Digesto Econômico 465

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DIGESTO ECONÔMICO - AGOSTO/SETEMBRO 2011 - ANO LXVI - Nº 465

AGOSTO/SETEMBRO 2011 ANO LXVI – Nº 465 – R$ 4,50


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O Jornal do Empreendedor


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ais uma vez, volta-se a discutir a criação de um novo imposto, ou aumento dos existentes, a pretexto de assegurar maior destinação de recursos para a área da saúde. Desta vez, a motivação para a campanha é a votação pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei Complementar que regulamenta a Emenda Constitucional 29/2000, que trata da fixação de percentuais mínimos a serem aplicados na saúde pelos governos federal, dos estados e municípios. Quando da discussão dessa matéria no Senado Federal, foi proposta a criação da CCS – Contribuição Social para a Saúde, nos moldes da CPMF. A pronta reação da sociedade fez com que a proposta fosse abandonada, mas a mesma volta agora a ser defendida por setores do governo. O IMPOSTÔMETRO da ACSP e da FACESP, que apresenta o montante da arrecadação tributária brasileira, formada pelos impostos, taxas e contribuições que as empresas e os cidadãos pagam aos governos federal, estaduais e municipais, atingiu no dia 12 de setembro último a expressiva marca de Um Trilhão de Reais, com 35 dias de antecedência em relação a 2010, demonstrando que, se existe falta de recursos para algum setor, o problema está do lado dos gastos, não da receita. Não se pode aceitar que as dificuldades existentes na área da saúde, bem como em outros setores, somente possam ser resolvidos com a aplicação de mais recursos, antes que se realize um processo de racionalização dos gastos, com o uso de modernas técnicas de administração, eliminando-se distorções e desperdícios. Mesmo que, após a racionalização, se revele necessário um aporte maior de recursos para a saúde, o caminho não é o de aumentar a tributação, mas o de transferir recursos de outras áreas, usando o critério de prioridade, que deve nortear as ações de qualquer governo. É preciso que a sociedade se mobilize para evitar que, a cada dificuldade, o governo – federal, estadual ou municipal – possa aumentar impostos, sem considerar o impacto negativo da transferência de recursos do setor mais

eficiente, o privado, para o setor público. O IMPOSTÔMETRO vem cumprindo seu objetivo de chamar a atenção da população sobre a carga tributária o que, graças à cobertura que tem sido dada pela imprensa, deve facilitar a mobilização contra mais um aumento de impostos. Não basta, contudo, apenas vontade de agir. É preciso organização, foco, participação. As mais de 400 Associações Comerciais do Estado de São Paulo filiadas à Facesp já iniciaram um movimento contra o excesso de encargos – tributos e burocracia –,arbítrio, penalização exagerada dos contribuintes e falta de transparência fiscal, em parceria com outras entidades. É hora de agir. Todo cidadão pode e deve participar. Para tanto, basta entrar no site www.horadeagir.com.br e manifestar sua posição. O Digesto Econômico trata neste número, como matéria principal, um tema bastante importante e que, de certo modo, está ligado à questão da tributação elevada e da burocracia excessiva, e que prejudica o crescimento da economia: a corrupção que, em suas várias facetas, afeta negativamente o ambiente de negócios. Em contraponto, apresenta um artigo do ex-ministro Antonio Delfim Netto, um dos mais lúcidos analistas da economia brasileira, que aborda a crise internacional e o cenários de incertezas dela decorrente e, de outro lado, traça um panorama bastante positivo das condições do Brasil para dar um salto qualitativo e ingressar em um novo patamar de desenvolvimento. Boa leitura!

Rogério Amato Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo

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Masao Goto Filho/e-SIM

É HORA DE AGIR


ÍNDICE Jewel Samad/AFP

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Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Rogério Amato

Mais um exemplo japonês para o mundo Paulo Yokota Divulgação

Superintendente Institucional Marcel Domingos Solimeo

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Amazônia Azul em estado de alerta Carlos Ossamu

ISSN 0101-4218 Paulo Pampolin/Hype

Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici

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Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira

CORRUPÇÃO: no Brasil e no mundo, um mal que penaliza a sociedade Marlene Cohen

Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Chefia de Reportagem José Maria dos Santos Editor de Fotografia Alex Ribeiro

Jaedson Alves/AE

Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico Evana Clicia Lisbôa Sutilo Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo e Lino Fernandes Ilustração e Infográfico Alfer e Max Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3244-3029

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Socialismo da corrupção Olavo de Carvalho

Gerente de Operações Valter Pereira de Souza Impressão Intergraf REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046 www.dcomercio.com.br

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CAPA Arte: MAX


Agliberto Lima/DC

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A extravagância dos impostos, aqui e na Itália Domingos Zamagna

Mark Ralston/AFP

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Sonho em alta velocidade Carlos Ossamu

Patrícia Cruz/Luz

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Expresso Brasil precisa partir Carlos Ossamu, Domingos Zamagna, José Maria dos Santos

Reprodução

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Michel Filho/AE

A primeira estrada de ferro brasileira Afonso Arinos de Melo Franco

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Aris Messinis/AFP

O Brasil, o mundo e a crise na visão de Delfim Netto

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Uma tecnocracia cambaleante Victor Davis Hanson

Lula Marques/Folhapress

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Ativismo judicial: a nova postura da Suprema Corte Ives Gandra da Silva Martins

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Jewel Samad/AFP

O consumo de eletricidade em Tóquio vem se mantendo 23% abaixo do verão passado.

Mais um exemplo japonês para o mundo

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omo faz usualmente, Peter Landers, que está residindo em Tóquio, publicou o seu artigo no Wall Street Journal, que recebeu o controvertido título "Japão mostra que é possível viver sem tanta eletricidade" (Japan snaps back with less power). Com os desastres naturais do Japão, segundo o autor, experimentou-se uma redução de um quinto do suprimento de energia elétrica. Ainda assim não se registrou nenhum apagão, pois a demanda caiu a ponto de a capacidade que sobrou de energia da maioria dos dias seria suficiente para abastecer a cidade de Nova York. O impacto econômico não foi significativo sobre a

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produção e o comércio do Japão, e as bolsas japonesas já voltaram ao nível anterior ao terremoto. Poupar eletricidade se tornou um movimento nacional e mesmo com o calor intenso registrado neste ano no Japão, os aparelhos de ar condicionados estão limitados a 27 graus, não abaixando mais a temperatura do ambiente. Adotou-se o "super cool biz", permitindo que todos trabalhem com roupas informais. As montadoras de automóveis estão operando nos fins de semana, fora do horário de pico da demanda de energia. O consumo da região de Tóquio vem se mantendo 23% abaixo do verão passado.


Paulo Pampolin/Hype

Há uma sensação, segundo o autor, que o Japão vai depender cada vez menos das usinas nucleares. O sucesso do país em evitar os apagões se deve a oferta maior de outras fontes energéticas que não a nuclear e a queda do consumo que depende da população, e todos estão colaborando. Alguns idosos têm exagerado no corte do consumo e o número de internações nos hospitais está muito elevado devido ao excesso de calor. Até no Palácio Imperial chegaram a usar somente velas e lanternas à noite, mesmo com o Imperador e a Imperatriz estarem com idade avançada, acima de 80 anos. O sacrifício da população tem sido grande, seja para restringir o consumo como para se adaptar ao racionamento, inclusive com muitos tendo de trabalhar no fim de semana, quando algumas fábricas funcionam fora do pico da demanda. Está se superando as metas sugeridas pelo governo, mas esta situação é decorrente de uma emergência, em que o povo japonês se dispõe a colaborar, apesar do sacrifício que faz. Não pode ser entendido com uma redução do consumo de energia elétrica de forma permanente, que exige avanço tecnológico, fazendo com que os consumos de muitos equipamentos sejam reduzidos mais do que já baixaram. Como o custo da energia elétrica no Japão sempre foi elevado, muitos equipamentos já adotam tecnologias para a redução do seu consumo, esforço que está sendo redobrado na presente situação. Como a produção de muitas energias é poluente ou apresenta riscos de contaminação radioativa, com os cons-

Paulo Yokota Economista, ex-professor da USP, ex-diretor do Banco Central do Brasil e ex-presidente do INCRA.

tantes terremotos que continuam se repetindo, deve-se aplaudir o esforço que os japoneses estão efetuando. É possível o Brasil absorver parte desta tecnologia japonesa, já que o País ainda desperdiça muita energia, pois seu custo é menos oneroso. De qualquer forma, esta queda abrupta que está se conseguindo no consumo deve ser entendido como uma colaboração coletiva e heróica diante da emergência a que estão sendo submetidos, mas prova que um país pode viver com menos energia quando está determinado a tanto. No fundo, está se transformando limão em limonada, aproveitando a redução da energia nuclear para provocar um avanço tecnológico, aumentando a eficiência de toda a economia. Issei Kato/Reuters

Reuters

O sucesso do país em evitar os apagões se deve a oferta maior de outras fontes energéticas que não a nuclear e a queda do consumo que depende da população, e todos estão colaborando. Até no Palácio Imperial chegaram a usar somente velas e lanternas à noite.

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Amazônia Azul em estado de alerta Carlos Ossamu Divulgação

Submarino Scorpene: Brasil e França firmaram acordo para a produção de submarinos nucleares, um projeto orçado em R$ 20 bilhões.

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uando se fala em defesa de nossas fronteiras, quase sempre se discute as fronteiras secas, principalmente na Amazônia, já que dos 16,8 mil quilômetros de fronteiras, 11,5 mil estão em áreas de selva, mais vulneráveis. Mas há outra fronteira que vem ganhando importância, por conta das reservas de petróleo da camada do pré-sal. Trata-se das nossas fronteiras marítimas, área que a Marinha brasileira passou a chamar de Amazônia Azul, por conta das riquezas que ali se encontram. Na opinião do Almirante de Esquadra Fuzileiro Naval Álvaro Augusto Dias Monteiro, se no curto ou médio prazo houver algum conflito com outros países, este terá como palco o mar, não somente pelo petróleo que nele se encontra, mas também por suas riquezas minerais. A única forma de evitar conflitos dessa natureza é mostrar poderio militar, deixando claro aos oponentes

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que o Brasil está disposto a defender seus interesses, uma tática militar chamada de dissuasão. O almirante Monteiro proferiu uma palestra na Associação Comercial de São Paulo com o tema "Soberania Nacional: A Defesa da Amazônia Azul", um assunto ainda desconhecido por grande parte da sociedade e que não costuma frequentar as mídias tradicionais. "Os países começaram a decidir até onde iria o seu respectivo mar territorial. O Brasil foi um país que, em 1972, unilateralmente, estendeu o seu mar territorial para 200 milhas", comentou o almirante. Isso levou a ONU (Organização das nações Unidas) a organizar uma convenção, em 1982, chamada Convenção da Jamaica ou a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que determinou as seguintes medidas: cada país tem um Mar Territorial igual a 12 milhas, que faz parte do seu território nacional. A partir daí, até um limite de 200 milhas, começa


Patrícia Cruz/Luz

Na opinião do Almirante de Esquadra Fuzileiro Naval Álvaro Augusto Dias Monteiro, em palestra na ACSP, se no curto ou médio prazo houver algum conflito com outros países, este terá como palco o mar.

Divulgação

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a Zona Econômica Exclusiva, em que o país tem direito de explorar todos os recursos vivos e do subsolo marinho. Além disso, cada país ainda pode explorar os recursos do leito marinho, não mais das águas, até um limite de 350 milhas, a chamada Plataforma Continental, mas neste caso, a ONU precisa aprovar. "Hoje, a nossa Zona Econômica Exclusiva e a nossa Plataforma Continental chamam muita atenção pelo petróleo. Verificamos que a nossa camada do pré-sal chega aos limites da nossa Zona Econômica Exclusiva (até 200 milhas) e estima-se que deva prosseguir para a Plataforma Continental (até 350 milhas)", explicou o almirante Monteiro, observando que o petróleo dessa região é leve e extremamente valioso. RECURSOS MINERAIS Embora o petróleo da camada do pré-sal seja a grande vedete do momento, o almirante Monteiro afirmou que os recursos minerais no Atlântico Sul também são imensos. Ali se encontram cobre, manganês, estanho e as preciosas crostas cobaltíferas, da qual se extrai cobalto puro, sem a necessidade de processamento. Por se tratar de uma bacia sedimentar, as riquezas que o Brasil encontra em sua costa também existem na costa ocidental da África. A Nigéria, por exemplo, já explora petróleo do mar junto com a Petrobras. "Hoje, já temos levantados em nossa costa diversos tipos de minerais, incluindo diamante e ouro, este último encontrado no Sul da Bahia. O interessante é que, cerca de 20% do diamante que a África do Sul e a Namíbia exploram vêm do mar, a uma profundidade de 200 metros. É uma exploração muito danosa ao meio ambiente, pois são grandes tubos de sucção, arrastando tudo o que tem no oceano. Há de se ter muito cuidado com este tipo de exploração marítima", alertou. Há mapas mostrando a localização de prospecção e exploração de cobalto no mar, feito por uma entidade da ONU chamada International Seabed Authority, que é a organização que autoriza a exploração dos recursos do mar fora das Zonas Econômicas Exclusivas. Países como China, França, Bulgária, Cuba e Rússia fazem este tipo de exploração nos oceanos Pacífico e Índico. "Ao compreender toda essa nossa riqueza e procurando sensibilizar a sociedade brasileira para a importância do mar, a Marinha, por meio do almirante Guimarães Carvalho, numa feliz intuição, começou a chamá-lo de Amazônia Azul, pois todo brasileiro conhece e compreende o valor da Amazônia. Foi um marketing que deu certo", disse o almirante Monteiro.

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DISSUASÃO

Ao compreender toda essa nossa riqueza e procurando sensibilizar a sociedade brasileira para a importância do mar, a Marinha, por meio do almirante Guimarães Carvalho, numa feliz intuição, começou a chamá-lo de Amazônia Azul, pois todo brasileiro conhece e compreende o valor da Amazônia.

Sergio Lima/Folhapress

Segundo contou Monteiro, a Estratégia Nacional de Defesa determina que o País deve dissuadir a concentração de forças hostis nas fronteiras terrestres, nos limites das águas jurisdicionais brasileiras e impedir que eles usem o espaço aéreo nacional. Para dissuadir é preciso estar preparado para combater, ou seja, a Marinha deve ter condições de defender a soberania nacional. "No mar, o que dissuade as forças hostis é a presença de um poder naval. O nosso mar de interesse é o Atlântico Sul, que também banha as costas ocidentais da África, mas neste momento, estendemos o nosso mar presencial até o Caribe, por conta de nossa presença no Haiti", disse o almirante Monteiro. Para ele, é falsa a ideia de que o Atlântico Sul é um mar de tranquilidade. Na Costa Ocidental Africana, por exemplo, há países com instituições muito frágeis, com exceção da África do Sul. Além disso, há presença estrangeira na região que passa despercebida. "Temos, primeiro, a presença da França no Atlântico Sul por causa da Guiana Francesa. Patrocinei em 2009 um encontro de comandantes-gerais de fuzileiros navais da América do Sul, e o representante francês se apresentou. Por sinal, a maior fronteira terrestre que a França tem com um país é com o Brasil: são 1.600 quilômetros de fronteiras terrestres. Então, a França é um país do Atlântico Sul", lembrou. A Inglaterra é outro país do Atlântico Sul, já que ocupa uma série de ilhas na região. "Nas Malvinas a situação ficou um pouco mais complicada, já que a Inglaterra, unilateralmente, começou a explorar petróleo na Zona Econômica Exclusiva e na Plataforma Continental das Ilhas Malvinas, mesmo com a Argentina protestando. Estima-se uma reserva de petróleo de 60 bilhões de barris, que hoje é muito


Elza Fiuza/ABr

maior que a soma das reservas de petróleo da Argentina e da Inglaterra. Com a exaustão das reservas do Mar do Norte, os ingleses buscam alternativas", comentou. Segundo o almirante, a China também está no Atlântico Sul, pois ela está presente na África. "Quando se descobriu petróleo no pré-sal da Bacia de Campos, além da Petrobras estava a Repsol, cuja parte do capital é de origem chinesa. Ela está na África, que é a nossa fronteira marítima e uma panela de pressão. Neste continente tem a presença da China, da Índia e até mesmo do Brasil, que explora petróleo na Nigéria", observou. Os investimentos diretos da China na África totalizaram 1,6 bilhão de dólares em 2005. Somente no Sudão, os investimentos diretos somaram mais de 350 milhões de dólares. Em 2008, as trocas comerciais da África com a China chegaram a 107 bilhões de dólares. Quem mais exporta para a China são Angola e Sudão, por causa do petróleo. A Nigéria está mais voltada para o mercado norte-americano. Compreendendo esta situação, a China começou a construir, de uma maneira muito rápida, um poder naval surpreendente. "Recentemente, a China começou sua experiência de mar com um porta-aviões, que tem uma história curiosa. Eles compraram um porta-aviões considerado sucata pela antiga União Soviética. Com o esfacelamento do império soviético, este porta-aviões ficou sete anos numa baía na Ucrânia e a China comprou este navio. Mas como para sair do Mar Negro tem que passar pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos, e como há restrições de passagens de submarinos e porta-aviões pelos estreitos, a China declarou que o navio estava saindo para se transformar num hotel-casino em Xangai. Ele foi direto para um estaleiro, foi recuperado e iniciou suas provas de mar", contou. Segundo disse o almirante na palestra, o general responsável pela modernização das forças armadas chinesas declarou recentemente: "Nossos interesses em recursos energéticos e no comércio estende-se a todo o mundo. Há rotas navais fundamentais na Ásia, no Oceano Índico, na África e em ambos os lados do Pacífico que necessitamos proteger. Nossa força militar deve igualar o alcance de nossa atividade econômica e diplomática." POTÊNCIAS NUCLEARES No Atlântico Sul ainda há a presença dos Estados Unidos, tanto na Colômbia, com uma presença muito forte, quanto na Ilha de Ascensão, que embora oficialmente seja inglesa, tem uma

enorme base aérea americana desde a Segunda Guerra Mundial. Durante a Guerra das Malvinas, os americanos só deixaram os ingleses usarem essa base aérea depois de um contato pessoal da Margaret Thatcher com o Ronald Reagan. Ali eles têm uma das cinco estações terrestres do sistema GPS. "É importante ressaltar que alguns países não reconheceram aquela Convenção sobre os Direitos do Mar na Jamaica e não assinaram o tratado, entre eles os Estados Unidos. Então, dizer que o petróleo do pré-sal é nosso, significa uma retórica, se não pudermos defendê-lo - se um dia houver uma crise do petróleo. Aí está a grande preocupação do Atlântico Sul, já que as descobertas estão transformando a região numa província petrolífera, que começa a despertar o interesse de países ávidos por energia. Nós temos

O petróleo do pré-sal começa a despertar o interesse de países ávidos por energia e o Brasil precisa estar preparado para conflitos.

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Alaor Filho/AE

Caça brasileiro realiza exercício no porta-aviões USS Ronald Reagan, o mais moderno da Marinha dos Estados Unidos, com capacidade para transportar até 80 aviões.

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de ter condições de fazer frente a estas ameaças", enfatizou o almirante Monteiro. A LAGOSTA É NOSSA O almirante Monteiro lembrou um incidente no início da década de 60, que ficou conhecida como a Guerra da Lagosta, quando os franceses vieram pescar lagosta no Nordeste brasileiro. Pernambuco tinha receitas com o crustáceo de 3 milhões de dólares por ano e pelas leis brasileiras, os pescadores não podiam usar rede de arrasto. Os franceses começaram a pescar com este tipo de rede e ignoraram as reclamações dos jangadeiros. "Em 1961 houve uma reunião com representantes de ambos os países e o representante francês teve o desplante, e isso está em ata, de dizer que a lagosta, apesar de andar no fundo do mar, ela às vezes salta, então era um peixe, sendo permitida a pesca com a rede. Já o representante brasileiro, o comandante Paulo Moreira da Silva, um famoso oceanógrafo, retrucou que um canguru, então, seria uma ave, pois ele também salta", disse. Em seguida, contou o almirante, houve a famosa frase atribuída a De Gaulle, mas que na verdade foi dita pelo embaixador brasileiro na França, "de que o Brasil não era um país sério", visto a forma como o País estava determinado a defender o seu direito de pescar da lagosta. Houve uma firme determinação de usar o poder naval brasileiro, porque a França, no

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sentido de pressionar, enviou o porta-aviões Clemenceau. "Tinha mais aviões no convés que toda a Força Aérea brasileira. Mas nós tínhamos alguns navios de razoável qualidade, arrendados dos americanos. O De Gaulle, ao ver a nossa determinação, chegou a questionar o presidente americano, pois ele achava que os EUA estavam por trás daquela ação. Os Estados Unidos chegaram a questionar o Brasil formalmente, pois os navios eram arrendados e não podiam ser empregados contra um aliado. O Brasil alegou que estava sendo ameaçado e que tinha de responder a isso. O fato é que essa determinação de empregar o nosso poder naval fez o Clemenceau se retirar e nunca mais os franceses vieram pescar em nossa costa". PODER DE FOGO De acordo com o almirante, todo poder naval sonha em controlar a área marítima, usar o mar ao seu dispor, impedindo o oponente de usá-lo. Um exemplo clássico foi a crise de mísseis entre Estados Unidos e União Soviética, este último país montando mísseis em Cuba. Os americanos cercaram Cuba para que ninguém entrasse lá. Os navios soviéticos, que vinham com peças, tiveram de voltar; não havia nada a fazer. Na época, a União Soviética tinha poucos submarinos. "O poder naval mais fraco, que não pode controlar a área marítima, tem outra alternativa,


CRIMES NO MAR Em junho do ano passado, durante o II Simpósio das Marinhas dos Países da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), o chefe do Estado-Maior da Marinha de Guiné-Bissau disse: "Pirataria, pesca ilícita, tráfico de drogas, degradação ambiental, cujos combates requerem esforços concentrados em níveis regionais e sub-regionais, podem ser facilitados pelos parceiros internacionais. Hoje, o nosso denominador comum é a segurança marítima". A pirataria é comum na África. Na costa da Somália, um relatório da ONU de novembro do ano passado informava que havia 27 navios sequestrados, aguardando resgate. Normalmente são navios petroleiros e os resgates variam de US$ 3,5 milhões a US$ 5 milhões. "Esses piratas já estão atuando a 700 milhas da costa e não se tem muito o que fazer. Se prender e enviar para a Somália, eles são soltos na hora. Recentemente, os indianos começaram a prender esses piratas e levar para a Índia. Os piratas sequestraram um navio, pediram resgate, receberam, mas ficaram com dez tripulantes para trocar pelos piratas presos na Índia", disse o almirante.

Hoje, a nossa Zona Econômica Exclusiva e a nossa Plataforma Continental chamam muita atenção pelo petróleo. Na foto, Arquipélago de São Pedro e São Paulo, no Oceano Atlântico Equatorial.

Divulgação

que é a negação do uso do mar, em que o submarino é uma arma por excelência. Ele diz o seguinte: não vou usar o mar ao meu dispor, mas você também não vai usá-lo livremente. As perdas que vou impor ao seu poder naval vão fazêlo ponderar se vale a pena continuar com a solução militar ou buscar a mesa diplomática para a solução das controvérsias. É por isso que o poder naval brasileiro, em sua reestruturação, começou com submarinos", comentou. Para o projeto de construção de submarinos nucleares, o Brasil firmou um acordo com a França. "Para nós, o interessante é a transferência de tecnologia de projeto e construção. Por isso firmamos o acordo com a França e não com a Alemanha. É um projeto de R$ 20 bilhões em 20 anos. É importante que se diga que o acordo não envolve a transferência de tecnologia nuclear, pois ninguém transfere essa tecnologia para ninguém", observou. Ele explicou que o submarino convencional trabalha com motor elétrico, abastecido com baterias. Quando elas descarregam, entram em ação os motores a diesel. Para isso, o submarino precisa emergir para aspirar ar. Diferentemente, um submarino nuclear somente sobe para trocar a tripulação. Além disso, a sua velocidade debaixo d'água se equipara à de superfície, ao contrário do submarino convencional.

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Paulo Pampolin/Hype

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CORRUPÇÃO: no Brasil e no mundo, um mal que penaliza a sociedade Marleine Cohen

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abricante mundial de vagões de metrô e trens de alta velocidade, a empresa francesa Alstom se viu recentemente envolvida em acusações de suborno de autoridades e políticos brasileiros. Motivo: seu propinoduto teria beneficiado diretores de empresas públicas de São Paulo por intermédio de paraísos fiscais (offshores) com sede no Uruguai, em troca da obtenção de “pequenos favores”, como um contrato de US$ 45 milhões referente à linha 5 do metrô. A suspeita de que teria distribuído pelo menos US$ 6,8 milhões em gratificações para ganhar a licitação resultou numa suspensão das obras, durante todo o ano de 2010, e comprometeu o calendário de entrega das novas estações à população. Retomada no início deste ano, a construção do trecho entre Alto da Boa Vista e Chácara Klabin, zona sul da cidade, segue seu ritmo, enquanto a Justiça toma seu tempo para investigar as denúncias. Resta saber se, no fim da linha, quando as escavações e a instalação dos trilhos estiverem concluídas, ainda haverá tempo hábil para afastar a Alstom da empreitada, caso o poder judiciário confirme a gorda falcatrua. Corrupção é coisa nossa? Longe disso: em 2008, o grupo francês Accord Services, que lida com vouchers de refeições, fez uma oferta tentadora a um político de Buenos Aires: 20 milhões de dólares para frear um projeto em tramitação, que visava incluir o valor dos tíquetesrefeição no salário dos trabalhadores argentinos. Assombrada com a possibilidade de a mão de obra assalariada começar a rejeitar os cheques-cardápio – usados até então informalmente no país para pagar parte dos salários sem, todavia, serem computados na hora de calcular férias ou auxíliodoença –, a Accord resolveu afastar o perigo de uma retração da demanda por vales-alimentos oferecendo regalias a lobis-

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tas. Resultado: acabou às voltas com um problema incômodo. A Argentina não só processou o executivo que ofereceu o dinheiro, como também afastou o presidente da Cámara de Empresas de Servicios de Vales – que, não por acaso, também era um dos diretores da subsidiária da Accord no país. Onde há políticos, há corrupção? Sim e não. Se a falta de ética no meio político surge como a grande chaga deste início de século, fato é que ela pode ultrapassar as fortalezas do poder público para impregnar corporações, instituições e até mesmo nortear negociações entre pequenos anônimos. No México, 45% dos 151 relatos recebidos entre julho de 2007 e janeiro de 2010 incriminam a polícia, segundo a Bribeline (www.bribeline.org), site onde se pode reportar de maneira anônima casos de suborno em qualquer parte do mundo. E 85% das solicitações de suborno são provenientes de pessoas relacionadas ao governo mexicano. Mais: na Grécia, onde se trava atualmente uma árdua batalha para reequilibrar as contas públicas, o montante pago com propinas no ano passado, de 632 milhões de euros – contra 787 milhões de euros em 2009 –, foi escoado, em boa parte, para o ralo da rede hospitalar e das repartições públicas de finanças, de acordo com a Bloomberg, uma das maiores provedoras internacionais de informação para o mercado financeiro. Para uma cirurgia em hospital público, a "caixinha" nunca é inferior a 150 euros e pode chegar a 7.500 euros. Para que os médicos facilitem o processo, são mais 50 a 1.500 euros. Ainda assim, o percentual de cidadãos gregos que reportam casos de corrupção caiu de 13,4%, em 2009, para 10,4% em 2010, segundo a Bribeline. Na Rússia, onde dificilmente se consegue instalar uma linha telefônica ou passar uma encomenda pela alfândega em tem-


po hábil sem uma gorjeta, é costume colocar a mão no bolso também para ganhar uma licitação ou se proteger do abuso de poder de um fiscal do governo. Para ilustrar o fato, a imprensa estampou recentemente um caso no mínimo curioso, envolvendo um funcionário do ministério de Situações de Emergências da Rússia. Aproveitando-se do seu cargo, o responsável pela inspeção de segurança contra incêndios da prefeitura do distrito administrativo de Zelenograd, em Moscou, exigiu o pagamento de um "plus" para fechar os olhos diante de irregularidades em dois edifícios e não incluí-las em seu relatório. Mas, enquanto recebia sete notas, totalizando 35 mil rublos (quase dois mil reais) num banheiro, ele foi flagrado pela polícia e literalmente as comeu diante das testemunhas. O mesmo não pôde fazer a gigante do setor automotivo, Daimler AG. Acusado por promotores de Justiça dos EUA de pagar suborno para obter favores na China, Turquia, Egito, Nigéria, Sérvia, Grécia, Iraque, Rússia e em pelo menos outros 14 países, entre 1998 e 2008, o grupo alemão viu suas práticas ilícitas ganharem as manchetes de jornais depois que um auditor se queixou de ter sido demitido por revelar a existência de contas bancárias secretas e empresas-fantasma destinadas a corromper funcionários estrangeiros. No Turquemenistão, um agente do governo local teria sido presenteado com um carro Mercedes blindado, no valor de 300 mil euros, por ter dado uma "mãozinha" aos negócios da empresa no país. Na Libéria, outro representante do poder público teria recebido um veículo avaliado em 267 mil euros como parte de um acordo para vender caminhões ao país africano. Pela ação criminosa, a Daimler AG. arcou com uma multa estipulada em 138 milhões de euros – a exemplo de sua conterrânea, a Siemens, que também foi obrigada a desembolsar 594 milhões de euros pelo desvio suspeito de fundos para assegurar contratos na Argentina, Bangladesh e Venezuela. Mas nem só de operações de grande porte e quantias polpudas se alimentam extorsões. E nem mesmo aos países devotos da cultura da infração se limita o jogo de esconde-esconde dos cifrões. No mapa mundi da corrupção, há lugar até mesmo para as pequenas fraudes diárias, que dizem respeito a consumidores enredados involuntariamente – e muitas vezes sem saber – numa teia de interesses escusos.

Que o digam os usuários de táxis que efetuaram viagens nas ruas de Nova York nos anos de 2008 e 2009. Dos 13.237 carros amarelos cadastrados na cidade, parte aplicou tarifas incorretas, aumentando o preço da corrida em cerca de US$ 4,45, sem conhecimento do passageiro. A constatação, feita pela Comissão de Táxis de Nova York com a ajuda de um sistema de GPS que possibilitava rastrear o percurso dos motoristas, foi denunciada pelo jornal The New York Times e permitiu chegar à quantia de mais de US$ 8,3 milhões cobrados como "gorjeta compulsória" em cerca de 1,8 milhões de deslocamentos. Embora portentosa, a soma poderia ter sido maior se generalizada por toda a cidade, mas a fraude aconteceu em apenas 0,5% dos 361 milhões de viagens realizadas em 26 meses de avaliação e foi praticada por pouco mais de um quarto dos taxistas. Ainda assim, ajuda a explicar por que, em dias de muita chuva ou frio intenso nas ruas da Grande Maçã, era tão mais fácil poder contar com alguns taxistas, e não com outros. Alan Schein/Image Source

Táxis de Nova York são fiscalizados por meio de GPS para evitar a cobrança indevida de tarifas.

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Um retrato em 360º

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Reprodução

olhear jornais ou navegar pela internet pesquisando casos de suborno pode dar a falsa sensação de que o número de casos estaria em franca progressão. Errado. Tentativas de achaque sempre fizeram parte da rotina das sociedades, de Norte a Sul. Tanto é que a sétima edição da pesquisa "Barômetro 2010 sobre a Corrupção Global", da ONG Transparency International (TI), dá conta de que uma em cada quatro pessoas consultadas já pagou suborno, nos últimos doze meses, a uma alguma instituição ou serviço – principalmente à polícia e nos setores de saúde e fiscal –, sendo que os mais pobres estão duas vezes mais propensos a oferecer propina para ter acesso a serviços básicos, como educação. Ainda segundo o estudo, realizado em 86 países junto a 91,5 mil pessoas, metade dos entrevistados também considera que as políticas anticorrupção atuais são ineficientes. O que acontece é que as fraudes estão sendo cada vez mais desvendadas – isto é, estão vindo ao conhecimento do grande público com mais frequência –, porque a comunidade internacional resolveu fechar o cerco contra a corrupção. E, para atingir este proServiços na internet monitoram níveis de corrupção no mundo pósito, um verdadeiro arsenal de entidades e ONGs, pesquisas e estudos, convenções, leis e meetings está sendo implantado. Da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em torno da qual se corrupção, são as pequenas gratificações domésticas, por agrupam os países mais industrializados da economia de merbaixo do pano, que os mais ricos sacam do bolso sempre que cado, à Trace Anti-Bribery Compliance Solutions, empresa precisam, em detrimento dos mais pobres. norte-americana que se propõe a monitorar o nível de desobeCom o joio e o trigo, que neste caso não se separam, consodiência ao código de ética nos negócios em vários países, paslidam-se índices nacionais de percepção da corrupção – um insando por uma constelação de outras iniciativas, inclusive ondicador que nos dias atuais permite posicionar um país peranline, o fato é que a sociedade moderna criou uma espécie de xete a comunidade internacional quase tanto quanto o seu PIB. rife suprapartidário e intergovernamental que busca nortear Um deles é o "Índice de Percepção da Corrupção" elaborado as relações comerciais entre partners à luz da retidão e da transpela Transparency International, que há 15 anos monitora a perparência, e para tanto se apoia em denúncias públicas e afericepção da corrupção no setor público, em todo o mundo. Ano ções periódicas que não são nada mais do que atestados interpassado, o relatório da ONG se debruçou sobre uma lista de 178 nacionais de bom ou mau comportamento. países e regiões para avaliar a imagem eticamente correta de caNesta vigilância em defesa da ética, o joio são os subornos da um deles e estabelecer notas numa escala que vai de zero de agentes públicos estrangeiros durante transações comer(muito corrupto) a dez (sem corrupção). Para distribuir as notas, ciais internacionais – uma prática que ganhou asas com a a Transparency International entrevistou especialistas e execuglobalização e a abertura dos mercados e beneficia, via de tivos locais. Em seguida, elaborou um ranking comparativo. regra, as grandes multinacionais. E o trigo, que também ajuLevantamentos como este permitem aferir que, de modo geda a multiplicar os pães e consolidar uma mentalidade próral, os resultados não são nada animadores: a corrupção ronda

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e os subornos ainda condicionam as negociações. Relatórios deste tipo também permitem confrontar-se com o fato de que, em 2010, houve uma deterioração do grau de percepção da corrupção em escala mundial, sendo que 75% dos países avaliados apresentaram queda no índice. Nas Américas, as mudanças mais significativas foram identificadas em Cuba, onde a corrupção ganhou terreno, enquanto Chile e Equador deram um salto qualitativo importante, com forte retrocesso do número de falcatruas registradas. O Chile voltou a ocupar o posto de país latino-americano mais bem situado na classificação, com 7,2 pontos e 21º lugar no ranking internacional, depois de ascender quatro posições em relação a 2009. O êxito do país se deve, segundo a TI, à continuidade política apesar da mudança de governo, a um Poder Judiciário tradicionalmente autônomo, bem como à implementação de sistemas eletrônicos de governo, formas de contratação pública transparentes e leis de acesso à informação pública que ajudam a combater a corrupção. Já o Equador passou de 0,03 ponto para 2,5 pontos, subindo da 146ª posição para a 127ª. Ainda assim, entre os países da região, permanece no fim da fila. Quanto a Cuba, historicamente situada entre os países latinos menos corruptos, caiu de 4,4 pontos em 2009 para 3,7 em 2010, e recuou oito posições. Outros três países da região apresentaram bons índices: Uruguai (24º lugar, com 6,9 pontos); Porto Rico (33ª colocação, com 5,8 pontos) e Costa Rica (41ª posição, com 5,3 pontos). Colômbia

(78º), Peru (78º), Guatemala (91º) e México (91º) pioraram ligeiramente, enquanto El Salvador (73º), Panamá (73º) e Bolívia (110º) tiveram uma tímida melhora. Brasil (69º), República Dominicana (101º) e Argentina (105º) não registraram variações significativas. Em último lugar, com nível próximo ao da República Democrática do Congo e de Guiné, encontra-se a Venezuela. Ainda segundo o relatório de 2010 da TI – para quem a inclusão da corrupção na agenda política da América Latina ainda deve ganhar como reforço a tomada de consciência do cidadão médio –, as nações melhor situadas no ranking anticorrupção continuaram sendo, tal como em 2009, a Dinamarca (9,3), a Nova Zelândia (9,3) e Cingapura (9,3). Na outra ponta, a exemplo do ano anterior, fecharam a lista Iraque (1,5), Afeganistão (1,4), Mianmar (1,4) e Somália (1,1). O relatório da Transparency International também serve para traçar um mapa dos lugares onde não convém investir: segundo o estudo do ano passado, República Tcheca, Grécia, Hungria, Itália, Madagascar, Níger e Estados Unidos sofreram deterioração da percepção de corrupção – o que faz com que as empresas eticamente corretas mantenham um pé atrás na hora de oferecer seus produtos e serviços. Na outra ponta, Butão, Macedônia, Gâmbia, Haiti, Jamaica, Kuwait e Catar merecem um crédito pelo esforço de moralização. E Nicarágua, El Salvador, Honduras e Paraguai são mercados dos quais se deve definitivamente desconfiar. (M.C.)

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Mutirão anticorrupção

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ribeline.org, Group of States against Corruption (Greco), TrustLaw, FCPA Blog, Trace Anti-Bribery Compliance Solutions, Transparency International e sua filial no Brasil, a Transparência Internacional. Dezenas de ONGs, entidades, instituições, portais, sites e ferramentas, inclusive online, compõem nos dias de hoje uma vasta teia de iniciativas destinadas a investigar, descobrir e prevenir práticas de suborno. Se a OCDE (Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico), que data de 1948, empunhou a bandeira contra a corrupção a partir de 1997, adotando a chamada Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais – instrumento que determina que, em todos os estados signatários, "é crime o oferecimento, a promessa ou a doação de qualquer vantagem indevida a um funcionário público estrangeiro, direta ou indiretamente, no intuito de que, por meio de ação ou omissão no desempenho de suas funções oficiais, esse funcionário realize ou dificulte transações comerciais ou obtenha outras vantagens ilícitas na condução de negócios internacionais" –, fato é que, depois dela, uma miríade de novas iniciativas surgiu. A Bribeline.org é uma espécie de disque-denúncia online. Lançado em meados de 2007, o website recebe relatos anônimos, em mais de 20 línguas distintas, de internautas dispostos a notificar subornos envolvendo entidades oficiais ou semioficiais (órgãos internacionais, forças de segurança, empresas estatais), em qualquer parte do mundo. A ferramenta online está voltada à parte que pede a propina, e não solicita informações a quem paga ou se propõe a pagar. Tampouco pede nomes. As informações colhidas não são usadas para abrir processos ou investigações, mas são divulgadas para chamar a atenção sobre a existência de possíveis complicações de ordem ética em determinados meios e cenários. A coleta de dados também ajuda a alimentar os relatórios periodicamente preparados pela Trace Anti-Bribery Compliance Solutions, uma associação sem fins lucrativos que

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alavanca recursos para fornecer a multinacionais e seus parceiros comerciais, consultores, distribuidores, fornecedores e representantes de vendas, programas de compliance e estudos de avaliação de riscos de corrupção. Além do noticiário online sobre casos de suborno, manuais e publicações especializadas, como o Trace Global Enforcement Report – que aponta tendências, por país e por setor de atuação, em determinado período de tempo –, entre os produtos e serviços da Trace citam-se os cursos de treinamento e capacitação

profissional anticorrupção, levantamentos sobre intermediários comerciais, uma biblioteca online com resumo das principais leis observadas em um bom número de lugares, bem como orientações sobre hospitalidade e o que dar de presente em distintos países, sem incorrer em práticas ilícitas. O Trace Compendium, por sua vez, é uma ferramenta online que permite fazer buscas de casos de corrupção em qualquer parte do mundo, usando como palavra-chave nomes de empresas, setor de atuação, país, ano e tipo de contravenção, entre outros. O RESIST - Resisting Extortion and Solicitation in International Transactions, da Transparency International, de seu lado, apresenta cenários para os quais oferece dicas de como resistir a um pedido de bonificação ou extorsão. O TrustLaw é um centro informativo anticorrupção online mantido pela Thomson Reuters Foundation, enquanto o FCPA Blog reúne um corpo de analistas que comentam em tempo real os principais casos de suborno havidos. (M.C.)


Ed Ferreira/AE

Banco Mundial: 70% das empresas brasileiras já pagaram fiscais.

Um termômetro da realidade nacional

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aso típico de propina: um escritório de contabilidade opera na capital paulista sem alvará. Quem advoga pelo escritório alega que a pendência está anistiada no âmbito municipal por causa da burocracia envolvendo a obtenção da licença. O argumento não comove, todavia, o fiscal municipal, que propõe um "acordo de cavalheiros", sob pena de fechar o lugar. Não há o que fazer senão assinar o cheque. Outro episódio: um fabricante de câmbios automotivos recebe visita de um fiscal de renda do governo do Estado de São Paulo, que vê incoerência entre o estoque e o montante que a empresa informa ter vendido. A desconfiança da fiscalização recai sobre a

disparidade entre a quantidade de parafusos que leva um câmbio e o número de parafusos saídos do estoque. Para o agente, há mais parafuso fora do estoque do que o necessário para produzir o número de câmbios que a empresa alega ter comercializado. A presunção do fiscal – que não aceitou o argumento de que parafusos se perdem ou espanam no processo de fabricação dos câmbios – levanta suspeitas de sonegação. Mas tudo pode se resolver com um "acordo financeiro", em troca do qual se façam vistas grossas, explica o servidor público. Casos semelhantes se repetem em todo o País, diariamente. Basta dizer que, para o Banco Mundial, 70% das companhias brasileiras já deram dinheiro a fiscais, ou foram instigadas a fa-

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zê-lo. Na outra mão, 62% das corporações que entraram em licitações públicas informaram que foram confrontadas com pedidos de propina. O suborno está tão arraigado na cultura do "jeitinho brasileiro" que as empresas chegam a reservar, em média, 3% do faturamento a título de gratificações. Mancha indelével Não é à toa que o Brasil ocupava, ano passado, a 69ª posição de país mais corrupto no ranking internacional elaborado junto a 178 nações pela Transparency International. A pontuação dada ao País no estudo permaneceu a mesma que em 2009 – 3,7 numa escala de zero a dez, onde zero indica que os servidores são considerados muito corruptos pela sociedade –, o que mostra que esta percepção se manteve praticamente inalterada em relação ao setor público nos últimos dois anos. Embora o País esteja melhorando aos poucos – em 2009 ocupava a 75ª posição no levantamento junto a 180 países da TI –, ainda continua ladeado por economias cujas instituições públicas são pouco confiáveis, como as de Burkina Faso, Cuba, Montenegro, Romênia ou China. Segundo Alejandro Salas, diretor regional para as Américas da Transparency International, uma melhor performance do

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Brasil no ranking deve ser entendida apenas como reflexo da deterioração de outros países, e não como um avanço. "Na verdade, não houve nem melhora, nem piora", esclarece. Outro estudo, desta vez elaborado pela Trace Anti-Bribery Compliance Solutions, dá conta de que a polícia responde por 36% dos casos de suborno registrados entre 11 de julho de 2007 e 28 de junho de 2010 – num total de 121 casos reportados à entidade. Ao lado disso, 26% das tentativas de achaque partiram de funcionários públicos das três esferas administrativas, enquanto integrantes do aparato militar participaram de 7% dos casos, na mesma proporção que os funcionários de empresas estatais. Juízes e outros representantes do Poder Judiciário fizeram 3% das propostas de pagamento de propina, e dirigentes do partido no poder e representantes das Nações Unidas, respectivamente 2% e 1%. Ao todo, cerca de 80% das iniciativas foram feitas por autoridades oficiais entre 2006 e junho de 2010. Apenas a título de comparação, vale lembrar que países emergentes, como Rússia ou Índia, também mantêm percentuais elevados de participação da polícia em casos de propina: respectivamente, 41% e 30%. Na China, esta taxa cai para 11% e no México, salta para 45%. Ainda de acordo com o relatório elaborado pela Trace – o sexto divulgado sobre o Brasil pela organização –, quase metade dos empresários que fizeram denúncias recebeu mais de um pedido de suborno da mesma fonte no período de um ano. Para cerca de 75% desses, a mesma pessoa fez entre 2 e 20 vezes o mesmo pedido no prazo de doze meses, e 15% sofreram investidas da mesma fonte mais de cem vezes. Dinheiro vivo é a forma preferida de pagamento de gratificações em 73% dos casos reportados no Brasil, sendo que 27% deles englobam outras formas de bonificação: promessas de negócios futuros ou pagamento de refeições, entre outros. Comparativamente, México, Rússia, Índia e China também apresentam taxas elevadas neste quesito: 81%, 88%, 92% e 77%. Entre o fornecimento de benefícios intangíveis no país, citam-se, por exemplo, a expedição de vistos (7%), joias ou entradas para eventos esportivos (5%), favores sexuais (5%) ou a cobertura de despesas pessoais com viagens (2%). O valor das propinas é relativamente baixo, se comparado ao de outros países, uma vez que metade das denúncias no Brasil se referia a somas inferiores a U$ 5.000 e apenas 8%, a valores superiores a US$ 50.000. Para a Trace Anti-Bribery Compliance Solutions, a recorrência de pedidos de gratificação por uma mesma fonte no período de um ano é relativamente baixa no Brasil, se comparada com a China: 48% dos que fizeram denúncias no país relataram terem sido intimados várias vezes a pagar propinas, contra 73% dos depoentes na China. Todavia, é por aqui que se registra a mais alta taxa de exigência de pagamento não envolvendo dinheiro


vivo: 28% contra 23% na China e 8% na Índia – o índice mais baixo dentre os países analisados. No Brasil, ainda segundo o estudo da Trace, 41% dos casos denunciados representavam extorsão, isto é, o pagamento de determinada quantia seja para evitar danos pessoais ou comerciais (21%), seja para receber um produto ou serviço já quitado (15%), ou, ainda, para ser pago por um serviço prestado (5%). E 30% das fraudes reportadas visavam alguma vantagem indevida, como, por exemplo, ganhar uma concorrência, obter uma decisão judicial favorável ou garantir futuros negócios. Esta taxa de extorsões no Brasil é relativamente baixa se comparada à da Índia, da Rússia e da Ucrânia: 77%, 63% e 58%, respectivamente. Mas tanto o Brasil como a China têm o mais alto percentual de ocorrência de pagamento de propina em troca de promessas e garantias de vantagens indevidas (32%), como, por exemplo, uma sentença judicial favorável. Obra inacabada Divulgado no segundo semestre de 2010, este estudo da Trace foi apresentado no momento em que o Brasil estava tocando um amplo conjunto de obras de infraestrutura dentro do Programa de Aceleração do Crescimen-

to (PAC), para o qual foram alocados recursos equivalentes a US$ 288 milhões nos setores de saneamento, transporte, habitação, energia e recursos hídricos – o que permitiu que a fundadora e presidente da empresa, Alexandra Wrage, estimasse que "há muito dinheiro flutuando no País e, sem controle, ele pode se converter em uma fonte de irregularidades". Na opinião dela, "os projetos de infraestrutura brasileiros estão reconhecidamente infestados por subornos", o que a autorizou a projetar "obras públicas entre 10 e 20% mais caras, além de atrasos, já que as partes envolvidas negociam os pagamentos". Assentado sobre o verdadeiro canteiro de obras no qual se transformou o território nacional – também em função dos preparativos para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016 –, este complexo panorama da corrupção nacional, onde prevalece tradicionalmente a "Lei de Gérson", de tirar proveito das situações a qualquer custo, só fez piorar durante o governo Lula, ainda segundo a Trace. Explica-se: não bastasse o Brasil ter mantido em 2010 o mau desempenho dos últimos anos no ranking, vale lembrar que, em 2002, ele ocupava a 45ª colocação na lista, com uma pontuação superior à atual. Estes resultados possibilitaram que a Trace concluísse que, apesar do

Para Alexandra Wrage, presidente da Trace, os projetos de infraestrutura brasileiros estão reconhecidamente infestados por subornos. Na foto, obras no Maracanã.

Wilton Junior/AE

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Roberto Jayme/AE

Reino Unido e pelos EUA, que incriminam práticas de corrupção e fraudes e, com isso, acabam se impondo igualmente sobre os parceiros comerciais dos dois países. Denunciar ou ser conivente

Cláudio Abramo: o problema da corrupção só vai melhorar quando o País instituir mecanismos administrativos mais eficientes ou com maior vigilância da população.

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carisma do ex-presidente, dos programas sociais implantados e do crescimento econômico registrado ao logo dos seus dois mandatos, o problema da corrupção não foi resolvido pelo governo Lula. Muito pelo contrário: a concentração de denúncias de casos de suborno só fez crescer entre 2006 e 2010. Em sintonia com esta realidade, e certamente impulsionada por ela, vem sendo registrada uma grande expansão do setor de investigação de corrupção e prevenção de fraudes corporativas no País. A ponto de a demanda por esse tipo de serviço estar mobilizando as filiais brasileiras das chamadas "big four" de auditoria – PricewaterhouseCoopers (PwC), Ernst & Young Terco, KPMG e Deloitte –, que acusam aumento da procura por programas de compliance e de avaliação de riscos de corrupção e por serviços de investigação e implementação de canais de denúncias. Segundo o setor, grande parte da demanda vem de multinacionais instaladas no Brasil, embora empresas nacionais com forte presença no exterior já comecem também a demonstrar interesse. Para os especialistas, a busca por padrões éticos nas corporações funciona como uma bola de neve, influenciando mais e mais companhias que se veem pressionadas a adotar as mesmas normas que seus clientes estrangeiros, para não perdê-los. Por trás desta mobilização também estão, segundo os experts, as novas legislações estrangeiras adotadas pelo

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Mas a lei não é tudo. Para Cláudio Abramo, diretor executivo da Transparência Brasil, cabe ponderar que a corrupção tem o seu lado passivo: compactuar com ela, pagando propina ou buscando vantagens financeiras, também condiz com uma conduta ilegal. "O problema da corrupção só vai melhorar quando o País instituir mecanismos administrativos mais eficientes ou com maior vigilância da população", diz. Por isso, estabelecer meios que possibilitem as denúncias de irregularidades, bem como ferramentas que garantam sua apuração, tem papel fundamental. Mas tomar a iniciativa de denunciar também tem sua extrema importância. E, para isso, existem caminhos legais - as corregedorias e ouvidorias das diferentes autarquias federais, estaduais e municipais. No entanto, a verdade é que os empresários não costumam denunciar fiscais corruptos, no Brasil. Um dos motivos para esse comportamento, segundo José Carlos Pacheco, diretor da corregedoria de fiscalização tributária da Secretaria da Fazenda de São Paulo (Sefaz-Sp), é o medo de represália. "Se houver represália, então que uma nova denúncia seja feita. Denunciar é melhor do que ser conivente. Ao pagar o bandido, o empresário se torna refém dele e terá de pagar outras vezes", adverte Pacheco, explicando que "o que não pode ocorrer é a omissão, porque a corregedoria só pode trabalhar a partir das informações que recebe. Sem que o empresário faça a denúncia, não temos como investigar". Ao longo de 2010, a corregedoria de fiscalização tributária da Sefaz-Sp exonerou oito fiscais por extorquirem empresários – um número insignificante, a julgar o quanto a prática está generalizada no país, mas bastante representativo se se considerar que apenas 13 denúncias chegaram até ela. Já no âmbito federal, estes números são mais expressivos. Em 2010, a corregedoria da Receita Federal recebeu 670 denúncias contra funcionários da instituição. Como as investigações se acumulam ao longo dos anos, o número real de servidores da Receita Federal na mira da corregedoria supera os 800, sendo que pelo menos 20% deles apresentam patrimônio incompatível com os rendimentos - ou seja, há indícios de que captavam recursos de maneira ilícita. Desde 1995 a Receita exonerou 368 servidores. (M.C.)


Um giro pela legislação

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m vigor desde 15 de fevereiro de 1999, a Convenção da OCDE, que visa coibir a corrupção de servidores públicos estrangeiros nas transações comerciais entre países, ganhou reforço de dezenas de outros instrumentos legais e compromissos internacionais ao longo dos anos. Considerada, todavia, um dos pilares do arcabouço jurídico que trata do assunto, a Convenção da OCDE – clara na definição de obrigações para governos, empresas, contadores públicos, advogados e a própria sociedade civil das 38 nações signatárias –, gerou duras críticas em relatório divulgado ano passado pela Transparency International. Para a TI, África do Sul, Áustria, Austrália, Brasil, Canadá, Chile, Eslováquia, Eslovênia, Estônia, Grécia, Hungria, Irlanda, Israel, México, Nova Zelândia, Polônia, Portugal, República Checa e Turquia – isto é, metade dos integrantes do acordo – não cumprem as convenções. Juntos, estes países representam 15% das exportações mundiais. No grupo de nações que aplicam a convenção da OCDE "de forma moderada", aparecem Argentina, Bélgica, Coreia do Sul, Espanha, Finlândia, França, Holanda, Japão e Suécia. Ao todo, respondem por 21% das exportações mundiais. Apenas sete países "aplicam ativamente" as recomendações da OCDE: Alemanha, Dinamarca, Estados Unidos, Itália, Noruega, Reino Unido e Suíça. Em conjunto, são responsáveis por 30% das exportações mundiais, sendo que Portugal e Canadá estão entre os estados-membros que observam "pouco ou quase nada" os dispositivos da OCDE. Ainda segundo a TI, o número de países que cumprem razoavelmente o acordo duplicou, passando dos 8 iniciais para 16. No entanto, vale lembrar que um terço das exportações mundiais correm por conta de países que não são signatários da convenção, entre eles, China, Rússia e Índia, cujo papel econômico é cada vez maior no mundo. Compromisso verde-amarelo Ao lado da Convenção da OCDE, da qual é signatário, as principais convenções assinadas e ratificadas pelo Brasil são de âmbito internacional, como a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) contra a Corrupção. No seu texto, ela aborda a questão da cooperação internacional, trata de medidas preventivas e dispõe sobre criminalização, aplicação da lei e recuperação de ativos. Outro instrumento legal adotado pelo Brasil é a Convenção Interamericana contra a Corrupção (Convenção da OEA Organização dos Estados Americanos), que tem como objetivo promover e fortalecer o desenvolvimento, por cada um dos Estados-partes, dos mecanismos necessários para

prevenir, detectar, punir e erradicar a corrupção, adotando as medidas legislativas necessárias para garantir a efetiva erradicação do problema. Promulgada pela administração Fernando Henrique Cardoso em junho de 2002, a lei 10.467 define os conceitos de "corrupção ativa em transação comercial internacional" e "tráfico de influência em transação comercial internacional", estabelecendo multa e pena de reclusão em ambos os casos. O Acordo de Cooperação Trilateral Índia, Brasil e África do Sul (IBAS), por sua vez, foi estabelecido com o objetivo de alcançar diversos setores de políticas públicas, conforme consignado no Memorando de Entendimentos entre os governos dos três países, para cooperação em áreas de administração e governança pública tais como e-governança, prestação de serviços direcionados ao cidadão, ética, responsabilidade social e transparência. Entre as formas de cooperação, citam-se seminários, reuniões de trabalho, palestras, videoconferências, intercâmbio de especialistas, cursos de capacitação, pesquisas comparativas e treinamento de servidores públicos de um país por outro. - A partir de julho de 2011, o Reino Unido adotou a UK Bribery Act, lei que pune a prática de corrupção entre empresas privadas e governos, locais ou estrangeiros, bem como o pagamento de propina no setor privado. - Recentemente, os EUA concluíram a regulamentação da Dodd-Frank Act, instrumento legal que incentiva denúncias de fraudes contábeis e violações às normas por qualquer companhia que negocia ações no país. Esta lei vem se somar à antiga (FCPA - Lei Contra Práticas de Corrupção no Exterior), aprovada em 1977, em geral ignorada até a década passada e agora intensificada no mercado norteamericano. A FCPA proíbe que empresas americanas ou listadas em bolsas dos EUA paguem ou ofereçam dinheiro a autoridades ou a empresas estatais estrangeiras em troca de vantagens em negócios. - No início do ano de 2000, o Parlamento australiano instituiu a Taxation Laws Amendment Act (Nº 2) 2000, que determina que propinas pagas a representantes do serviço público não têm isenção fiscal. Outros países também não permitem que estas despesas sejam deduzidas: Bélgica, Canadá, Chile, França, Israel, Coreia, Nova Zelândia e Espanha. - A legislação na Rússia não diz claramente que despesas associadas ao pagamento de propinas não podem se beneficiar de isenção fiscal. No entanto, é considerado crime pagar suborno a funcionário público, russo ou estrangeiro, e a prática é passível de multa, trabalho comunitário, detenção ou confinamento, de acordo com o caso. (M.C.)

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Newton Santos/Hype

Efeitos cáusticos da falta de ética

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ia da Corrupção, caras pintadas, movimentos pela ética, denúncias, indignação. Mais do que nunca, a sociedade civil faz eco dos resultados de uma pesquisa do Ibope datada de 2008, quando a corrupção apareceu como o segundo problema mais grave aos olhos dos brasileiros – apenas superado pela falta de segurança pública. Mais antigo ainda, mas não menos atual, é o estudo realizado em 2003 pela ONG Transparência Brasil junto ao setor privado, que permitiu concluir: depois da elevada carga tributária, a corrupção é o maior obstáculo ao desenvolvimento empresarial. Canalizadora da atenção, e das preocupações de governos, corporações e acadêmicos, a falta de ética nas relações comerciais já foi comparada a um ácido que corrói o crescimento econômico, um câncer que debilita o organismo social e um círculo vicioso que encurrala os mais pobres no beco da miséria, privando-os de educação, saúde e transporte de qualidade. Exemplos existem e pululam em cada canto. E podem envolver multinacionais, entidades,

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associações e ONGs que estampam a melhor das intenções e desfraldam as causas mais nobres: em Kuala Lumpur, capital da Malásia, investigações dão conta de que funcionários desonestos embolsam 8 de cada 10 dólares destinados a programas contra a fome e a mortalidade infantil. Nas Filipinas do ex-presidente Joseph Estrada, destituído por desonestidade, o Banco de Desenvolvimento da Ásia (ADB) calcula que um terço dos recursos foi parar nas mãos de corruptos. Fabricante de roupas especiais para empresas de petróleo e usinas nucleares, a Control Components, norte-americana, declarou-se culpada perante um esquema de corrupção recém-desmantelado e perpetrado durante dez anos em 36 países. Para o Banco Mundial, as perdas com a corrupção só na América Latina equivalem a jogar pelo ralo 10% do seu PIB, anualmente. Em escala mundial, o dinheiro sujo, avaliado pelo BIRD em US$ 1 trilhão com base em critérios de boa governabilidade em 212 países, quase se equipara ao valor gasto pela comunidade internacional com armamentos militares, US$ 1,3 trilhão, segundo informações contidas no

De acordo com dados do Banco Mundial, as perdas com a corrupção só na América Latina equivalem a jogar pelo ralo 10% do PIB da região anualmente.


Wilson Pedrosa/AE

relatório do Instituto de Estudos para a Paz de Estolcomo (SIPRI) de 2008. Mas aliciar, subornar, não equivale apenas a esbanjar dinheiro. Supõe hospitais e escolas de qualidade mais que duvidosa, estradas em péssimo estado de conservação, pontes que ameaçam ruir, alimentos e medicamentos fora das normas de qualidade. Mais que tudo, corrupção significa desperdiçar oportunidades, potencial e vidas. "O que custa a corrupção é o número de crianças que morrem devido ao fato de que a verba do leite foi extraviada", define o economista Marcos Gonçalves da Silva, autor do livro Ética e Economia: uma Abordagem Econômica, Política e Organizacional. "O que custa é o que você deixou de crescer devido ao fato de que os recursos econômicos não foram investidos em atividades produtivas." De fato, são notórios os custos sociais que a corrupção impõe às sociedades onde ela perdura: freios ao desenvolvimento, enfraquecimento das instituições democráticas e dos valores morais, descrédito nos serviços públicos, comprometimento da legitimidade política e

consequente avanço do crime organizado. Uma pesquisa elaborada por Cheryl Gray, diretora do setor de redução de pobreza do Banco Mundial, e Daniel Kaufmann, especializado no fenômeno do desvio de dinheiro público, aponta ainda outras consequências: aumento da incerteza em relação aos agentes econômicos, o que provoca redução nos investimentos internos e externos, públicos e privados; distorções no estabelecimento de prioridades, uma vez que a corrupção está quase sempre por trás dos gastos militares de alta tecnologia que são feitos por nações miseráveis da Ásia e da África e poderiam estar sendo aplicados na construção de hospitais ou escolas; favorecimento dos cartéis e das grandes corporações com fôlego financeiro suficiente para pagar propina a legisladores e funcionários corruptos, em detrimento das empresas menores; comprometimento de uma maior parcela do orçamento familiar por parte das populações mais carentes, para obter serviços de saúde e atendimento da polícia. Para o ex-presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, a corrupção no setor públi-

Depois da elevada carga tributária, a corrupção é o maior obstáculo ao desenvolvimento empresarial no Brasil.

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Corrupção pode minar o crescimento do Brasil oi o que afirmou Alexandra Wrage, presidente da Trace International, em entrevista por e-mail DIGESTO - Qual a ligação se pode f a z e r e n t r e c o rr u p ç ã o e d e s e nvolvimento? Alexandra Wrage - Em geral, países em desenvolvimento não têm mecanismos internos eficientes para controlar a prática do achaque, seja na máquina administrativa, seja nos negócios. A ausência deste rígido controle pode abrir muitas oportunidades para os tomadores de propina, e oferecer poucas opções àqueles que querem resistir ao suborno. Além disso, vemos em geral "esquemas em pirâmide", nos quais é esperado que funcionários do governo paguem aqueles que estão acima deles para manter seus empregos. Com frequência, quando são finalmente promovidos, estes empregados juniores entendem que "chegou a vez deles". Como explicar a incidência de corrupção tanto nos EUA, um país desenvolvido e ainda assim mais corrupto atualmente do que no passado, quanto em nações em desenvolvimento, como o Brasil ou o Egito? Não creio que os EUA sejam mais corruptos hoje do que há alguns anos atrás. Penso que a situação melhorou muito. A diferença é que as pessoas estão falando mais a respeito deste assunto, as empresas estão se policiando mais, promotores estão trazendo à tona um maior número de casos e mais gente está parando na cadeia, e isso está aparecendo nos

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jornais. Quando dou treinamento contra a corrupção em países em desenvolvimento, sempre trago à lembrança os casos norteamericanos de corrupção mais conhecidos aqueles onde os executivos e ex-políticos estão agora atrás das grades. Estes exemplos mostram que o sistema está funcionando. Nunca vamos acabar com a corrupção, assim como nunca vamos exterminar outras formas de roubo, mas investigar e levar à Justiça os delitos conta como resultado positivo neste campo. É correto dizer que a corrupção é uma questão cultural? Em que sentido? Não creio que a corrupção seja uma questão cultural. Nenhuma cultura celebra o roubo ou o abuso de poder. Ao contrário, a corrupção é uma questão de oportunidade. Sempre haverá gente que rouba, que enriquece inapropriadamente, se saindo bem da situação. Se o corrupto se sai bem é porque a polícia não vai investigar, os juízes não vão processar e porque eles sabem que podem pagar para se livrar do problema, acaso o sistema investir contra eles. Em sua opinião, qual é o maior problema causado pela corrupção no Brasil? Se ela continuar no ritmo atual, há um perigo real de minar o crescimento e desencorajar o espírito empreendedor. Bons produtos deveriam ser vendidos pelo melhor preço. Quando o suborno distorce o processo, produtos de má qualidade são vendidos a preços inflacionados. Ressente-se o mercado, e ressente-se o consumidor. (M.C.)

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Divulgação

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co é tão ou até mais cruel que a inflação e somente comparável a um incêndio florestal: "Muitas vezes ela não pode ser contida. Mas, sem lhe dar combate, seu poder de destruição não tem limites". Principalmente nos países mais pobres. Tanto é que entre 1989 e 1998, as nações que apresentaram maior queda no PIB – isto é, aquelas onde houve retração da economia –, foram justamente as campeãs mundiais da corrupção. Ainda hoje, a ideia de que a falta de ética nas relações comerciais prejudica os investimentos nos mercados emergentes se mantém muito atual. Andy Spalding, pesquisador da Fundação Fulbright, na Índia, e ex-advogado de fraudes no setor financeiro em Washington, que pesquisa o impacto da Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) nos países emergentes, acredita, por exemplo, que desde que a FCPA foi sancionada, os investimentos de empresas norte-americanas em países considerados corruptos não cresceram com a mesma rapidez com que o fariam, se a lei não estivesse em vigor. Na opinião dele, um dos principais problemas do cumprimento da legislação é o valor cada vez maior das multas, que pode estancar acordos e frustrar negócios em alguns países. De fato, para fazer frente à sua crise interna, os EUA passaram a monitorar de mais perto o pagamento de propinas no exterior, por parte de empresas com presença marcante no mercado norte-americano. Esta caça às companhias corruptas varreu os cinco continentes, ateve-se a pelo menos 120 empresas investigadas por violações da FCPA e gerou multas polpudas. Além disso, acredita o governo norte-americano, encorajou os parceiros comerciais do EUA a adotarem suas próprias leis anticorrupção. Para Andy Spalding, no entanto, enquanto o país tenta enredar aqueles que não observam a FCPA, um dos desdobramentos desta cruzada ética seria o fato de outras nações pouco sensíveis à causa ocuparem estes mercados deixados vagos: "Esses cavaleiros negros se moverão para preencher a lacuna", esclarece Spalding em relatório, e "a economia mundial poderia lentamente se dividir em duas economias: uma onde a corrupção é tolerada, e outra onde não é". Estaria, então, a humanidade caminhando para um modelo geopolítico onde o principal divisor de águas é a observância, ou não, do código de ética nas relações comerciais? Tomaria a corrupção o lugar do comunismo, para nortear parcerias e dividir o planeta? Dinheiro para subornar é a outra face daquela mesma moeda forte


que permite concentrar meios de produção em prejuízo dos mais pobres, como apregoava o velho Marx? Preço salgado Seja como for, no Brasil, saltam aos olhos os números contidos no estudo realizado pelo Departamento de Competitividade e Tecnologia (Decomtec) da Federação das Indústrias de São Paulo, em maio de 2010. Segundo o relatório, que levou em conta dados de 2008, os prejuízos econômicos e sociais que a corrupção causa ao país oscilam entre R$ R$ 41,5 e 69 bilhões de reais por ano, ou 1,38% a 2,3% do PIB. Mais: não fosse o famoso "jeitinho brasileiro", a renda per capita nacional seria de US$ 9 mil, e não de US$ 7.954 – ou seja, 15,5% maior. Não bastassem estas credenciais, é na projeção do bom uso do dinheiro usado hoje para pagar propinas que o trabalho da Fiesp se revela mais contundente: caso o Brasil estivesse entre os países menos corruptos do mundo, todos os serviços públicos se beneficiariam. O número de matriculados na rede pública do ensino fundamental saltaria de 34,5 milhões para 51 milhões de alunos, um aumento de 47,%. Os setores de saneamento e infraestrutura também seriam substancialmente melhorados. Os 22.500.000 domicílios com esgoto, segundo estimativas do PAC, passariam para 23.347.547, um crescimento de 103,8%, reduzindo assim a mortalidade infantil. Os 2.518 km de ferrovias que fazem parte das metas do PAC seriam acrescidos de 13.230 km – um aumento de 525% para escoar a produção nacional. E os portos poderiam aumentar de número, pulando dos 12 atuais para 184, num incremento de 1.537%. Além disso, o montante absorvido pela corrupção poderia ser utilizado para a construção de 277 novos aeroportos, um crescimento de 1383%. Ainda segundo a Fiesp, caso o Brasil promovesse um grande mutirão ético, nos hospitais públicos do SUS, o número de leitos para internação, atualmente de 367.397, poderia ser reforçado com outros 327.012 leitos (89% a mais) e, no setor de habitação, a oferta de moradias populares cresceria consideravelmente: longe da ditadura da corrupção, outras 2.940.371 famílias se somariam às 3.960.000 que devem ser atendidas pelo PAC, perfazendo um aumento de 74,3%. Mais do que uma equação matemática, duas paralelas crescentes - moralidade e prosperidade - que vão se encontrar no infinito. (M.C.)

Onde navegar BRIBEline.org https://www.bribeline.org Group of States against Corruption http://www.coe.int/t/dghl/monitoring/ greco/default_en.asp Trace Anti-Bribery Compliance Solutions https://secure.traceinternational.org Transparency International http://www.transparency.org OECD http://www.oecd.org Ethisphere http://acstage.ethisphere.com TrustLaw http://www.trust.org/trustlaw/ FCPA Blog http://www.fcpablog.com/

O que ler - The High Cost os Small Bribe - Alexandra Wrage https://secure.traceinternational.org/data/public/ The_High_Cost_of_Small_Bribes_2-65416-1.pdf - The OECD Convention on Bribery: a commentary - Mark Pieth, Lucinda A. Low & Peter J. Cullen - Anti-Bribery Risk Assessment: A Systemic Overview of 151 Countries - Thomas Gruetzner, Ulf Hommel & Klaus Moosmayer - Bribery and Corruption: Navigating the Global Risks - Richard A. Sibery & Brian P. Loughman - Cultura das Transgressões no Brasil, Roberto DaMatta - Ética e Economia: uma Abordagem Econômica, Política e Organizacional, Marcos Gonçalves da Silva.

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Eduardo Knapp/Folha Imagem José Cruz/ABr

SOCIALISMO DA CORRUPÇÃO

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"Marcha para Jesus" e a "Marcha Contra a Corrupção" tiveram, no mínimo, o mérito de romper com quatro décadas de monopólio esquerdista das manifestações de rua. Isso não é pouca coisa. Se só um lado tem o direito de esbravejar em público pelas bocas de milhares de manifestantes, o outro lado fica parecendo, necessariamente, uma elite isolada do povo, fechada em suas mansões, conspirando para o malefício geral. A própria "direita" colaborou para criar essa perigosa ilusão de ótica, na medida em que, durante todo esse tempo, se limitou à pura política eleitoral, omitindose de qualquer esforço mínimo para a formação de um corpo ativo de militantes. A esquerda queria o controle da praça pública e a direita não tratava senão de deixar o espaço livre para que ela o fizesse. O acúmulo de descalabros, somado à ameaça ostensiva de perseguição religiosa, fez com que a energia popular restante, que os conservadores e liberais desprezaram, explodisse nas ruas e nas praças por conta própria, ignorando e passando por cima dos anais partidários. Agora sabemos de que lado está o povo. Se isso demonstra claramente que a pretensão dos partidos de esquerda de ser os representantes exclusivos da opinião popular era uma mentira artificialmente imposta, por outro lado o fato de que aquelas manifestações se denominem apartidárias e supra-ideológicas evidencia que a revolta ainda é tímida demais para assumir uma identidade política. Uma força que não consegue se definir é um elemento amorfo que pode facilmente ser cooptado e canalizado para trabalhar para os mesmos grupos e partidos contra os quais protesta. Afinal, quem mais lucrou nas últimas décadas com a bandeira do "combate à corrupção" foi o mesmo partido que criou o Mensalão. E não se pense que ele caiu nisso por ter perdido o seu originário moralismo idealista, pois os dois processos foram simultâneos: destruir as reputações dos inimigos e substituir as suas modestas operações ilícitas pelo maior esquema de corrupção que já se viu na América Latina. O próprio Luiz Inácio Lula da Silva se autodesmascarou ao declarar: "O corrupto é quem mais denuncia, pois sabe que não será pego". Só um perfeito idiota não percebe que ele falava de si próprio e do seu partido. O que o PT fez, antes e depois de chegar ao poder, foi instaurar o socialismo da corrupção: extinguiu os focos isolados e centralizou a administração do roubo, açambarcando o terreno dos concorrentes. Uma organização capaz de fazer isso tem mais domínio das campanhas populares do que qualquer outra que já tenha existido neste país. Se as sementes anárquicas de revolta contra o

banditismo estatal não conseguirem se unificar num movimento político coerente, com uma identidade clara e consciente entre todos os seus membros, acabarão por se dispersar na luta por objetivos genéricos que podem facilmente ser reaproveitados pelo PT e seus cúmplices. Se os níveis de corrupção subiram mais durante a administração do Sr. Lula do que em toda a história nacional anterior, isso não se deve a mera casualidade, mas ao concurso de três fatores que tornam a corrupção petista um fenômeno qualitativamente diferente de tudo o que veio antes. Esses três fatores foram postos em movimento pela própria ação deliberada dos petistas e seus cúmplices em vários setores da vida social e política: Primeiro, o espírito de lealdade militante, inerente à tradição comunista, que espalhou entre milhões de agentes o sentimento de que roubar só é feio quando em exclusivo proveito próprio, mas se torna lindo, ou pelo menos perdoável, quando feito para o bem da revolução esquerdista. A disseminação dessa mentalidade permitiu que o roubo e a fraude se elevassem a novos patamares de organização, fazendo do Estado inteiro um instrumento de enriquecimento ilícito.

Olavo de Carvalho Divulgação

Jornalista, escritor e professor de Filosofia


Edu Garcia/AE Luludi/Luz

Durante as CPIs dos anos 90, os parlamentares petistas, diante de qualquer tramoia chinfrim montada real ou imaginariamente entre políticos e empresários, se apressavam a exclamar, com os olhos esbugalhados: "É um Estado dentro do Estado!". Era uma figura de linguagem, uma hipérbole. Mas a corrupção petista é, literalmente, até mais que um Estado dentro do Estado: é a absorção e instrumentalização do Estado para fins partidários e grupais. É o Partido acima do Estado. Em segundo lugar, a roubalheira descarada e impune seria impossível numa sociedade moralmente normal. Para poder roubar livremente, com a certeza da impunidade, foi preciso primeiro dissolver e confundir todos os padrões morais, sob pretextos "politicamente corretos" de um pedantismo, de um artificialismo e de uma absurdidade incomparáveis, ao ponto de induzir as pessoas a se sent i re m m a i s p e c a d o r a s quando fumam ou comem comidas gordurosas do que quando se entregam gostosamente às mais vistosas obscenidades. A moralidade pública não depende tanto de regras explícitas como da sanidade do sentimento moral espontâneo, que discerne o Vidal Cavalcante/AE

O próprio Luiz Inácio Lula da Silva se autodesmascarou ao declarar: "O corrupto é quem mais denuncia, pois sabe que não será pego". Só um perfeito idiota não percebe que ele falava de si próprio e do seu partido. O que o PT fez, antes e depois de chegar ao poder, foi instaurar o socialismo da corrupção.

bem e o mal à primeira vista. É fato sociologicamente comprovado que a imposição rápida e forçada de novas normas morais confunde esse julgamento espontâneo e cria o fenômeno da anomia, falta generalizada de discernimento moral. O mensalão não seria possível se não fosse antecedido por quatro décadas de "revolução cultural" que habituaram o povo a reprimir seus julgamentos para não parecer antiquado e reacionário, e que assim o tornaram pouco a pouco indeciso, fraco, incapaz de reagir até mesmo mentalmente. Sinal dessa fraqueza é, só para dar um exemplo entre muitos, a completa ausência de curiosidade quanto à origem dos recursos que financiam o Foro de São Paulo. A organização, que de início se proclamava inexistente, cresceu ao ponto de hoje dominar uma dúzia de países, e ninguém, nem entre os políticos, nem entre os jornalistas, nem entre os militares de alta patente, se levanta da poltrona para perguntar: "De onde veio o dinheiro para fazer tudo isso?" Quando um povo grita contra a corrupção em abstrato, mas cerra os olhos diante da mais suspeita das entidades, é previsível que o grito soará em ouvidos moucos ou será respondido com algum arremedo hipócrita de ação moralista, de iniciativa, é claro, dos próprios corruptos. Por fim, é preciso contar com a imensa rede de informantes e colaboradores, espalhada no funcionalismo público, nas empresas privadas, na mídia, nas escolas e nas igrejas, fator que permitiu à elite petista ter praticamente o controle total sobre seus adversários e tornarse a fonte única de todas as iniciativas sociais, culturais e políticas. Nenhuma outra entidade jamais teve tamanho poder neste país. Some-se ao oceano dos seus recursos a rede de contatos internacionais, dos quais o próprio Foro de São Paulo não é senão uma parcela e fragmento, e se verá como a organização racional da corrupção se tornou, para essa gente, o mais fácil e corriqueiro dos empreendimentos. A revolta popular, por maior e mais genuína que seja, é impotente contra esse monstro de um milhão de caras e vários milhões de braços.

Joedson Alves/AE

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A extravagância dos impostos, aqui e na Itália Domingos Zamagna

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Brasil é sabidamente um dos países com a maior carga tributária do mundo. Nossas listas oficiais elencam de 75 a 85 impostos, mas há muitos empenhos que não são considerados impostos, como laudêmios, pedágios, aforamentos etc. A rigor as pessoas físicas e as empresas arcam com um centenário de compromissos tributários. Os brasileiros trabalham cerca de cinco meses para saldar seus encargos com o fisco; 6% das despesas das empresas são devidos à administração tributária de uma carga que não fica aquém de 37% do PIB. Tais impostos acabam sendo um dos maiores inibidores de investimentos no Brasil. O retorno pelo pagamento de tão altas taxas é decepcionante, e pode ser constatado nos péssimos serviços prestados nas áreas da saúde, educação, infraestrutura, previdência, segurança, lazer... Parte dessa imensa soma arrecadada é consumida pela corrupção e pela má aplicação do dinheiro público. Concentrador, o nosso sistema tributário é sobretudo injusto, já que 47% dele advêm do consumo (tratando os diferentes como se fossem iguais), 26% da folha de salários, 20% da renda e 5% das transações financeiras e da propriedade. Trata-se de um problema antigo, mas não se vê perspectiva de

solução; muito pelo contrário, a arrecadação caminha muito mais rápido do que a economia. Com efeito, no dia 12 de setembro, o Impostômetro, mantido pela ACSP - Associação Comercial de São Paulo e pelo IBPT - Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário, registrou um trilhão de reais arrecadados desde 1º de janeiro de 2011, 35 dias antes da mesma quantia atingida no ano passado. Quem pode dizer, com segurança e transparência, qual tem sido a destinação dessa soma astronômica: o Executivo, o Congresso, os Tribunais de Contas, as universidades, os organismos sindicais...? Podemos observar outras nações que partiram para a aplicação de impostos escorchantes, compará-los com os nossos. O presente artigo oferece um exemplo, o da Itália, e não é por acaso, pois a grave crise por que passa esse país tão próximo dos brasileiros certamente tem a ver com a sua tradição tributária, jamais modernizada, mesmo depois de inserida na Comunidade Europeia. Eis alguns dos impostos italianos mais curiosos e até extravagantes.

Agliberto Lima/DC

No dia 12 de setembro, o Impostômetro, mantido pela ACSP e pelo IBPT, registrou R$ 1 trilhão arrecadados desde janeiro

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Cris Berger

Impostos incluídos no preço taxa diferenciada conforme a clasda gasolina em épocas remotas e sificação do hotel); sobre o desemjamais retirados: contribuição paprego (para poder participar dos ra a Guerra da Abissínia (1935); criconcursos públicos); sobre as díse de Suez (1956); desastre de Vavidas (referente às práticas hipojont em 1963; aluviões de Florença tecárias); sobre os emigrantes (paem 1966; terremotos de Belice ra quem trabalha no exterior, se (1968), Friuli (1976), Irpina (1980); não houver tratado para evitar a missão no Líbano (1983); missão bitributação); sobre cadeiras de na Bósnia (1996) etc. rodas para deficientes físicos (nos Imposto sobre os degraus e as transportes aéreos) sacadas: para as casas que têm deImpostos macabros: sobre os graus de ingresso sobre as vias púmortos (se alguém morre, alguém blicas, ou sacadas de prédios volainda vivo deve pagar um impostadas para as vias públicas to para emissão da certidão de Imposto sobre a sombra: quanóbito); sobre o féretro (os municído os chapéus de sol dos bares "inpios não deixam por menos de 80 vadem" a via pública euros); sobre os túmulos (para a Imposto sobre os espíritos: manutenção dos cemitérios); somas não os desencarnados, pois a bre as velinhas dos túmulos (é o jurisdição do Estado não chega negócio da eletroiluminação votiao além, são impostos sobre os va); sobre a dispersão das cinzas destilados (o pedido de licença e as proviImposto patriótico: para quem dências para a dispersão não hastear bandeiras italianas e/ou saem por menos de 100 euros) da Comunidade Europeia Impostos esotéricos: impostos O fisco italiano muda as regras do jogo Imposto sobre os cães: baseado sobre a memória e a voz (paga-se várias vezes durante o mesmo exercício, num decreto de 1918, em vigor para uso privativo ou profissional colocando em sérias dificuldades os que desde 1931, calculado segundo o de celulares, porque as vozes não desejam andar em dia com suas obrigações. tamanho do animal são iguais) e miríades de taxas soImposto sobre os esposos: pabre as várias tecnologias de mulra se casarem no município – em tiplicação de imagens foto-cineRoma, 200 euros para casamento no Campidoglio nos fins matograficas, CDs, DVDs e demais técnicas de memorização e de semana, 150 durante a semana tudo o que cair sob o domínio dos direitos autorias Imposto sobre centrais nucleares fantasmas: recolhidos Outros: sobre as geladeiras, bueiros e tubos, cabines telefôpara os municípios que abrigam ou abrigarão centrais nucleanicas, assentos públicos, rebanhos, invenções, petições públires, ainda que previstas – mesmo que improváveis – para dacas, saídas de garagens etc. qui a não menos de dez anos Imposto sobre os estudantes universitários: pagam-se imO Brasil chega lá postos para se ter direito de cursar as universidades. Imposto sobre os pântanos: decreto régio de 1904 cria imNa Itália, cada ano, são exarados mais de 60 mil novos dispostos sobre pântanos que se tornaram agricultáveis, mesmo positivos tributários. O fisco italiano muda as regras do jogo que hoje sejam quarteirões de prédios várias vezes durante o mesmo exercício, colocando em sérias Imposto sobre colheita de cogumelos: é preciso pagar para dificuldades os que desejam andar em dia com suas obrigacolher, nos campos, o precioso ingrediente para o tempero das ções. Calcula-se que cada cidadão italiano, para exercer uma famosas macarronadas atividade econômica, pague uma taxa de 5.000 euros por ano, Imposto sobre os televisores: por cada aparelho numa recontra 1.300 na França e no Reino Unido, 1.200 na Alemanha e sidência recolhe-se o "cânone RAI", independentemente da na Espanha, 1.000 na Holanda, 900 na Suécia. real fruição ou da vontade de fruir do serviço E que dizer da perda de tempo com as formalidades buroImposto ecopass: contra poluição atmosférica, para o trâncráticas, depósito de documentos, comprovação de depósito, sito automobilístico, conforme a região notificações, resposta de questionários...? Os agendamentos Impostos embutidos nas contas do gás e da luz: são vários, o costumam aguardar 30 dias de análise e o resgate de créditos que faz o gás italiano ser 25% mais caro que o resto da Europa junto ao erário pode aguardar anos. Impostos incluídos na construção civil: elevadores de serMais um pouco de esforço e aperfeiçoamento e o Brasil cheviço, escadas, guindastes, trilhos, cavaletes, andaimes etc. ga lá! Nosso país está disposto a competir em pé de igualdade Impostos arbitrários: sobre a permanência dos turistas (cacom quem tiver mais impostos do que nós. A meta parece ser: da turista, para permanecer no solo italiano, deve pagar uma igual, até pode ser, mais que nós, nunca!

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Sonho em alta velocidade Carlos Ossamu

Mesmo com o fracasso de três leilões, o governo federal está disposto a viabilizar o projeto do trem de alta velocidade (TAV). Evento na ACSP discutiu o tema

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m julho, o governo federal decidiu mudar o modelo de concessão do trem de alta velocidade (TAV), que ligará São Paulo ao Rio de Janeiro, após adiar pela terceira vez o leilão, agora por falta de empresas interessadas no projeto. O novo modelo prevê duas concessões: na primeira, programada para fevereiro, será contratada a empresa que irá fornecer a tecnologia e que vai operar o veículo. Na segunda, será contratada a infraestrutura do projeto, envolvendo a construção de pontes, viadutos, túneis e estações. Os custos do projeto superam R$ 33 bilhões, segundo cálculos do governo, que se encontra bastante ativo e decidido a viabilizar a sua construção. O edital do TAV deve ser publicado até o fim de outubro e a previsão é que as obras comecem

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em 2013, com prazo de seis anos para a sua conclusão. Porém, há várias questões que ainda geram dúvidas, a primeira é a mais básica e se refere à real necessidade de o País ter um trem de alta velocidade, se não seria melhor investir em ferrovias de média velocidade e em linhas de metrô. As empresas estrangeiras que detém a tecnologia do TAV, por sua vez, querem discutir a questão da transferência de tecnologia, uma exigência do governo para que elas participem do projeto. E ainda há muitas dúvidas em relação aos custos e se haverá demanda. Para discutir essas e outras questões, a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) realizou no fim de setembro o evento "Seminário sobre a Viabilidade do Trem-Bala", que contou com a participação de Hélio Mauro

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França, superintendente executivo da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Também estiveram presentes ao evento o presidente da ACSP, Rogério Pinto Coelho Amato; Luiz Gonzaga Bertelli, vice-presidente e coordenador do Conselho de Infraestrutura da ACSP; Aluízio de Barros Fagundes, presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo; Plínio Assmann, ex-presidente da Companhia do Metrô de São Paulo; Luiz Fernando Ferrari, vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer); Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda; José Geraldo Baião, presidente da Associação dos Engenheiros e Arquitetos de Metrô (Aeamesp); e Freude Erasmo de Araújo; diretor da TTrans. Segundo o superintendente da ANTT, não é de hoje que o governo federal vem estudando soluções de logísticas nas regiões do Vale do Paraíba, Campinas e em todo o eixo RioSão Paulo. Algumas discussões e projetos datam dos anos 60, outras dos anos 70, mas em 2006/07 o governo brasileiro resolveu empreender novos estudos sobre o trem de alta velocidade (TAV). "Não existe uma única definição aceita sobre o que constitui uma ferrovia de alta velocidade. No Japão, quando surgiu o trem-bala em 1964, ele viajava a 210 km por hora. Hoje, considera-se alta velocidade o trem capaz de operar acima de 250 km por hora. A ferrovia de alta velocidade é mais adequada para distâncias entre 500 km e 600 km; acima disso, a viagem aérea torna-se mais competitiva", disse França.

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VANTAGENS DO TAV Hoje, a linha ferroviária de alta velocidade soma em torno de 18 mil quilômetros no mundo. O primeiro a adotar a tecnologia foi o Japão, depois vieram a França (1981), Alemanha, Espanha (que tem a maior rede europeia), Taiwan, Coreia do Sul e mais recentemente a China, que vem investindo fortemente neste tipo de transporte. Os trens viajavam a uma velocidade entre 280 e 320 km por hora, com exceção da Espanha, que opera a 350 km por hora. A China reduziu a velocidade para 300 km por hora. "O principal argumento do TAV é o tempo de viagem de centro a centro das cidades, que é competitivo quando comparado ao transporte aéreo. Outra vantagem é a capacidade do trem, que é bem maior, podendo transportar entre 450 e 750 pessoas, dependendo da configuração e comprimento", explicou França. Além disso, o que se vê em outros países, e espera-se que se repita por aqui, caso o projeto TAV vingue, é que eles são serviços frequentes, de alto desempenho e pontualidade; oferecem alto nível de conforto para os passageiros, oferecendo classes executiva e econômica e serviços de alimentação; e possuem estações convenientemente localizadas, com melhor acessibilidade quando comparadas com aeroportos – em alguns lugares são estações centrais, em outros são abastecidas com redes de metrô, linhas de ônibus e boas rodovias. Segundo contou França, no caso do projeto brasileiro, ele é baseado em tecnologia de ferrovia de alta velocidade genérica, compatível


Euler Paixão/Hype

com o que é usado hoje no mundo, com provisão específica para um traçado dedicado e totalmente segregado para maximizar a velocidade de operação e assegurar alto desempenho operacional em termos de confiabilidade e pontualidade. O TAV não compartilhará qualquer via existente ou tão pouco terá operações conjuntas com serviços ferroviários ou de metrô. O seu traçado prevê vias dedicadas para a estação principal em cada cidade, com o traçado frequentemente localizado em túneis em áreas urbanas densamente povoadas. "O traçado, de 510 quilômetros, vai conectar três aeroportos, duas estações intermediárias e três estações de destino, ou seja, do Rio de Janeiro, próximo à Central do Brasil, depois o aeroporto do Galeão, uma estação em Barra Mansa ou Volta Redonda, São José dos Campos – estamos considerando uma estação em Aparecida do Norte –, Guarulhos, São Paulo, Viracopos e Campinas", explicou o executivo, acrescentando que a região é uma das mais populosas do País, com cerca de 36 milhões de habitantes, e a mais desenvolvida economicamente, respondendo por 40% do PIB. A previsão é de que o TAV faça a viagem de São Paulo ao Rio de Janeiro em 93 minutos, e de São Paulo a Campinas em 30 minutos. Foram realizados estudos técnicos de demanda, traçado e geologia, que estão disponíveis na internet desde julho de 2009. Os custos estimados, com base em setembro de 2008, é da ordem de R$ 33 bilhões e haveria a participação do setor público no capital e no financiamento. ARGUMENTOS Para o superintendente da ANTT, o cenário atual beneficia o projeto de um trem de alta velocidade ligando São Paulo ao Rio de Janeiro. Há uma saturação da Rodovia Presidente Dutra; esgotamento da capacidade operacional dos aeroportos de Congonhas e Guarulhos; possibilidade de expansão do transporte de passageiros no Aeroporto de Viracopos; há oportunidades para a implantação de um novo modal de transporte menos agressivo ao meio ambiente para serviço regional; existe a possibilidade de atração de investidores para desenvolvimento de projetos imobiliários ao longo do eixo da ferrovia, desconcentrando grandes centros urbanos; haverá o desenvolvimento da indústria ferroviária para passageiros com tecnologia avançada; e a iniciativa beneficiará a formação de recursos humanos e pesquisadores para atendimento da necessidade de mão de obra qualificada. "Em minha opi-

nião, não devemos limitar a discussão apenas na questão do transporte, pois ela vai além. Nós consideramos uma oportunidade para o desenvolvimento regional e tecnológico, criando um novo patamar na indústria ferroviária nacional, na qualidade da mão de obra e até na universidade. São questões que poderão trazer riqueza e valor para a economia brasileira" afirmou França. Para aqueles que acham que um sistema ferroviário com trens viajando a 150 km por hora, considerado de média velocidade, seria uma alternativa mais econômica, França enfatizou que estudos realizados indicam que a opção não é competitiva pelo custo elevado de implantação e tempo maior de viagem. "Este tipo de opção foi objeto de estudo e a conclusão é que poderia ser vantajoso em alguns casos, como unir cidades mais próximas, como Campinas, São Paulo e São José dos Campos", observou. O superintendente da ANTT afirmou ainda que o TAV poderá trazer um aumento da concorrência entre os modais de transporte, reduzindo preços de passagens e induzindo melhorias na qualidade; proporcionará a mitigação dos problemas de transporte de passageiros na região mais populosa do País; resultará na redução do número de acidentes rodoviários; uma melhoria na qualidade de vida e mobilidade, com conexão do TAV a metrôs e aeroportos; a indução do desenvolvimento econômico com geração de mais de 30 mil empregos diretos na fase de constru-

Hélio Mauro França, da ANTT: foram realizados estudos técnicos de demanda, traçado e geologia, que estão disponíveis na internet desde julho de 2009. Os custos estimados, com base em setembro de 2008, é da ordem de R$ 33 bilhões.

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Kazuhiro Nogi/AFP

O Shinkansen é considerado o primeiro trem de alta velocidade do mundo. Foi inaugurado em 1964, por causa das Olimpíadas de Tóquio.

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ção, com efeito multiplicador no crescimento do PIB; proporcionará uma arrecadação de IR/CSLL estimada em R$ 40 bilhões ao longo do período de concessão; e trará o desenvolvimento da indústria nacional, com absorção de novas tecnologias. "O sistema ocupa menos áreas que as rodovias, já que em média são 15 metros de largura, ocupando 3,2 hectares por quilômetro de linha construída. As rodovias, com 28 metros de largura, ocupam 9,3 hectares por quilômetro construído. Também há um menor consumo de energia por passageiro transportado e menor emissão de CO2, já que para cada cem passageiros transportados, o trem de alta velocidade emite o equivalente a 4 quilogramas de CO2. No caso de automóveis, a relação é de 14 quilogramas de emissão para cada grupo de cem passageiros transportados. Os aviões emitem 17 quilogramas de CO2 para cada grupo de cem passageiros", informou França, mostrando as vantagens do ponto de vista ambiental.

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ESTUDOS França afirmou que todos os estudos realizados durante a estruturação do TAV Rio de Janeiro-Campinas foram objeto de minuciosa análise e revisão, com metodologia avaliada por técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), firmas supervisoras renomadas internacionalmente, além de especialistas da Universidade Católica do Chile. "Prevê-se para 2014 um total de 32 milhões de passageiros/ano, o que equivale a 90 mil passageiros/dia, sendo 17 mil passageiros/dia entre Rio de Janeiro e São Paulo. É estimado 6,4 milhões de passageiros/ano apenas entre as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. Nos primeiros cinco anos de operação foi estimado um ramp up da demanda de passageiros, razão pela qual utilizou-se uma demanda 50% menor do que a estimada nos estudos técnicos, o que comprova a sua adequabilidade", disse o executivo da ANTT. Em relação aos custos levantados de R$ 33,1


Mark Ralston/AFP

bilhões, que estão todos detalhados na internet (www.tavbrasil.gov.br), França afirmou que, "apesar da afirmação de alguns de que os dados não estão corretos, que estão subestimados, ninguém nunca apresentou um documento que mostrasse onde estão os erros, quais os defeitos destes estudos para que pudessem ser melhorados. Se estivessem errados, poderíamos corrigir", afirmou. Segundo ele, os estudos trazem os custos de cada túnel, de cada viaduto, cada quilômetro de via, o preço do metro cúbico de aterro, são custos bastante detalhados, utilizando a base de dados do DNIT e levantamentos próprios, feito por uma empresa de consultoria contratada pela ANTT e pelo governo federal. "Se compararmos estes custos com o de outros países que implantaram o TAV, vemos que estamos na faixa média. Cada linha de alta velocidade é única, em função da especificidade física, do terreno, da localização e do tempo de viagem. Mesmo assim, os nossos custos são de 24 milhões de euros por quilômetro. A média mundial fica entre 40 milhões e 50 milhões de euros, assim, estamos até abaixo da média", afirmou França. EXIGÊNCIA DO PROJETO Um ponto importante deste projeto, e que já está gerando controvérsias, é a questão da transferência da tecnologia. "Isso é uma exigência do projeto. O objetivo é que no final a empresa pública ETAV ou a empresa que foi criada para fazer o planejamento do trem de alta velocidade e para coordenar o processo de transferência de tecnologia entre a indústria nacional, a academia e os institutos de pesquisas, eles detenham o conhecimento necessário para o desenvolvimento do ciclo completo da cadeia de serviços e produtos que compreen-

dam o foco tecnológico, que vai desde a fase do projeto de engenharia, material rodante, sistema de eletrificação, telecomunicações e sinalização", explicou o executivo. Na fase inicial, após a assinatura do contrato de concessão, haverá a elaboração de um programa conjunto de transferência de tecnologia, onde serão definidas as ações e atividades que serão desenvolvidas durante um período de até dois anos após a assinatura do contrato de concessão. O término do programa será de até cinco anos após a entrada da operação comercial, o que daria entre 10 e 12 anos. Com isso, o País poderá expandir sua rede, caso deseje. Para estimular a participação da indústria brasileira, foi definido um conteúdo local mínimo a ser aplicado ao longo da fase de concessão. Por exemplo, na fase de implantação, nas áreas de superestrutura, material rodante e sistema de sinalização, pelo menos 20% do material instalado pela concessionária deve ser fabricado no Brasil. Nesta mesma fase, nas áreas

Entre os países emergentes, a China é o único que vem apostando no trem de alta velocidade. Trata-se de um país com uma grande rede ferroviária.

Euler Paixão/Hype

Roberto Macedo: acho que o governo está otimista em obter as licenças ambientais, mas tem que combinar isso com os promotores e o pessoal do Ministério Público

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AFP

pital, e posteriormente uma segunda concessão. O ponto principal é que nesta primeira concessão serão feitos os estudos do projeto executivo que vão orientar a segunda concessão e a contratação das obras, levando em consideração as diretrizes que o governo vai estabelecer para que haja uma efetiva competição para a contratação dessas obras. A concessionária 1 será responsável pela instalação dos sistemas e do material rodante . Caberá a ela a seleção da tecnologia a ser adotada, a obrigação de transferência de tecnologia de última geração, manter um nível de serviço adequado, dar suporte técnico na implantação e de atestar a conformidade da infraestrutura, a elaboração do projeto executivo da infraestrutura e a operação do TAV, incluindo a manutenção do sistema e da infraestrutura. À concessionária 2 caberá explorar as áreas adjacentes e as próprias estações, além de projetos imobiliários. Ela terá obrigação de implantar a infraestrutura projetada pelo concessionário da Fase 1, terá direito a financiamento do investimento na infraestrutura (R$ 20 bilhões) e deverá seguir as diretrizes do poder concedente na contratação das obras de infraestrutura . AS CRÍTICAS

Hoje, a linha ferroviária de alta velocidade soma em torno de 18 mil quilômetros no mundo. Os trens viajavam a uma velocidade entre 280 e 350 km/h.

de sistemas elétricos e telecomunicações, este índice deve ser de 60%. Depois, na fase de operação, haverá um aumento gradual. "São valores que foram debatidos com a indústria e para os detentores da tecnologia não é um problema atingir este percentual", observou França. O QUE MUDOU O superintendente da ANTT explicou ainda o adiamento do processo de concessão, adiado primeiramente em dezembro do ano passado, depois em abril e em julho último. "Houve uma percepção do mercado de que os valores envolvidos não refletiam as estimativas das empresas e por isso não houve a participação de concorrentes. O governo decidiu dividir o processo em duas fases, uma da concessão da exploração dos serviços de transportes de passageiros do TAV e outra a construção da infraestrutura, permanecendo todos os estudos referenciais. Então, haveria a primeira concessão com a ANTT, a participação do ETAV no ca-

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Para Aluízio de Barros Fagundes, presidente do Instituto de Engenharia de São Paulo, investimentos em infraestrutura são sempre positivos, surtem efeitos e dão resultados. "Os aeroportos estão saturados, portanto, há a necessidade de se discutir alternativas, complementares ou não. Em relação ao desenvolvimento da tecnologia, está na hora de um grande projeto no País, pois a grande capacitação da engenharia está nos grandes empreendimentos. Poucas são as grandes empresas públicas brasileiras que hoje são as detentoras da tecnologia. Acredito que o TAV trará grandes benefícios para a engenharia", disse. Porém, Fagundes alertou para a Lei 8666/93, que estabelece normais para as licitações. "Esta lei é o roteiro da fraude, quem quiser fraudar, basta ler esta lei. A cada passo que se faz para promover uma licitação e chegar a um contrato, vai estar sempre sujeito ao paradigma da desconfiança. Esta iniciativa do trem-bala vai exigir algumas modernidades imprescindíveis para a contratação de obras, que vão acabar por substituir essa lei", comentou. Luiz Fernando Ferrari, vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria Ferroviária (Abifer) e diretor de desenvolvimento, negócio e marketing da Alston comentou no evento


Euler Paixão/Hype

um tema delicado para as empresas que detém a tecnologia do TAV. "Quando se fala em transferência de tecnologia, lembro sempre do começo dos anos 70, quando o governo anunciou que iria implantar massivamente o metrô nas cidades e havia a possibilidade de compra de milhares de carros de passageiros modernos. Isso propiciou que a indústria ferroviária buscasse fora a tecnologia para fabricar localmente, o que aconteceu de fato", disse Porém, como diretor da Alston, Ferrari se posicionou contrário à transferência total da tecnologia. "Nós vemos a transferência de tecnologia em dois aspectos: se a intenção do governo é gerar emprego com especialização no Brasil, seguramente isso será alcançado, pois os detentores de tecnologia estão ligados a uma indústria ferroviária, como fabricantes de portas, de freios, de eixos etc. Já a alma do sistema, a concepção, esta eu acho difícil de ser transferida, pois é onde está o patrimônio de cada empresa. Mas se o objetivo é ter uma indústria moderna, criar novos talentos que queiram trabalhar na área ferroviária, isso será alcançado", observou. "Acho que este é um tema importante, vai ser discutido, mas temos que chegar num acordo, entender o que é transferência de tecnologia e em que nível isso será feito. A questão de localização não há problemas, a Alston está no Brasil há 55 anos e quando vendemos para a Índia e América do Sul, o projeto é feito por engenheiros brasileiros". Para Roberto Macedo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, o

Luíz Fernando Ferrari, da Abifer: é preciso definir transferência de tecnologia. A alma do sistema, a concepção, esta eu acho difícil de ser transferida, pois é onde está o patrimônio de cada empresa. trem-bala japonês, o Shinkansen, que liga Tókio a Osaka, fica em uma região que concentra 60% da população e 64% do PIB, são 76 milhões de pessoas, uma densidade muito alta. "Não vejo densidade suficiente no Brasil. O Japão é um país rico. Entre os emergentes, quem está apostando no TAV? Só a China, que tem uma rede de trens imensa, mas o TAV deles está operando com prejuízo", observou. "Pelo o que eu vi no projeto brasileiro, ele vai causar um dano ambiental imenso, pois vai correr, do Rio a São Paulo, à esquerda da Rodovia Presidente Dutra, cortando vários rio e cidades. Acho que o governo está otimista em obter as licenças ambientais, mas tem que combinar isso com os promotores e o pessoal do Ministério Público", ironizou.

Charles Platiau/Reuters

Na França o trem de alta velocidade é chamado de TGV Train à Grande Vitesse. Os franceses bateram o recorde de velocidade, com 574,8 km por hora.

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O Expresso Brasil precisa partir Carlos Ossamu Domingos Zamagna José Maria dos Santos

Telmo Giolito Porto é professor da Poli (USP)

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Patrícia Cruz/LUZ

ngenheiros, em geral, gostam de cavar buracos, levantar edificações ou colocar o mundo em movimento. Telmo Giolito Porto, 51 anos, professor do Departamento de Transportes da Poli (USP) faz parte dessa última categoria e, nesse capítulo, teve todos os estímulos possíveis para se tornar um especialista em rodovias. Bastava olhar para o pai, também engenheiro, Telmo Fernandes de Aragão Porto, que foi um dos pioneiros do antigo Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER). Por sua vez, a única irmã seguiu os passos do pai e ele próprio enveredou pelo mesmo terreno ao defender sua tese de mestrado na área de Estruturas e Fundações. Mas um concurso fortuito da RFFSA – Rede Ferroviária Federal – colocou os trens em seu caminho, cuja intensidade na longa marcha deu-lhe as credenciais para apresentar, com rara clareza na entrevista abaixo, as virtudes e os problemas do nosso sistema ferroviário, que esforça para se reerguer. Dizem que o trem, independentemente de sua importância econômica e estratégica, tem algo de mágico. Parece que é verdade. A escritora Agatha Christie (1890-1976) escreveria uma trama intitulada "Assassinato no A330 da Airbus" com a mesma verve revelada no livro "Assassinato no Orient Express"? Se depender do professor Telmo isso não seria possível, pois ele se julga um atestado da magia referida. Embarcou no trem e jamais quis descer, embora tivesse saltado da RFFSA para a CBTU (Companhia Brasileira de Trens Urbanos) e de lá para a CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). E a propósito das inesquecíveis inspirações literárias que um comboio já produziu, ele garante que não haveria lugar melhor, e nem mais expressivo, do que o

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trem para a heroína Ana Karenina se suicidar no célebre romance de Liev Tolstoi (1828-1910), que leva o nome dela. No entanto, tem uma dúvida: não sabe se ama mais a ferrovia ou os ferroviários. "Talvez, mais do que da ferrovia, eu goste de ser ferroviário", diz ele. "Por mais piegas que possa parecer, é agradável saber que você contribuiu para que bens necessários fossem transportados; para que pessoas cheguem ao trabalho ou encontrem seus familiares e pessoas queridas; ou usem a cidade para desfrutar de lazer e cultura". Digesto Econômico - A possibilidade de termos o trem-bala colocou novamente o transporte ferroviário em nossa pauta de discussões. Como o senhor vê esse cenário em nosso País, na condição de especialista no assunto? Telmo Giolito Porto - A ferrovia tem três vocações básicas: transporte de carga, de passageiros em longa distância e de transporte urbano, cada uma com seus benefícios específicos. No primeiro caso, a vantagem está em transportar grande volume de carga a grande distância, com baixo valor unitário. Isso se aplica particularmente em minérios e commodities. O sistema não interessa à curta distância, pois o custo de manipulação nos terminais o torna antieconômico, até porque o custo de seus terminais é maior do que os das rodovias. No tópico do transporte de passageiros em longa distância, o grande benefício é o conforto e a independência atmosférica. O trem parte sem necessidade de teto, sob chuva, nevoeiro ou nevasca. E finalmente na vocação do transporte urbano, temos o metrô como melhor exemplo. Um trem urbano leva 60 mil passageiros/hora em um sentido. Não há outra maneira de transportar tanta gente ocupando o mesmo espaço. Imagine carregar a mesma quantidade, por ônibus, em uma pista. Seria uma fila a perder de vista, algo em torno de 600 ônibus, se cada um levasse 100 pessoas. Por isso, a ferrovia tem um papel estruturador. Em que momento se deu o colapso do nosso sistema ferroviário, cujo resgate se busca agora? Para isto ser compreendido é necessário comentar sua origem e evolução. Ele começou como uma concessão ao transporte de carga para empresas estrangeira no século 19. A São Paulo Railway é um bom exemplo. Essa gama de empresas explica a diferença de bitola – espaçamento interno entre os trilhos, que deve ser compatível com o trem –, que tem sido uma limitação na expansão do sistema ferroviário brasileiro. As concessões se estenderam até cerca dos anos de 1940. Aliás, nessa altura, o modelo estava exaurido, pois as concessionárias estrangeiras não ti-

veram dinheiro para investir e promover a modernização. Foi essa a razão da estatização e da criação da Rede Ferroviária Federal. Essa estatização foi interessante para o País? O Estado fez investimentos, abrindo uma fase de desenvolvimento da nossa ferrovia. Mas nos anos 70 e 80 aflorou uma crise do Estado, já que, além da redução ou falta de recursos, o governo federal enfrentava outras prioridades, principalmente nas áreas de educação, saúde e segurança. Esta situação abriu espaço para o processo de privatização na década de 90. Na verdade, foi uma nova concessão, restrita à operação de carga, pois o ativo continuou com o Estado. A nova concessão teve defeitos, como a primeira? Essa nova onda de concessão, a última me parece que foi em 1996, merece críticas. Entendo que naquele momento foi feito o melhor possível pelo tempo que se tinha. Havia urgência, por conta da falência das finanças do governo. Ocorre que o processo foi feito com uma agência reguladora pouco estruturada e quando se deu a concessão, qual foi o grande problema? Ela se inspirou no modelo regional da rede, isto é, foi concedida às diferentes regionais. A regional de Minas tornou-se uma concessionária; a de São Paulo, outra, e assim por diante. Quando se tratava de uma empresa só, não havia dificuldade nessa configuração. Mas ao se tornarem regionais diferentes e autônomas, deixaram de ter objetivo comum. Ficaram mais interessadas no seu cliente do que no fluxo nacional. De modo que a lógica da concessão não foi baseada no interesse do País. É necessário considerar que

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Divulgação

A ferrovia tem três vocações básicas: transporte de carga, de passageiros em longa distância e de transporte urbano, cada uma com seus benefícios.

um fluxo importante dentro do sistema pode abranger duas ou três concessionárias que não estão compromissadas com ele, mas em captar clientes. Esta circunstância remete à chamada reserva de capacidade, que é determinada pelas locomotivas e vagões que se tem, assim como a via e o sistema de sinalização. Nesse cenário, as concessionárias querem preservar as capacidades que interessa aos seus negócios e não ao fluxo e aos interesses do País. Esta situação não está exigindo a discussão de um novo modelo? A presidente Dilma já autorizou a discussão sobre o novo modelo. Segundo sua proposta, haverá uma concessionária de infraestrutura e de controle de trens e haverá permissionárias de circulação. A mesma empresa não será mais dona da via e do trem, privilegiando seu fluxo. No novo modelo, a empresa será proprietária apenas da via e várias outras estarão autorizadas a circular, de modo que não haverá privilégio de fluxo. O assunto está seguindo a passos lentos, porque as atuais concessionárias estão preocupadas em não serem prejudicadas O senhor considera que este novo modelo seja positivo? Sim. Tem concepção melhor. As atuais con-

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cessionárias têm apreensões porque elas preferem o que elas já conhecem, temem imposições. Mas, do ponto de vista lógico, o novo modelo faz sentido. As atuais concessionárias realizaram investimentos no setor? Aquele referido período de falência da capacidade de investimento do Estado resultou em grande degradação dos sistemas. Metade da frota de vagões estava imobilizada por falta de manutenção, em alguns casos por pouca coisa. Um terço das locomotivas estava parado. Quando as concessionárias assumiram, num primeiro momento tentaram entender o negócio, pois tinham de dar satisfação aos seus acionistas. Foi o momento de acerto financeiro. Num segundo momento, passaram a reformar a frota e a comprar locomotivas e vagões. Isso se deu desde o final dos anos 90 até começo da década passada. A partir do momento que minimamente equacionaram a questão do material rodante, passaram a investir em outros gargalos, mas não na ampliação da malha. A única ampliação importante partiu do governo federal, através das ferrovias Norte-Sul e LesteOeste. Pela primeira vez teremos um País cortado por ferrovias no interior. Nossas ferrovias estão todas no litoral.


gente que responsabilize a rodovia pelo atraso da ferrovia, existem razões para sua predominância que podem ser resumidas no custo de implantação ante a escassez de capital. A rápida construção da rodovia em comparação à ferrovia também pesa. Muitas vezes, o governante quer a obra pronta na sua gestão. Mas se for ferrovia, ficará frustrado. De modo que não foi caso de lobby da rodovia, como é geralmente suposto. Mas é claro que, ao mesmo tempo, a construção de rodovias movimenta a economia, que movimenta os interesses políticos e assim se auto-alimentas. O resultado é que a rodovia ficou cada vez melhor e a ferrovia cada vez pior, mas num movimento que tem sua lógica.

Parece que, pela primeira vez, a ferrovia está sendo debatida de forma madura no Brasil. Acho que estamos num momento positivo. Isso é atestado pela demanda a respeito de engenheiros ferroviários, algo que não existia. Dou aula na Poli desde 1979 e vi muitos alunos interessados que não conseguiam emprego. Antes, quando havia dois formandos indo para a ferrovia, eu ficava feliz. Agora são 30. Não sei a demanZé Carlos Barreta/Hype da agregada no País, mas com certeza multiplicou por dez. Hoje, a MRS e a Vale têm programas de trainee, qualquer empresa de engenharia quer ter alguém com interesse ferroviário. A escola não consegue atender. Por que os trens deram certo na Europa e Estados Unidos e aqui não? Esta pergunta exige algumas separações. O Brasil está mais próximo dos Estados Unidos no que se refere a trens. A Europa e o Japão são diferentes. Investem em ferrovia há séculos e neles os tráfegos de passageiros de longa distância e cargas são igualmente importantes. É difícil atender as duas demandas ao mesmo tempo. A Europa tenta chegar a um meio termo, pois utiliza a mesma via para transporte de passageiro e de carga de longa distância. De modo que os trens de cargas são menores e mais rápidos para não interferirem na outra operação. Os Estados Unidos, como o Brasil, necessitam de grandes trens de cargas transcontinentais; o transporte de passageiro é de menor importância. Por outro lado, nunca chegaremos aos europeus. Primeiro, não é nosso modelo, não precisamos de um trem ligando Paris a Bruxelas, mas Goiás ao Porto de Santos. Segundo, não dá mais tempo de construir uma malha daquele tamanho. Mas porque os Estados Unidos estão bem melhor do que nós? Na minha opinião, é porque construir ferrovia é mais dispendioso do que rodovia. Convém lembrar que a ferrovia é mais econômica de operar, mas é mais cara de construir. O Brasil sempre foi um País com capital caro. Se ele falta, o caminho é fazer o mais barato imediatamente e pagar ao longo do tempo. É a lógica de comprar o carro a prazo. Embora haja muita

Hoje, a MRS e a Vale têm programas de trainee, qualquer empresa de engenharia quer ter alguém com interesse ferroviário. A escola não consegue atender a demanda.

A ferrovia é um transporte sustentável, ao contrário da rodovia. Esse conceito já chegou à academia, na esteira do movimento preservacionista? Vem sendo discutido há algum tempo. Do ponto de vista da sustentabilidade, a ferrovia é muito melhor que a rodovia. Se ela for eletrificada, utiliza energia limpa. De qualquer maneira, devido à sua maior eficiência, poluirá menos, mesmo usando combustível fóssil, que é o caso da rodovia. A ferrovia também reduz acidentes, questão que impacta a saúde pública, assim como a poluição, pois todos nós pagamos os custos e prejuízos decorrentes. A ferrovia libera tempo perdido em congestionamentos, que poderá ser usado no trabalho e lazer. O problema é que essas vantagens sustentáveis não se transformam em ganho empresarial para as concessionárias privadas. Menor poluição e menos acidentes não aparecem em seu balanço. Mas um governo consciente deve investir em ferrovia por causa dessa contabilidade social. Porém, ao conceder a operação à uma empresa privada, faz a contabilidade social perder o sentido. Dai a necessidade de haver mecanismos que recoloquem estas questões como interesse nacional. Isso significa financiamento para ferrovia e encontrar fórmulas para tornar viável às empresas privadas construir ferrovias. O governo precisa encontrar essas chaves. Quando o governo constrói a Norte-Sul, com certeza es-

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Patrícia Cruz/Luz

Do ponto de vista da sustentabilidade, a ferrovia é muito melhor que a rodovia. Se ela for eletrificada, utiliza energia limpa. A ferrovia também reduz acidentes.

tá sinalizando. Ele precisa encontrar maneiras de motivar esse tipo de investimento. Qual a sua opinião sobre o trem-bala. Ou TAV - Trem de Alta Velocidade? Há prós e contras. Por um lado, o TAV pode trazer uma renovação do entusiasmo nacional pela ferrovia, pode ser uma oportunidade para ampliar o conhecimento ferroviário brasileiro. O Brasil domina bem a tecnologia para trens até 150 km/h, mas acima disso, em cuja tecnologia predomina o conhecimento da suspensão dos trens, temos experiências a adquirir. Um aspecto essencial é o da redução, ou minimização, das vibrações. O TAV também deverá aliviar as rodovias e os aeroportos, fortalecer cidades como Campinas, São Paulo e Rio de Janeiro, além de garantir maior sustentabilidade. Por outro lado, no momento em que há muito dinheiro público em jogo, é necessário discutir prioridades. O trem-bala é uma prioridade? É difícil de responder a essa pergunta. Só a teremos quando soubermos o montante de fato envolvido. O governo afirma que não vai mudar os valores da obra, enquanto os construtores dizem que o valor é inviável. Naturalmente o senhor se refere a dinheiro público porque, agora, o trem-bala está atrelado a uma PPP - Parceria Público Privada – quando antes era um investimento privado. Sim. O modelo que fracassou era, teoricamente, uma concessão privada. O BNDES iria em-

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prestar R$ 20 bilhões com juros baixos, caso a demanda não correspondesse às expectativas, haveria redução dos juros. A Empresa de Transporte Ferroviário de Alta Velocidade (ETAV) entraria com R$ 3,5 bilhões, mas, basicamente, era um investimento privado. No novo modelo, o governo separou a concessão, a definição da tecnologia, a aquisição dos trens e a sinalização e operação da construção civil. Tratou-se de uma exigência dos agentes: o governo separou o risco da demanda do risco da construção civil. Vamos trocar isso em miúdos... Construtora e operadora foram separadas. A segunda deve definir a tecnologia, comprar o trem, fazer sua manutenção e operar. Terá que pagar um "aluguel" da infraestrutura construída e se não conseguir fazê-lo, o governo arcará. Portanto, nesse modelo, haverá dinheiro público para completar o custo do aluguel mensal da infraestrutura. Retornamos à indagação: é ou não prioridade? Há algum risco tecnológico no projeto do trem-bala? A tecnologia está totalmente dominada. Sua origem é a França, Alemanha ou Japão. O resto foi aprendido com eles. Para o empreendedor, o risco é muito pequeno, pois a tecnologia já foi testada lá fora. Na França, são 30 anos. Já o risco da demanda é uma grande discussão: alguns acham que não há a demanda que o governo estima. O da construção também preocupa, por


ser uma incógnita por conta, principalmente, do custo de túneis e viadutos Mas em sua opinião, o trem-bala é um bom negócio? Repito. Não dá para saber sem conhecermos os custos. Mas eu pergunto por que não fazer um trem de 150 km/h, que seria muito mais barato e traria o mesmo resultado na prática. Eu tenho dúvidas sobre a nossa necessidade de possuir um trem a 350 km/h. Os preços de uma ferrovia a 150 km/h e de outra de 350 km/h são muito diferentes? São sim. Por conta do raio de curva que se deve fazer no capítulo da construção. O raio de curva a 350 km/h é muito maior, o que torna tudo mais caro. Os túneis, por exemplo, devem ser mais abertos. E há mais dificuldade no ajuste ao traçado. Não dá, por exemplo, para dar volta na montanha. É como se cotejasse a rodovia Anchieta e a Imigrantes. A engenharia é a mesma, mas os custos são bem diferentes.

Está claro que o País não pode abrir mão de ferrovias. Se o senhor fosse ao Congresso defender as ferrovias, qual seria sua argumentações? A minha argumentação seria também próporto e hidrovia. O Brasil não tem capacidade logística que lhe permita fazer crescer a economia nas taxas que ele precisa. Não podemos esquecer que o Brasil tem uma janela de oportunidade incrível para os próximos 15 ou 20 anos. Temos uma população média jovem e temos muita coisa por fazer. Após esse período, essa janela fecha um pouco. Dentro de 20 anos temos que ser uma potência. Se isso não acontecer nesse prazo, não seremos mais. Para tanto, precisamos resolver esse apagão logístico representado pela falta de ferrovias.

Dentro de 20 anos temos que ser uma potência. Se isso não acontecer nesse prazo, não seremos mais. Para tanto, precisamos resolver esse apagão logístico.

Rafael Andrade/Folha Imagem

O senhor se referiu à demanda. Há países em que os trens de alta velocidade estão andando vazios. Parece ser o caso da Coreia do Sul. Esse é o pavor dos investidores no Brasil. No novo modelo, se o concessionário não conseguir pagar o aluguel, o governo vai pagar, dentro de certos

limites. É certo que o projeto do trem-bala foi feito com base em estudos. Porém, penso que há uma sobre-estimativa na demanda. Caso se coloque, por exemplo, uma estação no Campo de Marte e outra em Cumbica, como o passageiro vai chegar lá? Existem muitas barreiras para se alcançar esses pontos. Não dá para imaginar um trem-bala sem pensar na maneira como o passageiro vai chegar ao terminal. Apoio de metrô está descartado, pois as pessoas não podem ir com malas e bagagens no metrô. Há muitas questões a serem discutidas.

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Afonso Arinos de Melo Franco

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Jurista e político, foi autor da Lei Afonso Arinos contra a discriminação racial

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nquanto as exigências do café não se tornaram prementes, a política ferroviária brasileira não passou de planos sem seguimento. Mas quando a produção cafeeira se foi avolumando pelos morros e vales da bacia do Paraíba, tornou-se evidente que o lombo de burro não era mais veículo suficiente para o seu escoamento e que o desenvolvimento econômico do País estava agora na dependência imediata da solução do problema do transporte ferroviário, O problema da produção, estando intimamente ligado ao do transporte, apresenta, sob este ponto de vista, interessantes aspectos em nossa História Econômica. Se considerarmos os grandes ciclos da economia brasileira - açúcar, gado, ouro e café -, veremos que apenas em relação ao último colocou-se de maneira aguda a questão do transporte interno, do transporte terrestre. E, dada a época em que tal se verificou, foi possível conseguir-se uma solução satisfatória, graças às estradas de ferro. A civilização do açúcar se estendeu toda na marinha, e isto mesmo com grande predominância da zona compreendida entre Bahia e Pernambuco, onde a terra do massapé e a proximidade maior dos centros consumidores eram fatores altamente favoráveis. Os canaviais e os engenhos se sucediam na orla marítima, com uma penetração muito pequena para o interior. Eis o que tornou possível a enorme exportação açucareira dos três primeiros séculos, enorme não só em valor, mas também em tonelagem, apoiada em sistemas muito primitivos de transporte terrestre. Praticamente não havia grande necessidade deles, portanto a atividade econômica se desenvolvia quase ao alcance das naus. Esta circunstância, se era vantajosa politicamente, pois colocava os centros nobres do Brasil de portas abertas para a cobiça estrangeira (quer em ataques ocasionais, como o de Duguay Trouin, quer em episódios graves, como a ocupação holandesa), por outro lado tornou possível a existência de uma grande civilização agrícola sem transportes internos.

Digesto Econômico nº 26 janeiro de 1947 AGOSTO/SETEMBRO 2011 DIGESTO ECONÔMICO

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Enquanto os canaviais se empenachavam na marinha, o gado se estendeu pelo sertão. Mas o gado, na fase famosa, é a mercadoria que se transporta a si mesma. Nem de caminhos verdadeiros precisava, pois era por trilhas esconsas e ínvias que as boiadas da jacobina atingiam, em meses de caminhada, o sertão bruto das Gerais no tempo da descoberta do metal. Ofuscados pelo bezerro de ouro, os "geralistas", como então também se chamavam os mineiros, não tinham tempo para cultivar outro gado senão aquele. Antonil escreve a este propósito: "Sendo a terra que dá ouro esterilíssima de tudo que há mister para a vida humana, e não menos estéril a maior parte dos caminhos das minas, não se pode crer os que padeceram ao princípio os mineiros". Por isso, ajunta o velho cronista, tinham de pagar, por volta de 1703, até cem oitavas de ouro por um boi descido da Bahia. Mas o fato é que o boi chegava, por si mesmo, ao mercado de consumo. Quando a produção do ouro se fixou no mais recôndito espaço do nosso território, desde Minas até Goiás e Mato Grosso, a questão dos transportes ainda não condicionava a solução da atividade econômica, apesar da grande distância que separava esta atividade do litoral e, consequentemente da exportação. Advento do café A razão era simples e estava na grande concentração de valor da mercadoria exportada, fosse o ouro, fossem os diamantes. Uma tropa de burros, levando as arcas especiais, fechadas com três chaves e carregadas de metal ou pedras, representava uma festa para as autoridades reinóis do Rio de Janeiro. Não era preciso nenhum sistema de transporte de grande capacidade. O frete de retorno também não era pesado, porque muito pequena era a classe consumidora das capitanias mineiras, em relação à grande massa de trabalhadores escravos ou em estado de subconsumo. Por isto também tropas de burros podiam se encarregar de levar na volta, serra acima, as garrafas de vinho das Canárias, as sedas e perfumes, os livros de Voltaire e Rousseau importados pelos escassos grupos que dispunham de poder econômico. Mas o Império conheceu uma outra forma de produção, cujo desenvolvimento colossal em breve exigiu providências enérgicas no sentido do transporte: o café. E a história das ferrovias imperiais é a história do café escravocrata. Enquanto as exigências do café não se tornaram prementes, a política ferroviária brasileira não passou de planos sem seguimento. Mas quando a produção cafeeira se foi avolumando

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Durante os ciclos do açúcar, do gado e do ouro, não era preciso um sistema de transporte interno de grande capacidade, os lombos dos burros eram suficientes. O ciclo do café forçou a implantação de ferrovias.


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pelos morros e vales da bacia do Paraíba, tornou-se evidente que o lombo do burro não era mais veículo suficiente para o seu escoamento e que o desenvolvimento econômico do País estava agora na dependência imediata da solução do problema do transporte ferroviário. Então, transformaram-se em realidade as inócuas tentativas oficiais que tiveram início em 1835, sob a regência de Feijó. Naquele ano, quando as estradas de ferro mal saiam do período experimental na Inglaterra, seu país de origem, o governo regencial tentava entre nós, pelo decreto de 31 de outubro, estimular a formação de companhias que construíssem uma via férrea ligando o Rio às províncias de Minas, Rio Grande do Sul e Bahia. Este plano era evidentemente utópico, e tinha objetivos muito mais políticos do que econômicos. Bahia e Minas eram então os grandes centros de interesse político. A primeira pela sua antiga tradição de sede do governo e também pelo renascimento da indústria açucareira, e a segunda pela sua maior população.

Quanto ao Rio Grande, a sua importância política provinha dos pruridos separatistas, levados ao auge pela extenuante Guerra dos Farrapos, que naquele ano tocava ao seu fim. Havia, assim, evidente interesse político do governo em unir as três províncias à cabeça do Estado, que era o Rio, da maneira mais rápida possível, que era por trem de ferro.

As estradas de ferro só chegaram ao Brasil na década de 1850-1860, desempenhando um importante papel na História Econômica Nacional.

A década de 1850-1860 Por falta de base econômica, que no caso queria dizer mercadorias a transportar, ninguém se arriscou ao empreendimento. Feijó tentou, então, lançar mão de capitais estrangeiros, tendo pedido ao Marquês de Barbacena para estudar as possibilidades da praça de Londres em relação ao projeto. Mas a resposta do encarregado da sondagem foi que só seria possível arranjar dinheiro com escorchantes garantias de juros. Ficou desta forma sem efeito o aviso de 3 de novembro de 1835, que procurava captar na Europa os capitais que a lei ci-

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tada, promulgada poucos dias antes, tinha a esperança de encontrar em parte no Brasil. Outras leis se sucederam, nacionais e provinciais, dando privilégios para construção de estradas de ferro. Mas nenhuma delas teve execução. As estradas de ferro só chegaram ao Brasil na década de 1850-1860, desempenhando um importante papel na História Econômica Nacional. Nesta década, o café do rio Paraíba atingia ao início do seu rápido esplendor e com ele tornouse possível a introdução de uma série considerável de melhoramentos materiais. Surgiu uma nova época para a arquitetura brasileira. Arquitetura urbana, que deixou nas cidades de Rio, São Paulo, Bahia e Recife os belos e maciços sobradões de que restam poucos testemunhos. Arquitetura rural que erigiu as admiráveis casas-grandes das fazendas da bacia do Paraíba, comparáveis, senão superiores, aos melhores tipos de casa rural do tempo do açúcar e do ouro. Veio o Código Comercial, veio a lei bancária com a fusão do Banco do Comércio com o do Brasil, veio o telégrafo elétrico, o calçamento, os esgotos e a iluminação no Rio de Janeiro. Vieram por fim as estradas de ferro. Era a civilização do café. A primeira linha férrea A primeira linha férrea foi a famosa Mauá. Mais famosa do que conhecida, pois sua breve e brilhante existência não é muito familiar, nem mesmo àqueles que se aferram à memória do grande Irineu Evangelista de Sousa. Sua história, em breves palavras, foi a seguinte: O Decreto Legislativo número 641, de 26 de junho de 1852, concedeu autorização ao governo para contratar uma ou mais empresas para a construção de um caminho de ferro que, partindo da Corte, fosse terminar nos pontos mais convenientes das províncias de Minas e São Paulo. Tal conveniência estava naturalmente ligada à produção do café. Dias antes deste decreto legislativo, Irineu Evangelista de Sousa (depois Visconde de Mauá), por meio de um decreto executivo de 12 do mesmo mês e ano, já tinha conseguido privilégio para um sistema misto de transportes, por água e por terra, ligando a Corte

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por barco até o Porto de Estrela, e deste por ferrocarril até a Raiz da Serra de Petrópolis. Mas, na realidade, a concessão de Mauá vinha sendo estudada e negociada na política provincial antes destas duas leis. Com efeito, a 27 de abril daquele mesmo ano, Mauá obtivera do presidente do Rio de Janeiro, o Conselheiro Pedreira (Visconde do Bom Retiro, amigo íntimo do imperador), a concessão necessária para atravessar com seus trilhos o território daquela província. Plano de Mauá

A primeira linha férrea foi a famosa Mauá. Mais famosa do que conhecida, pois sua breve e brilhante existência não é muito familiar, nem mesmo àqueles que se aferram à memória de Irineu Evangelista de Sousa.

O plano de Mauá era estabelecer comunicação entre a Corte e o vale cafeeiro do Paraíba. Mas o processo que tinha em vista era muito complicado, pois previa uma seção marítima, entre o Rio e Estrela, uma seção ferroviária, entre Estrela e Raiz da Serra, uma parte em estrada de rodagem entre esta última localidade e Petrópolis, e finalmente outra vez trilhos, a partir da cidade imperial até a zona do Paraíba. O que atraia Mauá neste dificultoso trajeto, que exigia tantas baldeações da carga e tantos retardamentos na sua marcha, era a menor distância e o menor custo das obras, comparativamente ao traçado, já em estudo, da planejada Estrada de Ferro Dom Pedro II, atual Central do Brasil. Mauá, no fundo, tentou uma corrida de tempo com a Pedro II, cuja construção foi obrigada a vencer a serra com os trilhos e túneis, num tremendo esforço. E enquanto esteve sozinho em campo, Mauá prosperou com a sua estrada. Mas desde que apareceu a concorrência da Pedro II, teve de abandonar a partida. Em sua autobiografia, o Visconde de Mauá justifica-se do erro cometido, assegurando que a Pedro II, quando ele construía a Mauá, "era ainda um mito, uma ideia em embrião". Mas isso não é muito exato. Na verdade, o plano de construção da Pedro II, conforme demonstra o Conselheiro Cunha Galvão no seu precioso livro "Notícias sobre as Estradas de Ferro do Brasil", publicado em 1869, era também de 1852. Da leitura atenta deste volume, que reúne cuidadosamente fatos e documentos, chega-se à conclusão de que a Estrada de Ferro Mauá contribuiu em grande parte para as dificuldades que tolheram o desenvolvimento da Pedro II em sua primeira fase. A defesa do privilégio


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era grande e, através dela, se procurava impossibilitar a construção da linha rival, muito melhor traçada, visto que subia a serra através de túneis, em linha de aderência simples, sem cremalheira, e atingia os centros produtores de café sem baldeação. Drama da construção da Central Outros interesses vieram auxiliar o da Mauá. A grande estrada de rodagem União e Indústria, financiada pelo Banco do Brasil, veio facilitar o transporte do café da zona por ela servida, que ficava entre Petrópolis e Juiz de Fora, tornando mais remota a necessidade da solução ferroviária. Muita gente, inclusive do governo, passou a descrer da viabilidade e até da necessidade da caríssima via de penetração que pretendia galgar a serra por aderência. Mas não era possível manter o ritmo expansionista da produção cafeeira com aquele absurdo sistema de transporte que usava roda de carro, trilho de trem e casco de navio, sucessivamente, em poucos quilômetros. O café estava exigindo providências muito mais fortes e radicais.

Foi o drama da construção da Central. Em 1858 terminava o primeiro trecho, do Rio a Belém. Logo depois começava a conquista da serra. Cristiano Otoni, diretor da estrada, resolveu trazer técnicos americanos e já em 1863 a linha chegava à Barra do Piraí. Os túneis estavam construídos, a serra vencida, foi desbravado o vale de ouro do café. Logo que se abriu ao tráfego a Pedro II - e é o próprio Mauá quem o reconhece -, a estradazinha do Porto da Estrela entrou em colapso. O café passou a descer todo pela nova via, de muito maior capacidade, e já em 1866 via-se a concorrente incapaz na situação de suspender o tráfego. Irineu ainda tenta construir uma linha pela serra de Petrópolis pelo sistema de cremalheira, que fizera estudar na Suíça em 1872 por Pereira Passos, o futuro remodelador do Rio de Janeiro. Mas nada consegue. A serra de Petrópolis só foi galgada pelos trilhos muito mais tarde, em 1883, pela chamada Estrada de Ferro Grão Pará. A esta estrada foi incorporada afinal a Mauá, e ambas em seguida absorvidas pela Leopoldina Railway.

Em sua autobiografia, o Visconde de Mauá justifica-se do erro cometido, assegurando que a Pedro II, quando ele construía a Mauá, "era ainda um mito, uma ideia em embrião".

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O Brasil, o mundo e a crise na

Mundo: Passado e Presente

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visão de Delfim Netto

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Michel Filho/AE

Para Delfim Netto, o Brasil reúne hoje as melhores condições para dar um salto de qualidade.

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articipar de uma palestra com o economista Antonio Delfim Netto é, sobretudo, assistir a uma aula de economia. Formado na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da Universidade de São Paulo (USP) em 1952, Delfim foi o primeiro aluno a se tornar professor catedrático dessa escola. Em 1966 tornou-se secretário da Fazenda do Estado, depois foi ministro da Fazenda, cargo que deixou em 1974. Foi embaixador na França, retornando à FEA em 1978 como chefe do Departamento de Economia. Voltou ao governo em 1979 como ministro da Agricultura, passando ao Ministério do Planejamento, de onde saiu em 1985. A partir de 1986 foi eleito deputado federal por cinco vezes consecutivas. Em meados de agosto, o professor Delfim Netto expôs sua visão sobre a conjuntura econômica internacional e do Brasil em uma palestra na

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Associação Comercial de São Paulo (ACSP). Com voz pausada, algumas tiradas ácidas e a apresentação de diversos gráficos, ele explicou que a atual crise europeia e americana ainda é reflexo dos acontecimentos de 2008, que foi essencialmente uma crise de confiança. Para ele, o Brasil sofreu menos do que outros países, mas sofreu mais do que devia, isso por culpa do Banco Central, que não tomou as medidas necessárias com o vigor que deveria. O resultado é que somente agora o País volta aos níveis de atividades anteriores a 2008. Em sua opinião, o Brasil reúne hoje as melhores condições para dar um salto de qualidade, pois dois fatores que costumavam abortar o crescimento econômico (Energia e Conta Corrente) estão superados. Mas é preciso despertar logo, pois o País vem envelhecendo sem ter ficado rico. Acompanhe a seguir os principais trechos da palestra do economista Antonio Delfim Netto.


O mundo mudou Houve uma mudança importante no mundo. Os círculos da no mapa mundi mostram a participação de cada região no PIB mundial, medido em paridade de compra, isto é, se eliminando o efeito da taxa de câmbio. Na média de 1980 a 2010, os Estados Unidos correspondiam a 30% do PIB mundial, a Europa 31%, a Ásia 22%, a América Latina respondia por 8%, a África 4% e a Austrália 1%. Se observarmos, vemos que o mundo se deslocou para o leste. Hoje, os Estados Unidos representam 23%, a Europa praticamente 24%, e a Ásia representa 37%. O mundo se deslocou para o leste de uma forma importante. Isso representa uma profunda mudança na estrutura, não só do comércio, mas de como se comporta a economia mundial. Neste contexto, o importante é entender o que foi a crise de 2008/09, que ainda não terminou, e como essa crise se instalou e como a gente pode entendê-la? A Figura 1 é muito interessante, pois mostra o circuito econômico. Do lado esquerdo tem as residências, que são as nossas casas. Do lado direito, as empresas. São os dois centros em torno dos quais se desenvolve a economia, ou no lar, ou na em-

presa. Na residência, onde estão os indivíduos, possuem renda, têm suas preferências, consomem. O comportamento depende fundamentalmente da perspectiva de emprego. Do outro lado (direito) estão os empresários, cujo comportamento depende da perspectiva da demanda. Se acredito que haverá emprego e demanda, o sistema começa a funcionar. No meio disso, para lubrificar esse mecanismo, tem o mercado financeiro. Nele, nós, pessoas físicas, colocamos nossas poupanças; e nós, empresários, tomamos emprestado essas poupanças. Este é um sistema que depende exclusivamente da confiança. A taxa de juros é o que liga o presente ao futuro. Quando vou buscar um empréstimo, eu espero devolvê-lo, pois espero que exista demanda. O que estou querendo chamar a atenção é que tudo depende de expectativas e da confiança. O importante é entender o seguinte: este mercado que está em verde (mercado financeiro) depende estritamente da confiança. Se quebrar a confiança, se houver dúvidas, um banco deixa de emprestar para outro, o sistema murcha, vem abaixo, e o efeito se dá no mercado físico, na produção.

Figura 1

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Larry Downing/Reuters

A crise

Não adianta o Obama fazer discurso, ninguém o leva a sério Gráfico 1

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O que aconteceu em 2008 com o Lehman Brothers? Simplesmente, um sujeito mal avisado deixou o banco quebrar. Ele ia quebrar mesmo, mas existiam mecanismos para permitir que sua quebra não produzisse os efeitos que produziu. Quando o deixou quebrar, nenhum banqueiro emprestou mais para o outro. O pessoal que estava na residência comprando produtos, pensou que era melhor segurar o consumo, pois não sabia se haveria emprego. O empresário achou melhor guardar um caixa e cuidar do estoque, pois não sabia o que vinha pela frente. Ou seja, quando se quebra a confiança, todo mundo corre para ficar líquido. Quando todo mundo fica líquido, morre afogado na liquidez. O (expresidente) Lula, em sua intuição, disse: "compra, pois se você não comprar, vai ficar desempregado". Foi por isso que ficamos um pouquinho melhor do que os outros. Mas é importante entender que este sistema depende da confiança. Por que não deu certo o grande programa de estímulo americano? Porque o Obama, no início de seu governo, tratou muito mal o setor privado, que não confiou nele. Hoje, nos Estados Unidos, os bancos têm 3 trilhões de dólares em reservas e não aplicam. As residências têm 1,3 trilhão de dólares em poupança e não aplicam. Isso porque um não acredita no outro. Não é um problema de economia, mas de psicologia, pois o presidente Obama foi incapaz de devolver a credibilidade para o sistema. Quais foram as consequências dessa quebra de confiança? A primeira é a mais dramática que existe, que é o aumento do desemprego. No fundo, a economia existe para dar emprego de boa qualidade para todos. Olhando o Gráfico 1, vê-se que o desemprego vinha caindo. Quando a Lehman Brothers quebrou, em setembro de 2008, o sistema todo reverte. São duas escalas.


Gráfico 2 Nos Estados Unidos o desemprego é quatro vezes maior que nos outros países, mas todos têm o mesmo comportamento. Nos EUA ainda hoje existem 25 milhões de pessoas desempregadas ou semiempregadas, trabalhando meio expediente, fazendo bico. É este o problema americano. Enquanto não se resolver isso, provavelmente a economia não voltará a funcionar. No Brasil O Gráfico 2 mostra o segundo efeito, que foi a queda instantânea da produção industrial. Vejam como no Brasil caiu rapidamente e depois foi se recuGráfico 3 perando. Aqui, uma coisa interessante: o sistema bancário brasileiro é rígido, poderia ter funcionado de forma diferente. O Banco Central tinha musculatura para enfrentar o problema. Qual era o problema do sistema bancário brasileiro? É capital subordinado tomado como empréstimo, que vence em dez anos, investe um décimo a cada ano. O Banco Central recebeu naquela semana que começou a crise um swap do Banco Central americano (FED) de 30 bilhões de dólares. O que ele deveria ter dito aos banqueiros era: "continua trabalhando, pois se vencer o seu capital subordinado este ano eu te empresto e depois você repõe". O segundo efeito foi nas exportações. Não precisava ter terminado o crédito à exportação, que é o mais seguro, o mais barato, o mais rápido e que ia voltar em dois meses. O BC tinha, na verdade, recursos para dizer: "você pode ficar tranquilo, que não vai cair o crédito para exportação". E tinha o vencimento das dívidas do setor, que era pouco, 40 ou 50 milhões de dólares. Em um ano, você conseguia tranquilamente, com as suas reservas, pagar. Só que o BC se aco-

vardou, não fez o que tinha que ter feito. A verdade é que sofremos menos do que os outros, mas sofremos mais do que devíamos. No gráfico vemos que só agora o Brasil está voltando ao nível que estava em 2008. O Gráfico 3 refere-se às exportações brasileiras. Nós ficamos contando vantagens que fomos pouco afetados, mas as nossas exportações físicas ainda não voltaram aos níveis de ou-

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Gráfico 4

tubro de 2008. O gráfico mostra quantidade, não valor, mas é aqui que se mede realmente a atividade. O que está acontecendo é que os preços subiram. Dívida O que fizeram todos os países para enfrentar essa crise? Quando caiu a demanda privada, a única forma que os governos tinham era constituir uma demanda pública, ou seja, os países passaram a se endividar, que era uma solução para tentar manter o nível da demanda e conter a crise. Olhando o Gráfico 4, embaixo é a relação Dívida x PIB em 2007, antes da crise; em cima é a relação Dívida x PIB depois da crise, em 2010. Os BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) praticamente mantiveram o mesmo nível de dívida antes e depois da crise. O grande número de países azuis são países que têm renda per capita acima de 20 mil dólares. Eles se endividaram muito mais. Olhe o caso da Grécia, Itália, Islândia, Irlanda e os EUA. Os países emergentes, que têm taxas abaixo de 20 mil dólares per capita, praticamente não se endividaram. Quer dizer, se construiu dois mundos, um com alto nível de renda e altamente endividado e um mundo com menor nível de renda e com endividamento muito menor, sobre os quais agora se coloca a esperança do desenvolvimento. PIB brasileiro Vamos olhar os últimos 60 anos da economia brasileira. O Gráfico 5 mostra o PIB do Brasil neste período. Do fim da guerra até 1980, o Brasil cresceu 7,5% ao ano seguido, um crescimento chinês dos dias de hoje. Há algumas variações, pois de vez em quando ocorria algum problema, como a crise cambial do João Goulart, depois teve o choque do petróleo. Olhando os últimos 30 anos, o crescimento caiu para 2,6%, um terço do que era, e as

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flutuações são muito mais rápidas. Mas olhando com mais atenção, vamos ver que sempre o crescimento abortou por um de dois motivos ou os dois juntos: uma crise cambial ou uma crise de energia, como de petróleo. Isso é importante para entender porque o Brasil hoje tem uma situação um pouco mais confortável, pois no câmbio conseguimos acumular, graças a um bonus externo, uma boa reserva, e também pelo Pré-sal. Isso mostra que nós já crescemos a 7,5% por ano quando não tínhamos educação. Precisamos desconfiar dos diagnósticos simplistas. Tem gente que diz que nada vai dar certo porque faltou educação. Educação não é um problema econômico, educação é o que transformou macaco em homem, ela é importante em si mesma, não é simplesmente para a economia. Mas os dados mostram que não é este o grande problema, seguramente é um dos maiores e podemos melhorar muito mais, mas o crescimento não caiu por causa disso. Caiu porque nós tivemos um problema grave no mundo. Vejam os anos de 1982, 83 e 84 (Gráfico 5). Com a alta no preço do petróleo, tínhamos nos endividado enormemente e tivemos de acertar as contas. Fizemos uma recessão de 4,5% do PIB, saímos da recessão com equilíbrio em conta corrente. Depois, o resto a gente já conhece. Inflação O Gráfico 6 mostra a Taxa Mensal de Inflação dos últimos 60 anos. Percebam que no período de alto crescimento do PIB, de 7,5% (1945/80), nunca se perdeu o controle da inflação, pelo contrário, no período de maior crescimento, entre 1967/77, o ritmo de inflação foi reduzido. Entre 1981 e 94, o crescimento caiu; de 1995 a 2010, subiu um pouquinho. Após isso, ela passou a oscilar fortemente. Uma das razões disso é que o sistema de correção monetária de indexação que nós tínhamos inventado funcionava muito bem quando a inflação é declinante, quando não tem cho-


Grรกfico 5

Grรกfico 6

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Figura 2

que externo. Quando começa a ter choque externo, ela sobe. O primeiro grande problema aconteceu em 1982, quando o governo já não tinha o controle sobre o Congresso e se encurtou a correção monetária de um ano para seis meses. Quando encurtou para três meses, dobrou de novo a taxa de inflação. Isso porque é impossível todo mundo se defender ao mesmo tempo. A inflação é um processo de redistribuição de renda. O gráfico mostra todos os planos econômicos, até o sucesso do Plano Real, que na verdade usou a experiência anterior. Hoje, estamos com a inflação sob controle. Mas é importante compreender que este é um processo passado, é uma conquista que dificilmente nós vamos perder, seria preciso ser muito ruim para perder isto. Crises na Europa e EUA Para entender os problemas que estamos vivendo hoje, vejam a Figura 2, que mostra o contágio da crise na Europa e paralisia nos EUA, pois é isso que estamos vivendo. O contágio na Europa produz uma instabilidade no sistema financeiro. Ao mesmo tempo, a instabilidade aumenta o contágio. É um sistema que se autoalimenta. Da mesma forma, a paralisia dos EUA, que é uma paralisia política, ela aumenta a instabilidade do sistema financeiro, aumentando a paralisia. Temos dois sistemas que rodam sobre si

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mesmos. Para sair da crise será preciso cortar isso. O que acontece então com esta instabilidade do setor financeiro? A primeira consequência é o reflexo nas bolsas de valores, que produz uma volta que é a seguinte: ela destrói valor, aumentando a instabilidade financeira. São sistemas que se auto-alimentam, tudo depende da confiança, das crenças, não é preciso grandes teorias para explicar isso. A paralisia nos EUA também produz instabilidade nas bolsas - o primeiro choque no Brasil é em cima da Bovespa. A instabilidade financeira reduz o crescimento mundial, que é o que estamos vivendo. Isso vai reduzir o crescimento da China, reduzindo as nossas exportações. São os dois mecanismos pelos quais vamos ser atingidos. Na paralisia dos EUA se tem a desvalorização do dólar. Quando isso ocorre, aumenta os preços das matérias primas por uma razão muito simples: o fornecedor quer que o seu produto compre a mesma quantidade de bens que comprava no passado. Então, desvaloriza o dólar e aumenta o preço da matéria prima, aumentando o valor das exportações, não a quantidade. É importante compreender que este é um mecanismo simples. A ligação entre preço e valor do dólar é muito estreita. Trata-se de uma armadilha, cuja saída depende muito mais de uma condução política crível, do que de economistas. Se tivesse um (Konrad) Adenauer, se tivesse um (Wiston) Chur-


Gráfico 7

chill, um (Charles) de Gaulle, estávamos saindo da crise simplesmente porque as pessoas acreditam neles. Não adianta o Obama fazer discurso, ninguém o leva a sério. Aquilo (a sua eleição) foi uma aventura e (o seu governo) vai de mal a pior. Ações do governo Mas quais são as condições para se diminuir o impacto? É preciso uma fiança pública sólida, é isso que a Dilma (Rousseff) entendeu e que as pessoas não entenderam e não estão dando suporte para o governo. Nós temos que enfrentar a patifaria que está no Congresso. Os parlamentares agora estão com medo de pedir a liberação de suas emendas, pois eles sabem que, se liberar, a Polícia Federal vai atrás para saber do que se trata. Tem gente pedindo para não liberar a emenda e dizendo que deseja colaborar com o governo. É preciso reduzir a relação Dívida Pública x PIB, que é muito importante para o crescimento real. Outra coisa muito importante é a redução das despesas de custeio, fazê-las crescer menos. Não adianta propor redução de impostos, isso nunca vai funcionar. Não adianta fazer choque – quem dá choque também leva. Nós precisamos fazer as despesas de custeio crescerem menos do que o PIB, de tal forma que vai abrindo uma boca para aumentar o investimento do governo. É preciso manter o endividamento do setor privado sob controle. Eu acho que não existe nenhuma bolha no Brasil, tudo isso é conversa mole. Outro ponto é a necessidade de uma política monetária coordenada com a política fiscal. Outra coisa fundamental é a taxa de juros interna ser igual a externa. Não adianta intervir na Bolsa, não adianta inventar controle de capital, porque a inteligência de vocês (empresários) reunidas é muito superior que a do governo. O governo sempre se estrepa quando tenta controlar a inteligência de vocês. Posso dizer isso pois tenho experiência. Vou contar um caso: eu queria expandir a

agricultura, fazíamos vários planejamentos no ministério, dávamos incentivos e no fim do ano fazíamos um balanço. Sempre tinha uns quatro que ficaram milionários, compravam apartamentos na Av. Vieira Souto com os incentivos. A gente dizia que da próxima vez iríamos pegar esses caras, mudávamos todo o sistema e no final eles sempre acabavam mais ricos. O jeito era desistir, pois eles eram melhores do que nós. Só tem uma forma de eliminar a arbitragem, igualando as duas taxas de juros. O resto não funciona. Em relação ao déficit comercial, a taxa de câmbio já não é mais o preço relativo que igualiza oferta e demanda de exportação e importação. Hoje, a taxa de câmbio é um ativo financeiro – existem quase 10 mil fundos que operam câmbio no mundo, espalhados em 180 países, operando 2 trilhões de dólares por dia, equivalente ao PIB brasileiro de um ano. São 10 mil sujeitos especulando, cada um com um algoritmo na máquina, que em um milésimo de segundo descobre uma diferença na terceira casa decimal e a captura. Então, tem que ser muito idiota para imaginar que vai controlar o câmbio. O único jeito é impedir que ele faça este tipo de arbitragem, e você só pode fazer isso se o diferencial do juro interno e externo for uma variável aleatória de pequena variança, pois ele sabe que os riscos são muito maiores do que os eventuais lucros. Por fim, temos de manter uma forte perspectiva de investimento e para isso é preciso evitar a excessiva variação cambial para prevenir a deterioração da estrutura industrial. Carga tributária No Gráfico 7, a linha azul é a carga tributária bruta do Brasil. Em vermelho é o investimento público. Quando o Brasil crescia 7,5% ao ano, a carga tributária era de 24% a 25%, ou seja, de cada dez pares de sapatos que você fazia, o governo usava dois e meio. Mas o governo devolvia, como investimento, 5% do PIB, ou seja, tirava 24 e devolvíamos 5 como investimento. Nós (governo) to-

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Gráfico 8

mávamos de vocês 19% do PIB, que é a diferença. Hoje, o governo toma de vocês 36% do PIB e devolve 1,5% como investimento, ou seja, passou de 19% para 32%. Essa diferença significa o que? São recursos que estavam no setor privado e que hoje estão no setor público. Não precisa ser gênio para saber que, como a eficiência do setor público é menor do que o do setor privado, a média da produtividade do sistema caiu. O problema nosso é que essas coisas não podem mais ser resolvidas com a mesma facilidade, com medidas como baixar o imposto – ninguém vai baixar imposto no Brasil por uma simples e boa razão: uma boa parte desse aumento que está aí foi fruto da Constituição de 1988. Inflação OGráfico 8é para mostrar que o problema da inflação no Brasil é sério, mas menos grave do que se fala, pois, pelo tipo de flutuação, o Brasil está inserido no mundo, pois uma boa parte da inflação brasileira é importada. Outra parte é feita aqui mesmo. Quem sofre o estresse dessa inflação é o setor de serviços. Mas por que tem esse estresse? Não é tanto porque existe um excesso de demanda de mão de obra em relação à oferta. É porque existe um descompasso entre a demanda de mão de obra e a natureza da oferta de mão de obra. Eu sempre brinco que isso não dá pra resolver com juros. O que está acontecendo hoje? A mulher que era empregada doméstica hoje é manicure, a manicure está no call center, a moça do call center foi para a loja do shopping, a vendedora do shopping hoje é gerente da loja. Quando ela era empregada doméstica, ela usava sabão de coco pra tomar banho, agora ela usa (sabonete) Dove. Imagine o que seria necessário fazer em destruição civilizatória para fazer quem está usando Dove voltar a usar sabão de coco. Pensar que é possível fazer isso com política monetária e taxa de juros é fora de propósito, coisa de economista. Tem que ter dois PhD pra pensar numa coisa dessas.

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Competitividade ameaçada Este Gráfico 9 é um problema grave que está nos atacando, que é a relação câmbio-salário. Em toda essa discussão sobre câmbio, o único que importa é a relação câmbio-salário. Olhando para o gráfico, é possível notar que hoje estamos abaixo do que estivemos no período da estabilização monetária, em que era uma necessidade naquele momento ter uma âncora cambial, mas nós levamos longe demais a valorização do real. Isso está destruindo a estrutura industrial brasileira, que é extremamente sofisticada. No Gráfico 10, em vermelho está a taxa de câmbio e em azul a razão entre o saldo comercial e a exportação de produtos de altas e médias tecnologias. É possível ver que estamos destruindo o setor de tecnologias mais avançadas. Para mostrar que o problema da competitividade do Brasil não é um problema do setor privado, mas do governo, o quadro da Figura 3 tem dados do World Economic Forum. O representante do Brasil nesse fórum é a Fundação Dom Cabral, uma entidade séria e de alta qualidade. São avaliados 70 a 80 itens, que depois são ranqueados. Foram 139 países no último levantamento. Pegando a eficiência do setor público brasileiro, ele está no 124º lugar, ou seja, está no rabinho do final da curva. A China está no 45º. Mas indo para o setor privado, a nossa eficiência é melhor do que a China (Brasil 39º e China 42º). Isso é possível sim. Na Fiesp, nós fizemos uma comparação com dez ou doze empresas, entre americanas, francesas, alemãs e brasileiras, que atuam no Brasil e na China. A produtividade física no chão de fábrica é praticamente igual, quando não é melhor aqui. Depois há o peso do salário, a supervalorização cambial etc. Eu produzo um sapato em Franca tão eficientemente quanto um chinês, só que para levar o sapato para Santos, preciso de mais


Grรกfico 9

Grรกfico 10

Figura 3

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Gráfico 11 um sapato. Na China, se faz isso com um terço do sapato. Para levar uma saca de soja de Sorriso para Paranaguá, preciso de outra saca de soja. A ineficiência está no governo. Uma coisa que eu gostaria de insistir é que o problema do Brasil não é a carga tributária, mas a gestão dessa carga tributária. A carga tributária está implícita na Constituição. Nós temos de exigir que o governo melhore a sua administração. Não adianta pedir para reduzir a carga tributária, porque não vai. Podem continuar pedindo à vontade. Nós temos de exigir do governo uma administração melhor.

Gráfico 12

População Ativa Nós temos um problema interessante que é a questão demográfica. O Brasil está ameaçado de ficar velho sem ter ficado rico. O nosso processo de envelhecimento é bastante acelerado e os custos deste envelhecimento vão crescer. No Gráfico 11mostro a população do Brasil desde 1872, que foi o primeiro Censo, até a projeção para 2050. Ao olharmos 2010 e 2030, na faixa de pessoas entre zero e 14 anos, temos 50 milhões em 2010 e 37 milhões em 2030. Ou seja, as exigências de saúde e educação vão se alterar substancialmente. Na faixa de pessoas que podem trabalhar (entre 15 e 64 anos) vamos passar de 132 milhões para 150 milhões de pessoas. Em relação aos aposentados, vamos passar de 13 milhões para 29 milhões. O que está representado em preto é que vão trabalhar e sustentar os velhinhos e as crianças. É preciso aumentar a produtividade dessa gente de uma maneira muito importante para que eles possam sustentar os dois extremos. OGráfico 12mostra a mudança da estrutura da população. E um ponto interessante para o comércio e a indústria: a estrutura

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da demanda vai mudar completamente, vamos ter um país mais maduro, com demandas ligadas à idade. Não é somente a questão de saúde, mas a própria natureza do consumo vai mudar, o peso do consumo vai caminhar para pessoas mais idosas. O Gráfico 13 mostra a relação de dependência, ou seja, pego todas as pessoas de zero a 14 anos, somo com aquelas que têm mais de 65 anos e divido por aqueles que vão ter de trabalhar para sustentar os dois grupos. Se olharmos o gráfico, vamos ver


Gráfico 13

que o Brasil passou por uma vantagem enorme, mas que não aproveitou: praticamente de 1990 para frente tivemos um bônus e não aproveitamos, mas temos chance até 2020. Os Estados Unidos já passou por isso em 1980. A China já chegou nisso em 2010, daqui para frente é só desvantagem. Já a Índia só vai atingir esse

ponto em 2030. Ou seja, nós precisamos de um sistema eficiente para dar conta desse fenômeno. A Figura 4 mostra uma tabela em que em 2030 a População em Idade Ativa (PIA) será de 151 milhões de pessoas. Vamos ter de dar emprego de boa qualidade para essa gente. Nós não vamos fazer isso com a estrutura de um modelo exportador agromineral que nós temos e induzido pela China. Primeiro, porque a China não vai continuar crescendo mais 32 anos do mesmo jeito que hoje, provavelmente vai crescer menos. Segundo, porque tanto a agricultura como a mineração são poupadoras de mão de obra. No Brasil, a agricultura é poupadora de terra. A produtividade agrícola cresce 3,5% ao ano. Nós temos de construir um país apoiado na demanda interna. Ainda na Figura 4, na tabela mais abaixo, mostro a diferença entre o crescimento da população de três países que são muito diferentes, com políticas econômicas distintas. O Brasil, que

Figura 4

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tinha em 2009 194 milhões de pessoas, em 2030 terá 216 milhões. A Austrália tinha 22 milhões em 2009, o que representa metade de São Paulo, vai ter 24 milhões em 2030, o que será um terço de São Paulo. A Nova Zelândia tinha 4,3 milhões em 2009, que é metade de Pernambuco, e em 2030 vai ter 5,2 milhões, menor do que São Bernardo. A nossa política econômica tem que dar oportunidade para que estes 151 milhões de sujeitos encontrem trabalho de boa qualidade para sobreviverem, educarem seus filhos e poderem progredir.

setor petroquímico. Com o Pré-sal e mais o comportamento que tivermos no setor externo, aqueles dois fatores que costumavam abortar o crescimento econômico (Energia e Conta Corrente) estão superados. Eu estou convencido, o Brasil tem 20 a 25 anos de possibilidade de crescimento entre 4,5% e 5,5% sem nenhum problema adicional, sem o desequilíbrio interno ou externo. Nós somos um dos poucos países que tem isso. Os estrangeiros já viram e é por isso que se tem uma avalanche de investimentos. Mão de obra especializada

Variedade genética A pergunta é: o Brasil está preparado para dar este salto? Eu acredito que está. Primeiro, o Brasil tem um estoque genético riquíssimo. Nos anos de 1920/30, os sociólogos diziam que este País não ia dar certo, isso aqui é uma porcaria, mistura branco, preto, amarelo, italiano, japonês, austríaco, e isso nem feijoada iria dar. Hoje, até a biologia mostra o contrário. Quanto mais variedade genética, mais capacidade de aproveitar as oportunidades produzidas pela mudança do ambiente em que se vive. Eu estou convencido que é isso que explica o jeitinho brasileiro. Isso nada tem a ver com malandragem. Ele está ínsito na mistura que fizemos, em que dá uma capacidade de adaptação muito maior. E o homem é assim mesmo, sem necessidade é vadio. Isso é um processo muito importante, em minha opinião, de tolerância. Nós somos a quinta maior população do mundo, o quinto maior território, somos o sétimo país em renda global – claro que, em renda per capita somos baixíssimos, somos 73º –, temos um mercado interno de 200 milhões de habitantes, que era a população dos EUA em 1970, e temos uma renda per capita igual ao dos EUA nos anos 30, ou seja, isso mostra que temos um mercado interno capaz de absorver a maioria das tecnologias, desde que se tenha o setor externo como um complemento para ir buscar os custos mínimos. Nós temos uma vantagem espetacular, que é uma única língua. Esta é uma coisa que as pessoas não pensam, mas é uma vantagem imensa, que não se consegue avaliar. Se pegarmos os outros países do Bric, por exemplo a China, não se sabe direito quantas línguas eles têm; a Rússia tem 127; a Índia também é incontável. Nós temos alguma coisa a mais. Outra vantagem é que não temos problemas com fronteiras, temos dez vizinhos e nenhum conflito de fronteira. Não temos problemas étnico ou religioso. Temos um setor financeiro hígido e sofisticado, não tivemos grandes problemas mesmo na crise de 2008. Nós somos o único país emergente que tem um Supremo Tribunal Federal que realmente garante as liberdades individuais. Uma das maiores tristezas é ver quando ele dá um habeas corpus para um sujeito e um idiota escreve num editorial que é um absurdo tal coisa. É preciso dar o pleno direito de defesa. O STF provavelmente é o único nos países emergentes que não obedece a voz das ruas, que procura fazer justiça. A voz da rua nunca quer justiça, mas vingança. Por fim, nós recebemos outro benefício, que é o Pré-sal, que é uma coisa muito importante, tem mais de 50 bilhões de barris lá. Nós desenvolvemos tecnologia para ir buscá-lo. Não podemos desperdiçá-lo, pois o petróleo é nobre demais para ser usado em transporte, ele deve ser usado como um energético importante no

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Temos que olhar como o Brasil nasceu, de onde ele trouxe gente quando acabou a escravidão? O mundo hoje tem um excesso de engenheiros, químicos, físicos, nós devíamos abrir as portas para trazer essa gente para cá para satisfazer a necessidade de mão de obra. O Canadá faz isso todo ano, estabelecendo uma cota de importação de cérebros. Hoje, nós temos a disponibilidade de mão de obra capacitada da Espanha, Portugal e da Itália. Claro que temos que melhorar as nossas escolas, mas o Brasil está fazendo uma revolução na educação que ainda não foi percebida. Nós temos 400 universidades no interior de São Paulo. Claro, não são iguais ao MIT, à USP, mas são upgrades importantes. China Não cabe no mundo 1,3 bilhão de chineses a 25 mil dólares de renda per capita. Por isso que ela está tentando comprar outro mundo – ela praticamente comprou a África, e estava tentando comprar o Brasil. Investimento chinês é sempre bem-vindo. Agora mesmo, quando teve Belo Monte, ficou aquela discussão e o governo acabou entendendo que, aparentemente era mais barato trazer as turbinas da China, mas nós temos aqui a Siemens, Voith, Alstom, que estão há 70 anos aqui. E como se compara que o produto chinês é mais barato? Pega uma turbina da Alstom, que está construindo a mesma turbina na China. Para a Alstom não faz diferença se eu importasse a turbina da China ou produzisse no Brasil, mas para nós faz uma grande diferença. Se eu trouxesse a turbina da China, ela chegava aqui praticamente sem imposto. Mas como eu já disse, a produtividade na China ou aqui é a mesma, mas para produzir aqui eu importo 15%, gero internamente 85% de renda para produzir a turbina, ou seja, emprego mão de obra, compro alumínio, energia elétrica. Quando aplico este recurso, ele se multiplica. Eu compro alumínio de alguém que vai comprar feijão de alguém que produziu. Então, tem um multiplicador de 1,5 a 2. Se eu comprar uma turbina aqui dentro, ela não gerou apenas o seu preço, mas o seu preço mais o seu multiplicador – com 80 eu gerava 160 de renda. O governo toma 40% de imposto. O Brasil vai ter nos próximos 20 anos o maior mercado de equipamentos para a indústria de petróleo. Se o chinês quiser vir se instalar aqui, será bem-vindo. Quando eles compraram a rede de transmissão, eles estavam achando o seguinte: isso vai ser um doce de coco, pois vou importar todas as torres da China. Quando chegou a hora, a Dilma disse que não, que eles iriam comprar a torre aqui dentro. Nós precisamos pensar no nosso mercado interno. Isso é que eu acho que é o pensamento que voltou a se apropriar do governo.


a i c a r c o n c e t ma

Marlene Bergamo/Folha Imagem

U

e t n a e l a b m a c Victor Davis Hanson

Brian Snyder/Reuters

Divulgação

Historiador, escritor e articulista de vários veículos de comunicação americanos. Entre seus livros está "Por que o Ocidente venceu". Tradução: Henrique Dmyterko Este artigo foi publicado originalmente no site Mídia@Mais (www.midiaamais.com.br)

E

stamos testemunhando uma ampla crise de fé em nossos guardiões progressistas (esquerdistas) dos últimos trinta anos. Eles formam a fina flor da elite certificada pelas melhores universidades, empregada pelas melhores universidades, pelo governo, pelas grandes fundações privadas e companhias de serviços financeiros. Políticos como John Kerry, John Edwards e Al Gore compartilham todos de certas características comuns a essa tecnocracia ocidental: as oportunas e adequadas credenciais advocatícias ou acadêmicas, ampla folha de serviços em cargos públicos, por nomeação ou eleição, ações políticas descaradamente progressistas, e um passe livre para desfrutar de ampla riqueza pessoal sem nenhuma contradição visível com sua tonitruante retórica política igualitária, cujo mote principal é "distribuam a riqueza". A casa de um John Kerry, o avião de um Al Gore, ou, no caso europeu, os ternos de um Dominique Strauss-Kahn não são diferentes daqueles dos altos executivos e empresários que, a portas fechadas, foram tão cortejados quanto duramente criticados em público. Essas elites ficaram praticamente imunes às acusações de hipocrisia ou de falhas de caráter em virtude de suas antigas conexões e círculo de amizades e de seu liberalismo social cheio de boas intenções. Geithner, Orszag, Summers, Austan Goolsbee, Paul Krugman e Christina Romer aparentemente presumiram que algum selo acadêmico, um prêmio conferido pelos pares ou uma graduação recebida há muito tempo lhes daria as credenciais permanentes para defender

No alto, o senador norte-americano John Kerry; acima, o ex-vice-presidente Al Gore.

uma ideia que o dono da loja de pneus, o dentista da família ou o produtor de maçãs simplesmente já sabiam que não daria certo - ou seja, não é possível emprestar ou imprimir dinheiro com base na teoria de que experts de visão estreita, sem muita experiência fora do mundo da academia ou do corredor financeiro e governamental Nova York-Washington, seriam mais capazes de direcionar esse dinheiro para fins produtivos. Mas agora essa turma deixou o governo ou não é lá mais muito ouvida - e sobrou para algum contador sem tantos títulos a tarefa de encontrar os meios de pagar uma dívida de

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US$ 16 trilhões. No exterior, em algum ponto no futuro, mecânicos e funcionários de escritório alemães terão de trabalhar um ou dois anos a mais do que o previsto para custear aqueles na Grécia ou na Itália que escolheram parar de trabalhar uma década antes da idade da aposentadoria. Durante o movimento regressivo do aquecimento global para mudanças climáticas e destas para o caos climático um pequeno grupo formado por professores cheios de si, políticos e lobistas muito bem pagos apregoava teorias não comprovadas como fatos consumados - como se fossem clérigos da Idade das Trevas que se sentiam isentos da necessidade de ler ou pensar a respeito de seus textos religiosos. Examinar a elite da mídia é deslindar a natureza incestuosa dos casamentos dos poderosos da mídia e os leais serviços prestados a chefes de Estado. Aqueles que glorificaram Obama como a um deus, ou atribuíram seus próprios tiques nervosos a sua onipresença, ou reportaram sobre suas políticas brilhantes, frequentemente foram redatores de discursos dos últimos presidentes de esquerda (Clinton e Carter), desfrutavam de conexões de família, ou eram casados com algum outro jornalista ou com pessoas politicamente influentes de Nova York ou Washington. Tal como os ricos da Idade Média que compravam indulgências ao invés de realmente se arrepender de seus pecados, quanto mais nossas elites pregavam a política do igualitarismo para as classes médias que tanto desprezam, menos mal se sentiam acerca de sua própria conivência afetada na busca por privilégios e status. Há uma geração, estava implícito que deveríamos nos sentir gratos pelo fato de que umas poucas mentes bem dotadas e desinteressadas digeriam as notícias para nós a cada dia, através das muito ricas redes ABC, CBS, NBC, NPR e PBS e pelos jornais New York Times, Washington Post e Los Angeles Times, notícias que eram resumidas periodicamente por grupos de discussão em re-

de nos finais de semana e também nos semanários Time e Newsweek. Hoje, a fatia de mercado de todas essas empresas jornalísticas está encolhendo. Algumas só continuam a existir em função de subsídios governamentais, por serem parte de conglomerados gigantescos (a GE é dona da rede NBC Universal), ou pela infusão de capital por parte de simpatizantes muito ricos. A tecnocracia tem profunda desconfiança da democracia, tal como ficou evidenciado mais recentemente pela arenga de John Kerry de que a mídia não deveria nem sequer fazer a cobertura do movimento Tea Party e pelo pânico dos dirigentes da União Europeia diante da ideia de permitir que o público votasse a respeito de suas intrincadas bandagens financeiras. Não é por acaso que jornalistas tecnocráticos amam a China tecnocrática - uma China que pode promover o que bem quiser, do transporte de massa aos painéis solares fotovoltaicos, literalmente à bala – enquanto odeiam o Tea Party, que obteve poder legislativo através das urnas eleitorais. Assim, a fúria das elites cresce contra aqueles que buscam e obtêm poder, notoriedade e influência sem o histórico, as credenciais ou as atitudes julgadas apropriadas por essa mesma elite. Um memorando banal falando de "um rebaixamento ao nível teaparty" ou de uma tomada "jihadista" do Partido Republicano é imediatamente imitado por dúzias de políticos e jornalistas incapazes de pensar numa fraseologia mais criativa. Chamamentos à civilidade são o acompanhamento natural das calúnias sem imaginação lançadas contra aqueles fora do círculo habitual. Estamos vivendo um dos períodos mais instáveis - e emocionantes - da memória recente, na mesma medida em que grande parte dos critérios estabelecidos nos últimos trinta anos está sendo virada de cabeça para baixo. Em grande parte, a atual era de recomposição e restabelecimento começou porque nossos líderes políticos e culturais exerceram uma influência que, por qualquer padrão racional, jamais mereceram.

Aris Messinis/AFP

Trabalhadores alemães terão de trabalhar um ou dois anos a mais do que o previsto para custear aqueles na Grécia ou na Itália que escolheram parar de trabalhar uma década antes da idade da aposentadoria.

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Dorivan Marinho/Fotoarena/Folhapress

A Suprema Corte deveria ser a guardiã da lei e não sua produtora

Ativismo judicial: a nova postura da Suprema Corte

N

este breve artigo, quero apenas expor minha opinião sobre o que diz a Constituição – que corresponde, rigorosamente, àquilo que a Suprema Corte adotava até a "Era Lula"– em face da nova tendência sinalizada pelos ínclitos ministros, na maioria indicados pelo Presidente Lula e pela Presidente Dilma. De início, quero deixar claro que, nada obstante o protagonismo claro da Suprema Corte em diversas questões – a última, ao transformar-se em Congresso Nacional, editando norma sobre o aviso prévio, nada obstante a lei vigente que regula a matéria ser inequivocamente constitucional (prevê os 30 dias que a lei suprema impõe como mínimo), não consigo encontrar, no texto supremo, qualquer norma que lhe permita tal auto-outorga de poderes legislativos, algo que jamais ocorreu no admirável passado do Pretório Excelso, autêntico guardião da

Carta Magna e preservador de seu texto, mesmo quando nitidamente não lhe agradava. Lembro-me de decisão em que foi relator o Ministro José Néri da Silveira, que sempre se notabilizou como notável defensor do texto maior e das prerrogativas da Suprema Corte de ser "guardiã" da lei e não sua produtora, em que ao proferir decisão outorgando área de conflito a Rondônia, que estava em disputa com o Acre, deixou claro que embora a justiça lhe parecesse estar na solução inversa – o território em litígio, que sempre estivera sob os cuidados do Acre –, como legislador negativo não poderia buscar o que lhe parecia justo, nem substituir-se ao Congresso Nacional, na produção normativa. Reconheço que os tempos são outros e os magistrados que hoje compõem a Corte – todos muito mais jovens do que eu – não se sentem mais jungidos à função exclusiva de asseguradores da lei, mas de seus verdadeiros produtores,

Luiz Prado/LUZ

Ives Gandra da Silva Martins Professor Emérito das Universidades Mackenzie, UNIP, UNIFIEO, UNIFMU, do CIEE/O ESTADO DE SÃO PAULO, das Escolas de Comando e Estado-Maior do Exército - ECEME, Superior de Guerra ESG e da Magistratura do Tribunal Regional Federal-1a. Região; Professor Honorário das Universidades Austral (Argentina), San Martin de Porres (Peru) e Vasili Goldis (Romênia); Doutor Honoris Causa das Universidades de Craiova (Romênia) e da PUC-Paraná, e Catedrático da Universidade do Minho (Portugal); Presidente do Conselho Superior de Direito da FECOMERCIO - SP; Fundador e Presidente Honorário do Centro de Extensão UniversitáriaCEU/Instituto Internacional de Ciências Sociais-IICS.

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sempre que, a seu ver, o Congresso Nacional tenha sido omisso. Poder Executivo; e do artigo 92 a 135, a do Poder Judiciário, No caso do aviso prévio, claramente, sem qualquer projeção acrescentando as funções essenciais à administração de Justieconômica quanto ao seu impacto sobre o nível de inflação, geça, ou seja, o Ministério Público e a Advocacia. ração de rotatividade de emprego, aumento de processos trabaNo inciso XI do artigo 49, permitiu que o poder mais represenlhistas, prejuízos à competitividade do País perante outros paítativo da sociedade, que é o Legislativo, pois nele está presente ses emergentes – que, em matéria tributária e trabalhista oneram toda a nação (situação e oposição), sustasse atos de invasão de sua menos suas empresas, tornando seus produtos mais competicompetência por qualquer dos outros dois poderes. tivos no mercado internacional –, isto é, independente de qualNo artigo 102 "caput", tornou a Suprema Corte verdadeiro quer análise econômica ou social a respeito, entenderam que o legislador negativo, ao torná-la "guardiã" da Lei Suprema, sem aviso prévio deve ser proporcional ao tempo de serviço, à luz de direito a modificá-la. preceito não regulado da Lei Suprema. Não declararam inconsNo artigo 103, § 2º, reforçou a função de "guardiã", proibintitucional a lei vigente, mas tornaram-na ultrapassada, infordo a Suprema Corte de legislar, ao ponto de estabelecer que, ao mando, todavia, que reunir-se-ão proximamente para definir declarar a inconstitucionalidade por omissão do Poder Legisqual será o critério de proporcionalidade, em face dos inúmeros lativo, o Supremo Tribunal NÃO PODE EDITAR NORMA, depalpites, que, sem dados estatísticos ou projeções econômicas, vendo, apenas, comunicar ao Legislativo que a sua omissão é cada um dos ministros ofertou. inconstitucional, porém, não impondo prazo Reafirmo que reconheço nos eminentes Mipara supri-la, nem sanção, se não o fizer. nistros do Pretório Excelso excelsas qualidades, E, por fim, no artigo 142, outorgou às Forças o que não significa, entretanto, que, ainda e enArmadas o poder de restabelecer a lei e a ordem, quanto o Brasil for uma democracia, não tenha mediante solicitação do poder atingido, se houNo artigo eu o direito de divergir, com respeito e constranver invasão de sua competência por qualquer gimento, do ativismo judicial dos ínclitos jurisdos outros poderes. 102 "caput", tas que compõem a Suprema Corte. Como se percebe, o equilíbrio, a harmonia e a tornou a Principio nesta análise apenas com 5 disposiindependência dos poderes estão rigorosamenSuprema tivos da Lei Maior, a saber o artigo 2º, o inciso XI do te disciplinados pelo legislador supremo, o que Corte artigo 49, o "caput" do artigo 102, o § 2º do artigo permite à sociedade brasileira usufruir, num verdadeiro 103 e o "caput" do artigo 142, assim redigidos: Estado Democrático de Direito, da certeza e da "Art. 2º São Poderes da União, independensegurança do Direito. legislador tes e harmônicos entre si, o Legislativo, o ExeInfelizmente, nada obstante o imenso respeinegativo, ao cutivo e o Judiciário."; to e inquestionável admiração que tenho por totorná-la "Art. 49. É da competência exclusiva do Condos os Ministros do Supremo Tribunal Federal, "guardiã" da gresso Nacional: tem ele se transformado em constituinte derivaLei Suprema, ........ do, em legislador positivo e invadindo a esfera XI - zelar pela preservação de sua competênde competência do Congresso Nacional, lassem direito a cia legislativa em face da atribuição normativa treado exclusivamente no princípio "magister modificá-la. dos outros Poderes;"; dixit" e não pode ser contestado. "Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal FeA primeira maculação do equilíbrio de poderes deral, precipuamente, a guarda da Constituiveio com a cassação do mandato de governadores ção, cabendo-lhe: ..."; do Maranhão e da Paraíba e a nomeação do can"Art. 103 - .......... didato derrotado para substituí-lo, e não do presidente da As§ 2º - Declarada a inconstitucionalidade por omissão de mesembleia Legislativa. Embora a origem do problema tenha surdida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciêngido no Tribunal Superior Eleitoral, o STF houve por bem chancia ao Poder competente para a adoção das providências necelar essa atuação do Poder Judiciário como legislador positivo. cessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazêOra, o princípio constitucional é de que, no impedimento do lo em trinta dias."; presidente e do vice, cabe ao presidente da Câmara dos Depu"Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, tados assumir a presidência e convocar eleição direta, se o impelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais pedimento ocorrer nos dois primeiros anos de mandato, ou inpermanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia direta, nos dois últimos anos, estando os artigos 80 e 81 da CF e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da Reassim redigidos: pública, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos po"Art. 80. Em caso de impedimento do Presidente e do Vicederes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessilei e da ordem." (grifos meus). vamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Pelo primeiro deles, os poderes são harmônicos e indepenCâmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo dentes, tendo o constituinte dedicado o Título mais extenso da Tribunal Federal. Carta Magna (Título IV) à definição das competências de cada Art. 81. Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente um. Do artigo 44 a 75, disciplina a competência do Poder Leda República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a gislativo, incluído nele o Tribunal de Contas; do 76 a 91, a do última vaga.

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Fabio Motta/AE

Não só o STF mudou a Constituição, como incinerou a vontade do constituinte ao incluir um novo tipo de união não agasalhada pela definição de entidade familiar, desfigurando o conceito de família como base de sociedade

§ 1º - Ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da lei." § 2º - Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores. Por outro lado, o artigo 25 da Constituição Federal, cuja dicção segue: "Art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que adotarem, observados os princípios desta Constituição. § 1º - São reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição. § 2º - Cabe aos Estados explorar diretamente, ou mediante concessão, os serviços locais de gás canalizado, na forma da lei, vedada a edição de medida provisória para a sua regulamentação.(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 5, de 1995) § 3º - Os Estados poderão, mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum." (grifos meus), não permite que princípios da Constituição Federal sejam tratados diferentemente pelas Constituições Estaduais, que podem apenas complementá-los, mas não alterá-los. Ora, no referido caso, não só o STF deixou de reconhecer que caberia ao presidente da Assembleia assumir a governadoria, convocando eleições indiretas, como empossou o candidato derrotado, ou seja, aquele que o eleitorado não quis que fosse governador. Prestigiou a minoria em detrimento da clara vontade da maioria e não permitiu que a maioria da população, direta ou indiretamente, escolhesse o seu novo governador. Repetiu o mesmo tratamento no caso da Paraíba, passando a ser constituinte derivado, em nível invasão das competên-

cias legislativas da União e dos Estados. Idêntica situação ocorreu no que concerne à fidelidade partidária, ainda aqui o problema tendo nascido no TSE. Os constituintes debateram a questão da fidelidade partidária e não a quiseram adotar em 1988. Para contentar a ala que a propugnara na Constituinte, decidiram que, se o partido político quisesse adotá-la em seu estatuto, poderia fazê-lo, mas que não era obrigatório. Está o § 1º do artigo 17 da CF assim redigido: "§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 52, de 2006)" (grifos meus) Ora, se a matéria deixou de ser de imposição da Constituinte, mas do livre arbítrio dos partidos políticos, que poderão editar as normas para discipliná-la, à evidência, a fidelidade de obrigatória tornou-se facultativa, visto que a agremiação política pode consagrar não só a desnecessidade de haver fidelidade, como adotá-la com ou sem exceções. Não poderia, pois, o Poder Judiciário editar normas que o Constituinte relegou à "competência normativa" dos partidos. No caso da homofobia, a invasão de competência foi mais grave, visto que, nos debates constituintes, quando se definiu, no art. 226, a família como base da sociedade e destinatária da proteção do Estado, a maioria dos constituintes liderada por Bernardo Cabral pugnou para que se explicitasse o conceito de entidade familiar, como a união entre um homem e uma mulher capazes de gerar prole, de forma a afastar qualquer dúvida quanto à impossibilidade de esse conceito hospedar a união entre pares do mesmo sexo.

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Marcos de Paulo/AE

criminosos aqui condenados. Ora, não só o STF mudou a ConstituiE há, ainda, o risco imediato de se criar ção, como incinerou a vontade do constiuma terceira hipótese de atuação do Supretuinte ao incluir um novo tipo de união mo Tribunal Federal como legislador posinão agasalhada pela definição de entidativo. Trata-se da questão do aborto, para inde familiar, desfigurando o conceito de facluir nas hipóteses de descriminalização mília como base de sociedade, ou seja, de do artigo 128 (aborto natural e terapêutico) união entre homem e mulher capaz de gedo Código Penal, o aborto eugênico, para rar prole. Afetou, portanto, os § 1º, 2º, 3º, 4º pureza da raça e eliminação de fetos mal e 5º do artigo 226. formados. Haveria, assim, a consagração Em sentido diametralmente oposto, a do homicídio uterino por decisão do SupreCorte Constitucional francesa declarou, em mo Tribunal Federal, primeiro, para os cacaso idêntico, que, por serem as relações ensos de anencefalia detectada no pré-natal e, tre um homem e uma mulher diferentes dacertamente, a seguir, para a legalização do quelas entre dois homens ou duas mulheaborto, para descarte de fetos indesejados. res, somente ao Legislativo caberia estabeTodas estas muitas invasões de compelecer a equiparação, e não ao Judiciário, tência por parte do Poder Judiciário podeconforme pode-se ler no trecho abaixo: riam ser sustadas. Vale dizer: pode o Poder Décision n° 2010-92 QPC du 28 janvier Legislativo ANULAR A EFICÁCIA DAS 2011 DECISÕES INVASIVAS DA SUPREMA Décision nº 2010-92 QPC CORTE (artigo 49, inciso XI). ………. E, na hipótese de fazê-lo e de a Supre"qu'en maintenant le principe selon lema Corte não acatar a anulação, caberia quel le mariage est l'union d'un homme et até mesmo a intervenção das Forças Ard'une femme, le législateur a, dans l'exermadas para restabelecer a lei e a ordem cice de la compétence que lui attribue l'arO STF inovou no que turbadas pela quebra de harmonia entre ticle 34 de la Constitution, estimé que la concerne à lei de os poderes da República, obrigando o Sudifférence de situation entre les couples introdução ao Código Civil premo Tribunal Federal a cumprir a de même sexe et les couples composés quanto à disciplina da Constituição. QUALQUER PODER TEM d'un homme et d'une femme peut justifier extradição e à própria O DIREITO – a meu ver "poder-dever"– une différence de traitement quant aux rèConstituição, ao delegar de solicitar o apoio da instituição militar gles du droit de la famille; competência ao Presidente objetivando o restabelecimento da lei, co………… da República para mo se depreende da dicção final do "caqu'il n'appartient pas au Conseil consextraditar ou não alguém put" do artigo 142 da CF, que diz que as titutionnel de substituer son appréciation de nacionalidade Forças Armadas destinam-se à celle du législateur sur la prise en compestrangeira condenado em ".......... à garantia dos poderes constitute, en cette matière, de cette différence de seu país de origem. cionais e, por iniciativa de qualquer dessituation; tes, da lei e da ordem" (grifos meus). ….. Os mecanismos constitucionais estão Délibéré par le Conseil constitutionnel ai e podem ser utilizados contra esta nova dans sa séance du 27 janvier 2011 où sié"vocação auto-outorgada e recém-descoberta" do Pretório geaient : M. Jean-Louis DEBRÉ, Président, M. Jacques BARExcelso de legislar, e não, apenas, de decidir. Se não forem ROT, Mme Claire BAZY MALAURIE, MM. Guy CANIVET, usados, creio que teremos estabelecido um regime de inseRenaud DENOIX de SAINT MARC, Mme Jacqueline de GUILgurança jurídica absoluta, pois não mais o que dizem a LENCHMIDT, MM. Hubert HAENEL et Pierre STEINMETZ. Constituição e a lei regerá a vida social. No campo dos esRendu public le 28 janvier 2011. tudos jurídicos e universitários, será necessário instituir Journal officiel du 29 janvier 2011, p. 1894 (@ 82)". uma cadeira dedicada a estudos antecipatórios, para profeEm seguida, o Supremo Tribunal Federal inovou no que tizar de que maneira a Suprema Corte irá, com sua "interpreconcerne à lei de introdução ao Código Civil quanto à distação", modificar a legislação vigente e seguida pelos cidaciplina da extradição e à própria Constituição, ao delegar dãos, nas suas novas funções de legisladora positiva. competência ao Presidente da República para extraditar ou Nada obstante o profundo respeito que nutro por S. Exas., não alguém de nacionalidade estrangeira condenado em creio que, mais do que nunca, é necessário séria reflexão sobre seu país de origem. No caso, a pessoa havia sido julgada por o verdadeiro papel da Suprema Corte no cenário legislativo dois Tribunais (Italiano e Europeu) por crimes comuns, frabrasileiro. Este protagonismo e ativismo judicial, entendo eu, gilizando todos os tratados internacionais e abrindo campo está trazendo muito maior insegurança do que certeza no Dipara que, no futuro, em idênticas condições nas relações reito e na vida dos Direitos, na feliz expressão cunhada por Vicom o Brasil, os tribunais de outros países desconsiderem as cente Rao, para intitular seu clássico livro. decisões da justiça brasileira para conceder extradição de

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DIGESTO ECONÔMICO AGOSTO/SETEMBRO 2011


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