enriquecido pela intertextualida-
geográfica adjacente à Europa. Esta relação de oposição
temporal e cultural. Percebe-se, então, que as diversas
sempenharam um papel primordial. A esse
de que o forma. No capítulo seguinte, veremos melhor
levou o próprio ocidente europeu a definir suas ideias
alterações e seleções realizadas não só por Galland, mas
respeito, as Noites são uma extraordinária
como isso desdobra-se na obra.
e personalidades, sendo os franceses e britânicos os que
por todo o trajeto da obra no mundo árabe, acabaram
iniciação aos mistérios plurais femininos
mais praticaram essa tradição.
por realizar o processo de recriação descrito por Cam-
onde o Eros imaginário conseguiu preservar
É a partir disto que é valido destacar a contribui-
pbell no início do capítulo. O cerne por trás da Noites
seu profundo valor em tempos não propícios,
ção de Antoine Galland, primeiro tradutor do texto uti-
pode ser esclarecido por Dubosc (2013c), quando conta
triunfando assim sobre todos os mecanismos
lizado neste trabalho. O francês trouxe à Europa pela
que o estudo da consciência folclórica, mítica e poética
de segregação, abdução e subordinação jurí-
primeira vez as histórias de Mil e Uma Noites. Como
aponta para o enfrentamento do paradoxo dual como
dica’.” (Cheleb apud Dubosc, 2013a, s/p.)
tradutor e compilador, o autor também realizou modi-
principal temática. Esse paradoxo se manifesta, antes
48
49
O arquétipo da Anima e do Animus
Segundo o conceito junguiano, arquétipo é um con-
nia entre o consciente e o inconsciente. No segundo, a
teúdo inconsciente da psique derivado da “mente pri-
dissociação entre os dois é provocada pela rejeição do
mitiva humana” e, portanto, presente na espécie huma-
inconsciente. Isso acontece, pois, o processo de indivi-
na mesmo que sob variações imagéticas. Sua principal
duação pode mostrar-nos:
característica é conter um tom específico de sensibilidade, capaz de dar significação para o ser vivente: o
“uma série de dolorosas constatações
poder numinoso ou a energia psíquica. Quando vista
do que existe de errado em nós e em nossas
sob o aspecto social, na qual a sociedade seria como um
atitudes conscientes. Temos então que dar
indivíduo único, é esta energia que cria “mitos, religi-
início a esse processo engolindo todo tipo de
ões e filosofias que influenciam e caracterizam nações e
verdades amargas” (Jung, 2008, p.221).
épocas inteiras” (Jung, 2008, p.98). Dentro dos arquétipos temos diferentes histórias e
A anima e o animus são figuras interiores que ge-
“figuras interiores”. Estas seriam como personagens bá-
ralmente aparecem sob os aspectos duais do feminino e
sicos que compõe nosso ser, como o self, por exemplo.
masculino. A anima representa:
Cada uma delas traz diferentes questões à mente do indivíduo, podendo apresentarem-se sob dois aspectos
“os humores e sentimentos instáveis, as
– o positivo e o negativo. No primeiro, há uma harmo-
intuições proféticas, a receptividade ao irra51
cional, a capacidade de amar, a sensibilidade
dentro de si. Além disso, são de grande importância
impositiva e violenta, que obriga o indivíduo a deter-
é dar firmeza e convicção, para que a pessoa tenha capa-
à natureza e, por fim, mas não menos impor-
para os relacionamentos amorosos, pois auxiliam na
minada resolução através da agressividade. “É uma
cidade de ousadia quando necessário. Por isso o animus
tante, o relacionamento com o inconsciente
escolha do parceiro. Quando presentes em seu aspecto
opinião que parece razoável, mas que está fora de pro-
apresenta situações desafiadoras e misteriosas, afim de
(Jung, 2008, p.234-235)”.
negativo, o indivíduo pode projetar uma dessas figu-
pósito” (Jung, 2008, p.251). Sob a figura do assassino,
desenvolver simultaneamente a objetividade.
ras no companheiro, relacionando-o a ideias ilusórias e
da fera, do senhor da morte e do ladrão – muitas vezes
Fabrice Dubosc (2013c) faz uma correlação entre es-
Já o animus representa a iniciativa, a teimosia, a co-
características ruins. A pessoa também pode ser toma-
sedutores e belos – geralmente define como as coisas
sas duas figuras arquétipas e a história de Mil e Uma
ragem, o planejamento, a objetividade, o raciocínio frio
da pelos desejos de uma delas e induzir o par a fazer o
“deveriam ser”, afastando o indivíduo da realidade. É
Noites. Segundo ele, a temática principal da obra é o
e a sabedoria espiritual.
mesmo, levando “o diálogo ao seu nível mais baixo, ge-
frio e destruidor como a anima, mas costuma aparecer
conflito entre o poder e o desejo, com suas diversas nu-
Ambos possuem quatro estágios de desenvolvimento:
rando um desagradável clima de irascibilidade e emo-
como a figura no comando da situação – aquele que
ances. No prólogo, como já vimos, o rei Shahriar passa
• No primeiro, predominam as qualidades instinti-
ção” (Jung, 2008, p.259).
tem poder sobre – e quando o indivíduo desobedece
de governante admirado para um personagem neuróti-
Dentro dos sonhos, quando presente em seu aspecto
às ordens, acaba morto ou em uma longa e sofrida
co ao descobrir a traição das rainhas. Suas infidelidades
• No segundo, os elementos sexuais são acrescidos
negativo, a anima aparece como uma figura irritadiça,
busca. A malícia, a brutalidade, o mistério, a rigidez
evidenciam o descontentamento de ambas com os casa-
com romance e beleza, no caso da anima, e com iniciati-
depressiva, incerta, insegura e suscetível, criando um
e a incontestabilidade caracterizam-no, assim como o
mentos, aparentemente por dois fatores: a estranheza
va e planejamento, no caso do animus;
clima psicológico sombrio de apatia e medo de doen-
discurso calculista.
dos reis perante a sexualidade feminina (fator perturba-
vas e biológicas, como a força física e a atração sexual;
• No terceiro, as figuras transmutam-se para ima-
ças, acidentes e impotência. Geralmente sob uma figura
Quando sob os aspectos positivos a anima é como
dor) e a supressão do feminino na instituição do casa-
gens de devoção e admiração, aqueles a quem se toma
mágica, como uma feiticeira, sereia ou donzela veneno-
uma sacerdotisa, uma guia espiritual dotada de intui-
mento devido à sociedade patriarcal. Ou seja, a relação
por exemplo e por quem se tem respeito;
sa, engana o indivíduo com a promessa de felicidade
ção e sabedoria. É ela quem permite que o indivíduo
de ambos os irmãos com suas esposas não harmoniza a
• No último estágio tornam-se mediadores, que
do ninho materno. Porém, ao perseguir essa ilusão (não
perceba e analise uma situação além do espírito lógico,
dualidade do matrimônio, nem seus internos princípios
transcendem a pureza e a santidade, de “uma experi-
desprender-se da mãe e criar autonomia), acaba por
entendendo mais claramente o que se encontra em seu
da anima e do animus consequentemente.
ência religiosa por meio da qual a vida adquiri novo
morrer. A frieza e a violência com que castiga o ser asse-
inconsciente. Ao levar a sério os sentimentos, humo-
A partir disso, apesar do governo do rei ser aparen-
sentido” (Jung, 2008, p.259).
melha-se à própria natureza. O capricho, a mesquinhez,
res, expectativas e fantasias apresentados pela anima e
temente bom, o mesmo vacila perante a primeira im-
É importante ressaltar que o indivíduo só consegue
a ferocidade, a dissimulação e a provocação erótica são
exercitando-os em alguma atividade, permite explorar
previsão pessoal no caminho, evidenciando a falta de
receber e entender as mensagens do self posteriormente
as principais características, enquanto identifica-se no
sua própria mente e potencialidades. O animus também
amadurecimento do personagem.
ao desenvolvimento dessas figuras. Ou seja, o ser hu-
seu discurso a distorção da situação por enigmas e es-
aproxima o indivíduo das possibilidades de sua psique
mano só consegue acesso ao Homem Cósmico interior
quemas intelectuais.
para com atividades e para com si própria, mas o faz
“O papagaio demoníaco significa o ne-
exercitando a confiança do ser na sua figura. O objetivo
fasto espírito de imitação que nos faz errar o
(uno, transcendente) quando alinha os aspectos duais
52
Já o animus negativo manifesta-se como uma figura
53
alvo e nos deixa psicologicamente petrifica-
portanto, não confiáveis. Logo, a ordem de morte das
poucos a dissociação entre o lado consciente e incons-
dos. Como assinalei anteriormente, o proces-
“esposas de uma noite” parece-lhe razoável (como ani-
ciente do rei, através de um labirinto narrativo. De fato,
so de individuação exclui qualquer imitação,
mus), pois ignora convenientemente o contexto opres-
os islâmicos medievais assinalaram os contos como
do tipo ‘papagaio’” (Jung, 2008, p. 289).
sivo vivenciado pelo feminino, analisando e tendendo
al-asmar wa I-Khuriyat – palavras delirantes da noite
apenas para o seu lado da situação. Do mesmo modo,
(Dubosc, 2013a, 2013b).
Ou seja, ele não pode mais seguir os passos do pai
ignora completamente o fato de que a companheira do
para resolver a situação e, com isso, busca uma outra
gênio foi sequestrada antes de seu próprio casamento,
“Como Ísis recria o falo perdido de Osíris
figura para identificar-se.
encarcerada e obrigada a relacionar-se com o monstro.
depois de recompor seu corpo desmembrado,
Todas suas traições traduzem seu desgosto, são sua
a narração plural de Shehrazade restaura es-
única forma de reação e não uma má intenção inata.
tranhamente o que falta ao rei, concedendo-
A história da jovem raptada e do gênio, então, assemelha-se a uma alegoria fantástica da própria situação
-lhe acesso a um novo sistema de significado
do rei e é ela que o influencia na decisão de ordenar a
Sherazade aparece então como uma “terapeuta”,
morte das esposas logo após a primeira noite de núp-
uma vez que apresenta ao rei diversas histórias de em-
cias. Partindo do pressuposto descrito por Jamal Ben-
bate entre o poder (com suas responsabilidades e mo-
cheik (apud Dubosc, 2013c) de que a traição das mulhe-
rais) e o desejo (com seus impulsos de prazer e vida).
Isso, pois, ao narrar o conflito entre poder e desejo,
res “constitui um crime contra a ordem religiosa, moral,
Ela não o analisa, mas dá voz a todos os personagens
Sherazade também toca em temas como o perdão e o
política e social” e de que "a cultura árabe-islâmica atri-
do prólogo: os reis, o gênio, a jovem raptada, as rainhas
destino. O personagem pode então aceitar e transcen-
bui a responsabilidade do mal à mulher”, o rei repreen-
e os escravos (com os quais as rainhas consumaram as
der sua culpa, refazendo sua visão do feminino e modi-
de a sua culpa, identificando-se com o gênio. Esse últi-
traições). Mostra assim, diversas animas e animus, ne-
ficando sua identidade. Só assim ele torna-se preparado
mo pode ser considerado uma manifestação do animus
gativos e positivos. A sequência de contos não explica a
para vivenciar o casamento em sua essência.
maligno, que rapta, estupra e encarcera a mulher. De
situação do sultão, nem chega a uma conclusão sobre o
maneira coercitiva, priva-a da liberdade e a induz a um
conflito. O que o prende às narrativas é a identificação
comportamento co-dependente. Demonstra, portanto,
com as situações, emoções e personagens. Ela também
um abuso de poder, no qual sua palavra é absoluta.
não o pressiona a admitir sua culpa, mas, ao interrom-
Essa mesma convicção de inocência o faz projetar
per as histórias no clímax e condicioná-lo a esperar pela
no feminino sua anima negativa. Torna assim as mu-
conclusão na noite seguinte, levo-o a reflexão diurna
lheres figuras naturalmente ardilosas e instáveis, sendo,
e consciente dos fatos contados. Assim, reconstrói aos
54
vivo e ordenador” (Dubosc, 2013a, 2013b).
55
Ler e Ver – O embate da legibilidade
“O ato de ler cria seu próprio silêncio” (Unger, 2007,
nítidos (Rayner e Pollatsek, 1989, p.126;
p.42). Quando o leitor está engajado, é comum que o
Wendt, 2000, p.10). À esquerda deles, dois
ambiente ao seu redor desapareça. Sua atenção foca-se
ou quatro caracteres apresentarão uma que-
na superfície bidimensional e a introspecção leva-o cada
da gradual de nitidez em direção à esquerda.
vez mais ao piloto automático. A partir disso, os tipos co-
À direita, mais ou menos doze caracteres
meçam a desaparecer também. Ficam as ideias, imagens,
também ficarão menos nítidos gradualmen-
vozes e sons. Enquanto o conteúdo flui diretamente para
te. Como regra, a parte da fixação que um
a mente, o entorno e o próprio texto materializado esta-
leitor imediatamente reconhece e entende é
cionam no nível subconsciente. Isto, pois, durante o pro-
menor do que o todo – frequentemente, tem
cesso de leitura os olhos viajam pelas linhas através de
somente uma palavra e parte da próxima
séries de saltos – os sacádicos. Ou seja, o leitor se “fixa”
palavra, mas também pode ter três palavras
no texto de tempos em tempos. Seu olhar é direcionado
curtas.” (Unger, 2007, p.57)
para a extremidade esquerda e depois “pula” para alguns caracteres à frente (leitura ocidental).
A duração dos saltos e da fixação bem como a quantidade de caracteres absorvidos depende, sobretudo, da
"Imagine uma fixação que absorve dezoi-
experiência do leitor. Quanto mais curtas e conhecidas
to caracteres: somente dois ou três estarão
são as palavras, mais rápido este processo ocorre e mais
57
Fig.3 – Representação visual do processo de leitura de uma linha
Fonte: Unger, 2007, p.57
caracteres são retidos. Bem como quanto mais conhe-
Esta rapidez denota a inconsciência – característica
cidas são as formas dos tipos e as disposições (tanto
marcante do modo automático – de todas essas etapas.
de layout quanto de construção linguística), mais elas
Somente assim a consciência pode permanecer ocupada
contribuem para acelerar o processo. Outro fator de in-
exclusivamente com as ideias do texto.
fluencia é o tipo de leitura – de romance, cartaz, dicio-
Sendo assim, há um conjunto de fatores que afetam
nário, etc. Um anúncio, por exemplo, é percebido e lido
a leitura fluida: a familiaridade do leitor com o tema
de maneira diferente de um livro. Para que o leitor entre
e o autor, o tipo de leitura, as diagramações e o dese-
no estado automático, é preciso volume de texto e ritmo
nho dos tipos propriamente ditos. Isto sem contar fato-
de leitura. Quando entra neste, o indivíduo absorve vá-
res externos, como o ambiente. Segundo Walter Tracy
rias palavras de uma vez, verificando ou modificando
(apud Unger, 2007), o inglês possui duas palavras para
suas expectativas perante o texto. Sua mente passa a
referir-se a facilidade de leitura: legibility (legibilidade)
projetar deduções baseado no conhecimento prévio e,
e readability (leiturabilidade). O primeiro fala sobre
justamente por isso, a experiência do leitor é o maior
a facilidade de se distinguir uma letra de outra – por
fator a influenciar a eficiência da leitura em tempo e
exemplo diferenciar o I maiúsculo do l minúsculo. Tem
quantidade. Segundo pesquisas, leitores com prática e
relação com as formas e detalhes de cada letra. Já o se-
bem informados pulam grandes quantidades de pala-
gundo abrange um contexto mais amplo, é relativo ao
vras. Ličko (1990, p.12 apud Unger, 2007, p. 65) afirma
nosso conforto durante a leitura. Ou seja, diz respeito
que “leitores leem melhor aquilo que leem mais”.
ao quanto é fácil ler fluidamente algo, englobando a forma das letras, a disposição do texto e até mesmo à
“Em um quarto de segundo, mais ou
maneira de redação do escritor. Em analogia com uma
menos o que dura uma fixação, lemos al-
janela, se a mesma for discreta, deixará a vista livre, exi-
gumas palavras, encontramos seus signifi-
bindo melhor a paisagem. Se ela possuir um vitral, ele
cados, trabalhamos a reconstrução de uma
é o observado, deixando a paisagem difícil de se distin-
frase, formamos nosso entendimento e guar-
guir (Unger, 2007).
damos parte disso na memória” (Unger, 2007, p.59). 58
Isto levanta um debate sobre a importância de um texto legível. Supõe-se que a memória esquematiza os
59
Fig.4 – Armação básica da letra “a”
“Quando se evoca a escrita para LER e a
é preciso mais do que isso”. Ou seja, as variações de te-
escrita para VER, pensa-se por um lado nos
las, folhas e usos demandam tipos diferentes em peso,
textos de leitura contínua, literária e discre-
largura e estilo. Acontece que ler e ver são ações distin-
ta, e por outro lado, na escrita de titulação,
tas, quase impossíveis de se realizar ao mesmo tempo.
ornamental, publicitária e sedutora” (Man-
Em um texto curto, não é um problema, mas em um
del, 2006, p.133).
texto longo fica claro a impossibilidade, devido, justamente, ao próprio mecanismo de leitura explicado an-
Ou seja, de um lado temos a preocupação com a
teriormente. Para que a pessoa entre com os processos
legibilidade e a leiturabilidade, com forte tendência às
subconscientes e se fixe nas ideias, a percepção deve
convenções e do outro uma mescla entre os limites do
estacionar em algo familiar.
texto e da imagem, onde diminui-se a facilidade de lei-
Foi questionando o aspecto legível das tipografias
tura em prol de uma expressividade. Essa possibilidade
sem serifa que estudiosos se opuseram ao seu uso em
deriva do alto grau de reconhecimento da mente huma-
textos corridos. O próprio Mandel as caracteriza como
na, que consegue lidar com amplas variações de corpos
sem alma, neutras e com uma “certa ameaça à nossa he-
de tipos, larguras e espaçamentos.
rança cultural” (Mandel, 2006, p.147). Ele defende que dentro do contexto industrial e publicitário, essas tipo-
Fonte: Frutiger, 2007, p.170
“Evidentemente, os leitores são capazes
grafias servem bem as funções atribuídas. Porém, em
de compreender uma comunicação escrita
textos literários, carregados de sutilezas linguísticas e
em qualquer um desses estilos. No entanto,
culturais particulares, seu uso “seria considerado into-
desenhos das sílabas e palavras. Logo, os caracteres
seu esforço para decifrar o conteúdo depende
lerável” (Mandel, 2006, p.147). O autor vai ainda mais
possuem uma armação básica e o “estilo” da letra mo-
sobretudo do grau de importância do texto”
fundo, afirmando que:
dela-se no entorno dela, na zona de ressonância (Fruti-
(Frutiger, 2007, p.169). “Uma língua falada e escrita que se
ger, 2007). Se nesta zona encontram-se formas que fo-
60
ram assimiladas em quantidade, há maior conforto na
David Carson (apud Unger, 2007, p.34-35) afirma
pretende universal empobrece o pensamen-
leitura. Se nela situam-se inesperadas formas, o leitor
“‘Não confundam legibilidade com comunicação.’ Le-
to simplificando-o, abandona os conceitos e
demora mais para absorver o texto.
gibilidade não esgota a questão [...]: para comunicação,
mitos dos povos, desenraiza e pode levar à 61
morte de uma cultura – enquanto que a mul-
de escritas como a arábica uma espécie de profanação
crita refletindo a identidade cultural do leitor com tex-
espaço dentro e entre elas; quanto maiores, mais finas,
tiplicidade das formas escriturais, associadas
aos nossos olhos.
tos ligados à sua língua é um fator muitas vezes capital
estreitas, leves e com menos espaços dentro e entre elas.
para boa legibilidade” (Mandel, 2006, p.147). Isto pois,
São destes estudos que provem séries de regras para tipografia com o fim de torná-la cada vez mais legível.
a diversas línguas e culturas alimenta as diversas correntes de pensamentos, reflexos
“É interessante notar que são justamente
ambos os estilos tipográficos são influenciados pela
de psicologias particulares e garante a liber-
os turcos e os persas, povos não árabes que –
cultura, porém, as criadas para leitura deixam esses as-
Nesta linha de raciocínio, indaga-se sobre um já
dade de expressão das identidades culturais,
talvez por ignorarem a língua árabe imposta
pectos menos evidentes. Elas se aproximam mais das
conquistado desenho ideal de tipos. Entretanto, as di-
contrapondo-se ao ideal de uniformização do
pelo Islã – elevaram-na ao máximo a uma
armações básicas que, embora não sejam atemporais,
ferentes funções atribuídas à escrita e a possibilidade
mundo e à centralização opressiva.” (Man-
existência cultural própria e transcenden-
duram desde o século quinze na sociedade ocidental
de criar-se tipos legíveis com zonas de ressonância di-
del, 2006, p.149).
do os textos do Alcorão sobre os muros das
(Unger, 2007).
ferentes mostra-nos que os “tipos ideais” não existem.
mesquitas, algumas vezes completamente
O limiar entre escritas para ler e ver é difícil de de-
As sem serifas, tão duramente criticadas por não serem
Ainda sim, Mandel reconhece o espaço das tipogra-
ilegíveis, exprimiram pela beleza sedutora de
limitar. O ritmo da leitura convencional – comumente
convencionalmente legíveis, dominam atualmente o ce-
fias para ver, as quais no afastam do texto (o qual se tor-
suas formas abstratas e fulgurantes o indi-
feita em 9, 10 ou 11 pontos – nos oferece apoio para o re-
nário digital. Criaram assim uma nova convenção: neste
na um “pré-texto”) para conseguir exprimir através da
zível e o inexprimível da sua fé religiosa.”
conhecimento e consequente fluidez. Mas em distâncias
novo ambiente, é mais comum lê-las do que as antigas
escrita o indizível pela linguagem. Assim, comunicam
(Mandel, 2006, p.175)
maiores, ou sob pouca luz, ou quando nossos olhos não
serifadas. Não parece haver, então, um esgotamento
funcionam mais tão bem, prefere-se ajustes para com-
dos tipos necessários. Marcel Wanders (Van Eeuwen,
pensar essas necessidades – geralmente aumentando o
2002, p.18 apud Unger, 2007, p.69) sugere:
melhor o pensamento humano, que nunca será completamente traduzido pelas palavras. Nessa modalidade,
Contudo, reitera que arrancadas de sua função
forma e conteúdo realizam uma simbiose. Em especial,
original, material ou espiritual, perdem os mistérios
as mitologias muitas vezes utilizaram-se desta possibi-
da linguagem em comum, uma vez que se mudam os
lidade da escrita – como a stoicheion dos gregos e os
destinatários. Tornam-se obras de arte, peças de museu
“[...] mesmo que as formas das letras se-
de nossa memória coletiva alguma noção
hieróglifos egípcios citados anteriormente. Não era ape-
esvaziadas de sentido. Podem apenas refletir as proje-
jam obras do acaso, elas ainda assim se tor-
muito consolidada e brincar com ela até que
nas um meio de dificultar e restringir as informações,
ções de quem olha, que são a parte universal e intem-
naram bastante adaptadas aos olhos dos lei-
se possa devolvê-la ao dono, de forma que
mas sim um sacrifício da legibilidade em prol da “bele-
poral contidas nas obras e que pertencem a todos os
tores, dentro das capacidades dos designers
ele reconheça o novo design como um ami-
za teatral”. Em contrapartida, afirma que a escrita latina
homens. Em compensação, uma escrita voltada para
de tipos” (Unger, 2007, p.82).
go querido de longa data, porém, ao mesmo
é pagã, dessacralizada, devido à troca do divino pelo
leitura, embora mais duradoura, não deve abandonar
humano na Renascença. Consequentemente, os temas
os traços culturais. Já vimos a forte oposição do autor ao
Deste modo, tipógrafos passaram a adaptar as le-
mundanos proliferaram-se, tornando a transliteração
universalismo e o desprendimento da função. “Uma es-
tras: quanto menores, mais largas, robustas e com mais
62
espaçamento entre os elementos verticais.
“A melhor maneira que conheço é pinçar
tempo, um novo amigo”. Além disso, segundo Mandel (2006, p. 175): “Novas
63
Fig.5 – Oito “a”s de tipografias diferentes sobrepostas por Frutiger, mostrando as massas de preto comuns
crenças exigem novas escritas, que irão revelar a alma regenerada do homem”. Retomando a ideia de armação básica e zonas de ressonância de Frutiger (2007) entende-se que uma das possibilidades é modelar o entorno da parte esquemática para adaptá-lo conforme função e conforme conceito. Segundo Bringhurst (2006, p.15), os princípios da tipografia não são:
“um conjunto de convenções mortas, mas costumes tribais de uma floresta encantada, onde vozes ancestrais ressoam em toda direção e onde vozes novas passam, indo em direção a formas das quais não há registro”. Como “voz ancestral” foi tomada a base esquemática dos caracteres e as massas de preto comuns da comparação de tipografias para leitura. Assim, criou-se uma tipografia para ler, correlacionada com a escrita e a arquitetura de mesquitas. Preserva, assim, aspectos culturais, embora os caracteres ainda estejam próximos ao convencional para leitura.
Disponível em: https://i.pinimg.com/originals/d1/a6/65/d1a6651b2f937512df032ad6bf64843e.jpg Acesso em: 17 mai. 2018
64
65
O símbolo do labirinto e a geometria islâmica
“Dois tipos de formação de sinais, o nó e
ação, além de ser uma analogia para intertextualidade.
o labirinto, servem de base para simbolizar
Vale ressaltar alguns símbolos que podem ser
o caminho que conduz à meditação, o árduo
acrescentados ao projeto como complementos. Entre
percurso para se chegar à perfeição e também
eles o “nó górdio”, considerado como “a chave para
as penitências impostas pelos cristãos medie-
o Oriente”, e as mandalas hindus e budistas, as quais
vais etc.” (Frutiger, 2007, p.236)
também são:
Jung (2008) também confirma isso ao afirmar que re-
“destinadas à meditação sobre sabedoria
presentações comuns para o inconsciente são conjuntos
e com um profundo significado em diversos
de corredores, porões com vários caminhos e labirintos.
espaços terrestres e cósmicos, ou círculos de
É a partir disso que se cria a tríade norteadora da caixa
vida, pelos quais o ser humano tem de passar
puzzle: intertextualidade, inconsciente e labirinto. O pri-
para poder chegar ao centro, ao Nirvana”
meiro está contido na construção narrativa e histórica de
(Frutiger, 2007, p.237).
Mil e Uma Noites. O segundo está presento tanto no conteúdo da obra (arquétipos) como no processo de leitura (percepção subconsciente). O terceiro é um símbolo gráfico para o inconsciente e para o processo de individu-
Embora visualmente diferentes, ambos demonstram a ideia de progresso não linear. Além disso, é válido citar brevemente a geometria
67
Fig.6 – Grids da tesselação de um padrão de 4, um de 6 e um de 5 com outras formas
islâmica. Segundo Broug (The complex geometry of Is-
• A partir dos pontos do círculo, eram traçadas li-
lamic design - Eric Broug, 2015), esses desenhos inicia-
nhas ligando-os. Essas linhas convergentes são chama-
ram-se aproximadamente no século VIII d.C., juntamen-
das de linhas de construção;
te com o começo da religião. Motivos preexistentes nas culturas romana e persa ganharam nova expressão, impulsionados pelos avanços matemáticos e pelo forte uso da abstração. Então, passaram a cobrir as superfícies de
• Posteriormente, apenas alguns segmentos dessas linhas eram escolhidos; • Por fim, o padrão individual obtido era repetido na vertical e horizontal – processo chamado de tesselação;
mesquitas, madraças, palácios e casas com uma geome-
• Padrões de 4 encaixam-se em uma grade quadra-
tria complexa. Contudo, essa complexidade era alcança-
da e os de 6, em uma hexagonal. Os de 5 necessitam de
da através da multiplicidade caleidoscópica oriunda de
uma grade intercalada entre pentágonos e outras for-
grids simples. Em uma explicação resumida:
mas para tornarem-se uniformes.
• Um círculo era inserido dentro de um quadrado e então subdividido (em padrões de 4, 5 ou 6);
Fig.7 – Demonstração das linhas de construção de um padrão de 4
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=pg1NpMmPv48 Acesso em: 17 mai. 2018
Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=pg1NpMmPv48 Acesso em: 17 mai. 2018
68
69
“O sinal disposto de forma a compor um ornamento esconde-se como unidade e torna-se parte integrante de uma estrutura. Frequentemente, quase não é possível reconhecê-lo em detalhes, mas sua presença misteriosa reforça a busca por seu significado, por sua expressão” (Frutiger, 2007, p.47) Assim, a geometria ganha simbolismo através das partes invisíveis que norteiam sua construção e, ao aliar-se à ornamentação, ganha ainda mais intensidade e complexidade.
Fig.8 – Demonstração da tesselação de um padrão de 4
Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=pg1NpMmPv48 Acesso em: 17 mai. 2018
70
Requisitos de Projeto
Mil e Uma Noites é uma história permeada por mitologia, cristalizada nas suas versões escritas conforme os compiladores, sendo que o conteúdo de seus contos disserta justamente sobre os antagonismos e parcerias de dois arquétipos (Anima e Animus). Em paralelo, sua forma narrativa – bem como o processo histórico pelo qual passou – evoca a figura do labirinto. Ou seja, remete a prosa não linear, repleta de bifurcações. Por isso escolheu-se como produto final uma caixa-puzzle adesivada com algumas das histórias de As Mil e Uma Noites. Para tanto, foram criadas: •
Uma tipografia;
•
Uma caixa-puzzle;
•
E as diagramações dos contos nas superfícies da caixa.
O conceito básico da tipografia é transparecer o movimento e a graça das escritas árabes de mesquitas, bem como remeter a algumas formas arquitetônicas das mesmas. Já o da caixa-puzzle, é permitir uma leitura labiríntica do ponto de vista plástico. Por fim, as diagramações utilizarão a tipografia para fazer a sobreposição dos arquétipos presentes no conteúdo da história: a Anima e o Animus.
75
Tipografia
Cerne do projeto, a tipografia exige o planejamento e o cuidado com inúmeros detalhes. Segundo Unger (2007), a constante repetição de elementos superficialmente insignificantes gera uma ação orquestrada capaz
de leitura convencional físico; •
Manter o padrão de serifas adnatas presentes
nas tipografias para ler analisadas; •
Definir altura de x, ascendente, descendente e
de transmitir conceitos. “Frequentemente, detalhes que
largura dos caracteres a partir da análise das tipografias
são visíveis em tamanhos grandes parecem desapare-
para ler;
cer em tamanhos pequenos” (Unger, 2007, p.111). Além
•
disso e ainda variando conforme escala, a alternância entre formas pesadas e leves gera um “tom” aparente de preto no texto impresso. Visando manter legibilidade e inspirar-se na tipografia de mesquitas, selecionou-se as seguintes diretrizes: •
Utilizar a pena quadrada para aproximar as
Dar prioridade para os caracteres e sílabas uti-
lizados no texto selecionado de Mil e Uma Noites. As particularidades das formas, contraformas e sílabas foram estudadas no momento da criação da tipografia para ler. Como base, foram utilizados os livros: Enquanto você lê (Unger) e Diseñar tipografia (Karen Cheng).
curvas da tipografia árabe; •
Encontrar um equilíbrio entre a inclinação da
pena usada para tipos árabes e para tipos latinos; •
Manter o padrão de serifas presentes no ritmo
77
Livros-objetos
Os livros-objetos surgem na primeira metade do
“Coleções de madeira, marfim, tabletes
século XX, com “experimentos tipográficos sobre su-
de metal ou folhas de papel, pergaminho ou
portes inesperados, trabalhos futuristas de lata e elabo-
material similar, em branco, com escritos ou
rações surrealistas, principalmente, incluindo o uso da
impressos, costurados ou ligados” (Derdyk,
encadernação como forma de arte e formas tridimensio-
2013, p.24).
nais herdeiras ou paralelas ao poema-objeto” (Derdyk, 2013, p.20-21). Sua função fora do contexto da arte, é
Sendo assim, busca-se a criação de um livro-objeto
permitir que o usuário compreenda a obra duas vezes:
de leitura não linear, para descrever a o conceito norte-
pelo viés plástico e pelos nexos discursivos, ainda que
ador da peça: labirinto. Este é o símbolo utilizado para
ambos tenham um pouco do outro mesmo estando se-
o inconsciente (com seus arquétipos presentes dentro
parados. Ou seja, ainda que exista discurso na plasma-
de seus caminhos múltiplos) e para a intertextualidade
ção e plasmação no discurso, é a simbiose de ambas em
(confluência de histórias presentes em Mil e Uma Noi-
um objeto que dá forma ao livro-objeto.
tes). Para tanto, delimitou-se que:
As divergências classificatórias entre livros-objeto, livros de artistas e livros-obras não são o foco do trabalho e, portanto, não serão abordadas. Contudo, cabe apresentar uma definição para livros:
•
A leitura não linear será alcançada através de
pelo menos dois puzzles; •
A presença dos puzzles auxilia na sensação
de “caminho que conduz à meditação” (Frutiger, 2007,
79
p.236), característica do processo de individuação descrito por Jung e presente em Mil e Uma Noites; •
As superfícies devem ser preferencialmente
lisas para conter massas de texto; •
Os puzzles devem abranger um público-alvo
Decoração geométrica e simbólica
não especialista, ou seja, não devem ser puzzles de extrema complexidade; •
Os puzzles devem preferencialmente estar
contidos em uma caixa, afim de permitir que sua resolução possua uma “recompensa”, contida nos espaços internos da caixa; •
Como “recompensa” o usuário deve encontrar
objetos que remetam a história direta ou indiretamente.
Como elementos de apoio na composição das superfícies do livro-objeto, símbolos e a geometria islâmica, já citados, serão utilizados. São de interesse do projeto: •
Padrões construídos a partir do 4, uma vez que
o número representa os estágios de desenvolvimento da Anima e do Animus;
80
•
Símbolos relativos ao labirinto, como o “nó górdio”;
•
Mandalas, símbolos do processo de individuação.
81
Estudos de Concepção
Tipografia
Análise
partir das imagens geradas, mediu-se as zonas mais
O processo de criação tipográfica iniciou-se com
escuras para delimitar espessura do traço vertical, al-
a reprodução adaptada do experimento de Frutiger
tura de x, ascendente, descendente e a largura particu-
(2007). Contudo, as sobreposições aconteceram com
lar de cada caractere.
cada um dos caracteres e não somente com o caractere
Juntamente a isto, foram comparadas as massas de
“a”. O processo incluiu as tipografias Baskerville, Bodo-
texto das tipografias analisadas, ou seja, comparou-se
ni 72, Garamond, Helvetica, Optima, Palatino e Times
as manchas de preto resultantes de um parágrafo. Per-
Roman. Além disso acrescentou as tipografias Gill Sans
cebeu-se então a altura de x nitidamente maior das sem
e Verdana para igualar a quantia de tipos serifadas e
serifa – sendo a Palatino a única exceção –, permitindo
sem serifa.
assim contra-formas mais “arejadas”. Também se obser-
Para realizar o experimento, um caractere era sele-
vou as diferenças estéticas dos eixos mais inclinados e
cionado nas tipografias. Então, todas as formas eram
com contrastes mais visíveis dos tipos Baskerville, Bo-
coloridas com cinza 20% e alinhadas ao centro verti-
doni, Garamond, Times e Palatino, uma vez que elas
cal e horizontalmente. Por fim, recebiam o atributo de
transmitiam mais valores caligráficos, fortemente pre-
multiplicação, gerando assim as zonas mais escuras
sentes na escrita árabe de mesquitas.
(nas quais mais formas se sobrepunham) e as zonas
Com base nisso, construiu-se um pincel caligráfico
mais claras (onde as formas se desencontravam). A
com 0,5 cm de largura e o grid básico: 2,7 cm de altura
85
de x, 2,2 cm de ascendente, 2 cm de descendente e 0,5
Fig.10 - Exemplo de comparação das massas de texto em algumas das tipografias analisadas:
cm de compensação ótica para pontas e curvas.
fontes em 10pts, entrelinha 18pts e preto 100%
Garamond
Baskerville
Já fazia dez anos que os dois haviam se separado quando
Já fazia dez anos que os dois haviam se separado quan-
Fig.9 - Sobreposição de caracteres de diferentes tipografias para encontro
Shahriar, desejando fortemente rever o irmão, mandou-
do Shahriar, desejando fortemente rever o irmão, man-
das massas de preto comuns e das zonas de ressonância
-lhe um emissário, o seu grão-vizir (primeiro-ministro),
dou-lhe um emissário, o seu grão-vizir (primeiro-minis-
cuja missão comoveu Shahzenã.
tro), cuja missão comoveu Shahzenã.
Palatino
Optima
Já fazia dez anos que os dois haviam se separado
Já fazia dez anos que os dois haviam se separado
quando Shahriar, desejando fortemente rever o ir-
quando Shahriar, desejando fortemente rever o ir-
mão, mandou-lhe um emissário, o seu grão-vizir
mão, mandou-lhe um emissário, o seu grão-vizir
(primeiro-ministro), cuja missão comoveu Shah-
(primeiro-ministro), cuja missão comoveu Shahze-
zenã.
nã.
Helvetica
Verdana
Já fazia dez anos que os dois haviam se separado
Já fazia dez anos que os dois haviam se se-
quando Shahriar, desejando fortemente rever o ir-
parado quando Shahriar, desejando forte-
mão, mandou-lhe um emissário, o seu grão-vizir
mente rever o irmão, mandou-lhe um emis-
(primeiro-ministro), cuja missão comoveu Shah-
sário, o seu grão-vizir (primeiro-ministro),
zenã.
cuja missão comoveu Shahzenã.
Elaborada pela autora
Elaborada pela autora
86
87
Definição de caminho Com o grid e o pincel definidos, iniciou-se as pinturas das letras “h”, “o”, “p”, “v”.
de cada um deles. Cada metade das letras foi categori-
Fig.11 - Primeiras pinturas da letra "h"
zada em redonda, semi-redonda, reta, aberta e diagonal para padronizar estes espaçamentos. Por exemplo, “b”
Com a letra “h” definiu-se a inclinação do pincel, o
e “p” possuem a mesma “margem” direita da letra “o”.
estilo das serifas e a acentuação das curvas, posterior-
Definidos os espaçamentos (com suas devidas ex-
mente passadas para as letras “o” e “p”. Com o caracte-
ceções), iniciou-se o processo de ajuste de kerning. Ou
re “v” definiu-se o tratamento das linhas diagonais com
seja, pares de letras foram testados e ajustados para
as serifas. Após as pinturas, as letras foram vetorizadas
compensar espaçamentos demasiadamente largos ou
e testadas na impressão. Os testes impressos ocorreram
demasiadamente estreitos. É importante lembrar que
principalmente em tamanhos próximos aos 10 pts da
este processo, bem como o de espaçamento, auxilia na
tipografia Palatino e próximos de 2 cm. A partir dos
percepção de harmonia na distribuição dos caracteres,
testes, definiu-se mudanças nos vetores, que foram no-
criando uma mancha de texto homogenia.
Elaborada pela autora
Fig.12 - Primeiras vetorizações
vamente impressos e analisados. Para definição de mais parâmetros, letras como o “a”, “e”, “c” e “f” passaram pelo mesmo processo.
Pintura e vetorização Uma vez tendo os parâmetros de forma e contra-forma definidos, pintou-se todas as minúsculas. Depois, fo-
Elaborada pela autora
ram vetorizadas e testadas na impressão conforme descrito anteriormente. Uma vez finalizadas, repetiu-se o
Fig.13 - Primeiras versões do alfabeto
processo com as maiúsculas, os numerais e a pontuação.
Espaçamento e Kerning Por último, os caracteres foram colocados no programa Fontographer, onde definiu-se os espaçamentos
88
Elaborada pela autora
89
Caixa-Puzzle
Referências
tado final de superfícies mais lisas e contínuas. Também
Buscou-se referências de caixas-puzzle em canais do
nesta etapa definiu-se pela madeira como material, uma
YouTube, priorizando aqueles cujos encaixes ficavam
vez que ela possibilitava maior facilidade de manuseio
mais nítidos. Isto por dois motivos: facilidade de com-
para fabricação da peça.
preensão da criação do mecanismo de abertura e resul-
Fig.14 - Referência de caixa-puzzle com encaixe nítido
Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=5lsGsaLgeFE&t=107s&index=3&list=PL6kQcfpr3nyyoKepdAYyATJakSvIGixvL Acesso em: 11 ago. 2018
91
Fig.15 - Referência de caixa-puzzle com encaixe nítido semi-aberta e aberta
Fig.16 - Segunda referência de caixa-puzzle com encaixe nítido passo a passo para abertura
Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/569212840397916225/ Acesso em: 11 ago. 2018 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5lsGsaLgeFE&t=107s&index=3&list=PL6kQcfpr3nyyoKepdAYyATJakSvIGixvL Acesso em: 11 ago. 2018
92
93
Planejamento 40.00
52.00
102.00
15.00
Nesta etapa, definiu-se os objetos contidos na caixa-puzzle e o desenho técnico da caixa em si. No primeiro compartimento (frente da caixa) colocou-se uma lupa, pois o tamanho do corpo de texto impresso seria pequeno. No segundo compartimento (parte de trás), op-
192.00
207.00
tou-se por colocar 10 pergaminhos, afim de conseguir apresentar uma quantia maior de histórias. Nas partes internas superiores, decidiu-se por dispor dois caleidoscópios, representando o processo de individuação. Após os primeiros rascunhos, modelou-se a caixa no 3D, afim de fazer testes em relação aos encaixes, considerando compensações e espessuras. Optou-se 22.00
pelo formato quadrado para remeter aos estágios de
70.00
10.00
70.00
22.00
194.00
desenvolvimento da Anima e do Animus, além de auxiliar na diagramação de padrões com base 4 em sua
5.00
5.00
superfície. Por fim, selecionou-se quais superfícies seriam adesivadas.
192.00
15.00
Elaborada pela autora
94
52.00
70.00
55.00
50.00 40.00
5.00
Fig.17 - Sequência de exemplos de desenhos técnicos
22.00
20.00 30.00
22.00
10.00
95
Produção Por fim, as peças foram cortadas e coladas para semi-montagem. Depois, cada peça recebeu o tratamento com seladora e as superfícies previamente planejadas foram adesivadas. Por último, as peças prontas foram coladas e as dobradiças foram inseridas.
222.00
Fig.18 - Sequência de exemplos de peças em produção Elaborada pela autora
96
97
Diagramação
Uma vez tendo as medidas dos espaço que seriam utilizadas para leitura, iniciou-se o processo de diagramação. Priorizou-se pelo texto na maior parte das áreas,
•
Quando manifesta-se o consciente papagaio, o
texto ganha um “reflexo duro e cortado”; •
Quando manifesta-se o Animus negativo, o
deixando o padrão de 4 desenvolvido apenas como de-
texto ganha uma sombra para acrescentar peso visual
talhe na maior parte das peças (geralmente em regiões
ao trecho;
com recorte, ou seja, onde não se poderia colocar um
•
parágrafo ou frase sem gerar ruído). Quanto ao padrão, este foi criado a partir do símbolo da estrela formada por dois quadrados. No centro, a estrela de 8 pontas recebe um acabamento arredondado, assimilando-se a uma flor. As formas são criadas através de “máscaras”, as quais permitem visualizar a
Quando manifesta-se a Anima negativa, o tex-
to fica ainda menor e mais espaçado entre as letras, visando demonstrar capricho exacerbado. •
Quando manifesta-se o Animus positivo, o
texto ganha a coloração azulada; •
Quando manifesta-se a Anima positiva, o texto
ganha a coloração esverdeada.
imagem de céu estrelado. Assim, representa-se que as histórias abrem as janelas da consciência para percepções importantes para o amadurecimento do indivíduo. Dentro da diagramação do texto, foram acrescidos 5 detalhes:
99
Fig.19 - Sequência de testes para criação do padrão de 4
Elaborada pela autora
100
Demonstração do Produto
102
103
Resultado Tipográfico
Massud! Massud! abcdefghijklmnopqrstuvwxyz ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUV WXYZ0123456789“([:;.,!?])”• ª º-–—áâàãéêè
As Mil e Uma Noites
íîìóôòõúûùçÁÂÀÃÉÊÈÍÎÌÓÔÒÕÚÛÙÇ
Massud! Massud! abcdefghijklmnopqrstuvwxyz ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUV WXYZ0123456789“([:;.,!?])”• ª º-–—áâàãéêè íîìóôòõúûùçÁÂÀÃÉÊÈÍÎÌÓÔÒÕÚÛÙÇ
Massud! Massud! abcdefghijklmnopqrstuvwxyz ABCDEFGHIJKLMNOPQRSTUV WXYZ0123456789“([:;.,!?])”• ª º-–—áâàãéêè íîìóôòõúûùçÁÂÀÃÉÊÈÍÎÌÓÔÒÕÚÛÙÇ
Massud! 104
Narram as crônicas dos sassânidas — antigos reis da Pérsia, que haviam levado seu domínio à Índia, às grandes e pequenas ilhas dela dependentes, e bem mais para além do Ganges, até a China — que um dos reis desta poderosa dinastia foi o melhor da sua época. Amado por seus súditos, por sua sabedoria e prudência, era temido, contudo, por seus vizinhos, pelo seu valor e pela fama das suas tropas belicosas e bem-disciplinadas. Tinha dois filhos: o mais velho, Shahriar, seu digno herdeiro, que se lhe igualava nas virtudes; e o mais moço, Shahzenã, que não possuía menos méritos que o irmão. Após um reinado tão longo como glorioso, morreu o rei, seu pai, e Shahriar subiu ao trono. Shahzenã, excluído de qualquer direito pelas leis do império, em vez de invejar a felicidade do irmão, tratou diligentemente de agradá-lo. Shahriar, naturalmente inclinado para esse príncipe, muito se alegrou com aquele gesto, e querendo, por excesso de amizade, partilhar com ele os seus Estados, doou-lhe o reino da Grã-Tartária. Shahzenã tomou posse imediatamente,
fixando residência em Samarcanda, sua capital. Já fazia dez anos que os dois haviam se separado quando Shahriar, desejando fortemente rever o irmão, mandou-lhe um emissário, o seu grão-vizir (primeiroministro), cuja missão comoveu Shahzenã. — Sábio vizir — disse —, o sultão me honra demasiadamente, e não poderia ter-me feito proposta que mais me agradasse. Se deseja ver-me, eu também sinto o mesmo. O tempo, que não diminuiu sua amizade por mim, não enfraqueceu a minha por ele. O meu reino está em paz, e só peço dez dias para me preparar devidamente. Portanto, não é necessário que entreis na cidade por tão pouco tempo. Rogo-vos que vos detenhais aqui, e mandeis armar as vossas tendas. Ordenarei que vos tragam víveres em abundância, para vós e para todos do vosso séquito. As ordens foram executadas sem perda de tempo. Mal o rei havia tornado a entrar em Samarcanda, o vizir viu chegar prodigiosa quantidade de todo tipo de provisões, acompanhadas de presentes e delícias de elevadíssimo preço. 105
Exemplos de facetas da caixa
106
107
Padrão de 4 utilizado e fundo estrelado separados
Considerações finais
Perante a pesquisa é relevante pontuar que a duali-
de combinações entre características dos dois lados. Da
dade e a dicotomia muitas vezes são vistas como preju-
mesma forma, a não linearidade de pensamento pode
diciais. Seja pelos lados positivos/negativos da Anima e
ser vista como confusa e “diversa demais”. Contudo,
do Animus, seja pelo embate entre tipografias para ver e
tantas opções podem ser reconfortantes, justamente por
tipografias para ler. Entretanto, seria melhor colocar as
não imporem um caminho certo.
oposições como complementares, permitindo uma série
108
109
Referências
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111
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SARAIVA LOJA ONLINE. Box - As Mil e Uma Noites - 2 Volumes. Disponível em: <https://www.saraiva.com.br/ box-as-mil-e-uma-noites-2-volumes-8872084.html>. Acesso em: 17 abr. 2018.
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SAID, Edward W.. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
112
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Lista de Imagens
23
Fig.1 - As partes junguianas da psique
35 Fig.2 – Escrita dos Deuses, stoicheion, Ágora de Atenas 58 Fig.3 – Representação visual do processo de leitura de uma linha 60 Fig.4 – Armação básica da letra “a” 64 Fig.5 – Oito “a”s de tipografias diferentes sobrepostas por Frutiger, mostrando as massas de preto comuns 68 Fig.6 – Grids da tesselação de um padrão de 4, um de 6 e um de 5 com outras formas 69 Fig.7 – Demonstração das linhas de construção de um padrão de 4 70 Fig.8 – Demonstração da tesselação de um padrão de 4 86 Fig.9 - Sobreposição de caracteres de diferentes tipografias para encontro das massas de preto comuns e das zonas de ressonância 87 Fig.10 - Exemplo de comparação das massas de texto em algumas das tipografias analisadas: fontes em 10pts, entrelinha 18pts e preto 100% 89 Fig.11 - Primeiras pinturas da letra "h" 89 Fig.12 - Primeiras vetorizações 89 Fig.13 - Primeiras versões do alfabeto 91 Fig.14 - Referência de caixa-puzzle com encaixe nítido 92 Fig.15 - Referência de caixa-puzzle com encaixe nítido semi-aberta e aberta
115
93 Fig.16 - Segunda referência de caixa-puzzle com encaixe nítido passo a passo para abertura 94-96 Fig.17 - Sequência de exemplos de desenhos técnicos 97 Fig.18 - Sequência de exemplos de peças em produção 100 Fig.19 - Sequência de testes para criação do padrão de 4 104-108
116
Fig.20 - Demonstrações do produto em partes
Tipografia e Mitologia em Mil e Uma Noites Bรกrbara Hayashi Bige
Bรกrbara Hayashi Bige
2018