Em debate, o futuro do País A
Pablo de Sousa/LUZ
Associação Comercial de São Paulo (ACSP) foi fundada em dezembro de 1894, e há mais de 115 anos participa ativamente de todos os episódios marcantes da história de São Paulo e do Brasil, unindo os setores empresariais, trabalhando em defesa da livre iniciativa e buscando caminhos que levem ao desenvolvimento do País. Há 64 anos a ACSP publica a revista Digesto Econômico, com a colaboração de especialistas do mais alto gabarito, que abordam de forma profunda temas relevantes para o destino da nação. Este ano, o Brasil passará por um importante processo eleitoral, escolhendo um novo Presidente da República, novos governadores e renovando os legislativos estaduais e o federal, além de dois terços do Senado. Todos concordam que o País hoje se apresenta com fundamentos econômicos mais sólidos, e que na crise financeira mundial fomos menos prejudicados que a maioria das nações. Também é verdade que o crescimento a uma taxa razoável vem sendo retomado, mas há também a generalizada percepção de que o Brasil poderia crescer ainda mais se superasse as graves distorções que prejudicam o seu desempenho econômico e social. Entre outras, a carga tributária e os juros estão entre os maiores do planeta, temos graves deficiências nas áreas da saúde, educação e segurança pública, e precisamos resolver com urgência questões de infraestrutura e logística. É preciso fazer a reforma política o quanto antes, porque ela será a base para todas as outras reformas. E as eleições deste ano oferecem uma grande oportunidade para ampliar o debate sobre as grandes questões nacionais. Com esse objetivo, a revista Digesto Econômico publicará uma série especial com artigos de diversos especialistas, que farão um amplo diagnóstico dessas questões, destacando os principais problemas e propondo soluções. No final, esta série será entregue a todos os candidatos à Presidência da República, juntamente com um documento-síntese das propostas que a ACSP irá apoiar, eventualmente completadas com outras que entender cabíveis. Todos esses estudos e propostas têm como tema central a necessidade de ampliar os investimentos privados e públicos, em áreas como infraestrutura, energia, educação e desenvolvimento tecnológico, bem como a de estimular o seu financiamento mediante ampliação da poupança nacional. A nosso ver, este é o caminho mais seguro para um desenvolvimento econômico e social sustentável. Nesta primeira edição, trazemos a colaboração de cinco especialistas de renome: Claudio de Moura Castro traça um perfil do sistema educacional brasileiro e propõe mudanças que se chocariam com práticas e interesses arraigados, mas cujos benefícios superariam o sacrifício se postas em prática. José Pastore apresenta as principais questões da área trabalhista, e propõe soluções visando a modernização das relações de trabalho, tanto na proteção dos trabalhadores como na segurança institucional das empresas. Já Hélio Zylberstajn aborda uma questão delicada, mas fundamental para o País: a necessidade de reforma da Previdência Social. Abordando questões de política macroeconômica, o economista Joaquim Toledo, de grande experiência acadêmica e no setor financeiro, propõe um conjunto de medidas com o objetivo de conter a valorização da taxa real de câmbio, e de reduzir a taxa básica de juros e os spreads de crédito. E por fim, Ethevaldo Siqueira, especialista em telecomunicações, mostra um panorama da evolução da telefonia no Brasil, indicando os graves problemas a serem resolvidos e riscos a serem evitados, em particular a reativação da Telebrás. Boa leitura.
Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo
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ÍNDICE
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ALFER
Paulo Pampolin/Hype
Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br
A Educação no próximo governo Claudio de Moura Castro
Presidente Alencar Burti Superintendente Institucional Marcel Domingos Solimeo
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Coordenador da Série de Edições Especiais Roberto Macedo
Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira
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Por uma Previdência Social justa e sustentável no Brasil: ir em frente sem olhar para trás Hélio Zylberstajn
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Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna
ALFER
Diretor-Responsável João de Scantimburgo
Barbara Peacock/Corbis
ISSN 0101-4218
Modernização das relações do trabalho: proteção dos trabalhadores e segurança das empresas José Pastore
Câmbio, juros e spreads – propostas de políticas econômicas Joaquim Elói Cirne de Toledo
Chefia de Reportagem José Maria dos Santos Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo
Gerente Comercial Arthur Gebara Jr. (agebara@acsp.com.br) 3244-3122
ALFER
Ilustrações e Infográficos Alfer
Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3244-3029 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Printcrom Gráfica e Editora Ltda. REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046
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O Brasil precisa completar a revolução das telecomunicações Ethevaldo Siqueira
www.dcomercio.com.br
Capa impressa em papel ecoeficiente Lumimax fosco 150g/m² e o miolo no papel ecoeficiente Starmax fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP.
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CAPA Fotomontagem: Paulo Zilberman
Eis alguns especialistas que farão parte da série de seis especiais do Digesto Econômico, com diagnósticos dos problemas do País e propostas para o próximo presidente.
Claudio de Moura Castro Hélio Zylberstajn José Pastore Joaquim Elói Cirne de Toledo Ethevaldo Siqueira Nelson Marconi Clovis Panzarini J. Roberto Afonso Carlos A. Rocca J. Roberto M. de Barros André Portela Geraldo Biasoto Luiz Salles Próximos temas:
Emprego e salários no governo federal; Reforma do ICMS; Saúde; Agricultura; Mercado de capitais incluindo crédito; Programas Sociais; Gastos públicos federais; Esportes e Turismo Aos leitores: A sua revista Digesto Econômico (bimestral) será mensal até agosto, dedicada a um profundo balanço do Brasil pós-Lula, assim compensando os números de novembro-dezembro de 2009, e de janeiro-fevereiro de 2010, que excepcionalmente não circularam.
Apoio:
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Paulo Pampolin/Hype
A Educação no próximo governo Masao Goto Filho/e-SIM
Claudio de Moura Castro Formado em Economia pela Universidade Federal de Minas Gerais com mestrado na Yale University e doutoramento na Vanderbilt University. Sua carreira profissional tem se concentrado em pesquisas na educação, ciência e tecnologia e políticas sociais. Trabalhou no IPEA, OIT, Banco Mundial e BID.
Resumo Este artigo discute um conjunto de sugestões, algumas ousadas, para reformar a educação no próximo governo, conforme sintetizadas no diagrama da página 9. Começa com um breve diagnóstico de cada caso. Abrange os vários níveis de ensino e se refere, quando cabível, à natureza pública ou privada de suas instituições. Cobre também as várias esferas de ação governamental (União, Estados e municípios), mas deve ser ressaltada a função da esfera federal, dado o seu papel regulador do setor educacional, a sua atuação direta no ensino superior de graduação e pós-graduação, a liderança que lhe cabe exercer em políticas educacionais de alcance nacional e a sua maior capacidade de mobilizar recursos necessários à implementação de várias medidas propostas.
Introdução(1)
O
presente ensaio apresenta um conjunto de ideias e diretrizes para balizar as políticas educativas do próximo governo – que se iniciará em 2011. Dado o momento em que se encontra o País, não se trata de um cardápio contendo novidades revolucionárias. De fato, o Brasil evoluiu muito e os diagnósticos atuais do sistema educativo são bastante maduros. Portanto, trata-se de consolidar ideias que estão sendo discutidas e amadurecidas faz tempo. Obviamente, não se buscou linhas de consenso em todos os azimutes do pensamento educacional. Isso nos levaria a políticas mornas, sem dentes e sem expressão. São apresentadas aqui ideias que encontram respaldo no que vem dizendo e escrevendo um grupo relativamente amplo de pensadores e pesquisadores, que se caracterizam por acreditar na chamada “educação baseada em evidência” e por respaldar seus argumentos com as melhores pesquisas e números disponíveis. Não obstante serem compartilhadas por um número considerável de pensadores, algumas soluções aqui propostas são de implementação delicada ou penosa. Mas acreditamos que os seus benefícios amplamente superam o sacrifício quando posta em prática. Um problema espinhoso para o planejamento é o fato de que somente a educação superior tem uma rede federal. No ensino básico, ou é estadual ou municipal. Portanto, um plano de educação feito nacionalmente pode tutelar quem está sob a autoridade do Ministério da Educação (MEC). Mas fica sobrando o ensino básico, manejado por municípios e Estados, autônomos para esse mister. Portanto, é um Plano que, para ser adotado, depende mais de persuasão do que da força da lei. Este texto foi organizado em sete seções. A primeira apresenta as quatro premissas que norteiam as propostas. A segunda apresenta o ensino fundamental como a grande prioridade e a terceira trata da formação de professores. A quarta e a quinta abordam o ensino médio e a educação técnica nesse nível, respectivamente, no segundo caso abrangendo também os cursos voltados para formação de tecnólogos, de nível superior. A sexta trata do ensino superior tradicional, com três subseções – precedidas por uma breve introdução –, a primeira voltada para os sistemas público e privado em conjunto e as duas seguintes para esses sistemas separadamente. A sétima e última seção ocupa-se da pós-graduação.
1. Há ampla evidência de que o investimento na educação é uma condição necessária para o aumento da produtividade, para melhorar a distribuição de renda e para a consolidação da democracia. Como nos ilustram as experiências de países como a antiga União Soviética, educação não é condição suficiente para crescimento ou para democracia. Contudo, bem sabemos ser condição necessária, pois não há casos de sucesso dentre países que pouco cuidaram de sua educação. Estudos internacionais estimando os resultados de investimento em educação encontram uma contrapartida equivalente no Brasil. Em ambos os casos, as taxas de retorno são altas em todos os níveis de escolaridade. E quase sempre são maiores do que aquelas obtidas para investimento em capital físico. Ou seja, é um bom investimento. De fato, estima-se que hoje nos países avançados, dois terços do capital seja o conhecimento (ou know-how). Outras formas de tratar o problema como funções de produção e estudos correlacionais e históricos mostram exatamente a mesma coisa: educação e crescimento estão intimamente associados. Educação custa dinheiro, e não é pouco. Nela se gasta mais de 5% do PIB. É muito ou é pouco? Na verdade, está na média mundial e há países gastando menos e conseguindo resultados bem melhores. Seja como for, em número de funcionários, o ensino é a maior indústria do País. Uma ideia disso é dada pelo fato de que o ensino básico, segundo dados do site do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), ocupava 2.908.873 professores em 2006. Além disso, se contarmos cursos informais, o tamanho econômico do setor de ensino se aproxima de 10% do PIB (2). Portanto, não se gasta pouco. Não obstante, no ensino fundamental, os gastos são insuficientes. Esse é um nível em que deveríamos dedicar bem mais recursos. Considere-se apenas que um aluno do fundamental custa um décimo do que se gasta com universitários da rede federal.
Norteando tudo que está sendo proposto estão quatro premissas básicas. Acerca delas, há pouco dissenso, mesmo dentre grupos que discordam das proposições mais concretas apresentadas adiante.
2. As estatísticas e os testes não deixam dúvidas: em matéria de educação, o Brasil está mal, apesar dos grandes avanços na matrícula. Somente em meados da década de 90 conseguimos universalizar a presença das crianças de 7 a 14 anos nas escolas. Foi muito tarde. Ainda assim, cumpre celebrar o evento. Contudo, reprovação e repetência continuam muito altas na transição da 4ª. para 5ª. série e altíssimas na 8ª. série e no ensino médio. São as mais altas do mundo. O grande escolho hoje é a má qualidade do ensino oferecido (em boa parte responsável pela repetência e evasão – que aceleram a partir dos 14 anos). Nos testes do PISA, estamos entre os últimos lugares, em um conjunto de países que hoje atinge 50.
(1) O autor agradece os comentários de muitos leitores de uma
(2) Para uma estimativa dos gastos fora dos sistemas oficiais, veja-se
versão preliminar. Dentre eles, destacam-se os nomes de Ana Maria Rezende Pinto, João Batista de Oliveira, Maria Helena Guimarães Castro, Paulo Roberto de Almeida, Renato Janine Ribeiro. Mas obviamente, nenhum deles é responsável pelas posições do autor.
C. M. Castro, Maria Helena Magalhães Castro e Elenice Leite, "Educação no Brasil: atrasos, conquistas e desafios", Brasil: Estado de uma Nação (Brasília: IPEA, 2006)
I. Premissas
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3. A maior deficiência está na qualidade do ensino inicial Nossos testes confirmam o desastre do início da escolarização (SAEB, Prova Brasil e ENEM). Para ilustrar, mais da metade dos alunos de quarta série não está funcionalmente alfabetizado. Portanto, só há uma prioridade na educação brasileira: melhorar o ensino nas séries iniciais. Tudo mais, ou é consequência, ou será espontaneamente resolvido quando tivermos uma educação fundamental de qualidade. Embora o presente ensaio lide com propostas para todos os níveis, como deve ser, é o nível inicial que merece todo o apoio, sobretudo, considerando que as forças políticas e sociológicas tendem a desconsiderar esse nível. Ou seja, política educacional é para impulsionar aquelas mudanças que os sistemas e as gentes não são levadas a fazer por suas próprias vontades e iniciativas. Isso não quer dizer que devemos parar de fazer tudo o mais que pode melhorar a educação. De fato, há muitas intervenções altamente eficazes, em todos os níveis – até na pós-graduação – e não há razões para que não sejam implantadas. Contudo, não podemos perder o centro de gravidade de todos os esforços. Este deve estar nas séries iniciais, pelo menos, por mais uns quantos anos. 4. Se os pais acham a educação boa, é difícil implementar uma política de qualidade Pesquisas recentes mostram que 70% dos pais acham boa a educação dos seus filhos. Ao que parece, para eles contam as melhorias de infraestrutura, merenda, livros etc. O dilema é que em um sistema minimamente democrático, a vontade da maioria pesa nas decisões dos políticos. Se o povo acha que a educação é boa, eles não veem razões sólidas para gastar recursos e capital político nas inglórias batalhas para melhorar a qualidade. Os 30% de insatisfeitos são, justamente, os mais educados. Esse é talvez o maior de todos os impasses na educação brasileira: o círculo vicioso da mediocridade. II. Ensino fundamental: a grande prioridade Há hoje bastante consenso acerca do que é preciso fazer para que melhore a qualidade do ensino fundamental. Não obstante, há muitas providências politicamente delicadas ou que encontram ferozes resistências de grupos de interesses e de bolsões ideológicos, sobretudo nas lideranças intelectuais da educação que professam uma pedagogia que ignora a evidência científica e a boa pesquisa na área (Faculdades de Educação e Secretarias). 1. Foco na sala de aula e no ensino Praticamente terminamos um longo ciclo de institucionalização das escolas e das redes públicas de ensino. Há professores, há livros, há merenda, há equipamentos básicos e as qualificações formais dos professores aumentam rapidamente. Agora é a hora da sala de aula. A institucionalização mencionada acima criou as pré-condições. Mas ensino se dá dentro da sala. É nessa etapa crítica que permanecem os defeitos e lacunas. É preciso que os professores ensinem corretamente e
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que os alunos aprendam. Não há mágicas tecnológicas. A solução está no “feijão com arroz” da boa sala de aula. 2. Programas de apoio aos alunos mais fracos e atrasados Quando se descobriu que era o país com a melhor educação, a Finlândia tornou-se foco de atenções. Mas de tudo que fazem melhor ou diferente, possivelmente o que mais se presta à cópia é a política de cuidar dos alunos que vão ficando para trás. Ou seja, não permitir que alguns se distanciem do resto da turma. Essa é claramente uma ideia a ser aproveitada. Sobretudo nas escolas com piores resultados, ter professores preparados para lidar com os retardatários parece um investimento certeiro. Nesse foco seletivo, é preciso considerar a situação vulnerável das escolas em áreas urbanas conflagradas. Seus problemas não são apenas de educação. A sua situação requer intervenções mais complexas, incluindo por tempo integral, esportes, políticas de segurança e emprego. Não obstante, é também preciso oferecer oportunidades diferenciadas para os mais talentosos. É incomensurável o impacto social de iniciativas para esse grupo. Porém, esses são programas relativamente modestos, do ponto de vista dos recursos a serem mobilizados. 3. Expansão seletiva da pré-escola Há evidência substancial, sobretudo dos Estados Unidos, mostrando que os efeitos de uma boa pré-escola são substanciais e duradouros. Daí as inúmeras propostas de expandir a sua matrícula. Este ensaio recomenda essa política de expansão. Contudo, faz recomendações severas para a sua implementação. O que sabemos é sobre o impacto positivo de pré-escolas de qualidade. Nosso conhecimento é muito ralo acerca dos benefícios trazidos por escolas fracas, como tendem a ser as nossas. Portanto, não se pode recomendar a mera expansão sem sólidos cuidados para assegurar a qualidade do ensino oferecido. Uma pré-escola fraca vai tirar a atenção e os recursos do ensino fundamental. Terminaríamos com um sistema mais amplo, mas igualmente incapaz de oferecer uma educação de qualidade. E para os políticos, construir e inaugurar é mais atraente do que brigar para melhorar a qualidade. Pior o remendo que o soneto. 4. Currículos mais enxutos, mais fáceis e mais explícitos O ensino fundamental deveria concentrar-se na língua nacional, na matemática (aplicada) e nas ciências elementares. Não é o caso de eliminar o resto, como história, inglês e outras. Mas a precedência deveria ser para as três básicas. De pouco adianta criar parâmetros curriculares e, em seguida, ter que escrever um livro para explicar o que quiseram dizer os autores. Precisamos de marcos curriculares concisos, sem jargão pedagógico e suficientemente detalhados para que os professores saibam em cada série e em cada disciplina o que devem ensinar e o que os seus alunos devem sair sabendo.
Paulo Pinto/AE
Currículo: o ensino fundamental deveria concentrar-se na língua nacional, na matemática (aplicada) e nas ciências elementares.
Temos um vício congênito de produzir livros e currículos para gênios. E bem sabemos, quando ensinamos demais, os alunos aprendem de menos. É preciso ter currículos que estejam ao alcance dos alunos médios. Pela legislação vigente, o MEC não pode produzir currículos nacionais, apenas orientações genéricas. No entanto, nada impede o MEC de preparar currículos que seriam voluntariamente adotados pelos Estados. Além disso, conceder um selo de qualidade para materiais e currículos produzidos por Estados ou empresas. Na verdade, não há competência instalada nas secretarias estaduais e municipais da maioria dos municípios. É razoável supor que, na impossibilidade de produzir seus próprios currículos, estas aceitem as sugestões federais. Não obstante, o MEC pode produzir e aprovar padrões e exigências para o que deve ser aprendido nas escolas. É um passo além dos currículos. É o nível de desempenho definido como padrão mínimo para todos. 5. Professores melhores Não há nem novidade e nem exagero em dizer que a qualidade dos professores tende a ser o mais forte determinante de quanto os alunos aprendem. Contudo, os próximos passos são árduos e controvertidos. Como fazer para que os professores sejam melhores? Pela lógica, a primeira providência para melhorar o en-
sino é recrutar professores com mais talento e potencial. Se uma tal política houvesse sido adotada no passado, grande parte dos problemas da educação não existiriam. Contudo, com um tempo de presença na força de trabalho de mais de trinta anos, é esse prazo que levará para renovar o quadro docente, pois não é politicamente viável trocar os que estão hoje no quadro. Seja como for, é preciso recrutar melhor. Instrumentos valiosos são o Programa de Universidades para Todos (PROUNI) e o Crédito Educativo, no lado financeiro. Se forem oferecidas vantagens financeiras para matriculados nos cursos de formação de professores, deve ser possível atrair para eles alunos mais talentosos. Para definir níveis de competência acadêmica, o ENEM pode vir a ser um instrumento privilegiado. Dessa forma, é possível atrair candidatos melhores, seja para o sistema público, seja para o privado. Há ideias nessa linha, mas ainda não foram implementadas. As políticas de aumentos salariais puros e simples são ineficazes, por tudo que sabemos – que não é pouco. Comparando Estados e países, não há correlação entre nível salarial dos docentes e qualidade do ensino. Por outro lado, adicionais por desempenho, seja para a escola, seja para professores individuais, estão mostrando resultados muito positivos em vários países e mesmo em alguns experimentos brasileiros. Este é o caminho. A avaliação dos professores é um tema delicado e contesta-
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do pelos sindicatos. Contudo, por que não podem ser avaliaContudo, outros mecanismos de escolha são também prodos aqueles de quem dependemos para forjar o futuro do País? blemáticos. A eleição tende a politizar a vida escolar, com conHá um claro avanço em outros países. Sindicatos americanos, chavos e compromissos assumidos no período pré-eleição e até agora resistentes à ideia, estão mudando de opinião. (3) que tiram do diretor a sua autonomia para gerir a escola. Em Por tudo que sabemos pela via da pesquisa, os cursos de todos os países avançados, elege-se o legislativo e o executivo. reciclagem de professores, oferecidos prodigamente, são Em seguida, os eleitos pelo povo decidem quem serão os gesineficazes. Simplesmente não melhoram o desempenho dos tores das escolas. Não há espaço para grupos de interesse inprofessores em sala de aula. Não obstante, como demonstra ternos e nem democracia direta. Os concursos são mais neua experiência dos “sistemas de ensino”, cursos de como entros, mas capturam apenas os talentos que facilmente se revesinar e como usar os livros adotados se revelam altamente lam nos testes de “lápis e papel”. produtivos. Até o momento, o melhor sistema é um encadeamento de A carreira docente apresenta equívocos lamentáveis que, concurso e eleição, em que os candidatos são apenas aqueles ademais, são politicamente difíceis de serem sanados. A esmais bem classificados na prova. Há boas razões para impletabilidade de cátedra torna virtualmente impossível se ver limentar nacionalmente essa terceira alternativa. O MEC povre de professores incompetentes, negligentes ou perniciode condicionar suas transferências a municípios à adoção sos. O oposto, que são os contratos precários, desse sistema. tampouco são uma boa ideia. É preciso ajustar Merece apoio a ideia de que o diretor deva rea carreira, de forma a reduzir ou eliminar os ceber um contrato de gestão. Ou seja, vai acertar Muitas pesquisas “boias-frias” e também criar possibilidades com a Secretaria de Educação quais serão suas internacionais de dispensa mais realistas. metas do ano e vai ser cobrado por elas. O progresso na carreira não pode ser apenas confirmam a seguinte por antiguidade e por cursos realizados. Nem 7. Melhor gestão e mais hipótese: sistemas em um e nem outro estão estatisticamente associaautonomia para as escolas que as escolas têm mais dos ao desempenho. Em vez disso, os profesMuitas pesquisas internacionais confirmam a autonomia produzem sores precisam ser avaliados periodicamente e seguinte hipótese: sistemas em que as escolas melhor educação. o cumulativo de tais avaliações ter um peso sétêm mais autonomia produzem melhor educario nas promoções. ção. Hoje, as escolas têm quase nada de autonoHoje, as escolas têm Um problema sério em muitos lugares é a mia para decisões críticas, para o seu funcionaquase nada de impunidade diante do absenteísmo – o qual mento. Praticamente, nenhum poder têm sobre a autonomia para pode tomar muitas formas. Em outros, o excesescolha e a manutenção do seu corpo de profesdecisões críticas para so de rotatividade dos professores impossibisores. Têm muito poucos recursos discricionáo seu funcionamento. lita qualquer plano de melhoria do ensino. rios para obras e iniciativas próprias. Uma alternativa politicamente menos Em contraste, têm total impunidade para traumática seria criar uma estrutura paralela produzir resultados fracos ou escandalosos. e voluntária. Quem quisesse, poderia optar por ela. A seleção Ou seja, só têm autonomia para serem ruins. Faz muito mais seria mais rígida, as avaliações frequentes e os salários baseasentido dar mais ampla autonomia operacional e cobrar redos em uma parte fixa e outra variável, dependendo do desultados finais com energia e rigor. Em boa medida, a reforsempenho. Igualmente, as promoções seriam respaldadas ma inglesa de uma década atrás adotou essa linha, com expelo desempenho em sala de aula. As contratações seriam via celentes resultados: o diretor faz o que quiser e como quiser, CLT, portanto, não garantiriam estabilidade. Ao cabo de almas no fim do ano terá que demonstrar que os alunos dogumas décadas, esse sistema substituiria o vigente hoje. minaram um currículo muito explicitamente definido. O outro lado da equação é que os professores se sentem deÉ claro, os diretores precisam ter sua missão melhor defisamparados e alienados diante de uma máquina burocrática nida. E também, uma orientação segura quanto à maneira de burra, impessoal e injusta. Em particular, as comunicações entre atingir suas metas. centro e periferia tendem a ser disfuncionais, pelo menos no níMas além dessas mudanças mais estruturais, há um sem vel dos Estados. É preciso ajustar as formas de relacionamento número de aperfeiçoamentos nos sistemas de gestão das eshierárquico e pessoal, dando ao professor o justo valor e autoescolas. Hoje, os diretores gastam grande parte do seu tempo tima que merece. Quer pensemos em justiça ou em resultados, com assuntos que nem são prioritários e nem têm a ver com não é possível pensar em um ensino de qualidade com profesensino. É preciso liberá-los dessas tarefas, para que possam sores insatisfeitos ou se sentindo desvalorizados. cuidar do que importa no longo prazo. Algumas fundações empresariais criaram sistemas de ges6. Escolha do diretor: sai a politicagem, entra o mérito tão para redes municipais. Parte-se da hipótese de que a escola Em um terço das escolas, os diretores são ainda uma indicaé uma organização que deve ser administrada com eficiência. ção política. Essa chaga precisa ser eliminada rapidamente. Existem ferramentas para isso, derivadas de décadas de expe-
(3)
Veja-se Bob Herbert, "A Serious Proposal", New York Times (11 de Janeiro 2010)
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Paulo Pampolin/Hype
Algumas escolas municipais adotaram "sistemas de ensino" (Positivo, COC, Objetivo, Pitágoras) com bons resultados.
riência de gestão empresarial e já vários anos de testes em redes educativas. Os resultados são altamente positivos. Ao melhorar a gestão e definir metas de desempenho, avanços muito substanciais na qualidade têm sido obtidos. 8. Apoio à participação de “redes de ensino” nos sistemas públicos De alguns anos para cá, alguns “sistemas de ensino” (como o Positivo, Pitágoras, COC e Objetivo) assinaram contratos com municipalidades para que prestem a elas os mesmos serviços que oferecem à rede privada. Com a consolidação dos mecanismos públicos de avaliação, está ficando cada vez mais claro que há uma melhoria substancial no desempenho das escolas dos municípios conveniados com as redes. Uma pesquisa ainda não publicada mostra que, nos municípios conveniados, os alunos estão meio ano à frente dos outros não participantes. Para expandir a cobertura dramaticamente, bastaria que o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) permitisse que os municípios usassem os recursos dos livros didáticos a que têm direito para comprá-los dos “sistemas” previamente pré-qualificados. A teoria é simples e as medidas administrativas ainda mais, pois os municípios sabem contratar o fornecimento de bens e serviços, desde que disponham
dos recursos para tal. O problema é a resistência ideológica de algumas correntes dentro do MEC. Mas vamos e venhamos, se os prefeitos querem e se os resultados são bons, que argumentos existiriam para não permitir o uso dos recursos do FNDE para esse fim? O País não pode ser refém de grupelhos ideológicos operando dentro do MEC. 9. Consolidar a avaliação e usá-la para premiar os melhores O País deu um gigantesco salto ao criar um sistema de avaliações de padrão internacional. Não somente é inconcebível qualquer recuo, mas torna-se necessário melhor usar os resultados obtidos, já que ainda não estão produzindo os impactos que poderíamos esperar. Predicam-se avanços em duas linhas. Em primeiro lugar, é preciso educar os pais e a sociedade em geral acerca do que significam e como usar as avaliações. Isso tem que se incorporar na cultura do povo. Sabendo usar, a sociedade cobrará resultados dos sistemas escolares. Esse é um papel clássico para o MEC, mas apesar dos avanços técnicos na avaliação, esse aspecto tem recebido pouca atenção. Do lado do Estado, é preciso usar a avaliação para identificar problemas e premiar as melhores escolas e os melhores municípios. Ainda há muito pouco acontecendo nessa direção.
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III. Formação de professores Há hoje forte consenso acerca das deficiências nas escolas que formam professores. Tais falhas são responsáveis, em boa medida, pela má qualidade do ensino. Vejamos: 1. Deficiências dos cursos de formação Podemos falar em quatro: (i) Os futuros mestres não aprendem corretamente aquilo que vão ensinar. Há pouca ênfase no conteúdo e no currículo que deverão transmitir aos seus alunos. (ii) Não aprendem a dar aula, ou seja, não são expostos às técnicas e práticas que cotidianamente necessitarão para lidar com seus alunos. (iii) Gastam um tempo excessivo com teorias abstratas e rarefeitas. Jamais aprendem a usá-las no cotidiano, apenas ouvem e memorizam palavras e formulações longínquas do mundo real. (iv) Gastam também muito tempo em diatribes ideológicas e leituras sobre sistemas sociais, capitalismo e comunismo. Vale enfatizar que essas lastimáveis deficiências nos cursos d e f o r m a ç ã o d e p ro f e s s o re s constituem-se hoje no maior óbice ao progresso da educação de qualidade. É impossível subestimar a importância dramática dessa falha. Os estágios que seriam a última chance de aprender a ser professor de sala de aula são ineficazes e quase fictícios. Não têm nada a ver com o que se esperaria. Assim como é inconcebível um médico tratar pacientes sem haver feito internato e residência, o que sabe um professor sobre manejo de sala de aula, se não praticou antes, com uma supervisão adequada? O resultado é que seus alunos, nos primeiros anos de trabalho, são cobaias e vítimas do seu despreparo. Difícil imaginar um cenário pior. É preciso uma revolução maior nas faculdades de educação. Os alunos, os futuros professores, precisam aprender bem os conteúdos, precisam menos teorias e mais técnicas para lidar com o cotidiano da sala de aula. Os programas precisam levar os futuros mestres a ler mais e escrever mais. Igualmente, sem uma sólida familiaridade com informática, jamais os computadores poderão ser usados de forma produtiva nas salas de aula.
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E obviamente, com os estágios, precisamos de começar tudo de novo. De tudo que está sendo proposto no presente ensaio, essas mudanças podem ser as mais críticas para melhorar o ensino. Mas são também as mais traumáticas e que mais colidirão com os interesses e as crenças de grupos com muita presença política. Daí a importância de levar o assunto a um nível mais elevado, em que os interesses ideológicos e corporativos se diluam no bojo do interesse nacional.
2. Alta evasão nas universidades públicas, As universidades públicas estabelecem um nível de exigência durante os cursos de pedagogia e licenciatura que é incompatível com o preparo dos alunos que recebem. Daí que as taxas de deserção nas licenciaturas científicas podem dizimar 95% dos alunos. Como poucos se formam nas universidades públicas, a rede escolar pública é abastecida por egressos das faculdades privadas. Ora, como a carreira de professor atrai os alunos de nível econômico mais baixo de quantos entram no su-
perior, eles não têm meios de pagar mensalidades que garantam um ensino minimamente razoável. As soluções aqui não chegam a ser difíceis, dada a existência do programa federal de crédito educativo e do PROUNI. Basta criar facilidades e vantagens para quem optar por matricular-se em escolas que preparam professores. Quanto mais necessitado o aluno, mais será atraído por incentivos financeiros, como bolsas ou isenções. Hoje, o PROUNI atrai alunos que, na média, mostram desempenho Christopher Robbins/Image Source
se põe de acordo de como deveria ser. No Brasil é pior, o médio vive em um vácuo de ideias. Sabemos que seus defeitos são graves, mas não nos pomos de acordo com um modelo alternativo. Em resumo, o médio: (i) É difícil demais e os currículos excessivos. (ii) Falta aplicação, sobra abstração. (iii) Oferece um cardápio único para todos, embora receba alunos de níveis muito diferentes. Não há outro país no mundo que tenha criado semelhante assombração. (iv) Está perdido, com excesso de papéis. Precisa preparar os que terminam nesse nível sua presença na escola. Precisa preparar para o superior, com seus exames de entrada. Precisa preparar para o mundo do trabalho. Diante de tantos desafios, não atende bem a nenhum. (v) Faltam professores preparados para ministrar as disciplinas, particularmente nas ciências e matemáticas. As seguintes diretrizes são aqui propostas:
O ensino médio é um nível em crise existencial: sabemos que apresenta graves deficiências, só não sabemos como ele deveria ser, ou pelo menos não há consenso neste sentido.
superior ao dos alunos pagantes. Não há porque imaginar que um tal programa não possa também atrair bons candidatos para o magistério. IV. Ensino Médio Nosso ensino fundamental é deficiente, mas sabemos como deveria ser. Nosso ensino médio também é deficiente, só que não sabemos como deveria ser. Aliás, por toda parte, o médio é um nível sempre em crise existencial. Ninguém
1. Reduzir o número de disciplinas obrigatórias, aumentar as eletivas Essa é a primeira providência para diferenciar os currículos, de acordo com o perfil do aluno, do tipo de escola e da geografia. Se são poucas as obrigatórias, cada escola pode diferenciar seu currículo. De fato, é totalmente inapropriado obrigar todas as escolas a ensinar, por exemplo, filosofia ou sociologia. 2. Oferecer a mesma disciplina com níveis diferentes de dificuldade, para atender à variedade da clientela Alguns alunos precisam aprender equações do terceiro grau para passar em vestibulares hipercompetitivos. Outros ganhariam muito mais gastando seu tempo com ferramentas matemáticas mais simples e de maior utilidade prática. Para muitos, é preciso contextualizar tudo. Outros vivem bem no mundo da abstração pura. Portanto, é preciso permitir e estimular que o mesmo assunto seja ensinado com níveis diferentes de exigência e de abstração. Repare-se que as high schools americanas fazem exatamente isso. Em estilo diferente, mas com o mesmo resultado, o ensino secundário europeu tem muitas alternativas, umas mais e outras menos profissionalizantes. Cada modalidade ensina, por exemplo, matemática com um nível diferente de abstração e dificuldade. 3. Reduzir o nível de dificuldade do curso como um todo, bem como o excesso de conteúdos Os programas do ensino médio são absurdamente longos e difíceis. Sem dúvidas, estão muito acima da capacidade de absorção da maioria dos alunos – curiosamente, o currículo do EJA (Ensino de Jovens e Adultos) é bem mais curto e realista. Em contrapartida à redução, faz sentido aumentar a profundidade do aprendizado dos conceitos fundamentais. Igualmente, é preciso aproximar o curso do mundo real. No nível de rarefação em que é oferecido, desmotiva os alunos e não permite um real domínio do que está sendo ensinado, pois não há a imprescindível contextualização. Disciplinas como Tecnologia e Empreendedorismo caminham na direção certa.
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4. A profissionalização oferecida dentro das escolas será apenas aquela de tipo genérico As escolas acadêmicas não têm afinidades com o ensino de profissões e com as inevitáveis mudanças de perfil ocupacional oferecido, como consequência das flutuações dos mercados de trabalho. Daí ser mais vantajoso ficar em áreas que estão na fronteira do profissional com o acadêmico, como informática, práticas de escritório, economia aplicada, educação financeira etc.
Paula Souza são eloquentes, mostrando o aumento de alunos de origem mais modesta, após a separação. 2. Os cursos federais seriam obrigados a realizar periodicamente estudos de acompanhamento de egressos A administração de cada escola seria responsabilizada pela coerência entre as carreiras cursadas e as ocupações exercidas. Cursos cujos graduados não exercem a profissão seriam progressivamente desativados.
5. Facilitar o acesso ao magistério de profissionais universitários, em matérias afins à sua formação. Os cursos de reciclagem para esses profissionais deveriam ser dramaticamente encurtados. Somente aqueles que confirmarem seu interesse em permanecer no magistério deveriam fazê-los. Ou seja, só seriam exigidos após um período de carência, com o fim de atrair mais candidatos. V. Educação técnica
3. A expansão seria predominantemente pelo setor privado. Dados os altos custos por aluno na rede federal, não é razoável esperar que haja recursos para uma expansão muito substancial nessa rede. Daí a necessidade de que o crescimento seja pelo setor privado. Para isso, seriam criados, para técnicos e tecnólogos, mecanismos semelhantes ao crédito Dados os educativo e o PROUNI. As escolas participantes teriam também que fazer os estudos de altos custos acompanhamento de egressos e só receberiam por aluno na financiamento para os cursos com boa aderênrede federal, não cia ao mercado.
O presente ensaio não lida com a formação profissional clássica, oferecida tipicamente por entidades do Sistema S (principalmente pelo SENAI e SENAC) e de forma muito iné razoável dependente. Cobrimos apenas o ensino técesperar que haja nico, no caso, técnicos e tecnólogos. 4. As escolas médias públicas não O marco legal balizando os técnicos e tecofereceriam curso técnicos e nem recursos para nólogos é bastante razoável. O único porém formação profissional uma expansão são os cursos técnicos federais que voltaram De fato, esse tipo de curso e a necessária muito substancial a integrar o lado profissional com o lado acaproximidade ao mercado não corresponde à nessa rede. Daí dêmico. Isso é uma odiosa volta ao seu elitissua cultura. Em contrapartida, as escolas púa necessidade de mo e desvio de função. Ou seja, voltam a blicas teriam fundos para dar aos seus aluatrair alunos de classe média e alta que não nos, vouchers para que com eles possam se que o crescimento têm interesse pelas carreiras técnicas. Apematricular em cursos pré-selecionados e seja pelo nas querem se aproveitar de um curso acadêaprovados. São Paulo e Minas Gerais camisetor privado. mico gratuito e de boa qualidade, para prenham nessa direção. pará-los para um vestibular competitivo. Portanto, ocupam oficinas e laboratórios que 5. Tornar menos pesados poderiam estar sendo usados por alunos mais modestos e a carga horária dos cursos técnicos. interessados nas ocupações técnicas oferecidas. O aluno que busca o ensino técnico precisa vencer toda a carPaíses europeus matriculam entre 30% e 70% da faixa etária ga do médio acadêmico, já excessiva, somando a isso mais mil do médio em cursos profissionais. No Brasil, estamos abaixo horas de profissionalização. Isso faz com que os alunos mais podos 10%. Considerando a importância desse tipo de formação bres, que teriam mais interesse pelo técnico, terminem com uma para a economia e a alta empregabilidade de cursos desse tipo carga horária superior à dos alunos acadêmicos. Ou seja, quem – sempre e quando bem conduzidos – essa é uma direção em menos pode se permitir passar tanto tempo na escola é justaque o País é lastimavelmente retardatário. mente quem tem que passar mais. A solução é mais ou menos óbvia. Trata-se de adotar para os As seguintes diretrizes são propostas: alunos técnicos de todas as idades um currículo menos ambicioso, como é o do Educação de Jovens e Adultos (EJA Médio). 1. No sistema federal, voltar a oferecer o lado técnico De fato, em alguns Estados cria-se uma combinação de EJA com e o acadêmico de forma separada técnico, para alunos mais velhos. Com isso, o técnico pode ficar Ao aluno cabe decidir se faz um, o outro ou ambos. Ele pode mais ou menos do mesmo tamanho que o acadêmico. se formar em outra escola e, quando estiver pronto, se matricula no ramo técnico. Ou, pode fazer os dois, um de tarde e ou6. O MEC criaria programas de formação de professores tro pela manhã. Essa separação permitiu uma considerável depara o ensino técnico e tecnológico. selitização do ensino técnico, mas houve depois um grande reAlém de programas para formar professores, tanto da rede trocesso. Pelo menos em São Paulo, as pesquisas da Fundação privada quanto da pública, haveria também recursos para a
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preparação de materiais didáticos apropriados para cursos técnicos e tecnológicos. 7. Os professores das disciplinas profissionalizantes seriam necessariamente profissionais com ampla experiência de mercado. Há uma alarmante queda na presença daqueles que exercem os ofícios ensinados, dentre os professores desses cursos. As exigências de diplomas de todos os tipos torna quase inviável a contratação de professores com experiência prática. Além disso, como são enquadrados apenas pela sua titulação formal, os profissionais são prejudicados do ponto de vista salarial e de posição no quadro docente. É preciso valorizar esses perfis práticos e dar a eles o status e a remuneração equivalente. Paralelamente, deveriam ser encorajadas formas parciais de engajamento dos professores (horistas, tempo parcial etc). Os melhores profissionais podem estar interessados em ensinar, mas não necessariamente de abrir mão de suas carreiras profissionais. 8. Tecnólogos passariam a ter apenas uma grade comum mínima. Um currículo mínimo substituiria as coleções de grades curriculares, uma para cada profissão. Para o restante das disciplinas fica por conta de cada escola ajustar-se às exigências e variações do mercado. É uma solução inspirada nos Associate Degrees americanos, que tem disciplinas iguais e obrigatórias para todos os cursos e o resto variando de acordo com a orientação da escola e o mercado. VI. Ensino Superior Leonardo Rodrigues/e-SIM
Países europeus matriculam entre 30% e 70% da faixa etária do médio em cursos profissionais. No Brasil, estamos abaixo dos 10%. Isso mostra como estamos defasados nesta área.
O ensino superior é o mais estudado e o mais debatido. Mas, nem por isso há muito consenso diante de seus dilemas. Contudo, há certas linhas de convergência em torno de alguns pontos. É certo que a matrícula nele é substancialmente menor do que em países de nível comparável ao Brasil. Mas ao contrário do que pensam os mais desavisados, o que faltam são candidatos. O ponto de estrangulamento ocorre antes do vestibular. É o estreitamento ao fim do fundamental e a sangria de uma deserção exagerada que limitam o crescimento da matrícula no superior. Comparado com outros países da América Latina, o nosso ensino superior mostra uma ampla superioridade nas construções, laboratórios e parques de computadores. Ainda mais expressiva é a fração dos professores com mestrados e doutorados.
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Não obstante, o calcanhar de Aquiles do superior é a fraca qualidade dos alunos. Extrapolando os resultados do PISA, nossos alunos passam no vestibular com um nível de competência acadêmica que corresponde à de europeus com quatro anos a menos de escolaridade. Portanto, muitos dos problemas do nosso ciclo superior só se resolverão no básico. É preciso ter clareza quanto a isso. Além disso, precisamos relativizar o que significa um curso “profissional” para muitos alunos. Na verdade, são quatro anos a mais de escolarização, nem sempre importando o diploma para a ocupação mais adiante obtida. Hoje, menos de metade dos graduados está em ocupações que não correspondem especificamente às titulações profissionais que constam dos seus diplomas. A solução ideal seria proceder às reparações requeridas no nível básico. Contudo, para quem recebeu uma educação fraca, quatro anos a mais são de um valor inestimável, como demonstram os estudos de remuneração e aproveitamento escolar (no caso, o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes – ENADE e o antigo Provão). Não há nada de muito errado com o que está fazendo o ensino superior (embora as universidades públicas sejam caras demais para exercer esse papel). Nossos controles burocráticos evitaram abusos frequentemente observados em outros países. Portanto, não se trata de acabar com sistemas de controle, fiscalização ou avaliação. Não obstante, esses mecanismos ultrapassaram de muito uma intromissão razoável e produtiva.
O Processo de Bolonha orienta o ensino superior europeu em sua transição para o futuro. Sua agenda deveria ser seriamente estudada, pois há muito a se aprender nela, não apenas no ciclo de estudos gerais, mas em outros temas também. 2. Ênfase na qualidade do ensino e não em uma suposta pesquisa Nas universidades públicas, a pesquisa é pouca (só existem dez universidades em que a média de publicações atinja um paper por professor/ano). Na maioria do ensino privado, a pesquisa é uma impossibilidade econômica, pois as mensalidades necessárias para manter alguns poucos professores em tempo integral são proibitivas para a maioria dos alunos. Portanto, ou inexiste ou é uma ilhota ínfima. Como não há pesquisa, na maioria avassaladora dos casos, o que interessa é a qualidade do ensino. Mais ainda, pesquisas bem conduzidas com alunos americanos revelaram claramente: em universidades que dão ênfase na pesquisa, isso traz uma contribuição negativa para os alunos. (4) A pesquisa é desejável, sempre e quando falamos de instituições com o perfil apropriado para tal, ou seja, com alunos academicamente mais sofisticados e recursos para financiar os custos correspondentes. Mas serão sempre situações de exceção. Ou seja, o foco tem que estar na qualidade da sala de aula e no que os alunos aprendem. Por outro lado, as atividades de extensão, mais usuais no ensino privado, podem ser uma alternativa interessante de aplicação de conhecimentos e de formação de cidadania.
As seguintes políticas são aqui propostas: Sistema público e privado 1. Introdução de um ciclo básico de estudos gerais. Cada vez mais, o curso superior é uma formação de caráter geral. Cada vez menos, os seus graduados exercem a profissão que consta no diploma. Por isso, é importante preparar para buscar ocupações que não são diretamente contempladas pelos currículos seguidos. É o caso de engenheiros que trabalham no mercado financeiro. E muitas vezes, trata-se de mudar completamente de profissão. Daí as vantagens de um currículo de graduação mais amplo e menos circunscrito às minudências de uma profissão, qualquer que seja. Todos os países avançados têm um ciclo básico, oferecendo uma base cultural e nas humanidades, essencial para as sociedades modernas. Progressivamente, deveremos aumentar as exigências de que o currículo das ciências e das humanidades seja expandido. Inevitavelmente, isso se dá às custas das disciplinas profissionalizantes, causando forte oposição. Mas não há razões para transigir, pois não tem sentido um modelo brasileiro totalmente na contramão do que fazem literalmente todos os países mais avançados.
(4) "Attending a college whose faculty is heavily research-oriented
increases student dissatisfaction and impacts negatively on most measures of cognitive and affective development. Attending a college that is strongly oriented toward student development shows
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3. Controlar pelos resultados e não pelo processo As iniciativas do tipo Provão e ENADE são mais do que bem vindas. Permitem caminhar na direção de controlar resultados e deixar os processos por conta de cada instituição. Infelizmente, o ENADE traz de volta os indicadores de processo, que o Provão, em boa hora, já havia abandonado. Não parece uma orientação correta. A política geral não pode ser senão o acompanhamento rigoroso dos resultados. Cada instituição que decida como chegar lá. Se o resultado final é bom, é só isso que interessa. Assim sendo, predicamos o abandono dos indicadores de processo. Seu uso deverá ser reservado para examinar casos em que foram detectadas disfunções de um tipo ou outro. Cursos cujos resultados na avaliação estão abaixo de um certo limiar, deverão ser tratados de forma severa. A incompetência e a negligência não deverão ser toleradas. Não obstante, pode haver casos em que o grande pecado do curso é que seus alunos são fracos. Os cálculos de valor adicionado permitem dizer quem é quem. Nessas situações, é preciso julgar no caso a caso. Mas a fragilidade da preparação dos alunos não pode ser vista com fatalismo. Se são fracos, precisam se esforçar mais ainda. A complacência é
the opposite pattern of effects." [p. 363]. A.W. Astin, What Matters in College: Four Critical Years Revisited. San Francisco, JosseyBass, 1993. Note-se que o autor é talvez a pessoa que realizou mais estudos de acompanhamento de egressos de cursos superiores.
inaceitável, particularmente no ensino superior, que não é obrigatório nem no Brasil e nem em qualquer outro pais. 4. Mercado é assunto do dono do curso, não do Estado As tentativas de determinar se há mercado para esse ou aquele curso, aqui ou acolá, está fadada ao insucesso. Como o desemprego de graduados do superior é muito baixo, podemos concluir que há mercado para virtualmente todos. Por outro lado, se falamos de encontrar emprego correspondente ao diploma, isso ocorre para menos de metade dos diplomados. A prevalecer tais preceitos de existência de mercado, não haveria curso de História da Filosofia ou Economia, pois a absorção pelo mercado, como filósofos e economistas, é de, respectivamente, 5% e 10% dos graduados, mesmo considerando o magistério. Na verdade, tais preocupações com o mercados de trabalho não passam de corporativismo mal disfarçado, visando proteger os mercados educacionais, seja para categorias profissionais (advogados e médicos), seja por donos de faculdade tentando eliminar a concorrência para seus cursos. Ao Estado cabe avaliar, sobretudo, quanto aprendem os alunos. Para a autorização de iniciar o curso, criou-se a prática de avaliar se as condições materiais e institucionais são minimamente atendidas. Basta isso. Não cabe ao Estado dizer se há mercado para advogados ou médicos. Mas há uma ressalva. Na medicina, é preciso assegurar que um limiar de qualidade foi atingido, pois estamos lidando com vidas humanas e não há outros filtros ao longo do caminho. No Direito, nem isso, pois o curso de Direito é uma formação geral, útil para quase todos. Dentre os formados, os que querem ser advogados fazem o exame da Ordem, assegurando a qualidade mínima. Na maioria das outras carreiras, as razões para essa filtragem são bem menos defensáveis. Não nos esqueçamos, são maiores de idade, com níveis educacionais muito acima da média brasileira, contratando serviços educacionais de empresas privadas que não recebem subsídios significativos do Estado. Por que interferir? Ao contrário da nossa tradição, são nas universidades públicas que deveriam se concentrar as atenções acerca de mercados, eficiência, bom uso dos recursos e qualidade do ensino. São cursos muito caros, pagos com recursos dos contribuintes. Cabe ao Estado zelar para que sejam bem utilizados.
5. Os cursos profissionais terão professores profissionais O Brasil levou muito tempo para desenvolver seus programas de pós-graduação. O que existia antes da década de 70 era pouquíssimo e, quase sempre, precário e improvisado. Foi de extraordinária eficácia o grande empurrão, a partir dessa época, quando voltavam os primeiros mestres e doutores e foi oferecida a eles a chance de criar cursos de pós-graduação. Produzimos hoje o dobro dos mestres e doutores que usamos no ensino. No esforço de criar incentivos de carreira para mestres e doutores, a legislação passou a exigi-los para as posições docentes, através de vários mecanismos, incluindo a avaliação. Como dito, o sucesso foi espantoso. Só que passou da conta. Desde o início, profissões de serviço e das áreas artísticas ganharam a mesma legislação exigindo mestres e doutores, o que foi um absurdo. O mesmo com as profissões clássicas, como engenheiros, advogados e médicos. Isso trouxe uma distorção importante nos cursos profissionais, de serviço e artísticos. Em vez de maestros, compositores e pianistas, a liderança dos cursos passou para musicólogos. Em vez de engenheiros com experiência de fábrica, até as matérias profissionais passaram a ser ministradas por mestres ou doutores, que jamais pisaram nas fábricas que correspondem à sua especialidade. E as disciplinas aplicadas nos cursos de Direito, ministradas por advogados que jamais fizeram uma petição ou Rafael Hupsel/Folha Imagem defenderam um cliente em uma corte de justiça? Simplesmente, não há mestres e doutores com experiência de fábrica, não há musicólogos que componham sinfonias – e Deus me livre de ser tratado por enfermeiras que se põem a escrever artigos acadêmicos! O que precisamos não é voltar à situação em que engenheiros de fábrica ensinavam cálculo, mas a um equilíbrio entre professores acadêmicos e práticos. O currículo Lattes nada interessa para quem ensina uma disciplina profissional. A proposta é óbvia: matérias acadêmicas serão ministradas por acadêmicos e as profissionais pelos profissionais. Esses últimos terão uma carreira paralela à dos acadêmicos, sendo classificados pelo tempo e pela natureza da experiência acumulada. Seus salários e status não serão inferiores, para a mesma estatura de carreira.
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E nas avaliações, seja da pós-graduação, seja da graduação, será penalizada a cátedra profissional exercida por quem não tem a experiência correspondente. Sistema público Os sistemas públicos universitários têm problemas que lhes são próprios. Não têm a ver com os do privado.
Esse é um assunto que só se resolve por meio de um diálogo permanente e não com arrogância e distanciamento por parte dos acadêmicos. E também com os estímulos pecuniários que podem fertilizar essa osmose com as empresas. Portanto, cabe às políticas públicas premiar tais associações.
3. Substituir a eleição dos reitores por “comitês de busca” Não há um só país avançado em que os reitores sejam elei1. O imperativo da internacionalização tos. Entre outras coisas, em uma democracia representativa, os As universidades públicas são caras e os recursos permimandatários eleitos pelo povo são encarregados de escolher os tem contratar seus professores em tempo integral. Em granadministradores dos diferentes segmentos do governo. Isso, de medida, essa última é uma pré-condição para produzir inevitavelmente, inclui os reitores. Ou seja, quem representa o pesquisa em volumes substanciais. Aliás, isso é impossível povo são os indicados por aqueles que ganharam mais votos. nas instituições privadas, financiadas pelos alunos e com A eleição universitária traz a politização das campanhas, os menos acesso a fundos públicos. compromissos assumidos e até a partidarizaApesar de todo o esforço e do vertiginoso cresção do processo. Isso torna os reitores ainda cimento das publicações, as nossas universidamais impotentes dentro das instituições. Os orçamentos des não têm boa presença nas listas (inglesas e Faz mais sentido indicar “comitês de busdevem ser baseados chinesas) das melhores do mundo. A razão é ca”, formados de pessoas acima de qualquer simples: nossas universidades pontuam pessisuspeita e de competência notória. Entram em fórmulas que mamente nos indicadores de internacionalizaem cena depois de ampla divulgação em jorpremiam a matrícula, ção. São poucos alunos e professores brasileiros nais da existência da vaga. Essas pessoas alia conclusão, a indo e vindo do exterior, bem como estrangeiros nharão os candidatos e prepararão uma lista qualidade, vindo ao Brasil. Temos pouco intercâmbio intercom pouquíssimos nomes, para a escolha penacional. As universidades são fechadas, isolalo executivo. a eficiência das do mundo e parecem estar contentes assim. e a produção Quase todos os países emergentes (Chile, 4. Autonomia financeira acadêmica. Como Coreia, China, Malásia) têm planos ambicioe controle de resultados em outros setores, a sos para internacionalizar as suas universidaO pouco grau de autonomia administrativa boa regra é simples: des. Não se trata aqui apenas de imitar esses e financeira das universidades federais é inpaíses, mas de reconhecer as razões que os lecompatível com seus papéis. Por exemplo, não bons incentivos, varam a dar às suas universidades um papel de têm autonomia para deixar de contratar um liberdade de ação e janela para o mundo. Assim sendo, não parece professor e usar os recursos para um novo lacobrança rigorosa uma boa ideia a atitude de anti-internacionaboratório. Substitui-se um professor desnecesde resultados. lização que prevalece nas universidades e no sário, porque a vaga está lá, enquanto se deixa MEC. O País precisa de planos mais agressivos de contratar o que faz falta. Tudo é controlado de usar suas universidades para ter acesso ao do centro. E controlado burramente, sem criar mundo das ideias e do desenvolvimento científico e tecnolóquaisquer incentivos para a eficiência ou para resultados mais gico. Já é hora de abandonar esse terceiro-mundismo que tanto expressivos. A isonomia se revelou uma péssima ideia, pois prejudica as universidades latino-americanas. somente beneficia os incompetentes. A ideia de um orçamento global já mostrou amplamente 2. Vínculos com o setor produtivo suas vantagens no sistema paulista. Não obstante, o MEC As universidades públicas tendem a se manter distantes do não conseguiu implantar um sistema equivalente para suas setor produtivo. Além disso, desconsideram o que necessitam universidades. os graduados quando forem trabalhar nas empresas. Há preOs orçamentos devem ser baseados em fórmulas que preconceitos ideológicos e grande relutância em sair do conforto miam a matrícula, a conclusão, a qualidade, a eficiência e a prodo seu isolamento. dução acadêmica. Como em outros setores, a boa regra é simMas é necessário que se estreitem os laços das universiples: bons incentivos, liberdade de ação e cobrança rigorosa de dades com as empresas e outras organizações fora das insresultados. Os reitores e sua equipe têm que ser responsáveis tituições de ensino superior. Há muito a aprender sobre esse pela gestão da instituição. Precisam liberdade, mas têm que mundo e os próprios cursos têm que ser ajustados ao perfil prestar contas. de mão de obra mais apropriado para encontrar oportuniComprar e vender, pagar e receber, contratar e descontratar dades de trabalho. são operações que exigem uma energia hercúlea e muitas veIsso não significa mais especialização nos cursos de grazes insuficiente, dentro das regras do serviço público. Para duação. Pode ser o oposto, pois as empresas afirmam precontornar a rigidez paralisante dessas regras, foram criadas cisar de gente culta. fundações de direito privado nas universidades. Graças a elas,
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o sistema adquire a flexibilidade indispensável, por exemplo, para a pesquisa e para relacionar-se com o mundo externo a ela. Todavia, vivemos um jogo de gato e rato, com os órgãos de controle permanentemente tentando eliminar, justamente, essa flexibilidade que é essencial para a ciência e tecnologia. Isso tudo, considerando que são ínfimos os abusos no uso desse instrumento e, nos poucos delitos, os valores são modestíssimos (uma lata de lixo elétrica?). Ou mudam totalmente as regras do serviço público ou é necessário criar uma Pax Romana entre as fundações universitárias e os órgãos de controle. Em ambos os casos, os orçamentos devem premiar o esforço, o desempenho e a busca de recursos externos (Reino Unido e Chile são bons exemplos da aplicação desses princípios). 5. Os alunos devem pagar parte dos custos Esse é o tema mais explosivo no ensino público. Porém, mais cedo ou mais tarde, é preciso que os alunos das universidades federais paguem uma parte dos custos, já que muitos deles integram os segmentos mais ricos da sociedade. Aliás, são custos enormes, para o nível de renda per capita do País. Ajustados por paridade de poder de compra, equivalem à média da OECD. Obviamente, não se trata de cobrar os custos integrais. Pagar o equivalente à média do sistema privado já seria um belo avanço. Tampouco, todos deveriam pagar. Pelo contrário, os que não podem seriam isentos e os mais pobres ainda ganhariam bolsas de manutenção. Tal cobrança geraria um montante de recursos, que pode variar entre 10% e 30% dos orçamentos atuais. Sistema privado
1. Simplificação das regras da burocracia, mas cobranças rígidas de qualidade Hoje, o ensino privado enfrenta uma burocracia espessa e pouco iluminada, em praticamente todas as suas relações com o governo. É interminável o folclore dos absurdos nos processos de autorização de cursos. Na verdade, uma coisa são as reais exigências, outra coisa é o que acontece de fato. Os novos cursos são definidos de forma rígida, inflexível e pouco iluminada, ao cabo de infindáveis gestões administrativas. Mas na prática, após aprovado, vale tudo. É preciso simplificar as exigências que não têm uma associação clara com qualidade. É preciso exigir menos papéis inúteis. Do outro lado do balcão, o MEC tem que ter prazos máximos para dar andamento aos processos. Mas é também preciso exigir rigidamente o cumprimento daquilo que foi acertado. O controle precisa migrar do processo para o resultado. O dono da faculdade deve ter bastante liberdade,
Paulo Pampolin/Hype
O sistema privado vem demonstrando dinamismo e iniciativa, mas também, forte variância na qualidade. Há de tudo. Não há boas razões para tolher o seu crescimento e avanços, pelos pecados de uma minoria. Não é com burocracias bizantinas e regras corporativistas que a situação vai melhorar.
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mas tem que apresentar os resultados prometidos e que correspondem à lei.
do relativamente bem na graduação convencional. Ou seja, crédito educativo e PROUNI. Mas também apoio para produção de materiais e para a formação de professores.
2. Financiamento e bolsas para alunos O sistema privado está chegando ao limite do seu cresciVII. A pós-graduação mento. Mas não é por causa de sua incapacidade de oferecer mais vagas com a mesma qualidade. Pelo contrário, sua capaDe todos os níveis educativos do Brasil, a pós-graduação é a cidade de expansão é quase ilimitada. mais bem sucedida, seja em sua expansão acelerada, seja nos O que faltam hoje são alunos capazes de pagar as mensaliníveis de qualidade sempre mantidos. Portanto, é a área em dades. A matrícula praticamente cobriu a categoria daqueles que se requerem menos intervenções. que podem pagar. Os que ficaram de fora, foi em razão de não Ainda assim, há duas categorias de limitações. Uma é para terem os recursos necessários. obter um grau maior de aplicação da pesquisa e do desenvolConsiderando que, com custos/aluno próximos da média da vimento tecnológico. A outra é a necessidade de programas OECD, o sistema federal tem uma perspectiva muito modesta mais profissionalizantes, inclusive para a formação de profesde crescimento, já que não há um cenário favorecendo a criação sores com perfis menos voltados para a pesquisa. de cursos mais baratos (de fato, as poucas instituições novas copiam as velhas em tudo). Se o 1. A pesquisa aplicada e o setor público fosse oferecer vagas para o total de desenvolvimento tecnológico Na Europa, matrículas no País, o orçamento do MEC teria Dada a espetacular expansão da nossa pesformam-se mais de triplicar. Isso, pela necessidade de absorver quisa publicada em periódicos de primeira lios 75% de alunos do setor privado aos custos nha, é chegado o tempo de obter um grau maior graduados de cursos operacionais do setor público. de focalização do esforço coletivo em temas de curtos do que nos Daí o papel que implicitamente coube ao semais interesse nacional. bacharelados tor privado, pois é imperativa a expansão da A pesquisa brasileira é muito pulverizada, convencionais. Nos matrícula no superior. Mas como dito, o estoos temas seguem preferências individuais e se EUA, de cada três que de alunos capazes de pagar as mensalidamantêm muito atrelados aos interesses dos des está se exaurindo. Isso significa que o Esprofessores orientadores de tese. É preciso conformados, dois vêm tado precisará expandir substancialmente os centrar mais o foco da pesquisa aplicada e volde cursos de dois seus financiamentos ao setor privado, pela via tada para o desenvolvimento tecnológico. anos ou menos. de créditos educativos para os alunos e a exApesar dos esforços continuados, por mais No Brasil, estamos pansão de programas do tipo PROUNI. O cusde uma década, as pesquisas nas áreas profiscom menos de 10% to por aluno desses programas é uma pequena sionais permanecem em um tom acadêmico fração do que custa adicionar alunos nas unique subtrai ao seu possível uso pelas empresas. de matrículas versidades federais. Por conta das pontuações na avaliação, as áreas nos tecnólogos. Com a consolidação de programas desse tiprofissionais fazem pesquisa acadêmica, em po, os filtros de qualidade devem ser expandivez de fazer tecnologia. dos. Não tem sentido dar bolsas ou auxílios paÉ preciso criar incentivos mais fortes para que ra que os alunos estudem em faculdades de qualidade inferior. as áreas profissionais focalizem seus esforços em assuntos de interesse mais imediato das empresas e da sociedade em geral. 3. Incentivos para a expansão dos tecnólogos Na Europa, formam-se mais graduados de cursos curtos 2. O real mestrado profissional do que nos bacharelados convencionais. Nos Estados UniApesar de alguns avanços recentes, ainda não temos um dos, de cada três formados, dois vêm de cursos de dois anos verdadeiro mestrado profissional. As exigências de titulação, ou menos. No Brasil, ainda estamos com menos de 10% de de tempo integral e de programas de pesquisa com fortes resmatrículas nos tecnólogos. quícios acadêmicos faz com que os mestrados profissionais É óbvio que o nosso setor produtivo não é tão diferente do que existentes sejam pequenas variações do mestrado acadêmico. há na Europa e Estados Unidos. Portanto, se nesses países os tecNão atingem seus objetivos. nólogos são mais demandados do que os bacharéis de quatro Em um país de pós-graduação recentíssima, poucos douanos, é inevitável e necessário que sejam expandidas as matrícutores têm alguma experiência profissional em fábricas, emlas de tecnólogos. São as profissões técnicas de nível intermediápresas ou no governo. Toda a sua trajetória é dentro dos murio que se expandem a taxas superiores às de outros níveis. ros da universidade. Portanto, é óbvio que questionemos: Os tecnólogos do sistema federal operam com custos como é possível preparar um profissional se o professor não muito elevados. Será difícil expandi-los em um ritmo que o é? O mestrado profissional precisa se tornar um espaço minimamente corresponda às necessidades do País. Daí a privilegiado para os melhores profissionais do País. Para isconveniência de apoiar a expansão dos tecnólogos operaso, as contratações deverão ser totalmente flexíveis. Se a dos pela iniciativa privada. maior autoridade brasileira em laminação de perfis planos Os mecanismos devem ser os mesmos que estão funcionansó pode passar cinco horas por mês na universidade, isso é
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infinitamente melhor do que não tê-la. É preciso criar mestrados profissionais em que grande parte dos professores tenha ampla experiência profissional. Isso, na prática, significa que não terão doutorados ou mestrados, pois ainda são raros os que têm experiência e diplomas. O tempo integral não tem sentido para profissionais que estão em suas fábricas e laboratórios e querem dedicar algum tempo ao magistério e à pesquisa a ele associada. Em muitos casos, os projetos de pesquisa deveriam ser projetos de consultoria e intervenção nas empresas. A publicação dos resultados é uma possibilidade, mas não uma necessidade. Há até os casos limites de segredos profissionais que não podem ser divulgados. 3. Mestrados para a docência Na visão clássica, um mestrado ou doutorado acadêmico é uma preparação para a docência superior, pela simples razão de que o bom professor é visto como um pesquisador. Acontece que o bom professor não é necessariamente um bom pesquisador. Ademais, a maior parte dos professores de nível superior, quaisquer que sejam os seus diplomas, não faz pesquisa (possivelmente, não longe de 99%). Resta o argumento de que, mesmo não fazendo pesquisa, uma formação acadêmica pós-graduada, centrada na pesquisa, é uma boa base para se tornar professor. Esse é um argumento ponderável. Contudo, tem muitas exceções. Em primeiro lugar, há as áreas profissionais em que grande parte do ensino é ensinar a trabalhar e nada tem a ver com pesquisa. Isso é verdade em Engenharia, Direito, Administração e muitas outras, cujo peso do conjunto é bem acima da metade da matrícula total. Para essas disciplinas profissionais, o mero conceito de pesquisa, se é que faz sentido, é completamente diferente. Há também os cursos recebendo alunos de talentos e base acadêmica mais modesta. Para eles, o mais importante é a capacidade do professor de dar boas aulas. Portanto, faz imenso sentido a criação de mestrados profissionais, voltados para preparar professores de ensino superior, seja dos bacharelados de quatro anos, seja dos tecnólogos. Esses deveriam ser programas voltados para desenvolver os talentos e práticas de operar em sala de aula. E também, o amplo domínio dos conteúdos efetivamente ensinados – em contraste com teorias muito abstratas e além dos horizontes de disciplinas de graduação. Por razões puramente práticas, tais mestrados poderiam ser feitos durante as férias escolares. E também, nos fins de semana.
Paulo Pampolin/Hype
A maior parte dos professores de nível superior, quaisquer que sejam os seus diplomas, não faz pesquisa (possivelmente, não longe de 99%).
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Modernização das relações do trabalho Proteção dos trabalhadores e segurança das empresas
José Pastore
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Masao Goto Filho/e-SIM
ALFER
Doutor em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), professor de Relações do Trabalho na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo e na Fundação Instituto de Administração. Membro do Conselho Político e Social (COPS) e do Conselho de Economia da Associação Comercial de São Paulo
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Leonardo Rodrigues/e-SIM
Resumo Este artigo argumenta pela modernização das relações de trabalho no Brasil, tanto na proteção dos trabalhadores como na segurança institucional das empresas. Aborda inicialmente, no seu formato e nos seus problemas, o contexto normativo que rege as relações do trabalho. Na sequência, propõe uma estratégia de mudança focada em dois pontos, a desproteção dos trabalhadores não cobertos pelo aparato institucional e a baixa produtividade do fator trabalho. Assentado nesses elementos, o texto sugere medidas específicas ligadas a dez temas: inclusão social de trabalhadores informais, contrato de formação (para jovens de 24 a 30 anos de idade), programa do Microempreendedor Individual (MEI), terceirização, trabalho mediante pessoa jurídica, formação profissional, aprendizado (para jovens de 14 a 24 anos), estágios, seguro-desemprego e treinamento para desempregados.
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DIGESTO ECONÔMICO MARÇO 2010
Introdução
H
á muitas décadas o Brasil fez a opção pelo sistema estatutário no campo do trabalho. Esse sistema se baseia na garantia de praticamente todos os direitos por meio de leis. Outros países optaram pelo sistema negocial, que garante a maioria dos direitos por meio da negociação. No sistema negocial, as leis são enxutas e as mudanças são feitas por vontade das partes. No sistema estatutário, as leis são detalhadas e as mudanças se submetem à lentidão do processo parlamentar. Nos dias de hoje, a economia concorrencial exige ajustes rápidos e frequentes em todas as áreas, inclusive na trabalhista. A demora nas adaptações compromete a competitividade das empresas, os investimentos e os empregos. Esse é o caso do Brasil. Com esse pano de fundo, o texto a seguir revê, na sua primeira seção, o contexto normativo que rege as relações do trabalho, cobrindo o seu formato e apontando seus problemas. A mesma seção apresenta uma estratégia de mudança focada em dois pontos principais: a desproteção dos trabalhadores não cobertos pelo aparato institucional e a baixa produtividade do fator trabalho, com raras exceções. São duas áreas que requerem mudanças urgentes. Com os fundamentos dados pela primeira seção, a segunda seção voltase para a proposição de mudanças específicas, ligadas aos temas já citados no resumo acima apresentado.
I – O contexto normativo 1. A legislação trabalhista: formato e problemas O Brasil possui um contexto normativo extremamente detalhado (Tabela 1), que é composto de dispositivos constitucionais, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de leis esparsas, convenções internacionais ratificadas e diretrizes jurisprudenciais. Os dispositivos constitucionais (44) são os mais rígidos. Mudanças nesse campo requerem três quintos dos votos dos senadores e deputados federais em duas votações em cada uma das Casas. As mudanças na CLT podem ser feitas por maioria simples, mas, mesmo assim, tornam-se difíceis na medida em que são comumente consideradas como conquistas sociais imutáveis. Os dispositivos de ordem jurisprudencial, por sua vez, geram grande insegurança jurídica em face de interpretações oscilantes por parte dos magistrados. Além das normas constantes da Tabela 1, há ainda uma grande quantidade de regulamentos relativos à Previdência Social, à saúde e à segurança no trabalho. Com esse amplo contexto normativo, no Brasil sobrou pouco espaço para a livre negociação entre as partes. Apenas dois direitos caem nesse campo: o salário e a participação nos lucros ou resultados (PLR) (1). Todos os demais direitos são fixados na Carta Magna, nas leis complementares e ordinárias, nos decretos, portarias, instruções normativas e jurisprudência. Um quadro tão detalhado como esse cria grandes dificuldades para a administração de recursos humanos. Os dirigentes das empresas multinacionais estabelecidas no Brasil dizem empregar muito mais funcionários e gastar mais recursos aqui do que nos países de origem para fazer a mesma coisa. De fato, a enorme profusão de normas reguladoras forma um cipoal complexo, burocrático e inseguro para empregadores e empregados, além do seu elevado custo. No setor industrial, por exemplo, o total de despesas chega a 102,43% do salário. Isso significa que, ao contratar um empregado por R$ 1.000,00 por mês, as empresas gastam R$ 2.020,00. São despesas compulsórias e que não admitem negociação ou adaptação a setor de atividade, região do País, tamanho de empresa ou características do mercado de trabalho local. Fala-se muito em desonerar a folha de salários. Justifica-se. Mas, a tarefa não é simples. Um exame da Tabela 2 mostra que as contribuições do Grupo A sustentam políticas públicas de grande importância. A contribuição de 20% que as empresas aportam ao INSS, somados aos cerca de 10% pagos pelos empregados, formam as receitas do sistema de aposentadorias, pensões e outros benefícios da Previdência Social. Os 2,5% relativos ao salário-educação são destinados a complementar os recursos do Ministério da Educação que, em face
(1) A própria participação nos lucros ou resultados que se baseia
na negociação pode perder esse status e se transformar em medida de aplicação compulsória, caso vinguem as ideias de estudos que estavam sendo desenvolvidos pelo governo federal no início de 2010. Ver José Pastore, "PLR compulsória", O Estado de S. Paulo, 02/02/2010.
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Zé Carlos Barretta/Hype
do quadro educacional calamitoso do País, não abre mão de um só centavo. Os 2% (média) destinados ao seguro de acidentes do trabalho (SAT) são alocados ao Ministério da Previdência Social para socorrer os empregados nos casos de limitações físicas ou mentais (ou morte) causadas por infortúnios no trabalho (2). Em seguida vêm os recursos destinados às instituições que cuidam da formação profissional, da promoção sócio-cultural e do empreendedorismo e que compõem o Sistema S. No conjunto, eles somam 3,1% da folha de salários, tidos como indispensáveis em face da reconhecida carência de mão de obra qualificada que perdura no País. Vê-se, assim, que, para sustentar políticas de variadas naturezas, o Brasil buscou o seu financiamento na folha de salários. Até os projetos de colonização e reforma agrária são financiados pela folha de pagamentos de todas as empresas (0,2% para o INCRA). A substituição dessas fontes de financiamento, embora necessária, exige a busca de recursos em outras áreas, o que é difícil. Tome o caso da frequente proposta de mudar a base de recolhimento do INSS. Alguns propõem o faturamento das empresas, o que torna a fonte de receitas muito sensível aos ciclos econômicos (3), além de afetar os preços relativos: empresas intensivas em capital seriam fortemente penalizadas. Outros sugerem o seu atrelamento a um IVA (imposto de valor adicionado) nacional que não existe e que depende de uma boa reforma tributária, que até hoje não foi feita. Em suma, mexer no Grupo A da Tabela 2 implica no enfrentamento de grandes desafios que só podem ser vencidos se acompanhados de mudanças nos campos da tributação e da Previdência Social, pública e privada. Alterar as alíquotas nos Grupos B e C também encerra dificuldades. Tratam-se de benefícios recebidos pelos empregados e, como tal, são tidos como conquistas históricas dos trabalhadores. O embate é social e político. Os parlamentares temem perder votos se mexerem nessa área. As demais despesas (a rescisão contratual e as incidências cumulativas do Grupo D) ficam engessadas por decorrerem das despesas constantes nos Grupos A e B. No fundo, as dificuldades de mudança decorrem da tradição da filosofia do "garantismo legal" que orienta o direito do
(2) O Decreto 6.957/09 introduziu importantes mudanças no
Seguro Acidentes do Trabalho (SAT), com a criação do Fator Acidentário de Prevenção (FAP) que funciona como um multiplicador individual por empresa, variando de 0,5 a 2, e que é aplicado sobre as alíquotas do SAT (1%, 2% e 3%), de acordo com o grau de risco do setor. A nova sistemática entrou em vigor em 1º. de janeiro de 2010. Há várias empresas que foram penalizadas com aumentos de até 500%, por terem sido reclassificadas de baixo risco (1%) para de alto risco (3%). Ao aplicar o valor 2 do FAP, a alíquota efetiva passará a 6%, o que elevará as despesas de contratação, dos atuais 102,43% para cerca de 110%! (3) É verdade que o emprego e a folha de salários também caem nas recessões econômicas, mas, as demissões ocorrem com certa defasagem, o que não acontece com a queda de faturamento das empresas que é instantâneo.
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O Congresso Nacional deu um importante passo para reduzir a desproteção dos que trabalham por conta própria ao aprovar a Lei Complementar 128/2008, que se refere ao Microempreendedor Individual (MEI).
trabalho, segundo a qual quantos mais direitos forem inseridos na lei, mais trabalhadores estarão protegidos. Seria bom se assim fosse. A distâ ncia entre a lei e a realidade é enorme. Veja o caso do emprego formal. Apesar do grande avanço registrado no período de 2003-2009 (4), o Brasil ainda tem cerca de 50% da força de trabalho na informalidade. São pessoas que trabalham sem nenhuma das proteções constantes da Tabela 2. Quando adoecem, não têm uma licença remunerada para tratar da saúde. Ao envelhecer, não podem se aposentar, ainda que possam ter benefícios a título de assistência social e a aposentadoria rural seja pouco exigente em matéria de comprovação formal. Ao morrer, nada deixam para os seus dependentes, exceto a pensão devida no caso dos trabalhadores rurais aposentados, sendo excluídos ainda de importantes benefícios, como é o caso do atendimento de acidentes, de doença profissional, no período de gestação e vários outros. Trata-se de uma situação precária e, sobretudo, desumana que, por sua vez, atinge as finanças públicas: quem está na informalidade nada recolhe para a Previdência Social, mesmo assim disso decorrem vários e onerosos custos para o setor público.
correntes de ações judiciais e mudanças de interpretações das leis e da própria jurisprudência. Os passivos são de dois tipos: visíveis e ocultos. Os dois são fontes de grande insegurança jurídica. Um passivo é considerado visível quando uma ação é proposta contra a empresa por eventual descumprimento da legislação. A empresa sabe que tem de se preparar para uma eventual condenação. O seu valor, porém, só é conhecido em definitivo depois de vários anos e de demorados procedimentos judiciais, o que mantém a empresa em situação de incerteza. O passivo oculto é ainda mais grave, pois surge inesperadamente da mudança de entendimento dos dispositivos legais. Por exemplo, as empresas que negociaram com o respectivo sindicato laboral e reduziram o intervalo de refeição de 60 para 30 minutos, em troca do término da jornada diária meia hora antes, e que seguiram as normas da Portaria 42/07 do Ministério do Trabalho e Emprego, viram o acordo anulado por força de várias manifestações do Tribunal Superior do Trabalho. Consequência: as empresas foram condenadas a pagar as horas (extras) decorrentes da redução do intervalo com multas, juros e correção É impossível para monetária. 2. Uma estratégia de mudança No caso do FGTS, onde se descobriu um déuma empresa saber ficit antigo, uma decisão do Supremo Tribunal qual é o montante de seu O Brasil precisa sair dessa camisa de força. Federal no ano 2000 acabou por exigir a criação passivo trabalhista. Se Isso requer a formulação de políticas de longo de um adicional retroativo de 0,5% na alíquota, essa incerteza pudesse prazo e que respeitem os diretos adquiridos. bem como um acréscimo de 10% na respectiva Trata-se de estabelecer um processo de muindenização, o que foi normatizado pela Lei ser "precificada", danças baseado em trocas que atendam os traComplementar 110/01 (5). Este acréscimo vem muitas empresas sendo pago até os dias atuais (fevereiro de balhadores, as empresas e as finanças públialterariam seus planos 2010), apesar do referido déficit ter sido inteicas, o que já deveria ter sido feito há muito de expansão e ramente liquidado. tempo. Por exemplo: no campo da Previdêncrescimento. Como se vê, as despesas geradas nesses cacia Social, fala-se em mudar o sistema há 30 sos têm efeito retroativo. É assim mesmo: na anos. Se isso tivesse ocorrido na década de 70, área trabalhista, também o passado é imprevipara vigorar a partir dos anos 90, o Brasil de sível, como dizia o ex-ministro Pedro Malan ao se deparar com hoje teria as contas equilibradas nessa área. No entanto, em mais um "esqueleto" a trazer custos adicionais para as finanças 2010, prevê-se um déficit de mais de R$ 50 bilhões! governamentais. Essa parece ser a trajetória a seguir no campo trabalhista. As É impossível para uma empresa saber qual é o montante de mudanças têm mais aceitação quando são propostas para enseu passivo trabalhista. Se essa incerteza pudesse ser "precifitrar em vigor no futuro e quando são acompanhadas de trocas cada", muitas empresas alterariam seus planos de expansão e que compensem os benefícios existentes. crescimento. O fato de não ser, porém, não as livra de probleMedidas desse tipo têm mais chance de vingarem no início mas. Os custos das ações trabalhistas e das mudanças de interdos mandatos quando o capital político dos governantes é alto. pretação das leis são de grande vulto e demandam um acomNo caso, 2011 é um ano alvissareiro. Mas, as propostas precipanhamento contínuo por parte de exércitos de advogados e sam ser apresentadas e aprovadas com presteza, antes que se auxiliares, o que onera o custo de produção, a competitividade esgote o referido capital. das empresas, seus lucros, os investimentos e sua capacidade As mudanças se fazem necessárias não apenas no campo lede gerar bons empregos. Não é à toa que o Brasil ocupa um dos gislativo, mas também no judicial. Sim, porque além das despiores lugares nos indicadores que medem a facilidade ou dipesas diretas e impostas pela legislação trabalhista, há vários ficuldade para fazer negócios (6). custos indiretos que se referem aos passivos trabalhistas de-
(4) Entre 2004-2009 a participação de empregados com registro em
carteira de trabalho passou de 49% para 54%. (5) A fixação desses adicionais decorreu do reconhecimento por parte do Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal) de que os saldos
das contas vinculadas do FGTS foram corrigidos a menor na implementação dos Planos Verão e Collor I, o que teria aumentado o passivo daquele Fundo em cerca de R$ 42 bilhões. (6) World Bank, Doing Business – 2010, Washington: The World Bank, 2009.
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Ou seja, apesar de o Brasil possuir uma legislação superdetalhada e de dispor de um enorme aparato na Justiça do Trabalho, o País protege apenas a metade dos seus trabalhadores, induz à informalidade, gera grandes despesas de contratação e cria uma grave insegurança jurídica para as empresas – o que rebate no emprego e nos salários dos seus colaboradores. Além disso, prejudica investimentos para expansão de atividades e desencoraja aqueles voltados para novos empreendimentos, em ambos os casos prejudicando a criação de empregos. As mudanças nesse campo teriam de seguir o caminho da simplificação da legislação e ampliação do espaço da negociação. E, no que tange aos eventuais conflitos individuais, prestigiar de modo efetivo os métodos de mediação, conciliação e arbitragem que, por serem mais simples e expeditos, reduzem a insegurança jurídica dos atores sociais (empregadores e dos empregados) e diminuem os gastos do Poder Judiciário. Sim, porque o Brasil possui cerca de dois milhões de ações nos tribunais do trabalho. É o campeão mundial. Pior. Menos da metade é solucionada na primeira instância. A maioria segue um trâmite caro e demorado que, em muitos casos, chega a oito anos ou mais. 3. O que mudar? Como foi visto, um dos mais graves problemas na área do trabalho é a desproteção dos trabalhadores não cobertos pelo aparato institucional e a extensa proteção conferida aos que são cobertos, a qual muitas vezes se revela contraproducente ao prejudicar os investimentos e a criação de empregos. Outro é a baixa produtividade do fator trabalho, com raras exceções. São duas áreas que requerem mudanças urgentes. A grande maioria das empresas brasileiras não consegue seguir os dispositivos legais do atual contexto normativo. Algumas contratam todos os empregados sem registro em carteira. Outras registram uma parte e mantém a outra na informalidade. Há ainda as que registram os empregados com salários menores, para gastar menos com as contribuições sociais. Além da desproteção dos que trabalham como empregados, há ainda a que afeta os trabalhadores por conta própria. Por estarem desvinculados do sistema previdenciário, eles não dispõem de nenhuma proteção social. No espaço estreito deixado pela Constituição Federal, podese pensar em duas frentes de mudança: a primeira teria o objetivo de aliviar a burocracia e as despesas de contratação, em especial nas pequenas e microempresas, alterando-se apenas algumas leis ordinárias; a segunda teria o objetivo de elevar a produtividade do trabalho, melhorando-se a qualidade da mão-deobra. As duas contribuiriam para a redução do custo unitário do trabalho e para a ampliação das proteções sociais. a. A desproteção dos trabalhadores – Os dados da PNAD de 2008 indicaram haver cerca de 92 milhões de brasileiros trabalhando. Destes, cerca de 61 milhões trabalhavam como empregados. Dentre eles, cerca de 48 milhões eram empregados de empresas privadas, 6,5 milhões de órgãos públicos e 6,5 milhões eram empregados domésticos. Ou seja, os empregados do setor privado somavam 54,5 milhões. Destes, cerca de 32 milhões (59%) tinham registro
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em carteira de trabalho e 22,5 milhões (41%) trabalhavam sem nenhuma proteção. É um número colossal. E mais: a desproteção não para aí. Além dos empregados, há inúmeras outras categorias nas quais a informalidade é alta. Tratam-se de 19 milhões que trabalham por conta própria, 4,5 milhões que não têm remuneração e 4 milhões que trabalham para si mesmos. Há ainda 4 milhões de empregadores – o que dá um total de quase 32 milhões de pessoas. Estima-se que nesse total haja cerca 25 milhões que não dispõem de proteções trabalhistas ou previdenciárias. Somados aos 22,5 milhões de empregados indicados acima, o número de brasileiros desprotegidos chega a 47,5 milhões. Em um total de 85,5 milhões de pessoas que trabalham no setor privado, a informalidade atinge a maioria dessa força de trabalho (55%). É uma população gigantesca. Onde está a maior parte da desproteção? Os grupos vulneráveis precisam ser bem localizados para o desenho de políticas eficientes. Entre os empregados em empresas do setor privado (48 milhões), cerca de 38 milhões (80%) trabalhavam em 4 milhões de estabelecimentos (formalmente registrados) que tinham até dez empregados (7). Ao lado deles, existiam quase 11 milhões de empreendimentos informais, onde predomina o trabalho por conta própria, sem ajudantes ou sócios (8).
(7) IBGE, Estatísticas do cadastro central de empresas, Brasília:
IBGE, 2007. (8) IBGE, Pesquisa da economia informal urbana, Rio de Janeiro: IBGE, 2003.
Pulo Pampolin/Hype
Evandro Monteiro/Hype
A grande maioria das empresas brasileiras não consegue seguir os dispositivos legais do atual contexto normativo. Algumas contratam todos os empregados sem registro em carteira.
Dos que trabalhavam nas empresas com até dez empregados, só 29% tinham registro em carteira de trabalho. É aqui que está o principal foco do problema. Nessas empresas, 71% dos empregados estão na informalidade. O papel das empresas de pequeno porte na geração de empregos é expressivo – 4,5% ao ano – e bem superior ao das demais empresas – 1,8% ao ano. Em 2008, para cada três novos postos de trabalho, dois foram criados nesse segmento. Tratase de um montante que merece total prioridade para se elevar o nível de formalização do emprego (ver sugestão abaixo). O outro foco de informalidade diz respeito aos trabalhadores por conta própria. Para estes há o Programa do Microempreendedor Individual (MEI), para o qual este ensaio apresenta sugestões de aperfeiçoamento. b. A produtividade do trabalho – A base educacional da maioria da força de trabalho do Brasil é bastante precária. Isso afeta a produtividade do trabalho, a competitividade das empresas, os lucros, os investimentos e os empregos. A principal fonte de produtividade no trabalho diz respeito à formação básica (ensino fundamental) dos trabalhadores e dos empresários. Os problemas nessa área são conhecidos. O Brasil tem um dos mais altos índices de repetência escolar (19%). Menos da metade dos jovens está no ensino médio, e apenas 13% chegam ao ensino superior. A força de trabalho do Brasil tem em média apenas sete anos de escola – e má escola. Para a crescente sociedade do conhecimento isso é insuficiente. Ademais, a maioria dos estu-
dantes que chegam à oitava série apresenta severas dificuldades de leitura e de matemática. Ainda que em andamento, a solução desses problemas será demorada. Mas, há três mecanismos, relativamente expeditos, que podem trazer bons resultados para melhorar a capacidade de trabalho dos adolescentes e jovens e elevar a sua produtividade no trabalho. Um deles diz respeito à formação profissional. Dois outros se referem aos programas de aprendiz e de estágio. Os três serão comentados na próxima seção. II – Sugestões de Mudanças Esta seção apresenta, em primeiro, lugar as sugestões para melhorar e estimular a contratação do trabalho formal e, em segundo lugar, as propostas para elevar a produtividade do trabalho. 1. Programa de Inclusão Social de Trabalhadores Informais (um outro Simples) A expressão "reforma trabalhista" causa uma grande apreensão nos sindicalistas, na opinião pública e nos políticos. Isso porque tal reforma é confundida como um expediente para retirar direitos dos trabalhadores. É uma interpretação equivocada. Uma boa reforma trabalhista é aquela que mantém os direitos de quem os tem, e leva direitos para os que nada têm (desempregados e informais).
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Evandro Monteiro/Hype
As empresas preferem contratar os mais experientes, deixando de lado os inexperientes que, é claro, continuarão sem experiência.
nefícios que, na negociação conjunta para toda a categoria, costumam assumir valores inviáveis para os pequenos produtores. Esse é o caso, por exemplo, das categorias que, na convenção coletiva, fixam o valor da hora extra em 70%, 80% e até 100% da normal, sem nenhum teto. Se isso cabe no bolso das grandes empresas, não cabe no das pequenas e microempresas, que acabam deixando muitos empregados na informalidade. O mesmo ocorre com a hora noturna, na qual muitas convenções coletivas fixam o seu valor muito acima do legal, que é de 20%. Como esses, há vários outros itens que poderiam passar para o campo de uma negociação em separado com valores mais realistas e com vistas a proteger quem nada tem (empregados informais). Até mesmo uma diferenciação de alíquota do FGTS poderia ser estabelecida, como ocorre nos contratos por tempo determinado. É claro, todas as adaptações teriam seu próprio prazo de vigência. Nada pode ser eterno. Vencido o acordo, as partes poderiam optar por continuar ou mudar. Uma outra mudança de grande importância diz respeito à redução da alíquota do INSS se a aposentadoria ficar restrita à idade e invalidez (não se aplicando aos anos de contribuição), como fez a Lei Complementar 128/2008 que criou o Programa do Microempreendedor Individual (MEI). Há outras providências que podem ser tomadas se a referida abertura for aprovada. É o caso da simplificação da burocracia e redução de despesas em relação a exames médicos, notificação de doenças, perícias técnicas, comparecimento em audiências da Justiça do Trabalho e outros. Nada disso precisa de mudança constitucional. Depende apenas de leis ordinárias. São medidas que protegem quem está na mais absoluta desproteção – os 27 milhões de empregados das empresas de pequeno porte que estão na informalidade. 2. Contrato de formação (jovens de 24 a 30 anos)
Dentro dessa linha, este ensaio apresenta uma sugestão para levar proteção aos empregados que estão na informalidade nas empresas de pequeno porte. As pesquisas disponíveis indicam que o Programa Simples ajudou a formalizar empresas e empregados (9). O programa do Supersimples deu mais um passo na mesma direção, ampliando o número de empresas e empregados beneficiados. Nos dois casos, houve simplificação da burocracia e redução das contribuições previdenciárias. Restou, porém, a enorme complexidade burocrática e o gigantesco peso das despesas trabalhistas. Daí a ideia de um outro simples, especificamente voltado para estimular a formalização nas pequenas e microempresas. As propostas aqui apresentadas buscam a sua viabilidade dentro do espaço limitado deixado pela Constituição Federal. Uma delas diz respeito à instituição de uma sistemática que permita às pequenas e microempresas, optantes dos Programas Simples e Supersimples, negociarem em separado uma série de be-
(9) Guilherme Delgado e colaboradores, "Avaliação do Simples:
Implicações para a formalização previdenciária", Texto para Discussão nº 1.277, Brasília: IPEA, 2007.
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As taxas de desemprego dos jovens são bem mais do que as do desemprego geral (10). Esse é um problema crônico que decorre da alegada falta de experiência dos jovens. Por trás disso, porém, estão as despesas de contratação (102,43%), que são as mesmas para quem tem e quem não tem experiência. Nessas condições, as empresas preferem contratar os mais experientes, deixando do lado de fora os inexperientes que, é claro, continuarão sem experiência. Para quebrar esse círculo vicioso, sugere-se a adoção dos chamados contratos de formação destinados aos jovens recém formados por escolas técnicas e escolas de nível superior. Tais contratos podem ser concebidos como uma variante do contrato de aprendizagem (que é destinado para os adolescentes e jovens de 14-24 anos). Assim, as empresas teriam menos despesas nessa contratação, a começar pelo FGTS, que é de 2% ao mês, além de outras reduções (não há indenização de dispensa e aviso prévio e nem os reflexos destas despesas).
(10)
18,3% para os jovens e 6,8% para o geral. (Dados de janeiro de 2010).
José Paulo Lacerda/Ag. Pixel
No MEI, os contribuintes têm direito à aposentadoria por idade, acidente e invalidez, mas não por tempo de contribuição.
Os jovens ficariam nesse regime por um período que poderia variar de 12 a 18 meses (11). Isso seria útil para todos os lados. Os recém formados completariam a sua formação, vivendo a realidade das empresas. Estas teriam à sua disposição um valioso período de observação para eventual contratação desses jovens depois do referido período. Trata-se de um modo prático de se quebrar o círculo vicioso da falta de experiência. Aqui também, a criação desse expediente depende apenas de lei ordinária, sem nenhuma mudança na Constituição Federal. 3. Fortalecimento do programa do Microempreendedor Individual (MEI) O Congresso Nacional deu um importante passo para reduzir a desproteção dos que trabalham por conta própria ao aprovar a Lei Complementar 128/2008, que se refere ao Microempreendedor Individual (MEI). O Brasil possui mais de 11 milhões de pessoas trabalhando por conta própria e/ou como empregadoras (12), sem nenhuma proteção. Por meio de contribuições muito modestas (13), os microemprendedores individuais que ganham até R$ 36.000,00 por ano podem ter agora as proteções da Previdência Social (aposentadoria, pensão, auxílio doença, auxílio acidente e au-
(11) Para bloquear a estratégia das empresas usarem esse tipo de
contrato para fazer substituições de mão-de-obra mais cara por mão-de-obra mais barata, pode-se utilizar um teto de contratação da ordem de 5% a 10% do número de empregados fixos das empresas –
xílio reclusão), podendo ainda contratar um empregado para ajudá-los – com despesas reduzidas. Enquadram-se nessa faixa inúmeras profissões, como pedreiro, pintor, eletricista, encanador, antenista, manicure, barbeiro, jardineiro, artesão, caminhoneiro, carpinteiro, contador, costureiro, mecânico, sapateiro, serralheiro, taxista, transportador de escolares, vendedores de rua e outros do mesmo gênero. O MEI consagra o conceito de "proteção parcial", que é fundamental para se reduzir a informalidade. Como R$ 57,15 são insuficientes para uma cobertura previdenciária completa, tais contribuintes têm direito à aposentadoria por idade, acidente e invalidez, mas não por tempo de contribuição. Isso é realista. Se as condições não permitem garantir uma proteção total, como no caso dos empregados que custam às empresas 102,43% do salário, a nova lei garante uma aposentadoria básica e os outros importantes benefícios previdenciários. Reformas trabalhistas precisam do conceito de proteção parcial. Além disso, o programa tem a virtude da portabilidade. Com a nova sistemática, quem tem as proteções são as pessoas e não os empregos. Assim, as que, ao longo de suas vidas, passarem da condição de conta própria ou empregador para a de empregado, levarão consigo as proteções adquiridas. Mesmo como conta própria, se quiserem se aposentar por tempo de contribuição, basta fazer um aporte maior ao INSS.
ou, alternativamente, de acordo do o tamanho das empresas. IBGE, Pesquisa sobre a Economia Informal Urbana, Op. cit., 2003. (13) R$ 51,15 mensais para o INSS; R$ 5,00 para o ISS; R$ 1,00 para o ICMS. (12)
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Apesar de o Programa do MEI contemplar muitas ocupações, houve inúmeras exclusões. Tratam-se de profissões que também têm renda limitada e muita informalidade, que mereceriam ser incluídas no MEI, como é o caso dos enfermeiros, músicos, artistas, despachantes e outros. Sugere-se assim que a referida lista venha a ser revista e ampliada. Sugere-se ainda uma simplificação dos requisitos burocráticos para a inscrição no Programa do MEI. Em 8 de fevereiro de 2010, o Sebrae, operador do MEI, avançou nesse sentido, mas a inscrição ainda é uma operação demasiadamente complexa para esse público.
ambiente de negócios e a competitividade das empresas. Na verdade, distinção entre fim e meio é dispensável porque, nas redes de produção, as empresas precisam contratar de tudo. A lei deveria se preocupar não com isso, mas sim com o respeito absoluto aos direitos e às proteções dos empregados, tanto da contratante como da contratada. Idealmente, os detalhes dessa contratação e o respeito aos referidos direitos deveriam fazer parte de contratos bem elaborados, negociados entre as partes, e ajustados às especificidades das empresas e dos trabalhadores. Mas, a filosofia do garantismo legal do Brasil exige lei. O que fazer? Que tipo Newton Santos/Hype 4. Terceirização de lei? Vários projetos de lei traNenhuma empresa pode mitam no Congresso Naciofazer tudo sozinha. No nal há mais de dez anos, mas mundo inteiro os produtonenhum contempla as necesres trabalham em redes das sidades mencionadas. Falta quais fazem parte várias a eles uma visão pragmática empresas, cada uma com do processo. sua missão específica. A Terceirização implica em subcontratação é uma práparceria entre empresas contica universal. As contratratantes e contratadas. Cotantes encontram nas conmo chegar a isso? Em primeitratadas trabalho especialiro lugar, as empresas devezado e realizado com maior riam ser livres para contratar flexibilidade e menor custo. o que quisessem, desde que A base educacional da maioria dos trabalhadores é precária. É impensável para uma respeitassem os direitos dos c o n s t ru t o r a t e r e m s e u s empregados das contratanquadros todos os tipos de tes e das contratadas, regisprofissionais que entram na trando seus respectivos emO Brasil possui mais construção de um prédio – pregados, recolhendo as de 11 milhões de pessoas arquitetos, engenheiros, contribuições sociais, respeitrabalhando por conta própria mestres de obras, pedreitando os pisos das respectie/ou como empregadoras, ros, eletricistas, encanadovas categorias e demais obrisem nenhuma proteção. res, vidraceiros, decoradogações legais e contratuais. res etc. Por isso, terceirizam Em segundo lugar, as eme se mantêm competitivas. presas contratantes e contraIsso se repete em milhares de casos em praticamente todos os tadas deveriam compartilhar responsabilidades no cumprisetores de atividades. mento de aludidas obrigações. As contratantes não podem faSe de um lado é crescente a necessidade de as empresas conzer "vista grossa" em relação ao que ocorre com os que trabatratarem serviços de terceiros, de outro, persiste a resistência lham para as contratadas. Por outro lado, não se pode exigir dos que entendem a terceirização como sinônimo de precaridelas total responsabilidade pelos empregados das contratazação do trabalho. das. Afinal, as contratantes não têm ingerência sobre eles e Nesse campo há bons e maus contratos. Há empresas connem podem se defender em juízo (por não terem documentatratantes que se preocupam com a proteção dos empregados ção) no caso de ações trabalhistas. das empresas contratadas. Mas há as que ignoram. Todas, poA saída desse dilema seria o de exigir uma monitoria perrém, deveriam zelar por todos os que participam do processo manente das contratantes em relação às contratadas, com reprodutivo. ferência ao rol de obrigações trabalhistas e previdenciárias. Todavia, a atual base institucional que rege a terceirização Assim fazendo, a responsabilidade das contratantes seria subnão induz a essa co-responsabilidade. Há um vácuo legal que sidiária. Na ausência desse monitoramento, a responsabilidafoi parcialmente preenchido pela Súmula 331 do Tribunal Sude seria solidária, respondendo, assim, por todos os eventuais perior do Trabalho. Mas há problemas. Essa Súmula permite desvios de conduta das contratadas. terceirizar apenas as atividades meio, e não as atividades fim, É claro que um sistema como esse induziria as empresas sem que se saiba claramente o que seja fim e meio. A interprecontratantes a criar e aprimorar a referida monitoria, surgintação é oscilante e fica por conta dos auditores fiscais, promodo, assim um clima sadio de parceria e respeito, protegendo-se tores e juízes. Isso gera grande insegurança jurídica, afeta o os empregados e afastando-se a precarização.
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Andrei Bonamin/LUZ
5. O trabalho mediante pessoa jurídica (PJ) É enorme a polêmica existente a respeito do trabalho de profissionais especializados na forma de pessoa jurídica. O fato é que essa realidade existe no mundo inteiro. Hoje, as empresas mantêm apenas uma parte de seus colaboradores como empregados fixos e utilizam uma verdadeira constelação de profissionais que trabalham nas mais diversas formas de contratação rotuladas, genericamente, de trabalho atípico, incluindo-se aqui os serviços casuais, temporários, a distância, em tempo parcial, por projeto, por prazo determinado e outros que prestam serviços por projeto. As empresas não têm motivos para contratar em seus quadros os profissionais cuja participação se dá em áreas muito específicas e por projetos que têm início, meio e fim. As empresas que optam por contratos atípicos visam ganhar qualidade de trabalho e transformar custos fixos em custos variáveis. A fragmentação do trabalho tem sido um reflexo da especialização e das tecnologias modernas, que permitem a divisão da produção em várias tarefas. Do lado dos profissionais também há ganhos. Eles alocam seu tempo para várias empresas ou para uma só durante um longo período. Além disso, eles se aperfeiçoam na profissão e elevam a sua remuneração. No Brasil já há vários sinais desses movimentos. As empresas de maior densidade tecnológica, por exemplo, exigem uma capacitação crescente e, em consequência, remuneram melhor os profissionais que trabalham como PJs. O crônico problema nesse campo é a ausência de uma legislação adequada para ajustar as necessidades dos contratantes e dos contratados a esse regime de trabalho. A normalização dessas atividades impõe a adoção de regras que, a um só tempo, protejam os profissionais e deem segurança jurídica às empresas. Assim, na formulação de um quadro legal para a terceirização, um capítulo especial deve ser dedicado aos profissionais que prestam serviços especializados na forma de pessoa jurídica. Para fazer jus a essa modalidade, os referidos profissionais teriam de seguir de forma rigorosa as normas estabelecidas em contratos de trabalho detalhados, nos quais ficariam explícitos os objetivos, a metodologia de trabalho, o cronograma, os custos etc. – um verdadeiro "memorial descritivo", como os preparados pelos engenheiros para a execução de uma obra. Na ausência desse projeto ou quando os profissionais vierem a trabalhar em condições próprias do vínculo empregatício e definidas no art. 3º. da CLT, eles devem ser considerados empregados da empresa. Sugere-se ainda que a mesma lei obrigue esses profissionais a se filiarem à Previdência Social, além de pagarem todas as contribuições e impostos que são próprios das pessoas jurídicas. Com isso, acabar-se-ia com a polêmica, dando segurança aos profissionais e às empresas.
De modo geral, a formação profissional e os treinamentos rápidos oferecidos pelas escolas do Sistema S são de boa qualidade. Os Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETS) e as escolas técnicas dos Estados em geral também têm boa qualidade. Mas, há uma enormidade de escolas de fundo de quintal que são verdadeiros caça-níqueis na busca dos parcos recursos de alunos, que pouco apreendem. Escolas desse tipo pouco contribuem para a elevação da produtividade do trabalho. Não se conhece o universo dessas escolas. O Ministério da Educação tem um levantamento em execução no Sistema Nacional de Informações da Educação Profissional e Tecnológica (SISTEC) que, dentro em breve, oferecerá um mapa dessa realidade, e que poderá servir de base para se montar um serviço de certificação dessas escolas e, com isso, assegurar melhor qualidade. Em 2009, havia cerca de 860 mil alunos cursando escolas técnicas de nível médio cadastradas (14), ou seja, 10% dos alunos matriculados no ensino médio. Isso é muito pouco para a demanda existente (15). A rede atual de escolas profissionais precisa ser ampliada. Obedecendo aos critérios da certificação acima indicada, sugere-se a ampliação por meio de parcerias que envolvam as escolas mais qualificadas que, no caso, podem operar como estimuladoras da boa qualidade.
(14)
(15)
Dados do Censo Escolar realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) do Ministério da Educação em 2009.
Guilherme Afif Domingos, secretário do Emprego e Relações do Trabalho de São Paulo, na cerimônia de entrega das primeiras carteiras de trabalho do Programa Aprendiz Paulista, em agosto de 2009.
6. Formação profissional
"Mão-de-obra qualificada é novo gargalo", Folha de S. Paulo, 14/02/2010; José Pastore, "Crescimento de 6%: e a mão-de-obra"?, O Estado de S. Paulo, 08/12/2009.
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Ricardo Padue/AFG
Mas há muito a ser feito na prómediante a aplicação de normas pria rede atual. Uma ação mais inclaras, pelo Ministério da Educategrada das escolas dos vários seção e pelas Secretarias de Educatores do Sistema S aumentaria a sição dos Estados. nergia desse sistema, tanto na parSugere-se ainda a contenção do te de ensino, como na da produção Ministério do Trabalho e Emprede materiais didáticos de boa quago que, com base no Memorandolidade. No mercado de trabalho Circular nº 16/2008/SIT/MTE, atual, as profissões passam por decidiu que todas as funções no enorme metamorfose. Está supetrabalho exigem qualificação, o rada a divisão clássica de profisque contraria a filosofia da aprensões agrícolas, industriais, comerdizagem. Ao aplicar as alíquotas ciais e de serviços. O mesmo setor de 5% a 15% ao total de empregapode exigir profissões de todos os dos das empresas, o Ministério do tipos. Por isso, impõe-se um trabaTrabalho e Emprego aumenta de lho mais integrado entre o SENAR forma exagerada o número de (agricultura), SENAI (indústria), aprendizes a serem contratados, SENAC (comércio e serviços) e com graves prejuízos para a quaSENAT (transporte), assim como lidade da aprendizagem. uma articulação com as escolas feSugere-se finalmente uma forderais e estaduais. te ampliação da aprendizagem Finalmente, sugere-se o aperfeiem escolas públicas nos casos de çoamento dos métodos de prosprofissões que dispensam as ofipecção do mercado de trabalho, a cinas requeridas para o ensino fim de orientar o ensino profissioindustrial e, ao mesmo tempo, nal também para as novas profisdão aos jovens uma boa expesões. Nesse campo, é fundamental riência na área dos serviços, hoje É fundamental uma boa articulação das escolas uma boa articulação das escolas em franca expansão. profissionais com empresas e universidades. profissionais com as empresas e com universidades de boa quali8. Os estágios dade – as que fazem pesquisa de ponta sobre as tecnologias que vão surgir nos próximos anos. O estágio é uma atividade educacional por meio da qual os alunos de nível superior, profissional e médio participam do 7. Aprendiz mundo do trabalho por um período de, no máximo, dois anos. Ao contrário da aprendizagem, o estágio não implica em relação O contrato de aprendiz está previsto na CLT (Título III, Capide emprego. Os estagiários recebem bolsa das empresas sobre a tulo IV) para jovens de 14 a 24 anos que recebem formação teórica qual não incidem encargos sociais – exceto férias, vale transpor(educação geral) e prática (educação profissional) numa articute, auxílio alimentação e seguro de acidentes pessoais. lação entre escolas e empresas. Pela lei, as empresas são obrigaO estágio exige a articulação das escolas com as empresas. das a admitir aprendizes na base de 5% e 15% das profissões Dos dois lados deve haver um supervisor do estagiário. A boa constantes de seus quadros e que requerem qualificação profisqualidade do estágio depende fundamentalmente desses susional. Os aprendizes recebem salários e são protegidos por boa pervisores, em especial do professor. parte da legislação trabalhista e previdenciária. Aqui reside um grande problema. Para os estágios obrigaAs despesas de contratação de aprendizes são menores do que tórios, as escolas fazem previsão de tempo nas grades curricuas dos empregados adultos. A alíquota do FGTS é de apenas 2%, lares. Mas, para os estágios voluntários, a falta de tempo e o não há aviso prévio e nem indenização de dispensa (50% sobre o desinteresse dos professores dominam, e comprometem a saldo do FGTS). Por outro lado, a empresa tem a responsabilidaqualidade do estágio. A maioria dos professores se limita a asde de indicar um monitor para supervisionar o estagiário. sinar papéis e relatórios sem ter a menor noção do que é feito Na origem desse tipo de contrato, a educação profissional pelos estagiários no ambiente de trabalho. era oferecida pelas escolas do Sistema S. Pelo decreto 5.598/05, Os motivos alegados procedem. Os professores não têm neoutras escolas técnicas e entidades sem fins lucrativos entranhum estimulo para fazer uma boa supervisão. É preciso motiram na lista de ofertantes da educação profissional. vá-los. Uma das ideias é fazer com que as empresas que, de fato, Embora o Ministério do Trabalho tenha estabelecido norse interessam pelos estagiários, paguem uma pequena taxa desmas para avaliar a competência das novas entidades, a prolitinada, em parte, aos professores e, em parte, às escolas, de modo feração de organizações não governamentais de baixa qualia liberar um tempo gratificado para a supervisão, assim como dade é preocupante. Aqui também é premente criar algum tiviabilizar para as escolas a contratação de mais professores para po de certificação das entidades, o que poderia ser realizado, cobrir o tempo dos que supervisionam os estagiários.
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Por custar mais caro, os empresários passariam a cobrar dos professores, das escolas e dos chefes da empresa uma supervisão qualificada. Outros estímulos podem ser direcionados, como é o caso de créditos para a promoção e para a composição do currículo dos professores e dos chefes. Além disso, é claro, impõe-se um processo contínuo de sensibilização dos professores e chefes em favor da boa supervisão. Outro problema diz respeito às agências de intermediação de estágio. Inúmeras ONGs estão surgindo, cujo objetivo principal é a arrecadação de taxas das empresas. Impõe-se a adoção e cumprimento de normas e um sistema de credenciamento dessas entidades, o que poderia ser feito pelo Ministério do Trabalho e Emprego e/ou Secretarias do Trabalho dos Estados.
Para os que estão desocupados e recebendo Bolsa Família (16) há ainda a necessidade de se promover a transição da assistência social para o trabalho produtivo. Nesse campo, sugere-se a transformação da Bolsa Família e do Seguro Desemprego em Bolsa Treinamento quando os desempregados se matricularem em cursos de reciclagem ou treinamentos rápidos. Para tanto, os serviços de intermediação como o SINE, por exemplo, precisam ser substancialmente melhorados. O desempregado que recusar trabalho compatível com sua competência e local de residência, teria o seguro desemprego e a Bolsa Treinamento reduzidos ao longo do tempo. Keiny Andrade/AE
9. Seguro-desemprego: aperfeiçoamentos Duas medidas poderiam aumentar a eficácia do seguro desemprego como forma de amparar os desempregados e prepará-los para a volta ao trabalho. A primeira diz respeito à necessidade de se atrelar de maneira mais direta o seguro desemprego com cursos e treinamentos rápidos aos desempregados. Nesse campo é indispensável uma melhor articulação do O valor do seguro desemprego é o mesmo para os solteiros e SINE (que prospecta vagas) com as escolas para os que têm muitos dependentes. Isso não é justo. profissionais (que fazem treinamentos rápidos). Com isso, une-se uma política passiva (seguro desemprego) com uma política ativa (formação profissional), reduzindo-se, assim, o tempo de Em resumo, a filosofia do garantismo legal exige que as mudesemprego e as despesas com a sua manutenção. danças trabalhistas permitidas pela Constituição Federal seA segunda se refere a um aperfeiçoamento no critério de rejam introduzidas por meio de leis e não por negociação. Isso muneração dos desempregados. No Brasil, o valor do seguro não significa, porém, que o garantismo legal é imutável. desemprego é o mesmo para os solteiros e para os que têm muiPara proteger de maneira mais realista os trabalhadores, é tos dependentes. Isso não é justo. É demais no primeiro caso e indispensável a adoção de uma política de longo prazo que, de menos no segundo. Sugere-se calibrar o valor do seguro decom base em trocas permanentes (negociação), permita a um semprego de acordo com as responsabilidades familiares dos só tempo assegurar os direitos adquiridos e criar gradativadesempregados, levando em conta ainda a condição de trabamente um ambiente de negócios que estimule os investimenlho de cada membro da família. Com isso, atinge-se melhor efitos e a geração de empregos de boa qualidade. ciência na alocação dos recursos daquela política. Enquanto isso não é feito, estão aí sugeridas algumas medidas de curto e médio prazo que podem melhorar sensivelmente a 10. Treinamento para desempregados proteção dos trabalhadores e a segurança jurídica das empresas. Em todos os casos, porém, há dois ingredientes que não Treinar desempregados é um desafio e uma necessidade. podem faltar: pedagogia e liderança. Mudanças trabalhisO desafio decorre da incerteza da própria reinserção dos detas precisam ser bem explicadas, deixando claro que nenhusempregados. Treinar em que profissão? Onde estão as vama delas visa retirar direitos de quem os tem, mas, sim levar gas? A necessidade emerge da situação dos próprios trabaproteções a quem nada tem. Para essa indispensável tarefa, lhadores (e do seguro desemprego) que não podem estender impõe-se a participação efetiva de um bom líder – o Presiem demasia o tempo de desocupação. dente da República.
(16) São 3,2 milhões de famílias e 14,1 milhões de beneficiados, dentre os quais, estima-se 7 milhões os que estão em idade de trabalhar, havendo 4 milhões de desocupados (Estimativa do Autor).
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Barbara Peacock/Corbis
Por uma Previdência Social justa e sustentável no Brasil: ir em frente sem olhar para trás
O autor agradece a José Cechin e Nilton Molina por seus comentários e sugestões em apresentação feita em reunião do mesmo conselho, em 26/10/2009. Agradece também a Eduardo Zylberstajn e Luis Eduardo Afonso por comentários feitos a uma versão preliminar deste texto.
Andrei Bonamin/LUZ
Hélio Zylberstajn Doutor em Economia pela Universidade de WisconsinMadison, professor adjunto da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, ex-secretário de Emprego, do Ministério do Trabalho e Emprego e membro do Conselho de Economia da Associação Comercial de São Paulo.
Resumo Este texto tem como objetivos apresentar uma descrição dos problemas da Previdência Social e propor um novo modelo. O Brasil tem um sistema dual de Previdência, que trata mais generosamente os funcionários públicos do que os demais trabalhadores. No conjunto, o País gasta 11% do seu PIB com aposentadorias e pensões, um volume excessivamente grande para sua estrutura etária e seu estágio de desenvolvimento. Apenas uma pequena parte dos benefícios é obtida por tempo de contribuição. A grande maioria dos beneficiários obtém suas aposentadorias com adesão parcial (aposentadorias por idade) ou mesmo sem nenhuma contribuição. A carga de contribuição é desigualmente distribuída, exigindo contribuições maiores dos trabalhadores formais do setor privado. Não há restrições para pensões, que são concedidas sem limite de idade e sem redução nos valores. Na aposentadoria, a idade mínima de 60 anos (55 para mulheres), além de pequena, se aplica apenas a funcionários públicos. Para solucionar tais problemas, o texto sugere aproveitar a oportunidade do início da nova administração federal em 2011 para criar um novo sistema para os novos trabalhadores, mantendo o sistema existente para os atuais. Assim colocada, a proposta reduziria as resistências à reforma. O novo sistema teria quatro pilares: (a) um não contributivo, (b) um contributivo em regime de repartição, (c) um contributivo em regime de capitalização que aproveitaria o FGTS e (d) um contributivo de capitalização complementar e voluntário. Finalmente, o texto propõe a utilização de parte da receita do Pré-sal para formar um fundo de financiamento da transição.
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1. Introdução
E
ste texto reúne argumentos para defender a necessidade da reforma da Previdência Social brasileira e, ao mesmo tempo, sugere um modelo e uma estratégia para viabilizar a pretendida reforma. O tema é relevante e não é novo. O País tenta reformar seu sistema de Previdência Social desde o início dos anos 1990, mas os resultados alcançados, embora tenham produzido algum efeito, estão muito longe de solucionar os problemas existentes nessa área. A reforma da Previdência Social é um tema controverso do ponto de vista conceitual e teórico, mas a maior dificuldade para se avançar não é acadêmica. Pelo contrário, é prática e concreta, pois para reformar é preciso alterar regras de concessão de benefícios e de cálculo de valores e, portanto, afetar interesses de segmentos que se beneficiam do modelo atual. Não por acaso, os beneficiários do modelo pertencem a grupos articulados e muito próximos aos círculos decisórios do Estado brasileiro, dispondo de poder e de influência que os tem capacitado a resistir a mudanças. Não é exagero dizer que as tentativas de reforma da Previdência Social no Brasil fracassaram porque todas olharam
Rodrigo Clemente/AE
Uma reforma somente terá êxito se for feita para os novos trabalhadores. Simplesmente pelo fato de que, por não existirem ainda como tal, não poderão resistir, ou sua resistência será minimizada. A reforma da Previdência deve ser feita para frente, para os novos trabalhadores, sem olhar para trás.
"para trás", ou seja, tentaram mudar as regras vigentes para os trabalhadores e os funcionários públicos ativos e para os já aposentados. Dentre eles, situam-se os grupos com a referida capacidade de resistência. O fracasso das diversas tentativas deixou uma lição importante: para reformar a Previdência teremos que manter as regras atuais, para contornar a resistência dos atuais beneficiários. Uma reforma somente terá êxito se for feita para os novos trabalhadores. Simplesmente pelo fato de que, por não existirem ainda como tal, não poderão resistir, ou sua resistência será minimizada. Para resumir: precisaremos adotar uma atitude pragmática e fazer a reforma da Previdência orientada para frente, para os novos trabalhadores, sem olhar para trás. As próximas seções desenvolvem o argumento da necessidade da reforma da Previdência Social e apresentam as características de um modelo mais justo e ao mesmo tempo mais eficiente. A seção 2 a seguir apresenta a Previdência Social sob a óptica fiscal e mostra que o Brasil gasta muito com os benefícios de aposentadoria e pensão. A seção 3, na sequência, mostra que não apenas o Brasil gasta muito com a Previdência, mas gasta mal, pois nosso sistema cria incentivos à informalidade e trata desigualmente seus cidadãos. A quarta seção se dedica a mostrar o potencial que a Previdência Social
teria como um instrumento de poupança para financiar os investimentos de longo prazo, papel que nosso modelo não conseguiu desempenhar até hoje e que poderia passar a fazêlo se conseguíssemos reformá-lo. A quinta seção apresenta os contornos do modelo proposto, com seus quatro pilares e sua natureza universal. Seu desenho foi elaborado para transformar a Previdência Social brasileira em um sistema socialmente justo, financeiramente sustentável e atuarialmente equilibrado, qualidades que o modelo atual não possui. A seção final discute a viabilidade da reforma proposta e faz algumas considerações adicionais. 2. Gastos da Previdência: a jabuticaba e o debate sobre o déficit O Brasil gasta 11% do seu PIB com benefícios de aposentadoria e pensões. Isso é muito? Para responder, é preciso comparar nossos gastos com os de outros países e isso é feito pelo Gráfico 1, a seguir, que classifica os gastos previdenciários dos países da OECD (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e no qual foi inserido o Brasil, para obter a desejada comparação. O eixo horizontal do gráfico representa a proporção de pessoas com 65 anos de idade ou mais. O eixo vertical representa o gasto com aposentadorias e pensões como proporção do PIB. Vamos percorrê-lo no sentido horário, começando pelo quadrante superior direito. Nesse quadrante, estão os países com gastos previdenciários elevados (acima de 10% do PIB) e parcelas grandes de idosos na população (acima de 10%). São países desenvolvidos, com sistemas de seguridade social avançados, que arrecadam muito, e concedem benefícios generosos para seus idosos. No quadrante direito inferior, aparecem países também desenvolvidos, com grande parcela de população idosa, mas menos generosos na concessão dos benefícios previdenciários. O terceiro quadrante apresenta os países com população jovem e em decorrência com gastos previdenciários menores. Finalmente, o quarto quadrante tem apenas um país: o Brasil. Nosso caso é muito típico, como é típica a nossa jabuticaba. O Brasil gasta com sua Previdência como se tivesse uma grande proporção de idosos e como se tivesse um sistema de bem estar social desenvolvido, embora sua parcela de idosos seja menor que 10%. Nosso país é um caso "fora da curva". Gastamos muito com a Previdência Social: 11% do PIB. Os 11% do PIB representam cerca de um terço da arrecadação total dos três níveis da administração pública com impostos e contribuições sociais. De cada R$ 3 que arrecadamos com impostos e contribuições, R$ 1 vai para pagar aposentadorias e pensões. O Brasil tem dois sistemas de Previdência Social, o Regime Geral de Previdência Social – RGPS e os Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS´s. O RGPS é administrado pelo INSS – Instituto Nacional de Seguridade Social, e cobre os trabalhadores assalariados regidos pela CLT, bem como os autônomos, os empregadores e os não contribuintes. Os RPPS´s são os diversos sistemas de Previdência da administração pública, que compreende cada uma das suas instâncias, o governo federal, os governos estaduais e os governos municiais.
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O Regime Geral de Previdência Social RGPS. Em 2009, o INSS gastou, em números redondos, R$ 225 bilhões, para pagar aposentadorias, pensões e benefícios de assistência social. Este gasto representa aproximadamente 7,5% do PIB esperado para o ano. Na arrecadação, o INSS conseguiu R$ 182 bilhões, que representaram aproximadamente 81% do gasto total. Portanto, a arrecadação do INSS não é suficiente para cobrir o gasto. Nos anos recentes, em função do crescimento do emprego formal, a arrecadação tem crescido um pouco mais que os gastos (Tabela 1), mas a diferença é muito grande e tem gerado um intenso debate sobre o déficit desse regime. Antes de examinar essa questão, é preciso completar os dados do INSS com a quantidade de beneficiários e também apresentar a outra parte das contas da Previdência, aquela referente aos funcionários públicos. Em dezembro de 2009, havia 27 milhões de beneficiários do INSS, em números redondos. A quantidade de beneficiários tem crescido aproximadamente 1 milhão a cada ano. Dos benefícios existentes em 2009, 84% eram "previdenciários", 13% "assistenciais" e 3% "acidentários" (Tabela 2, coluna 2009). O exame mais cuidadoso da Tabela 2 mostra que entre os benefícios concedidos pelo INSS, uma grande parcela não se enquadra na categoria de contributivos. Benefício contributivo seria aquele em que o participante ganha o direito a um benefício mediante o pagamento de contribuições durante o período produtivo de sua vida. A rigor, essa situação se verifica apenas nas aposentadorias por tempo de contribuição, que constituíam 16% do número total de benefícios (Tabela 2, coluna 2009). Nas demais categorias, ou os benefícios são não contributivos – como os benefícios assistenciais – ou
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parcialmente contributivos – como as aposentadorias por idade. Aliás, as aposentadorias por idade – que correspondem a nada menos que 29% do total de benefícios (Tabela 2, coluna 2009) – constituem um caso bastante ilustrativo e ajudam a esclarecer melhor a natureza do INSS. O trabalhador brasileiro tem direito a se aposentar por idade a partir dos 65 anos, desde que tenha contribuído por 15 anos. Na prática, a regra implica em que um cidadão pode começar a contribuir aos 50 anos e, quando atingir os 65 anos tem direito a um benefício de aposentadoria completa. Para os trabalhadores rurais, a aposentadoria por idade pode ser obtida
aos 60 anos, e é concedida mesmo que o cidadão nunca tenha contribuído. Neste caso, basta comprovar sua condição de trabalhador rural, o que pode ser feito de diversas formas. Por exemplo, com uma declaração do Sindicato de Trabalhadores Rurais do município. A grande proporção de aposentadorias por idade – quase duas vezes mais que aposentadorias por tempo de contribuição – sugere que as regras existentes criariam um forte incentivo para não contribuir ou, pelo menos, para minimizar as contribuições, uma vez que o benefício completo pode ser obtido com contribuição parcial ou até mesmo sem contribuição. De uma forma mais geral, o exemplo da aposentadoria por idade serve para mostrar que as regras de contribuição e de concessão de benefícios podem afetar as decisões, os comporta-
mentos e as atitudes dos cidadãos no mercado de trabalho. Antes de retornar a esse ponto na próxima seção, é preciso examinar o outro sistema de Previdência Social, o conjunto dos chamados Regimes Próprios de Previdência Social, do qual participam os funcionários públicos. Os Regimes Próprios de Previdência Social – RPPS´s. Em 2008, havia no Brasil 14,3 milhões de servidores públicos, os assim chamados estatutários, civis e militares, nos três ramos do poder público (Executivo, Legislativo e Judiciário), e nos três níveis da administração pública (União, Estados e Municípios). Daquele total, 4,4 milhões eram servidores inativos ou pensionistas, e 9,9 milhões eram servidores ativos (Tabela 3,
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colunas 2008). O leitor poderá consultar a Tabela 3 para verificar a composição da força de trabalho de servidores públicos e de inativos segundo o nível de administração, que nessa tabela é subdividida em União, Estados, Capitais e Demais Municípios. O aspecto relevante desses dados é a proporção de ativos e inativos na administração pública: para cada inativo ou pensionista, há apenas dois ativos. Assim, um em cada três indivíduos desse grupo é inativo ou pensionista, uma proporção bastante alta. Com muitos inativos e pensionistas, e com regras generosas de cálculo de benefícios, deve-se esperar uma grande defasagem entre a receita das contribuições dos ativos e o gasto com benefícios.
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De fato, os dados mostram que o desequilíbrio é enorme. Em 2008, o Brasil gastou aproximadamente R$ 126 bilhões com aposentadorias e pensões para seus funcionários públicos, sendo R$ 63 bilhões na administração federal, R$ 52 bilhões na administração estadual, R$ 6 bilhões nos municípios das capitais e R$ 5 bilhões nos demais municípios (Tabela 4, colunas 2008). No mesmo ano, a arrecadação total chegou a apenas R$ 77 bilhões, sendo R$ 39 bilhões da União, R$ 26 bilhões dos Estados, R$ 5 bilhões das capitais e R$ 9 bilhões dos demais municípios (Tabela 4, colunas 2008). Na verdade, o desequilíbrio pode ser ainda maior do que os dados informam, devido a um procedimento contábil adotado para quantificar a receita de contribuições. Ocorre que em muitos
casos – e o mais notório é o do governo federal – não há, a rigor, contribuição patronal. O empregador desconta a contribuição devida pelo funcionário, mas não recolhe a contribuição do empregador. A receita de contribuições apresentada é obtida acrescentando à contribuição dos servidores (11% sobre o salário, parcela efetivamente recolhida) um valor equivalente ao dobro (22% sobre o salário, mas não necessariamente recolhida). Não há, em geral, recolhimento da parcela patronal da contribuição, existe apenas um conceito contábil. Considerando apenas as contribuições efetivamente recolhidas, o desequilíbrio nos resultados dos RPPS´s seria muito maior. Em síntese, nos RPPS´s, havia em 2008, 4,4 milhões de inativos e pensionistas, cujos benefícios produziam um gasto gigantesco de R$ 126 bilhões, com uma insuficiência de receita de pelo menos 48 bilhões, aceitando-se o procedimento contábil referido (Tabelas 3 e 4, anos de 2008). Para efeito de comparação e de obtenção de um quadro completo, os números dos dois regimes são apresentados conjuntamente na Tabela 5 a seguir. O ano considerado foi o de 2008, para o qual as estatísticas dos dois sistemas são disponíveis. Os dados mostram que nesse ano o Brasil gastou com benefícios nos dois sistemas de Previdência Social aproximadamente R$ 246 bilhões. O nível de gastos com a Previdência é motivo de preocupação, pois a tendência de envelhecimento da população indica que a quantidade de beneficiários tende a aumentar e a pressionar ainda mais estas despesas. Além de gastar muito, gastamos mais do que arrecadamos com as contribuições, mesmo aceitando a manobra contábil já referida que "engorda" a arrecadação dos RPPS´s. Considerando o conjunto dos dois regimes, a diferença entre a receita e o gasto foi de aproximadamente R$ 85 bilhões, o que representava em 2008 nada menos que 2,8% do PIB (Tabela 5, linha Resultado). A magnitude desse número é uma clara indicação de que a Previdência Social está na raiz das dificuldades fiscais do País. O Brasil tem feito esforços muito grandes para produzir superávits primários mais ou menos dessa ordem de grandeza. Os resultados desse esforço poderiam ser melhorados se o País conseguisse de alguma maneira controlar os gastos Previdenciários. É importante dizer que a expressão usada ao final do parágrafo anterior foi "controlar os gastos" e não "controlar o déficit". Há um grande debate sobre o déficit da Previdência Social. Muitos pre-
tendem que não haveria déficit, argumentando que a arrecadação com as Contribuições Sociais é suficiente para custear todas as despesas da Seguridade Social, na qual se inclui a Previdência Social. De fato, sob este ponto de vista, não há déficit e, assim sendo, não haveria que se preocupar com os gastos, uma vez que o volume destes seria menor que a arrecadação. Sabe-se que o crescimento da arrecadação das contribuições sociais foi um recurso utilizado pelo Governo Federal a partir da promulgação da Constituição de 1988. A Carta Magna retirou receita líquida do governo central por meio dos Fundos de Participação no Imposto de Renda e no IPI, mas não transferiu na mesma proporção atribuições para Estados e municípios. Para fazer frente à nova distribuição das receitas de seus impostos, o Governo Federal aumentou as alíquotas das contribuições sociais existentes e criou novas, já que sobre as receitas dessas fontes não havia nenhuma determinação constitucional distributiva. Com o tempo, o governo foi criando mecanismos para flexibilizar o uso de receitas, que hoje assumem o formato da DRU – Desvinculação de Receitas da União. O crescimento da arrecadação das contribuições sociais foi, portanto, fruto de uma situação de restrição fiscal e não uma decisão de política pública para programas sociais. Assim sendo, dizer que "não há déficit" na Previdência Social é utilizar um argumento muito parcial e bastante viesado. É até mesmo uma maneira um tanto cínica de examinar a escala de prioridades dos gastos públicos, na medida em que isola os gastos sociais dos demais gastos. Além disso, sempre haverá benefícios não contributivos, inclusive benefícios previdenciários. Portanto, sempre haverá despesas não cobertas por arrecadação de contribuições e que terão que ser custeadas por dotações orçamentárias. Assim sendo, pelo menos uma parte da Previdência Social sempre será "deficitária".
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Para ilustrar este ponto, é conveniente lembrar, por exemplo, que o governo tem insistido (com razão) em separar os números referentes aos benefícios urbanos dos referentes aos benefícios rurais, argumentando que estes últimos têm um caráter não contributivo e, portanto, intrinsecamente deficitários. Por essas razões, o autor defende a ideia que o aspecto relevante na análise das contas da Previdência deveria ser o nível dos gastos. Nesse aspecto, como foi mostrado, o País está mal. De acordo com o Gráfico 1 os gastos com benefícios previdenciários representavam aproximadamente 11% do PIB daquele ano. E não é preciso ser especialista em finanças públicas para perceber que gastamos muito e que, com o envelhecimento da população, o gasto tende a crescer mais rapidamente que o PIB e a arrecadação. Assim, o cenário da Previdência é sombrio, compromete a saúde fiscal do País e limita a capacidade de investimento do Estado. Para evitar a concretização desse cenário e asseLuiz Prado/LUZ gurar um futuro melhor para nossos filhos e netos, é preciso reformar nosso modelo de Previdência Social. Mas a restrição fiscal não é o único motivo para implantar uma reforma. A reforma é necessária para eliminar as injustiças, a desigualdade e os incentivos perversos do sistema atual. A próxima seção aborda estes pontos.
doria do funcionário público é quase quatro vezes maior que o do trabalhador do regime CLT.
Incentivos à informalidade ou à adesão parcial. A seção anterior já mencionou o fato de que as regras de concessão e de cálculo dos benefícios de aposentadorias criam incentivos distorcidos no mercado de trabalho. Esse ponto foi mencionado quando o texto examinava a quantidade grande de aposentadorias por idade em comparação à quantidade de aposentadorias por tempo de contribuição. A possibilidade de contribuir por pouco tempo ou por tempo nenhum estaria induzindo parcelas significativas de trabalhadores a retardarem seu ingresso no mercado formal de trabalho. No período recente, o Brasil tem adotado uma política ousada e agressiva de combate à informalidade, o assim chamado Simples, um regime tributário e previdenciário que reduz impostos e contribuições sociais para micro e pequenos estabelecimentos, para atraí-los para a formalidade. Mais recentemente, na mesma linha de políticas públicas de reduzir exigências burocráticas e tributárias, o País criou a figura do MEI – Microempreendedor Individual. O programa é especificamente destinado aos trabalhadores autônomos e aos microempreende3. Tratamento desigual dores, reduzindo as exigências para o seu regise incentivos distorcidos tro no sistema MEI e drasticamente diminuindo a carga tributária e previdenciária. O impacto Dicotomia entre funcionários desses programas tem sido importante e pode públicos e trabalhadores sob a CLT. ser observado inclusive nos números da arrecaA maior distorção do nosso sistema de Predação do INSS, que registra separadamente as A idade mínima vidência Social está ligada à diferenciação encontribuições originadas no Simples. No curto para aposentadoria tre o tratamento reservado aos funcionários prazo, estes programas certamente reduzirão a começou a ser públicos e o aplicado aos trabalhadores no reinformalidade, pois trarão para a economia forimposta em 1998, no gime da CLT. A diferença maior se refere ao cálmal empresas e muitos empreendedores que de governo de Fernando culo dos benefícios: o funcionário público ainoutra forma continuariam na informalidade. No Henrique Cardoso. da se aposenta com um benefício igual ao seu longo prazo, porém, poderão agravar o desequiúltimo salário (ou muito próximo a isso), enlíbrio da Previdência Social, pois os trabalhadoquanto que em geral o trabalhador sob a CLT res do Simples têm os mesmos direitos daqueles recebe um benefício menor que o seu último salário. Além discobertos pelo regime de aposentadoria por tempo de contribuiso, o benefício do funcionário público é reajustado anualmente ção. Estes programas, portanto, seguem a mesma linha da apocom a mesma taxa aplicada aos salários dos funcionários atisentadoria por idade, na medida em que reduzem as exigências vos, que em geral, embute ajuste para a inflação e algum ganho para ingresso no universo de proteção do INSS a um "preço" mereal. Já o benefício do aposentado da CLT é ajustado anualnor. Ou seja, criam incentivos para a filiação parcial dos trabalhamente pela variação da inflação, sendo que os que recebem o dores, na medida em que oferecem proteção completa. salário mínimo também têm um ganho real, e bem expressivo. O trabalhador da CLT tem um teto para o benefício de aposenIdade mínima. tadoria (hoje ao redor de R$ 3.000). Em consequência, mesmo O Brasil é um dos raríssimos países em que não existe uma que ao se aposentar ganhasse como ativo mais que o teto, o beidade mínima para se aposentar. Na verdade, existe sim uma nefício de aposentadoria não poderá exceder esse valor. Para idade mínima, mas apenas para os funcionários públicos. Essa os funcionários públicos também existe um teto, que é o salário restrição começou a ser imposta em 1998, no governo FHC, de um Juiz do STF, oito ou mais vezes maior que o teto aplicado quando foi fixada em 58 anos para os homens e 53 para as muaos trabalhadores sob a CLT. O resultado da diferença de tralheres. Em 2003, quando o governo Lula conseguiu aprovar a tamento pode ser visto na segunda parte da Tabela 5 da seção sua reforma, a idade mínima foi elevada para 60 e 55, respecanterior. Os inativos e pensionistas da Administração Pública tivamente. Para o RGPS, porém, não existe idade mínima. representam apenas 14% do total, mas consomem 38% dos A adoção de idade mínima depende de alteração na Constigastos com aposentadorias e pensões e produzem 56% do détuição, que requer quórum qualificado nas duas casas do Conficit total da Previdência. Em média, o benefício de aposentagresso, o que evidentemente dificulta sua aprovação. O governo
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FHC conseguiu aprovar no Congresso o Fator Previdenciário, um mecanismo que reduz o valor do benefício dos que se aposentam por tempo de contribuição. A redução é tanto maior quanto menor a idade de aposentadoria. Na falta de uma idade mínima, esse fator tinha como objetivo incentivar o adiamento da decisão de se aposentar. Como se trata de alteração na regra de cálculo do benefício, não precisava do quórum qualificado e pode ser aprovado no Congresso. Mas, a sobrevivência do Fator Previdenciário está sempre sob risco, pois assim como foi relativamente simples aprová-lo por maioria simples, seria também simples extingui-lo, desde que se formasse uma coalizão com esse objetivo. Por essa razão, é muito importante incluir na agenda da reforma da Previdência a adoção da idade mínima. A idade mínima é importante para equilibrar as contas da Previdência Social, especialmente num quadro de aumento da ex-
O MEI - Microempreendedor Individual, reduziu drasticamente a carga tributária e previdenciária.
pectativa de vida. Para avaliar a importância dessa regra no caso brasileiro, basta lembrar que mesmo com o Fator Previdenciário, a idade média de aposentadoria no RGPS nos anos recentes tem sido de 53 anos. Ou seja, a aposentadoria no Brasil é uma decisão precoce, induzida pela frouxidão das regras existentes. Mulheres e professoras se aposentam antes e vivem mais. Relacionado com a questão da idade mínima, está o fato de que no RGPS, além de não haver idade mínima, o tempo de contribuição exigido no Brasil é menor para mulheres e para professores. Mulheres são mais longevas que homens e se aposentam cinco anos antes. Se forem professoras, se aposentam cinco anos antes adicionalmente. As duas regras operando conjuntamente produzem casos em que não raro, o período de fruição do benefício chega a ser maior do que o período de contribuição! É importante lembrar que a diferenciação no tratamento entre homens e mulheres se justifica, pois as mulheres têm maior dificuldade de se comprometer nas suas carreiras em função do seu papel de mães. Portanto, o objetivo de compensar as mulheres por essa desvantagem não está errado. Mas, a compensação teria que evitar a criação de outros incentivos e não sobrecarregar as contas da Previdência. Inativos que trabalham. Nosso sistema não proíbe aposentados de continuarem a trabalhar. A ausência dessa restrição viola o próprio conceito de aposentadoria. Aposentar-se significa literalmente retirar-se. Corresponde a um estágio na vida em que o indivíduo não mais dispõe de capacidade laboral e não pode mais se sustentar. Nesse estágio, passa a receber a renda da aposentadoria. Do ponto de vista conceitual, portanto, não faz sentido se aposentar e continuar a trabalhar. Muitos países, por essa razão, proíbem ou restringem a possibilidade de um aposentado continuar a trabalhar. A necessidade conceitual de restringir essa possibilidade acaba reforçando e justificando a necessidade da adoção da idade mínima. Afinal, aos 65 anos – essa é a idade mínima mais frequente – poucas pessoas ainda dispõem de capacidade laboral plena. Mas como a qualidade de vida e a saúde estão melhorando, muitos países aumentam a idade mínima para 67, e possivelmente chegarão aos 70 anos como idade mínima dentro em pouco. Para equilibrar as contas da Previdência e para evitar a contradição de ativos aposentados, o Brasil precisa examinar a adoção dessa regra, se quiser alcançar uma Previdência Social menos onerosa.
Danilo Ramos/e-SIM
Restrições às pensões. Em muitos países existem restrições à concessão da pensão – o benefício a que tem direito o cônjuge e/ou os dependentes do beneficiário falecido (Tafner, 2008). Em alguns países, a concessão e/ou o valor da pensão depende da existência de crianças na família. Em outros países, depende da idade do cônjuge (em geral, a esposa) e da sua condição de ocupação no mercado de trabalho. Finalmente, é muito comum que quando um benefício de aposentadoria se transforma em benefício de pensão em razão do falecimento do titular, o valor do novo benefício se reduz. Em suma, a concessão de pensão depende de diversos fatores e não é um direito líquido e certo, na maioria dos países. No Brasil, porém, em
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geral seu valor é igual ou bem próximo da aposentadoria que a originou, independentemente da condição dos dependentes. A ausência de restrições e de condicionantes tem produzido situações curiosas. Para muitos autores, a falta de restrições nas pensões está relacionada ao aumento do número de casamentos entre homens bem mais idosos que mulheres (Tafner, 2007). Para uma jovem solteira, a pensão de um aposentado de mais idade é um incentivo material para casar-se com ele. Como a probabilidade do marido falecer antes da esposa é grande, ela herdaria uma renda incondicional para o resto de sua vida. Aposentadoria rural. Até 1988, o valor do benefício da aposentadoria dos trabalhadores rurais era igual a meio salário mínimo e sua concessão limitada a um benefício por família. A Constituição de 1988 estabeleceu que o menor benefício da Seguridade Social deveria ter valor igual ao do salário mínimo, o que elevou em 100% o valor da aposentadoria rural. Além disso, eliminou a restrição do número de benefícios por família. Nos anos seguintes, observou-se um grande aumento na quantidade de trabalhadores rurais aposentados. Este benefício acabou se transformando em um grande programa de transferência de renda, a tal ponto que hoje muitos municípios do Nordeste têm a maior fonte de renda dos seus habitantes na aposentadoria rural (nessa região estão cerca de 50% dos benefícios a esse título). Apesar de ser classificado como uma aposentadoria por idade é, na prática, um benefício não contributivo, pois para recebê-lo o trabalhador precisa apenas comprovar que foi trabalhador rural, mesmo que sem registro em Carteira Profissional. Essa exigência acaba transferindo poder e influência àqueles que podem atestar a condição de trabalhador. Como já foi dito, na maioria dos casos, os interessados obtêm no Sindicato dos Trabalhadores Rurais o atestado que o INSS exige. Não por coincidência, a PNAD/IBGE registrou um expressivo crescimento das taxas de sindicalização rural, especialmente no Nordeste. Excesso e falta de tributação da folha de pagamento No RGPS, as contribuições para o INSS chegam a 31% sobre o salário, assim distribuídas: (a) 11% descontados do salário do trabalhador, incidindo até o teto; (b) 20% de contribuição adicional ao salário, cobrados do empregador, sem limite de teto; (c) 1% a 3% de contribuição adicional ao salário, cobrados do empregador, para financiar o Seguro de Acidentes do Trabalho - SAT (1). O volume total chega a 31% (considerando uma alíquota de 2% para o SAT). De acordo com Giambiagi e Afonso (2009) dependendo do gênero e da taxa de desconto utilizada, a alíquota necessária para equilibrar a parcela de aposentadorias por tempo de contribuição do RGPS seria de algo como 15% a 20%. As alíquotas cobradas são excessivas, maiores do que essas porque o INSS tem também as contas dos demais benefícios, especialmente as aposentadorias por idade, e mesmo com alíquotas bem altas ainda é deficitário. Por outro lado, na administração pública, Zylberstajn, Souza, Afonso e Flori (2006) estimam que a alíquota necessária para equilibrar o RPPS sem a implantação do teto e de um Fundo de Aposentadoria Complementar seria da ordem de 50% a 60%. Portanto, nossos sistemas cobram muito de alguns e cobram pou-
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co de outros, para fazer uma redistribuição que não é transparente e provavelmente é regressiva. Vinculação com o salário mínimo. A determinação da Constituição brasileira de que o piso dos benefícios previdenciários seja igual ao salário mínimo tem sido fonte de pressão nas contas da Previdência Social. Ocorre que a partir de 1994, com o Plano Real e o consequente controle da inflação, esse salário tem crescido em termos reais e, a cada novo reajuste, o gasto com benefícios de valor igual ao piso aumenta na mesma proporção. E mais: a cada aumento real, os benefícios de valor próximo ao do piso são "engolidos" por este e passam a ser reajustados na mesma proporção nos anos subsequentes. Hoje, aproximadamente 66% dos benefícios do RGPS têm valor igual
(1) A legislação do SAT (Seguro de Acidentes do Trabalho) foi
recentemente alterada passando a RAT (Riscos de Acidentes no Trabalho) e com a criação de dois novos conceitos: o NTEP (Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário) e o FAP (Fator Acidentário de Prevenção), cujos efeitos serão provavelmente o de aumentar mais a carga tributária sobre a folha.
Leonardo Rodrigues/e-SIM
ção definida, e para o qual tanto o funcionário como o empregador (o Estado) contribuiriam. Infelizmente, a administração Lula não teve fôlego para aprovar no Congresso a legislação que criaria esses fundos. Curiosamente, o Ministério da Previdência e Assistência Social tem exigido das administrações estaduais e municipais a criação dos respectivos fundos. É uma espécie de "Faça o que eu digo, não o que eu faço". Em síntese, nosso modelo de Previdência Social tem diversos defeitos. O mais grave é o tamanho dos gastos, mas os outros são importantes também porque o agravam. Uma reforma da Previdência teria que estabelecer como objetivos, ao mesmo tempo, a redução dos gastos, a equidade entre funcionários públicos e demais trabalhadores, a eliminação dos incentivos à informalidade e à inclusão parcial, a imposição de idade mínima, alguma limitação às pensões, a inclusão da aposentadoria rural nos programas de transferência de renda incondicionais, a diferenciação entre o ativo e o inativo, a aposentadoria complementar para o funcionário público de maneira semelhante à dos demais trabalhadores, a redução da carga sobre a folha de pagamento e a superação do problema da vinculação do piso previdenciário ao salário mínimo. Mais adiante, neste texto, será apresentado um modelo que, em princípio, contempla todos esses objetivos. Antes, porém, é preciso lembrar mais um defeito do nosso sistema: sua incapacidade de gerar poupança. Isso é feito na próxima seção. 4. Previdência, poupança e investimento
ao salário mínimo e representam aproximadamente 45% do gasto total. Isso significa que um aumento de 10% no salário mínimo implica em um aumento de 4,5% nos gastos do RGPS. Aposentadoria complementar para os funcionários públicos. O governo Lula fez importantes modificações nas regras da aposentadoria dos servidores públicos no seu primeiro ano, em 2003. A medida mais importante foi a instituição da contribuição sobre os benefícios já concedidos, alteração que quebrou um "direito adquirido", uma vez que os benefícios já tinham sido concedidos. Outra alteração importante foi o aumento da idade mínima de aposentadoria dos funcionários públicos, para 60 anos no caso dos homens e 55 anos no caso das mulheres. Embora tenha fixado a idade mínima em níveis ainda baixos quando comparados com outros países, essa medida teve impactos nos gastos, pois adiou muitas aposentadorias. Outra alteração relevante foi o estabelecimento do teto do benefício de aposentadoria e pensão nos mesmos valores do teto do INSS, para os novos funcionários. Entretanto, o texto aprovado condicionava a entrada em vigor do teto à constituição de fundos de aposentadoria complementar, que operariam no regime de contribui-
Os sistemas de Previdência Social cumprem pelo menos dois importantes papéis nas sociedades modernas. Primeiro, são mecanismos de seguro social, que oferecem proteção aos trabalhadores e aos cidadãos em geral quando estes ficam impedidos de auferir renda com seu trabalho. O segundo papel, não menos importante, é o de, desde que adequadamente desenhados, funcionar como canais de poupança e de investimento para financiar o crescimento econômico e a criação de empregos. Para entender melhor este segundo papel, é útil lembrar que existem dois modelos básicos de sistemas de aposentadoria: repartição e capitalização. O modelo de repartição funciona da seguinte maneira: estabelece uma contribuição compulsória para todos os trabalhadores participantes e seus empregadores e recolhe as contribuições em um fundo, que é repartido entre os trabalhadores inativos. O princípio e a garantia do funcionamento desse sistema é a aliança intergeracional. Os trabalhadores ativos contribuem para o fundo geral sob a promessa de que quando se aposentarem e se tornarem inativos, os novos trabalhadores que os substituirão, bem como seus empregadores, contribuirão para o fundo e garantirão seu sustento. O sistema brasileiro, tanto o RGPS como os RPPS´s, funciona sob a lógica do modelo de repartição. Os trabalhadores ativos e seus empregadores contribuem para o fundo (INSS ou cofres do Estado) e o governo reparte estas contribuições entre os inativos. A lógica do modelo de repartição ajuda a entender porque a existência tão comum no Brasil de aposentados que trabalham, ou seja, de inativos ativos, é uma contradição conceitual. O modelo exige que a dicotomia entre ativos e inativos seja respeita-
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Márcio Fernandes/AE
Como entre nós a ética da solidariedade é muito tênue, todos procuram contribuir pouco e antecipar as aposentadorias, e as regras existentes não coíbem esses comportamentos.
da. A dupla condição de ativo e inativo não faz sentido nesse modelo. Por outro lado, o seu equilíbrio financeiro e atuarial não está garantido, pois depende de diversos fatores, principalmente das mudanças demográficas que venham a ocorrer ao longo do tempo. Se por exemplo uma geração se tornar mais longeva, e não houver aumento na idade mínima e/ou no tempo mínimo de contribuição, a geração seguinte terá que recolher mais e por mais tempo, para sustentar os inativos. O outro modelo – de capitalização – segue uma lógica totalmente distinta. Os trabalhadores e seus empregadores também contribuem, mas as contribuições são recolhidas em uma conta individual, que se constitui em uma poupança do respectivo trabalhador. Quando a poupança acumulada for suficientemente grande, o trabalhador pode se aposentar e passará a viver dos rendimentos e das retiradas da sua poupança previdenciária. Em tese, esse modelo é, por definição, financeiramente equilibrado, pois o trabalhador poderá sacar apenas aquilo que conseguiu amealhar durante sua vida produtiva. Há duas diferenças importantes entre os dois modelos. A primeira se situa na dimensão dos valores e no estilo de vida que a sociedade escolhe. O sistema de repartição se baseia na solidariedade e a privilegia. Todos contribuem para um fundo coletivo, e os valores recolhidos são repartidos entre os que precisam segundo critérios que podem inclusive ser progressivos e redistributivos. Por outro lado, o sistema de capitalização privilegia o individualismo: cada um poupa para si mesmo, e o conforto na aposentadoria depende apenas do esforço individual. Solidariedade e individualismo, portanto marcam as diferenças éticas entre os dois sistemas. A outra diferença é mais pragmática e se refere aos incentivos criados em cada um. No sistema de repartição, se a ética da solidariedade não for abraçada com intensidade por toda a
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comunidade, podem surgir comportamentos oportunistas. Há um incentivo intrínseco a antecipar aposentadorias e um desincentivo a contribuir para o fundo comum. É o conhecido "efeito carona", característico de situações em que o mercado e direito de propriedade são substituídos por mecanismos administrados coletivamente. O caso brasileiro comprova esse perigo. Como entre nós a ética da solidariedade é muito tênue, todos procuram contribuir pouco e antecipar as aposentadorias, e como vimos, as regras existentes não coíbem esses comportamentos. Já no sistema de capitalização, ocorre o contrário: os indivíduos têm o incentivo a poupar muito e por muito tempo, pois essa é a única forma de garantir suas aposentadorias. Não existe "carona" nesse sistema. Em consequência, se a sociedade deseja incentivar a poupança de longo prazo, deve criar um sistema de aposentadoria no estilo capitalização. O Chile é um exemplo sempre citado de país que migrou radicalmente: de um sistema de pura repartição, semelhante ao brasileiro, passou para um sistema de pura capitalização. Muitos atribuem o vigoroso crescimento do Chile nos anos 1900 e 2000 à reforma da Previdência dos anos 1980, que dotou o país de instrumentos promotores da poupança. Se isso é verdade, não é menos verdade que após 30 anos os chilenos se depararam com um fato desconcertante: muitos cidadãos, os que constituem a base da pirâmide social e não têm capacidade de poupar porque não permanecem empregados o tempo todo, chegaram à idade de aposentadoria sem nenhuma poupança acumulada. Diante dessa realidade, o país fez nova reforma, criando benefícios não contributivos exatamente para atender aqueles que não conseguem poupar. O caso chileno ilustra muito bem a visão atual dos formuladores de políticas públicas na Previdência Social no mundo. Hoje há um reconhecimento consensual das qualidades e das
limitações dos dois sistemas e a recomendação geral é a de montar sistemas mistos, com diferentes pilares, cada um com a lógica própria. Os sistemas modernos de Previdência Social devem, ao mesmo tempo, valorizar a solidariedade e a iniciativa individual e criar incentivos para que os dois valores sejam praticados de forma harmônica. O modelo de reforma da Previdência para o Brasil, sugerido na próxima seção pretende alcançar estes objetivos.
forma de um modelo único, com regras simples e iguais para todos os brasileiros: trabalhadores assalariados do setor privado, funcionários públicos, autônomos e empregados domésticos. As regras seriam as seguintes: (a) Taxa de reposição de 100% para a base da pirâmide social: o desenho do novo sistema para os novos trabalhadores seria ajustado intencionalmente para garantir a manutenção integral da renda para quem tem renda mensal no trabalho de até R$ 1.500,00 (3). (b) Idade mínima para aposentadoria: todos os novos tra5. O novo modelo: cinco princípios e quatro pilares balhadores, tanto os homens quanto as mulheres, se aposenpara todos (2) tariam aos 65 anos. O modelo aqui proposto se baseia em cinco princípios fun(c) Tempo de contribuição: para se aposentar com o valor indamentais e se aplicaria apenas para novos trabalhadores. Os tegral do respectivo benefício previsto, todos contribuirão duprincípios são: rante pelo menos 40 anos. Pessoas que cheguem I. Universalidade: O novo sistema adota a aos 65 anos sem ter contribuído durante 40 anos ideia de universalizar benefícios, concedendopoderiam se aposentar, mas o valor do seu beO novo os sem nenhuma contrapartida e sem nenhunefício seria proporcional ao número de contrisistema, ao ma exigência, além da condição de ser cidabuições. Para as mulheres, o período mínimo de dão. Este princípio se aplicaria a apenas parte contribuição seria de 35 anos. O novo sistema recontrário do dos benefícios, com o objetivo de garantir a toconheceria a condição específica da mulher, reatual, seria dos os brasileiros um nível mínimo de renda ao duzindo a exigência de período mínimo de sua estabelecido de atingir a idade de aposentadoria. participação no mercado de trabalho. forma a garantir II. Equidade: as regras do novo sistema se(d) Quatro pilares: os novos trabalhadores que, para uma riam as mesmas para todos os participantes, teriam um sistema de aposentadoria constituíindependentemente do setor de atividade e do de quatro pilares: mesma da relação de emprego. Hoje, as regras para Pilar 1: Renda Básica do Idoso (RBI) geração, o total cada situação são diferentes e partem de Pilar 2: Benefício Contributivo por Repartiarrecadado princípios diferentes, o que gera tratamentos ção (BCR) seria igual ao mais e menos generosos e produz desigualPilar 3: Benefício Contributivo por Capitalitotal pago. dade e percepção de injustiça. O novo sistezação (BCC) ma trataria todos os novos trabalhadores sePilar 4: Benefício Contributivo Voluntário gundo as mesmas regras, inclusive os servipor Capitalização (BCVC) dores públicos, eliminando as causas da desigualdade. (e) Pilar 1: Renda Básica do Idoso – RBI. A RBI seria um beIII. Equilíbrio atuarial: O novo sistema, ao contrário do nefício universal e não contributivo. Todos os brasileiros receatual, seria estabelecido de forma a garantir que, para uma beriam sua RBI quando completassem 65 anos, independenmesma geração, o total arrecadado seria igual ao total pago. temente de terem ou não contribuído para a Previdência Social Contribuições e benefícios seriam equivalentes financeirae independentemente de sua renda. A RBI seria intransferível: mente, a taxas de desconto razoáveis. Dessa forma, uma geraa morte do beneficiário implicaria a extinção do benefício, que ção não transferiria encargos para as outras gerações. não se transformaria em pensão para o cônjuge. A RBI seria um IV. Eficiência: O novo sistema procuraria minimizar a inprograma financiado com recursos do Tesouro Nacional e adterferência no mercado de trabalho, para favorecer a deministrado pelo próprio INSS. O valor da Renda Básica do Idomanda e a oferta de trabalho formal. Para tanto, procuraria so poderia ser R$ 300,00. reduzir e equalizar alíquotas de contribuição sobre os salá(f) Pilar 2: Benefício Contributivo por Repartição – BCR. O rios, tanto as que são pagas pelos trabalhadores como as que BCR equivaleria ao atual RGPS (administrado pelo INSS), mas são pagas pelas empresas. seria estendido aos novos funcionários públicos também. Para V. Simplicidade: Finalmente, haveria um conjunto pequeno receber o BCR, o indivíduo deveria cumprir dois requisitos: de regras e estas seriam muito simples, fáceis de explicar e fáceis primeiro ter completado 65 anos e segundo, ter contribuído de entender. A comunicação do novo sistema para a massa de durante 40 anos. O valor do BCR variará entre R$ 500,00 e participantes seria facilitada com esse princípio. R$ 1.500,00. Os indivíduos que tiverem contribuído durante 40 Com base nestes princípios, o novo sistema se estabeleceria na anos sobre uma renda equivalente a R$ 500,00, receberão um
(2) O modelo aqui proposto foi inicialmente apresentado em
Zylberstajn, Zylberstajn, Afonso e Souza (2009) e 2008. (3) O valor de R$ 1.500 corresponde a aproximadamente três vezes o salário mínimo vigente em 2010. A partir desse ponto, os valores
dos benefícios sugeridos na proposta de reforma serão expressos sempre em reais, procurando colocar em prática a ideia de desvinculação entre benefícios previdenciários e salário mínimo.
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BCR de R$ 500,00. Os indivíduos que tiverem contribuído ducomplementar para os servidores públicos. Esta solução teria rante 40 anos sobre R$ 1.500,00 receberão um BCR de R$ uma vantagem adicional: como a taxa de rotatividade dos fun1.500,00. Os que tiverem contribuído sobre rendas maiores cionários públicos é praticamente nula, o volume de saques seque R$ 1.500,00 terão o BCR limitado a R$ 1.500,00. Os indivíria muito pequeno, gerando um fluxo líquido positivo por alduos que completarem 65 anos e não tiverem contribuído dugumas décadas, que ajudaria a financiar a transição para o norante 40 anos receberão um BCR proporcional ao tempo e ao vo modelo, sem necessidade de aportes. valor médio sobre o qual contribuíram. Por exemplo, para um (h) Pilar 4: Benefício Contributivo Voluntário por Capitatempo de contribuição de 20 anos sobre R$ 1.500,00, o valor do lização - BCVC: Este benefício complementa os três primeiros benefício será reduzido pela metade, ficando em R$ 750,00. Do pilares. Teria caráter voluntário e se basearia em contas indivalor do BCR, será deduzido o valor da RBI, de R$ 300,00. Desviduais capitalizadas, cujos gestores seriam escolhidos pelos sa forma, todos os indivíduos com renda de contribuição até participantes. As empresas poderiam criar planos de aposenR$ 1.500,00 terão uma taxa de reposição de 100%. O BCR será tadoria complementar mediante contas espelho às contas do um programa financiado por meio de contribuições sobre a FGTS dos seus empregados, depositando os valores em instirenda dos segurados e administrado pelo INSS. tuições de sua escolha. (g) Pilar 3: Benefício Contributivo por Capitalização BCC. Este pilar seria criado com a transformação do FGTS (FunFinanciamento do novo sistema. do de Garantia de Tempo de Serviço) simultaneamente em SePara financiar o Pilar 2 todos os novos trabalhadores contriguro-Desemprego e poupança capitalizada pabuiriam com 5% de seus rendimentos (incidinra aposentadoria. Em linhas gerais, a justificatido até o teto de R$ 1.500,00) e as empresas com va é bastante simples (4). Para propor mudanças 10% (incidindo sobre todo o salário). De acordo Reformar a nas regras de aposentadoria dos novos trabalhacom Giambiagi e Afonso (2009) e Zylberstajn, Previdência seria uma dores, é essencial levar em conta as instituições Souza, Afonso e Flori (2006) (ambos já citados na empreitada polêmica, existentes no mercado de trabalho e as restrições seção 3), a alíquota de 15% seria provavelmente e oportunidades a elas associadas. Nessa perssuficiente para equilibrar intertemporalmente gigantesca e pectiva, é necessário lembrar que existe desde o sistema, inclusive cobrindo os gastos com bedesgastante, com um 1966 um sistema de poupança compulsória da nefícios acidentários. Na verdade, a taxa de custo político para qual participam todos os trabalhadores assalaequilíbrio deveria ser permanentemente recalquem a fizer e com riados do setor formal privado, o FGTS, que é culada, pois é muito sensível a diversos fatores benefícios que administrado pela Caixa Econômica Federal. que se alteram ao longo do tempo. Hoje, com os Para se transformar num fundo de desemavanços da microssimulação, é relativamente demorariam anos ou prego e aposentadoria, as empresas continuasimples obter estimativas atualizadas de qualdécadas até serem riam a depositar 8% do salário dos empregados quer parâmetro previdenciário (5). Quanto à copercebidos. Por isso, a bertura dos benefícios acidentários, seria reconas contas do FGTS, mas os valores depositados opção pelo adiamento mendável criar um fundo separado com a finapoderiam ser sacados em apenas três situações: lidade específica de cobrir este tipo de risco, sedesemprego, aposentadoria e morte. O novo é sempre preferida. parando-o institucionalmente das contas FGTS continuaria sendo depositado nas contas referentes aos benefícios previdenciários. individuais na Caixa Econômica Federal ou em A carga de contribuições do novo sistema seria menor que a instituições privadas, de acordo com a preferência do trabalhacarga que incide sobre os trabalhadores atuais e poderia criar dor. As contas teriam portabilidade e remunerada a taxas reais e uma dualidade no mercado de trabalho, implicando em difecompetitivas, similares às taxas de títulos públicos. Hoje, o fluxo rentes níveis de encargos previdenciários. Para evitar que isso do FGTS é praticamente zerado ano a ano, pois os trabalhadores ocorresse, haveria uma contribuição adicional de 10% sobre as sacam o montante que acumularam em cada desligamento e tenempresas, incidindo sobre todo o salário, denominadas de dem a transformá-lo em consumo. O volume de saques praticacontribuição isonômica. Além de equalizar a carga de contrimente iguala o volume de depósitos. Nas nossas simulações buições dos novos trabalhadores com os atuais trabalhadores, (não apresentadas aqui), é feita a estimação do fluxo líquido poa contribuição isonômica proporcionaria receitas adicionais sitivo durante as duas primeiras décadas depois do início da repara financiar a transição do atual sistema para o novo modelo forma. Os saques por desemprego e por morte seriam menores proposto. As receitas da contribuição isonômica se juntariam que os depósitos, gerando uma poupança líquida. às receitas das contribuições dos atuais ativos e se destinariam Finalmente, o novo FGTS seria estendido aos funcionários a financiar todos os benefícios para os atuais ativos, sejam eles públicos. Dessa forma, o governo completaria a reforma de previdenciários ou não. 2003, que previa a constituição de um fundo de aposentadoria
(4) A transformação do FGTS em Seguro-Desemprego foi sugerida
por Ricardo Paes de Barros, José Marcio Camargo, José Paulo Z. Chahad e Hélio Zylberstajn ao então Ministro do Trabalho, Francisco Dornelles, em 2001. Stiglitz e Yun (2005) e Feldstein (2005, seção
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IV) defendem ideia semelhante à dos autores deste artigo. Os países desenvolvidos utilizam extensivamente a microsimulação para acompanhar o comportamento financeiro e fiscal de seus sistemas de aposentadoria. (5)
Sergio Neves/AE
O modelo proposto de aposentadorias para os novos trabalhadores tem vantagens evidentes sobre o modelo atual. Primeiro, a RBI, que é uma garantia de renda para todos os idosos, sem nenhuma restrição, exceto a idade de 65 anos. Este benefício substituiria para os novos trabalhadores os benefícios não contributivos que hoje são conhecidos como LOAS. Indivíduos que nunca contribuíram para o INSS e mesmo indivíduos que nunca trabalharam teriam direito à RBI, cuja concessão não dependeria de nenhuma comprovação exceto a apresentação do Registro de Nascimento. A decisão de conceder ou não a RBI não dependeria da boa vontade de algum agente governamental ou da intervenção de alguma instituição, como hoje ocorre no INSS. O cidadão estaria livre para exercer seu direito e obter a RBI, automaticamente. A segunda vantagem é que a RBI seria claramente definida como um benefício não contributivo, financiado com recursos do Tesouro e não com contribuições sobre a folha de salários. As contribuições dos segurados se destinariam exclusivamente a financiar os benefícios contributivos. A diferença na natureza dos benefícios (contributivos e não contributivos) implicaria a separação das respectivas fontes de financiamento (tributos gerais financiando a RBI e contribuições sobre a folha de salários financiando o BCR). A distinção conceitual e a separação das fontes de financiamento tornariam mais transparentes as contas do novo sistema previdenciário. A terceira vantagem seria a desoneração da folha de pagamentos. Ao transferir o financiamento do benefício não contributivo explicitamente para o Tesouro, reduzir-se-ia a necessidade de recursos para financiar o INSS. Ao mesmo tempo, como o benefício contributivo dos novos trabalhadores teria um teto de R$ 1.500,00, as alíquotas de contribuição incidentes sobre a renda dos segurados seriam menores do que as atuais alíquotas. Ou seja, a necessidade de recursos para financiar o INSS quando o novo sistema estivesse plenamente implantado e começar a pagar suas aposentadorias, seria sensivelmente menor do que no atual. Sendo assim, o volume de encargos previdenciários sobre a folha de salários seria menor que o atual, com impactos positivos no mercado de trabalho. Em quarto lugar, o novo sistema introduziria um grau de equidade hoje inexistente na concessão de aposentadorias. Todos os brasileiros receberiam o mesmo tratamento, até a renda de R$ 1.500,00. Seria um sistema único, nos dois primeiros pilares, para todos. Como mais de 75% dos trabalhadores se encontram nesta faixa de renda, o novo sistema preservaria para os novos trabalhadores todos os direitos prometidos pelo sistema atual e ainda asseguraria a RBI a todos, mesmo os que não trabalhassem. Com este desenho, o novo sistema seria superior, para a grande maioria dos trabalhadores. Além disso, todos os trabalhadores participariam também do terceiro pilar, e por ocasião da aposentadoria teriam um reforço na sua renda com a poupança acumulada. Os demais trabalhadores que tivessem capacidade de poupança poderiam acumular recursos por meio das contas individuais do Pilar 4 e, dessa forma, obter aposentadorias mais elevadas, na medida de suas capacidades de poupança. 6. A hora e a vez da reforma da Previdência (6) O problema da Previdência Social é reconhecido como tal desde os anos 1980, mas as sucessivas administrações não têm sido capazes de enfrentá-lo com a firmeza necessária. Reformar a Previdência seria uma empreitada polêmica, gigantesca e desgastante, com um custo político para quem a fizer e com benefícios que demorariam anos ou décadas até serem percebidos. Por isso, a opção pelo adiamento é sempre preferida. A eleição do novo presidente em 2010 oferece uma oportunidade para romper a inércia. Os 100 primeiros dias durante os quais o recém eleito goza da boa vontade da opinião pública e do Congresso são geral-
(6)
Esta seção final se baseia em Zylberstajn (2009).
Para ter uma boa chance de vencer as resistências, a reforma deve se limitar aos novos participantes.
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mente aproveitados para as iniciativas mais ousadas da nova administraç ã o . E s p e re m o s q u e a oportunidade seja aproveitada em 2011. As seções anteriores descreveram os defeitos do sistema atual e identificaram os interesses que a reforma afetaria. Sempre que se tentou reformar a Previdência, a força desses interesses aflorou e impediu avanços. Mas, pelo menos o País aprendeu com os fracassos. Hoje, sabe-se que para ter uma boa chance de vencer as resistências a reforma deve se limitar aos novos participantes. O modelo aqui proposto somente afetaria quem ainda não houvesse entrado no mercado de trabalho. Estes cidadãos, quando se tornassem trabalhadores, teriam novas regras de aposentadoria, aplicadas igualmente a todos – funcionários públicos, trabalhadores do setor privado, autônomos – sem diferenças nem privilégios. Para poder reformar a Previdência as regras dos atuais participantes seriam mantidas – mas só para eles. Com o tempo, eles se aposentariam e o mercado de trabalho seria então formado apenas pelos novos trabalhadores para os quais valeriam as novas regras, igualitárias, simples e transparentes. Olhando à frente e aproveitando o início de uma nova administração, a ideia poderia ganhar força e permitir o início da reforma. Mas, a implementação esbarraria em uma dificuldade adicional muito importante: o custo da transição. Ao criar o novo sistema e separá-lo do sistema atual, a reforma explicitaria a dívida oculta e o governo teria que se comprometer a honrá-la. Este tem sido outro grande impedimento de qualquer reforma, pois os valores envolvidos são gigantescos. Nossos cálculos apontam para um volume equivalente a um PIB, que teria que ser coberto nos próximos 30 a 40 anos (ZYLBERSTAJN, SOUZA e AFONSO, 2006). É um valor maior que a atual dívida mobiliária, que se situa no nível dos 60% do PIB. O governante que promovesse a reforma estaria multiplicando a dívida atual por quase três! Convenhamos, seria preciso muita coragem para fazer isso. Felizmente, o Brasil ganhou da Natureza uma fonte de recursos para ajudar a financiar a transição: o petróleo do Pré-sal.
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Segundo os especialistas da área, o excedente gerado pela sua exploração seria da ordem de um PIB e estes recursos jorrariam do fundo do mar durante as próximas duas ou três décadas, exatamente no período da transição, se a reforma da Previdência for feita nos próximos anos. As receitas teriam uma destinação nobre, formando o Fundo da Transição que garantiria os compromissos gerados pela reforma da Previdência. Anunciando a formação desse fundo com os recursos do Pré-sal o País daria credibilidade para a própria reforma e iniciaria um processo virtuoso, pois permitiria reduzir imediatamente os encargos sobre a folha de salários, estimulando a geração de empregos e a produção. Cabe uma menção à questão demográfica. De acordo com as estatísticas do IBGE, o Brasil está entrando no período do bônus demográfico (O Estado de S. Paulo, 03/01/2010). Assim, teremos durante as próximas décadas um contingente de pessoas em idade ativa maior do que o de crianças e idosos. Isso acontece com todas as sociedades, mas apenas uma vez. É uma oportunidade para crescer, pois haverá muitos trabalhadores e poucos dependentes. Se fizermos a reforma da Previdência agora, estaremos amplificando os efeitos
Marcelo Soares/Luz
Referências bibliográficas FELDSTEIN, M. Rethinking social security. NBER Working Paper Nº 11250, 2005.
Um novo governo tomará posse em janeiro de 2011. Se focar apenas nos novos trabalhadores, sem questionar direitos adquiridos e expectativas de direitos dos atuais trabalhadores, aposentados e pensionistas, a reforma ganhará viabilidade política.
GIAMBIAGI, Fábio e AFONSO, Luis Eduardo; Cálculo da Alíquota de Contribuição Previdenciária Atuarialmente Equilibrada – Uma Aplicação ao Caso Brasileiro; Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro v. 63 n. 2 / p. 153–179 Abr-Jun 2009 MPAS - Ministério da Previdência e Assistência Social, Anuário Estatístico da Previdência Social, em http://www.inss.gov.br/arquivos/office/3_091028191015-957.pdf. O Estado de S. Paulo, País alcança situação demográfica ideal para crescimento econômico; pg. B1, 03/01/2010. PINHEIRO, Armando Castelar e GIAMBIAGI, Fabio (orgs); in Rompendo o marasmo: a retomada do desenvolvimento no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. STIGLITZ, Joseph E. e YUN, Jungioll. Integration of Unemployment Insurance with Retirement Insurance; Journal of Public Economics vol. 89, 2005. TAFNER, Paulo; Previdência no Brasil – Debates e desafios, in Sinais Sociais – Serviço Social do Comércio – Departamento Nacional; Volume 3, No. 7, maio-agosto/2008, pg. 122-173 ZYLBERSTAJN, Hélio; SOUZA, André Portela; AFONSO, Luis Eduardo; Reforma da previdência social e custo de transição: simulando um sistema universal para o Brasil. Revista Contabilidade & Finanças, ano XVII, vol. 5, dezembro 2006.
positivos do bônus demográfico. Em conclusão, este texto procurou mostrar que o Brasil gasta muito com aposentadorias e pensões e gasta mal. Uma parcela muito grande da arrecadação está comprometida com aposentadorias e pensões, de uma maneira pouco equitativa, privilegiando alguns segmentos em detrimento da grande maioria. O sistema atual impõe uma forte carga tributária sobre a folha de salários, cria incentivos para a informalidade e o oportunismo previdenciário, não contribui para a formação de poupanças e para a expansão do emprego e da produção. Enfim, o texto procurou justificar uma reforma da Previdência Social. Ao mesmo tempo, procurou mostrar que há uma conjugação de fatores favoráveis à decisão de reformá-la. Um novo governo tomará posse em janeiro de 2011. Se focar apenas nos novos trabalhadores, sem questionar direitos adquiridos e expectativas de direitos dos atuais trabalhadores, aposentados e pensionistas, a reforma ganhará viabilidade política. O Pré-sal poderá garantir a viabilidade econômica, oferecendo recursos para financiar a transição. Os quatro pilares propostos poderão criar um novo sistema mais justo e eficiente. O Brasil precisa aproveitar esta oportunidade.
ZYLBERSTAJN, Hélio; SOUZA, André Portela; AFONSO, Luis Eduardo; FLORI, Priscilla Matias. Resultados fiscais da reforma de 2003 no sistema de previdência social brasileiro. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 36, n. Abril/2006, p. 01-38, 2006. ZYLBERSTAJN, Hélio; ZYLBERSTAJN, Eduardo, AFONSO, Luis Eduardo, SOUZA, André Portela; Uma Proposta para a Criação de um Sistema Único de Previdência Social para o Brasil; in XXXIII Encontro Nacional da Anpad, 2008, Rio de Janeiro. Anais do XXXIII Encontro da Anpad, 2008. ZYLBERSTAJN, Hélio; ZYLBERSTAJN, Eduardo, AFONSO, Luis Eduardo, SOUZA, André Portela; Uma Proposta para a Criação de um Sistema Único de Previdência Social para o Brasil; in Revista de Economia e Relações Internacionais, Vol. 8(16), 2010. ZYLBERSTAJN, Hélio; A energia para a reforma da Previdência, O Estado de São Paulo, pg. A2, 29/12/2009
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Câmbio, juros e spreads – propostas de políticas econômicas
ALFER
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Patrícia Cruz/LUZ
Joaquim Elói Cirne de Toledo PhD em Economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), foi professor da FEA-USP e diretor executivo do Banco Nossa Caixa. Atualmente, é consultor econômico-financeiro.
Resumo: Este artigo propõe um conjunto de medidas de política econômica, que tem como objetivo depreciar a taxa real de câmbio, reduzir a taxa básica de juros e reduzir os spreads de crédito. O objetivo último que se busca é o desenvolvimento econômico equilibrado, isto é, com crescimento, melhor distribuição de renda e riqueza, e estabilidade de preços. Defende-se aqui a visão de que uma taxa real de câmbio (relativamente) depreciada e menores custos de capital induzirão, não apenas ao crescimento do estoque de capital, mas também ao progresso técnico, especialmente pela emulação e difusão de técnicas e tecnologias já conhecidas em outros países. Entre as várias medidas propostas, destacam-se: políticas fiscais restritivas; redução, ao longo do tempo, do estoque da dívida pública líquida, através da maximização dos superávits primários; redução dos encargos fiscais sobre a folha de pagamento; instituição de royalties significativamente mais elevados sobre toda a produção mineral; instituição de impostos (como a CIDE) sobre a produção de minerais brutos, com alíquotas decrescentes ao longo do tempo; maior liberalização da legislação cambial, viabilizando maiores investimentos de brasileiros no exterior; reforço nas estruturas legais de defesa da concorrência; implantação de sistemas de cadastro positivo; imposição de limites legais (razoáveis) para taxas de juros para consumidores; ação do Banco Central para coibir, através de persuasão, spreads excessivos; e forte atuação de bancos públicos na concessão de crédito às micro e pequenas empresas, sem a imposição de restrições individualmente estabelecidas sobre os potenciais demandantes de crédito, agindo como verdadeiros garantidores da liquidez desse segmento empresarial.
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Diego Padgurschi/Folha Imagem
Introdução
E
ste artigo não pretende inovar e nem avançar a fronteira do conhecimento de política econômica. Apresenta-se aqui a visão do autor sobre relações entre variáveis econômicas, e sobre políticas adequadas para obter três resultados que merecem ser objetivos de política econômica na atual situação do Brasil: depreciação da taxa real de câmbio, redução da taxa básica (real) de juros e redução dos spreads de crédito. O referencial básico de análise enfatiza o papel dos mercados de ativos, a determinação endógena e correlacionada da taxa real de câmbio e dos salários reais, e a determinação das taxas de juros (e de suas expectativas) em função do objetivo buscado pela autoridade monetária – o de estabilidade de uma (baixa) taxa de inflação. A atenção dedicada à taxa de câmbio e ao custo de capital está fundamentada na relevância dessas duas variáveis para o desenvolvimento econômico equilibrado, isto é, com crescimento, melhor distribuição de renda e riqueza, e estabilidade de preços. Defende-se aqui a visão de que uma taxa real de câmbio (relativamente) depreciada, e menores custos de capital, induzirão não apenas ao crescimento do estoque de capital, mas ao progresso técnico, especialmente pela emulação e difusão de técnicas e tecnologias já conhecidas em outros países O texto a seguir foi dividido em sete seções. A primeira inclui breves considerações sobre investimento e poupança, temas centrais do conjunto de artigos em que este se insere. A segunda, a quarta e a sexta seções tratam dos fatores determinantes, no Brasil, da taxa de câmbio, da taxa básica de juros e dos spreads de crédito, respectivamente. A terceira, a quinta e a sétima seções incluem sugestões de políticas para depreciar a taxa de câmbio e reduzir a taxa básica de juros e os spreads de crédito, também respectivamente.
humano"), e o progresso técnico. Como o investimento nada mais é do que a construção, produção e instalação de novos equipamentos, veículos, infraestrutura, imóveis etc., seu nível depende das condições de oferta de tais ativos físicos reproduzíveis. Um aumento no preço de mercado desses ativos, devido à maior demanda, estimulará um aumento no volume e quantidade ofertados. Contrariamente, aumentos nos preços dos "fatores de produção" e nos impostos dos setores produtores de bens de capital reduzem sua oferta e, logo, deprimem o investimento. O preço de mercado de um ativo real reproduzível depende, entre outros fatores, das taxas de retorno de ativos alternativos na decisão de alocação de portfólio dos agentes econômicos. Entre essas taxas, uma das mais relevantes é a taxa de retorno dos títulos públicos, que depende da política monetária seguida pelo Banco Central, tanto no presente, como no futuro (conforme prevista pelos agentes econômicos), e da política fiscal. Além da evolução da taxa básica de juros, também é de fundamental importância o custo do crédito para o setor privado e, por isso, o nível dos spreads bancários praticados. Paulo Pampolin/Hype
1. Investimento e Poupança 1.1. Investimento 1.2. Poupança O nível de investimento em ativos físicos (a Formação Bruta de Capital Físico – FBCF) não é o único determinante da capacidade de crescimento viável da economia, mas é sem dúvida um dos mais importantes. Também são fundamentais o crescimento da força de trabalho, seu grau de educação e treinamento (o "capital
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A definição econômica de poupança é simples: é a parcela da renda (bruta) de um agente econômico que não é consumida. Esta referência à renda "bruta", acima, é devida ao fato de que não são considerados os valores de eventuais depreciações, amortizações e exaustões
A definição econômica de poupança é simples: é a parcela da renda (bruta) de um agente econômico que não é consumida.
de recursos naturais. A "renda", aqui, não inclui ganhos ou perdas de capital. Há três fontes de poupança, conforme as características do poupador: a poupança privada, a pública e a externa. A poupança privada engloba aquela realizada pelas famílias e pelas empresas. A das famílias é a diferença entre seu fluxo de renda (descontados os impostos diretos) e seu fluxo de consumo, inclusive impostos indiretos. A das empresas é o seu fluxo de lucros líquidos retidos – ou seja, já descontadas eventuais distribuições de lucros – somados às depreciações e amortizações do período. Como no caso das famílias, eventuais ganhos ou perdas de capital sobre ativos não são considerados, pois não fazem parte do PIB. A poupança pública é a diferença entre a receita líquida do governo e seus gastos correntes (o consumo público). A receita líquida do governo é igual à receita bruta, menos as transferências ao setor privado (aposentadorias, pensões, benefícios assistenciais, subsídios, juros sobre a dívida pública etc.). A poupança externa é o déficit na Balança de Transações Correntes do País, que é a soma da balança comercial, da balança de serviços e das transferências unilaterais (doações internacionais, remessas de migrantes etc.). A poupança privada pode ser afetada pela estrutura tributária, como no caso das isenções fiscais para aplicações em previdência complementar. As evidências empíricas internacionais indicam que não há relação entre o nível de poupança propriamente definido das famílias e a taxa real de juros da economia. Por outro lado, existe sim o efeito esperado entre juros e a aquisição ("consumo") de bens duráveis, que na realidade representa um investimento das famílias. Em geral, ressalte-se, a principal fonte de poupança privada não é a poupança das famílias, mas os lucros retidos do setor empresarial. Os mais importantes fatores que determinam o nível de poupança privada em uma economia são: seu nível e perfil de distribuição de renda; a cultura e os costumes sociais (como a aversão ao consumismo, a busca de melhor situação econômica através da acumulação de ativos, a aversão ao risco de perda de renda etc.);
a estrutura, a abrangência, a sofisticação e a garantia de esquemas de previdência pública e privada; e a estrutura, a abrangência, a sofisticação e o tamanho da indústria de seguros. Em geral, esquemas públicos e/ou privados de previdência em bases correntes, ou seja, sem acumulação, tendem a reduzir a taxa de poupança privada. A razão é absolutamente simples: a poupança de um grupo – os que pagam as contribuições – é compensada pela "despoupança" (a "poupança negativa") do grupo que recebe os benefícios. Estes últimos não geram renda econômica, mas consomem – ou seja, têm uma "despoupança". Os graus de garantia e de "generosidade" (nível de cobertura) dos esquemas de previdência pública e/ou privados também são fatores importantes para a determinação do nível de poupança privada. Esquemas de benefício definido incentivam menos a poupança do que os de contribuição definida, pois os participantes desses últimos precisam se proteger de seus riscos intrínsecos (como a baixa rentabilidade das reservas previdenciárias, o aumento na expectativa de sobrevida etc.). A indústria de seguros também é um fator determinante da poupança privada, devido à necessidade de acumulação de reservas atuariais. Tal acumulação significa que os segurados deixam de consumir para pagar os prêmios de seguros; o valor da acumulação de reservas pelas seguradoras é equivalente a lucros retidos, pois esse valor não pode ser distribuído e, logo, não pode ser consumido pelos acionistas das seguradoras. 2. Fatores determinantes da taxa de câmbio no Brasil A taxa de câmbio é o preço relativo de um ativo, a moeda nacional. Por outro lado, a taxa de câmbio real é o preço relativo (abstraindo-se impostos) de dois conjuntos de bens e serviços na economia, tradeables e non-tradeables, que são aqueles efetiva ou potencialmente transacionáveis ou não com o exterior. Tal preço relativo é um dos determinantes dos fluxos de comércio internacional de bens e serviços e, logo, dos saldos na Balança de Transações Correntes. A análise da taxa de câmbio, portanto, requer a integração do comportamento de estoques e fluxos, e não pode prescindir da incorporação explícita de suas dinâmicas (ou seja, de suas evoluções ao longo do tempo), bem como do papel fundamental das expectativas. A taxa (real) de câmbio em um dado momento, e seu caminho ao longo do tempo, dependem
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também das expectativas de desenvolvimento futuro de novas e significativas fontes de exportações e/ou substituição de importações (como no caso do petróleo no pré-sal), da evolução da produtividade, das políticas econômicas e da situação de equilíbrio (steady state) previstas para o futuro. O equilíbrio de "steady state" é a situação da balança de transações correntes que eventualmente terá que prevalecer para garantir que a economia não seguirá uma trajetória de acumulação explosiva de passivos externos, ou seja, um "jogo Ponzi". No caso brasileiro, os fluxos da Balança de Transações Correntes são fortemente dependentes dos mercados internacionais de commodities. A alocação de portfólio, por sua vez, como em qualquer economia, depende das rentabilidades relativas dos ativos (incluindo variações de seus preços, ou seja, ganhos e perdas de capital), de seus riscos, e de eventuais restrições à liberdade de decisão dos agentes econômicos. Como os mercados de ativos são mais organizados, transparentes e ágeis do que os mercados de bens e serviços e o mercado de trabalho, a taxa de câmbio prevalecente é sempre aquela determinada pelo equilíbrio nos mercados de ativos. Se essa taxa não for simultaneamente aquela que equilibra os mercados de bens e serviços, e o mercado de trabalho, surgirão pressões sobre os preços nominais e sobre os salários nominais. 2.1. Preços internacionais de commodities (1) Há um vasto e extremamente convincente conjunto de evidências que mostram a estreita correlação entre os preços internacionais de commodities e a taxa real de câmbio no Brasil. Quando as commodities se valorizam, também se aprecia a taxa real de câmbio. A relação é facilmente explicada pelo grande peso das commodities na pauta de exportações brasileira. Se adotada uma conceituação ampla de commodities, incluindo certos produtos manufaturados (como siderúrgicos), sua proporção nas exportações totais brasileiras pode superar três quartos. Além disso, o Brasil exporta manufaturados para países que também são dependentes da exportação de commodities. Dado o peso do Brasil na produção mundial de commodities – especialmente metálicas e agrícolas –, bem como o longo prazo de maturação de investimentos para ampliar a produção das commo-
(1)
dities minerais, é natural que se observe a forte correlação descrita. A elevada competitividade relativa do setor brasileiro de commodities (especialmente minerais), junto com a perspectiva de manutenção de preços internacionais elevados, tem determinado uma taxa de câmbio apreciada demais para viabilizar o crescimento e diversificação de outros setores produtores de tradeables. Tendo em vista que essas commodities são recursos não renováveis, geradores de renda econômica pura, há um claro caso a favor de sua tributação (através de royalties e impostos específicos). 2.2. Alocação de portfólio e fluxos de capitais Fluxos de capitais podem ser atraídos ao País em resposta a três variáveis: a percepção de risco do Brasil (como mensurado, por exemplo, pelo spread de rentabilidade, o chamado "risco Brasil"); a taxa de juros; e, finalmente, a expectativa de lucros e, especialmente, de ganhos de capital de investimentos internos. A correlação entre a taxa real de câmbio e cada uma dessas variáveis é intuitiva: o real se aprecia com menor risco, maior taxa de juros e maior expectativa de lucros e ganhos de capital. 2.3. Alocação de portfólio e reservas externas A acumulação de reservas externas pelo Banco Central pode afetar o comportamento da taxa real de câmbio. Expansão das reservas, em função de sua aquisição no mercado, induz à depreciação do real, ou tende a minorar uma tendência de apreciação.
O conceito de commodities adotado neste artigo é mais abrangente que o usual, incluindo também os minérios em geral.
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Fábio Morra/AE
A razão para esse efeito é o fato de que a acumulação de reservas tem como contrapartida necessária a expansão da dívida pública interna. No processo, os agentes econômicos reduzem a proporção de ativos externos (ou aumentam a proporção de passivos externos) em seus portfólios, ao mesmo tempo em que se expande a proporção de títulos públicos denominados em reais. Como essas duas classes de ativos não são equivalentes, como é óbvio, a alteração na alocação de portfólio afeta seus preços relativos, ou seja, a taxa de câmbio. 3. Políticas para depreciar a taxa de câmbio
Quando as commodities se valorizam, também se aprecia a taxa real de câmbio. A relação é facilmente explicada pelo grande peso das commodities na pauta de exportações brasileira.
Antes de mais nada, é preciso analisar, ainda que brevemente, se a depreciação da taxa real de câmbio é efetivamente um objetivo adequado hoje, no Brasil. Afinal, há trade-offs relevantes, refletindo a necessidade de escolher entre duas situações que se opõem na busca de um resultado desejável, e que devem ser explicitamente considerados. Primeiro, há os efeitos negativos da depreciação cambial, basicamente dois: aceleração inflacionária e redução dos salários reais, num processo que depende também das condições da demanda agregada no momento em que a depreciação ocorre. Como mostram as políticas cambiais populistas há muito adotadas na América Latina, e como mostram abundantemente as experiências de estabilização com âncora cambial, a apreciação da taxa real de câmbio tem como contrapartida um aumento no poder de compra dos salários. Inversamente, a depreciação reduz os salários reais. Por outro lado, tanto em função da queda nos saPablo de Sousa/Luz
lários reais – que gera pressões trabalhistas por aumentos nominais de salários, que pressionam custos e preços –, como diretamente, a depreciação tende a acelerar a taxa de inflação (mais sobre esta questão a seguir). Os efeitos positivos da depreciação cambial também são dois. Primeiro, ela tende a melhorar a Balança Comercial, e a de alguns serviços e, dessa forma, a Balança de Transações Correntes. Como consequência, tende a cair o "risco Brasil", ou seja, cai o custo de capital. Segundo, amplia-se a produção de tradeables na economia (exportáveis e concorrentes de importações), com geração de empregos na sua cadeia produtiva. Ademais, os setores correspondentes, devido à necessidade de competição internacional, são importantes absorvedores e difusores de avanços técnicos, induzindo a ganhos de produtividade em toda a economia. A ocorrência simultânea de efeitos positivos e negativos (trade offs) pode ser administrada seguindo a regra de alocação de instrumentos a objetivos. Assim, os dois efeitos negativos da depreciação podem ser compensados ou, pelo menos, minimizados, através de outras medidas de política econômica. As pressões inflacionárias podem ser combatidas com medidas de política fiscal restritiva. A redução dos salários reais – que levaria não apenas à inflação, mas a um menor nível de atividade e emprego – pode ser compensada através de alterações na estrutura tributária. Aqui, a principal recomendação seria a redução dos encargos fiscais sobre a folha de pagamentos. As seguintes medidas, então, poderiam ser adotadas para induzir à depreciação da taxa real de câmbio: políticas fiscais restritivas; redução dos encargos fiscais sobre a folha de pagamento; acumulação de reservas externas pelo Banco Central (BACEN), levando-se em conta custos e benefícios; aumento da volatilidade da taxa de câmbio, pelo BACEN (aumenta o risco dos passivos externos); redução da rentabilidade de aplicações de capitais de estrangeiros no Brasil, incluindo: imposto sobre Operações Financeiras (IOF) no ingresso de recursos estrangeiros para aplicação no mercado financeiro e de capitais, com atenção para as formas em que essa entrada pode ser disfarçada de modo a contornar a tributação, retenção compulsória (quarentena), sem remuneração e por período determinado, dos recursos internados (já convertidos em reais), e incidência de Imposto de Renda (IR) na fonte sobre toda e qualquer remuneração auferida no Brasil, inclusive e particularmente ganhos de capital; instituição de
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Eduardo Knapp/Folha Imagem
O objetivo de "taxa de juros mínima viável de longo prazo" não conflita, por hipótese, com a estabilidade de preços.
royalties permanentes sobre toda a produção mineral; instituição de impostos do tipo da Contribuição de Intervenção sobre o Domínio Econômico (CIDE) sobre a produção de minerais brutos, sendo que essa tributação, para induzir à depreciação cambial, deveria ter as seguintes características: alíquotas e prazos de duração suficientes para afetar o mercado cambial via expectativas (lembrando-se que a taxa de câmbio é o preço de um ativo), transitoriedade pré-anunciada e rigorosamente obedecida, para induzir à postergação de produção e exportações, e alíquotas decrescentes no tempo, até a eliminação total, também pré-anunciadas, para reforçar a indução à postergação de exportações (aumentando o lucro da postergação, pela menor tributação futura), com cuidado para evitar a migração para outros países de novos investimentos na prospecção e exploração de recursos minerais; maior liberalização das regras cambiais, viabilizando maiores investimentos de brasileiros no exterior, inclusive
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fundos de pensão; adoção de estruturas tributárias que, na medida do possível, não penalizem a produção de bens e serviços exportáveis, vis-à-vis os que competem com importações; e restrições ao financiamento de importações de bens e serviços de consumo. 4. Fatores determinantes da taxa de juros 4.1. Objetivos da política monetária O principal objetivo da política monetária é a estabilidade de preços ou, mais apropriadamente, a estabilidade de uma taxa "módica" de inflação. No caso específico do Brasil, o Banco Central declara explicitamente que esse é seu único objetivo. Os estatutos legais de criação do Federal Reserve System (Fed), o banco central dos Estados Unidos, estabeleceram três objetivos simultâneos: estabilidade de preços, pleno emprego e taxa de juros mínima viável de longo prazo. Apesar da possível interpretação de que a existência desses múltiplos objetivos poderia implicar em incompatibilidades, tal não ocorre efetivamente. De fato, o objetivo de pleno emprego – na visão dos economistas em geral – é equivalente ao objetivo de estabilidade de preços: o pleno emprego é definido como "os níveis de atividade e emprego que geram estabilidade de preços" (2). O objetivo de "taxa de juros mínima viável de longo prazo" não conflita, por hipótese, com a estabilidade de preços (daí a qua-
Na literatura acadêmica em inglês, o pleno emprego é identificado como NAIRU – Non Accelerating Inflation Rate of Unemployment.
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lificação de "viável"). A racionalização desse objetivo está na minimização do prêmio de risco da taxa de juros de longo prazo. A minimização desse prêmio de risco é conseguida através da prática de políticas monetárias previsíveis e de baixa volatilidade, que minimizam a variância dos preços dos títulos de longo prazo e, portanto, de suas taxas de retorno. Outros arranjos e combinações de objetivos da política monetária podem ser observados em outros países, inclusive com relação às taxas de câmbio. Assim como no caso do Fed, porém, o resultado da prática de política monetária é generalizadamente o mesmo: busca-se obter a estabilidade de preços e minimizar a volatilidade (e, portanto, os prêmios de risco) nos mercados de títulos públicos. A conclusão, assim, é que as taxas básicas de juros praticadas por um Banco Central em geral independem da existência ou não de objetivos adicionais, além da estabilidade de preços. 4.2. Regime de metas de inflação Não há evidências conclusivas de que o regime de metas de inflação seja por si mesmo um fator totalmente determinante da taxa básica de juros em países onde a política Dida Sampaio/AE monetária é orientada por tal regime, desde que haja um histórico por tempo razoável de inflação módica e um claro compromisso do sistema político de manter o controle inflacionário, como já é a situação brasileira. Seja qual for o regime de política monetária adotado por um Banco Central, por outro lado, a taxa básica de juros será sim afetada transitoriamente por uma mudança na meta de inflação (explícita ou implícita). Em particular, se o Banco Central adotar e perseguir ativamente uma meta de inflação inferior à meta prevalecente e, especialmente, inferior às taxas de inflação corrente e prevista para o futuro próximo, a taxa básica de juros terá que ser mais alta, em média, do que seria se a meta não fosse alterada. Assim, durante um certo período de tempo, e de forma transitória, o Banco Central tentará provocar uma elevação nas taxas reais de juros, de modo a desestimular o investimento e a aquisição de bens de consumo duráveis privados e, então, reduzir a demanda agregada e o nível de atividade na economia. A maior ociosidade e o maior desemprego deveriam, em tese, provocar a redução da taxa de inflação. Tendo em vista que a redução da taxa de inflação só poderá ser obtida com defasagens e à custa de uma redução nos níveis de investimento e de consumo privados, e da atividade econômica, e de um aumento do desemprego – ou seja, terá elevados custos sociais e econômicos – essa redução só será justificável quando a inflação, por si só, apresentar elevados custos. Tal não ocorre quando a taxa de inflação é razoavelmente baixa e estável, como é o caso na atual situação da economia brasileira.
4.3. Política Fiscal Os efeitos da política fiscal sobre a taxa básica de juros são indiretos, e se dão através da reação do Banco Central e das expectativas que os agentes econômicos formam com referência a tal reação. Basicamente, o que é relevante é a caracterização da política fiscal com respeito a seus impactos adicionais sobre o nível de demanda agregada na economia: expansiva ou restritiva. Se a política fiscal estimula positivamente a demanda agregada na economia, ela é considerada como "expansiva", no caso contrário, é "restritiva". Se medidas de política fiscal com efeito líquido expansivo forem adotadas e/ou forem previstas para o futuro, o Banco Central reagirá (imediatamente ou ao longo do tempo) praticando taxas básicas de juros suSeja qual for o periores às que deregime de política terminaria, na aumonetária adotado sência daquelas mepor um Banco didas. O Banco CenCentral, por outro tral, assim, agirá de lado, a taxa tal forma que qualbásica de juros quer estímulo adiserá sim afetada cional de demanda transitoriamente produzido pela popor uma mudança lítica fiscal (ou por na meta de inflação qualquer outro fa(explícita ou tor) terá como conimplícita). Na foto, trapartida uma políHenrique Meirelles, tica monetária mepresidente do BC. nos expansiva (ou mais restritiva). A política fiscal será (mais) expansiva nos seguintes casos: aumentos nos gastos públicos, incluindo tanto os correntes (consumo do governo) como os de investimento, e menor tributação líquida, seja por menor arrecadação de impostos (tributação bruta), seja por aumento nas transferências ao setor privado (aposentadorias, pensões, subsídios, benefícios sociais, e juros reais sobre a dívida pública). Além desses casos básicos, outras combinações de variações nos gastos e na tributação líquida também podem ter efeito expansivo sobre a demanda agregada na economia. O exemplo clássico é o de um aumento nos gastos, acompanhado de um aumento (um pouco) maior na tributação líquida. Dependendo de suas dimensões, tais medidas podem ser
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Bobby Yip/Reuters
expansivas, apesar de reduzirem o déficit público. Este é um exemplo que mostra por que não é apropriado relacionar sem maiores qualificações o déficit público (primário, real ou nominal) às taxas de juros básicas praticadas pelo Banco Central. 4.4. Dívida Pública A relação entre o tamanho relativo da dívida pública (líquida) e a política monetária se dá através de seus efeitos sobre os mercados de ativos. Se a dívida pública (líquida) aumentar, sem que o Banco Central suba as taxas de juros básicas, os mercados dos chamados ativos reais serão pressionados, devido à tentativa dos agentes econômicos de manter a diversificação de seus portfólios. Em consequência, haverá um excesso de demanda incipiente sobre esses ativos, determinando um aumento compensatório em seus preços. O aumento nos preços dos ativos reais reproduzíveis (como imóveis, equipamentos, veículos etc.) estimulará sua produção – ou seja, o investimento, a Formação Bruta de Capital Fixo. Como o investimento é um importante componente da demanda agregada, o resultado final será também seu aumento. Além disso, o aumento da dívida pública, também devido à tentativa de diversificação, poderá gerar depreciação da taxa de câmbio, que é o preço dos ativos externos da economia. Além do efeito direto sobre a inflação, nesse caso, haverá também o efeito indireto sobre os níveis de salário real. Como a depreciação da taxa real de câmbio reduz os salários reais, haverá uma pressão dos trabalhadores por aumentos nos salários nominais, pressionando custos e preços. Em ambos os casos – maior demanda e depreciação – haverá o risco de pressões inflacionárias. Para evitá-las, o Banco Central irá praticar uma política monetária mais restritiva. Assim, o aumento da dívida pública induz o Banco Central a adotar juros mais elevados. 4.5. Poupança interna Em geral, quanto maior for a poupança total, menor será a taxa real de juros de equilíbrio da economia – ou seja, a taxa real de juros compatível com estabilidade da taxa de inflação. Um aumento da poupança agregada nada mais é do que uma queda na demanda agregada na economia, abrindo espaço para uma menor taxa real de juros – que irá estimular o investimento privado mantendo-se a estabilidade da taxa de inflação. 4.6. Eficiência sistêmica da economia nacional O grau de eficiência do sistema econômico nacional como um todo é um importante fator na determinação do nível de atividade viável, para um dado conjunto de fatores de produção. A eficiência sistêmica depende, entre outros fatores, da existência de um sistema de preços não distorcedor, da estrutura tributária, da estrutura legal e judicial, da abrangência dos "mercados", da qualidade da infraestrutura (especialmente de transportes), e do grau de integração regional e setorial. Quanto maior for a eficiência sistêmica, maior também será a capacidade produtiva efetiva. Isso reduz a necessidade de conter a demanda agregada para evitar pressões inflacionárias e, logo, viabiliza a adoção de políticas monetárias menos restritivas (ou seja, de menores taxas básicas de juros).
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4.7. Grau de concorrência na economia Quanto maior o grau de concorrência na economia, menor será o poder de mercado médio das empresas e, logo, também menor o mark up. A contrapartida lógica de menores mark ups são maiores níveis de salário real efetivamente observados. Para um dado nível de atividade econômica e de emprego (e de desemprego), como já se argumentou extensivamente, maiores salários reais reduzem a pressão por aumentos nominais de salários. Como consequência, também se reduzem as pressões de custos e de preços, diminuindo a necessidade de políticas econômicas restritivas para controlar a inflação. A eficiência sistêmica da economia também depende do grau de concorrência. Quanto maior
maiores salários nominais e gerando inflação direta e indiretamente: no primeiro caso, porque certos salários são também preços (como em serviços, por exemplo); no segundo, porque salários são custos e, quando aumentam de forma generalizada, afetando toda a estrutura produtiva, afetam os preços dos produtos de forma significativa. Como se viu, para evitar tais pressões inflacionárias, o Banco Central irá adotar uma política monetária mais restritiva, ou seja, irá praticar juros básicos (reais) mais elevados. Deve-se enfatizar os resultados finais dessa cadeia de causalidade, que são o menor nível de atividade econômica e, logo, o maior desemprego. A inflação só irá se estabilizar quando a atividade econômica for suficientemente menor, e o desemprego maior, para desestimular no grau necessário as pressões dos trabalhadores por aumentos nominais de salários, apesar de seu menor poder de compra. Em resumo, uma taxa real de câmbio depreciada tem como contrapartida menores níveis de salário real, emprego, e atividade econômica, enquanto a taxa real de juros é mais alta. Os setores de tradeables da economia (exportadores efetivos ou potenciais, e os que competem com importações) são beneficiados, claro, mas o preço é pago pelo conjunto da economia, se não forem adotadas políticas compensatórias. 4.9. Risco relativo dos ativos financeiros As decisões de alocação de portfólio pelos agentes econômicos dependem, entre outros fatores, de seus graus relativos de risco e de suas taxas de rentabilidade previstas. Uma redução no grau de risco das aplicações em títulos públicos aumenta sua atratividade e, portanto, sua demanda. Há um excesso de demanda pelos títulos e, em contrapartida, excesso de oferta de ativos reais e/ou ativos externos. Como consequência, os preços dos ativos reais reproduzíveis tendem a cair, e a taxa de câmbio tende a se apreciar. Como já se argumentou (vide seção 4.4), isso reduz as pressões inflacionárias na economia, viabilizando menores taxas básicas de juros. De modo contrário, medidas que aumentem o risco das aplicações em títulos públicos acabam por gerar pressões inflacionárias e, por isso, levam a taxas básicas de juros mais elevadas. for o grau de concorrência, maior será a eficiência do sistema de preços e, portanto, também da alocação de recursos na economia. A conclusão, assim, é que a defesa da concorrência acaba por viabilizar maior eficiência, menores mark ups, maiores níveis de salários reais, menores pressões inflacionárias e, portanto, viabilizam a adoção de menores taxas básicas de juros pelo Banco Central. 4.8. Taxa real de câmbio e salário real Como já argumentado acima, o nível da taxa real de câmbio também é um fator determinante da política monetária, ou seja, da taxa básica de juros. Em resumo, quanto menor o poder de compra externo da moeda (uma taxa real de câmbio depreciada), menor também o poder de compra dos salários, levando a pressões por
4.10. A questão da remuneração dos depósitos de poupança A existência de uma taxa fixa de juros para depósitos de poupança pode se tornar um problema, quando houver a expectativa de a taxa básica de juros tornar-se inferior a ela e, pior ainda, se isso efetivamente acontecer. Nesse caso, se o sistema financeiro for obrigado a aceitar depósitos de poupança de qualquer valor, sua taxa de juros se transformará no piso do custo de funding, determinando um dos componentes fundamentais do custo do crédito para indivíduos e empresas, e levando a distorções na captação e alocação de recursos financeiros, particularmente no sistema financeiro brasileiro, onde os da poupança se destinam a finalidades específicas, como o financiamento de habitações. Além disso, a remuneração dos depósitos de poupança também afeta a alocação de portfólio pelos agentes econômicos. Como os depósitos de poupança são vistos como aplicações de baixo risco, sua remuneração líquida será a principal taxa de retorno alternativa às taxas dos ativos reais. Nesse caso, reduções na taxa básica de juros (dos títulos públicos) não estimularão uma realocação de portfólio a favor dos ativos reais.
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A conclusão, assim, é que, em tal situação a política monetária (ou seja, as taxas básicas de juros) terá grandemente prejudicada sua capacidade de controle sobre a economia. 5. Políticas para redução da taxa básica de juros A análise precedente dos fatores determinantes da taxa básica de juros indica as políticas que são mais adequadas para obter sua minimização: política fiscal restritiva, com redução de gastos correntes e racionalização de subsídios; elevação dos royalties sobre recursos não renováveis, ajudando a financiar a desoneração da folha de pagamentos – como se trata de tributação sobre renda econômica pura, os royalties não são distorcedores (são neutros relativamente à alocação de recursos), aumentando a eficiência econômica sistêmica em geral; redução, ao longo do tempo, do estoque da dívida pública líquida, através da maximização dos superávits primários; adoção exclusiva de esquemas de previdência complementar do tipo de contribuição definida, ao invés de benefício definido; incentivos à postergação das aposentadorias; manutenção do regime de metas de inflação; prática da política monetária sem "surpresas" desnecessárias, minimizando a volatilidade do elenco de taxas de juros (de curto, médio e longo prazos); redução de incertezas legais e jurídicas, inclusive por meio da clara definição de marcos regulatórios (rule of law); investimentos públicos em infraestrutura, em educação fundamental, e em avanço e difusão técnica; reforço nas estruturas legais de defesa da concorrência; e redução paulatina da taxa fixa de juros de remuneração dos depósitos de poupança, mantendo porém regras uniformes de remuneração para todos os depositantes, em todas as instituições depositárias.
6.1.4. Spread IOF/crédito É o valor do IOF sobre operações de crédito, cujas alíquotas variam em função das características do tomador, da destinação do crédito, e do prazo. 6.1.5. Spread de crédito É a diferença entre o custo total do crédito para o tomador, e a soma da taxa Selic/CDI (o Choi Bu-Seok/Reuters
6. Fatores determinantes dos spreads de crédito 6.1. Conceituação de spreads Há diversos tipos de spreads financeiros, muitas vezes confundidos no debate público sobre a composição do custo de capital no Brasil. Para efeito metodológico, conceituam-se aqui seis spreads: de aplicação, da contribuição ao Fundo Garantidor de Créditos (FGC), de funding, de IOF sobre operações de crédito (IOF/crédito), de crédito e o total (a soma dos anteriores). Ressalte-se que o BACEN considera apenas o spread total em seus estudos sobre o tema, sem explicitar esta decomposição. 6.1.1. Spread de aplicação É a diferença entre o rendimento bruto e o rendimento líquido recebidos pelo aplicador. É composto apenas por dois impostos: a) IOF, para aplicações de prazo abaixo de 30 dias; e b) IR na fonte sobre o rendimento do aplicador (já descontado o eventual IOF), com alíquotas decrescentes conforme o prazo da aplicação. 6.1.2. Spread FGC É o valor da contribuição, pela instituição depositária, ao FGC, que representa um seguro de depósitos. Não há contribuição (nem cobertura) para depósitos de entes ligados à instituição depositária. 6.1.3. Spread de funding É a diferença entre a taxa de juros básica (Selic/CDI), e o custo total de captação pelo banco. O custo total de captação é a soma do rendimento bruto do aplicador, mais o spread FGC. O spread de funding é a rentabilidade do "produto" depósito, para a instituição depositária.
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custo de oportunidade dos recursos) e o spread IOF/crédito. O spread de crédito é a remuneração bruta (ou seja, antes do custo de inadimplência) da operação de crédito, para a instituição financeira. O spread de crédito será o único a ser analisado em mais detalhe, a seguir, por ser o mais relevante na composição do custo de capital.
6.2. Spread de crédito: fatores determinantes Fundamentalmente, há quatro fatores que determinam os spreads de crédito: o custo de inadimplência (ou seja, o valor médio esperado da inadimplência), o prêmio de risco de inadimplência (o risco, aqui, pode ser medido pela variância, ou pela insegurança/incerteza, do custo de inadimplência), o custo de alocação de capital pelas regras de Basileia e o poder de mercado.
das características do setor, e das características específicas do tomador de crédito (tamanho, grau de alavancagem etc.). A proporção da perda, ocorrendo o default, depende da existência e qualidade das garantias, da certeza e enforcement de contratos, e da agilidade jurídica. 6.2.2. Prêmio de risco da inadimplência Depende da variância e do grau de insegurança (incerteza) sobre a inadimplência efetiva. Depende da existência e qualidade das informações cadastrais, incluindo avaliações de comportamento (behavior scores) e cadastros positivos. Também depende da volatilidade das taxas de inadimplência, ao longo do tempo. 6.2.3. Custo de alocação de capital Pelas regras dos acordos de Basileia, as instituições financeiras são obrigadas a manter níveis de capital (grosso modo, o patrimônio líquido) que dependem do volume de crédito e de suas características. O custo dessa alocação de capital depende de duas coisas: da efetiva escassez de capital da instituição financeira (ou seja, se é um binding constraint) e do custo de oportunidade da alocação de capital (a rentabilidade esperada em aplicações alternativas, que competem na alocação de capital). 6.2.4. Poder de mercado
6.2.1. Custo de inadimplência Esse custo depende da probabilidade de um cliente ficar inadimplente, e do valor efetivamente perdido, ocorrendo a inadimplência. A probabilidade de default (inadimplência) depende do ambiente macroeconômico (especialmente, da fase do ciclo econômico),
Quanto maior for o poder de mercado de um produtor/ofertante de bens ou serviços, naturalmente maiores serão suas margens de lucro (mark ups). De modo semelhante, quanto maior for o poder de mercado das instituições financeiras, maiores serão os spreads de crédito. O poder de mercado existe no crédito quando uma ou mais das condições abaixo está presente: há um monopólio; há cartelização; a indústria bancária tem uma (ou poucas) grandes instituições, e muitas pequenas, surgindo a estrutura de mercado de "líderes e seguidores"; e a curva de demanda é negativamente inclinada para cada um e todos os ofertantes, devido a custos e dificuldades diversas para os clientes mudarem de instituição (switching costs). Estrita imposição de leis e procedimentos de defesa da concorrência é a recomendação óbvia para os três primeiros casos. O último caso, devido a switching costs, caracteriza uma estrutura de mercado de concorrência monopolística. Nessa situação, não há qualquer tipo de conluio entre os ofertantes, que são muitos e estão dispostos a competir livremente no mercado. O problema é a falta de resposta do tomador de crédito, que não premia as instituições que reduzirem seus spreads, nem penaliza as que os elevarem. A falta de resposta (significativa) da coletividade dos tomadores de crédito é devida à existência de múltiplos e significativos custos de mudança. Os clientes podem estar presos a uma instituição onde têm "domicílio bancário" (por exemplo, na condição de fornecedores ou trabalhadores pagos por seus contratantes por meio de instituições bancárias que caracterizam esse "domicílio"). A mudança de banco pode ser trabalhosa e trazer custos adicionais, no caso de débitos autorizados de contas. O mais importante custo de mudança, porém, é devido à não existência de disponibilidade de informações confiáveis e de qualidade sobre o risco de crédito do cliente. Na ausência dessas informações, um cliente não obtém boas condições de crédito (volume, prazo, taxas etc.) em uma nova instituição, enquanto não tiver um longo track record que permita à instituição conhecê-lo. A inexistência de cadastros positivos, é claro, é o principal determinante para este tipo de situação. A falta de informações abrangentes e confiáveis também gera poder de mercado, frente às micro, pequenas e médias empresas. Mesmo sendo já cliente de
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Márcia Foletto/Ag. O Globo
mais de uma instituição, o cliente não tem liberdade efetiva de escolha, devido à prática bancária de restringir os limites de crédito (nenhuma instituição quer ser o único ou mesmo o principal banco a emprestar a um de seus clientes). O problema, aqui, está na falta de balanços e outros documentos contábeis confiáveis que o tomador deveria oferecer, e na fragilidade de garantias (como no caso de duplicatas descontadas que "viram pó", pois seu emitente entra em acordo com o sacado para receber diretamente o valor devido, mesmo depois de descontar o papel numa instituição financeira). 6.3. Depósitos compulsórios No sistema brasileiro, os depósitos compulsórios podem ser realizados em títulos públicos (através de sua vinculação ao Banco Central), ou "em espécie" (efetivamente, depósitos junto ao Banco Central). No caso de títulos, como é óbvio, os depósitos compulsórios são remunerados pela própria rentabilidade dos títulos. Os depósitos em espécie podem ser ou não remunerados. No caso da poupança, são remunerados pelas mesmas regras dos depósitos de poupança. Nos demais casos de depósitos em espécie remunerados, a taxa de remuneração é a Selic Referencial. Os únicos depósitos compulsórios não remunerados são os correspondentes aos depósitos à vista e assemelhados, nas alíquotas normais. Em geral, a existência de depósitos compulsórios remunerados só afeta os spreads de funding, pois induzem os bancos a reduzir a remuneração bruta (explícita ou implícita, como reciprocidades) paga aos aplicadores. No caso específico dos depósitos compulsórios sobre depósitos a prazo, se e quando afetam as pequenas e médias instituições, geram um aumento nos seus custos de funding. O efeito, nesse caso, é a redução da competitividade dessas instituições, levando ao aumento do poder de mercado das demais e, logo, ao aumento dos spreads de crédito em geral. 6.4. Regulamentação direta e quedas-de-braço As características específicas do sistema financeiro justificam um grau diferenciado de regulamentação e intervenção estatal. Entre outras regulamentações cabíveis, está a fixação de tetos para os spreads bancários. Um caso clássico de regulamentação e dos problemas da sua ausência é o empréstimo a consumidores, nos EUA. A esmagadora maioria
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dos estados nos EUA tem leis de proteção aos consumidores, com regras antiusura que definem as taxas máximas de juros legais (em geral, em torno de 40% a.a). Aproveitando-se da existência de alguns estados sem essas leis, e da abertura dos mercados bancários para instituições de outros estados, surgiram financeiras que operavam com pay day loans, o equivalente (subdesenvolvido...) do crédito consignado brasileiro (o cliente autoriza o débito automático, eletrônico, no dia do pagamento de seu salário). Muitas dessas instituições induziam os clientes à "escravidão de dívida", oferecendo o primeiro crédito a custo zero. Como o prazo é extremamente curto (15 dias), na renovação o cliente passava a pagar as "módicas" taxas usuais – de "apenas" 17,5% por quinzena, ou seja, mais de 5000% ao ano! Quanto o autor deste artigo era estudante nos EUA (anos 70 e 80), na região da Nova Inglaterra, a taxa máxima legal de juros para cartões de crédito era de 1,5% a.m.. Além de limites legais para juros, também há casos de "persuasão moral" (ou quedas-de-braço). Há alguns anos, este autor foi informado pelo presidente de um banco estrangeiro atuante no Brasil que, em seu país, sem nenhum estatuto legal que o apoie, o banco central "avisa" os bancos locais que o spread máximo permitido é de apenas 1% a.a.. 7. Políticas para redução dos spreads de crédito A análise dos fatores determinantes dos spreads de crédito, e a análise de instituições para ampliar a concessão de crédito para o segmento de micro e pequenas empresas, sugerem o seguinte conjunto de políticas. 7.1. Políticas gerais Arcabouço institucional que melhore a qualidade de garantias, particularmente recebíveis, simplificando seu registro e o processo de adjudicação
A evolução do mercado de financiamento de veículos no Brasil ilustra qual poderia e deveria ser o papel dos bancos públicos comerciais. No passado, apesar da garantia oferecida (os próprios veículos), os spreads de crédito eram extremamente elevados. Com a entrada nesse mercado dos bancos e financeiras de montadoras, os spreads desabaram. Os demais bancos comerciais (não ligados a montadoras) seguiram as taxas definidas por aqueles que assumiram o papel de líderes. Em um caso recentemente relatado a este autor, a mera entrada em operação do banco de uma empresa do setor de veículos foi suficiente para determinar a redução das taxas de juros em cerca de 30%. No caso de micro e pequenas empresas, é preciso duplicar esta experiência. Os bancos públicos (com as características citadas) deveriam agir sem restrições individuais a tomadores de crédito, calibrando os spreads de crédito para compensar o custo efetivo de inadimplência do segmento, cobrir custos e obter um lucro "normal". Com tal oferta "garantida" de crédito, os bancos públicos seriam verdadeiros "emprestadores de última instância" para o segmento, garantindo-se, assim, que não haveria crises de liquidez/crédito generalizadas no segmento de micro e pequenas empresas. Com essa garantia implícita e a atuação como líderes de preço, pelos bancos públicos, o sistema bancário em geral operaria sem problemas com o segmento, seguindo a mesma evolução do caso do financiamento de veículos. 7.3. Fundos de aval
em caso de inadimplência; implantação de sistemas de cadastro positivo; maior fiscalização da qualidade de demonstrativos contábeis, criminalizando a prática de fraude; padronização e simplificação de produtos, serviços e procedimentos bancários, reduzindo os custos de mudança; eliminação de depósitos compulsórios sobre depósitos a prazo, para bancos que não façam parte do grupo das dez maiores instituições; imposição de limites legais (razoáveis) para taxas de juros para consumidores; e ação do Banco Central para coibir (através de persuasão) spreads excessivos. 7.2. Bancos públicos É amplamente defendido que há um papel específico para os bancos públicos comerciais no financiamento de micro/pequenas empresas. Esse papel, no entanto, só pode ser efetivamente desempenhado por instituições com três características simultâneas: controle estatal, gestão não orientada exclusivamente para a maximização/otimização de lucros, e não operar através de repasses para outras instituições, mas sim diretamente com os tomadores de crédito, através de uma grande rede, viabilizando operações pulverizadas.
Em geral, os fundos de aval existentes cobrem no máximo 80% das perdas, exigindo assim que os bancos retenham uma parcela significativa do risco (nesse exemplo, 20%), e impõem limites ao total de perda efetiva coberta pelos fundos. Tais regras são necessárias para evitar fraudes, com o conluio do banco e do tomador de crédito. A consequência, porém, é que não se elimina o problema da escassez de crédito para o segmento de pequenas e médias empresas: a inadimplência é uma variável do tipo sim/não; a perda dada a presença de inadimplência (loss given default) em geral alcança 100% nesse segmento; portanto, para uma instituição financeira, conceder crédito a ele, com fundo de aval, equivale a uma aquisição de títulos públicos (na proporção de 80%), mais uma concessão de crédito normal (20%), sem aval, mas com spread. Isso não elimina em nenhuma medida os problemas de incerteza, fragilidade de liquidez, ausência de garantias etc.. Logo, o crédito continua escasso. Para serem eficientes, fundos de aval e seguros de crédito para o segmento de micro e pequenas empresas teriam de mimetizar o comportamento acima sugerido para os bancos públicos: cobertura integral (100%), parâmetros uniformes para concessão de crédito (como percentual do faturamento, proporção de overcollateral em desconto de recebíveis etc.), prêmio de seguro dado pela inadimplência média do segmento (mais um prêmio adicional fixo, para formar um colchão de reserva para períodos de inadimplência extraordinária), e spread de crédito homogêneo entre setores, regiões e devedores. Seria necessária uma estrutura de incentivos diferenciada para as instituições que concedessem os créditos, tendo em vista a cobertura integral (que poderia induzir a fraudes). A estrutura de remuneração dos bancos não poderia desestimular a concessão de crédito – logo, não pode depender da minimização da taxa de inadimplência e/ou das perdas efetivas, em caso de inadimplência. Duas possibilidades seriam possíveis: a) taxa de administração paga sobre o estoque total de crédito (equivalente a um spread fixo para o banco); b) tarifas por contrato de concessão de crédito, pagas pelos clientes. São também necessários incentivos para minimizar fraudes por conluio. Uma estrutura possível seria uma remuneração adicional para a instituição financeira, inversamente proporcional à participação de créditos inadimplentes com "zero" de parcelas pagas (que é um típico indicador de operações fraudulentas).
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O Brasil precisa completar a revolução das telecomunicações
ALFER
Milton Mansilha/Luz
Ethevaldo Siqueira Jornalista, escritor e consultor nas áreas de Telecomunicações, Tecnologia da Informação e Economia Digital. Colunista do jornal O Estado de S. Paulo e da Rádio CBN (programa Mundo Digital), fundou e dirigiu a Revista RNT (Revista Nacional de Telecomunicações (de 1979 até abril de 2001); foi professor de Telecomunicações e Tecnologia da Informação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), de 1988 a 1996.
Resumo Este artigo faz um retrato do passado e do presente das telecomunicações brasileiras, e sugere providências para que o País retome a revolução setorial iniciada em 1995 e interrompida praticamente a partir da morte do ex-ministro Sérgio Motta. A privatização da Telebrás, ocorrida em 1998, deu frutos surpreendentes. Investimentos privados da ordem de R$ 180 bilhões, em 11 anos, permitiram que Brasil saltasse de uma densidade franciscana de apenas 14 para os atuais 107 telefones por 100 habitantes, que podem caracterizar a efetiva universalização da telefonia. O total de celulares em serviço, que era de apenas 5,2 milhões em julho de 1998, superou os 170 milhões em dezembro de 2009, dando ao Brasil a quinta posição entre os maiores mercados de celulares no mundo. Esses números mostram, no entanto, apenas uma face das telecomunicações, pois há graves problemas a serem resolvidos e riscos a serem evitados. O mais sério deles é, de longe, a legislação brasileira setorial, que se transformou ao longo de décadas em uma verdadeira colcha de retalhos, incoerente e contraditória, dispondo de apenas uma lei razoavelmente moderna (a Lei Geral de Telecomunicações ou LGT). Ao final de sua análise, o artigo sugere as seguintes medidas ao Presidente da República que for escolhido na eleição deste ano: - Aprimorar o modelo institucional privatizado das Comunicações como um todo, harmonizando-o e promovendo seu reordenamento jurídico, sem desfigurá-lo; - Estimular o investimento privado no setor; - Reduzir significativamente a carga fiscal absurda (média nacional de 43%) que onera todos os serviços de telecomunicações, inclusive os novos serviços de banda larga; - Profissionalizar e fortalecer a Anatel, como agência reguladora; estimular a competição entre as prestadoras de serviço; - Formular políticas públicas e criar condições para a inclusão digital, a começar pela elaboração de um plano nacional de banda larga baseado em parcerias público-privadas, isentando ou reduzindo a tributação desses novos serviços; - Fortalecer a indústria nacional; - Cuidar da melhoria permanente da qualidade dos serviços e do atendimento ao usuário; - Escolher e prestigiar um ministro das Comunicações competente, probo e comprometido com o desenvolvimento setorial; - Abandonar totalmente a ideia anacrônica de reativação da Telebrás e/ou criação de uma estatal para cuidar da universalização da banda larga e, por fim: - Fazer com que o Estado cumpra da melhor forma possível o papel estatal de regulação e fiscalização.
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Malcolm Fife/Folhapress
Serão 200 milhões de celulares em operação no País em 2010.
1. Visão geral
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e início, cabe ressaltar a enorme importância das telecomunicações. É um setor integrado à fronteira dinâmica dos desenvolvimentos tecnológicos, com papel fundamental no provimento de informações e facilidades de comunicação entre pessoas, governos, empresas e outras organizações. Disso decorrem amplos desdobramentos educacionais, culturais e sobre a produtividade individual e organizacional, com reflexos na competitividade nacional, entre outros aspectos. Investimentos no aprimoramento desse setor são assim cruciais para permitir o desenvolvimento de outros, integrado que está em praticamente todas as cadeias produtivas dos demais setores e ramos de atividade. Dada essa importância econômica, o uso intenso que faz de tecnologias de ponta e a rápida evolução dessas tecnologias, o setor de telecomunicações é universalmente objeto de forte regulamentação governamental. Nessas condições, este artigo confere particular atenção às formas pelas quais essa regulamentação define especificamente o perfil do setor e também à
maneira com que é afetado por outras políticas públicas de alcance mais geral, como é o caso da tributária. A privatização das telecomunicações ocorrida em 1998 deu frutos surpreendentes. Investimentos privados da ordem de R$ 180 bilhões, em 11 anos, permitiram que Brasil saltasse de uma densidade franciscana de apenas 14 para os atuais 107 telefones por 100 habitantes, que podem caracterizar a efetiva universalização da telefonia. O total de celulares em serviço, que era de apenas 5,2 milhões em julho de 1998, superou os 170 milhões em dezembro de 2009, dando ao Brasil a quinta posição entre os maiores mercado de celulares no mundo, só atrás da China, Estados Unidos, Índia e Rússia. O número de celulares em serviço no País deverá quebrar a barreira dos 200 milhões, ainda em 2010, segundo as previsões mais conservadoras. Esses resultados tão positivos decorreram, também, da adoção de novas tecnologias – em especial com digitalização e a convergência de serviços. Graças à nova infraestrutura implantada nesse período, o número de usuários da internet saltou de pouco mais de 2 milhões para mais de 60 milhões no final de 2009. O número de usuários da banda larga, praticamente desconhecida em 1998, é hoje de 12 milhões – o que ainda está bem aquém da média dos países mais desenvolvidos.
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É claro, portanto, que há muita coisa a ser feita, em especial na qualidade do atendimento dos usuários, no aumento da competição, na modernização da legislação, na desoneração fiscal dos serviços, na fixação de novos critérios e novas metas de universalização. A proposta central deste artigo é fazer a avaliação do passado e do presente das telecomunicações, e propor as medidas que parecem mais adequadas e oportunas para assegurar o desenvolvimento continuado e sustentável das telecomunicações e dar ao setor tudo que falta, e que deveria ser prioritário para o próximo Presidente da República O texto do artigo abrange mais quatro seções. A segunda apresenta um retrospecto do setor desde o seu período estatal (19621994), seguido por uma fase de transição entre esse modelo e a privatização (1995-1998), e de um outro período em que a privatização foi consolidada. A terceira seção ocupa-se do modelo resultante, mostrando a sua evolução até os dias atuais. A quarta identifica várias carências do setor em sua atual configuração. A quinta apresenta as conclusões da análise, e sugere um conjunto de políticas públicas que o próximo governo federal deveria adotar para que essas carências fossem atendidas, levando ao aprimoramento do setor em seus aspectos institucionais e operacionais. 2. Retrospecto histórico Para traçar um retrato abrangente das telecomunicações brasileiras, é essencial que façamos uma retrospectiva histórica, ainda que de forma sucinta, dos três períodos bem definidos em que ela se divide: a) Períodoestatal,quevaidesde1962a1994,ecujomodeloinstitucional foi estabelecido, principalmente, por duas leis: o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117, de 1962) e pela lei que criou a Telebrás (Lei 5.792, de 1972); b) Período de transição, que vai de 1995 a 1998, durante o qual ocorreu profunda reestruturação setorial e culminou com a privatização do Sistema Telebrás. c) Período privatizado, de 1998 até hoje, cujos resultados e desafios analisamos com maior profundidade para os objetivos deste artigo. 2.a - Período estatal – 1962-1994 A primeira formulação clara e ambiciosa de uma política nacional para as telecomunicações nasce, praticamente, com a Lei 4.117 de 27 de agosto de 1962, conhecida também pelo nome de Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), que definiu o papel do Estado no setor e coordenou meios e fins para que o Brasil vencesse o extremo atraso em que se encontrava na metade da década de 1960. O País tinha, então, menos de 2 telefones por 100 habitantes. Embora votada pelo Congresso e promulgada em 1962, num momento de intensa agitação política no Brasil, no período governamental do presidente João Goulart, o Código só começou a produzir efeitos significativos a partir 1965, por decisão do regime militar implantado em 1964, com a criação da Embratel (Empresa Brasileira de Telecomunicações), como primeira grande empresa estatal responsável pela infraestrutura de comunica-
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ções de longa distância, nacionais e internacionais. Além da Embratel, o Código também possibilitou a criação do Contel (Conselho Nacional de Telecomunicações), entidade que, nos primeiros anos, exerceu praticamente o papel de um ministério setorial, já que o Ministério das Comunicações só seria criado pelo Decreto-Lei 200, de fevereiro de 1967, do então presidente Castello Branco. Nessa primeira etapa do modelo estatal, de 1965 a 1972, teve grande significado o trabalho da Embratel, tanto do ponto de vista econômico como alavanca do desenvolvimento setorial, pois aquela nova empresa implantou em apenas 7 anos um sistema básico de micro-ondas que interligou todos os Estados por rotas de micro-ondas de alta capacidade. Entre os modernos serviços que aquela operadora de serviços de longa distância passou a oferecer, destacam-se a discagem direta a distância (DDD) nacional, a partir de 1969, e a discagem direta internacional (DDI), que conectou o Brasil ao mundo via satélite e via novos cabos submarinos, a partir de 1975. Até 1972, além da correção adequada das tarifas, o governo federal passou a destinar a totalidade dos recursos do antigo FNT (Fundo Nacional de Telecomunicações) aos investimentos em obras de infraestrutura da Embratel. Esse fundo era uma sobretarifa de 30%, que incidia sobre todos os serviços de telecomunicações e teTelefone castiçal (1910) ve grande importância para a decolagem das telecomunicações no final dos anos 1960 e começo dos anos 70. A partir de 1972, a gestão do fundo passou para as mãos da Telebrás e, de 1975 em diante, para a antiga Secretaria do Planejamento (Seplan). Vale ressaltar nesse período o excelente trabalho profissional da Embratel, em seus primeiros 15 anos de existência, de 1965 a 1980. A holding Telebrás – Para reestruturar a telefonia brasileira, o governo militar do presidente Emílio Médici criou a Telebrás, em novembro de 1972, para exercer o papel de empresa holding controladora das operadoras estaduais (as Teles). Em sua fase inicial, de 1972 a 1985, a Telebrás foi bem administrada, investia adequadamente, em grande parte porque teve como presidentes profissionais competentes, especialistas respeitados como o comandante Euclides Quandt de Oliveira e o general José Antônio de Alencastro e Silva. Nesses 13 anos iniciais, a Telebrás realizou admirável trabalho de implantação da infraestrutrura setorial. O primeiro grande desafio enfrentado pela Telebrás foi consolidar e integrar as mais de 900 pequenas empresas operadoras e serviços telefônicos municipais que atuavam no Brasil até 1972. A maior empresa operadora da época era a CTB (Companhia Telefônica Brasileira). A grande maioria delas era formada de serviços telefônicos municipais obsoletos, muitos até sem conexão de longa distância. Essas operadoras maiores – CTB e CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações) – já haviam sido nacionalizadas antes de 1967. Depois de incorporadas, aquelas 900 pequenas empresas operadoras foram reagrupadas e deram origem às 27 subsidiá-
políticos, quase sempre menos capazes, como tem ocorrido tradicionalmente na maioria das empresas estatais brasileiras. O quadro dramático: 1990-94 – Além de enfrentar diversas restrições de ordem administrativa, o Sistema Telebrás passa a sofrer drástica redução dos investimentos, nos sucessivos cortes e confisTelefone "pé-de-ferro" cos de seus recursos determida Ericsson-Suécia (1892) nados pelo governo federal, em especial no período 19901994. Entre esses problemas estavam a proibição de empréstimos e a subscrição compulsória de títulos do governo, atrasos sistemáticos na autorização para o lançamento de debêntures, protelações sucessivas nas permissões para a captação de recursos no exterior (como, por exemplo, dos recursos de ADRs), além de outras intromissões descabidas na administração daquelas que já haviam sido as melhores estatais do País. A penúria de linhas telefônicas fazia explodir os preços no mercado paralelo, no final do governo Itamar Franco, em 1993 e 1994. No bairro de Alphaville, no município de Barueri, na Grande São Paulo, uma linha telefônica para uso empresarial chegava a ser vendida em 1991 por 10 mil dólares. Na capital paulista e em dezenas de outras grandes cidades brasileiras, um telefone residencial chegava a custar o equivalente a 5 mil ou 7 mil dólares. O congestionamento dos serviços passou a comprometer a qualidade, nas maiores cidades brasileiras. As chamadas locais, quando completadas, sofriam todo tipo de interferência, ruídos e problemas de linhas cruzadas. As ligações de longa distância enfrentavam congestionamento crescente, depois das 10 horas da manhã ou entre 3 e 6 da tarde. Os grandes usuários – como bancos, corporações internacionais, companhias aéreas e empresas de serviço – não dispunham de serviços mais avançados nem de redes digitais de alta velocidade. Qual seria o preço para o País desse profundo atraso de suas telecomunicações? O congestionamento e a baixa qualidade dos serviços de telecomunicações reduziam a competitividade, afetavam diretamente o abastecimento, as exportações, o volume de negócios e agravavam o chamado custo Brasil. Em dezembro de 1984, o FNT foi transformado em Imposto sobre Serviços de Comunicações (ISSC). Na verdade, foi extinto sem ter tido nenhuma aplicação direta no setor nos 12 anos anteriores. Com a Constituição de 1988, outra mudança: o ISSC é substituído pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e recolhido em favor dos Estados e municípios, com alíquotas muito elevadas, que chegam a mais de 40% do valor dos serviços telefônicos. Essa supertributação dos serviços de telecomunicações persiste ainda em 2010. As novas gerações não se lembram mais da escassez de telefones nem dos carnês do famigerado Plano de Expansão, em que o cidadão tinha de "comprar" uma linha telefônica, subsFotos: Pablo de Sousa/Luz
rias da Telebrás (as Teles), uma por unidade da Federação, como Telerj, Telesp, Telepar, Telemig e outras. Sobreviveram como empresas estaduais ou privadas, e não foram incorporadas ao Sistema Telebrás, a Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT), controlada pelo governo gaúcho; a Companhia Telefônica Melhoramentos Resistência (CTMR), concessionária controlada pela Prefeitura Municipal de Pelotas (RS); e duas empresas privadas que usavam a sigla CTBC: Companhia de Telefones do Brasil Central, no Triângulo Mineiro; e a Companhia Telefônica da Borda do Campo, no ABC paulista, ou seja, na Grande São Paulo. Raízes da crise estatal – O sistema estatal de telecomunicações começou a enfrentar problemas mais sérios a partir de 1985, ano em que o FNT passou a ser praticamente confiscado pelo Tesouro Nacional. A saída do general José Antonio de Alencastro e Silva da presidência da holding, depois de 11 anos à frente da empresa, abre espaço para a politização e desprofissionalização, não apenas da diretoria da Telebrás, mas também das diretorias de suas 27 subsidiárias. O País passou a investir cada vez menos na expansão das telecomunicações, pois o sistema estatal se descapitalizava diante do enxugamento sucessivo dos superávits operacionais (lucro) da Telebrás, para cobrir déficits do Tesouro Nacional. Agravam-se, então, dois dos maiores problemas do monopólio estatal, quais sejam: - Descompasso crescente entre a oferta e a demanda de linhas teTelefone automático lefônicas e de novos serviços; - Redução acelerada da capaci- de mesa da Standart Electrica (anos 50) dade de investimento do Sistema Telebrás, fazendo baixar os índices de expansão a níveis absolutamente insuficientes. Aliás, essa descapitalização das estatais era consequência, na verdade, de um procedimento perverso do governo em relação às suas melhores empresas. A partir de 1970, para reduzir os crônicos déficits de caixa do Tesouro Nacional, o governo federal passou a confiscar os superávits das empresas estatais mais rentáveis, reduzindo-lhes drasticamente a capacidade de investimento. Entre as vítimas dessa ação predatória, além da Telebrás, estavam empresas como Vale do Rio Doce, Petrobras, Volta Redonda (CSN), Embraer, Embrapa, Eletrobrás, Instituto de Resseguros e Banco do Brasil, para ficar apenas nas maiores. As telecomunicações entraram, então, em profunda crise, especialmente a partir da metade da década de 1990. É nesse período que o represamento da demanda alcança seu nível máximo. A politização e a desprofissionalização da gestão da Telebrás e de suas subsidiárias reflete-se até na defasagem extrema dos novos serviços, como telefonia celular, comunicação de dados, serviços telemáticos, redes de valor agregado e outros. Os problemas das telecomunicações no Brasil de então não decorrem de uma suposta falta de dirigentes competentes e de bons profissionais. Com a interferência política crescente na gestão em cada uma dessas empresas, os executivos e profissionais mais competentes acabavam sendo, sistematicamente, alijados dos cargos de direção, e eram substituídos por apadrinhados
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crevendo ações da Telebrás e pagando tudo em 24 suaves prestelecomunicações brasileiras. Foi o que ocorre com a posse do tações mensais. A linha só seria instalada em prazo "médio" de presidente Fernando Henrique Cardoso, em janeiro de 1995, e, 24 meses, o que nem sempre acontecia. em especial, de seu ministro das Comunicações, Sérgio Motta. Exemplo eloquente dos atrasos nos planos de expansão haCom a perspectiva histórica de pouco mais de 10 anos, já povia ocorrido em São Paulo entre 1984 e 1990, quando mais de demos afirmar que foram as decisões centrais da política setorial 400 mil pessoas só receberam seu telefone em prazos superioredefinidas por Sérgio Motta que mudaram radicalmente o quares a quatro anos. E, curiosamente, diante desse quadro, os dedro dramático das telecomunicações em vigor no final de 1994. O fensores tradicionais do monopólio estatal não erguem suas próprio presidente Fernando Henrique Cardoso talvez não puvozes contra todos os abusos e males do modelo, nem se preodesse prever o alcance de médio e longo prazo de sua escolha e de cupam com os problemas dessa massa de cidadãos burlados tudo que aquele homem poderia realizar à frente de um Minisem seus direitos. Poucos eram os que realmente apontavam o tério até então sem perspectivas e usado apenas como moeda de monopólio estatal como causa central de todos os problemas. troca nas barganhas partidárias. Sérgio Motta, no entanto, muAs centenas de milhares de cidadãos que pagavam seus pladou para sempre a face das telecomunicações no País. nos de expansão e não recebiam seus telefones não tinham Ao tomar posse como ministro das Comunicações, Sérgio apoio nem de sindicatos, nem de partidos de oposição, nem seMotta não tinha sequer tomado a decisão de privatizar totalmenquer de Procons. Só em casos raros e isolados, a Justiça, confite o setor. Sua primeira preocupação foi fazer o grande diagnósgurando o estelionato, acabava dando alguma sentença em fatico setorial e conhecer o que havia de melhor no mundo em mavor dos usuários prejudicados, obrigando as téria de legislação e modelos institucionais de teoperadoras do Sistema Telebrás a instalar em lecomunicações. Nesse sentido, dois meses deCom a perspectiva uma semana o telefone residencial ou comercial pois de sua posse, ele encarregou três assessores histórica de pouco mais comprado há alguns anos e não entregue. de viajar à Europa, aos Estados Unidos e ao Japão Nesse quadro, o telefone torna-se privilégio para fazer um levantamento das principais legisde 10 anos, já podemos de apenas 8,5% da população. A demanda nalações existentes nessas regiões do mundo. afirmar que foram as cional represada chega a mais de 20 milhões de A primeira grande carência das telecomunidecisões centrais linhas telefônicas no final de 1994. cações brasileiras era de ordem tecnológica. Até da política setorial 1992, com a vigência da reserva de mercado no redefinidas por Sérgio 2.b - Período de Transição campo da informática e do monopólio estatal (1995-1998) das telecomunicações, o Brasil ia ficando à marMotta que mudaram A grande lição do período estatal que ficou gem da revolução tecnológica. O percentual de radicalmente o quadro para o País foi a da incompetência governalinhas telefônicas digitais era dos mais baixos. dramático das mental em gerir grandes empresas de serviço O Brasil caminhava na contramão do muntelecomunicações em nas áreas de alta tecnologia como a das telecodo. Desde a década de 1980, a maioria dos paívigor no final de 1994. municações. Além disso, o governo federal deses desenvolvidos revia os velhos modelos monstrou, durante décadas, que não sabia admonopolistas, abrindo a cada dia maiores esministrar tarifas públicas. A interferência de paços à privatização e a competição nas telecointeresses político-partidários criava todo tipo de distorção. municações, impelido por três fatores poderosos – a revolução Estudos conduzidos na época pela própria Telebrás mostratecnológica, o processo de globalização e a queda progressiva vam que as tarifas telefônicas vigentes no início dos segundo de barreiras comerciais. Não se tratava de neoliberalismo, cosemestre de 1994 equivaliam a apenas 18% de seu valor real em mo acusava a esquerda. Essa onda de reformas iniciada nos janeiro de 1975. Uma assinatura mensal de telefonia residenanos de 1980 na Grã–Bretanha e nos Estados Unidos chega às cial local correspondia a apenas R$ 0,61. Em contrapartida, os Américas nos anos de 1990, como resposta à necessidade de interurbanos tinham preços excessivamente elevados. atualização de modelos e infraestruturas. E pior: no início dos anos 1990, os novos assinantes eram Aqui, como em todo o mundo, a reestruturação do modelo obrigados a pagar o equivalente a mais de US$ 3 mil para asinstitucional tinha como principal objetivo o atendimento da segurar o direito ao uso de uma linha telefônica. Mesmo com a demanda, a universalização, a modernização das infraestruredução ocorrida na metade da década, esse valor de autofituras, o aumento da produtividade geral e setorial e sua adenanciamento ainda superava US$ 1 mil. O confisco sistemático quação às profundas mudanças do mercado, bem como às exidos superávits operacionais do Sistema Telebrás pelo governo gências dos consumidores. federal acabou por descapitalizar o setor. Nesse cenário, a eficiência dos serviços de telecomunicações Na telefonia, o modelo estatal se assemelhava a um clube tornava-se fator essencial de competitividade, tanto para a indúsfechado, em que se pagava uma taxa milionária para ingrestria altamente consumidora de informação como, consequentesar e, depois, lá dentro, uma taxa mensal de manutenção mimente, para os próprios mercados em que elas se inseriam. Era núscula e simbólica. urgente para o Brasil criar condições para que as tecnologias da O cenário mundial de 1995 – Após a avaliação completa do informação e das comunicações pudessem efetivamente contriquadro setorial vigente no final de 1994, era natural que um nobuir para mudar, para melhor, a vida das pessoas. vo governo, com maior força e liberdade para introduzir muSérgio Motta compreende bem a importância desse momendanças e fazer reformas, considerasse a hipótese de privatizar as to e proclama enfaticamente: "o Brasil tem pressa". Com energia
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Gustavo Miranda/ O Globo
e entusiasmo, envia o projeto de emencado privado os serviços celulares da da constitucional propondo o fim do Banda B, além dos serviços via satélite, monopólio estatal previsto no Artigo 21 serviços limitados, trunking, paging, da Constituição. A emenda é aprovada redes corporativas; pelo Congresso em menos de seis meses - Lei Geral de Telecomunicações de discussões, eliminando para sempre (LGT), aprovada pelo Congresso Nao monopólio estatal exercido principalcional, definindo as linhas gerais do mente pela Telebrás. novo modelo institucional e criando a Em seguida, o Congresso aprova a Lei Agência Reguladora independente; Mínima, que permite a abertura do mer- Agência Nacional de Telecomunicado de telefonia celular à competição, cações (Anatel), agência reguladora do com a introdução de novas operadoras, setor, criada pela LGT e instalada no dia na chamada Banda B. 5 de novembro de 1997; Para dar novos rumos institucionais - Privatização do Sistema Telebrás, ao setor, o Congresso aprova a Lei Geocorrida em leilão realizado em 29 de ral de Telecomunicações (LGT) – uma julho de 1998; das mais completas e modernas do - Implementação da competição, inimundo – cujo modelo vai muito além cialmente, pelo modelo do duopólio, da privatização das empresas operacom a outorga de licenças a empresasdoras. A nova lei cria condições para a espelho, ou seja, empresas competidocompetição, transfere a maioria das ras que passam a operar em cada uma Sérgio Motta, ministro das atribuições do Ministério das Comunidas áreas de concessão das antigas opeComunicações de FHC, comandou o cações à Anatel, uma agência regularadoras do Sistema Telebrás. processo de privatização do setor. dora especializada e independente. O - Abrir novos espaços à competição, País se prepara para a modernidade. à medida que se vão alcançando as meA Lei Geral se transformou, então, tas de universalização; em um dos instrumentos essenciais para que o Brasil alcanças- Abertura total à competição a partir de 2002. se seus novos objetivos. Por outras palavras, era necessário Para surpresa dos incrédulos, as metas setoriais não apenas que o arcabouço regulatório de telecomunicações evoluísse de iam sendo cumpridas, mas eram ultrapassadas ao longo dos modo a colocar o usuário em primeiro lugar, conferindo-lhe liúltimos 11 anos (1998-2009). berdade de escolha e assegurando-lhe serviços de alta qualiA Lei Geral de Telecomunicações, de 1997, previra a criação dade, a preços acessíveis. Como demonstrava a experiência da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), autarquia mundial recente, isso só seria possível em um ambiente que esespecial denominada órgão regulador, com relativa indepentimulasse a competição dinâmica, garantisse a separação entre dência, que deveria assumir praticamente, todas as atribuio organismo regulador e os operadores, e facilitasse a intercoções regulatórias do Ministério das Comunicações. nectividade e a interoperabilidade das redes. Para o ministro Sérgio Motta, o modelo concebido para o Tal ambiente permite ao consumidor a melhor escolha, por Brasil deveria evoluir em seguida para além das telecomuniestimular a criação e o fluxo de informações colocadas à sua discações. Assim, a Anatel deveria ampliar suas atribuições iniposição por uma grande variedade de fornecedores. Ao mesmo ciais de agência reguladora para cobrir todas as áreas e segtempo, as regras da competição devem ser interpretadas e aplimentos das comunicações, como Radiodifusão (Rádio e TV cadas tendo em vista a convergência das novas tecnologias e abertos), Comunicações em Circuito Fechado – aí incluídas a serviços, a liberalização do mercado, o estímulo aos novos forTV paga, a TV por assinatura, a TV a cabo e outras formas de necedores e a intensificação da concorrência internacional. comunicação eletrônica e internet. Nasceria, então, uma agência reguladora para todas as mo2.c – Preparando a privatização dalidades de comunicações, à semelhança das que existem em A estratégia de privatização total dos serviços de telecoPortugal e Reino Unido. Seu novo nome poderia ser, simplesmunicações segue um programa que inclui os seguintes mente, Agência Nacional de Comunicações (Anacom). Com a passos e medidas: morte do ministro Sérgio Motta, esse projeto foi simplesmente - Programa de Investimentos Plurianual, o PASTE (Programa esquecido por seus sucessores. de Ampliação e Recuperação do Sistema de Telecomunicações e Os primeiros resultados do processo de abertura das telecodo Sistema Postal), com as metas estabelecidas para o desenvolmunicações brasileiras foram surpreendentes. Os números vimento setorial nos primeiros cinco anos; efetivamente realizados pelo Programa de Ampliação causam - Emenda constitucional, aprovada pelo Congresso Naimpacto entre todos os que acompanhavam o desenvolvimencional em agosto de 1995, estabelecendo a quebra do monoto das telecomunicações brasileiras. pólio das empresas estatais; Entre 1995 e 1998, a Telebrás investia a surpreendente quan- Lei Específica ou Lei Mínima (Lei n° 9295, de julho de tia de R$ 18 bilhões na atualização da infraestrutura setorial, 1996), aprovada pelo Congresso Nacional, abrindo ao mernão apenas porque o País necessitava com urgência de mais e
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melhores serviços, mas para valorizar o patrimônio da holding. O Programa detalha os projetos de investimento no setor no período 1995-1999 e estima sua extensão até 2003, financiados com recursos provenientes essencialmente da iniciativa privada, totalizando no período R$ 90 bilhões, equivalentes a cerca de US$ 75 bilhões. 3. O novo modelo privatizado O leilão da privatização da Telebrás, realizado na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, realizado no dia 29 de julho de 1998, promoveu a venda da fatia de 18% do total de ações da Telebrás, que representava o controle da holding e de suas 27 subsidiárias, R$ 22,26 bilhões, equivalente a aproximadamente US$ 19 bilhões da época. Foi a maior e mais bem sucedida privatização de uma operadora de telecomunicações em todo o mundo, da década de 1990, segundo a publicação britânica Privatisation. Mais do que avaliar esse leilão, o que importa aqui é analisar as consequências práticas, concretas, da privatização das telecomunicações, da forma mais objetiva possível, comparando o que era o setor em 1998 com o que ele é hoje, seu crescimento ao longo de quase 12 anos do modelo privatizado. É curioso que as metas do Plano de Ampliação e Recuperação (PASTE), que pareciam tão ambiciosas e que geravam tanta incredulidade sobre sua viabilidade até entre especialistas, foram totalmente superadas. O ministro Sérgio Motta, que sempre acreditou no sucesso do projeto de reestruturação setorial que liderou e elaborou, bem como nas perspectivas de expansão das telecomunicações no período privatizado, não pode assistir em vida ao sucesso do novo modelo, pois faleceu em 19 de abril de 1998. 3.a – Resultados da privatização Os números falam mais alto do que as palavras, quando se avalia a privatização das telecomunicações brasileiras. Ao longo dos últimos 11 anos, a melhor e mais objetiva avaliação do projeto de reestruturação geral das telecomunicações brasileiras, portanto, pode ser feita como base na comparação dos dados de 1998, ano da privatização da Telebrás, e os dados de abril de 2009. Vale a pena refletir sobre os números que caracterizam o avanço das telecomunicações no período pós-privatização. No dia da privatização, 29 de julho de 1998, o Brasil contava com um total de 24,5 milhões telefones – sendo 19,5 milhões de linhas fixas e apenas 5 milhões de celulares. A média nacional não chegava a 15 telefones por 100 habitantes. Ao encerrar o ano de 2009, o País alcançava o total de 211 milhões de telefones (sendo 170 milhões de celulares e 41 milhões de linhas fixas), alcançando uma densidade superior a 100 por cento, ou seja, um total de telefones superior à população do País. Por outras palavras, o Brasil já tem mais telefones do que gente. Em termos percentuais, esse salto representou um crescimento da ordem de 750% sobre julho de 1998. O crescimento mais impressionante foi o da telefonia celular (ver gráficos), cujo número de aparelhos em serviços passou de pouco mais de 800 mil telefones móveis em 1994 para 170 milhões em dezembro de 2009. E as previsões mais conservadoras indicam que o Brasil deverá ultrapassar a densidade de 100 celulares por 100 habitantes ainda em 2010, chegando ao final do ano com a marca de 200 milhões de telefones móveis.
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O BRASIL É HOJE O 5º MERCADO DE CELULARES DO MUNDO Os quatro maiores mercados de países emergentes do mundo (Grupo BRIC) são responsáveis por quase metade da demanda mundial dos telefones celulares. O Brasil ocupa hoje o 5º lugar em número de celulares em serviço. Dois dados curiosos: o mundo quebrou a barreira dos 4 bilhões de usuários de celulares em dezembro de 2008. Segundo a ONU, há mais usuários de celular do que de escova de dentes.
CELULARES: DE 5 MILHÕES A 170 MILHÕES DE CELULARES O crescimento da telefonia celular no período 1998-2009 é um dos maiores do mundo. Mesmo com a barreira de um dos maiores índices de tributação sobre serviços de telecomunicações, o número de celulares no País se expandiu de 5,2 milhões, em julho de 1998, a 170 milhões em dezembro de 2009. Eis aí um dos melhores exemplos de inclusão digital proporcionados pela reestruturação do modelo institucional das telecomunicações brasileiras.
Façamos um retrospectos de outros aspectos relevantes dos principais resultados da privatização ao longo dos últimos 11 anos: - Em apenas três anos, os investimentos privados em telecomunicações públicas criaram o equivalente a uma nova Telebrás no Brasil. - A telefonia celular dá o salto ainda mais expressivo, de 1998 a dezembro de 2009, passando de 5,8 milhões de assinantes para mais de 170 milhões – um aumento de mais de 3.100% no mesmo
Masao Goto Filho/e-SIM
período. O Brasil tem hoje a 5ª rede celular do mundo, só ultrapassada por China, Índia, Rússia e Estados Unidos. - Nos primeiros três anos pós-privatização, o percentual de domicílios servidos por telefone saltou de 21% para 49%. Em dezembro de 2009, ultrapassava os 75%. - A taxa de digitalização das linhas telefônicas saltou de 68% para alcançar 100%, já em 2002. - A rede de fibras ópticas dá um salto de mais de 1.000%, passando de 44 mil para 512 mil quilômetros de cabos no mesmo período. - O número de satélites geoestacionários brasileiros e estrangeiros autorizados a operar no Brasil cresceu de 17 para 62 no período 1998-2009. - E para surpresa dos mais pessimistas, em especial dos dirigentes sindicais que se opuseram radicalmente à privatização, sob o argumento de que haveria diminuição do número total de empregos do setor, o número de postos de trabalho em empresas de telecomunicações cresceu de 150,6 mil para 315,8 mil nos anos de 1999 a 2009. - Os investimentos em infraestrutura de telefonia fixa e celular, que no período de 25 anos de existência da Telebrás (1972-1997) haviam alcançado o total de R$ 42 bilhões, atingiram R$ 185 bilhões nos 11 anos que vão de 1998 a 2009. O poder de investimento do País em telecomunicações cresceu, portanto, mais de 300% com a privatização. - Se forem mantidas suas regras básicas e linhas gerais, o modelo privatizado brasileiro de telecomunicações tem todas as condições de sustentabilidade. O sucesso desse setor é comparável ao dos demais países integrantes do grupo de países emergentes conhecido pela sigla BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China). - De 1998 até hoje, com a combinação de três fatores decisivos – competição, evolução tecnológica e maior escala de aquisições – têm caído continuamente os custos de investimento por linha ou terminal de acesso. No período Telebrás, o investimento médio necessário para se ativar uma linha telefônica era da ordem de US$ 3 mil a US$ 5 mil. Hoje, não chega a US$ 300. - E, para os usuários, é bom lembrar que uma cesta de serviços (que inclui tarifas de acesso, assinatura básica, chamadas locais, ligações de longa distância nacionais e internacionais) está caindo de preços de forma dramática. Assim, uma cesta de serviços que custava US$ 119,50 (como média anual brasileira) em 1990, caiu para US$ 60,73 em 1994; US$ 33,79 em 1998; US$ 30,58 no final de 2000; e a menos de US$ 15,00 em 2009. - Conforme dados da Anatel, a abertura do setor resultou em um processo de inclusão social nunca visto no Brasil, de que são exemplos os indicadores de densidade telefônica no País. Em 1997, somente 8% das classes D e E tinham telefone. Em 2009, eram mais de 50%. 4. O que falta hoje às telecomunicações O que importa hoje ao Brasil é consolidar e aprimorar o modelo privatizado, cujos resultados têm sido os melhores possíveis, quanto à expansão da oferta de serviços, ampliação da infraestrutura, investimentos e modernização tecnológica. Reordenamento institucional – O Brasil precisa consolidar sua legislação de comunicações, que se transformou numa colcha de retalhos. Decorridos de 11 anos da privatização, a maior
A telefonia celular saltou de 5,8 milhões de assinantes em 1998, para 170 milhões em dezembro de 2009.
prioridade para as telecomunicações brasileiras é hoje de ordem institucional. A legislação conta com uma parte moderna (a LGT) e outra obsoleta, inclusive com um capítulo do velho Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962. A nova Lei Geral de Comunicações (LGC) que se propõe deverá harmonizar todos os segmentos que compõem as Comunicações: telecomunicações, radiodifusão (rádio e TV), TV por assinatura, internet, comunicação eletrônica de massa e correios. O projeto de reestruturação setorial proposto por Sérgio Motta, no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique, previa a reforma profunda das quatro grandes áreas em que se constitui o Ministério das Comunicações: Telecomunicações, Radiodifusão, Comunicação Eletrônica e Serviços Postais. Nos 40 meses em que esteve à frente do Ministério das Comunicações, o ministro só conseguiu completar a tarefa na área de telecomunicações públicas. Ficaram quase intocadas, contudo, as três outras áreas: de radiodifusão, comunicação eletrônica e serviços postais. Em resumo, o Brasil precisa retomar o projeto de abertura e liberalização setorial, com prioridade para a atualização legislativa que completará o processo de profunda reestruturação e modernização iniciado pelo falecido ministro das Comunicações, Sérgio Motta. Um novo governo e seu ministro das Comunicações precisarão, portanto, pensar grande para levar avante um projeto dessa magnitude. Não bastará aplicar novos remendos na Lei Geral de Telecomunicações ou baixar uma dúzia de decretos paliativos. O Brasil
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Stuart Westmorland/Folhapress
O Brasil precisa de leis que contemplem a modernidade.
precisa de uma lei que dê coerência a todo o universo das Comunicações, que absorva o máximo do conteúdo da Lei Geral de Telecomunicações de 1997 e que elimine do restante da legislação setorial todos os remendos que nela sobrevivem desde 1962. O Brasil precisa de uma lei que contemple a modernidade e atenda à realidade da convergência tecnológica, das novas perspectivas de mercado em todos os segmentos que integram esse setor. Todos os ajustes desta lei devem ser feitos dentro de uma visão global das Comunicações, pois o mundo está unificando as funções regulatórias sob a responsabilidade de uma única agência reguladora. Assim acontece, por exemplo, na Grã-Bretanha, nos Estados Unidos, em Portugal, no Canadá e em outros países, que modernizaram recentemente sua legislação setorial. No processo de reestruturação institucional que sugerimos, o Brasil poderia criar uma grande agência reguladora das Comunicações – que poderia chamar-se Agência Nacional das Comunicações (Anacom) – que absorveria a Anatel e ampliaria sua ação regulatória à Radiodifusão, à TV por Assinatura, à Comunicação Eletrônica de Massa (inclusive internet) e aos Correios. Fortalecer a Anatel – É urgente que um novo governo retome duas tarefas urgentes como: a) elevar o nível de profissionalização da Agência Nacional de Telecomunicações; b) respeitar sua autonomia, para que a agência exerça seu papel fundamental de regulação, de defesa do usuário, fiscalização de todas as operadoras e do desenvolvimento setorial. c) assegurar à agência recursos orçamentários mínimos que lhe permitam cumprir suas obrigações, utilizando, inclusive, a maior parte dos recursos do Fundo de Fiscalização das Telecomunicações (FISTEL), fundo esse criado, entre outros fins, para o aprimoramento da fiscalização setorial. Mais competição – Entre outros objetivos ainda não conquistados, o projeto brasileiro de telecomunicações tem pelo menos um aspecto de longo prazo: a competição na telefonia lo-
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cal. Em quase todo o mundo, tem sido muito difícil implementar a competição na telefonia local. A digitalização total das comunicações e o processo de convergência tecnológica são condições objetivas que favorecem também a competição, porque permitem que diversos operadores explorem infraestruturas comuns. Desse modo, uma das estratégias propostas no mundo é a desagregação das redes (unbundling), de modo que todas as operadoras possam compartilhar a mesma rede de cabos, satélites e demais infraestruturas, em condições isonômicas. Desonerar os serviços – Nenhum país do mundo cobra tanto imposto sobre telecomunicações. Daí a necessidade urgente de se reduzir a brutal alíquota de tributos que incidem sobre serviços de telecomunicações, equivalente à média de 43% do valor dos serviços prestados pelas concessionárias. O que tem mais dificultado essa redução é o fato de se tratar, predominantemente, de Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), destinado aos Estados e municípios, cujas alíquotas são fixadas e controladas por um feudo chamado Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), integrado, entre outros membros, pelos secretários da Fazenda de todas as unidades da Federação. Universalização dos serviços – Alémdaofertaabundantede serviços já alcançada nos serviços de telefonia celular e fixa, o Brasil deveria debater as possibilidades de fixação de metas de universalização do acesso à banda larga, como condição essencial ao uso generalizado da internet de alta velocidade, para dados e imagens, com o máximo de interatividade. A importância da banda larga – A disponibilidade de redes de banda larga tem hoje no mundo importância social, econômica e cultural estratégica. O Brasil dispõe hoje de uma infraestrutura moderna na área de telecomunicações que lhe permite oferecer não apenas serviços avançados, como acesso em banda larga à internet. Falta capilaridade, contudo, a essa imensa rede de cabos óp-
ticos e metálicos, redes sem fio e sistemas de satélites, para que ciedade e aos investidores que o Estado se retirava do setor, deiela alcance literalmente todos os municípios e localidades do xando a condição de empresário e de prestador de serviços, para País. Empresas, escolas, hospitais, repartições públicas e a assumir o papel, muito mais relevante de regulador e fiscalizador maioria dos domicílios do País precisam dispor desse acesso, do funcionamento do setor, visando ao pleno desenvolvimento para conectar-se a todas as formas avançadas de comunicado País e ao atendimento do usuário. ções e serviços proporcionados pela internet. Segundo as propostas anunciadas pelo segundo escalão do Tudo isso deverá exigir atenção muito maior do governo, não governo até janeiro de 2010, eram quatro os objetivos sugeripara operar ou investir diretamente nesse segmento, mas para dos pelos defensores da volta da Telebrás: formular políticas públicas adequadas, estimular ao máximo os a) atender progressivamente a demanda de serviços de teinvestimentos privados e modernizar a administração pública lecomunicações governamentais, o que "deverá proporcionar para a utilização crescente dos serviços de banda larga. maior economia ao governo e maior segurança aos serviços": Fortalecer a indústria nacional – Outro problema ainda não b) assumir o papel de "gestora da rede nacional de banda larresolvido de forma adequada tem sido o dos fabricantes de maga para levar o acesso à internet rápida a todo o País"; teriais e equipamentos de telecomunicações. O Brasil dispunha c) operar a rede de mais de 20 mil quilômetros de cabos de de um parque industrial diversificado, no qual estavam presenfibra óptica de empresas estatais federais, inclusive a infraestrutes quase todas as grandes corporações globais de telefonia fixa e tura da rede da falida Eletronet, estatal formada pela Eletrobrás celular, dentre as quais a Ale a AES Bandeirante; catel-Lucent, Ericsson, Sied) operar um futuro satéJosé Cruz/ABr mens, NEC, Nortel, Motorolite geoestacionário estatal la, Pirelli, Nokia e Qualbrasileiro para atender ao comm. Só nos mercados chigoverno e às comunicações nês e norte-americano aeronáuticas. competem tantos fornecedoNa verdade, o Brasil não res de grande porte. Com o precisa de uma operadora fim da bolha de telecomuniestatal para servir ao govercações e da internet do ano no nem às Forças Armadas. 2000, mudou completamente Para cumprir esses quatro o cenário anterior, não apeobjetivos, bastaria recorrer nas no mundo, como no Braàs diversas operadoras prisil. Não apenas mudou a tecvadas, que dispõem de innologia, bem como mudafraestrutura e de oferta de Ronaldo Mota Sardenberg, atual presidente da Anatel ram as condições de competiserviços, inclusive de satélição. As grandes operadoras tes, que poderiam atender brasileiras passaram a adquiao governo. A segurança rir centrais e equipamentos no mercado mundial, a preços muito das comunicações militares e governamentais, em todo o mais competitivos do que os da indústria local. Com esse promundo, é assegurada por meio de sistemas avançados de cripcesso, a indústria brasileira mudou radicalmente seu perfil, voltografia e codificação e não, necessariamente, pela operação tando-se predominantemente para a área de serviços. dos serviços ser feita por empresa estatal ou privada. Melhor qualidade dos serviços – Está na hora de se pensar O maior risco da criação de uma estatal, num ano eleitoral ou em maior qualidade dos serviços de telecomunicações. Uma das não, é o empreguismo, pois, é quase certo que a nova operagrandes queixas do usuário brasileiro na área de telefonia são os dora exigirá a criação de, no mínimo, 500 vagas para nomeaproblemas de relacionamento com suas operadoras. Mesmo ções de profissionais, amigos e correligionários. Outra consenum ambiente relativamente competitivo, esse usuário tem sido quência seria a oportunidade de grandes licitações para aquimaltratado e desrespeitado, especialmente nos call centers. sição de equipamentos pelo governo na área de telecomunicaNesta área, há, sim, muita coisa a melhorar na telefonia brações. É isso que, na realidade, seduz alguns defensores do sileira, em especial na área da qualidade, nos padrões de atenvelho projeto de telecomunicações do governo. dimento, com destaque para o inferno dos call centers. Embora nunca anunciada oficialmente pelo governo fedePerfil do novo ministro – Num novo governo realmente ral ou pelo presidente da República, até o início de 2010, a reacomprometido com o desenvolvimento setorial, será altamente tivação da Telebrás tem sido considerada pelo primeiro escadesejável que o ministro das Comunicações não mais deverá lão do governo – especialmente pelos ministros do Planejaperder a oportunidade histórica de mudar e aprimorar o momento, Paulo Bernardo, e da Casa Civil, Dilma Roussef. delo setorial. O titular dessa Pasta não deverá agir como a maioPrimeiro grande argumento contrário à volta da holding: ria dos políticos que ganham um ministério e só pensam no vaa Telebrás nunca foi empresa operadora, mas apenas uma rejo, nas coisas menores, nas barganhas político-partidárias. holding de um conjunto de 27 concessionárias estaduais de Extinguir ou reativar a Telebrás? – A ideia de reativar a Tetelecomunicações. lebrás nos parece totalmente inconveniente e sem sentido. Ao priO segundo argumento é a existência de um marco reguvatizar as telecomunicações, em 1998, o governo sinalizou à solatório inteiramente contrário à presença de empresas esta-
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Paulo Pampolin/Digna Imagem
tais como operadoras de serviços, pesquisa e desenvolvimento, negoa não ser em casos excepcionais e ciar e conduzir parcerias público-primuito específicos. vadas, com a participação de todas as Terceiro argumento: o Estado braempresas operadoras. sileiro tem outras prioridades de ordem social (saúde, educação, segu5. Conclusões rança, previdência etc.) a atender e, O mais grave problemas das telemais do que isso, não tem recursos de comunicações é a legislação brasiinvestimento para retornar ao setor leira setorial, uma verdadeira colde telecomunicações. cha de retalhos, incoerente e contraQuarto argumento: o País já disditória, com apenas uma lei razoapõe de infraestrutura e a iniciativa velmente moderna (a Lei Geral de privada provou que é capaz de atenTelecomunicações ou LGT). O resder, fazer mais e melhor nessa área tante é um emaranhado de decretos do que o Estado. E dar respostas muiobsoletos e do que sobrou do antigo to mais rápidas e com mais eficiência Código Brasileiro de Telecomunicaàs demandas da sociedade. ções, de 1962. Esse quadro jurídicoTeoricamente, se o governo quiseslegal é gerador de problemas e disse contribuir com uma pequena parputas entre os diversos segmentos cela para o financiamento da banda das Comunicações, particularmenlarga no País, poderia ter utilizado os te entre as Telecomunicações e a RaMarco Antônio Teixeira/O Globo quase R$ 10 bilhões acumulados, ardiodifusão (Rádio e TV). recadados desde o ano 2000 e nunca Em síntese, com base nessa análiefetivamente aplicados pelo Fundo se, sugerimos ao novo governo, a ser de Universalização dos Serviços de instalado em 1º de janeiro de 2011, as Telecomunicações (FUST). Ocorre seguintes prioridades para as teleque, ao final de cada ano fiscal, os recomunicações brasileiras: cursos não aplicados desse fundo são 1. Aprimorar o modelo institutransformados em superávit fiscal e cional privatizado das Comunicanão mais existem como disponibilições como um todo, harmonizandodade a ser utilizada. o e promovendo seu reordenamenAté o momento, o governo Lula to jurídico, sem desfigurá-lo; parece ignorar que o fim da Telebrás 2. Estimular o investimento priresultou de duas decisões solidavado no setor; O que importa hoje ao Brasil é consolidar e mente fundamentadas pelo Con3. Reduzir significativamente a aprimorar o modelo privatizado, cujos gresso: a emenda constitucional nº carga fiscal absurda (média nacioresultados têm sido os melhores possíveis. 8, de 1995 e a Lei Geral de Telecomunal de 43%) que onera diretamente nicações, de 1997. todos os serviços de telecomunicaÉ claro que o Estado pode ou deve voltar a atuar no setor de ções, inclusive os novos serviços, de banda larga; telecomunicações em três circunstâncias muito especiais: a) se as 4. Profissionalizar e fortalecer a Anatel, como agência reoperadoras privadas não forem capazes de cumprir suas obrigaguladora; ções contratuais; b) para corrigir graves desequilíbrios econômi5. Estimular a competição entre as prestadoras de serviço; cos ou sociais; e c) em casos de emergência ou de guerra. 6. Formular políticas públicas e criar condições para a incluNada disso ocorre hoje. Para a inclusão digital e para a unisão digital, a começar pela elaboração de um plano nacional de versalização da banda larga, há alternativas muito mais lógibanda larga baseado em parcerias público-privadas, isentancas e convenientes. do ou reduzindo a tributação desses novos serviços; Papel do Estado – Que papel tem o Estado na área de tele7. Fortalecer a indústria nacional; comunicações? Muito mais nobre e relevante do que investir e 8. Cuidar da melhoria permanente da qualidade dos serviassumir o lugar das empresas privadas na operação dos serviços ços e do atendimento ao usuário; de telecomunicações, cabe hoje ao Estado regulá-las e fiscalizá9. Escolher e prestigiar um ministro das Comunicações las. Essas duas tarefas centrais abrangem ações como fixar norcompetente, probo e comprometido com o desenvolvimenmas, elaborar programas, formular políticas públicas, estabeleto setorial; cer metas e objetivos, fiscalizar, supervisionar e agir proativa10. Abandonar totalmente a ideia anacrônica de reativação mente no tocante à confiabilidade e à qualidade dos serviços, utida Telebrás e/ou criação de uma estatal para cuidar da univerlizar intensamente as novas tecnologias e a infraestrutura exissalização da banda larga e, por fim; tente visando à implementação do governo eletrônico, estimular 11. Fazer com que o Estado cumpra da melhor forma posas empresas privadas a inovar e a investir permanentemente em sível o papel estatal de regulação e fiscalização.
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