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pós as convenções dos partidos políticos e o registro dos candidatos no início deste mês na Justiça Eleitoral, foi dada a largada para o período de campanha, com início da fase de comícios, carreatas e debates com os candidatos aos cargos eletivos, em particular aqueles que vão disputar a Presidência da República. E como ocorre em todas as eleições, já começam a surgir provocações, acusações e outros fatos que não colaboram em nada para um processo eleitoral sadio. O que todos desejam é que os candidatos exponham seus programas de governo, mantendo o debate em um nível elevado, respeitando os adversários, as divergências de opiniões, os eleitores e acima de tudo o povo brasileiro. Queremos ouvir todos os candidatos. Porém, mais do que ouvir, queremos debater e contribuir com ideias e soluções. Foi com este objetivo que, no início do ano, lançamos a série especial Propostas para o Próximo Presidente, cujo objetivo primeiro é comprometer e organizar a sociedade brasileira a participar do processo político e administrativo, a fim de que seja defendida e atendida naquilo que tenha como objetivo o bem comum, tal como o desenvolvimento, desburocratização, emprego, educação e saúde, que se constituem unanimidade nos anseios de todas as camadas sociais. Para tanto, estamos reunindo os trabalhos de especialistas com os diagnósticos dos principais problemas do País e propondo formas de resolvê-los. Nesta quinta edição, José Maria Chapina Alcazar, presidente do SESCON-SP e da AESCON-SP (Sindicato das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas no Estado de São Paulo) e vice-presidente da ACSP (Associação Comercial de São Paulo), aborda a alta carga tributária, a burocracia excessiva e a avalanche de obrigações acessórias que dificultam o cotidiano de todas as empresas, em particular das micros, pequenas e médias organizações. Alcazar faz uma radiografia do ambiente de negócios no País e propõe políticas de fortalecimento da empresa nacional. As questões dos quilombolas, indígenas e o MST são temas analisados pelo filósofo Denis Lerrer Rosenfield. Para ele, em nome da reparação de injustiças históricas, indivíduos e grupos sociais estão sendo vítimas de outra forma de injustiça. Em nome da justiça, o arbítrio está sendo considerado legal, em uma interpretação enviesada da Constituição e das leis de nosso País. Processos de identificação e demarcação de terras indígenas e quilombolas se situam precisamente dentro desse contexto, com desrespeito sistemático ao princípio constitucional do direito ao contraditório e ao direito de propriedade. Já o caso do Movimento dos Sem-Terra (MST), que age num flagrante desrespeito à lei, conta com a leniência das autoridades federais.
O estudo do economista Wilson Abrahão Rabahy analisa o mercado de turismo no Brasil, um setor muito importante para a economia e que irá ter grande destaque com a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016. Na opinião do autor, o próximo governo deveria dar ênfase no turismo interno, o mais importante no País, já que o seu desenvolvimento também cria melhores condições para atrair turistas estrangeiros. Os economistas Gustavo Maia Gomes e José Raimundo Vergolino propõem uma nova política federal de desenvolvimento econômico do Nordeste, com ações nas áreas de reforço às instituições, levantamento e divulgação das vantagens competitivas potenciais do Nordeste, apoio à saúde e educação, aperfeiçoamento dos programas de transferência de renda, fomento à ciência e à tecnologia, fim da guerra fiscal entre os estados e a recuperação do investimento público, especialmente em infraestrutura. O ex-secretário nacional de Segurança Pública José Vicente da Silva Filho analisa as principais questões da violência e propõe uma nova política nacional para o setor. Já o cientista político Gunther Rudzit aborda a questão da Segurança e Defesa Nacionais e o efetivo controle civil das Forças Armadas. O economista Vladimir Fernandes Maciel apresenta em seu artigo um conjunto de diretrizes e propostas relacionadas à área de desenvolvimento urbano, tendo por base uma análise das características institucionais e dos programas federais em curso e o hiato no atendimento das demandas por moradia popular, saneamento básico e transporte coletivo. Por fim, a economista Virgínia Parente traça um panorama do setor de energia elétrica no Brasil, propondo uma agenda setorial que mire a formação de um sistema de suprimento de energia elétrica cada vez mais seguro, robusto e competitivo, sem perder de vista que ele deve ser, ao mesmo tempo, social e ambientalmente responsável. Boa leitura!
Alencar Burti Presidente da Associação Comercial de São Paulo e da Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo
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Pablo de Sousa/LUZ
Propostas para uma campanha eleitoral de alto nível
ÍNDICE
6 Rua Boa Vista, 51 - PABX: 3244-3030 CEP 01014-911 - São Paulo - SP home page: http://www.acsp.com.br e-mail: acsp@acsp.com.br Presidente Alencar Burti Superintendente Institucional Marcel Domingos Solimeo Coordenador da Série Especial Eleições 2010 Roberto Macedo
ISSN 0101-4218 Diretor-Responsável João de Scantimburgo Diretor de Redação Moisés Rabinovici Editor-Chefe José Guilherme Rodrigues Ferreira Editores Carlos Ossamu e Domingos Zamagna Chefia de Reportagem José Maria dos Santos
O grande peso dos tributos e a custosa burocracia de outras obrigações fiscais José Maria Chapina Alcazar
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Questões quilombolas, indígenas e o MST Denis Lerrer Rosenfield
Desenvolvimento regional, com especial referência ao Nordeste Gustavo Maia Gomes e José Raimundo de Oliveira Vergolino
Segurança e Defesa Nacionais: propostas para a elaboração de uma política setorial Gunther Rudzit
Lições de um "Tour" pelo Turismo Brasileiro Wilson Abrahão Rabahy
Segurança Pública: Uma Prioridade Nacional José Vicente da Silva Filho
Os desafios dos setores de habitação, saneamento e transportes urbanos Vladimir Fernandes Maciel Fernando Donasci/Folhapress
Editor de Fotografia Alex Ribeiro Pesquisa de Imagem Mirian Pimentel Editor de Arte José Coelho Projeto Gráfico e Diagramação Evana Clicia Lisbôa Sutilo Ilustrações e Infográficos Alfer Gerente Executiva de Publicidade Sonia Oliveira (soliveira@acsp.com.br) 3244-3029 Gerente de Operações José Gonçalves de Faria Filho (jfilho@acsp.com.br) Impressão Printcrom Gráfica e Editora Ltda.
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Energia Elétrica: Propostas para uma agenda setorial Virginia Parente
REDAÇÃO, ADMINISTRAÇÃO E PUBLICIDADE Rua Boa Vista, 51, 6º andar CEP 01014-911 PABX (011) 3244-3030 REDAÇÃO (011) 3244-3055 FAX (011) 3244-3046
Capa Digesto 460* L:2.8115cm A:3.6708cm
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Capa impressa em papel ecoeficiente Lumimax fosco 150g/m² e o miolo no papel ecoeficiente Starmax fosco 80g/m² da Votorantim Celulose e Papel - VCP.
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CAPA Ilustração: Paulo Zilberman ????
Nas três primeiras edições da série especial Propostas para o Próximo Presidente, da revista Digesto Econômico, vinte e dois especialistas apontaram problemas do Brasil e apresentaram suas propostas. Foram eles:
Claudio de Moura Castro Hélio Zylberstajn José Pastore Joaquim Elói Cirne de Toledo Ethevaldo Siqueira Nelson Marconi Clóvis Panzarini José Roberto Afonso José Roberto Mendonça de Barros G er al do Biasoto Jr. Patricia Marrone Lídia Goldenstein Renato C. Pavan e Josef Barat Carlos A. Rocca Gustavo Krause Carlos Melo Maria Teresa Bustamante Nilton Molina João Manoel P. de Mello Vinícius Carrasco Jairo Saddi Acompanhe no site www.dcomercio.com.br
Neste número, mais nove autores de renome fazem suas análises em outros setores e apontam soluções:
José Maria Chapina Alcazar Denis Lerrer Rosenfield Wilson Abrahão Rabahy Gustavo Maia Gomes José Raimundo de Oliveira Vergolino José Vicente da Silva Filho Gunther Rudzit Vladimir Fernandes Maciel Virginia Parente
Próximos temas:
Política Externa, Spread Bancário, Comércio Exterior, Políticas Sociais, Pacto Federativo, Sistema Tributário, Reformulação da Política Macroeconômica Aos leitores: A sua revista Digesto Econômico (bimestral) será mensal até agosto, dedicada a um profundo balanço do Brasil pós-Lula. Chamada de "Propostas para o Próximo Presidente", esta série especial será posteriormente entregue a todos os candidatos à Presidência da República, juntamente com um documento-síntese das propostas que a ACSP irá apoiar.
Apoio:
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O grande peso dos tributos e a custosa burocracia de outras obrigações fiscais Masao goto Filho/e-SIM
José Maria Chapina Alcazar Contador e empresário do segmento há mais de 40 anos, sócio da Seteco Assessoria Contábil e da Asplan Sistemas, presidente do SESCON-SP e da AESCON-SP (Sindicato das Empresas de Serviços Contábeis e das Empresas de Assessoramento, Perícias, Informações e Pesquisas no Estado de São Paulo) e vice-presidente da ACSP – Associação Comercial de São Paulo.
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Resumo Empreender no Brasil é hoje travar uma árdua batalha contra uma alta carga tributária, burocracia e uma avalanche de obrigações acessórias, situação ainda mais grave para as micro, pequenas e médias organizações, que não têm as mesmas condições que as grandes. Dessa forma, esse artigo se propõe a fazer uma radiografia do ambiente de negócios no País e indicar políticas de fortalecimento da empresa nacional, em especial das Micro e Pequenas Empresas (MPEs). Como representante de mais de 60 segmentos econômicos, entre eles o da Contabilidade, o SESCON-SP conhece a fundo esses entraves e busca desta forma contribuir com os próximos governantes em sua missão de promover o desenvolvimento sustentável da nação. Apontamos aqui as dificuldades enfrentadas pelas empresas no que diz respeito a temas importantes, como carga tributária, informalidade, substituição tributária e propomos algumas sugestões como o tratamento diferenciado dependendo do porte da empresa, o aprimoramento da Lei Geral das MPEs e do Simples Nacional, a revisão da agenda tributária e eliminação de algumas obrigações acessórias, entre outras.
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Introdução
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O PIB da economia informal se expande a olhos vistos, desviando bilhões de reais dos cofres públicos e inserindo o País no ranking da desorganização produtiva.
Paulo Pampolin/Hype
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prosperidade de um país está intrinsecamente ligada à criação de novos negócios e incentivo ao empreendedorismo. O segmento das micro e pequenas empresas, em especial, tem um papel ainda mais fundamental, já que é um dos pilares da economia pela quantidade de organizações que engloba e pela sua capacidade de geração de empregos e renda. Apesar disso, o ambiente que abriga esses empreendimentos no País é repleto de obstáculos ao desenvolvimento. Este artigo aponta algumas das mais importantes dificuldades com que as empresas, particularmente as micro e pequenas, lidam no seu dia a dia para o cumprimento da legislação e uma enorme quantidade de exigências fiscais. Realça também o peso que os tributos representam para as organizações em geral, e ainda os prejuízos da informalidade para a nação. O texto foi organizado em mais 11 seções. A Seção 1 trata do cipoal de obrigações acessórias a que estão submetidos os empreendimentos do País nos âmbitos federal, estaduais e municipais. A Seção 2 ocupa-se da insegurança jurídica brasileira, que acaba por desestimular novos negócios e o desenvolvimento. A Seção 3 discorre sobre o desequilíbrio entre as forças dos governos e dos contribuintes, quando as organizações, mesmo sem condições, acabam por financiar o Estado. A Seção 4 aborda diversos aspectos da alta carga tributária brasileira, e na 5 explicamos a metodologia da substituição tributária e os seus efeitos negativos para o segmento produtivo. Nas Seções 6 e 7, tratamos de dois temas intrinsecamente ligados: a Lei Geral das Micro e Pequenas Empresas e o Sim-
ples Nacional, e a seção seguinte aborda a questão da informalidade. Na Seção 9, falamos da questão maléfica dos juros altos, e na 10 fazemos referência a vários projetos de lei que tratam de temas de interesse das micro e pequenas empresas e que se encontram em trâmite no Congresso Nacional, os que merecem atenção e mobilização do segmento produtivo por afetar direta ou indiretamente o ambiente de negócios brasileiro. A seção final faz comentários adicionais a título de conclusão. Após análise de cada tema citado, ao final de cada seção buscamos contribuir com sugestões para sanar ou aliviar os problemas e dificuldades que apontam. 1. Obrigações acessórias O grande número de obrigações acessórias exigido pelos governos federal, estaduais e municipais vem sobrecarregando sobremaneira o empreendedorismo brasileiro, principalmente as micro e pequenas empresas. Na ânsia de arrecadar, a cada dia surgem mais e mais exigências fiscais. DACON, DIRF, PERD/COMP, DIPJ, SINTEGRA, MANAD, GIA, ECD, EFD, LALUR DIF, DIPAM, DIMOF, DIMOB, DECRED, IRPF, CADAN, DASN, FCONT são apenas algumas das siglas que envolvem todo esse cenário burocrático brasileiro. O significado dessas siglas é apresentado na Tabela 1. Todas essas obrigações acessórias são instrumentos de controle que os fiscos se utilizam e, mesmo que o contribuinte esteja em dia com o recolhimento dos tributos, pela não apresentação delas, fica sujeito a elevadas multas e penalizações. Dessa forma, o governo transfere boa parte de sua função para o próprio contribuinte, incumbindo ele de se "autofiscalizar" e ainda fiscalizar seus fornecedores e clientes, passando a oferecer informações valiosas para ciência dos governos. Somos sim favoráveis e apoiamos todo e qualquer instrumento de modernização, combate à sonegação e à informalidade, no entanto, esses motes têm se transformado corriqueiramente em meras desculpas para o governo massacrar os contribuintes com tantas obrigações, processos e penalizações. O ônus desse aumento desenfreado de exigências tem ficado exclusivamente com as empresas, que precisam investir em tecnologia, sistemas de controle, mão de obra qualificada, integração de seus departamentos, compra de equipamentos, entre outros itens. As grandes organizações seguramente têm condições de arcar com esses pesados custos para atender essas exigências, mas o que dizer das micro, pequenas e médias empresas, que não têm fôlego financeiro para subsidiar esses investimentos, mas também estão sujeitas à burocracia. Apesar dos benefícios que recebe da legislação pelo seu porte, as MPEs no seu dia a dia sofrem demasiadamente com a dificuldade de acesso à tecnologia, de obtenção ao crédito para investimento, para exportar, com a concorrência desleal e a potencialidade das grandes organizações. Tantas novas exigências, a princípio, são implantadas para as grandes empresas, mas vão gradualmente se incorporando às micro, pequenas e médias.
A sociedade tem a visão errônea de que a função da inteligência eletrônica dos fiscos, ao desenvolver projetos como o Sistema Público de Escrituração Digital é controlar as grandes organizações. Hoje, cerca de 84% da arrecadação do IRPJ vem das empresas do Lucro Real, que são pouco mais de 22% dos contribuintes. Os outros 16% são da reunião dos tributos pagos pelas optantes pelo Lucro Presumido e do Simples Nacional, que somadas formam os cerca de 80% do total. Esse quadro nos mostra que toda essa tecnologia fiscal vem mesmo direcionada ao pequeno, apenas iniciou pelos grandes. Por tudo isso, não há mais no País espaço para a sonegação e as pequenas empresas precisam de orientação e apoio para conseguir atender as exigências, além de subsídios financeiros para promover toda essa adaptação. Conforme estudo elaborado pelo Banco Mundial e a PricewaterhouseCoopers em 2007, as empresas brasileiras são as que mais destinam tempo no mundo para o cumprimento das obrigações tributárias. São em média 2.600 horas, o que equivale a 108,3 dias por ano para a função. A média mundial é de 56 dias, o que quer dizer que as organizações nacionais gastam o dobro de tempo das outras com essa burocracia excessiva. Isso tudo porque, além da quantidade, as obrigações acessórias abarcam uma combinação perversa de acúmulos – muitas vezes em datas simultâneas, com informações redundantes entre elas, ou muito próximas entre si – com uma tecnologia que ainda não conseguiu absorver o enorme volume de infor-
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mações. Não raro, o descompasso entre a agilidade tecnológilevando em conta ainda os remendos e disparates muitas ca e uma agenda tributária pouco racional faz com que se covezes trazidos pelas emendas constitucionais. metam injustiças contra o contribuinte, que tem dificuldades Segundo um levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de de entregar no prazo sua obrigação fiscal. Planejamento Tributário, após 20 anos de vigência da ConstiApenas no âmbito federal, são obrigados a dar conta de inútuição Federal, completados em 2008, foram editadas mais de meras exigências fiscais. São obrigações diárias, decenais, se3,7 milhões de normas, e a cada hora são criadas duas novas manais, quinzenais e mensais. Somam-se a elas as obrigações normas tributárias. estaduais e municipais, além das trabalhistas e contábeis, forEssa babel tributária configura-se principalmente por leis mando-se um cipoal de exigências que nem sempre as empreconfusas, mal elaboradas, cheias de lacunas, sem senso de ressas e profissionais da contabilidade – cuja responsabilidade é ponsabilidade e muitas vezes inconstitucionais e contraditójustamente zelar por seus clientes/contribuintes – conseguem rias, situação que causa grande insegurança jurídica no País e cumprir. E, fique claro, não por incapacidade profissional ou, instabilidades nas relações econômicas, comerciais, profissiomenos ainda, por questão de má fé. nais e até mesmo particulares. Ao contrário. Exemplos recentes demonstram a iniquidade Em meio a toda essa parafernália, mais uma vez o elo mais do regime atual. Os atrasos são ocasionados, sobretudo, pela fraco dessa corrente recai ao empreendedor, que tem de arincapacidade do sistema tecnológico da Receita que, em razão car com os custos para estar em dia com a legislação, precido acúmulo de obrigações a absorver, não raro sando investir em treinamento de pessoal e se mostra instável, inoperante, fora do ar. Em contratação de consultorias especializadas. razão do volume de acessos ao site da Receita, o Para as pequenas e médias organizações, sistema não suporta a demanda. uma missão praticamente impossível. Uma reforma Essas falhas e instabilidades dos sistemas Um exemplo de legislação prejudicial ao segtributária justa, de recepção de documentos dos fiscos, pois o mento produtivo nacional é a Portaria 1510/09, aliada à boa problema não é apenas federal, mostra a dedo Ministério do Trabalho e Emprego, que dá gestão dos sigualdade de forças entre governos e cidanovas disposições para o uso do ponto eletrônidãos, afinal a sua origem vem da incapacidaco a partir de 25 de agosto de 2010. recursos públicos de de atender a todos, mas quem paga a conta Para se ter ideia do grau de exigência da e o seu retorno é o contribuinte, uma vez que o governo ranova determinação, as empresas serão obriem benefícios à ramente prorroga prazos e muito menos isengadas a manter equipamento com capacidasociedade, ta a alta multa por atraso. de de funcionamento de 1.440 horas inintercertamente será O diagnóstico, portanto, está claramente ruptas em casos de ausência de energia. A ordelineado. Temos, por um lado, um excesso ganização terá ainda que viabilizar impresuma grande de exigências, obrigações e ainda as dificulsora de uso exclusivo e de excelente propulsora do dades da maioria das empresas brasileiras qualidade para imprimir comprovantes de desenvolvimento para atendê-las, tendo em vista o alto custo entrada, ida e retorno do almoço e saída de do Brasil. do investimento em tecnologia e pessoal. De cada colaborador, causando ônus não sooutra parte, há um sistema tecnológico que mente para o empreendedor, mas também ao não suporta esse acúmulo. meio ambiente com essa utilização desnecesRecentemente, o SESCON-SP fez um masária de papel. peamento de todas as obrigações acessórias, nos âmbitos fePor tudo isso, é urgente a promoção de amplas reformas deral, estadual e municipal, que devem ser cumpridas pelos para diminuir a burocracia e a carga de tributos e ainda raempreendedores, e entregou para análise da Receita Fedecionalizar a tributação nacional. O crescimento do País a caral do Brasil. da dia depende mais de uma nova política de desoneração Nosso intuito é a revisão da agenda tributária de todo o anopara o empreendedorismo, e a volúpia de arrecadação do calendário, com redução das multas aplicadas, melhor equagoverno deve dar espaço para um ambiente focado no estílização dos prazos e até mesmo a extinção de algumas obrigamulo aos negócios, com incentivos reais para aqueles que ções acessórias, que muitas vezes são redundantes. geram empregos e renda. Uma reforma tributária justa, aliada à boa gestão dos recursos 2. Insegurança jurídica diante públicos e o seu retorno em benefícios à sociedade, certamente do enorme cipoal de exigências será uma grande propulsora do desenvolvimento do Brasil. A qualidade da nossa legislação também se faz fundaDiariamente são publicados decretos, portarias, instrumental. Precisamos de leis simples, de fácil interpretação, ções normativas e atos nos diários oficiais da União, dos esdesenvolvidas por quem realmente entende do assunto, tados e municípios, com alterações nas áreas tributária e fisque sejam coerentes com o contexto econômico e, principalcal brasileira, sendo praticamente impossível ao contrimente, que demandem custos razoáveis para o seu cumpribuinte acompanhar e colocar em prática todas as mudanças mento. Isso tudo, certamente, passando primeiramente peanunciadas. Dessa forma, mesmo buscando cumprir a lelas revogações de leis ineficazes ou inúteis, que somente tugislação, é surpreendido por alguma lacuna ou contradição, multuam o ambiente produtivo.
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Paulo Pampolin/Hype
Em 2 de junho, o Impostômetro da ACSP registrou R$ 500 bilhões de impostos pagos pelos brasileiros desde 1º de janeiro.
3. O Estado se financia e o contribuinte se asfixia Embora seja praticamente órfão de amparo governamental e de incentivos, o empreendedor brasileiro tem ocupado cada dia mais o papel de financiador do poder público. Do outro lado da moeda – como já é tradicional em nossa história de mais de cinco séculos –, as iniciativas governamentais relegam esse contribuinte a segundo plano, deixando muito a desejar em ações verdadeiramente capazes de impulsionar o empreendedorismo, conforme almeja a força produtiva do País. Tendo de comprar e vender suas mercadorias para pagamento em 30, 60 ou 90 dias, e, na outra ponta, recolher impostos praticamente à vista, esse empresário, em especial os micros e pequenos, muitas vezes se vêem sem recursos para investir, planejar e fazer crescer seu negócio. Esse círculo vicioso acaba por eliminar o fôlego financeiro das MPEs, o que pode ser determinante para o seu fracasso, tal o comprometimento acarretado ao seu fluxo de caixa. Um Estado adequadamente organizado, eficaz e eficiente, não precisaria de todo esse financiamento. Em contrapartida, os contribuintes carecem de um crédito de confiança. Como isso não ocorre, cada vez mais a balança das relações entre fisco e contribuinte torna-se desequilibrada, gerando um injusto e muitas vezes cruel sobrepeso para o contribuinte. Principalmente se levarmos em conta a gritante desproporção entre o muito que se paga e o pouco recebido sob a forma de serviços.
Esses e outros gargalos, somados à alta carga tributária e ao excesso de burocracia impostos às empresas acabam por inibir a geração de novos negócios e renda, além de estagnar o próprio desenvolvimento do País. Portanto, essa bandeira em nome do empreendedorismo deve estar permanentemente levantada e o governo não pode jamais se esquecer que o contribuinte é a razão de ser de todo esse sistema. Portanto, é necessário que o desembolso com os tributos coincida com o ciclo normal de venda e recebimento das empresas, o que há muito não acontece, uma herança dos tempos de alta inflação que ainda sobrevive mesmo diante de um outro cenário, situação que precisa ser urgentemente revista. 4. A alta carga tributária A arrecadação de tributos é vital para o desenvolvimento da sociedade. No Brasil, no entanto, os cidadãos acabam gastando duas vezes pelo mesmo motivo, pois a tributação não retorna à população em serviços de qualidade, fazendo com que tenham de arcar com planos de saúde, escolas particulares, contratação de segurança, dentre tantos outros. No último dia 2 de junho, o Impostômetro, instrumento idealizado pela Associação Comercial de São Paulo e que permite aos cidadãos acompanhar o total de tributos pagos pelos brasileiros aos governos federal, estaduais e municipais, ultrapassou a marca de 500 bilhões de reais, considerando o período iniciado em 1° de janeiro de 2010. Apesar de a carga tributária brasileira, beirando os 40% do Produto Interno Bruto, ser equivalente à de muitos países de-
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Bobby Yip/Reuters
Na China, um trabalhador ganha US$ 0,23 por hora, um trabalho precarizado, com características de escravidão.
senvolvidos, o investimento em infraestrutura, saúde, educação, lazer e outras áreas ainda deixa muito a desejar, o que demonstra a eficiência em mecanismos de arrecadação e ineficiência na aplicação e investimento desses recursos. Para agravar a situação e como já citado neste trabalho, os contribuintes pagam seus impostos mesmo antes de produzir, tendo de financiar o Estado, sem ter a mínima condição para isso. Ao invés de obter benefícios do governo, aqueles que produzem e geram renda são sempre tachados de sonegadores, com a inteligência fiscal a cada dia mais avançada para controlá-los. A carga tributária vem tendo um efeito devastador na sociedade e também no ambiente empreendedor, fazendo com que muitas vezes a produção de bens e serviços no Brasil perca competitividade e atratividade, ainda mais com o aumento da concorrência quando o governo brasileiro abre nossas fronteiras para produtos vindos de outros países. Enquanto a indústria nacional carrega esse sobrepeso tributário, a entrada de produtos de fora é até mesmo incentivada pelo governo. Só para citar um exemplo, até mesmo fardas do Exército Brasileiro têm origem chinesa. Na China, um trabalhador ganha cerca de US$ 0,23 por hora, um trabalho precarizado, com características de escravidão. Já um brasileiro ganha US$ 1,19, tornando essa concorrência desleal e cruel. Por isso, nada como o governo valorizar o que é nosso e
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dificultar mercadorias feitas nessas situações tão duvidosas. Um bom exemplo de excesso de carga tributária está exatamente na folha de pagamento, que ultrapassa os 34%, ao incluir contribuição patronal, salário educação, seguro acidente, FGTS, desestimulando assim a criação de novos postos de trabalho e, principalmente, a formalidade. Além de o trabalhador custar cerca do dobro do que recebe para a empresa, grande parte também do seu próprio salário acaba indo diretamente para os cofres do governo. Assim, mais uma vez o tributo vem de forma direta e ainda indiretamente, pois ao adquirir mercadorias e serviços o brasileiro mais uma vez arca com o ônus tributário. Nesse contexto, uma fiscalização intensa pode até mesmo quebrar uma empresa, e assim os trabalhadores informais acabam sendo transferidos para o desemprego. Além dos tributos propriamente ditos, como já mencionado anteriormente, as organizações devem ter uma boa estrutura financeira e administrativa para atender a burocracia e os custos gerados para o atendimento às exigências fiscais, que via de regra envolvem diversas formas de cálculos, prazos, multas e controles, e para se adequar às constantes mudanças e interpretações da confusa e contraditória legislação brasileira. Mais um ônus para ser somado à gigantesca carga tributária, que no caso das micro e pequenas empresas torna-se obstáculo intransponível, situação, por sua vez, insustentável e incentivadora da informalidade. Para aumentar a arrecadação e ao mesmo tempo incentivar o empreendedorismo, ao contrário do que o governo pratica, é necessário sim reduzir os impostos. Municípios paulistas que reduziram a alíquota do Imposto sobre Serviços (ISS), por exemplo, tiveram surpreendentemente a sua arrecadação aumentada. O segredo? O empresário não quer ser informal, ele às vezes é obrigado a isso por falta de condições. A redução de tributos acaba por iniciar um círculo virtuoso, pois beneficia contribuinte, governos e toda a sociedade. Somado a isso, a reestruturação da máquina administrativa do Estado também é imprescindível para a minimização da alta carga tributária, pois a gestão eficiente dos gastos públicos nesse contexto é vital. A nós, empreendedores, resta estarmos sempre vigilantes a toda e qualquer proposta de mudança de legislação e nos posicionarmos contra ou a favor delas, mostrando os seus prejuízos ou benefícios para o segmento produtivo nacional. Também estamos à disposição de todas as esferas para debater e contribuir para a criação de um sistema mais justo, produtivo e desenvolvimentista em nosso País. 5. Substituição Tributária A exemplo de outras administrações estaduais, o governo de São Paulo vem alterando a forma de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) ao implantar gradualmente a substituição tributária para diversos segmentos econômicos. Com essa nova sistemática, a tributação passa a ocorrer no início da cadeia produtiva, atribuindo assim a responsabilidade pelo recolhimento do imposto a um único contribuinte, via de regra fabricante ou distribuidor, que além de
Flávio Florido/Folhapress
O pior efeito da substituição tributária está no universo das micro e pequenas empresas, já que o sistema derruba o conceito de tratamento diferenciado das optantes do Simples Nacional. O segmento que deveria receber diferenciações positivas acaba sendo prejudicado.
pagar sua parte, agora elimina as etapas seguintes do processo, o que, na prática, proporciona ao Estado o recebimento antecipado desses valores. Na verdade, trata-se da ampliação de um regime em vigor no Brasil há décadas, por meio do qual os governos visam o combate à sonegação e o consequente aumento no poder de arrecadar, pois simplifica controles e diminui o universo de contribuintes com potencial de serem fiscalizados. Louvável, sem dúvida, toda a intenção de dificultar a ação dos sonegadores, meta que também temos como bandeira, mas o novo sistema traz a reboque o polêmico Índice de Valor Agregado (IVA), já que reter os valores supostamente devidos, desde a fonte de produção até o consumidor final, requer a definição de parâmetros para todas as etapas, inclusive as futuras. O governo vem se baseando para tal em estatísticas e médias setoriais que acabam por prejudicar uma grande parcela de contribuintes, com números muitas vezes beirando a mais pura alquimia. De acordo com uma pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), o regime de substituição tributária eleva as despesas administrativas de mais da metade das empresas, cerca de 56% delas. Mas o empreendedor não é o único a ser penalizado com esse mecanismo. A política de descontos, utilizada amplamente pelo setor produtivo e tão desejada pelos consumidores, também fica abalada, já que ao pagar o imposto sobre o preço "cheio", essa prática torna-se inviável para a empresa. Isso sem contar o prejuízo no capital de giro das indústrias, que ficam com a incumbência de recolher o imposto por todo o círculo distribuidor, antes mesmo da comercialização dos produtos. Pontos de venda, indústria e consumidores, todos arcando
com as consequências da sistemática em nome do desenvolvimento do Estado e do País. Soma-se a isso – ao recolher antecipadamente o ICMS de uma mercadoria que ainda vai demorar algum tempo até concluir o seu ciclo normal de comercialização – o visível comprometimento do fluxo de caixa das empresas. Se o fisco faz a sua parte, aumentando a cada dia a inteligência dos seus olhos eletrônicos, nada mais justo do que nós, contribuintes, também nos organizarmos na defesa de nossos legítimos direitos de cidadãos e empresários. Devemos, portanto, continuar lutando pela oportunidade de gerar empregos e riquezas, carregando um fardo menor não apenas no tocante à carga, mas também à complicação tributária, caminho natural a ser seguido para manter o Brasil na trilha do progresso e do desenvolvimento. No entanto, o pior efeito da substituição tributária está no universo das micro e pequenas empresas, já que o sistema derruba o conceito de tratamento diferenciado das optantes do Simples Nacional. Enquanto às grandes é permitida a dedução do ICMS de toda a compra, às MPEs é proibida a utilização de créditos fiscais para pagamentos, afetando, portanto, a sua competitividade. O segmento que deveria receber diferenciações positivas acaba sendo inserido em um contexto mais oneroso. Dessa forma, a inserção cada vez maior de produtos na substituição tributária, como vem fazendo São Paulo e diversos outros estados, consiste em uma manobra, além de perversa, também equivocada, pois anula os benefícios do Simples Nacional. De nada adianta as vantagens concedidas às MPEs no seu ingresso ao sistema simplificado de tributos, se não houver políticas de incentivo para viabilizá-las economicamente e impulsioná-las para o crescimento. A Resolução n° 61/09 do Comitê Gestor do Simples Na-
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Newton Santos/Hype
Guilherme Afif Domingos, ex-secretário estadual do Emprego e Relações do Trabalho de São Paulo, durante a cerimônia de lançamento do MEI.
cional, que entrou em vigor no segundo semestre de 2009, suavizou parte do prejuízo da substituição tributária às micro e pequenas empresas ao permitir o desconto do crédito da operação própria, realizada pelo substituto, na integralidade. No entanto, o segmento ainda fica com a maior parcela do ônus da sistemática. Embora tenhamos abordado a substituição tributária no caso do ICMS, um tributo estadual compartilhado com os municípios, entendemos que cabe ao Governo Federal tomar iniciativas a respeito, como nesse caso do Comitê Gestor do Simples Nacional. Recorde-se, também, que muitas questões relativas ao ICMS são tomadas no âmbito do CONFAZ, que é presidido pelo Secretário Executivo do Ministério da Fazenda. 6. Lei Geral das MPEs A Lei Complementar (LC) 123/2007, também chamada de Lei Geral das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, que entrou em vigor em janeiro de 2007, trouxe sem dúvida grandes avanços para o segmento. Seu objetivo é dar competitividade para o setor, criando
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condições de promover melhoria no ambiente empreendedor do Brasil, apoiando e incentivando os pequenos empreendimentos, reduzindo a informalidade e a carga tributária para o segmento e ainda simplificando os processos que envolvem esses negócios. Há mais de três anos em vigor, a legislação pode ser considerada um marco na história das micro e pequenas empresas, entretanto, seu aperfeiçoamento já se faz necessário para que atenda as constantes transformações mercadológicas, se torne mais abrangente e democrática, principalmente seu capítulo tributário, como veremos mais à frente. Já há movimentação em Brasília nesse sentido, e é importante ressaltar o papel fundamental das entidades representativas do segmento produtivo brasileiro nesse debate para aprimorar a lei. Como fez na elaboração da LC 123/2007 e nas outras legislações que vieram depois dela, o SESCON-SP certamente participará dessas discussões e se coloca à disposição para contribuir com a melhoria do ambiente empreendedor nacional. Em especial para conscientizar os empresários sobre o papel fundamental da contabilidade, uma grande ferramenta de gestão que auxilia sobremaneira o desenvolvimento desses negócios ao fornecer informações valiosas para a tomada de decisão.
Atualmente, uma questão primordial também para o cresvel a análise aprofundada de todos os dados da empresa, bem cimento das MPEs, e um grande desafio, é a regulamentação como de simulações e comparações de números antes da esda Lei Geral em todos os municípios. Segundo o Serviço de colha do regime, que é feita apenas uma vez por ano. Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), hoje 1.713 ciAlém disso, a entidade tem lutado, juntamente com outras dades, das mais de 5 mil existentes no País, já regulamentaram entidades do segmento produtivo brasileiro – como a Ordem a lei (30,78% do total). dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB SP), a Associação De acordo com o SEBRAE-SP, 100 municípios paulistas, Comercial de São Paulo (ACSP), a Federação do Comércio do que concentram aproximadamente 55% da população no Estado (Fecomercio) e a Federação das Indústrias do Estado de Estado, já regulamentaram a Lei Geral da Micro e Pequena SãoPaulo (Fiesp) – no Fórum Permanente em Defesa do Emempresa, impulsionando novos negócios e beneficiando o preendedor, para o aperfeiçoamento do sistema simplificado, segmento e a população. tendo abraçado muitas das suas reivindicações nos últimos Vale salientar também que alguns dispositivos integrantes anos, como a permissão de ingresso de diversas novas categoda Lei Geral da Micro e Pequena Empresa no dia a dia ainda rias no regime e também a admissão do regime de caixa para o não foram efetivados. Esse é o caso da fiscaliEvandro Monteiro/Hype zação orientadora, prevista desde o início na legislação que privilegia a educação em detrimento da punição. O ingresso ao MEI Isso significa que o fiscal deve sempre rescomeçou tímido, pois peitar o critério de dupla visita antes de autuar estima-se que até abril a empresa: na primeira deve dar orientações deste ano cerca de sobre eventuais irregularidades encontradas e 260 mil pequenos estipular ao empresário um prazo e dar subsínegócios aderiram ao dios para a solução delas, o que, infelizmente, sistema, mas são cerca não vem ocorrendo. de 11 milhões de Outra importante previsão da lei é a concesinformais que podem são de privilégios para as micro e pequenas ser beneficiados. nas compras governamentais, mecanismo Na foto, Alencar Burti, que pode ser utilizado como ferramenta de depresidente da ACSP. senvolvimento para o segmento e ainda dar agilidade aos poderes públicos. O que falta para essa medida realmente auxiliar as organizações é a regulamentação do dispositivo nos municípios brasileiros, até o momento feita muito timidamente. recolhimento de tributos, que possibilita mais fluxo de caixa Nesse sentido, é preciso disposição e iniciativa do Governo para os empreendimentos. Federal para disseminar esse benefício, tantos para os muniOs principais pleitos, sem dúvida, vieram com a aprovacípios como para a iniciativa privada. ção no Congresso Nacional da Lei Complementar 128/2008, com a ampliação da lista de atividades permitidas, a inte7. Simples Nacional gração da Contribuição Previdenciária ao Anexo V, a transferência de anexo para determinados segmentos, como o O ponto mais crítico e polêmico da Lei Geral das Micro e contábil, que passou a ter menos carga tributária no Anexo Pequenas Empresas é o seu capítulo tributário, que permiIII e, principalmente, a criação do Microempreendedor Intiu a instituição do Simples Nacional a partir de julho de dividual (MEI). 2007, regime que hoje abarca a grande maioria das empresas Apesar desses significativos avanços, o Simples Nacional brasileiras. Em abril de 2010, o número de MPEs optantes ainda necessita de mais mudanças. Uma das mais urgentes diz pelo sistema foi de 3.770.920. respeito ao aumento do limite máximo de faturamento permiApesar de ter sido anunciado como solução para todos os tido no regime, que há vários anos é de R$ 2,4 milhões anuais. problemas dos empresários de pequeno porte do País, na práAlém de impedir o ingresso ao sistema por um número maior tica o Simples Nacional mostrou-se complexo, já que instituiu de micro e pequenas empresas, a estagnação desse teto por tancinco anexos com tabelas diferenciadas para aplicação nos dito tempo significa aumento de carga tributária. versos tipos de atividades econômicas. Além disso, em muitas A economia não para. Por isso, para que as empresas mansituações, mostra-se mais oneroso que o antigo sistema. tenham a sua competitividade é preciso que seja adotada uma Desde a sua implantação, o SESCON-SP tem feito uma camsistemática que ajuste anualmente esse teto, impedindo, dessa panha de esclarecimento junto à sociedade para desmistificar forma, que a cada novo ano mais e mais empresas sejam alijadas o novo regime tributário e alertar para o "modismo da simplido sistema simplificado, perdendo a sua competitividade. ficação", enfatizando que o Simples Nacional nem sempre é a No entanto, a questão mais grave relativa à manutenção do opção mais vantajosa para as MPEs, o que torna imprescindílimite de faturamento é o desestímulo ao crescimento e descre-
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Luludi/Luz
denciamento das micro e peempresa formal existem quenas empresas do Simduas informais. ples Nacional. Com o reajusMas como incentivar a te de seus custos e preços, as formalidade e fomentar o empresas se vêem ameaçaempreendedorismo? Este é das de exclusão, o que dirá o nicho que merece vigorosa de medidas de desenvolviação governamental, a parmento do negócio, que potir da diminuição de encardem ser as grandes causadogos sociais incidentes sobre ras das perdas dos benefícios a folha de salários. Como já do regime. Ou mais grave foi assinalado, mas vale reainda, podem ficar sujeitas petir, as despesas com o Insao descredenciamento retituto Nacional do Seguro troativo, passíveis de altas Social (INSS), Fundo de Gapenalidades, o que pode ser rantia por Tempo de Serviço fatal para o seu negócio. (FGTS), salário educação, Tudo isso desestimula a seguro de acidentes de trapassagem da pequena embalho e outras significam presa para média. Para que cerca de 36% dos totais paela se torne grande um dia e gos aos trabalhadores, chepossa optar por outro sistegando esse montante a mais ma de tributação, é preciso de 100%, quando se contabiincentivá-la para tal, e não ao lizam as incidências cumucontrário. lativas e os custos do tempo Outra mudança impornão trabalhado, como férias, tante seria uma nova exten13.º salário e aviso prévio. são do rol de atividades ecoNos tigres asiáticos, a média nômicas que poderão fazer a desses custos é de 11%. opção pelo regime. Com exO Produto Interno Bruto ceção do limitador do fatura(PIB) da economia informal mento e dos casos de particise expande, a olhos vistos, O MEI, sigla para Microempreendedor pação dos sócios em mais desviando bilhões de reais Individual, foi criado para formalizar uma organização, não há rados cofres públicos e insetrabalhadores autônomos que ganham zão para essa discriminação rindo o País no ranking da até R$ 36 mil por ano. com determinados setores. desorganização produtiva. Pequena é pequena, e deve Com uma redução de não ser apoiada pelo governo pamais que 20% na economia ra um dia ser média e em seguida grande, para cada vez mais informal, poderíamos elevar a taxa de crescimento da econocontribuir com a geração de empregos e renda em nosso País. mia em, pelo menos, 1,5 pontos percentuais, segundo cálcuNessa mesma linha, também é falha do Simples Nacional a los da consultoria McKinsey. exclusão de empresas por inadimplência. Ora, se o empreenO tamanho do rombo na economia pode ser avaliado pela dedor tem dificuldades financeiras dentro do regime, descreexistência de cerca de 11 milhões de empreendimentos infordenciá-lo significa assinar a falência da organização, já que mais, mais que o dobro das 5 milhões de micros e pequenas emterá as mesmas pendências fiscais e ainda as chances reduzipresas formais com registro nas juntas comerciais. Que adianta das para a sua quitação e manutenção. criar e ampliar controles, tais como Nota Fiscal Eletrônica, SisQuestão também prejudicial é a vedação para muitas emtema Público de Escrituração Digital e outros expedientes, se a presas de apropriação e transferência de créditos relacionados informalidade sempre trabalhará sem registros? à tributação do Simples Nacional. Com essa impossibilidade, Mesmo na ausência de ampla reforma tributária, voltada as organizações perdem competitividade pelo sistema não para diminuir o ônus que recai sobre a produção, algumas permitir esse repasse. Na prática, ou a compra não é efetivada conquistas foram alcançadas nos últimos tempos para meou é feita com base em um grande desconto no preço. lhorar o desempenho dos pequenos empreendimentos. Lembramos o alongamento do prazo para recolhimento do Im8. Informalidade posto sobre Produto Industrializado (IPI), Programa de Integração Social (PIS), Contribuição para o Financiamento da Por tudo o que foi exposto até aqui, é praticamente imposSeguridade Social (Cofins) e Imposto de Renda (IR) na fonte, sível dissociar a alta carga tributária da informalidade empredecisão que representou para as empresas um capital de giro sarial. De acordo com uma pesquisa do SEBRAE, para cada extra em torno de R$ 21 bilhões.
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Divulgação
O Brasil precisa entrar em sintonia com as suas realidades econômica, política e tributária, sob o risco de não acompanhar o desenvolvimento mundial.
O atual prazo de recolhimento do ICMS necessita de ampla revisão, considerando que o atual cronograma ainda ocasiona antecipação de recursos por parte das empresas para financiamento do Estado. Temos ainda casos de exigência de pagamento até o terceiro dia útil do mês seguinte ao da venda. O exemplo mostra a falta de sentido de se manter uma política que desorganiza o fluxo de caixa, principalmente quando se leva em conta a carga tributária. Novamente, embora o ICMS não seja um tributo federal, nesse nível o governo também pode tomar iniciativas com relação a esse imposto no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), conforme já assinalamos anteriormente. Sem redução e simplificação da carga tributária e uma legislação trabalhista específica, capaz de inserir os trabalhadores informais no mercado, o empreendedorismo brasileiro continuará a esticar a sobrevida com medidas pontuais. Está na hora de o País deixar de improvisar. Outro produto derivado da informalidade é a precarização do trabalho, pois essas empresas acabam absorvendo para seus quadros uma mão de obra barata, sem qualificação, pagando um salário ínfimo e não dando condições, nem ao menos incentivando, que essas pessoas busquem a capacitação ou qualquer outra oportunidade. Já uma empresa, à margem da economia, está praticamente condenada ao fracasso por não ter acesso ao crédito, a linhas de
financiamento mais acessíveis, temor de exposição da marca, venda dos produtos e consequentemente, inibição de produtividade e de competitividade. Ciente disso, o SESCON-SP participou ativamente da idealização e criação da figura do Microempreendedor Individual (MEI), que nasceu a principio em São Paulo, no Programa Estadual de Desburocratização, depois ganhou dimensões nacionais até ser implantado, em junho de 2009. Com essa nova oportunidade, costureiras, pipoqueiros, manicures, carpinteiros, sorveteiros, mecânicos, eletricistas, vendedores ambulantes e tantos outros pequenos empreendedores podem se formalizar e conquistar diversos direitos previdenciá-rios, sem contar o resgate à cidadania, com a autoestima restabelecida, reconhecimento da família e da sociedade. Nesse contexto, as empresas e profissionais da contabilidade têm um importante papel, pois cabe a eles orientar o empreendedor individual para a sua inscrição e entrega da primeira declaração anual simplificada ao fisco. Uma grande missão social que nos incumbiram nessa grande rede em prol da inclusão social. O ingresso ao MEI começou tímido, pois estima-se que até abril deste ano cerca de 260 mil pequenos negócios aderiram ao sistema, mas são cerca de 11 milhões de informais que podem ser beneficiados pelo projeto.
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Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr
Nessa grande rede de inclusão é importante que as políticas de incentivo ao MEI continuem e a divulgação dos benefícios do programa tome proporções nacionais.
não acompanhar o desenvolvimento da economia mundial. 10. De olho no Congresso Nacional
Aqui estão elencados alguns dos projetos que tramitam atualmente nas O setor produtivo bracasas legislativas em Brasileiro se debate também sília e que merecem vigícontra um vilão antigo. lia dos empresários: uns Utilizado para expressar a que podem trazer enordiferença entre os juros mes prejuízos para o segpagos pelos bancos na mento empreendedor e captação de recursos e as outros que se aprovados taxas que cobram pelos trarão mais competitiviempréstimos concedidos, dade aos negócios. o spread bancário, infeliz- Terceirização - necesmente, torna-se a cada dia sidade de aprovação do um termo mais familiar Projeto de Lei 4302/98, entre nós, e já dá seu quique regulamenta os sernhão para o hábito nacioviços terceirizados, dannal de cultivar alguns redo mais dinâmica à ecocordes nada edificantes. nomia e trazendo mais De acordo com um essegurança jurídica nas tudo feito pela Federação negociações. das Indústrias do Estado - Redução da Jornada de São Paulo (FIESP), tende Trabalho - ao contrádo como base informario do que muitos apreções do Fundo Monetário goam, essa proposta poInternacional (FMI), o de afetar o índice de emVários projetos de lei que tratam de spread do Brasil represenpregabilidade no País, ao temas de interesse das micro e ta um custo adicional ao impor mais um ônus papequenas empresas se encontram em País de R$ 227 bilhões, o ra as empresas. Caso seja trâmite no Congresso Nacional. equivalente a 42,6% de tuinevitável, que essa dido o que é investido. minuição seja feita de Tão impressionante forma gradual, para faciquanto as cifras alcançadas nessa área são as justificativas litar a assimilação das mudanças nas organizações. em torno delas, frequentemente transformando causa em - Contribuição de 10% sobre o FGTS - fim do adicional de efeito e vice-versa. É o caso da alta carga tributária, por mui10% sobre o FGTS, nas demissões trabalhistas sem justa cautos apontada – assim como a inadimplência igualmente exsa, é a correção de uma injustiça existente há anos com o emcessiva –, como um dos estopins dessa bomba tão nefasta papreendedor. ra qualquer economia. - Ampliação das Leis de Incentivo - leis de incentivo ao esO risco de não receber uma dívida, justificativa pródiga porte e dos Fundos Municipais da Criança e do Adolescente em punir bons pagadores em detrimento dos contumazes (Fumcads) devem ser ampliadas para contemplar as empresas em desonrar seus compromissos, não pode ser colocado em do lucro presumido e ainda ter suas datas para destinação mopé de igualdade com a questão tributária. Fazer isso chega a dificadas, uma antiga reivindicação do SESCON-SP. ser um acinte frente a cidadãos e empresas sem qualquer op- Fiscalização do trabalho - o Projeto de Lei PL 133/2007 ção ao verem 40% de tudo o que produzem transformados atribui poderes à autoridade fiscal para desconsiderar pessoa, em impostos e contribuições. ato ou negócio jurídico que implique reconhecimento de relaO que precisamos, na verdade, é dividir de forma mais justa ção de trabalho sem pronunciamento do Poder Judiciário. esse fardo, a começar pelo governo e pelas próprias institui- Tributos nas notas fiscais - Projeto de Lei 1472/07, que ções financeiras. sugere a obrigatoriedade da discriminação dos tributos inJá é mais do que tempo de o Brasil entrar em sintonia com as cidentes em todas as notas fiscais de mercadorias e serviços. suas realidades econômica, política e tributária, sob o risco de Por meio da campanha "De Olho no Imposto", entidades, em 9. De olho nos juros
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Reprodução
As empresas brasileiras são as que mais destinam tempo no mundo para o cumprimento das obrigações tributárias. São em média 2.600 horas, o que equivale a 108,3 dias por ano para cumprir a tarefa.
particular a Associação Comercial de São Paulo (ACSP), lutam por essa medida, respaldadas em um abaixo-assinado com mais de 1,5 milhão de adesões. 11. Conclusão A diminuição da carga tributária no Brasil passa inevitavelmente pelo enxugamento da máquina estatal e pela eficiência dos gastos públicos. Matéria publicada recentemente pela Revista Veja mostrou que a cada dia surgem 60 novos servidores no País nas três esferas de governo, o que fez subir 54% o gasto com pessoal nos últimos sete anos. Na ânsia de alimentar essa crescente bolha, o governo cria novos tributos, aumenta a fiscalização e, principalmente, não aplica esses recursos no seu verdadeiro fim: benefícios à população como saúde, educação e cultura. Para se ter uma ideia, a arrecadação federal – que engloba impostos, contribuições federais e outras receitas, chegou a R$ 73,02 bilhões em janeiro de 2010, a melhor para meses de janeiro da história e, também, a terceira mais alta para todos os meses. Importante destacar que esse "bolo tributário" é repartido de forma desigual e injusto. Hoje, enquanto a União fica com 60% do que é arrecadado, os estados ficam com 25% e os municípios com 15%. Porém, as pessoas moram nas cidades e é nessa esfera que a maioria dos problemas se apresenta e também onde de-
vem ser tomadas muitas das decisões para solucioná-los. A quebra desse círculo vicioso é difícil e deve vir com diversas mudanças para colocar o Brasil no caminho do progresso e do desenvolvimento, no entanto, antes mesmo da tão necessária reforma tributária para redesenhar a estrutura de impostos e contribuições, ou até mesmo da reforma trabalhista, precisamos realizar em nosso País uma eficiente reforma política. Podemos considerar a política a mãe de todas as reformas, pois é ela que poderá viabilizar a realização das outras da forma ideal. A mudança do atual sistema não interessa a quem está no poder e, infelizmente, são elas quem têm a responsabilidade de promovê-la. Portanto, antes de tudo, é preciso que se crie um ambiente político que assegure o aprimoramento das instituições políticas, para que representem de fato as necessidades dos brasileiros. Este é um ano de eleições e mais uma vez cada cidadão terá em suas mãos a oportunidade de iniciar esse processo, estudando as propostas de cada candidato, optando por aquelas que realmente se aproximem de suas aspirações e necessidades e, depois, cobrando de seu representante a realização delas. Aos candidatos, cabe o comprometimento efetivo com seus eleitores e com o desenvolvimento do País. Precisamos banir os conchavos políticos, os acordos de lideranças, pois eles muitas vezes ameaçam a real democracia, que dá à população o poder para decidir os rumos da nação.
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Raimundo Paccó/Folhapress
Questões quilombolas, indígenas e o MST
Em nome da justiça, o arbítrio está sendo considerado legal, em uma interpretação enviesada da Constituição. Nas fotos, índio way way (esq.), invasão do MST (dir. acima) e comunidade quilombola em Valença (RJ)
Ant么nio Guaud茅rio/Folhapress
Caio Guatelli/Folhapress
Resumo O objetivo deste artigo consiste em apresentar três formas de relativização da propriedade privada, que hoje assolam o País. A ressemantização da palavra quilombo, vindo a significar qualquer área urbana ou rural que configure uma identidade étnica, coloca em suspenso o direito de propriedade. As terras consideradas indígenas, em processos de identificação e demarcação sumários, estão pondo em questão a soberania nacional, através de territórios que alguns querem considerar como formas embrionárias de nação. Um produtor rural, com títulos perfeitamente estabelecidos, fica totalmente desprotegido. O MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) invade terras, em ações violentas e arbitrárias, afrontando claramente a lei e o estado de direito. Os empreendedores rurais atingidos, numa clara violação dos seus direitos, são, em alguns casos, ainda obrigados a negociar reintegrações de posse. Alguns governadores nem as cumprem.
Denis Lerrer Rosenfield Graduado em Filosofia pela Universidade Nacional Autônoma do México, e "Doutor de Estado" pela Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne. É professor titular de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e professor visitante na França, Alemanha, Argentina e Estados Unidos. É autor de vários livros e artigos em português, francês e espanhol, além de articulista dos jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e Diário do Comércio, este último da Associação Comercial de São Paulo.
Além da análise desses três temas, em cada caso o texto apresenta diversas propostas de políticas públicas que têm como objetivo corrigir ou pelo menos aliviar os problemas que emergem da análise realizada. Entre as propostas, quanto a quilombolas está a de que o Supremo Tribunal Federal defina com clareza o significado de um "quilombo", para dar um basta a arbitrariedades reinantes quanto à aplicação desse conceito. Quanto à questão indígena, há a proposta de livrar a FUNAI de orientações do Conselho Indigenista Missionário e de ONGs nacionais e estrangeiras, reconfigurando essa fundação propriamente como um órgão do Estado brasileiro. Sobre o MST, que se cumpra a lei que impede a vistoria das propriedades invadidas e retire os invasores da lista dos assentáveis.
Introdução
O
País está atravessando uma onda do politicamente correto que, em nome da justiça, está se tornando uma fonte de injustiça. Em nome da reparação de injustiças históricas, indivíduos e grupos sociais estão sendo vítimas de outra forma de injustiça. Em nome da justiça, o arbítrio está sendo considerado legal, em uma interpretação enviesada da Constituição e das leis de nosso País. Processos de identificação e demarcação de terras indígenas e quilombolas se situam precisamente dentro desse contexto, com desrespeito sistemático ao princípio constitucional do direito ao contraditório e ao direito de propriedade. Outro é o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que age num flagrante desrespeito à lei, com a leniência das autoridades federais. Sua pauta política é claramente de supressão do direito de propriedade, da economia de mercado e da democracia representativa. As afinidades entre os diferentes movimentos ditos sociais são grandes, atuando enquanto organizações políticas. Para tratar desses três temas, o texto a seguir foi dividido em igual número de seções. A primeira aborda as questões quilombolas, a segunda trata da questão indígena e a seguinte tem como foco o MST. As seções são subdivididas em subseções e em cada caso a última subseção inclui propostas voltadas para sanar ou pelo menos aliviar os problemas identificados.
1. Questões quilombolas Há todo um processo em curso, encampado pela Fundação Palmares, pelo Incra e pelo Ministério Público Federal (particularmente a sua 6ª Câmara), de ressignificação da palavra quilombo, visando enquadrar todas as suas ações numa interpretação do artigo 68, do Ato das Disposições Transitórias, da Constituição de 1988. Esse processo conta com o apoio explícito da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), que, com tal fim, chegou a realizar vários congressos, tendo como objetivo assumir oficialmente essa posição. Foi igualmente essa posição que fundamentou o Decreto 4887, de 2003, estabelecendo os critérios de desapropriação baseados na autoclassificação e na autodefinição. Desde então, tais formulações só têm se reforçado. A Constituição de 1988 é inequívoca no uso do conceito de quilombo, significando, na época, uma comunidade de escravos fugidios, mormente negros, que constituíram povoados em regiões longínquas, com o intuito de oferecer resistência aos que vinham em sua perseguição. Ela é igualmente inequí-
voca ao assinalar, naquela data, as terras que eram efetivamente ocupadas, de uma forma continuada, por negros, entendidas como terras públicas ou devolutas. Concebia-se a existência de, no máximo, 100 quilombos no País. Ora, o movimento da dita ressemantização, assumido oficialmente pela Fundação Palmares, pelo Incra e pelo Ministério Público Federal, altera radicalmente os termos da questão, com o intuito de justificar invasões e contenciosos jurídicos. Calcula-se, a partir da nova ressignificação, a existência, no País, de 4 mil a 5 mil quilombos, podendo este número ser ainda muito maior. Uma primeira estimativa, provisória, seria de 22 milhões de hectares a serem destinados a essa "nova reforma", agrária em um sentido, mas, em outro, atingindo diretamente centros urbanos. 1.1. A ressemantização O processo de ressemantização da palavra quilombo vem a abarcar um amplo leque de significações, incluindo realidades tão distintas como comunidades negras em geral e terras de
Lalo de Almeida/Folhapress
Calcula-se, a partir da nova ressignificação, a existência, no País, de 4 mil a 5 mil quilombos, podendo este número ser ainda muito maior. Na foto, Quilombo do Pacoval Alenquer, no Pará.
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preto, até bairros no entorno dos terreiros de candomblé (1). O objetivo da ressemantização consiste na criação de um obAbarca virtualmente qualquer centro de cultura negra em zojeto inexistente com vistas a enquadrá-lo em um artigo consna urbana e rural. Se assim não fosse, boa parte dos laudos antitucional. Como não haveria forma de fazê-lo na acepção cortropológicos daria uma resposta negativa a demandas quirente de quilombo, a tarefa que se impôs esse grupo de antrolombolas, pela pura e simples inexistência de quilombos (2). pólogos foi a de criar um "fato conceitual", algo artificial, não Com a ressemantização do termo quilombo através de uma dado, não existente, com o intuito de que viesse a ter validade "interpretação étnica" baseada na "autoidentificação", o laudo jurídica. Dito de outra maneira, a ressemantização teve como vem a criar um quilombo lá onde esse não existe. O laudo não objetivo a captura do texto constitucional, uma captura polireconheceria um fato existente (quilombo), mas criaria um faticamente motivada, fazendo com que a Carta Maior passasse to (o quilombo inexistente renomeado quilombo conceitual). pura e simplesmente a responder a demandas criadas por "Os grupos que hoje são considerados comunidades de "movimentos sociais", que atuam como verdadeiras organizaquilombolas se constituem a partir ções políticas, com braços internacioReprodução de uma grande diversidade de pronais, via apoios financeiros através de cessos, que incluem não apenas as ONGs e governos, além de redes glo'fugas' com ocupação de terras livres bais de formação da opinião pública. e geralmente 'isoladas' – visão esta já Trata-se, portanto, de uma captura superada – mas as heranças, doapolítica de um artigo da Constituição, ções, recebimento de terras como tendo como finalidade inviabilizar pagamento de serviços prestados ao outros de seus artigos, como o direito Estado, a simples permanência nas de propriedade, a livre iniciativa, e, terras que ocupavam e cultivavam de modo mais geral, as liberdades. no interior das grandes propriedades para continuarem a servir de 1.2. A captura da Constituição mão de obra, bem como a compra de terras, tanto durante a vigência do A captura política do texto conssistema escravocrata quanto após a titucional (4) só é possível graças a esse processo de ressemantização, sua extinção" (3). Observe-se, primeiramente, o reque pressupõe um processo de noconhecimento do quilombo histórimeação, consistente em denominar co, acepção corrente quando da de quilombo algo que não o seja por promulgação da Constituição de intermédio de uma reinterpretação 1988, à qual se segue uma outra sigdita de ordem étnica. A nomeação nificação, a do quilombo conceivisa a torná-la uma categoria jurídiZumbi foi líder do Quilombo dos tual. No primeiro caso, temos um ca, administrativa, com o verniz da Palmares, em Alagoas, significado muito preciso, que colaboração antropológica, que, ascomunidade livre formada por abrange um número restrito de casim, viria a lhe conferir legitimidaescravos fugitivos das fazendas. sos, perfeitamente delimitado, rede. O conhecimento antropológico ferente, mormente, a terras "livres", torna-se um mero meio de legitimaou seja, terras públicas, a partir de ção política, descomprometido com um processo de fuga e opressão. a verdade, a imparcialidade e a uniOra, tal significação é declarada superada, como se coubesversalidade. Ele passa a ditar o que deveria ser o Estado, gase a uma fundação estatal, a antropólogos e promotores simnhando uma função propriamente normativa. Assim, a plesmente desconsiderarem o texto constitucional. apropriação da categoria de quilombo "por parte do moviNo segundo caso, temos uma ressemantização que visa a mento social" só se tornou possível graças ao "engajamento um sem número de casos possíveis, abrangendo, praticamendireto dos antropólogos nas operações de conversão e trate, qualquer relação social, trabalhista ou outra, em que nedução de significados ligados a ela"(5) . Quilombo perde, desta maneira, a sua significação, vindo gros estejam ou estiveram em maior ou menor medida envola significar qualquer comunidade afrodescendente ou, invidos. Assim, doações de terras e heranças, contempladas no clusive, em sua acepção étnica, enquanto "remanescentes de Código Civil, veem a ser consideradas como "quilombolas", quilombos", qualquer agrupamento mesmo branco ou mesquando uma cadeia dominial pode perfeitamente ser traçada tiço etnicamente identificado a um terreiro de umbanda ou conforme as diferentes responsabilidades. Da mesma maneide candomblé. Neste sentido, quilombo pode significar em ra, relações de trabalho, previstas na legislação trabalhista, se zonas urbanas um terreiro de umbanda, cuja mãe de santo setornam também quilombolas, porque assim o quiseram aqueja branca. O arbítrio no uso do termo quilombo é total. Uma les que se apropriaram da nova significação de quilombo. coisa é tombar como patrimônio histórico um terreiro de umCompra de terras, outra transação comercial normal, igualbanda, em um resgate do País em relação à sua própria hismente prevista em lei, se torna, ela também, quilombola. Os tória e memória, uma outra é desapropriar um determinado marcos temporais igualmente desaparecem.
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Juca Varella/Folhapress
O uso ideológico das palavras quilombo e quilombola está confundindo o quilombo histórico com uma acepção nova, na verdade ficcional, que não se refere a uma existência dada. Na foto, moradores do quilombo de Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, sul de São Paulo .
terreno ou bairro por ser uma espécie de quilombo, que cai dentro da rubrica genérica de "remanescente de quilombo". Em um caso, temos uma espécie de fraude conceitual, em outro, um ato de justiça histórica. Quilombo deixa de ser uma realidade histórica, com sentido preciso, e passa a ser uma espécie de identidade étnica, envolvendo todo um processo de atuação e de denúncia propriamente políticas. O quilombo vem a ter um significado "transhistórico – que o destituiu dos marcos cronológicos ou espaciais rígidos"(6) . A ressemantização obedece, então, a um projeto político. "O quilombo ressurge como uma forma de denunciar a continuidade da ideologia do embranquecimento e a exclusão dos negros do projeto republicano de modernização do País"(7) . Ou seja, não se trata mais de seguir um artigo da Constituição, mas de usá-lo com um propósito especificamente político, operando, no nível do discurso, como uma forma de denúncia da condição negra. Cabe distinguir uma questão propriamente fundiária, de identificação e demarcação de uma área enquanto remanescente de quilombo, de uma questão propriamente social e racial, que tem uma outra esfera de resolução. Por exemplo, a discriminação racial é severamente punida pela Lei Afonso Arinos, seguindo expressamente a Constituição brasileira, que, em suas cláusulas pétreas, contempla a igualdade do gênero humano, para além de qualquer discriminação racial, religiosa ou sexual. Um conceito, quanto mais amplo seja o seu escopo, menos precisa é a sua significação, por abranger, de uma forma imprecisa, um sem número de casos. O progresso do conhecimento e da ciência se faz por diferenciações, por diferenciações de diferenciações, com o intuito de dar razão a fatos particulares, que se tornam objeto de um saber preciso. Se o termo quilombo tudo significa, ele nada significa. Sobra, isto sim, o seu uso ideológico, instrumentalizado politicamente. Um dos seus corolários é a insegurança jurídica mais generalizada. O
resultado prático é o seguinte. A Fundação Cultural Palmares estimava, entre 1995 e 1998, a existência no Brasil de 24 quilombos, segundo dados publicados no Diário Oficial da União (8). 1.3. O uso ideológico O que ocorre é que o uso ideológico das palavras quilombo e quilombola está confundindo o quilombo histórico com uma acepção nova, na verdade ficcional, que não se refere a uma existência dada. Confunde, também, problemas fundiários com problemas sociais e raciais, oriundos, por exemplo, da discriminação. Nessa perspectiva, a história brasileira de miscigenação racial, um grande ganho de nossa história, se torna a "ideologia do embranquecimento". Ora, isto seria o equivalente a dizer, em outra ótica, que teríamos, então, a "ideologia do enegrecimento", que seguiria a finalidade política inversa. Assinale-se, ainda, como demonstram as estatísticas, que o projeto republicano brasileiro, com todos os seus percalços, realizou-se no sentido de inclusão dos negros e não do seu inverso. É interessante observar que, numa coletânea de 1994 sobre laudos antropológicos, o único artigo que versava exclusivamente sobre a questão dos remanescentes dos quilombos tomou essa expressão em seu significado preciso, a saber, uma comunidade constituída de escravos fugidios que tinham assim escapado da escravidão. O caso referido é relativo a uma comunidade do Estado do Pará, onde o laudo antropológico, corretamente, tinha conseguindo detectar que a comunidade em questão era descendente de quilombos existentes naquela região no século 19. No caso, "eram formados por escravos fugidos das fazendas de cacau de Santarém e Óbidos"(9) . Ou seja, tratava-se de uma verificação antropológica isenta de um quilombo histórico, e não o que está hoje em voga na antropologia de um quilombo conceitual, um quilombo fictício criado por um discurso antropológico.
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Citando novamente José Maurício Arruti, "estabelece-se, Outro é o caso numa coletânea de 2005, também sobre lauassim, um compromisso entre uma visão culturalista e outra dos antropológicos, que já é o resultado de todo um processo legal de cultura, de tradição e de identidade" (14). Note-se a conassumido de ressemantização. O caso da Invernada Paiol de traposição introduzida entre o que o autor considera uma "viTelha, Paraná, é bastante revelador, pois no próprio título de são culturalista" e uma visão "legal de cultura, de tradição e de seu artigo, a antropóloga fala de descendentes de escravos e de identidade". Na primeira, estaria colocado todo o processo libertos para justificar uma demanda de quilombo (10). Ou seja, remanescentes de quilombos vêem a significar descendentes teórico da ressemantização, com seu campo ideológico e pode escravos e de libertos, sem nenhuma preocupação para com lítico definido, enquanto na segunda teríamos os valores mesa verdade histórica, uma vez que esta exigiria toda uma remos da Constituição brasileira e os princípios sobre os quais se construção do processo, tendo como ponto de partida a exisalicerça. Na primeira, aquilo que vem a ser considerado como tência de um quilombo. Ora, tal preocupação desaparece, e "quilombo" em seu, agora, sistema simbólico, na segunda todo com ela, toda pretensão de rigor científico, pois já é dado como o ordenamento legal de uma sociedade contratualista, basearesultado do trabalho aquilo que é o seu ponto de partida. da na segurança jurídica. A segunda tornar-se-ia completaNo caso da Invernada, chama particularmente atenção o famente subordinada à primeira, tornando a insegurança juríto das demandas "quilombolas" nascerem da Comissão Pasdica uma espécie de regra, que passaria a ser a nova norma. toral da Terra (CPT) e de assessorias antropológicas, várias veAquilo que seria a objetividade mesma do conceito de quizes citadas. Torna-se claro o engajamento político dessas enlombo segundo a Constituição de 1988 vem a ser qualificado tidades, que se tornam, assim, os verdadeiros como algo "subjetivo", baseado na cor e na hisinterlocutores e os agentes sociais e políticos tória da exclusão, para ser substituído pelo crido processo em pauta. Convém aqui ainda tério da autoatribuição étnica de valores, isto é, A rigor, qualquer destacar que essa mesma Pastoral da Igreja "sintetizada pela noção de autoatribuição". A agrupamento negro se criou o MST na década de 70 do século passado inversão é completa. O que era "objetivo" tore tem seguido a linha marxista da Teologia da na-se "subjetivo", enquanto a subjetividade artorna, então, suscetível Libertação, voltando-se contra o direito de bitrária da autoatribuição torna-se, por sua de ser definido como propriedade e apoiando invasões de terras, vez, algo que passa a ser tido por objetivo. Noquilombo, dada com uso explicito da violência. Eis por que o te-se que, a rigor, até o critério racial e a sua hisa sua abrangência e agronegócio é o seu alvo. tória própria desaparecem, entrando em seu generalidade, no qual lugar uma genérica autoatribuição. 1.4. A reescritura da história Para se ter uma ideia ainda mais precisa do tudo vem a caber. arbítrio que é introduzido, assinale-se que o E é nesse espaço O processo de redefinição é levado tão longe sentimento vem a ser considerado como um assim aberto que o que até a própria Constituição vem a ser concritério objetivo, próprio, por sua vez, de uma antropólogo vem siderada como usando uma linguagem produ"ressemantização" do próprio conceito de etnia colocar tudo aquilo to da legislação colonial (11). A Constituição é cidade. "Desse modo, não só o conceito de quipolitizada na perspectiva do não reconhecilombo passa por ressemantização, como tamque ele toma por mento de seus direitos imutáveis, como os dibém o conceito de etnicidade, que se volta a afro-descendente. reitos individuais e o de propriedade. Mais uma propriedade subjetiva dos indivíduos, a ainda, ela se torna objeto de uma leitura ideoum tipo de sentimento" (15). Imaginem se viermos a adotar o sentimento como critério objelógica visando a evacuar os seus próprios sigtivo. Um dia podemos sentir afeto por uma pessoa, outro dia nificados, como se ela pudesse ser simplesmente "ressemanpor outra. Um dia podemos ter um sentimento em relação a um tizada". A rigor, qualquer agrupamento negro se torna, então, determinado problema, outro dia por outro. Ora, se uma pessuscetível de ser definido como quilombo, dada a sua abransoa passasse a considerar o sentimento como fonte de direito, gência e generalidade, no qual tudo vem a caber. E é nesse esestaríamos no completo caos social, pois uma outra pessoa e, paço assim aberto que o antropólogo vem a colocar tudo aquipor extensão, um conjunto virtualmente infinito de pessoas lo que ele toma por afro-descendente. poderiam, por sua vez, erigir o seu próprio sentimento como O próprio conceito de descendência e, logo, o de remanesfonte de direitos. A arbitrariedade do sentimento tornar-se-ia, cente é, desde essa mesma perspectiva, objeto de uma "resseentão, forma de justificação legal. O relativismo e a particulamantização". Ele não mais significa uma descendência que se ridade seriam totais. O próprio conceito de lei desapareceria. faria por linha familiar, de parentesco, ou por linha religiosa ou étnica, conforme determinados usos, costumes e crenças, se1.5. Propostas gundo uma determinada cadeia que seria portadora de direitos (12). Ele passa a significar algo muito mais abrangente, conforme o seu "uso antropológico", uma posição ancestral, "não 1) Declaração de Inconstitucionalidade do Decreto 4887, de estando implícita a transmissão imediata de direitos" (13). Ou 2003, que está na iminência de ser julgado pelo Supremo. Esseja, uma definição com tal grau de generalidade vem a abarpera-se que ele defina com clareza o que significa "quilombo", car literalmente qualquer coisa, qualquer aspecto, segundo o para dar um basta às arbitrariedades reinantes. arbítrio de seu "uso antropológico". 2) Atuar junto à opinião pública, com o intuito de mostrar
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Marcelo Justo/Folhapress
Quanto à questão indígena, há a proposta de livrar a FUNAI de orientações do Conselho Indigenista Missionário e de ONGs, reconfigurando essa fundação como um órgão do Estado brasileiro.
que não se trata de ir contra uma questão de justiça histórica, relativa ao reconhecimento do verdadeiro quilombo, mas contra uma captura ideológica da Constituição brasileira. 3) Desaparelhar a Fundação Palmares e o Incra, que identificam e demarcam áreas quilombolas em função desse novo conceito de ressemantização. 4) Refazer, segundo a noção de quilombo histórico, a Instrução Normativa 57 do Incra, que utiliza a ressignificação da palavra e faz uma reserva de mercado para os antropólogos identificados com essa concepção. 2. A questão indígena A ciência trabalha com a realidade tal como ela é, evitando, ao máximo, todo juízo de valor acerca da mesma. Um físico, quando estuda um fenômeno natural, não emite nenhum juízo de valor sobre este, não diz, por exemplo, que tal fenômeno é bom ou mau. Tal formulação escaparia ao escopo mesmo dos enunciados explicativos a partir dos quais trabalha. Ele não efetua, portanto, nenhuma passagem do ser ao dever ser, abstendo-se de qualquer juízo de como a realidade deveria ser. No entanto, quando passamos para o terreno das ciências sociais, se é que o termo ciência pode ser utilizado da mesma
maneira, o problema já é colocado se o cientista está habilitado (ou mesmo) e deva emitir um juízo de valor sobre as sociedades estudadas, estipulando, por exemplo, como deveriam ser as relações humanas. No caso do etnólogo, coloca-se a questão não apenas de como são as sociedades indígenas concretas estudadas – tanto do ponto de vista de suas relações estruturais, quanto do ponto de vista dinâmico de sua evolução –, mas também de como deveria o Estado tratar essas sociedades, funcionando o cientista como auxiliar de uma política estatal. Ou ainda, coloca-se o problema da passagem da etnologia para a etnologia aplicada, concretizando-se numa determinada política indigenista. O próprio conceito de política indigenista se enfrenta ao problema de uma intervenção estatal que deveria ser norteada por valores, o que implica dizer norteada por uma noção do dever ser. Abandonamos, assim, o terreno propriamente científico da descrição e explicação da realidade tal como ela é, para nos aventurarmos no que ela deveria ser. Ou seja, entramos em considerações relativas ao como deve ser a condição indígena, onde são tomadas em conta as mais distintas formulações, desde aquelas que constroem um dever-ser a partir do que é realmente, do que existe efetivamente, até aquelas que desconsideram totalmente a realidade, propug-
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ria a um estado de natureza harmônico, como se guerras, disputas por bens e territórios não fizessem parte de sua história. Procuram passar uma imagem de paz, de propriedade coletiva tranquila, que seria pré-civilizatória. Ou seja, seria a civilização que teria introduzido a perversão e a violência. Vejamos alguns exemplos. A propósito da antropofagia dos Tupinambá, que tanto chocava os jesuítas e colonizadores, o autor assinala que ela constituía um traço cultural da máxima importância, relativa ao consumo ritual da carne dos prisioneiros de guerra (20). Aquilo que se nos aparece como contrário a toda forma humana de vida civilizada era, para eles, algo perfeitamente normal, não sendo, neste sentido, uma forma genérica de canibalismo. Tratava-se de uma instituição nuclear de sua cultura, cujo aban2.1. O bom selvagem dono acarretou também mudanças culturais substantivas. No dizer de Egon Schaden, "desastrosa para o sistema total" (21). Um caso de utopia supostamente embasada filosoficamente Ora, isto significa, do ponto de vista das posições atuais do se encontra na ideia rousseauísta do "bom selvagem", que conCIMI e da FUNAI, que, primeiro, o estado de vida indígena intinua a orientar a política indigenista do CIMI, influenciando tertribal não era o de um idílico estado de natureza, e, segundo, fortemente a FUNAI, órgão estatal que trabalha com essa ideia se fosse seguida a ideia da conservação cultudo dever-ser. Segundo Darcy Ribeiro, a ideia do ral, esta prática deveria ser mantida, sem a qual bom selvagem correspondia, no início do sécuum eixo estruturador dessa cultura desaparelo 20, à imagem que a opinião pública urbana ti(...) devem ser ceria. Uma transformação desse tipo teve pronha do indígena, segundo leituras embasadas desmascaradas as fundas repercussões na estruturação psíquica em Rousseau e Chateaubriand (16). Ressalte-se que se trata da opinião pública urbana, diferende homens guerreiros, que perderam, assim, o idealizações temente daquela que tinham os produtores ruideal orientador de suas vidas. Numa sociedaigualmente falsas, rais, confrontados a uma outra realidade. As de organizada em torno da guerra e da antroque descrevem a pessoas da cidade liam esses autores franceses pofagia, as identificações psíquicas e as prátivida indígena como e, ao mesmo tempo, ficavam escandalizadas cas religiosas, as relações entre homem e muidílica e aventureira, com relatos de extermínio dos indígenas. lher e as relações intertribais são profundaAs pessoas do campo, por sua vez, estavam mente abaladas uma vez que sua concepção e atribuem aos prensadas entre indígenas que resistiam a escentral de mundo se esvai. índios as mais ses ataques e aventureiros e políticos inescruO infanticídio, por sua vez, foi uma prática excelsas qualidades pulosos dos mais diferentes calibres. Conjunormal entre as tribos americanas, principalde nobreza (...) gam-se dois fatores: uma realidade de lutas inmente nômades. No Brasil, por exemplo, os Bocessantes entre indígenas e grupos, que procuroró tinham essa prática e os Yanomami ainda raram apropriar-se de suas terras, e uma hoje. Ela podia originar-se tanto de causas ecoideologia que não possuía nenhuma correspondência com a nômicas, como a impossibilidade da mãe provir à subsistência realidade. Aliás, o próprio Darcy Ribeiro enfatiza que "...dede muitos filhos, quanto psicológicas, como quando um pesavem ser desmascaradas as idealizações igualmente falsas, que delo supostamente anunciava uma desgraça para uma mulher descrevem a vida indígena como idílica e aventureira, e atrigrávida, que se vinha compelida, pela pressão da tribo, a sabuem aos índios as mais excelsas qualidades de nobreza, alcrificar o seu bebê (22). (17) A propósito dos Suyá, no Alto Xingu, em suas disputas truísmo e sobriedade" . Parece que ele está escrevendo contra as concepções do CIMI e deste imaginário político-social, com os Kamayurá e os Trumái, eles mostravam uma particuatualmente vigente entre nós. Observe-se, aliás, que essa ideia lar agressividade, estando envolvidos em quase todas as disdo "bom selvagem", tal como é apropriada por correntes marputas da região. Chegaram mesmo não apenas a derrotar, xistas e pela Teologia da Libertação, é a versão, digamos, de mas a aniquilar os seus vizinhos Trumái, que jamais conse"esquerda", da ideia colonizadora, retratada por Paulo Prado, guiram se recuperar. Estamos, na verdade, diante do que segundo a qual o Brasil seria quando da chegada dos primeiros Hobbes denominava de estado de natureza, perfeitamente colonizadores, uma terra "paradisíaca" (18). aplicável a relações intertribais, independentemente da atuação do homem branco (23). Ainda no Alto Xingu, as relações entre as diferentes tribos 2.2. O estado de natureza estavam integradas a um mesmo sistema, em que as relações de troca tinham lugar e nas quais a guerra aparecia igualmente Egon Schaden, em seu livro, Aculturação indígena(19), oferece inúmeros exemplos que contradizem posições como as do como um momento necessário dos seus respectivos modos de CIMI ou da FUNAI, segundo os quais a condição indígena funcionamento. "Conquanto ciosas de sua autonomia, as váoriginária, anterior ao contato com os brancos, corresponderias tribos dependem umas das outras como parceiros necesnando por um dever-ser utópico, do tipo restabelecimento das condições culturais de vida pré-cabraliana. No primeiro caso, o dever-ser, a política indigenista, se ancora numa concepção científica, partindo da realidade tal como é, o que implica considerar com realismo o avançado processo de aculturação das populações indígenas em geral. No segundo caso, o processo de aculturação é simplesmente negado, como se fosse possível reverter, até uma suposta pureza inicial, todo um processo histórico em curso. Podemos, portanto, ter seja uma política indigenista cientificamente orientada, seja uma política indigenista ideologicamente e religiosamente determinada.
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Fábrio R. Pozzebom/ABr
Uma política indigenista deveria dissociar claramente problemas fundiários de problemas sociais, próprios de sua interação com o mundo civilizado. Estas demandam condições dignas de moradia, atendimento médico-hospitalar e uma educação que lhes propicie condições de trabalho.
sários para as manifestações recíprocas de valor e de consciência étnica" (24). Constroem, desta maneira, a sua identidade étnica e, também, o ideal psíquico de seus guerreiros, que se faz nesta relação de alteridade, que tem na violência, inclusive a mais extrema, a que pode redundar na morte, o seu elemento estruturador. A guerra é latente e se atualiza em períodos determinados, sem que possa, por outro lado, desaparecer. Ela é a condição mesma de uma luta pelo prestígio e pela consciência que cada tribo tem de si. Na verdade, estamos diante daquilo que Hegel denominava de "luta de vida e morte" no combate pelo reconhecimento, na luta pelo prestígio, tal como este conceito é elaborado na dialética do senhor e do escravo, na Fenomenologia do Espírito. Adotemos, agora, um outro viés, colocando-nos na posição de uma política indigenista que se defronta com uma realidade dada de aculturação acelerada ou já de franca assimilação. Neste caso, a volta a um estado de natureza pré-colonização, além de ser totalmente inexequível, colocaria a questão de qual tipo de estado de natureza se está almejando, ao real, de violência e hostilidades incessantes, ou ao de um suposto estado idílico, correspondente a uma realização da "utopia". Ora, uma política indigenista se defronta sempre com situações concretas dadas, que exigem soluções específicas, que se façam ao abrigo de posições "românticas", rousseauístas ou marxizantes. Assim, Egon Schaden, a propósito de um caso colocado por Herbert Baldus, aborda a situação de indígenas que, tendo perdido quase toda a sua cultura, não podendo viver sem calças e cachaças (25), exigiriam uma rápida e eficaz assimilação. Nesta circunstância, uma política indigenista deveria se voltar para a criação de condições sociais que viabilizassem esse processo, uma política propriamente social, com intervenção das autoridades governamentais estabelecendo medidas educa-
cionais, sanitárias, e de moradia. Tais pessoas não ficariam, então, à mercê da marginalização social. Exclui-se, então, evidentemente, o retorno a uma situação originária inexistente por seu caráter utópico, algo que Darcy Ribeiro, por sua vez, denominava de opção "romântica". 2.3. Aculturação e políticas sociais Processos de aculturação decorrem de vários fatores, desde os que podem, a nossos olhos, parecer anódinos, como vestimentas, até modificações religiosas, que alteram profundamente o modo mediante o qual um povo se representa e se sente, transformando profundamente a ideia que tem de si. A introdução de novas técnicas e tecnologias, como o machado de ferro em tempos mais remotos ou automóveis e celulares hoje, tem a propriedade de transformar as relações vigentes em uma determinada tribo. Muda, assim, o seu comportamento com outros agrupamentos humanos, como sertanejos, caboclos, mestiços e brancos. Tais elementos modificam a forma não apenas de trabalhar, mas de pensar, sentir e representar. Outros elementos igualmente poderosos são a indumentária, o dinheiro, a língua, a escola e a religião, que solapam os fundamentos mesmos dessas culturas indígenas. Observe-se que se trata da introdução de fatores que são inevitáveis em toda relação que se estabeleça com a moderna civilização brasileira, não podendo, na verdade, ser barrados por uma política indigenista. Neste sentido, uma política indigenista deveria controlar esses efeitos, fazendo com que ocorram gradativamente, assegurando políticas sociais e mesmo econômicas, sabendo, de antemão, que esse processo se apresenta como irreversível. O índio passa a depender de elementos e fatores estranhos – co-
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mo os produtos do mundo civilizado –, sem ter os meios prónizar a crise" (27), reconhecendo o seu caráter inexorável. Trata-se prios de compreender como esses são feitos e podem ser addo controle e da organização dos efeitos sociais perversos, da quiridos. Em todo caso, o fascínio é irreversível e se coloca a marginalização, promovendo políticas de integração e assimiquestão de sua aquisição por intermédio do trabalho e do colação. Os indígenas, no interior desse processo, estão cada vez mércio, e não de políticas assistencialistas, que só desmerecem mais impelidos a uma identificação nacional, representando-se, e desonram os que são delas beneficiários. para além de sua cultura de origem, como brasileiros. Convém ressaltar o relato feito por Galvão de vários casos Darcy Ribeiro, por sua vez, parte da constatação realista de de pajés suspeitos de feitiçaria, que foram acusados pela que o avanço da sociedade brasileira "não deixará lugar para a morte de membros da tribo, inclusive chefes. Num caso, o paconservação de culturas tribais plenamente autônomas" e susjé foi abatido a golpes de facão pelos próprios indígenas (26). tentar tais posições seria signo inequívoco de "tolo romantismo" Eles não são aqui apresentados segundo o virtuosismo mee "larvar ingenuidade" (28). A aculturação deveria marchar espontaneamente segundo os casos particulares de cada tribo, dicinal defendido pelo CIMI, que procura revitalizá-los, na conforme as demandas e condições destas, seguindo a sua proverdade, praticamente recriá-los. Clamam, de fato, uma vez gressiva transformação e substituição de valores. Esse processo, o contato feito com a medicina ocidental, por uma verdadeira no entanto, não se faz sem solavancos e reações que podem tanto política de saúde, com o intuito de que ela seja implementada adotar formas religiosas quanto propriamente políticas. entre eles. Querem mais cuidados de saúde e não menos. Os casos de corrupção da FuDida Sampaio/AE 2.4. O que é o CIMI nasa, que só se propagaram nos últimos anos, mostram O CIMI (Conselho Indigeum órgão estatal que não nista Missionário) é um órcumpre as funções para as gão da Igreja diretamente quais foi criado. Tal situavinculado a CNBB (Confeção ilustra a verdadeira rência Nacional dos Bispos condição indígena atual, do Brasil), exercendo um traque exige cuidados e o conbalho dito missionário junto trole dessa instituição, para às populações indígenas. Dique os políticos que dela se go dito missionário, pois a apoderaram não desviem sua atuação religiosa possui os recursos públicos. Tratauma forte conotação política, se de um problema eminencaracterizada pelas posições temente social e político e mais à esquerda da Igreja, cunão apenas fundiário. É imperioso desaparelhar ideologicamente a FUNAI, ja formulação teórica se enA questão consiste numa abandonando posições românticas ou marxistas. contra na Teologia da Liberadaptação eficaz e controlatação. Foi criado em 1972, da ao mundo civilizado, de quando, segundo consta de tal maneira que esta cause a sua própria apresentação (29), menor dor possível aos indío Estado brasileiro apresentava uma política indigenista integenas e que esses possam usufruir dos produtos da sociedade gracionista, ou seja, baseada na aculturação e na integração das ocidental, almejados por eles mesmos. Tudo depende, evidenpopulações indígenas à população brasileira em geral. temente, do grau de aculturação em que se encontrem as di"O objetivo da atuação do CIMI foi assim definido pela Asferentes tribos, não devendo haver uma regra de conduta únisembleia Nacional de 1995: "Impulsionados(as) por nossa fé ca, mas políticas adaptadas a cada situação. A educação dos no Evangelho da vida, justiça e solidariedade e frente às agresjovens, por exemplo, é uma forma de adaptação que se escasões do modelo neoliberal, decidimos intensificar a presença e lona no tempo e propicia, se bem feita, uma integração harmoapoio junto às comunidades, povos e organizações indígenas e niosa. Isto implica que tal política educacional seja feita segunintervir na sociedade brasileira como aliados (as) dos povos indo princípios que viabilizem a integração, não sendo condudígenas, fortalecendo o processo de autonomia desses povos zida ideologicamente de modo que se inviabilize, o que só auna construção de um projeto alternativo, pluriétnico, popular mentaria a dor e os problemas dessas pessoas. Uma interação e democrático" (30). O contexto político se apresenta como o de satisfatória deveria necessariamente contemplar a interação luta contra o que denomina de "modelo neoliberal", o que sigeconômica, condição de novas formas de prestígio cultural, nifica o combate ao direito de propriedade, à economia de merautoestima e aquisição de bens. cado, ao estado de direito e à democracia representativa. O voSoluções utópicas estão descartadas, salvo para os ideólogos cabulário ético-religioso de justiça e solidariedade é uma forque as perseguem por seus próprios princípios políticos, proma encabulada de afirmar a sua proposta socialista, embora vocando, por suas atitudes, uma maior desorganização social. essa não se expresse com todos os seus contornos precisos. A crise aculturativa já está instalada na quase totalidade das poNa medida em que o CIMI se apresenta contra o capitalispulações indígenas. O que se impõe é o controle dos seus efeitos mo, ele se afirma a favor de uma economia socialista, apesar de e consequências. Uma política indigenista deveria aqui "orga-
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Joel Silva/Folha Imagem
Seguindo o modelo dos partidos comunistas do século 20, o MST tem dois tipos de discursos, o intra-muros, para os seus militantes, e o extra-muros, voltado para os simpatizantes e a opinião pública em geral.
fazê-lo com recursos a conceitos morais. Trata-se de um truque, consistente em opor uma realidade, no caso o capitalismo, a um conjunto de valores morais, e não a uma outra realidade, a economia socialista, o que conferiria sentido à comparação. Confrontar-se-ia, por exemplo, a Alemanha ocidental (capitalista) à Alemanha oriental (socialista) ou a Coreia do Sul à Coreia do Norte, e não as primeiras a um conjunto de valores morais, que pautaria uma realidade não alcançada ou inalcançável, caso disséssemos que uma sociedade é imperfeita (a capitalista) em contraposição a uma sociedade perfeita (um suposto Reino de Deus). Agora, se a comparação for bem feita, a partir dos exemplos citados, forçoso seria reconhecer a superioridade econômica, social, política e jurídica dessas sociedades capitalistas sobre as sociedades socialistas. Os assessores operam nas mais diversas áreas de atuação, sobressaindo-se o trabalho organizativo dessas populações, que se tornam membros dessa Pastoral política, o trabalho jurídico junto aos distintos tribunais e o trabalho de formação da opinião pública, através de assessores e jornalistas, que procuram capturar o apoio da sociedade brasileira à sua causa. Notese que essa forma de atuação não se restringe ao território nacional, mas tem um propósito global, aquele que se faz presente por intermédio dos meios de comunicação e de ONGs inter-
nacionais, que pressionam, desta maneira, o governo brasileiro e influenciam os formadores de opinião nacionais. Tal organização exige, evidentemente, um conjunto expressivo de militantes/missionários. "O CIMI conta atualmente com aproximadamente 418 missionários, compondo 114 equipes de área localizadas em várias regiões do País. São leigos e religiosos cuja presença solidária, comprometida e inculturada é testemunho da fé na utopia pascal" (31). Ora, 418 missionários, sem contar os que atuam nas outras pastorais, como a Comissão Pastoral da Terra, expressam um número muito importante de pessoas que se distribuem em 114 equipes por todo o País. Tampouco estão incluídos nesses números os trabalhos de outras ONGs e da própria FUNAI, que se adicionam a esses números bastante expressivos. 2.5. Propostas 1) É imperioso desaparelhar ideologicamente a FUNAI, abandonando posições românticas ou marxistas. 2) A FUNAI deveria ser propriamente um órgão do Estado brasileiro, não seguindo as orientações do Conselho Indigenista Missionário e de ONGs nacionais e estrangeiras. É preciso livrá-la da influência do CIMI e de ONGs internacionais
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3) Uma política indigenista deveria dissociar claramente problemas fundiários de problemas sociais. Para além de questões fundiárias, os problemas indígenas são sociais, próprios de sua interação com o mundo civilizado. Demandam condições dignas de moradia, atendimento médico-hospitalar e uma educação que lhes propicie condições verdadeiras de trabalho. 3. O MST (32)
blica internacional, o que lhe dá suporte financeiro e, sobretudo, um meio de atuar junto a empresas internacionais em suas sedes ou junto a seus clientes. O MST possui outras organizações afins, que respondem a seus objetivos táticos. Todos são braços emessistas, perfeitamente integrados em seu organograma. A leitura dos textos mostra como foram criados, quando, onde e de que maneira respondiam a determinadas necessidades do momento, ampliando o seu espectro de atuação.
Seguindo o modelo dos partidos comunistas do século 20, o MST tem dois tipos de discursos, que se articulam na mesma es3.1. A especificidade do MST tratégia autoritária de conquista do Poder. O discurso intra-muros, voltado para os seus militantes, e o discurso extra-muros, A grande confusão instalada no País a propósito do MST se voltado para os simpatizantes e a opinião pública em geral. deve em boa medida à caracterização própria do que seria esO primeiro é constituído por documentos em que a estrase movimento dito impropriamente social. Seu apoio junto à tégia política é discutida e os seus passos são considerados. opinião pública era tributário do fato de ser visto como deNela, transparece muito nitidamente o seu cafensor dos pobres, contra ricos proprietários ráter marxista, autoritário, com uma pletora de defensores do "latifúndio improdutivo". Ainremissão aos autores que orientaram e orienda hoje a opinião pública europeia continua Uma organização tam essa organização política. Aí surgem polípresa a essa imagem, permitindo a essa orgapolítica como o MST visa ticos como Lênin, Trotsky, Fidel Castro, Che nização política angariar recursos tanto naGuevara e Hugo Chávez. A discussão assim escional quanto internacionalmente. a se apresentar como um tabelecida se faz com esses autores a partir de Ora, um olhar mais atento às suas ideias, 'movimento social', suas respectivas experiências históricas. Essas ao seu modo de atuação, ao seu modo interno assumindo bandeiras que são, então, a da ex-URSS, a da China maoísta, a de funcionamento e às suas práticas permite poderiam ser arvoradas de Cuba e a da Venezuela entre outros países. descortinar uma outra faceta, muito mais pela sociedade em geral. O segundo é constituído pela bandeira da jusverdadeira do que a primeira, a supor que estiça social, pautada pela dita reforma agrária. O sa guarde ainda validade. De fato, o MST se O gancho entre os dois foco reside no público em geral que seria ganho a mostra principalmente como uma organizadiscursos se faz a partir esta "causa", pois interessado em tornar esse País ção política, com objetivos próprios, que da luta contra o mais justo. A perspectiva aqui é outra, onde enpouca relação guardam com essa imagem de 'capitalismo', pela tram em linha de consideração bandeiras mojusticeiros de uma causa social. 'segurança alimentar', rais, em que confluem o marxismo e o cristianisSe observarmos a justificativa que essa ormo da Teologia da Libertação. Será, assim, o disganização oferece presentemente para as pela 'comunidade dos curso contra o "lucro", a "ganância", o "agronegósuas ações, constataremos que ela deixou povos' e pela cio", o "latifúndio", os "transgênicos", as progressivamente de falar de "latifúndios 'solidariedade'. empresas mineradoras e os "biocombustíveis". improdutivos", voltando-se contra a proUma organização política como o MST visa a se priedade em geral, o agronegócio, a monoapresentar como um "movimento social", assucultura e, mas especificamente, as propriemindo bandeiras que poderiam ser arvoradas pela sociedade dades de mais de 500 hectares. Ora, essa mudança responde em geral. O gancho entre os dois discursos se faz a partir da luta a uma razão simples, a saber, a inexistência, senão marginalcontra o "capitalismo", pela "segurança alimentar", pela "comumente, de propriedades improdutivas no País. O Brasil sonidade dos povos" e pela "solidariedade". freu uma grande mudança no setor rural, de tal maneira que Uma organização política deste tipo necessita ter várias se poderia dizer que o País efetuou uma grande reforma faces, que viabilizem que sua mensagem possa atingir vários agrária, a que se fez pelo êxito do agronegócio. públicos e alcançar diferentes simpatizantes. O MST atua sob múltiplas faces (33), cada uma delas procurando alcançar 3.2. Características uma área de atuação, capturando para si um determinado grupo social e, também, procurando atingir o maior leque 1) A concepção do MST é fundamentalmente marxista. Topossível de inserção social e política. Se for conveniente, ele dos os seus livros didáticos e documentos estão apoiados na se apresenta com o seu nome próprio, se considerar necesideia de que suas lutas devem estar direcionadas para o essário assumirá outra denominação, segundo as conveniêntabelecimento de uma sociedade socialista. A leitura de seus cias políticas de sua atuação. Assim, possui um braço intertextos exibe toda uma concepção da história inspirada no nacional, a Via Campesina, que congrega uma série de orga"materialismo histórico", que teria como seus personagens nizações, criando uma rede de apoio mútuo e, sobretudo, de centrais figuras como Marx, Engels, Lênin, Trotsky, Stálin, influência junto à opinião pública internacional. Não podeMao, Fidel Castro e Che Guevara. Na lista mais atual, entra mos esquecer que o MST procura influenciar a opinião púum novo personagem: Hugo Chávez;
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Henry Milleo/Gazeta do Povo/AE
O estado de direito é claramente desrespeitado. O MST considera a democracia representativa e as leis como expressões da burguesia, que deveria ser eliminada. Prova eloquente disto é a sua resistência em obedecer a decisões judiciais de reintegração de posse.
2) O seu alvo político é a destruição da propriedade privada. Para ele, tudo aquilo que uma pessoa considera como basicamente seu, como os seus bens físicos e espirituais (a liberdade de escolha e as convicções pessoais), deve ser eliminado em proveito do coletivo. Mais particularmente, o coletivo significa seguir as diretrizes da organização e, se conquistar o Poder, as do seu Estado, o que visa a dominar completamente a sociedade; 3) Consoante com essa estratégia política, sua atuação está centrada na relativização da propriedade privada. Não podemos esquecer que sem o direito de propriedade não existe uma sociedade livre. Eis quatro formas de relativização do direito de propriedade: a) função social da propriedade, com a discussão centrada nos índices de produtividade; b) a função racial da propriedade, que se faz presente pelos movimentos quilombolas; c) a função indígena da propriedade, com ampliação das reservas e novas demarcações de terras; d) a função ambiental da propriedade, colocando sérios entraves à livre iniciativa; 4) O MST, apesar do discurso contrário, é um movimento fortemente centralizado, obedecendo a uma unidade de comando. Apesar das declarações de seus dirigentes de que as suas ações são espontâneas, elas mostram uma estranha coincidência, a de se fazerem ao mesmo tempo em distintas regiões do País, com as mesmas bandeiras de luta e com um trabalho prévio junto aos meios de comunicação; 5) As invasões como forma principal de luta apresentam uma logística que segue todos os parâmetros de uma organização paramilitar. Há um trabalho de inteligência relativo às propriedades que serão invadidas, o envio de batalhões precursores, invasões feitas de madrugada com utilização intensiva de ônibus, uso ostensivo de armas brancas (facões e foices) e o segredo das operações;
6) O estado de direito é claramente desrespeitado. O MST considera a democracia representativa e as leis como expressões da burguesia, que deveria ser eliminada. Coerente com essa posição, não considera necessário seguir as regras que regulam a vida social. Prova eloquente disto é a sua resistência em obedecer a decisões judiciais de reintegração de posse. Em vários estados da federação essas ordens não são simplesmente cumpridas graças a governadores que, também eles, menosprezam o estado de direito; 7) O MST volta-se igualmente para o aparelhamento do Estado, ocupando posições em seus órgãos. Isto ocorre quando várias superintendências do Incra, por exemplo, são ocupadas por pessoas que afinam com a causa "socialista" do MST e não com o respeito à lei. Eis por que várias portarias e decisões são feitas contra os produtores rurais, que se veem às voltas com uma legislação feita para prejudicá-los; 8) O seu projeto é anticapitalista, visando à instauração de uma sociedade socialista/comunista, nos moldes das do século 20 e de Cuba hoje, seguindo o modelo da democracia totalitária. Uma faceta desta concepção se traduz na luta contra o agronegócio, contra empresas de mineração como a Vale, abrangendo cada vez mais setores, de florestas plantadas, papel e celulose até o de agrobio, passando pelo sucroalcooleiro; 9) À maneira dos partidos comunistas do século 20, sua organização forma quadros próprios, em escolas específicas, de tal maneira que todos os seus membros venham a pensar da mesma forma, seguindo, em suas ações, as mesmas diretrizes. A sua orientação é claramente marxista, resgatando e produzindo manuais que possam ser utilizados nessas escolas de formação; 10) O MST recruta os seus membros entre os desempregados urbanos e rurais. Ao contrário, porém, das organizações marxistas e comunistas em geral, que procuravam recrutar os seus quadros dentre os trabalhadores, então considerados
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Lauro Alves/Diário de Santa Maria/O Globo
O seu projeto é anticapitalista, visando à instauração de uma sociedade socialista/comunista, nos moldes das do século 20 e de Cuba hoje, seguindo o modelo da democracia totalitária.
como proletários e portadores das virtudes revolucionárias, como se no seu próprio corpo se encarnassem os valores do socialismo, o MST recruta os seus membros entre os desempregados urbanos e rurais.; 11) As demandas sociais são, então, progressivamente descoladas de qualquer realidade, pois o seu objetivo não consiste na melhoria das condições de vida desses desempregados. Essas condições de vida só são tomadas em consideração na medida em que sirvam para o fortalecimento da própria organização. A organização não tolera a desobediência às suas diretrizes e deslealdades que possam comprometer o seu ideário revolucionário; 12) Sob essa ótica de não reconhecimento do capitalismo, de recusa a qualquer negociação que envolva o seu desenvolvimento, mesmo na esfera social, seu alvo consiste na destruição da propriedade privada. Observa-se, neste sentido, o desaparecimento de pleitos contra o "latifúndio improdutivo" e a sua substituição pela "limitação da propriedade", pela "ocupação de terrenos urbanos ociosos", pelo "fim do agronegócio", contra a "ditadura do mercado", pela crítica ao "neoliberalismo" e pela "segurança alimentar", entre outros; 13) Logo, tudo o que contraria o seu objetivo político é desconsiderado ou simplesmente desrespeitado, sejam ordens ju-
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diciais, seja a efetivação das reintegrações de posse. Na verdade, a lei, para essa organização política, não possui nenhuma validade intrínseca, sendo somente seguida naquilo que lhe for favorável. Segundo ela, o estado de direito deve ser desrespeitado por uma questão de princípio; 14) A sua estratégia de luta sempre buscará, portanto, o confronto e não a concórdia. O confronto faz avançar o projeto socialista, criando fricções e aumentando a coesão dos seus membros, chamando a atenção da opinião pública, que é o alvo a ser atingido. A concórdia e os progressos sociais sinalizam para uma outra direção, a saber, a colaboração com as empresas, o respeito à lei e a aceitação da propriedade privada com suas instituições representativas. O confronto tem como objetivo a ruptura revolucionária, enquanto a concórdia e a negociação se fazem no interior mesmo do capitalismo. 3.3. Propostas 1) A lei que impede a vistoria das propriedades invadidas e retira da lista dos assentáveis os invasores deveria ser cumprida. O atual governo não cumpre a lei. 2) O MST vive do financiamento federal. Suas fontes de financiamento deveriam ser cortadas.
3) Os atuais índices de produtividade não deveriam ser revisados, pois apenas servem para aumentar a atuação do MST por intermédio de invasões. Em caso de revisão, essa deveria levar em consideração os preços de mercado, os custos de produção, a renda do produtor e não apenas a evolução tecnológica. 4) Os atuais assentamentos deveriam ser progressivamente emancipados, tornando os seus membros proprietários de pleno direito, enquanto agricultores familiares. Apêndice e dados sobre assentamentos, quilombos e terras indígenas 1 - Assentamentos: a) 84,3 milhões de hectares incorporados ao Programa Nacional de Reforma Agrária; b) 8.562 assentamentos criados; c) 906.878 famílias atualmente assentadas. Fonte: Incra - Dados de 2010.
2 - Terras de remanescentes das comunidades dos quilombos: a) 955.330 hectares reconhecidos como de remanescentes das comunidades dos quilombos; b ) 11.070 famílias atualmente assentadas como quilombolas; c) 173 comunidades; d) 106 títulos de propriedades expedidos; e) 97 territórios. Fonte: Incra - Dados de 2010. 3 - Terras Indígenas: a) 130 milhões de hectares demarcados como terras indígenas; b) estimativa da FUNAI da população indígena vivendo em terras indígenas: 450 mil índios. Fonte: Censo Agropecuário 2006. IBGE e FUNAI, 2010.
Notas (1) Arruti, José Maurício. Mocambo. Bauru, São Paulo, Edusc,
Agrícola, 1962, p. 11.
2006, p. 27. (2) Ibid., p. 38-9. (3) Revista Palmares. Cultura Afro-Brasileira. Ano VI Número 6 - Março 2010, p. 31. Trata-se de publicação oficial da Fundação Cultural Palmares, do Ministério da Cultura. (4) Arruti, op. cit., p. 53. (5) Ibid., p. 52. (6) Leite, Ilka Boaventura. "O projeto político quilombola:desafios, conquistas e impasses atuais". In: Revista Estudos Feministas. Vol. 16, no. 3. Florianópolis, setembrodezembro 2008, p. 9. (7) Ibid., p. 4. (8) Arruti, op. cit., p. 63 e 328. (9) Lúcia Andrade. "O Papel da Perícia Antropológica no Reconhecimento das Terras de Ocupação Tradicional: o Caso das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Trombetas (Pará)". In: Silva, Orlando S. et al. A Perícia Antropológica em Processos Judiciais. Florianópolis: Edufsc, 1994, p. 90. (10) Hartung, Miriam Furtado. "Os limites da assessoria antropológica: o caso dos descendentes de escravos e libertos da Invernada Paiol de Telha-PR". In: Leite, Ilka Boaventura (organizadora). Laudos Periciais Antropológicos em debate. Florianópolis, Aba/Nuer, 2005, p. 137-46. (11) Stucchi, Débora, em colaboração com Rebecca Campos Ferreira. "Os Pretos de Nossa Senhora do Carmo", 20 de julho de 2009. Laudo antropológico, Volume 2, p. 293. (12) Ibid., p. 297. (13) Ibid., p. 297. (14) Ibid., p. 297. (15) Ibid., p. 298. (16) Ribeiro, Darcy. A política indigenista brasileira. Rio de Janeiro, Ministério da Agricultura, Serviço de Informação
(17) Ibid., p. 170. (18) Prado, Paulo. Retrato do Brasil. Primeiro capítulo. In:
Intérpretes do Brasil. Volume 2. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 2002. (19) Schaden, Egon. Aculturação indígena. São Paulo, Livraria Pioneira Editora/Editora da Universidade de São Paulo, 1969. (20) Ibid., p. 43. (21) Ibid., p. 43. (22) Schaden, op. cit., p. 65. (23) Ibid., p.70. (24) Ibid., p.73. (25) Ibid., p.13. (26) Galvão, Eduardo. Encontro de sociedades. Índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979., p. 28, 32. (27) Ibid., p. 283. (28) Ribeiro, op. cit., p. 157. (29) Fonte: http://www.cimi.org.br/ ?system=news&action=read&id=247&eid=224 (30) Ibid. (31) Fonte: http://www.cimi.org.br/ ?system=news&action=read&id=248&eid=224. (32) Remeto a meus dois livros: A Democracia Ameaçada. Topbooks. Rio de Janeiro, Brasil, 2006 e Reflexões sobre o direito à propriedade. São Paulo, Elsevier/Campus, 2008. (33) Brossard, Paulo. Zero Hora, 30 de junho de 2008: "E os nomes e codinomes se multiplicavam, ainda que o elemento humano pudesse ser o mesmo. Para efeitos publicitários, especialmente no exterior, era importante. O último ato se desdobrou em 13 estados, e foi da invasão de um imóvel à destruição de núcleo florestal, a hidrelétrica, via férrea, no escritório sede da Votorantim, no centro de São Paulo, a portos, etc.".
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Lições de um "Tour" pelo Turismo Brasileiro As atividades características do turismo brasileiro respondem por cerca de 6% do emprego total do País, sendo mais de 50% devido ao setor de alimentação. Nas fotos, Lençois Maranhenses (abaixo) e o Cristo Redentor (à direita).
Christian Tragni/Folhapress
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Fábio Rossi/Ag. O Globo
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Resumo
Wilson Abrahão Rabahy Economista formado pela PUCSP, mestre e doutor, livre-docente e professor titular do curso de Turismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. É também pesquisador sênior da FIPE - Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas, ligada à USP. A elaboração deste artigo contou com a colaboração de Moisés Diniz Vassallo, economista pela USP, mestre em Economia dos Transportes pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) e pesquisador da FIPE.
Este artigo se propõe a analisar o turismo no Brasil e alguns de seus impactos, tanto do mercado doméstico quanto do seu mercado internacional. Argumenta-se por uma ênfase no turismo interno, o mais importante no País, e também porque seu desenvolvimento também cria melhores condições para atrair turistas estrangeiros. Entre outros aspectos, o texto também aborda questões ligadas a mega eventos programados para os próximos anos, como a Copa do Mundo em 2014 e as Olimpíadas em 2016. Ao sugerir políticas públicas para a área do turismo, aponta, entre outras, as seguintes, além dessa ênfase no turismo interno: o Nordeste merece atenção especial no desenvolvimento desse turismo, dadas as condições de atratividade locais e o fato de ser a região onde o turismo tem maior participação no PIB; medidas voltadas para aliviar a sazonalidade do turismo; atenção especial ao setor por parte de agências como o Sebrae, o BNDES e a APEX (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos); medidas voltadas para assegurar uma taxa de câmbio competitiva para o setor; reunificação dos trabalhos comuns aos ministérios do Esporte e do Turismo; e retomada das competições esportivas universitárias no País.
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Dado o tamanho de seu território e suas belezas naturais, o Brasil possui enormes potencialidades no mercado de turismo.
Introdução
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turismo constitui-se em uma importante atividade econômica, capaz de no Brasil impulsionar o crescimento de algumas regiões. As atividades turísticas preponderam nas regiões mais desenvolvidas, mas, em termos relativos, a renda gerada pelo turismo no Nordeste corresponde a cerca de 6,5% do seu PIB, enquanto que no Sudeste, dada sua maior diversidade de atividades produtivas, representa apenas 1,8%, sendo a média do País estimada em 2,5% (1). Assim sendo, a diminuição de desigualdades regionais de renda também é um dos benefícios do turismo. Além disso, por se constituir preponderantemente numa atividade do setor de serviços, que notadamente utiliza mão de obra de forma mais intensiva, o potencial gerador de emprego do turismo também é muito relevante. Segundo pesquisa do IBGE (2), as atividades características do turismo brasileiro respondem por cerca de 6% do emprego total do País, sendo mais de 50% devido ao setor alimentação, que, como se sabe, atende também o consumo dos não turistas. Numa versão preliminar da Conta Satélite do Turismo, estudo realizado pela FIPE (3), estima-se que a parcela exclusiva do emprego gerado pelo turismo é da ordem de 3,3%. O turismo também pode resultar ser importante atividade geradora de divisas, particularmente quando o turismo recep-
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tivo internacional é expressivo. Não é o caso ainda do Brasil, em que a relação do turismo interno é cerca de nove vezes superior ao turismo receptivo de estrangeiros, conforme esclareceremos na Subseção 4.4. Tal situação é decorrente, de um lado, da força do mercado interno brasileiro, e, de outro, de sua localização, relativamente distante dos principais emissores mundiais, a Europa, Ásia e América do Norte, que respondem por mais de 80% do emissivo mundial. E há o efeito do real valorizado. Assim, em termos do mercado internacional, em número de turistas, o Brasil detinha em 2009 apenas 0,54% do total (4). Nessas condições, o Brasil apresenta potencial e condições especiais para basear o crescimento de seu turismo a partir do fortalecimento do mercado interno que, além de seus benefícios, gera externalidades para a sustentação do crescimento do turismo internacional. Os mercados interno e externo não se excluem, mas, pelo contrário, podem resultar em benéficas interações em favor da melhoria das condições do turismo em geral. Para tanto, devem ser estabelecidas estratégias para cada uma das regiões do País, em que preponderam diferentes tipos de segmentos de consumo, inclusive entre nacionais e estrangeiros. Dado o tamanho de seu território, contendo uma ampla diversidade de atrativos e de belezas naturais, é natural que o Brasil ainda dispõe de enormes potencialidades para absorção de maior parcela desse mercado mundial, particularmente, na me-
dida em que aumenta o tempo de lazer, há o desenvolvimento da tecnologia dos transportes diminuindo custos e o tempo das viagens, e o País se torne mais conhecido. Em particular, a partir da ocorrência de mega eventos, previstos para os próximos anos, como a Copa do Mundo em 2014 e a Olimpíadas em 2016. A ocorrência desses eventos por si irão provocar novos fluxos de visitantes do mundo inteiro, requerendo um programa de ações, antecipadamente planejados, com vista a aproveitar a oportunidade para satisfazer os visitantes e, em decorrência, conquistar sua fidelização. Com essas linhas a orientá-lo, o texto a seguir foi estruturado em seis seções. A Seção 1 apresenta uma descrição do mercado mundial do turismo, em termos de seu emissivo e receptivo. A Seção 2 descreve as características do turismo internacional no Brasil e suas perspectivas, enquanto a Seção 3 foca no turismo doméstico e na sua importância para o crescimento sustentado do turismo no Brasil. A Seção 4 aborda as perspectivas do crescimento do turismo no País, particularmente a partir da programação de mega eventos a serem realizados nos próximos anos, sem deixar de reconhecer que a base de sua sustentação continuará por muito tempo sendo o seu mercado interno. A Seção 5 propõe algumas sugestões ligadas à expansão e ao aprimoramento do turismo no País, inclusive uma quanto à questão dos esportes, intimamente ligada a essa atividade, principalmente nesse período em que as duas atividades estarão muito ligadas em face da realização da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016.. 1. O mercado mundial de turismo O número de viagens internacionais realizadas em todo mundo vem crescendo consideravelmente nos últimos 50 anos (taxas de crescimento de 5,5% a.a., contra 3,6% a.a. do PIB
mundial em valores constantes), mas, no entanto, ao longo do tempo apresenta flutuações associadas aos ciclos da economia mundial (Gráfico 1). De certa forma, o movimento turístico vem acompanhando com vantagens o crescimento da economia mundial, medido pelo PIB, e em relação ao total das exportações mundiais. Desenvolvimentos tecnológicos, relacionados particularmente aos setores de transporte e de comunicação; avanços no processo de globalização; aumento da renda real; aumento do tempo livre para o lazer; e as consequentes mudanças no comportamento de consumo dos indivíduos, propiciaram maiores oportunidades para o turismo, antes uma atividade reservada a reduzidos segmentos da população detentores de alta renda. Esse significativo crescimento do turismo, a partir da metade do século 20, não se propaga de modo uniforme entre todos os países. De fato, analisando-se em grupos de regiões, conforme representadas pelos continentes, observa-se uma forte concentração das atividades turísticas em alguns deles, tanto do emissivo, quanto do receptivo. 1.1. O Emissivo Mundial O turismo caracteriza-se por ser uma atividade que envolve bens e serviços não essenciais e, como tal, apresenta alta elasticidade-renda. Dessa forma, observa-se expressiva concentração do emissivo mundial em países mais desenvolvidos. A Europa como um todo responde por 55,1% do total mundial. Deve-se salientar, no entanto, que, ao longo do tempo, vem sendo observada uma tendência de desconcentração do emissivo (em 1990 a Europa respondia por 58%). Uma das razões se deve ao aumento e melhor distribuição da renda mundial, ao lado da importância do processo de glo-
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balização e a ascensão econômica de novas potências, os chamados países emergentes, como o Brasil e a China. Na Tabela 1 tem-se o número de turistas internacionais por região de origem e verifica-se que na Ásia e no Pacífico passa de 59,1 milhões (13,4%) para 178,3 milhões de turistas (19,7%) no emissivo, um adicional de quase 120 milhões de turistas entre os anos de 1990 e 2008 (mais 6,4 pontos percentuais). Deve-se ressaltar ainda que, pelas restrições de tempo e
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renda, a mais expressiva parcela das viagens ocorre em destinos mais próximos do local de origem, caracterizando o turismo como uma atividade em que preponderam as viagens intra-regionais. Assim, cerca de 80% do turismo mundial é realizado dentro da mesma região. A Tabela 2 mostra os principais países emissores. A partir dos seus dados, tem-se um indicativo do ainda alto grau de concentração do emissivo, uma vez que em apenas 10 países,
concentram-se 50% dos gastos totais. Esses mesmos países representam 33,0% da população mundial. Por essa razão, a configuração da distribuição do emissivo turístico mundial interfere nas perspectivas de crescimento dos destinos. Quando se verifica uma tendência à descentralização do emissivo, abrem-se novas perspectivas para a expansão de novos destinos turísticos. Ilustra esta assertiva o crescimento dos países da Ásia e Pacífico, enquanto emissores, que repercute no crescimento de seus receptivos. 1.2. Receptivo Mundial Pelo lado do receptivo verifica-se também grande concentração do turismo em algumas das mais desenvolvidas regiões do mundo, conforme mostra a Tabela 3. Porém, numa perspectiva de longo prazo, constata-se que, a cada nova década, são observadas reduções no grau de concentração das principais destinações turísticas. De fato, em número de turistas, a Europa que respondia por 68,2% do receptivo mundial em 1970, passa a explicar 53,1% em 2008, uma perda de mais de 15 pontos percentuais, absorvidos, em sua maior parte, pela Região da Ásia/Pacífico, que passa de 3,7% para 20,0%. 1.3. Oportunidades no Receptivo Mundial Essa nova perspectiva de diversificação decorre, além dos fatores de renda e tempo disponível, de um processo de saturação dos mercados tradicionais, com progressivo transbordamento de suas fronteiras, em direção a novos destinos e, na margem, para localidades mais distantes, em busca de atrativos únicos e/ou exóticos, característicos de segmentos pioneiros de viajantes, que depois se propagam a outros. Como mostram dados da OMT, de 1970 a 2008 houve uma redistribuição de 20 pontos percentuais na destinação do turismo mundial, parcela absorvida em grande parte por destinos emergentes, que, na margem, incluem o Brasil, ainda que em pequena escala. 1.4. Perspectivas do Brasil no turismo mundial Considerando a grande concentração das viagens na própria região de origem, a distante localização do País em relação às principais fontes do emissivo constitui-se em significativo fator limitativo ao crescimento expressivo do receptivo brasileiro. Dado que em 2008 a receita do turismo mundial atingiu US$ 944 bilhões, o Brasil, com receita de US$ 5,78 bilhões, responde por somente 0,6% (5) do total, o que o posiciona na 41ª colocação. Como assinalado, o Brasil está naquele grupo de destinos mais distantes dos principais emissores. Esse grupo é próprio de um público pioneiro, mais sofisticado, que vem ampliando gradualmente sua participação, com enorme potencialidade por explorar. Nesse cenário, as possibilidades de crescimento do turismo internacional no Brasil dependem principalmente do desempenho econômico de seus países fronteiriços, inclusive em termos de taxa de câmbio e preços, e da valorização de atrativos únicos de que dispomos, por meio da melhoria da infraestrutura, dos
serviços de apoio ao turismo e da intensificação dos mecanismos de comercialização e de promoção do turismo brasileiro, ações estas sustentadas pelo fortalecimento do turismo doméstico. De fato, conforme a Tabela 4, o principal grupo emissivo ao Brasil, em número de turistas, é a América do Sul, com 44% do total, seguido da Europa (34%) e da América do Norte (15,3%), com essas três fontes acumulando 92,5%. Merece destaque o aumento de participação da Ásia, que passou de 2,8%, em 1985, para 4,2%, em 2009. Sabe-se também que os fluxos intercontinentais ao Brasil resultam em receitas per capita superiores à média do total das visitas internacionais, que incluem os países vizinhos. Isto ocorre porque o Brasil representa, em número de turistas, des-
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tunidade para surpreender os visitantes, de modo a conquistar também uma aceleração nas taxas de crescimento nos períodos subseqüentes. 2. Turismo internacional no Brasil 2.1. Localidades mais visitadas pelos estrangeiros Dentre as sete primeiras unidades da federação do receptivo turístico internacional do Brasil, as regiões Sul e Sudeste respondem por seis delas, explicando 75% do total: SP (25,4%), RJ (18,4%) SC (11,6%), PR (11,4%), RS (5,4%) e MG (4,3%). Bahia situa-se na quinta posição (com 6%), acumulando, estas sete, mais de 80% conforme a Tabela 5. 2.2. A conta de viagens internacionais do Brasil
tino apenas marginal das viagens intercontinentais, caracterizando-se como uma destinação menos massificada, própria de viagens de maior distância e duração, em geral associadas ao maior nível de renda e de gastos dos visitantes. A tese implícita a esta análise é a de que as viagens intra-regionais, mais próximas, são as mais importantes em número de visitantes, mas são as que registram menores gastos per capita e as mais sensíveis às variações de câmbio e preços relativos. As viagens inter-regionais ao Brasil, sendo mais longas, implicam em maiores gastos per capita. Para esse mercado, as ações requeridas são mais complexas, por serem menos sensíveis às variáveis sob controle do destino Brasil, não respondendo, com significância estatística, às variações de câmbio e preços. Seguem uma tendência histórica, com taxas de crescimento quase constantes, passível de variações em seu entorno, em função de crises econômicas mundiais ou por razões de suas próprias economias, mas com pouco efeito no Brasil, dada sua magnitude ínfima nesses mercados (apenas 1% a 2% das viagens dos países de outros continentes se destinam ao Brasil). Contudo, dentre os destinos desses mercados inter-regionais, no médio e longo prazo, o Brasil apresenta enormes potencialidades para a conquista de ganhos relativos, cabendo desenvolver ações nessa direção, produzindo um deslocamento para cima no "patamar" de seu receptivo. Naturalmente, a ocorrência dos mega eventos já citados, bem como outros, como os Jogos Mundiais Militares (em 2011), entre outros, por si já resultarão num "salto" no receptivo, exigindo desde logo um conjunto de ações para dar sustentação a essa nova escala de demanda, e aproveitar a opor-
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As variações cambiais acarretam significativos impactos no saldo da conta de viagens internacionais do balanço em conta corrente no Brasil. A taxa de câmbio afeta, com diferentes intensidades, o lado das receitas (gasto de estrangeiros no Brasil) e o das despesas (gastos dos brasileiros no exterior). Do lado das receitas, já se demonstrou (6) que apenas os países limítrofes respondem às variações do câmbio e dos preços relativos. Eles também são muito afetados pelas suas condições econômicas internas. Como resultado, os países da América do Sul vêm revelando perdas significativas na participação no receptivo brasileiro, que passou de 58% em 1985 para 44% em 2009, posição que vem sendo ocupada pela Europa (evolui de 22% em 1985 para 34% em 2009), devido em especial à Itália, Alemanha, Portugal, Espanha e França, e pela América do Norte (Estados Unidos). Caso se pretenda acelerar o crescimento das receitas, dadas as atuais restrições das economias dos países limítrofes, fazem-se necessárias ações que ultrapassem o uso dos instrumentos convencionais, com ações mais agressivas e adequadamente programadas para cada tipo de mercado. O Gráfico 2 mostra a evolução da participação das regiões do mundo no receptivo do Brasil, entre 1985 e 2010, onde ficam evidentes esses movimentos da participação da América do Sul e Europa. Do lado das despesas, porém, dada a demanda reprimida por viagens internacionais de grandes parcelas da população brasileira, a desvalorização do real corresponde a um aumento da renda dos brasileiros para gastos no exterior. A resposta a esse incentivo fica evidente no Gráfico 3 , em que ambas as variáveis, transformadas em números índices, se apresentam de forma negativamente correlacionadas. Quanto ao saldo da mesma conta, alguns períodos se destacam. De fato, num primeiro momento de valorização do real, particularmente nos anos de 1997 e 1998, o déficit dessa conta chegou a quase US$ 4,5 bilhões em 1997, por conta da aceleração das despesas. De outro lado, com a desvalorização do real, observada em 2002 e 2004, foram registrados saldos positivos na conta, devidos, principalmente, à expressiva queda das despesas, que passaram de US$ 5,5 bilhões em 1997/1998, para US$ 2,5 bilhões em 2003/2004. A partir de 2005, com nova
e gradual valorização do real e o aumento da renda do brasileiro, as despesas voltaram a crescer, o que pode gerar um déficit na conta viagens perto de U$$ 8 bilhões em 2010. Alguns dados recentes mostram esse agravamento da conta turismo no Brasil e ressaltam o danoso efeito da valorização do real. Assim, em 2009 os brasileiros gastaram fora do País U$ 5,6 bilhões a mais do que os estrangeiros gastaram aqui, é um nú-
mero recorde. Nos cinco primeiros meses de 2010, o número total dos gastos dos brasileiros no exterior já foi ultrapassado, ficando 65% acima do registrado no mesmo período de 2009. Com base nessa evolução, o Banco Central revisou a sua previsão para esta conta do turismo em 2010, passando sua estimativa anterior de U$ 7,5 bilhões para U$ 8 bilhões. E nessa conta não entram passagens aéreas (7).
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cia, duração, gastos, meios de hospedagens e de transportes, formas de financiamento e distância, entre outros. Uma primeira e destacada segmentação das viagens pode ser identificada pela frequência de visitas a uma mesma localidade. As chamadas viagens rotineiras, aqui definidas como aquelas que são realizadas ao mesmo destino, no mínimo 10 vezes ao ano. A motivação das viagens constitui-se num outro segmento de análise que merece tratamento diferenciado, por apresentar distintas características dentre seus tipos: lazer; visita a parentes ou amigos; negócios (em seu sentido mais amplo); e outros (saúde, religioso, educacional etc.). 3.1. Viagens e renda
Durante o maior e mais importante evento de negócios de turismo nos EUA, conhecido como "Pow Wow", realizado em maio de 2010, foi divulgado que o Brasil está no quinto lugar como mercado emissor para os EUA – respondendo por 16% deste mercado em número de turistas – superado apenas por Grã Bretanha, Japão, Alemanha e França, sem contar os fluxos dos países do próprio Continente (Canadá e México), que são os primeiros. Ademais, em 2009, um ano marcado pela crise particularmente no seu início, o Brasil foi o único desses poucos países que registrou crescimento, gastando naquele País a enorme cifra de R$ 4,5 bilhões. Quanto às atividades dos brasileiros no exterior, soube-se também que aparece em primeiro lugar na realização de compras, o que novamente destaca o efeito da taxa cambial, ao lado do fato de que nos EUA a participação dos impostos diretos no valor das mercadorias é bem menor que no Brasil (8). Outros dados mostram que o turismo brasileiro vem batendo recordes no exterior. Com o crescimento do número de viagens e maiores gastos, o fluxo de brasileiros é que mais cresce não só nos EUA, mas também no México e na Argentina. Os números desse crescimento impressionam, pois relativamente ao mesmo período do ano passado o fluxo cresceu 33,6% de janeiro a abril deste ano em direção ao Uruguai, 33,8% para os EUA, 41,4% para Portugal, 45,8% para a Argentina e 57,7% para o México. Quanto ao número de passageiros que embarcaram, apenas no primeiro bimestre, para destinos internacionais, depois de ter alcançado 2,5 milhões em 2008, caiu para 2,3 milhões em 2009, mas já subiu para 2,7 milhões em 2010 (9). Quanto ao fluxo de turistas estrangeiros para o Brasil, as notícias recentes são péssimas. Assim, em 2009 o País recebeu 4,80 milhões de turistas, enquanto em 2005 esse número já havia alcançado 5,36 milhões. E, no mesmo período, a participação do Brasil no mercado internacional, que cresceu, caiu de 0,79%, em 1999, para 0,54% em 2009 (10). 3. Turismo doméstico no Brasil As viagens domésticas são as realizadas dentro do território brasileiro, com destinação fora do entorno habitual dos residentes, e que impliquem em pelo menos um pernoite no destino. Elas apresentam distintas características em função de seus diferentes tipos, que envolvem renda do turista, motivo, frequên-
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Na Tabela 6 é apresentada a proporção de domicílios com viajantes, por tipo de viagem: internacionais (2,7%), rotineiras (7,9%) e domésticas propriamente ditas (38,2%). Naturalmente, a proporção de domicílios com viajantes é dada pela soma das proporções de cada tipo de viagem, descontada a parcela de intersecção, para evitar dupla contagem de domicílios, com indivíduos que realizam mais de um tipo de viagem. Essa proporção alcança um total de 43,4%. A proporção de domicílios com viajantes cresce com a renda, qualquer que seja o tipo de viagem. De fato, a proporção de domicílios com pelo menos um de seus residentes que realizou ao menos um tipo de viagem evolui de 32,4% na menor classe de renda para até 76,1% na classe superior, conforme o Gráfico 4. Como as viagens rotineiras apresentam características mais específicas, para as quais as ações de política são de outra natureza que não as de promoção, nossa análise será dedicada apenas às viagens domésticas, exceto essas rotineiras. 3.2. Sazonalidade das viagens Um dos fatores que contribui para a alta dos custos no turismo e à inviabilização de investimentos no setor é a não regularidade do uso de seus equipamentos e serviços, em termos de hospedagem, transportes e estradas, entre outros, além da questão do abastecimento de alimentação e de outras necessidades dos turistas. A concentração do consumo nos meses de "alta estação" é um fato notório, particularmente para o motivo lazer. A Tabela 7 mostra os resultados dos períodos preferidos pelos turistas brasileiros em suas principais viagens domésticas. Considerando-se o total anual igual a 100, se houvesse regularidade nas distribuições mensais a proporção média das viagens seria de 8,33% a.m. Desta forma, analisado na forma de índice, com essa média igual a 100, o mês de dezembro, por exemplo, respondendo por 20,0% do total anual, situa-se 140 pontos superior à média do ano. Por outro lado, maio, com cerca de 4%, representa menos da metade da média anual. A partir dos dados da proporção mensal de viagens, pode-se reconhecer os meses de "alta" ou "baixa" estação (Gráfico 5), relativamente à média. Assim, dezembro, janeiro, julho e fevereiro, são meses de mais "alta" estação; outubro, novembro e março podem ser considerados de "média" estação. Os demais cinco meses, podem ser considerados de "baixa" estação.
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Naturalmente, não havendo regularidade no uso dos recursos e serviços disponíveis, o custo da ociosidade acaba limitando a oferta e se refletindo no preço, o que restringe o acesso de novos consumidores e a capacidade competitiva do turismo brasileiro. A situação de pressão das viagens domésticas no uso dos equipamentos de serviços turísticos, decorrente do modo concentrado que se dá no tempo, é complementarmente agravada pelo fluxo internacional de turistas ao Brasil, também destacadamente mais forte no período dezembro a fevereiro, seguido, em menor proporção, do mês de julho. Convém ressaltar, no entanto, que há algum tempo uma série de ações vêm sendo adotadas, pelos setores público e privado, com vistas a aliviar o problema da sazonalidade: "pacotes" turísticos, tarifas aéreas promocionais e campanhas publicitárias, entre outras iniciativas. 3.3. Origens e destinos das viagens domésticas e suas relações Dentre os números das principais viagens domésticas, destacam-se as matrizes de origem e destino, bem como a lista de principais emissores e receptores, tanto em número de turistas quanto em gastos. As regiões mais desenvolvidas do País são as mais destacadas, tanto como emissoras, quanto como destino. Essa constatação vem ao encontro da percepção de que esta atividade correlaciona-se fortemente com a renda, tanto pelo lado da demanda, quanto pelo lado da oferta, pelas exigências requeridas por esse tipo de "produto", que depende da "massa de consumidores" com renda e das condições dos bens e serviços turísticos oferecidos. 3.3.1. Matrizes Origem-Destino entre regiões A construção de uma matriz origem-destino das viagens domésticas no Brasil, por região, auxilia a interpretar quais as origens dos visitantes da região receptora, assim como os destinos dos residentes da região emissora. Mais do que isso revela que as parcelas mais expressivas dos fluxos turísticos ocorrem dentro das próprias regiões (Tabela 8). 4. Perspectivas do turismo no Brasil O turismo pode ser considerado uma importante atividade econômica, capaz de impulsionar o crescimento de algumas re-
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giões, que apresentem condições para a sua propagação. Entre os benefícios que podem ser gerados por esta atividade destacam-se a de contribuir para a redução das desigualdades regionais e pessoais de renda, para a geração de divisas e para a criação de empregos. Neste aspecto em particular, por se constituir preponderantemente numa atividade do setor serviços, que notadamente utiliza mão de obra de forma intensiva, o potencial gerador de emprego do turismo é muito relevante, sendo, também por isso, a base do crescimento da economia de regiões ou mesmo países. A concepção comumente reconhecida é a de que a importância do turismo numa economia é determinada pelo significado de seu turismo internacional. Porém, nem sempre é assim. Em algumas economias, como no Brasil, o turismo interno é mais determinante na composição da renda do turismo, do que a contribuição dada pelo turismo internacional. E mais: em algumas localidades que apresentam condições propícias, é essencial o desenvolvimento da base formada pelo turismo interno, que, além de acarretar diretamente benefícios para seus residentes e para suas economias, geram externalidades em favor da sustentação do crescimento do turismo internacional. 4.1. Abordagens do crescimento do turismo O crescimento do turismo depende da demanda por bens e serviços desta atividade e da oferta de atrativos e de investimentos em infraestrutura e em serviços. Assim, tem-se duas linhas de abordagem sobre os determinantes do crescimento do turismo. Na primeira a demanda determina a oferta, ou seja, a demanda por um determinado bem ou serviço estimula investidores a se interessarem em oferecer produtos e serviços com vistas a atendê-la. A demanda efetiva é formada pelos indivíduos ou empresas, que possuam renda suficiente para o consumo de um "produto", e essa disponibilidade de renda, torna-se ainda mais evidente no turismo, por se tratar de uma atividade considerada como não essencial. Na outra abordagem a oferta determina a demanda, ou seja, os investidores se antecipam ao mercado de consumo, oferecendo bens e serviços, baseando-se em uma perspectiva de demanda potencial ou latente. Esta abordagem implica em maiores riscos, mas, de outro lado, propicia maiores ganhos aos investidores e oferece mais vantagens às localidades, por permitirem planejar o modo de seu crescimento. No turismo mundial encontram-se experiências dessas duas modalidades. Na maior parte dos casos, não são observadas muitas experiências de planejamento da oferta, como base para
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No Brasil, o turismo interno é mais determinante na composição da renda do setor, em comparação ao turismo internacional. a formação do mercado consumidor. Mas, em muitas vezes em que essa linha foi adotada os resultados se revelaram bem sucedidos. Dentro desse grupo, podem ser citados os casos de: Cancun (Caribe), Languedoc (França), Las Vegas (EUA), Disneylândia e Disneyworld (EUA), entre outros. Esses casos, ao lado da capacidade de planejamento do setor público, dependem também da iniciativa e das possibilidades de investimentos desses países e seus investidores, como condições para que possam aproveitar as oportunidades previstas por suas demandas identificadas inicialmente apenas pelo seu potencial. Com ocorrências mais frequentes, têm-se experiências de que o crescimento do turismo se dá a partir da demanda por locais privilegiados pela natureza ou construídos ao longo da história. Essa demanda que interfere no crescimento da atividade do turismo pode ser decorrente do próprio mercado interno ou do externo. A maior ou menor participação da demanda interna na demanda total do turismo é determinada por fatores intrínsecos aos países, com destaque para suas respectivas localizações.
Os países que dependem menos da demanda externa são aqueles que possuem um mercado interno bem desenvolvido, com número de pessoas com renda suficiente para ingressarem no mercado de turismo. Além disso, também costumam se localizarem relativamente mais distantes dos principais mercados emissores mundiais do turismo. Para países com essas características, como o Brasil, a predominância da demanda interna na sustentação do turismo pode se revelar uma alternativa para o crescimento do turismo, gerando, inclusive, externalidades para o crescimento e diversidade de bens e serviços turísticos, capazes de atrair o turismo internacional em períodos subsequentes. A relação dos países que revelam predominância do mercado interno, com base na relação pernoite doméstico/internacional maior que um, pode ser verificada na Tabela 9, onde foram incluídas também as variáveis território, população e renda que auxiliam a explicar esta predominância. 4.3. Fatores que favorecem a demanda externa
4.2. Fatores que interferem na preponderância da demanda interna Entre esses fatores, além da disponibilidade e diversidade de atrativos turísticos, destacam-se: o tamanho de áreas aproveitáveis do território, o tamanho da população, seu o nível de renda; e a disponibilidade de infraestrutura e de facilidades de acesso, entre outros. Para localidades que apresentam relevâncias nessas características, a demanda interna tende a atuar de forma mais intensa e contribui para a ampliação da oferta de produtos turísticos. Ressaltam-se como integrantes deste grupo: Estados Unidos, Brasil, Austrália, Alemanha e China. Existem casos em que tanto o mercado interno, quanto o externo apresentam importantes contribuições relativas, por suas características, disponibilidade de atrativos turísticos e localização. O caso mais evidente é o da Espanha, em que o turismo interno é muito relevante, ainda que sobrepujado pelo internacional.
Uma maior participação da demanda externa no total do turismo receptivo de um dado país não significa necessariamente que o turismo interno não apresente importantes resultados em valores absolutos, embora isto possa vir a ocorrer em alguns casos mais particulares. Os principais fatores que favorecem um importante significado da demanda externa são: renda de seus emissores; localização geográfica e facilidades de acesso; diversidade de atrativos; infraestrutura; vantagens cambiais e de preços; estabilidade política; menores riscos de ocorrências de desastres naturais; entre outros. Um aumento na renda de países emissores, vantagens cambiais e de preços oferecidos por um dado país, por exemplo, são fatores que concorrem para o crescimento da sua demanda por visitantes estrangeiros, particularmente os oriundos de países mais próximos. O mesmo poderia ser dito para cada um dos demais fatores anteriormente mencionados. Para outro fator, e que
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costuma ser preponderante, a disponibilidade de atrativos turísticos e culturais, o tamanho útil do território pode ser adotado como uma "proxy" para representar a potencialidade de uma diversidade de atrativos. Esta variável precisaria ser complementada com outros indicadores, pois localidades com áreas relativamente menores, mas com grande diversidade de atrativos e bem localizadas, aparecem com elevados números relativos de turistas estrangeiros, como são os casos da Espanha, Itália e França. 4.4. Turismo doméstico: base de sustentação do setor no Brasil Embora a importância do turismo numa dada economia se associe com o significado do turismo internacional, o que se verifica nos principais países é que a base para o crescimento
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do turismo seja propiciada pela formação e desenvolvimento do mercado interno. Mesmo em alguns casos em que o mercado externo se revela o mais importante, o mercado interno, em valores absolutos, pode representar alta significância no contexto total. A Tabela 10, baseada em Bull (11), estabelece a relação entre a participação do turismo interno e externo em alguns dos principais países do turismo mundial. Dentre os países constantes (13 países) dessa tabela, em apenas dois – Áustria e Espanha –, o mercado interno não supera o internacional. Uma medida alternativa de avaliação da importância do turismo internacional é dada pela relação das receitas turismo/exportação. Na média dos países a participação do turismo internacional nas receitas totais com exportações vem oscilando entre 6% e 7%. No caso do Brasil, a relação receita do turismo/receita
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das exportações em 2009 é de apenas 4% e, além disso, o valor estimado para o consumo do turismo interno é cerca de 9 vezes superior ao do turismo internacional. Assim, o Brasil está inserido no grupo de países em que o mercado interno do turismo predomina sobre o internacional, podendo se constituir em importante base de sustentação para o próprio turismo internacional. 4.5. Impactos e oportunidades face à realização de mega eventos Os impactos derivados da ocorrência de mega eventos (do tipo Copa do Mundo, Olimpíadas e Jogos Pan-Americanos), bem como de outros eventos especiais (GP de Formula 1, Fórmula Indy, festas de carnaval ou religiosas, e conDivulgação gressos internacionais, entre outros), não se restringem às avaliações de investimentos com o enfoque do retorno privado. Os benefícios e custos, sob a ótica pública, são também amplos e mais complexos de analisar do que a simples avaliação do retorno financeiro. Assim, devem ser avaliados seus resultados também sob outras óticas, que envolvem aspectos de várias naturezas que se repercutem em prazos mais longos, denominados "legados" desses investimentos. No caso dos mega eventos programados para o Brasil, é de se esperar a ocorrência de um conjunto de legados, que podem ser classificados nas seguintes categorias conforme a classificação de Cashman (12) : econômico, estrutural, de O crescimento do turismo depende da demanda por bens e serviços desta aprendizado, de conhecimento, informacional e atividade e da oferta de atrativos e de investimentos em infraestrutura. de comunicação, de ampla difusão da imagem do país, político e negocial, da natureza do evento e histórico e de imagem. De todos esses legados selecionamos para uma breve disEssa parece ser também desde já a perspectiva quanto à cussão o legado estrutural à necessária melhoria da infraestrumodernização ou construção de estádios previstos para a tura urbana e o legado referente às obras mais diretamente liCopa de 2014. Ingenuamente, se afirma que o Governo Fegadas à realização do evento, mais especificamente os estáderal por meio do BNDES se dispõe a financiar parte signidios. Cabe também uma referência à questão da gestão, pois ficativa desses estádios, desde que se demonstre um retorno em sua quantidade e qualidade todos esses legados dependem adequado. A utilização dos estádios de futebol como arenas evidentemente de uma gestão eficaz e eficiente. de espetáculos tem sido mínima no Brasil. Mesmo com o fuQuanto à experiência dos Jogos Pan-Americanos tudo indica tebol, vale mencionar que a frequência aos estádios brasileique o legado foi particularmente desfavorável no que diz resros em jogos do campeonato da primeira divisão de 2009 alpeito à gestão, com implicações nos custos, e quanto à utilização cançou média de 17.807 espectadores; enquanto que, no posterior da infraestrutura de equipamentos desportivos. Secampeonato alemão essa média foi de 42.565, no inglês de gundo informação publicada pelo Jornal do Brasil, as previsões 35.600, no espanhol de 29.124 e no italiano de 25.304 (14). A do orçamento do evento foram fortemente ultrapassadas na mesma fonte revelou que na copa de 2006 na Alemanha, 62% execução (13). Além disso, os estádios, a vila olímpica, o parque dos estádios vieram de projetos de empresas de vários seaquático, entre outros equipamentos desportivos, construídos tores. Enquanto isso, no Brasil, prevê-se que dos R$ 5,3 bicom recursos públicos, se transformaram, após o evento, em lhões previstos oficialmente para essa finalidade, R$ 3,5 biverdadeiros "elefantes brancos", como o caso do Engenhão que, lhões serão desembolsados pelos governos estaduais com por falta de previsão de sua utilização posterior, foi cedido a um possibilidade de financiamento federal de apenas R$ 400 clube de futebol em condições vantajosas para esse clube e com milhões por unidade do BNDES. Esse alto custo decorre de retorno insignificantes para a sociedade. exigências da FIFA e que foram aceitas pelo Brasil sem maio-
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res questionamentos aumentando consideravelmente os custos do evento. Vale lembrar a propósito que, no caso de São Paulo, onde o maior estádio é de propriedade de um clube privado, este não teve condições de atender aos requisitos da FIFA, que desejava uma reforma de valor vultoso, e que o clube não se viu em condições de enfrentar, mesmo recorrendo a investidores privados. Como o acerto com a FIFA já foi feito, tudo indica que no caso dos estádios será inevitável um amplo legado de "elefantes brancos". De qualquer forma, da experiência de Pan seria importante um empenho muito maior na gestão desses empreendimentos, para evitar que se tornem ainda mais caros por revisões orçamentárias injustificáveis e outras distorções que costumam acontecer diante de fatos consumados impostos pela necessidade de concluir os estádios a Flávia Perin tempo do evento. Na infraestrutura em torno dos estádios, áreas adjacentes e para o acesso ao mesmo é que há espaço para um legado efetivamente utilizável pela população e capaz de gerar um retorno adequado. É aí que o esforço governamental deve concentrar sua atenção, e novamente de olho na gestão e execução dos projetos, sem desconsiderar, contudo, os custos de oportunidade do montante de gastos com esses investimentos em relação à escala de prioridades da população brasileira. 5. Algumas recomendações para o turismo no Brasil
nar e facilitar a tendência espontânea manifestada, a partir das forças da demanda, ou, alternativa e complementarmente, enfatizando-se o lado da oferta, orientando-se e estimulando novos investimentos públicos e privados na região. Como exemplo das potencialidades regionais, destacaremos a região Nordeste. Conforme assinalamos, o Nordeste constitui-se, em termos relativos numa importante região turística do País, particularmente por se revelar o mais desejado pelo mercado interno, por dispor de um conjunto complexo de atrativos ansiados pelos brasileiros: sol e praia quase o ano todo, aspectos culturais, místicos e religiosos, gastronomias típicas e hospitalidade, entre outros. Essa região vem apresentando crescentes resultados também no mercado internacional, revelando perspectivas muito favoráveis para novas investidas, promovidas, por exemplo, com o aumento de linhas aéreas diretas, ampliação dos canais de comercialização no exterior, promoção de eventos, entre outros. A propósito, vale citar análise desenvolvida por dois economistas da região: "A região está mais próxima dos grandes mercados consumidores (Estados Unidos e Europa) que o restante do Brasil, com exceção de algumas partes do Norte; tem grande potencial de geração de energias alternativas (graças à sua maior insolação e disponibilidade de ventos); tem, nos seus centros urbanos de maior expressão, uma parte de sua força de trabalho altamente qualificada; possui uma infraestrutura de transporte, energia e comunicações razoável, embora necessitando atualização e ampliação. É preciso estudar mais esse potencial; promover iniciativas pioneiras em setoA cidade histórica de Ouro res que explorem essas vantagens; divulgar Preto, em Minas Gerais, é um entre possíveis investidores as características dos destinos mais procurados. favoráveis do Nordeste (15).
Há muito tempo, a aceleração do crescimento do turismo no Brasil constitui-se em permanente desafio para sua consecução, agora acrescido da ocorrência de fatos novos, em particular pela realização dos mega eventos da Copa em 2014 e das Olimpíadas em 2016. Nossas recomendações reforçam algumas já conhecidas ao lado de outras que emergem especificamente da análise realizada e de outras considerações que acrescentaremos nesta seção.
Ênfase no mercado Interno O Brasil deve basear o crescimento de seu turismo a partir do fortalecimento do mercado interno que, além de seus benefícios, gera externalidades para a sustentação do crescimento do turismo internacional. Enfoque Regional Este deve ocorrer articulado com autoridades estaduais e municipais e atentando para dois aspectos principais. O primeiro deles se refere à priorização dos segmentos de mercados mais típicos para uma dada região, tanto no que tange à sua procedência, de origem doméstica ou do exterior, quanto no que tange ao segmento que representa, em termos de níveis de renda, motivações de viagens, perfil psicográfico, entre outros. O outro, diz respeito à estratégia a ser adotada numa dada região para promover-se o crescimento das atividades do turismo: orde-
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Sazonalidade do turismo Atenção especial deve ser dada a essa questão mediante iniciativas para aliviá-la, pois tanto prejudica os benefícios do turismo em todo o Brasil. Há várias iniciativas nessa direção, mas vale destacar um potencial em que é preciso concentrar esforços, o de ampliar programas turísticos específicos para a população da melhor idade. Há em andamento uma clara tendência de envelhecimento da população brasileira, com o contingente de idosos devendo aumentar significativamente nos próximos anos. Ora, grande parte desse contingente é aposentada, não tem as restrições ligadas ao exercício de trabalho que inviabilizam o desenvolvimento do turismo fora dos períodos típicos de férias dos trabalhadores. Nessa linha, caberia estudar também a possibilidade de que algumas localidades turísticas fossem equipadas com serviços de saúde para atendimento desses idosos particularmente na época fora de estação enquanto nesta última atenderia a clientela aumentada pela vinda dos turistas. Fomento e financiamento O turismo deve receber a atenção que merece de agências governamentais voltadas para o fomento e o financiamento de
investimentos, bem como a promoção do Brasil no exterior, como o Sebrae, o BNDES e a APEX. Agências como essas costumam ter um viés industrial em suas prioridades de financiamento, o que decorre de tradições arraigadas que não percebem que o maior crescimento das economias modernas ocorre principalmente no setor de serviços, um fenômeno que há bastante tempo se observa também no Brasil.
no federal, além de conquistar mais facilmente o apoio dos estados e municípios, mais diretamente envolvidos.
Taxa de câmbio Vimos que o valor dessa taxa vem nos últimos anos prejudicando seriamente o turismo no Brasil porque incentiva a saída de brasileiros para o exterior e as compras. Na indústria, o efeito do câmbio costuma ser atribuído à chamada desindustrialização. No caso do turismo ele está levando o brasileiro a uma "turismização", favorecendo as saídas ao exterior. É preciso retomar as discussões do dólar turismo como instrumento de política para a melhoria de resultados do turismo internacional no Brasil.
Retomada das competições esportivas universitárias Nas décadas de 1960 e 1970, os esportes universitários tinham importância considerável, particularmente no Estado de São Paulo, mas havia até mesmo torneios nacionais. Infelizmente, ele caiu em desuso. Entendemos, contudo, que é indispensável como base para o desenvolvimento dos esportes no Brasil, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos. O ensino universitário cresceu muito, de modo que, no segmento dos esportes, se as ações fossem desenvolvidos em conjunto com o ministério da Educação os resultados permitiriam a retomada da valorização dos esportes universitários, em favor de uma juventude mais sadia, além da formação de "atletas de ponta", para os quais seriam destinados incentivos, tipo bolsas de estudos, por entidades mantenedoras das instituições de ensino superior.
Maior Integração dos Ministérios do Esporte e do Turismo Por serem atividades que caminham juntas e estarão particularmente mais estreitadas nos anos que antecedem a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016, deve-se buscar uma maior integração entre estes ministérios, bem como com outras instâncias da administração pública que tenham relações com essas atividades. Não se afigura como adequado que haja distanciamento dos órgãos que de alguma forma interagem com essas questões do turismo, particularmente nesta oportunidade, em que se fazem necessários substanciais montantes de investimentos. Essa atuação mais conjugada, além da sinergia que propicia, resultará na ascensão dessas atividades na escala de prioridades do governo, facilitando o acesso à Presidência da República, propiciando maior atenção no planejamento e na execução no que compete ao gover-
Redirecionamento de recursos do Ministério do Turismo É de reconhecimento geral a "pulverização" de recursos destinados a realizações de festas, desde juninas, "réveillons" e outras, de modo generalizado. Assim, de 2003 a 2006 o Governo Federal gastou R$ 116,5 milhões para festas e eventos. No período 2007 a 2009 esse valor aumentou para R$ 601 milhões (16). Essas verbas, intermediadas por políticos, têm gerado frequentes denúncias de que são mal utilizadas, pois são concedidas num esquema aberto a todo tipo de irregularidades, em particular o seu vazamento para instituições, pessoas ligadas aos seus próprios intermediários. Ademais o volume é muito vultoso e o impacto delas na efetiva promoção do turismo não é sujeito a qualquer avaliação, podendo-se se admitir que seja inexistente em boa parte dos casos, pois, são realizadas para uma clientela predominantemente local e por critérios políticos.
Notas (1) FIPE - Relatório de Pesquisa: "Caracterização e
(10) Veja, 23/6/10.
Dimensionamento do Turismo no Brasil", paginas 124 e 125, São Paulo, 2002. (2) IBGE - Estudos e Pesquisas Informação Econômica nº 12 "Economia do Turismo: Uma Perspectiva Macroeconômica 2003-2006", página 33, Rio de Janeiro, 2009. (3) FIPE - Relatório de Pesquisa: "Impacto Econômico do Turismo Avaliado pela Conta Satélite de Turismo", paginas 25 a 38, São Paulo, 2002. (4) Veja, 23/6/10. (5) OMT - Tourism Highlights 09 e Banco Central do Brasil: Balanço de Pagamentos de 2009. (6) Rabahy, Wilson Abrahão - Turismo e Desenvolvimento, Capítulo XIII, páginas 177 a 196, Editora Manole, São Paulo, 2003. (7) Folha de S. Paulo, 23/6/10, p. B4. (8) Diário do Comércio, 25/5/10, p.5. (9) Folha de São Paulo, 25/6/10, p.B1.
(11)
Bull, Adrian - La Economía del Sector Turístico, Capítulo 7 e páginas 219-220, Alianza Editorial, Madrid, 1994. (12) Baseadas na Classificação apresentada por Richard Cashman no Simpósio sobre o Legado Olímpico, realizado em 2002. Veja-se DACOSTA. L.; RODRIGUES. R.; PINTO. L.M.M.; TERRA. R. Legado dos Megaeventos Esportivos. Brasília: Ministério do Esporte e Confef, 2008. (13) Segundo o Jornal do Brasil (29 de julho de 2007), in "Dos Jogos Pan-Americanos Rio 2007 à Olimpíada do Rio 2016...", de Anderson Gurgel, na Revista de Economia & Relações Internacionais, Vol. 8 (16), página 27, 2010: "o orçamento do Pan ficou quase 800% mais caro do que o previsto há cinco anos". (14) Jornal Valor Econômico (1/6/ 2010), nota-se que (15) Veja-se Gustavo Maia Gomes e José Raimundo Vergolino, "Desenvolvimento regional, com especial referência ao Nordeste", artigo publicado neste mesmo número da Digesto Econômico. (16) Folha Online, de 19/4/2010.
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Desenvolvimento regional, com especial referĂŞncia ao Nordeste
Foto montagem: Fernando Donasci/Folhapress / MAX
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Gustavo Maia Gomes É doutor em Economia pela Universidade de Illinois, EUA, com pós-doutorado em Cambridge, Inglaterra. Foi Secretário de Planejamento de Pernambuco, diretor do IPEA e diretor-geral da Escola de Administração Fazendária. Atualmente, colabora com a Datamétrica Consultoria e com a revista Nordeste Econômico, ambas do Recife.
José Raimundo de Oliveira Vergolino É doutor em Economia pela Universidade de Illinois, EUA e professor titular da Faculdade Boa Viagem (Recife). Foi consultor de organizações nacionais e internacionais, como o Banco Mundial, o PNUD e o governo de Pernambuco. Recebeu o prêmio BNDES/ANPEC2009 pelo seu trabalho sobre o papel dos fundos setoriais no desenvolvimento do Nordeste.
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Resumo Este trabalho tem o objetivo de apresentar propostas para uma nova política federal de desenvolvimento econômico do Nordeste. Para dar um contexto às propostas, o trabalho se inicia com um diagnóstico da situação atual da região, de seu crescimento recente e da sua evolução relativamente a outras regiões do Brasil. As principais constatações deste diagnóstico são as de que o Nordeste tem crescido (moderadamente) mais do que o Brasil, tanto quando a comparação é feita tomando em conta um período mais longo (1970/2005, por exemplo), como quando o enfoque se restringe aos anos mais recentes (por exemplo, 2005/09). No ritmo em que as coisas andam, entretanto, ainda levaria 130 anos para o produto per capita do Nordeste alcançar o do Brasil. Os indicadores econômicos e sociais para os anos mais recentes ainda apontam substancial desvantagem do Nordeste, seja em confronto com as médias brasileiras, seja em relação à região mais desenvolvida. Entre as propostas apresentadas (que incluem ações nas áreas de reforço às instituições, levantamento e divulgação das vantagens competitivas potenciais do Nordeste, apoio à saúde e educação, aperfeiçoamento dos programas de transferência de renda, fomento à ciência e à tecnologia, fim da guerra fiscal entre os estados), destaca-se a recuperação do investimento público, especialmente, em infraestrutura. Desde a década de 1980, no Nordeste e no Brasil, o investimento público despencou, com fortes repercussões negativas sobre o crescimento econômico. Ele foi substituído por uma destinação crescente de verbas federais para o financiamento de programas de transferência de renda. Na proposta aqui defendida, os programas de transferência deverão ser mantidos e aperfeiçoados, mas é fundamental encontrar formas de fazer o governo investir mais, nas linhas esboçadas, ainda timidamente, no Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC 2007/11. Marlene Bergamo/Folha Imagem
Introdução
E
ste trabalho parte de um diagnóstico da situação atual e da evolução recente, comparativa, do Nordeste, para concluir com um conjunto de propostas de uma nova política federal de desenvolvimento da região, que continua sendo a mais problemática do País, pelos seus indicadores sociais e econômicos sempre piores que a média nacional. A Seção 1 faz uma rápida descrição geográfica e econômica do Nordeste; a Seção 2 apresenta informações estatísticas comentadas sobre o produto interno bruto das regiões brasileiras; a seção 3 discorre sobre os principais indicadores sociais do Nordeste e das outras regiões; a 4 trata da ação do governo e do setor privado no desenvolvimento recente do Nordeste; e a 5, final, apresenta sugestões de políticas públicas. 1. A região Como Roberto Cavalcanti de Albuquerque, um reputado pensador social brasileiro, de origem pernambucana, gosta de repetir, se o Nordeste fosse um país, teria hoje a quarta maior população das Américas (portanto, incluindo os Estados Unidos, Canadá e México no conjunto de referência), alcançaria o quinto lugar em área territorial e seria, pelo tamanho do PIB, a sétima maior economia dos três continentes (1). A região tem uma extensão territorial de 1,5 milhão de km² (18,3% do Brasil), uma população de 51,5 milhões de habitantes (ou 28% da população brasileira estimada, em 2007, em 184 milhões) e uma incidência de pobreza extrema (13%), que é quase duas vezes a média nacional (6,8%) (2). Ou seja, o Nordeste é grande – em alguns aspectos, por exemplo, o tamanho do produto interno bruto, tornou-se grande, nas últimas décadas – mas continua problemático. Menos do que já foi, felizmente. A região ocupa um território heterogêneo, antes de tudo, do ponto de vista físico. A geografia tradicional – exposta, por Cris Berger
A região Nordeste ocupa um território heterogêneo, composto por quatro sub-regiões: Mata, Agreste, Sertão e Meio-Norte.
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exemplo, na obra clássica de Manuel Correia de Andrade (3) – distingue quatro sub-regiões: Mata, Agreste, Sertão e MeioNorte (ver Mapa 1). A Mata, uma tira estreita que vai de Natal, no Rio Grande do Norte, até o Sul da Bahia, é úmida e com chuvas razoavelmente regulares. O Agreste, zona de transição entre a Mata, úmida, e o Sertão semiárido, se estende de Norte a Sul, mais para o interior, porém acompanhando toda a extensão da Zona da Mata. O Sertão, onde as chuvas são poucas, mal distribuídas e incertas, é o palco das secas que celebrizaram o Nordeste e que, de certa forma, conferiram identidade à região, tanto ou mais que a Zona da Mata do açúcar e da civilização decantada por Gilberto Freyre. Finalmente, o Meio Norte é outra zona de transição, desta vez, entre o Sertão seco e a Amazônia excessivamente úmida. De um ponto de vista já não físico, mas, predominantemente, econômico, surge uma outra divisão do Nordeste. Nele se destaca, em primeiro lugar, a porção litorânea, onde se localizam as regiões metropolitanas de Fortaleza, Recife e Salvador, além de todas as capitais de Estado, com exceção de Teresina. É onde está a maior parte das administrações públicas estaduais, onde se concentram o parque industrial da região e as empresas produtoras de serviços. O Litoral engloba, mas vai além dela, a Zona da Mata, onde historicamente se localizou a indústria do açúcar, base da colonização. Em seguida, vem o Agreste. Nessa região caracterizada, em algumas partes, por terras de boa qualidade e fartura de água (especialmente, nas áreas de microclimas); em outras, por solos pobres e escassez de recursos hídricos, há ocorrência de atividade econômica de grande importância regional, com destaque para a pecuária leiteira, a indústria de calçados, a indústria de confecções e o comércio. Cidades de porte médio, como Caruaru (PE), Feira de Santana (BA) e Campina Grande (PB) estão localizadas no Agreste. A terceira sub-região é o Semiárido nordestino – o Sertão, ou "os Sertões" – na verdade, em extensão, a maior delas. Trata-se Divulgação
Com exceção de Teresina, todas as demais capitais estão localizadas na faixa litorânea, área mais rica da região.
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de um território com vegetação predominantemente de cactáceas e bromeliáceas; solos pobres, facilmente erodíveis; elevados níveis de evaporação; precipitações de ciclo curto. Altamente suscetível a estiagens prolongadas – as "secas" –, apresenta grandes bolsões de estresse hídrico, onde a produção agrícola e, via de regra, a atividade manufatureira são inviáveis. Mas a região também inclui porções de território nos quais a disponibilidade natural ou criada de água permite a prática da irrigação e, portanto, o desenvolvimento de uma atividade agrícola de alta produtividade. Os principais polos de fruticultura irrigada do Nordeste (Petrolina/Juazeiro, em Pernambuco e Bahia; Mossoró/Assu, no Rio Grande do Norte; e Baixo Jaguaribe, no Ceará) se encontram no Semiárido. Uma quarta sub-região econômica é o Cerrado nordestino – oeste da Bahia; sul do Maranhão e do Piauí – que se localiza, em parte, no Sertão e, em parte, no Meio-Norte, para seguir a classificação proposta por Correia de Andrade. Trata-se de uma região semi-úmida, dominada por grandes extensões de terras planas, de vegetação rica, de rios e córregos encachoeirados, relativa fartura de água, precipitação extremamente regular
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ao longo do calendário, o que facilita, sobremaneira, a atividade de semeadura e colheita, mas de solos extremamente pobres e ácidos, que somente a partir dos anos 1970 puderam ser aproveitados para a agricultura, graças a novas tecnologias produzidas ou introduzidas pela Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária). Hoje, os cerrados baianos (onde se destacam municípios como Barreiras e Luiz Eduardo Ma-
galhães), piauienses (Uruçuí e outros) e maranhenses (Balsas e outros) são a maior área produtora de grãos do Nordeste, especialmente, soja, com significação nacional. 2. Produto interno bruto das regiões O Gráfico 1 apresenta as estimativas dos produtos internos brutos, para o ano de 2007 (último dado oficial disponível), das cinco grandes regiões do País, segundo a classificação do IBGE. A primeira evidência que desponta é a grande distância econômica entre o Sudeste e as demais regiões brasileiras: o PIB do Sudeste corresponde a 3,4 vezes o do Sul, segunda região mais rica (neste sentido); ou a 4,3 vezes o do Nordeste. Quando a comparação é feita entre os produtos internos brutos per capita (Gráfico 2), fica mais clara a posição especialmente desfavorável do Nordeste, no contexto nacional. O produto interno bruto por habitante desta região correspondia, em 2007, a apenas 35% do valor correspondente no Sudeste. Essas diferenças, como se sabe, vêm de longo tempo. Mas é importante mencionar que, nos anos recentes, tem prevalecido uma tendência de redução da distância econômica entre o Nordeste e o conjunto do País. Com efeito, como mostra o Gráfico 3, no período entre 2005 e 2009, o Nordeste cresceu mais do que o Brasil em todos os anos, menos um (2005). O desempenho da região em 2009 (os dados do PIB regional para 2008 e 2009 são estimativas da Datamétrica Consultoria) foi particularmente notável: em face da crise que fez o PIB brasileiro decrescer 0,2%, o crescimento manteve-se positivo, embora baixo (2%), no Nordeste. Numa perspectiva de longo prazo (começando em 1939, ano mais remoto de elaboração das contas nacionais e regionais no Brasil), a economia nordestina experimentou fases de crescimento mais rápido ou mais lento que o Brasil como um todo e o Sudeste, região mais rica do País, em particular. De modo mais específico, os seguintes períodos são discerníveis, no Gráfico 4: - 1939/55: Concentração; aumenta a diferença entre os PIBs per capita do Nordeste e do Brasil (e do Nordeste em relação ao Sudeste). - 1955/68: Desconcentração; diferenças se reduzem, em favor do Nordeste. - 1968/76: Concentração; aumenta a diferença entre os produtos por habitante; é a época do "milagre econômico" brasileiro. - 1976/87: Desconcentração; diferença volta a se reduzir - 1987/90: Concentração; ciclo curto de aumento da distância econômica entre o Nordeste e o País (ou o Sudeste). - 1990/2007: Desconcentração; tênue, porém persistente, tendência de redução da diferença entre PIBs per capita. 3. Principais indicadores sociais das regiões Nessa seção procura-se apresentar o comportamento dos indicadores sociais da região Nordeste e comparar com a média do País e da região mais avançada, em relação a cada indicador. A Tabela 1 apresenta as informações mais relevantes. Apenas alguns dos dados apresentados receberão
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comentários. Mas todos são significativos. Não pode passar despercebido que, em nenhum caso, a região Nordeste deixa de exibir indicadores sociais piores do que os do País como um todo. O número de pobres no Nordeste ainda é muito elevado para os padrões de uma nação que se pretende em processo de modernização, o que quer que isso signifique. Transformando o coeficiente de 42% em números absolutos, tem-se um total de 24 milhões de pessoas auferindo uma renda per capita inferior à linha de pobreza. Isso representa o dobro do percentual do País e é mais de três vezes superior à média da região Sul, a melhor posicionada nesse indicador. Em relação à população indigente, representada pelas pessoas com renda domiciliar per capita inferior à linha de extrema pobreza, é possível perceber que o montante também é bastante elevado. Em termos percentuais, o Nordeste tem 16% de pessoas nessa situação, enquanto o Brasil tem 8% e a região Sudeste 3%. Em termos absolutos, são 7,5 milhões de indigentes no Nordeste, praticamente três quartos da população da Região Metropolitana de São Paulo. Essa situação de pobreza e indigência está fortemente correlacionada com o nível médio de escolaridade da população regional. A taxa de analfabetismo do Nordeste, aqui definida como a percentagem das pessoas analfabetas (de um grupo etário) em relação ao total das pessoas (do mesmo grupo etário), é praticamente o dobro da taxa do país e três vezes maior que a taxa da região Sul. A taxa de analfabetismo funcional da região Nordeste é da ordem de 31,6% da população com mais de 10 anos, acima da média do país e o dobro da região Sudeste. Outros indicadores disponíveis, como índice de Gini, que mede a concentração da renda pessoal; o rendimento médio mensal per capita do trabalho; e o Índice de Desenvolvimento
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Humano (no qual a educação apresenta uma participação importante), encontram-se todos aquém da média nacional. Todos esses indicadores têm melhorado, inclusive, no que tange à posição relativa do Nordeste diante do Brasil como um todo. Mas não têm melhorado a uma velocidade satisfatória. Para se ter uma ideia: partindo dos atuais níveis do produto per capita (da região e do Brasil) e mantidas as respectivas velocidades de crescimento das últimas quatro décadas (2,6% e 2,0% ao ano), seriam necessários 130 anos para que o produto por habitante do Nordeste alcançasse o valor médio brasileiro. Claramente, nem o Brasil nem o Nordeste brasileiro podem esperar até 2.140 pelo cumprimento do objetivo constitucional de reduzir (supostamente, a limites razoáveis) as disparidades entre as regiões.
4. A ação do governo e do setor privado no desenvolvimento recente do Nordeste Uma visão sintética do papel dos governos e da iniciativa privada no desenvolvimento regional recente pode ser obtida com o recurso à dicotomia do antigo e do novo "paradigmas", conforme a Tabela 2. O "antigo" paradigma de desenvolvimento do Nordeste, que vigorou, grosso modo, da criação da Sudene (1959) até o início da década de noventa, produziu crescimento econômico elevado, porém com fortes oscilações, até 1980, e desaceleração, no restante de seu período de vigência. O novo paradigma (desde 1990), em contraste, tem tido como resultado um crescimento lento, porém mais estável, do produto regional. Para o desenvolvimento do Nordeste, a frase de maior impacto contida na tabela acima é "colapso do investimento público e declínio das instituições". O colapso do investimento público federal, eloquentemente ilustrado no Gráfico 5, foi um fenômeno que afetou todo o País. Já o declínio de instituições como a Sudene, o DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), a Chesf (Companhia Hidrelétrica do São Francisco) e a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba), que desempenharam papéis decisivos – investindo e incentivando o investimento privado – na era de ouro do crescimento regional (1959/80) foi uma ocorrência de significação apenas regional (4). Os dois fatores (a despeito de terem, eles próprios, suas raízes em um processo macroeconômico mais amplo) foram responsáveis pela interrupção do crescimento econômico nordestino, na década de oitenta. Por isso, já que sobre as instituições não há nada favorável a registrar, a promessa mais importante feita nos anos recentes é a de uma possível retomada do
investimento público, com os grandes projetos de infraestrutura incluídos no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento, 2007/11) e, também, do investimento privado, estimulado por créditos públicos, que buscam explorar as potenciais vantagens competitivas da região. Os principais desses projetos, em andamento ou anunciados, estão relacionados nos Mapas 2, 3A e 3B e na Tabela 3 a seguir. 5. Sugestões de políticas públicas para o Nordeste As sugestões de políticas que deveriam ser adotadas pelo próximo Governo Federal para estimular o desenvolvimento econômico e social do Nordeste estão distribuídas em sete itens: (I) Recuperação do investimento, especialmente, do investimento público; (II) Reforma das instituições regionais (Sudene, Banco do Nordeste, Codevasf, DNOCS); (III) Fim da guerra fiscal entre estados e municípios; (IV) Identificação das vantagens competitivas atuais e potenciais do Nordeste; (V) Ações diretas do governo federal na educação e saúde; (VI) Apoio à ciência e tecnologia na região e para a região; e (VII) Aperfeiçoamento das políticas de transferência de renda. Recuperação do investimento, especialmente, do investimento público A recuperação do investimento, cuja relação com o PIB vinha caindo desde a década de setenta, mas que cresceu um pouco nos anos imediatamente anteriores à crise de 2008/09 (quando voltou a cair), é a questão central da economia brasileira, não apenas da nordestina. Mas o problema principal está no investimento público. Isso porque, mantida a relativa responsabilidade fiscal e regulatória que tem caracteri-
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Dida Sampaio/AE
É importante que os investimentos públicos na criação de infraestrutura de irrigação sejam retomados.
zado os últimos governos, é possível esperar que os investimentos privados voltem a crescer por si mesmos, no Brasil e no Nordeste, desta vez, com maior estabilidade. Numa economia integrada internacionalmente, quando existe confiança de empresários e investidores e a conjuntura mundial é favorável, a poupança externa flui em abundância e os projetos de investimento podem ser viabilizados pelo próprio mercado. Nesses investimentos privados devem ser incluídos os de empresas estatais que têm acesso ao crédito internacional de longo prazo. Em adição a eles, com ajuda pública, é verdade (sobretudo, do BNDES), projetos privados de grande porte, como alguns dos relacionados na Tabela 3 , já estão se instalando no Nordeste. A manutenção das condições macroeconômicas (nacionais e internacionais) favoráveis à sua consolidação e à vinda de outros é essencial ao desenvolvimento regional. Mas isso deve acontecer. A hipótese implícita é que a economia mundial volte a funcionar em condições não inteiramente dissimilares às verificadas nos anos anteriores à crise de 2008/09. Nesse ponto, entretanto, podemos apenas esperar o melhor. A recuperação (apenas parcialmente prenunciada pelo PAC) do investimento público em infraestrutura é muito mais problemática. Nos últimos anos, houve enorme expansão dos gastos públicos no Brasil, mas a imensamente maior parte desse crescimento se deu nas despesas correntes. Como diz
Raul Velloso, o Governo Federal fez "a opção política de transformar o Orçamento da União numa grande folha de pagamento, ou num verdadeiro repositório de transferências para pessoas e outros gastos correntes. (...). A União paga mais de R$ 40 milhões de algum tipo de contracheque e consome com isso R$ 378 bilhões, ou 76% do seu gasto total" (5). Alguma reformulação dessa política precisa acontecer, em benefício do Nordeste e do Brasil. Cabe, não apenas, manter e acelerar a implantação dos grandes projetos de infraestrutura, alguns dos quais, como a ferrovia Transnordestina, mal foram iniciados. É preciso reunir recursos adicionais para financiar novos projetos. Os investimentos públicos na criação de infraestrutura de irrigação precisam ser retomados; a expansão do turismo no Nordeste está bloqueada pela precariedade das condições de saúde (leia-se: saneamento básico) e de segurança (leia-se: educação de qualidade, polícias mais bem equipadas, habitação popular) e de mobilidade (leia-se: estradas, melhores aeroportos, recuperação de sítios históricos) nas cidades que atraem ou podem atrair visitantes; o potencial de geração de energia eólica na região (equivalente, apenas no Rio Grande do Norte, a uma usina do porte de Itaipu), que pode ser explorado pela iniciativa privada, mas com algum investimento público inicial, está completamente subutilizado. A pauta é ampla: muito mais poderia ser dito. Os governos estaduais têm esses investimentos mapeados. Cabe ao próximo Governo Federal redirecionar suas despesas para abrir
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mais espaço para o investimento. Isso é mais fácil de fazer numa situação de crescimento econômico como a que se espera para os próximos anos. Trata-se de uma engrenagem: o crescimento inicial aumenta os recursos públicos e permite o financiamento de mais investimentos públicos. Mas o crescimento somente se sustentará se esses investimentos forem feitos. No Brasil; ainda mais, no Nordeste. Reforma das instituições regionais Não se fará o desenvolvimento do Nordeste sem a colaboração de instituições regionais fortes, dotadas de instrumentos eficazes, cuja missão explícita seja promover o desenvolvimento econômico da região. Nos últimos anos, alardeou-se bastante a ideia do Estado mínimo; atualmente (a julgar pela nossa carga tributária), estamos próximos do Estado máximo. Mas este Estado é grande e, no capítulo que interessa à presente discussão, ineficiente. A questão principal não parece ser o tamanho do Estado (que pode, sim, ser excessivo), mas o que ele, grande ou pequeno, faz. Na região Nordeste, há muito tempo, o setor público deixou de promover o desenvolvimento econômico para se tornar um agente que subsidia o consumo. Num quadro como esse, instituições como a Sudene, o Banco do Nordeste e a Codevasf, cujo ofício seria fomentar a atividade econômica, não têm nenhuma importância diante do INSS (aposentadorias, especialmente, rurais), do Ministério do Desenvolvimento Social (Bolsa Família, Benefícios de Prestação Continuada e outros) ou das seções de pessoal das prefeituras. Não é verdade, portanto, que o poder público federal tenha, desde o colapso do "antigo paradigma (em meados dos anos oitenta), voltado as costas para o Nordeste. A diferença é que, onde antes a União e suas empresas construíam infraestrutura e faziam investimentos diretamente produtivos, agora o Governo Federal faz transferências de renda a pessoas. Essa tendência se acentuou a partir de 2003. São quase R$ 40 bilhões por ano em transferências, contando apenas os grandes programas (Bolsa Família, BPC e aposentadorias do INSS). Para se ter um marco de comparação, as intenções de investimento da União no Nordeste em infraestrutura de transporte, recursos hídricos e energia elétrica nos quatro anos de vigência do PAC 2007/10 somam pouco mais de R$ 30 bilhões, ou R$ 7,5 bilhões por ano (e nem 10% das obras do PAC no Nordeste tinham sido concluídas, até dezembro de 2009); o aporte anual do FNE está previsto (2010) em R$ 4,5 bilhões; o do Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FDNE), gerido pela Sudene, é R$ 1,6 bilhão (em cada ano, nem 10% deste valor tem sido liberado). A reforma das instituições federais, especialmente, da Sudene, ou a criação de uma sua sucessora, é essencial ao Nordeste. Uma instituição forte precisa de instrumentos que a possibilitem transformar a sociedade em que atuam. A coordenação dos investimentos federais no Nordeste deveria ser devolvida à região; a reinvenção de um sistema de estímulos fiscais ao investimento privado que, do contrário, se instalariam nas regiões mais desenvolvidas, é essencial. Não se trata de repetir erros do passado: os incentivos poderiam ser alocados, por exemplo, em função do funcionamento efetivo
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das empresas e não como aportes de capital, evitando os perigos maiores de fraude. Apesar de fratricida e, macroeconomicamente falando, prejudicial ao conjunto (por ser, em grande medida, um jogo de soma zero, ou negativa), os incentivos fiscais estaduais têm funcionado no Nordeste. Alguma coisa semelhante precisa ser inventada no âmbito federal, com aplicação à região Nordeste. Fim da guerra fiscal entre estados e municípios Desde a falência da política regional federal, em meados dos anos oitenta, os governos estaduais (e de alguns municípios) do Nordeste se puseram a fazer promoções de incentivos fiscais e não-fiscais para atrair investimentos privados. As moedas principais em jogo são o diferimento do ICMS e a oferta de terrenos equipados com infraestrutura para a instalação de empresas. Duas coisas se tornaram consensuais sobre esta situação: de um lado, que os incentivos funcionam, de um ponto de vista individual; de outro, que os benefícios de um estado são compensados pelas perdas do conjunto deles. O fim dessa guerra fiscal somente será alcançado com uma reforma tributária (que torne impossível aos estados oferecerem benefícios fiscais) conjugada com a reinstituição de incentivos federais distribuídos entre os estados nordestinos por uma negociação política e técnica. O segundo ponto é essencial, para prover uma compensação aos estados que perderiam sua capacidade de desenvolver políticas de atração de investimentos. É urgente que isso seja feito e a oportunidade política será o início do novo governo federal.
Mapa 3B: Nordeste - Principais projetos de infraestrutura incluídos no PAC 2007/11 (Parte 2) Duplicação da BR-101
RN
Lote 1 UF: RN Trecho: Entr. RN-063 - Entr. RN-061 Segmento: km 96,5 (p/ Ponta Negra) ao km 142,6 (p/ Arês) Extensão: 46,2 Km Valor: R$ 108,7 milhões 1º BEC Lote 2 UF: RN Trecho: Entr. RN-061 - Div. RN/PB Segmento: km 142,6 (p/ Arês) ao km 177,8 (Div. RN/PB) Extensão: 35,2 Km Valor: R$ 172,3 milhões Consórcio Constran/Galvão/Construcap Lote 3 UF: PB Trecho: Entr. Div. RN/PB - Entr. PB-041 Segmento: km 0,00 (Div. RN/PB) ao km 40,4 (Mamanguape) Extensão: 40,4 Km Valor: R$ 136,8 milhões Consórcio CR Almeida/Via/Emsa Lote 4 UF: PB Trecho: Entr. PB-041 - Entr. PB-025 Segmento: km 40,4 (Mamanguape) ao km 74,1 (p/Lucena) Extensão: 33,7 Km Valor: R$ 106,1 milhões Consórcio ARG/Egesa
PB
Lote 5 UF: PB Trecho: Entr. PB-025 - Div. PB/PE Segmento: km 74,1 (p/ Lucena) ao km 129 (p/ Div. PB/PE) Extensão: 54,9 Km Valor: R$ 178,7 milhões 2º BEC Lote 6 UF: PE Trecho: Div. PB/PE - Entr. PE-035 Segmento: km 0,0 (Div. PB/PE) ao km 41,4 (p/ Igarassu) Extensão: 41,4 Km Valor: R$ 234,3 milhões 3º e 4º BECs
PE
Lote 7 UF: PE Trecho: Entr. PE-025/028/037 - Entr. PE-064/085 Segmento: km 104,6 (Cabo) ao km 148,5 (Ribeirão) Extensão: 43,9 Km Valor: R$ 272,5 milhões Consórcio Queiroz Galvão/Norberto Odebrecht/Andrade/Barbosa Melo Lote 8 UF: PE Trecho: Entr. PE-064/085 - Entr. PE-087/096 Segmento: km 148,5 (Ribeirão) ao km 188,5 (Palmares) Extensão: 40,0 Km Valor: R$ 213,5 milhões Consórcio OAS/Camargo Corrêa/Mendes Júnior Fonte: Ministério do Planejamento, PC 2007/11 (Reprodução permitida)
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Miguel Portela/Diário do Nordeste/Futura Press
tada sob o incentivo da Codevasf, ao gerar oportunidades para pequenos empresários agrícolas e empregos estáveis para muitos trabalhadores, era muito mais "social" que os ensaios de bondade explícita característicos da irrigação estilo DNOCS, nos seus primeiros anos. O caso do turismo é inteiramente semelhante. Várias outras vantagens competitivas potenciais existem, ou se suspeita que existam, no Nordeste. A região está mais próxima dos grandes mercados consumidores (Estados Unidos e Europa) que o restante do Brasil, com exceção de algumas partes do Norte; tem grande potencial de geração de energias alternativas (graças à sua maior insolação e disponibilidade de ventos); tem, nos seus centros urbanos de maior expressão, uma parte de sua força de trabalho altamente qualificada; possui uma infraestrutura de transporte, energia e comunicações razoável, embora necessitando atualização e ampliação. É preciso estudar mais esse potencial; promover iniciativas pioneiras em setores que explorem essas vantagens; divulgar entre possíveis investidores as características favoráveis do Nordeste. Trata-se de um programa vasto, que deveria ser implementado pelo esforço conjunto de uma Sudene revitalizada, juntamente com entidades como as que compõem o Sistema S (Sebrae, Senai, Senac, entre outras), o Banco do Nordeste, as universidade federais da região, entre outras.
A ideologia dos anos 70 e 80 sobre a irrigação sustentava que, "como o grande problema do Nordeste é a falta de alimentos, a irrigação deveria ser voltada para a produção de alimentos de consumo popular".
Identificação das vantagens competitivas atuais e potenciais do Nordeste O debate sobre a viabilidade econômica (e a "desejabilidade" social) da irrigação empresarial de alto rendimento, no Nordeste, demorou quase trinta anos. Hoje, fora de grupos reacionários mais ferrenhos, há poucos adversários da irrigação. Mas a vitória da ideia não foi conseguida sem muita luta, muito debate, muitos estudos. A ideologia dos anos setenta e oitenta, supostamente, de esquerda, sobre a irrigação sustentava que "como o grande problema do Nordeste é a falta de alimentos, a irrigação deveria ser voltada para a produção de alimentos (de consumo popular)". Importava pouco aos que defendiam essa tese saber que a produção de feijão, milho e mandioca em perímetros irrigados com alto custo de implantação e operação era um convite ao prejuízo. O fato é que, sob a bandeira da função social da irrigação, rios de dinheiro público foram jogados fora, em perímetros que só funcionavam com pesados subsídios e que hoje estão, em larga medida, abandonados. Custou a ser percebido que a irrigação empresarial, primeiro implan-
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Ações diretas do Governo Federal na educação e saúde O Governo Federal, desde a Constituição de 1988, tem aperfeiçoado sua atuação nas áreas de saúde e de educação. Ao enfatizar a necessidade de recuperar o investimento público em infraestrutura, não se está querendo dizer que os ganhos já alcançados na saúde e na educação devam ser relegados a segundo plano. Ao contrário, eles têm de ser reforçados. Na educação, em particular, a hora é de melhoria da qualidade. Uma proposta que deveria ser considerada seriamente é a de promover, em quatro anos, a universalização do ensino público em tempo integral, nos níveis fundamental e médio, no Nordeste. A União atuaria em conjunto com os estados e municípios, ampliando o esquema de redistribuição de verbas já instituído pelo Fundeb. Já existem experiências sérias de universalização do regime de tempo integral no ensino médio (por exemplo, em Pernambuco). Os elementos para o cálculo do custo já estão, portanto, disponíveis. A região espera por uma iniciativa radical, nesta área. Apoio à ciência e tecnologia na região e para a região Propõe-se a adoção de um arrojado programa de pesquisa e de inovação tecnológica que permita o desenvolvimento ou a consolidação de vantagens competitivas em setores nos quais o Nordeste possua algum diferencial inicial como, por exemplo, frutas, grãos e seus produtos, e bens industriais com mercado externo em expansão. A Embrapa, em especial, deveria ser contemplada com meios técnicos e financeiros adicionais para reforçar suas pesquisas com produtos e processos de particular importância para o Nordeste, como frutas, vinho, algodão colorido, caprinos e ovinos, mandioca, entre outros.
Jarbas Oliveira/Folha Imagem
As políticas de transferência de renda substituíram a política regional federal de desenvolvimento e isso é ruim. Mas elas são extremamente importantes, no seu próprio contexto, e, indiretamente, podem dar sua contribuição também ao crescimento econômico, ao criarem um mercado onde antes não havia nenhum.
Além disso, atenção especial deve ser dada ao setor de tecnologia da informação e da comunicação, que já se encontra instalado no Nordeste, onde tem presença importante em polos como os do Recife e Fortaleza. A experiência do Porto Digital, no Recife, em particular, é amplamente exitosa. Ela fornece uma pista para sua multiplicação em outros estados do Nordeste, com apoio federal. A preparação da infraestrutura para o desenvolvimento, por iniciativa do setor privado, de vários desses polos pode ser um começo de atuação importante do Governo Federal. O engajamento das universidades federais também deveria ser incentivado, dentro do mesmo propósito. Aperfeiçoamento das políticas de transferência de renda As políticas de transferência de renda substituíram a política regional federal de desenvolvimento e isso é ruim. Mas elas são extremamente importantes, no seu próprio contexto, e, indiretamente, podem dar sua contribuição também ao cres-
cimento econômico, ao criarem um mercado (amparado numa renda monetária pequena, mas constante e confiável) onde antes não havia nenhum. O "aperfeiçoamento" das políticas de transferência de renda, no sentido de potencializar sua contribuição ao desenvolvimento econômico, consiste, principalmente, em oferecer oportunidades de capacitação profissional para os beneficiários dos programas, ou para suas famílias. Os que se capacitarem e, em consequência, passarem a receber rendas maiores, não devem ser descredenciados pelos programas de transferência (por exemplo, o Bolsa Família). Melhor que seja o contrário: quem puder comprovar um incremento de renda decorrente de treinamento, seja oficial ou não, recebido enquanto beneficiário da transferência, deveria ter seu benefício aumentado, como forma de estimular, nele próprio e em outros, a busca da qualificação e da inserção no mercado de trabalho. O impacto de uma política como essa no Nordeste, onde a população, em geral, tem baixa qualificação e onde, em adição a isso, a incidência do Bolsa Família é maior, seria enorme.
Notas (1) Roberto Cavalcanti de Albuquerque, "Modernização e desenvolvimento: a vez do Nordeste", artigo inédito, 2010. (2) Fontes: IBGE, Fórum Nacional, compilados ou elaborados por Roberto Cavalcanti de Albuquerque no artigo citado. (3) Manuel Correia de Andrade, A Terra e o Homem no Nordeste, Recife, Editora da UFPE, 6ª. Edição, 1998. (4) A estreita relação existente entre o investimento público (que, no período, induziu o investimento privado) e a intensidade de crescimento da economia nordestina (assim
como do colapso simultâneo do investimento público e do crescimento) está bem documentada em Gustavo Maia Gomes e José Raimundo Vergolino, "A Macroeconomia do Desenvolvimento Nordestino, 1960/1994", Brasília, Ipea (Texto para Discussão n. 372), 1995. (5) Raul Velloso: "Investir para crescer mais", em Portal CNT (http://www.cnt.org.br/portal/webcnt/ArtigoEntrevista. aspx?id=835b1c00-8213-4993-9236-9abd15561b56), 9 de novembro de 2009. (Acesso em 24 mai 2010).
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Apu Gomes/Folha Imagem
SEGURANÇA PÚBLICA:
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UMA PRIORIDADE NACIONAL
Divulgação/Eliane Souza
José Vicente da Silva Filho Ex-secretário Nacional de Segurança Pública (2002), coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e mestre em Psicologia Social pela USP. Foi consultor do Banco Mundial e é diretor da JVS Consultoria e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da PM de São Paulo.
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Nilton Cardin/AE
Resumo Este texto expõe os principais fatos que caracterizam o Brasil como um dos países mais violentos do mundo, destacando equívocos na abordagem do problema. Analisa as principais questões da violência em termos de causas e soluções, e apresenta propostas para os pontos mais relevantes de uma política nacional para o setor da segurança pública. Dentre as propostas destacam-se a criação de um Ministério da Segurança Pública, melhorias no aparato policial para ampliar sua eficácia e eficiência no controle criminal, aperfeiçoamento da legislação de âmbito da Justiça Criminal, investimentos na criação de vagas prisionais, aprimoramento da segurança das fronteiras, parcerias nas políticas nacionais e das polícias estaduais com as prefeituras nas raízes locais do processo de prevenção.
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Introdução
N
o Brasil ocorrem aproximadamente 100 mil mortes violentas por ano, entre assassinatos e acidentes de trânsito, a um custo mínimo estimado de 5,09 % do PIB ao ano, de acordo com estudo de Cerqueira e outros (2007) para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o que seria suficiente para caracterizar o tema como prioridade na agenda nacional. Para abordá-lo, na Seção 1 são apresentados os indicadores básicos dessa violência, e na Seção 2, de maneira sintética, as principais concepções quanto às suas causas e quanto às consequentes estratégias governamentais e alocação de recursos para enfrentamento do problema. A Seção 3 elenca um conjunto de propostas com fundamentação em cada caso e algum detalhamento das medidas sugeridas. A Seção 4 contém algumas considerações finais. O texto enfatiza políticas de redução da impunidade como principal opção para a contenção da violência, desde a atualização de leis até a adequação das vagas do sistema prisional, passando pelo incremento da capacidade de resposta do aparato policial. Ressalta também a importância de programas sociais de apoio ao amplo processo de prevenção, principalmente em áreas de maior intensidade de violência e em ações direcionadas a jovens que vivem em situação de risco de cometer ou sofrer atos de violência. O texto apresenta ao final um conjunto de propostas com breve fundamentação e algum detalhamento para suscitar o aprofundamento em debates posteriores pela sociedade e pelos setores governamentais vinculados ao problema.
Evelson de Freitas/AE
O Brasil é um dos países mais violentos do mundo. Essa violência tem custo altíssimo: além dos piores sofrimentos que o ser humano pode experimentar, o custo anual da violência no Brasil é, no mínimo, de 5,09% do PIB, totalizando cerca de 134 bilhões de reais para o ano de 2009, segundo estudos.
1. A alarmante violência O Brasil é dos países mais violentos do mundo. Entre 1979 e 2003, período em que a população cresceu 51,8%, as mortes violentas cresceram 461,8%, com registro de 550 mil pessoas mortas por armas de fogo. Num dos levantamentos mais recentes, Waiselfisz (2010) constatou o registro de 47.658 homicídios no Brasil, confirmando os dados oficiais dos últimos anos, que contabilizam média anual superior a 45 mil vítimas de homicídio. Pesquisa efetuada pela Unesco, com dados de 57 países, como menciona o mesmo autor, mostra o Brasil em segundo lugar, depois da Venezuela, com uma taxa de 21,15 mortos por armas de fogo para cada 100 mil habitantes. Para se ter uma base de comparação, constatou-se taxa de 4,34 na Argentina e 0,06 no Japão. Outro estudo de Waiselfisz mostra a face mais dramática dessa violência: no Brasil, a taxa de mortalidade por violência de jovens é de 51,6 casos por 100 mil habitantes, a quinta maior entre 83 países; essa taxa é cinco vezes maior que o registrado no Paraguai e Argentina, 73 vezes maior que na França (0,7 mortes por 100 mil) e 172 vezes maior que no Japão (0,3). Essa violência tem custo altíssimo: além dos piores sofrimentos que o ser humano pode experimentar, o custo anual da violência no Brasil é, no mínimo, de 5,09% do PIB (1) – cerca de 134 bilhões de reais para o ano de 2009, segundo o mesmo estudo de Cerqueira e outros (2007) –, podendo chegar a 7,5%, conforme análises de Bourguignon (1999), do Banco Mundial, ou cerca 670 milhões de reais por dia. Como essa mortalidade exacerbada afeta para menos a expectativa de vida do brasileiro, há impactos adicionais na economia do País: para cada
ano a mais de expectativa de vida, aumenta-se em 9% a capacidade de atração do País em investimentos estrangeiros, segundo estudos conduzidos por Marcela Allan, da Universidade de Harvard (2). Cuidar da redução da violência é, portanto, prioridade tanto social como econômica para o País. Outros dados da criminalidade ainda continuam alarmantes: - As mortes violentas por acidente de trânsito, apesar da imprecisão dos números, superam os 35 mil mortos ao ano. Somados às vítimas de homicídio, em um ciclo de governo de oito anos, cerca de 650 mil pessoas serão vítimas de mortes violentas. O medo é uma constante nas grandes e médias cidades assoladas por altos índices de roubos, latrocínios e estupros. - O tráfico de drogas, que domina extensas áreas das principais regiões urbanas e afeta outras modalidades criminosas, tornou o Brasil o segundo maior consumidor mundial e um dos maiores centros de movimentação de cocaína. Estima-se que o País consuma de 40 a 50 toneladas de cocaína e "exporte" outro tanto ao ano. As polícias estaduais e federal apreendem apenas cerca de 15% dessas 80 a 100 toneladas que invadem o território nacional a partir da Colômbia, Peru e Bolívia. - A pirataria constitui rica atividade de negócios criminosos, que impede a arrecadação de quase 30 bilhões de reais em impostos por ano; segundo estudos da PriceWaterhouse & Coopers, com apenas a redução de 25% da pirataria no setor de informática, o País deixaria de perder 1,7 bilhão de reais ao ano e poderia gerar cerca de 25 mil empregos. - A precariedade de sistemas de seleção, formação, supervisão, disciplina, corregedoria ativa, controles externos e baixos salários têm incrementado excessivamente a vulnerabilidade das polícias, não só à violência como à corrupção, inclu-
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Fábio D'Castro/Hype
sive a vinculada a grupos criminosos, comprometendo seriamente a credibilidade das corporações policiais e sua capacidade de controlar e reduzir a criminalidade. - A ineficiência da investigação das polícias é uma regra nacional, confirmada pelas raras e pontuais exceções. Estima-se que os esclarecimentos nos inquéritos de homicídio – geralmente o tipo de crime que mais se esclarece – não cheguem a 5% no Brasil. - Outra questão explosiva é o problema prisional. Com quase 500 mil presos (473.626 em dezembro de 2009) o sistema prisional brasileiro está com 180 mil condenados sem vagas nos estabelecimentos, em condições precárias e insalubres e à mercê da violência de grupos e indivíduos dominantes nas unidades prisionais. Para esses 180 mil excedentes deveriam ser construídos 360 unidades prisionais e mais o correspondente ao crescimento anual médio de 8% da população prisional (suplemento de mais 80 presídios por ano), mas o Governo Federal não deu qualquer prioridade para esse problema extremamente crítico. - Os presos provisórios (aguardando julgamento) somam mais de 150 mil para pouco mais de 80 mil vagas e se amontoam em delegacias e outras instalações das secretarias de segurança pública que já absorvem, indevidamente, mais de 50 mil condenados que deveriam estar em presídios. - Como se pode constatar, a gravidade das condições de segurança no Brasil não foi afetada pelas pretensiosas e dispendiosas ações do atual Governo Federal. A ideia de que as novas marcas da segurança – Pronasci (Programa Nacional de Segurança com Cidadania) e SUSP (Sistema Único de Segurança Pública) –, e seus conceitos de integração das ações e recursos das polícias estaduais, Polícia Federal e guardas municipais sustentariam um novo tempo de um eficiente trabalho cooperativo não encontrou eco na realidade das polícias que continuaram e continuam exatamente como estavam antes do atual governo, apesar de aumento do orçamento nos últimos quatro anos. Mesmo o dispendioso sistema de segurança (572 milhões de reais) implantado no Rio de Janeiro durante os Jogos Panamericanos de 2007, para ser referência nacional de um novo tempo da segurança pública, não resultou em melhorias nem para os cariocas. Na realidade, o que temos visto é que avanços, em termos de redução da violência, só ocorreram consistentemente em São Paulo e Minas Gerais, por conta dos governos estaduais, enquanto na maioria dos estados os sistemas de segurança pública deterioraram, chegando a uma situação dramática em Alagoas e Bahia, onde a violência praticamente saiu do controle. 2. As concepções sobre a violência e suas causas A violência, assim como outros dramas sociais, tem suscitado diferentes abordagens explicativas por analistas, como policiais, economistas, juristas, jornalistas, cientistas políticos e cientistas sociais. O exame de causas e condições que afetam o descontrole da violência tem importância porque poderia ajudar a entender a dinâmica criminal e apontar políticas, estratégias e instrumentos para sua redução e controle. Não se pretende neste texto explorar a rica diversidade de opiniões e análises, mas apenas ilustrar as principais correntes e suas implicações elementares.
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A pirataria de produtos constitui rica atividade de negócios criminosos, que impede a arrecadação de quase 30 bilhões de reais em impostos por ano.
O recorrente discurso de que o criminoso é uma vítima da pobreza sempre enfraquece a prioridade do governo e a capacidade de resposta do aparato policial e judiciário, inclusive com contingenciamento de verbas e leis protetoras aos predadores da sociedade. A Lei 11.464/07 foi um desses casos ao permitir a liberdade provisória aos autores de crime hediondo, mas as benesses vão da limitação da permanência de criminosos perigosíssimos no regime disciplinar de segurança máxima à sistemática recusa em criminalizar menores de 18 anos autores de violências cruéis, além da adoção de discursos e medidas inconsequentes de ressocialização impossível a psicopatas. O irrealismo dos dispendiosos planos do Governo Federal pode ser exemplificado pela pretensiosa meta (divulgada em 2007) de reduzir o índice de homicídios de 26 para 12 mortos por 100 mil habitantes até 2010. O índice nacional permanece o mesmo e, como já foi dito, só São Paulo e Minas Gerais conseguiram atingir esse índice, apesar de terem sido pouco beneficiados com os recursos do Pronasci. Aliás, o índice nacional só teve pequena queda graças à drástica redução verificada em São Paulo e, em menor intensidade, em Minas Gerais.
Ricardo Moraes/Reuters
- Para justificar a irresponsabilidade dos baixíssimos investimentos no sistema prisional, os governos Federal e de muitos estados argumentam que prender não é solução, como se houvesse alternativa para as pessoas surpreendidas na prática de crimes graves. O problema não é ter presos demais, mas ter vagas de menos nos presídios. O índice nacional é de 246 presos por 100 mil habitantes, enquanto o índice do Estado de São Paulo é de 396 por 100 mil habitantes, aproximadamente o mesmo do Chile. Nos Estados Unidos, esse índice é de 700 por 100 mil. Em países violentos como o Brasil é aceitável a taxa potencial de 400 presos por 100 mil, como fator complementar de contenção da violência (incapacitação dos violentos por retirá-los das ruas), a despeito de todas as providências de penas alternativas e da progressão de penas. A conta pode ser indigesta, mas o nível razoável de aprisionamento para o Brasil deveria ser 50% maior que o atual para gerar impacto decisivo sobre os níveis de criminalidade vigente, a par de outras providências. O custo do encarceramento chega a ser irrisório se comparado ao gigantesco custo da violência. O custo para manter violentos longe das ruas não deixa de ser um bom investimento social. 2.1. A concepção da causa social da violência A primeira concepção, típica de uma insistente ideologia de esquerda que se enraizou na América Latina é a dos violentólogos (3), que entendem a violência como decorrência de "causas objetivas" ou externas às pessoas como a pobreza, a desigualdade, a exclusão social, o desemprego, a falta ou precariedade de serviços sociais; ou seja, esses fatores externos perversos pressionariam as pessoas a optar por comportamentos ilegais e a apelar à violência para resolver seus problemas, reduzindo a importância das decisões pessoais. - A aceitação dessa premissa coloca o sistema de justiça criminal – polícia, Ministério Público, Judiciário e o subsistema prisional – em plano secundário, enfatizando-se programas e
ações sociais destinados a agir sobre "as raízes sócioculturais do crime" como afirmou o ex-ministro da Justiça Tarso Genro ao lançar o Pronasci em 2007. Essa concepção acaba gerando políticas e orientações para a execução de orçamentos do setor como, no âmbito do Pronasci, a criação de bolsas para mães, bolsa-reservistas, jovens em "territórios de descoesão social", sem fundamentação que justifique a efetividade dessas onerosas iniciativas. No âmbito policial, tornado secundário, as políticas contemplam, sobretudo, ações assistencialistas, como limitados programas habitacionais, treinamento a distância para concessão de "bolsa-formação" e prioridade para fortalecimento das poucas guardas municipais que sequer têm poder de polícia. A título de exemplo desse equívoco: no final de 2009 o Pronasci cedeu à Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro 100 milhões de reais para programas de suposta prevenção da violência, num conjunto de ações abrangendo desde inclusão digital até feira itinerante de ciências, enquanto os aparatos policial e prisional do Estado do Rio vivem grave crise para responder aos desafios concretos e imediatos da violência. Essa concepção tem uma fragilidade crítica: não explica porque a expressiva maioria das pessoas submetidas a essas mesmas condições sócio-econômicas desfavoráveis resistem às opções criminosas de vida (4). Também não consegue explicar como no Nordeste do Brasil, área mais beneficiada pelas melhorias da economia do País nos últimos cinco anos, ocorreram as maiores altas de violência, com aumento de mais de 30% nos homicídios em Fortaleza só em 2009 em relação ao ano anterior; Salvador chegando a 68 mortos para cada grupo de 100 mil habitantes; e Maceió, que superou a marca dos 100 mortos por 100 mil – quando na tumultuada cidade de São Paulo esse índice está em 11,2. A concepção de que a pobreza está diretamente vinculada às manifestações criminosas é equivocada e preconceituosa. E isso por dois argumentos simplórios: a quase totalidade dos pobres luta com dignidade para sobreviver e resiste às tentações de usar recursos ilegais, e também porque é cada vez mais comum o envolvimento de altos funcionários em obtenção criminosa de vantagens financeiras, apesar de seus elevados salários e sofisticada escolaridade. O foco deve ser, portanto, a impunidade que leva expressivo contingente de pessoas de diferentes estratos sócio-econômicos a delinquir. Pessoas infringem a lei por distúrbios em sua formação psicológica e moral e pelos baixos riscos da opção criminosa. A impunidade está associada a uma cultura permissiva e de baixos controles a desvios, além de ser favorecida por instrumental obsoleto dos
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controles do Estado – principalmente leis, polícia e Justiça Crias raízes sociais são importantes, mas pouquíssimo se pode faminal –, como se constata não só pela enorme quantidade de zer para repará-las em prazo razoável. criminosos violentos à solta como nos inúmeros e insolúveis Recentemente, esse pensamento ganhou notoriedade pelas casos envolvendo políticos e altos funcionários corruptos. pesquisas de Steven Levitt, que analisou o impacto de fatores conA quase totalidade das pessoas envolvidas em práticas crisiderados estatisticamente relevantes como medidas de contenminosas será resistente às tentativas ressocializadoras dos ção que adicionam riscos às atividades criminosas; segundo suas programas sociais, ou seja, prosseguirão em suas atividades análises, o aumento do número de presos nos Estados Unidos na criminosas se não forem suficientemente intimidadas pelas década de 1990 foi responsável pela redução de 28% nos homiações competentes da polícia e da Justiça. Programas sociais cídios, 36% nos crimes violentos em geral e 28% nos crimes contra têm possibilidades de sucesso, principalmente nos jovens que a propriedade. Outros fatores, como incremento de efetivos poestejam em situação de risco de se envolverem com os crimes, liciais, liberação do aborto e tempo passado em escola após os 15 mas terão pouca possibilidade de afetar os que já se envolveanos, seriam fatores decisivos na redução da violência, contraram intensamente com a vida criminosa. Tais programas, geriando ideias vigentes que apostavam em fatores favoráveis à reralmente de maturação prolongada e resultados incertos, podução da violência, como melhoria da economia e aspectos dedem complementar, mas não substituir as ações mais ágeis de mográficos como o envelhecimento da população. contenção do sistema criminal. Os mecanismos de controle soOs investimentos na alta capacidade de resposta das polícias e cial – polícia, Justiça, prisões – são remédios universais para da Justiça Criminal, bem como no forte investimento na ampliapessoas mal formadas ou mal intencionadas ção das vagas prisionais, são os primeiros instruque queiram obter vantagens ilícitas e ameamentos e processos capazes de produzir resultaçam a sociedade com suas ações criminosas. dos na intensidade e urgência de tempo que a Os investimentos na A distorção do foco de causalidade, portancrise de segurança requer. Reconheça-se o trabaalta capacidade de to, caminha na contramão da experiência relho de várias ONG's e indivíduos dedicados à cente de grandes centros populacionais, com população em situação de risco, mas não será resposta das polícias e quedas acentuadas de crimes violentos atracom afro-reggae em favelas que se fará a reverda Justiça Criminal, bem vés da supremacia dos instrumentos de consão da violência em cidades nas quais os crimicomo no forte tenção pela resposta eficaz aos criminosos. nosos ameaçam os cidadãos cotidianamente. investimento na O endosso do pensamento de esquerda dos Nos principais casos internacionais de acenampliação das vagas violentólogos é dispendioso equívoco, que potuada queda de violência – casos de Nova York, deria receber o rótulo de "Ogro beneficiente", Bogotá e São Paulo (6) – a prioridade foi dar prisionais, são os maior capacidade de resposta à polícia para recomo dizia Octávio Paz, um monstro enorme primeiros instrumentos e duzir oportunidades para o cometimento de que consome inutilmente grandes quantidades processos capazes de crime, introduzir riscos visíveis e intimidar dede recursos. O Governo Federal e muitos inteproduzir resultados na linquentes pela agilidade de resposta aos crimilectuais esperam, sem nenhum suporte da reaintensidade e urgência nosos, principalmente pelo incremento das prilidade, que a profusão de programas sociais, cosões. Não há alternativa para o incremento de mo prevê o Pronasci do Ministério da Justiça, de tempo que a crise de punição como fator de intimidação e redução possa reduzir os fatores sociais perversos que segurança requer. direta da sensação de impunidade que estimula pressionam pessoas à prática de condutas ilea ação criminosa, seja do bandido pobre, seja gais e violentas. O melhor programa social, a dos criminosos das altas rodas da sociedade. educação, promete pouco para a redenção dos Mesmo aos criminosos iniciantes e eventuais não pode faltar jovens mais vulneráveis: cerca de oito milhões deles vagam pepunição rápida e intimidadora, ainda que sejam penas não reslas grandes cidades, após abandonar escolas de má qualidade e tritivas de liberdade, como as penas alternativas de prestação de sem preparo para o mercado de trabalho. O Chile e a Argentina serviços sociais sob supervisão de órgãos do Estado. têm, proporcionalmente, o dobro de jovens com mais de 15 anos na escola; perdemos até para o Paraguai e Bolívia. 2.3. Concepções atualizadas 2.2. O crime como decisão individual Gradualmente, o estudo do controle criminal vem ganhando racionalidade e o crime sendo entendido como fenômeno de Outra corrente se assenta em conceitos oriundos da teoria pessoas motivadas para vantagens ilegais, cujas ações decorrem econômica e tem um marco no economista Gary Becker (5), laureado com o prêmio Nobel em 1968, ao se manifestar de forma principalmente de um processo racional de escolha perante rispragmática sobre o tema da violência: o crime decorre basicacos e benefícios. É evidente que existem inúmeros fatores sociais mente da decisão individual por uma questão utilitária, se o e do ambiente onde os crimes ocorrem que influem nesse probenefício compensar o risco, trabalhando com expectativas racesso. Pessoas mais religiosas costumam ser mais contidas por cionais e procurando maximizar os resultados de sua conduta. valores morais, pessoas empregadas e mais escolarizadas têm Ou seja, nos curto e médio prazos, a resposta eficaz da polícia e seu tempo tomado por suas atividades, pessoas menos jovens da Justiça, impondo riscos e custos evidentes ao crime, seria o têm hábitos de menor risco. Alguns fatores individuais e sociais principal fator de redução da violência, reconhecendo-se que têm maior poder de influência na gestação de crimes, principal-
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mente quando combinados: indivíduos com fragilidades mentais e morais, sob efeito de álcool, em ambiente de desordem e sob sugestão de infratores próximos têm elevado potencial para o crime. Como não se podem recuperar as condições sociais que formaram esse infrator potencial, é importante também cuidar de fatores situacionais que atuam nesse processo de influência – restaurar áreas degradadas, restabelecer a ordem urbana, articular programas de atividades com jovens que estão nas ruas –, para aumentar a possibilidade de êxito, principalmente se articuladas com o esforço policial e judiciário. Mas o mais importante é que outras agências públicas – caso das prefeituras – e as entidades sociais e comunitárias podem ajudar muito na alteração das condições do ambiente que estão favorecendo a oportunidade para o crime (regulamentar e fiscalizar hotéis nas áreas de prostituição ou bares irregulares, iluminar e reurbanizar áreas degradadas, por exemplo). Ou-
frentamento do problema criminal, desde o instrumental legal – como o Código de Processo Penal de 1941, defasagens na Lei da Execução Penal (7), entre outras – até o tumultuado relacionamento da polícia com o Ministério Público, a carência do quadro de juízes e os graves problemas do sistema prisional que condicionam muitas de suas decisões. 3. Propostas Sugerimos um conjunto de 10 pontos para debate. Tanto as áreas mencionadas como os fundamentos e as medidas anotadas não pretendem esgotar ou delimitar possibilidades mais amplas; constituem sugestões para iniciar ou aprofundar um dos debates mais urgentes e preocupantes de nossa sociedade e, certamente, dos governantes. Esperamos que contribuições de acadêmicos, profissionais de polícia e Justiça, e de parlamentares possam ofe-
Paulo Whitaker/Reuters
É necessário providenciar as devidas alterações e complementações legais para punição mais eficaz ao tráfico de drogas ilícitas. Na foto, usuários de drogas transitam e consomem entorpecentes livremente no centro da cidade de São Paulo, região conhecida como Cracolândia.
tros problemas identificados e que demandam frequente intervenção policial podem ser resolvidos ou mitigados com programas e campanhas sociais e educacionais, como as de redução de acidentes de trânsito, de consumo de drogas, de redução de desordem e violência em escolas etc. Nessa perspectiva, a polícia e a Justiça Criminal têm papel preponderante por serem os instrumentos básicos de resposta às ações criminais e, portanto, de redução da impunidade. Ocorre que temos anomalias relevantes nesse instrumental de defesa da sociedade. Ao invés de uma única polícia para dar conta dos já complexos problemas da segurança pública, temos duas – Polícia Civil e Polícia Militar – completamente diferentes em estrutura, treinamento, valores, áreas de operação, disciplina, salários, normas administrativas e operacionais. Essa dualidade institucional da polícia – caso raro no mundo –, além de ineficiente no controle criminal, gera desgastantes conflitos institucionais e custa muito caro pela duplicação desnecessária de estruturas e meios. Nossa Justiça Criminal também tem fragilidades para en-
recer um conjunto coordenado de ações capazes de começar a reforma do panorama da segurança pública no Brasil. 3.1. Criação do Ministério da Segurança Pública (8) Fundamentação - A segurança pública é prioridade nacional críticas pelo elevado número de vítimas da violência (inclusive nos acidentes de trânsito) e pelo alto custo imposto ao País. - A experiência internacional e até resultados alentadores obtidos em Minas Gerais e São Paulo na redução da violência deixam claro que ela pode ser reduzida com prioridade, racionalidade e competência. - É necessário coordenar e integrar todos os recursos federais (Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Secretaria Nacional de Segurança Pública, Secretaria Nacional Anti-drogas, Departamento Penitenciário Nacional, Departamento Nacional de Trânsito, hoje dispersos ou competindo com outras estruturas, como ocorre no Ministério da Justiça.
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- É necessário assegurar os mecanismos de poder necessários ao relacionamento com a Presidência, no âmbito ministerial e junto às instâncias políticas e governos dos estados, para fluência dos complexos processos de coordenação de recursos e programas para melhorar as condições das polícias e presídios, a articulação dos programas sociais mais diretamente vinculados à prevenção criminal e os setores de inteligência institucional e das forças armadas. - A prioridade oferece ainda um fator catalisador, capaz de aglutinar e combinar outros programas que podem complementar e fortalecer muitas ações da segurança pública (programas destinados a jovens em áreas violentas, por exemplo), além de atrair apoio político e mobilizar lideranças e instituições.
em programas e concentração de esforços e recursos para que sejam produzidos resultados com melhores condições para debelar a crise de segurança nessas localidades. 3.2. A redução da impunidade
Fundamentação - Pessoas propensas a infringir as regras sociais e legais são mais estimuladas se for maior a oportunidade para delinquir e menor o risco percebido de serem apanhadas ou efetivamente punidas. Pequenos delinquentes, chefes do crime organizado violento ou elegantes escroques do colarinho branco sempre agem a partir das oportunidades e do baixo risco fomentado por leis ultrapassadas, infinitos recursos e artifíMedidas essenciais cios legais que protegem infratores, pela burocracia da Jusa) Desenvolver o Plano Nacional de Segurança Pública do tiça e pela própria incompetência da polícia em investigar e novo governo, a partir da avaliação geral da segurança pública levantar evidências irrefutáveis da autoria dos crimes. no País, ouvindo governos, lideranças políticas e entidades re- Muitas das deficiências e fragilidades das instituições de levantes e investir em ajustes institucionais e programas que recontrole social necessitam de modernização legal e estrutural velem condições concretas de contribuir para a para fazer frente às demandas de redução da redução da violência. Esse plano deve ser essenimpunidade e isso vai demandar tempo e necialmente integrador de políticas, tanto as diregociações com o Congresso Nacional e o Poder É necessário que tamente vinculadas à redução e controle da vioJudiciário, mas elas precisam de prioridade e a reforma do Código lência, como às indutoras de prevenção nos âmum programa de trabalho persistente. de Processo Penal bitos sociais, educacionais e da saúde pública. que tramita no b) Orientar o desenvolvimento dos planos Medidas essenciais estratégicos de segurança dos governos estaa) O Governo Federal deve desenvolver iniCongresso Nacional duais. Os planos estaduais de segurança públiciativas, através do Ministério da Justiça, para restrinja ca devem ser incorporados na montagem do as mudanças legais e nos aparatos da Justiça e severamente plano estratégico do Governo Federal para faexecução penal para reduzir as brechas da imrecursos zer sua programação de investimentos, inclupunidade e assegurar a punição ágil dos crimiprotelatórios, sive projetar suas necessidades em recursos finosos como instrumento de dissuasão. nanceiros, tecnológicos e humanos para os b) É necessário providenciar as devidas alteprincipalmente nos próximos orçamentos. rações e complementações legais para punição casos de crimes c) Avaliar todos os programas e projetos mais eficaz ao tráfico de drogas ilícitas, contraviolentos (...). em andamento, em particular os onerosos bando, às práticas de pirataria, ao roubo, recepdestituídos de resultados práticos para a pretação de cargas e mercadorias roubadas, crimes venção da violência. no trânsito, penalização severas a quem cometa crime contra d) Avaliar as condições e necessidades do Fundo Nacional de policiais e membros do Ministério Público e do Judiciário. Segurança Pública, do Fundo Penitenciário Nacional e do Func) É necessário que a reforma do Código de Processo Penal que do da Polícia Federal (Funapol), bem como as possibilidades de tramita no Congresso Nacional restrinja severamente recursos aporte de recursos para atender as demandas mais urgentes. protelatórios, principalmente nos casos de crimes violentos, do e) Avaliar as políticas e os programas da Secretaria Naciocrime organizado e de corrupção envolvendo autoridades. nal Anti-drogas (atualmente no GSI) e do Departamento d) Aumentar o rigor de penas, redução de benefícios de proNacional de Trânsito (atualmente no Ministério das Cidagressão de pena e agravamento das condições prisionais aos des), ajustando programas e recursos de acordo com o novo violentos reincidentes, aos que causam desordens nos estabePlano Nacional de Segurança Pública. lecimentos prisionais e aos articuladores de grupos e organif) Avaliar as condições legais, de estruturas e de controle zações criminosas. das atividades de segurança privada, promovendo os ajuse) Devem se assegurar a punição e o investimento na recutes necessários. peração dos criminosos de baixa periculosidade, através de g) Desenvolver e implantar o Programa Nacional de Redupenas alternativas ao encarceramento, combinadas com proção da Violência no Trânsito, articulando medidas regulamengramas de reinserção social. tadoras, educativas e de capacitação e equipamento das políf) Propor a alteração do Estatuto da Criança e do Adolescencias estaduais e da Polícia Rodoviária Federal. te para dar tratamento diferenciado a menores de 18 anos reinh) Pautar as políticas, estratégias e programas com prioridade cidentes em atos violentos e cruéis, que necessitam ser penado critério da focalização. As áreas críticas de violência (regiões lizados e recolhidos a estabelecimento de segurança compatímetropolitanas e cidades) devem receber atenção diferenciada, vel com sua periculosidade e sua faixa etária.
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3.3. Investir na capacidade de resposta das polícias
mentos mais sofisticados para servir Estados de cada região. f) Desenvolvimento de sistemas eficientes de inteligência Fundamentação policial, com a adoção de métodos, processos e instrumentos - Não se podem esperar os efeitos de ações sociais e de mudande busca e processamento de informação sobre criminosos, ça de leis para que tenhamos menos criminosos e menos crimes; a seus métodos de atuação, ligações com outros criminosos, mapolícia bem organizada, com efetivos bem treinados e bem equipeamento de grupos criminosos. pada pode reduzir rapidamente os crimes, através de competeng) Desenvolvimento de tecnologia de informação aplicate policiamento preventivo e de investigações eficientes; da às atividades policiais: bancos integrados de dados cri- Se houver um bom entendimento entre as estruturas de seminais e sociais, implantação de sistemas de georreferenciagurança do Governo Federal e dos governos estaduais, será mento e de sistemas de análise dos dados para identificar mais eficaz o controle sobre as principais modalidades do criperfis criminais, padrões e tendências de cada área, pontos me organizado, principalmente o tráfico de drogas; críticos e evidências de atuação de indivíduos e grupos cri- A Secretaria Nacional de Segurança Pública provou ser insminosos, criando condições para formar um sólido sistema trumento para fomentar a modernização das polícias brasileiras e nacional de inteligência de segurança pública. ajudar no reequipamento, orientando o uso eficiente dos recursos h) O atual Sistema de Informação de Justiça e Segurança Púe investindo em treinamentos para ampliar a capacidade de resblica (Infoseg) deve ser aperfeiçoado para facilitar o recebipostas na redução e controle mento e a consulta de daJoel Silva/Folha Imagem da criminalidade; como Midos atualizados e de qualinistério espera-se que os redade dos Estados quanto a sultados sejam mais céleres e condenados procurados, de maior alcance; veículos e armas furtados e - A concentração de reroubados, cadastro de arcursos e programas bem mas e veículos e pessoas deplanejados e persistentes saparecidas. nas áreas mais críticas de i ) Programas especiais violência tende a reduzir imediatos seriam essenrapidamente os focos de ciais como sinalização de problemas. prioridade e de ação concreta dos governos na busMedidas essenciais ca da redução da violência: a) Dinamizar todos os se- Programa de redução tores do Ministério da Sede homicídios. A alta inciEmbora muito possa ser feito para melhorar a segurança gurança Pública (MSP) padência de homicídios é um pública com as atuais estruturas e recursos, é necessário ra orientar suas ações e redos mais graves problemas programar o aperfeiçoamento institucional de nossas polícias. cursos à capacitação das da sociedade, sendo, porpolícias em reduzir a incitanto, uma das mais sérias dência de crimes, promoresponsabilidades dos govendo o desenvolvimento de modelos de organização, de gesvernos. Um programa urgente e sólido deve ser direcionado à tão e de processos mais eficientes e eficazes para as polícias, busca de soluções para reduzir os níveis de homicídios, printanto em atividades de prevenção como de investigação. cipalmente nas áreas mais críticas, explorando ao máximo a cab) Criação de núcleos regionais do MSP para acompanhapacidade dos órgãos policiais, podendo se utilizar a bem sumento dos Estados quanto a diagnóstico de necessidades, imcedida experiência paulista nesse setor de atividade. plementação dos programas de integração entre as organiza- Redução das armas de fogo. A campanha de entrega de arções policiais da região e com a Policia Federal, a Polícia Romas de fogo pela população deve ser ampliada, porque mosdoviária Federal e outras agências federais (Forças Armadas, trou resultados positivos quando aplicada. As polícias devem Abin, Receita Federal, Ministério Público Federal). ser orientadas, estimuladas e incentivadas a retirar as armas c) Elaborar sugestões e incentivos financeiros para o desenilegais da população. volvimento de programas para desenvolvimento de recursos - Programa de prevenção e repressão ao uso de entorpecenhumanos e tecnológicos nas polícias. tes. Esse programa deve abranger as atividades atuais da Secred) Desenvolvimento de programas de treinamento para a taria Nacional Antidrogas e a coordenação das atividades execucapacitação profissional e gestão dos policiais para eficiência e tadas pela Polícia Federal com as ações realizadas nos Estados. eficácia dos aparatos policiais, tanto nas atividades de policiaDeve ser criado um sistema de troca de informações e de habimento ostensivo, como nos processos de investigação. litação de policiais para a investigação e repressão ao tráfico. e) Desenvolvimento de programas de equipamentos, de orga- Programa de desenvolvimento de inteligência para comnização e de capacitação para a perícia nos Estados. Nesse probater o crime organizado. Este programa deve focalizar as grama seria necessária a previsão de centros regionais, integraprincipais modalidades de crime organizado presentes em cados com os recursos de perícia da Polícia Federal, com equipada estado e fomentar estruturas, instrumentos e processos de
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Diego Padgurscchi/Folhapress
trabalho, capacitação de analistas para a incrementar a eficiência da repressão e do controle do crime organizado. - Integridade policial: desenvolvimento de programas continuados para promover a integridade nas polícias e reduzir a vulnerabilidade à corrupção. - Programa de redução da violência no trânsito: amplo conjunto de medidas destinado a atuar em eficientes medidas preventivas e eficazes medidas punitivas que possam afetar a direção segura e proteção de motoristas e pedestres. - Programa de preparação da segurança para a Copa de 2014: nos estados que serão sedes dos jogos da Copa do Mundo de Futebol deverão ser aceleradas medidas de aperfeiçoamento estrutural e operacional das polícias para atender as demandas do evento e se aproveitar a oportunidade para implantar novos modelos de eficácia e qualidade do trabalho policial. 3.4. Desenvolver programa de aperfeiçoamento institucional das polícias Fundamentação - Embora muito possa ser feito para melhorar a segurança pública com as atuais estruturas e recursos, é necessário se programar o aperfeiçoamento institucional de nossas polícias. O atual sistema de duas polícias estaduais – civil e militar – é obsoleto e impõe dificuldades excepcionais para o desempenho necessário ao controle do crime. A polícia única nos estados é um imperativo de racionalidade de recursos e potencialização de desempenho. - Nos grandes centros urbanos, onde a violência se apresenta em níveis assustadores e raramente é afetada pelos esforços policiais, há necessidade de refinado entrosamento entre o policiamento ostensivo e as atividades de investigação, o que é praticamente impossível quando esses encargos são atribuídos a organizações policiais tão diferentes em estrutura, cultura profissional, normas, treinamento, hierarquia e até salários. - Uma polícia única teria possibilidade de redução dos atuais custos com muitas estruturas duplicadas (academias, centros de telecomunicação, bancos de dados, sistemas de compras e custos, administração geral da polícia, manutenção etc), permitindo o reajustamento dos salários dos policiais. Medidas essenciais a) Promover mudança constitucional prevendo a polícia única, com disposições transitórias de integração a serem desenvolvidas num prazo de quatro anos, sob incentivos do Fundo Nacional de Segurança Pública, aplicando-se recursos onde ocorrerem mais avanços. b) Preparar legislação infraconstitucional regulamentando a estrutura e incumbências da nova polícia unificada, prevendo condições gerais das etapas transitórias. c) O Ministério da Segurança Pública teria um papel fundamental nesse processo de transição, orientando padrões de legislação, de organização e gestão das polícias. d) Iniciar esse processo nos 14 estados cujas polícias somadas têm efetivos inferiores a 10 mil policiais e, portanto, os arranjos institucionais e organizacionais poderiam ser mais ágeis e servir de laboratório para os estados de maior complexidade do aparato policial.
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O atual sistema de duas polícias estaduais – civil e militar – é obsoleto e impõe dificuldades excepcionais para o desempenho necessário ao controle do crime. A polícia única nos estados é um imperativo de racionalidade de recursos e potencialização de desempenho.
3.5. Ampliar a integração da Polícia Federal nos programas nacionais de Segurança Pública Fundamentação - A Polícia Federal constitui a principal estrutura de âmbito federal para ações policiais em modalidades criminosas definidas pela Constituição Federal, mas tem se integrado pouco com os programas de segurança vinculados aos estados. - A excessiva autonomia da Polícia Federal é institucionalmente inconveniente, porque a deixa distante das políticas do governo para o setor e dificulta seu controle, instrumento essencial em qualquer organização policial. Essa autonomia é prejudicial inclusive porque a estrutura policial federal resiste sistematicamente a interagir com as estruturas de segurança pública dos estados, prejudicando a sinergia necessária, principalmente nas atividades contra o crime organizado. - Com a metade de suas necessidades de efetivos, além de encargos burocráticos ou de baixa prioridade – cuidar de estrangeiros nos portos e aeroportos, emitir passaportes, fiscalizar a segurança privada, atender a segurança de autoridades –, que consomem recursos que deveriam estar voltados para questões criminais de maior prioridade, a Polícia Federal não tem obtido resultados consistentes e contínuos nas principais modalidades de crime organizado. - A Polícia Federal ainda tem sérios problemas na gestão de sua complexa organização, pois os cargos administrativos são exercidos por delegados sem formação administrativa, com consequências problemáticas na gestão de recursos humanos, financeira, tecnológica e de logística. Medidas essenciais a) Auditoria sobre sua estrutura administrativa e financeira, a gestão dos recursos humanos e a programação de desenvolvimento de seus recursos para os próximos anos. b) Mapeamento de suas demandas operacionais e o ajuste
Beto Baptista/Folhapress
da programação de suas prioridades, para evitar ou reduzir empenho de recursos em atividades de baixa prioridade. Atividades burocráticas com estrangeiros e emissão de passaportes podem ser atribuídas a outro órgão do Ministério da Justiça ou das Relações Exteriores, e a fiscalização das empresas de segurança privada deveria ser repassada aos estados, com mais condições de exercer essa função, hoje precariamente executada pela Polícia Federal. c) As superintendências estaduais devem fortalecer seus núcleos de inteligência e de combate ao crime organizado, para não se deixar surpreender por agravamento de problemas como tem ocorrido no Rio de Janeiro, em São Paulo e outros grandes centros urbanos. d) Em cada superintendência deve existir uma estrutura formalmente definida de articulação permanente com as forças policiais locais, principalmente para coordenar e apoiar esforços no combate ao crime organizado. O crime organizado em todas suas manifestações deve ser alvo de seus trabalhos de inteligência, de investigação e de coordenação com as autoridades estaduais. e) Deve ser feita uma programação de retorno de todos os policiais federais desviados de suas funções, substituindo-os, em caso de necessidade policial, por agentes das polícias estaduais ou de agentes da Polícia do Congresso, em caso de parlamentares que demandem esse atendimento. 3.6. Ajustar o sistema prisional às necessidades do País A área prisional deve receber investimentos compatíveis com suas necessidades e sua importância no Sistema de Segurança Pública.
Fundamentação - Os agudos e constantes problemas nos presídios brasileiros mostram a crise desse setor por falta de investimentos e de projetos compatíveis com a importância do setor prisional no sistema maior da segurança pública. - A falta de investimentos em estruturas adequadas para atender a demanda atual de 180 mil vagas (correspondente a aproximadamente 300 unidades prisionais) conspira contra a segurança do sistema e descumpre não só as leis que regulam o assunto, como até princípios de salubridade e direitos elementares dos presos. - O Governo Federal tem responsabilidades críticas nessa área por gerir o Fundo Penitenciário Nacional, destinado a apoiar os estados na construção e em equipamento para estabelecimentos prisionais, além de ajudar no treinamento de agentes penitenciários e até no fomento de penas alternativas e assistência jurídica, educacional e assistencial dos presos. - O Governo Federal deve construir e manter presídios federais de acordo com a demanda nacional, para manter presos de crimes federais e apoiar necessidades especiais dos estados, como a custódia de condenados perigosos ou lideranças do crime organizado. Medidas essenciais a) Elaborar programa de criação de vagas para os próximos cinco anos, com investimentos em aplicação de penas alternativas, agilização da liberdade condicional para presos de baixa periculosidade, construção de presídios federais pelo menos para cinco mil presos, apoio a programas de parcerias públicoprivadas para a construção e gestão de unidades destinadas a presos de baixa e média periculosidade, ampliar os recursos do Fundo Penitenciário Nacional para a construção e reforma de 500 presídios nos estados para o mandato do governo; b) Negociar a votação do projeto de lei federal 5.075/2001, que altera profundamente a Lei de Execução Penal, ampliando o prazo para progressão de pena e estipulando, entre outras medidas, as faltas consideradas graves (como o uso de telefone celular e participação em motins), que agravam as condições da progressão e dariam instrumentos mais eficazes para a manutenção da disciplina nos presídios e isolariam mais eficazmente as lideranças espúrias e os criminosos violentos e articulados com o crime organizado; c) Desenvolver sistemas de inteligência prisional para con-
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trole das informações dos presos e presídios, articulados com os sistemas de inteligência da polícia para monitoramento de líderes criminosos presos e de detecção de planos de crimes, rebeliões ou de fugas; d) Desenvolver projeto de lei criminalizando gravemente a fuga do presídio e sua tentativa, a participação em motins, a posse de armas ou artefatos de agressão, a depredação de unidades prisionais, a tomada de reféns, a agressão de funcionários do sistema, de policiais e outros agentes públicos da justiça criminal, o comportamento de visitas e advogados que facilitem a comunicação para fins criminosos do preso custodiado em regime de segurança máxima. e) Preparar projeto de lei criando as guardas penitenciárias federal e estaduais, atribuindo-lhes a condições de policiais, para liberar policiais militares desses encargos e dar melhores condições operacionais aos agentes penitenciários, inclusive de inteligência prisional 3.7. O envolvimento das prefeituras Fundamentação - Areduçãoeprevençãodaviolênciademandam,alémdaação da polícia, um complexo de providências sociais, educacionais e assistenciais, que devem ser desenvolvidas tanto pelos prefeitos, quanto pelo Estado e também pela sociedade. Essas providências só apresentam resultados palpáveis se forem intencionalmente planejadas e coordenadas em seu conjunto de decisões e ações. - No exame das experiências paulistas, observou-se que algumas cidades com problemas crônicos de elevada violência mostraram sucesso extraordinário quando os prefeitos desenvolveram variados programas complementares para suas áreas críticas, como iluminação, urbanização de áreas degradadas (principalmente favelas), programas educacionais para jovens em situação de risco, instalação de câmeras em locais de alta incidência de crimes, ajustamento de guardas municipais ao policiamento da PM local, limitação do horário de funcionamento de bares etc. Medidas essenciais a) Exigir, como contrapartida dos recursos federais recebidos, que cada Estado elabore seu plano estadual de segurança pública, estabelecendo diretrizes que orientem a formulação de programas de redução e prevenção da violência para as regiões e também para as cidades com indicadores preocupantes de violência. b) Identificar as cidades em situação crítica de violência, bem como seus recursos e estratégias tentadas, propondo programa de recuperação. c) Incentivar a criação de sistemas integrados de diagnóstico, planejamento e operação articulada dos vários recursos disponíveis nas cidades. d) Incentivar a articulação das guardas municipais com o esforço policial sem competir e, sobretudo, sem exercer atividades policiais não autorizadas pela Constituição Federal. e) Promover nas cidades de maior porte treinamento para o planejamento integrado com a polícia local, baseado na utilização de bancos de dados criminais e sociais.
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f) Articular com outros ministérios programas de requalificação urbana para as áreas degradadas das cidades com maiores problemas de violência. 3.8. Programa especial para jovens em situação de risco Fundamentação - Os jovens constituem o grupo mais vulnerável de nossa sociedade, representando a faixa demográfica que mais sofre e mais pratica a violência. - Os múltiplos programas que vem atendendo os jovens não demonstram a eficácia que seria desejável para redução desse problema. - O processo educacional ainda é deficiente na qualidade para motivar os jovens, reduzir a evasão escolar e prepará-los com habilidades sociais e profissionais para enfrentar as condições sociais adversas e o competitivo mercado de trabalho, criando o desalento potencialmente criminógeno em muitas localidades. - Torna-se necessário o desenvolvimento de um programa articulador dos variados esforços que possam efetivamente reduzir a vulnerabilidade dos jovens à violência. Medidas essenciais a) Criar no Ministério da Segurança Pública a Secretaria Nacional de Prevenção do Risco ao Jovem. b) Identificar áreas e localidades com prioridade para alocação de programas e recursos, bem como levantar os programas existentes de atendimento ao jovem, verificando suas estruturas, custos e resultados. c) Priorizar investimentos federais nos projetos estaduais que promovam programas de atendimento de qualidade ao jovem em situação de risco e ao jovem infrator. d) Promover a implantação e o fortalecimento dos conselhos tutelares. e) Promover com o Ministério da Educação programas de qualificação de educação para escolas com altas taxas de evasão, bem como programas de recuperação de jovens que abandonaram escolas, com prioridade a áreas com altos de índices de violência. f) Estimular possíveis benefícios de programas esportivos e culturais direcionados às comunidades com altas taxas de jovens envolvidos em violência. g) Verificar todas as possibilidades de intensificar, melhorar programas de prevenção ao uso de drogas ilícitas, bem como de entidades, recursos e métodos de recuperação de viciados. 3.9. Programa de proteção de fronteiras Fundamentação - Nossas fronteiras estão praticamente abertas à entrada de contrabando, drogas, armas e à saída de drogas ("reexportação"), veículos roubados, minérios, madeiras nobres, animais silvestres. A Polícia Federal não tem destinação legal e recursos para esse encargo, as polícias estaduais com fronteiras internacionais estão mais preocupadas com os problemas de se-
Marcos de Paula/AE
É preciso identificar as cidades em situação crítica de violência, bem como seus recursos e estratégias tentadas, propondo programa de recuperação. Outra proposta é a de promover, nas cidades de maior porte, treinamento para o planejamento integrado com a polícia local, baseado na utilização de bancos de dados criminais e sociais.
gurança urbana e as Forças Armadas estão com poucos recursos e limitados instrumentos legais para essa tarefa. - Muitas das mais preocupantes expressões criminosas dos grandes centros urbanos decorrem, em boa parte, da falta de fiscalização eficaz de nossas fronteiras, como a entrada de entorpecentes e de armas proibidas, contrabando e pirataria. - O governo brasileiro necessita desenvolver programas de segurança bilaterais para ajustar ações, tanto de inteligência quanto de operações, com os países fronteiriços. Medidas essenciais a) É necessário um programa estratégico e amplo, bem como as devidas condições orçamentárias, a ser coordenado pelo Ministério da Defesa, que possibilite a instalação das Forças Armadas nos pontos críticos das fronteiras, incluindo as unidades terrestres de fronteira, as unidades da Marinha para atuação fluvial e marítima (junto aos portos e áreas sensíveis do litoral) e as unidades da FAB para vigilância aérea e deslocamento de tropas militares e policiais. b) As Forças Armadas devem receber os recursos necessários para atuar em faixa de até 150 quilômetros de largura ao longo da fronteira, para exercer suas incumbências de prevenção e repressão aos crimes transfronteiriços e ambientais, conforme prevê a Lei Complementar 117/2004 c) Esse programa deve contar com a integração articulada com o Ministério da Segurança Pública (para atuação da Polícia Federal e articulação com as polícias estaduais), Fazenda (para atuação da Receita Federal), Relações Exteriores (para ajustes de ações bilaterais com países vizinhos) e o Gabinete de Defesa Institucional (para atuação da Agência Brasileira de Inteligência).
d) Deve ser estendida a toda a fronteira oeste (Acre, Rondônia, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul) e à região fronteiriça dos estados do Sul o sistema de vigilância da Amazônia, atualmente restrito aos estados do Norte, para identificar e cobrir pontos críticos e vulneráveis, além de incidentes fronteiriços, como penetração irregular de aeronaves e barcos e outros veículos, além de movimentos de grupos de crime organizado de países vizinhos. e) Desenvolver sólido sistema de inteligência de fronteira para identificar pontos de vulnerabilidade nos 16.886 km de fronteira, além de monitorar grupos, lideranças criminosas e problemas de corrupção envolvendo agentes nacionais e estrangeiros em crimes fronteiriços. 3.10. Criar e implantar a Guarda Nacional Fundamentação - Crises graves em estados democráticos de direito demandam ação de instituições permanentes e preparadas para intervenções especiais, com apoio eventual de organizações policiais locais. As Forças Armadas são as únicas instituições organizadas para esse tipo de ação, mas elas não podem se sujeitar aos graves desgastes de intervenção interna nos primeiros desdobramentos das crises. - Faltam estrutura e preparo às polícias estaduais e à Polícia Federal para atuar em conflitos no campo (índios, garimpeiros, posseiros, invasores de terras, bandos organizados e armados de traficantes e contrabandistas, atos de terrorismo em centrais elétricas e linhas de transmissão etc), especialmente na Amazônia. - Ainda são precários os instrumentos para intervir em neces-
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sidade eventual de intervenção nos estados, por motivo de estado de sítio, estado de defesa, grave comprometimento dos órgãos policiais e outras crises que escapem à capacidade de controle da unidade federativa e a leve a solicitar apoio federal. - Há necessidade de força policial uniformizada com livre trânsito entre as fronteiras estaduais, para ágil ação em crimes de percurso interestadual, como contrabando, roubo de veículos e cargas, tráfico de entorpecente. - Há necessidade de escolta de interesse federal, que extrapolam as atividades de polícia judiciária da Polícia Federal: criminosos, dignitários, materiais estratégicos. - São frequentes demandas que superam as condições locais das polícias estaduais para atuar em grandes eventos (eleições, visita de autoridades estrangeiras, eventos esportivos e artísticos de massa, greves generalizadas), problemas críticos de defesa civil ou problemas urbanos graves (conflitos entre bandos de traficantes, áreas isoladas por grupos armados etc), que demandam subtração de efetivos e comprometam seriamente o policiamento ordinário. - Há necessidade de dispor recursos preparados para intervir em atividades de terrorismo, que constituem cenários no panorama de segurança dos próximos anos. - A Força Nacional de Segurança, atualmente estruturada com efetivos de PM´s e bombeiros oriundos de vários estados, é uma precaríssima solução para resolver a variedade de problemas que podem ocorrer no País e que estão fora do alcance das limitadas possibilidades dos estados. A atuação em crises exige tropas com formação e treinamento uniforme, condições que não podem ser atendidas com efetivos oriundos de vários estados e em constituição temporária. Atividades essenciais a) Propor emenda constitucional para prever a Guarda Nacional como órgão policial federal de polícia ostensiva para atuar em todo o território nacional em apoio à segurança pública. b) A Guarda Nacional deve ser constituída inicialmente com cinco núcleos instalados em cinco regiões do País (em torno de 700 efetivos em cada localidade), até atingir 15 mil efetivos em oito anos. c) O pessoal, para a constituição inicial da GN, poderia ser oriundo das próprias Forças Armadas, arregimentados dentre os que concluírem a prestação do serviço militar ou policiais
militares concursados, inclusive de graduados e oficiais. d) Unidades regionais poderão realizar convênios com os estados para realizar atividades de apoio ao policiamento local em eventos artísticos e esportivos de massa, crises de defesa civil, greves ou protestos generalizados, eleições, reintegração de posse de grandes dimensões e gravidade, saturação de policiamento em áreas especialmente conturbadas por banditismo (guerra de gangues ou de traficantes). O gradativo contato com as polícias locais, que poderiam participar do treinamento dos integrantes da GN, possibilitariam a crescente capacitação de seus efetivos para atuação no meio urbano; e) Outras unidades poderiam ser instaladas por demandas estratégicas e policiais específicas, principalmente em áreas sensíveis das fronteiras para operações articuladas com as Forças Armadas. 4. Considerações finais Segurança pública é um grande e complexo empreendimento que demanda respostas também complexas e investimentos de recursos e talentos proporcionais ao grau de resultado que se pretenda. A gestão competente desse empreendimento demanda muito mais que planos meramente formais, a continuidade de ineficientes respostas tradicionais ou de profusão de atividades desconexas e de baixa prioridade. Pelo grau de importância que a segurança pública há muito tem nas prioridades e aflições da população, o empreendimento de respostas competentes não pode ficar confinado a um mero órgão do Ministério da Justiça, disputando agenda e recursos com outras repartições. A segurança pública merece mais que as palavras vigorosas das campanhas eleitorais, mas sem consequências concretas ao longo do mandato dos governantes eleitos. A segurança da população deve ser objeto central nas prioridades do Governo Federal para emprestar vitalidade às mudanças legais e estruturais compatíveis com as melhorias pretendidas nos padrões de segurança da sociedade brasileira. Sem priorizar a segurança pública nas decisões políticas, nos investimentos e sem o máximo envolvimento do governo numa grande mobilização política e social, as necessidades da população por melhoria substancial da segurança pública continuarão sendo frustradas, como vem ocorrendo com a sucessão de governantes.
Referências Bibliográficas BEATO, C. Políticas Públicas de Segurança e a Questão Policial, revista São Paulo em Perspectiva, 13 (4), São Paulo, 1999. BOURGUIGNON, F.: Crime, Violence and Inequitable Development, publicação da Annual Bank Conference on Development Economics do Banco Mundial, Washington, 1999.
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CARNEIRO, L.P.: Crime e Violência, relatório do Seminário Agenda Futuro Brasil do Instituto Futuro Brasil, São Paulo, 2006.
WAISELFITSZ, J.J. : Mapa da Violência: os Jovens da América Latina, Instituto Sangari, São Paulo, 2008.
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WAISELFITSZ, J.J.: Anatomia dos Homicídios no Brasil, Instituto Sangari, São Paulo, 2010.
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Agliberto Lima/DC
Atiradores do GOE Grupo de Operações Especiais da Polícia Civil de São Paulo.
Não há desculpas. Não se pode mais aceitar a falta de prioridade e a incompetência que geram tanto sofrimento. Há muito que não se aceita a argumentação da necessidade de prévias reformas sociais e da reversão das iniquidades como condições para a busca de patamares mais civilizados de convivência. Programas sociais de atenção às populações mais vulneráveis devem ser obsessão governamental, mas a par de
iniciativas de integração de recursos e soluções variadas que a complexidade do problema merece, deve-se investir ao máximo na capacidade de resposta do aparato de justiça criminal. A segurança pública como prioridade da nação deve envolver o esforço conjunto de todos os poderes e todas as instâncias do Governo e, por isso, é também um desafio de liderança e competência dos responsáveis pelo Governo Federal.
Notas (1) Pesquisa realizada na cidade do Rio de Janeiro por Piquet e outros chega a número semelhante, mas segundo o professor Beato (1999) da Universidade Federal de Minas Gerais essa estimativa ainda é limitada pois não considera impactos da violência sobre investimentos privados. (2) Essa referência consta do trabalho de Cerqueira e outros sobre o custo da violência, realizado para o IPEA. (3) Esse termo é especialmente caro ao economista Fábio Sanchez (2007) que fundamenta suas idéias com análises numéricas sobre a violência na Colômbia para sustentar possibilidades de políticas públicas capazes de frear a inércia criminal. (4) O estado do Piauí, um dos três mais pobres do país, é o penúltimo na escala de violência, só superado por Santa Catarina, segundo levantamento de Waiselfisz. (5) Essa contribuição dos modelos econômicos para analisar a questão da violência sustenta a necessidade mais de métricas do que de teorias para fundamentar políticas públicas, como observa Carneiro (2006). (6) O caso de São Paulo é emblemático no panorama
internacional, tanto para o estado (redução dos 12.888 homicídios em 1999 para 4.557 em 2009) como na populosa e problemática capital onde a redução foi de 78,64% em 10 anos, fazendo que a capital paulista tenha menos da metade da violência de cidades mais estruturadas como Curitiba e Brasília. Estudos do Ministério da Justiça (2010) sobre vulnerabilidade de jovens à violência constatou que entre as 266 cidades com mais de 100 mil habitantes a cidade de São Paulo é das mais seguras com a 192ª posição, bem distante de outras capitais como Maceió (13ª), Recife (22ª), Rio de Janeiro (64ª), Belo Horizonte (105ª), Curitiba (111ª). (7) Essas questões de falta de atualização do instrumental legal mostram o desinteresse do Congresso Nacional para o problema da violência. A reforma da Lei da Execução Penal, elaborada por um comitê de juristas de rernome, está para ser votada desde outubro de 2001 na mesa da Câmara Federal. (8) O autor defende esta idéia desde publicação de carta aberta ao Presidente da República no jornal O Estado de São Paulo no ano 2000. A sugestão também consta de artigo publicado em livro de João Paulo dos Reis Velloso (2006).
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Lalo de Almeida/Folhapress
Pilotos da Força Aérea Brasileira (FAB) fazem manobra de cabeça para baixo durante treinamento em caça A-29 Super Tucanos.
SEGURANÇA e DE propostas para a elaboraç
Divulgação
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Gunther Rudzit
Resumo
Doutor em Ciência Política pela USP e mestre em Segurança Nacional pela Georgetown University, EUA. Foi assessor do Ministro da Defesa em 2001-02. É coordenador do curso de Relações Internacionais da FAAP (Fundação Armando Alvares Penteado).
Este artigo tem como objetivos tratar dos problemas resultantes da supressão do conceito de Segurança Nacional no Brasil após a redemocratização, e sobre como isso afeta a elaboração da política setorial de Defesa. Além disso, faz uma análise da tentativa de controle civil sobre os meios militares com a criação do Ministério da Defesa, e examina as funções deste ministério e das Forças Armadas. Finaliza com
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Rafael Andrade/Folhapress
Marinheiros durante cerimônia de incorporação da corveta Barroso. A esquadra da Marinha se concentra no Rio de Janeiro.
FESA NACIONAIS ão de uma política setorial diversas propostas, em particular para melhorar a relação civil-militar, tanto na área de Segurança Nacional quanto de Defesa, nesta incluídas mudanças nas suas estruturas, na sua política, na sua estratégia militar e na indústria de Defesa. Dentre outras sugestões, estão a reforma do capítulo acerca da Segurança Nacional na Constituição, a elaboração de uma Política de Segurança Nacional e mudanças na legislação para
existir o efetivo controle civil sobre as Forças Armadas. E, também, preparar Forças Especiais das três Armas para que possam atuar em auxílio às forças policiais em casos extremos nos grandes centros urbanos e, com mais vigor que atualmente, nas regiões fronteiriças; criar, subordinada ao Ministro da Defesa, a Guarda Costeira, para aumentar a capacidade de patrulhamento e controle das águas territoriais frente aos delitos comuns; e transferir a Infraero para o Ministério dos Transportes.
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Alberto César Araújo/Folhapress
Tropas do Exército na Amazônia: a região é rica em recursos naturais e poderá ser alvo de futuros conflitos.
A fim de que haja, real e efetivamente, um planejamento para ação conjunta entre as Forças Armadas brasileiras, é necessário ter uma hierarquia clara e bem definida nesse processo.
Introdução
E
m um país que está há mais de 140 anos em paz com todos os seus dez vizinhos com os quais faz fronteira (fato único no mundo, como gosta de ressaltar o Ministério das Relações Exteriores), pensar na necessidade de manter forças armadas para a sua defesa não faz parte da prioridade de muitos brasileiros. Tendo em vista que nosso País ainda tem tremendas desigualdades e insuficiências de atendimento às necessidades mais básicas para boa
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parte de sua população, essa percepção torna-se mais forte ainda. Contudo, as nossas Forças Armadas têm que ser percebidas como um seguro, para ter garantia de que, caso seja necessário, o País estará coberto. Em um mundo onde, infelizmente, não se pode descartar a possibilidade de conflitos de interesses e ameaça de uso da força, o Brasil precisa ter a sua própria "garantia", ou seja, suas Forças Armadas em condições de defender nossos interesses.
Entretanto, antes de aprofundar a discussão sobre necessidades de mudanças na estrutura militar brasileira, faz-se necessário um melhor entendimento entre dois conceitos que produzem grandes confusões e mal entendidos em vários países, mas especialmente aqui no Brasil. É imprescindível a diferenciação dos conceitos de Segurança e Defesa, pois a sua má utilização pode gerar diferentes interpretações e até prejudicar a efetiva implementação de políticas setoriais. Nessa linha, o artigo foi estruturado em quatro seções. A Seção 1 discute a Segurança Nacional ao longo da história brasileira. A Seção 2 mostra como o conceito de Defesa Nacional aparece na Constituição de 1988, e suas consequências. A Seção 3 trata do Ministério da Defesa e é desdobrado em temas centrais desse ministério. E, por fim, a seção 4 apresenta algumas propostas de muFigura 1 danças nas áreas analisadas. 1. Segurança Nacional Assim como os indivíduos, os Estados também têm ameaças à sua segurança. Contudo, no Brasil, falar em Segurança Nacional virou quase que um tabu. Esta situação se deve à utilização tanto deste conceito, quanto de legislação, como instrumentos para a manutenção dos governos militares. Contudo, numa Democracia, não somente é possível ter uma legislação visando à segurança e a defesa do país, como é um instrumento fundamental para a transparência das relações entre governo e sociedade. Mas, a questão fundamental é definir o que é Segurança Nacional. Na literatura internacional, o tema é muito discutido, principalmente no mundo anglo-saxônico, onde o controle dos meios militares por parte dos civis e a concepção de transparência da democracia estão muito arraigados. Naturalmente, durante o período da Guerra Fria, a visão era extremamente militarizada, tendo em vista o embate ideológico e principalmente a possibilidade iminente de uma guerra nuclear. Contudo, essa visão passou a ser mais ampla a partir do fim desse período, quando se incorporaram a este debate as dimensões econômicas e sociais, principalmente após o choque do petróleo de 1973 e das questões étnicas na década de 1980. Assim, a expressão "National Security" é facilmente aceita e discutida, principalmente pelo Congresso ou Parlamento dos países desenvolvidos, que mantêm suas comissões próprias para esse debate. Portanto, a Segurança Nacional de um país vai muito além da esfera militar. Ela pode ser entendida como a ação de proteção diante de todas as ameaças e vulnerabilidades aos objetivos essenciais da nação. Assim, é na esfera máxima de decisão política que se articulam tanto os interesses nacionais mais
amplos, quanto os objetivos do país aos seus meios (políticos, econômicos, sociais e militares), que serão usados a fim de promover e protegê-los. Por exemplo, indiscutivelmente, alguns objetivos de qualquer governo são a preservação da integridade do Estado, o bem-estar econômico dos seus cidadãos e as características do sistema sócio-político brasileiro. Por conseguinte, a fim de proteger esses interesses, o mais alto escalão de um governo tem que resolver um grande número de temas sociais, econômicos, militares e políticos, tais como: se um imposto de importação deve ser cobrado de algum produto; quão longe se estendem as águas territoriais sob a Lei dos Mares; o direito de um esportista estrangeiro permanecer no país; os termos de um acordo internacional com outros países etc. Todos esses assuntos, assim como dezenas de outros, afetam o bem-estar da população, seus valores e a soberania do Estado. Por isso, as várias políticas setoriais – saúde, impostos, comércio exterior, agricultura, imigração, educação, defesa etc. – representam diferentes segmentos da "teia-de-aranha", e juntos expressam os interesses políticos e de segurança nacional de um país, como pode ser observado na Figura 1 (1). No Brasil, a expressão Segurança Nacional é mais antiga do que muitos imaginam e passou por mudanças conforme nossa sociedade se transformava, assim como as mudanças das nossas constituições. A expressão Segurança Nacional surgiu muito ligada à visão de mobilização nacional para a guerra, numa visão bastante comum à época, de que a nação como um todo teria que estar disponível para o governo comandar na luta em um conflito que duraria anos. Tanto que na Constituição de 1937, na qual foi criado o Conselho de Segurança Nacional, este tinha como atribuição "estudar as questões relativas à segurança nacional" (2), definindo, no máximo, que deveria atender, junto com outros órgãos especiais, à emergência da mobilização. Nesta mesma linha, na Constituição de 1946, fica definido no Art. 179 que "os problemas relativos à defesa do País serão estudados pelo Conselho de Segurança Nacional e pelos órgãos especiais das forças armadas, incumbidos de prepará-las para a mobilização e as operações militares" (3). Pode-se perceber que havia a noção do controle civil sobre os meios militares, contudo, cabia somente aos militares os estudos sobre a Seguranca Nacional, tendo em vista que, na época, após o maior conflito que a humanidade já presenciou, a visão era de que o País como um todo deveria se preparar para a mobilização nacional. Assim, Segurança Nacional à época significava preparar o Brasil para a guerra.
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A mudança do conceito vem com a Constituição de 1967, que passou a ter uma concepção muito ligada à Doutrina de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra (ESG). Na visão desta escola militar, tendo em vista a realidade do embate ideológico da Guerra Fria, a maior fonte de agressão não era mais externa e sim interna. Preconizava quatro conceitos: os objetivos nacionais (os permanentes e os atuais); o poder nacional (que é o instrumento para alcançar os objetivos nacionais); a estratégia nacional (que é a forma de preparar o poder nacional para atingir os objetivos nacionais); e finalmente, a segurança nacional (que é a capacidade do Estado em impor os objetivos a todos os movimentos, segmentos ou grupos oponentes) (4). Tanto é que, na Carta de 1967, ficam especificadas as atribuições do Conselho de Segurança Nacional (5), estrutura que foi mantida pela Constituição de 1969. No Art. 87, o Conselho de Segurança Nacional passou a ser o órgão de mais alto nível na assessoria direta ao Presidente da República, para formulação e execução da política de segurança nacional. Pelo Art. 89, ficou estabelecido que, ao Conselho de Segurança Nacional competia: estabelecer os objetivos nacionais permanentes e as bases para a política nacional; estudar, no âmbito interno e externo, os assuntos que interessem à segurança nacional; indicar as áreas indispensáveis à segurança nacional e os municípios considerados de seu interesse; dar, em relação às áreas indispensáveis à segurança nacional, assentimento prévio para: a) concessão de terras, abertura de vias de transporte e instalação de meios de comunicação; b) construção de pontes, estradas internacionais e campos de pouso; e c) estabelecimento ou exploração de indústrias que interessem à segurança nacional. Além disso, modificar ou cassar as concessões ou autorizações mencionadas no item anterior; e, por fim, conceder licença para o funcionamento de órgãos ou representações de entidades sindicais estrangeiras, bem como autorizar a filiação das nacionais a essas entidades. Com base neste texto constitucional é que o governo militar implementou em 1967 a sua visão de Segurança Nacional. A famosa "Lei de Seguranca Nacional" tinha base jurídica no Decreto-Lei nº 314 de 13 de Março de 1967 (6), e transformou em legislação a doutrina de segurança nacional, estabelecendo que todas as formas de atividade que pudessem ser consideradas subversivas à ordem vigente, poderiam ser resumidas ao seu Art. 3º: "A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva." O artigo se estende em três parágrafos que definem segurança nacional no âmbito interno, guerra psicológica e guerra revolucionária. A consolidação democrática no nosso País está mais do que amadurecida, por isso faz-se necessário rever esse capítulo da nossa Constituição, uma vez que a Lei de Segurança Nacional ainda está em vigor. A Lei 7.170 de 14 de Dezembro de 1983 (7), passou a ser muito mais democrática que as anteriores, tendo em vista que se deixou a ideia de crimes contra o governo e restringiu as ameaças à nação como um todo, à existência do Estado e à sua independência e soberania (8). Pode-se perceber isso já no seu Art. 1º, que prevê os crimes que lesam ou expõem a perigo de lesão: a integridade territorial e a soberania nacional;
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o regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito; a pessoa dos chefes dos Poderes da União. Contudo, de outros crimes considerados como de Segurança Nacional fica claro que a visão ainda está muito ligada ao período da Guerra Fria. São previstos crimes como: negociação com governos estrangeiros com intuito de provocar guerra ou atos hostis ao Brasil, ajudar na secessão de parte do território nacional, aliciar estrangeiros para a invasão do território nacional, integrar associação ou partido que ameace a ordem ou vise mudança de regime vigente. Assim, fica mais clara a necessidade de se rever o conceito de Segurança Nacional, pois a legislação ainda em vigor está focada demasiadamente nos conceitos de outra realidade histórica. Não há a visão de que existem possibilidades de ameaças ou vulnerabilidades em outras áreas de atuação nacional, principalmente do ponto de vista econômico. Enquanto isto, a estrutura jurídica da área de Defesa retoma visões antigas, tentando cumprir o papel de prover segurança nacional, mas sem deixar claro quais as estruturas militares que o Brasil terá. 2. Defesa Nacional Disso decorre a dificuldade da nossa sociedade em lidar, na então recém reconquistada democracia, com esta ideia de Segurança Nacional. A confusão acerca deste tema veio com a promulgação da Constituição de 1988, quando houve a supressão da expressão Segurança Nacional, e sua substituição pelo conceito de Defesa Nacional. Mais do que compreensível que nossos constituintes tivessem optado por esta abordagem, tendo em vista que muitos deles, principalmente a quase totalidade das lideranças partidárias da época, tinham sofrido com a Lei de Segurança Nacional. Assim, na Constituição de 1988, toda essa estrutura foi mantida, mas realocada para outra denominação, instituições e significados, passando a expressão Segurança a ser ligada ao contexto de Segurança Pública, e surgindo a expressão Defesa Nacional e o Conselho de Defesa Nacional, que tem no Art. 90, § 1º, as suas competências, que são: I - opinar nas hipóteses de declaração de guerra e de celebração da paz, nos termos desta Constituição; II - opinar sobre a decretação do estado de defesa, do estado de sítio e da intervenção federal; III - propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança do território nacional e opinar sobre seu efetivo uso, especialmente na faixa de fronteira e nas relacionadas com a preservação e a exploração dos recursos naturais de qualquer tipo; IV - estudar, propor e acompanhar o desenvolvimento de iniciativas necessárias a garantir a independência nacional e a defesa do Estado democrático. O § 2º do mesmo artigo diz que a lei regulará a organização e o funcionamento do Conselho de Defesa Nacional. 3. O Ministério da Defesa A primeira grande mudança na estrutura militar brasileira veio com a criação do Ministério da Defesa (MD) no lugar do Estado Maior das Forças Armadas (EMFA), em 1999. O EMFA foi instituído, em 1946, primeiro como Estado-Maior Geral, tendo em vista a experiência da Segunda Guerra Mundial, que
Sérgio Lima/Folhapress
O então presidente Fernando Henrique Cardoso em visita às instalações do CINDACTA I, em setembro de 1995.
demonstrara a integração operacional das forças singulares, e, portanto, a premência de um órgão capaz de coordenar as operações combinadas. Mas é somente com a Lei 600-A de 1948 que passou a ter o nome definitivo, e através do Decreto n° 64.775 de 1969 é que recebeu a posição de órgão de assessoramento do Comandante das Forças Armadas e a condição de um Estado-Maior Combinado, responsável pela formulação da Política Militar, estabelecimento da Doutrina Militar, além de ser responsável pelas informações estratégicas, bem como orientação e preparo da Mobilização (9). Contudo, este quarto ministério militar nunca conseguiu atingir este status, tendo em vista que as Forças (Marinha, Exército e Aeronáutica) continuaram a fazer seus planejamentos individualmente. A implementação do Ministério da Defesa sofreu grandes resistências, tanto do ponto de vista do relacionamento entre civis e militares, quanto entre as próprias Forças. Em qualquer democracia, o comando político do poder executivo eleito pela população estabelece os objetivos para toda a estrutura burocrática governamental, tanto civil quanto militar, processo esse conhecido internacionalmente como o controle civil sobre os meios militares, que é essencial para a democracia (10). Porém, essa visão não era facilmente aceita pelos militares brasileiros. Além do mais, entre as próprias Forças existia o receio de perda de controle sobre os próprios meios militares, assim
como a preponderância do Exército sobre Marinha e Aeronáutica, como consequência da sua maior estrutura. Por outro lado, o Ministério da Defesa herdou algumas atividades que não são ligadas diretamente ao setor militar. Dentre elas, há o caso das duas mais conhecidas e importantes instituições ligadas ao setor da aviação que estavam dentro da estrutura do antigo Ministério da Aeronáutica e hoje estão no MD: a Infraero (Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária) e a ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil). A Infraero foi criada em dezembro de 1972 (11), como uma empresa de administração federal indireta, com a finalidade de implantar, administrar, operar e explorar industrial e comercialmente a infraestrutura aeroportuária. Dentro da estratégia dos governos militares da época, desenvolver setores considerados estratégicos era uma necessidade premente para um país de dimensões continentais, como eram os casos dos setores aeroviário e das telecomunicações. Contudo, essa empresa podia ser vista como uma forma de controle militar sobre as atividades aeronáuticas civis, principalmente no caso de os aeroportos por ela construídos terem sempre instalações da Força Aérea Brasileira (FAB) aos seus lados. Com a análise do controle do espaço aéreo se compreende a presença e visão militar deste setor no Brasil. A ANAC foi criada em dezembro de 2005 (12), e instalada em
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março de 2006, também como uma empresa de administração federal indireta. Foi formada com a aglutinação das atividades anteriormente realizadas pelo antigo Departamento de Aviação Civil (DAC), do Instituto de Ciências da Atividade Física da Aeronáutica (ICAF), do Instituto de Aviação Civil (IAC) e da Divisão de Certificação de Aviação Civil do Instituto de Fomento e Coordenação Industrial (IFI). Contudo, não ocorreu a transferência do controle do tráfego aéreo, que continua subordinado ao Comando da Aeronáutica, uma vez que não houve a separação entre controle da aviação civil e militar, já que as duas funções continuam sendo feitas pela infraestrutura dos cinco Centros Integrados de Defesa Aérea e Tráfego Aéreo (CINDACTA), uma estrutura que começou a ser implementada em 1976 (CINDACTA I) e terminou em 2005 (CINDACTA IV, o antigo projeto SIVAM).
tro, não está nem na mesma posição hierárquica dos Comandantes. Para a lógica militar, hierarquia é a espinha dorsal mestra da sua existência e funcionamento. Sem a clara definição hierárquica, nenhum oficial se submete ao comando de outro. Um exemplo claro acerca desta situação foi o desastre aéreo do vôo 447 da Air France, em junho de 2009. Em países onde o Ministério da Defesa realmente detém o comando central das Forças Armadas, nas entrevistas coletivas, quando não o próprio Ministro, somente um oficial dá as respostas aos jornalistas. Aqui, o que se viu foram dois oficiais, um da Marinha respondendo pelas operações dessa Força, e outro da Aeronáutica, respondendo por parte das operações aéreas. Esta ação mostrou o quanto as operações entre as Forças Armadas brasileiras ainda não estão integradas. Outro ponto importante é o real controle dos civis sobre os meios militares. O Decreto 4.735 de 2003 (14), no Capítulo V, Art. 36, definiu que nas duas 3.1. Estrutura de Comando secretarias ligadas à estrutura militar, a Secretaria de Política, Estratégia e Assuntos Apesar de dois anos de estudos, o MinisPara a lógica Internacionais e a Secretaria de Logística e tério da Defesa surgiu com pouca capacimilitar, hierarquia Mobilização, somente podem ser ocupadas dade decisória. Pode-se perceber isso tenpor oficiais generais da ativa do último posdo em vista que, pela Lei Complementar nº é a espinha dorsal to (Grupo 0001-A), o que, com certeza, fez 97, de 09 de junho de 1999 (13), no seu Art. 4º, mestra da sua ficou estabelecido que os Comandantes da com que se tornasse mais difícil, se não imexistência e Forças são nomeados pelo Presidente, oupossível, um verdadeiro controle civil sobre funcionamento. vido o Ministro da Defesa, sendo que este os meios militares. Uma vez que se tornou, Sem a clara não tem poder de decisão sobre o processo com este Decreto, impossível um civil code promoção dos oficiais generais nem da mandar a área do Ministério da Defesa que definição elaboração do orçamento das Forças. No tem a incumbência de elaborar as políticas hierárquica, caso da promoção dos oficiais generais, a da área militar, a visão estritamente militar nenhum oficial se Lei Complementar 97, no seu Art. 7º, prevê continua a reger o ministério. submete ao que compete aos comandantes das Forças Por fim, mas não menos importante, há comando de outro. prepararem a Lista de Escolha e ao Minisuma questão fundamental a ser resolvida, tro da Defesa somente apresentá-la ao Prea proporção da folha de pagamento. Em sidente, a quem compete promover os ofi2009, o Ministério da Defesa teve despesa ciais-generais e nomeá-los para os cargos total de R$ 52,3 bilhões, sendo que R$ 37,7 que lhes são privativos. No que se refere ao orçamento, a mesbilhões (72,08%) foram gastos com pessoal, restando R$ 14,6 ma lei, no seu Art. 12, prevê que o MD é simplesmente o órgão bilhões (27,92%) para gastos com outros custeios e investiresponsável pela consolidação do orçamento encaminhado mentos. Já para o ano de 2010, o orçamento previsto do MD é pelas Forças. Além do mais, o Estado Maior de Defesa não de R$ 57,62 bilhões, o terceiro em tamanho de recursos, metem poder de decisão, uma vez que o Art. 11 da Lei complenor somente que dos orçamentos da Previdência, com R$ 254 mentar 97 diz que a ele compete elaborar o planejamento do bilhões, e da Saúde com R$ 62,47 bilhões. Assim como no ano emprego combinado das Forças singulares, mas, no Art. 13, passado, os gastos com pessoal consumirão ao redor de 71% está previsto que cabe ao Comandante de cada uma das Fordessa cifra, e mais impressionantes ainda, as pensões ficarão ças o preparo de seus órgãos operativos e de apoio, obedecicom praticamente 54% da folha, o equivalente a R$ 26 bilhões (15). Não haverá como manter um orçamento militar que atendas as políticas estabelecidas pelo Ministério da Defesa. É da as necessidades de reformulação e reequipamento com esjustamente no § 1º que fica claro a independência de cada Cosa composição orçamentária. mandante, tendo em vista que aí fica estabelecido que o "preparo compreende, entre outras, as atividades permanentes 3.2. Política de Defesa Nacional de planejamento, organização e articulação, instrução e adestramento, desenvolvimento de doutrina e pesquisas especíO mais interessante é que a primeira Política de Defesa Naficas, inteligência e estruturação das Forças Armadas, de sua cional (PDN) foi publicada antes mesmo da criação do Ministélogística e mobilização", ou seja, cada uma das Forças faz o rio da Defesa, em 1996. Durante as discussões acerca da criação seu planejamento de forma independente. da nova pasta militar, um grupo de representantes dos MinistéA independência de planejamento fica mais clara quando se rios da Casa Civil, Justiça, Relações Exteriores, Secretaria de Asobserva a estrutura do próprio Ministério, uma vez que o Essuntos Estratégicos, Casa Militar e os quatro militares, Marinha, tado Maior de Defesa é um órgão de assessoramento do Minis-
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Exército, Aeronáutica e EMFA, reuniu-se na recém criada Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden), do Conselho de Governo. Com apenas dois meses de trabalho, o grupo lançou um documento que, tendo em vista a resistência das Forças Armadas, a heterogeneidade do grupo com uma predominância de militares e diplomatas no grupo, surgisse um consenso não desenvolvido, com ênfase em desqualificar o uso da força e apoiar a resolução pacífica dos conflitos (16). Por essas razões, a primeira PDN (17) teve uma estrutura muito simples, e teve como o ponto interessante a possibilidade de reunir todas as idiossincrasias acerca das áreas de Segurança Nacional e Defesa. Um tema que deixa claro a diferença de EXÉRCITO entendimento acerca das atribuições entre civis e militares no planejamento militar brasileiro, é o argumento, por parte destes últimos, de que a PDN é uma Política de Estado e não uma Política de Governo. A argumentação é de que os objetivos e o planejamento militar perpassam governos. Consequentemente, não poderia haver mudanças quando fosse empossado um novo Presidente. Contudo, assim como em relação à Política Externa, cada governo tem diferentes entendimentos em relação aos objetivos de política externa e de defesa, assim também em como alcançá-los. Assim, levando em conAERONÁUTICA sideração as características básicas da lógica militar, cada governo tem que implementar sua visão na área de defesa, que faz parte do plano de governo. Outro exemplo dessas diferenças de entendimento aparece logo no início do documento de 1996, na parte de introdução, e está relacionado ao problema da substituição da ideia de Segurança Nacional por Defesa Nacional na Constituição de 1998 (1 8) . No item 1.3 afirma-se que a PDN tem "por finalidade fixar os objetivos para a defesa da Nação, bem como orientar o preparo e o emprego da capacidade nacional, em todos os níveis e esferas de poder". Tomando-se por base o entendimento da Escola Superior de Guerra, os militares entendem que há três níveis de poder (Federal, Estadual e Municipal) e as esferas, que são as públicas (Executivo, Legislativo e Judiciário) e a privada. Assim, de acordo com esse documento, a PDN serve de ponto de partida para toda a sociedade se organizar e estar preparada para a mobilização nacional no caso de uma futura guerra.
Já no item 3 (sobre os Objetivos), que é o mais importante, tendo em vista que a estrutura militar brasileira tem que ser preparada a fim de defendê-los ou atingi-los, são listados: (a) a garantia da soberania, com a preservação da integridade territorial, do patrimônio e dos interesses nacionais; (b) a garantia do Estado de Direito e das instituições democráticas; (c) a preservação da coesão e da unidade da Nação; (d) a salvaguarda das pessoas, dos bens e dos recursos brasileiros ou sob jurisdição brasileira; (e) a consecução e a manutenção dos interesses brasileiros no exterior; (f) a projeção do Brasil no concerto das nações e sua maior inserção no processo decisório internacional; e (g) a contribuição para a manuDO BRASIL tenção da paz e da segurança internacionais. Os dois primeiros itens podem ser considerados clássicos, o primeiro, para qualquer país, e o segundo para qualquer democracia. A partir do terceiro é que há problemas, uma vez que, se manter a coesão nacional é um objetivo, ficam as questões de quais os meios que as Forças Armadas têm para tal fim e quais os parâmetros que serão usados para que se saiba se o objetivo está sendo alcançado ou não. Em relação tanto ao quarto item como ao quinto, salvaguardar pessoas e bens tanto aqui quanto no exterior, implica em uma estrutura militar que seja capaz de atuar em qualquer país no qual tenhamos brasileiros ou inteDO BRASIL resses, ou seja, em praticamente no mundo todo. Por fim, dada a maior inserção brasileira no processo decisório internacional, fica clara a falta de estabelecimento dos meios na abrangência de uma PDN, pois pode ocorrer a invasão da incumbência do Ministério das Relações Exteriores. Já no quinto e último item das Diretrizes, fica mais explícita a confusão da abrangência e escopo de uma Política de Defesa. Dentre os vinte tópicos, cinco se destacam: garantir recursos suficientes e contínuos que proporcionem condições eficazes de preparo das Forças Armadas e demais órgãos envolvidos na defesa nacional; fortalecer os sistemas nacionais de transporte, energia e comunicações; promover o conhecimento científico da região Antártica e a participação ativa no processo de decisão de seu destino; aprimorar o Sistema de Mobilização para atender às necessidades do País, quando compelido a um conflito armado; e, sensibilizar e esclarecer a opinião pública, com vistas a criar e conservar uma mentalidade de Defesa Nacional, por meio do incentivo ao civismo e à dedicação à Pátria.
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Já na nova Política de Defesa Nacional (19), aprovada pelo governo Luiz Inácio Lula da Silva em 2005, foram apresentadas algumas mudanças, mas a essência permaneceu, o que causou muitas confusões. O primeiro ponto de mudança já aparece na sua introdução, quando passa a admitir que existem outras ameaças além das externas, sem, contudo, dizer explicitamente que há ameaças internas. Outra mudança é que se tentou fazer a construção de um arcabouço teórico para justificar a visão de que a PDN é uma política para toda a Nação. Há o reconhecimento de que na literatura internacional o conceito de segurança mudou de estritamente militar para abranger áreas como a economia, social, ambiental entre outras. Contudo, faz-se uma mudança que não é respaldada nessa literatura, ao afirmar que "segurança, em linhas gerais, é a condição em que o Estado, a sociedade ou os indivíduos não se sentem expostos a riscos ou ameaças, enquanto que defesa é ação efetiva para se obter ou manter o grau de segurança desejado." Busca-se uma justificativa em uma definição defendida por ditos especialistas em um debate promovido pela Organização das Nações Unidas em 1990, na qual segurança seria "uma condição pela qual os Estados consideram que não existe perigo de uma agressão militar, pressões políticas ou coerção econômica, de maneira que podem dedicar-se livremente a seu próprio desenvolvimento e progresso". Com base nessa argumentação, definiu-se que os conceitos adotados são: "I - Segurança é a condição que permite ao País a preservação da soberania e da integridade territorial, a realização dos seus interesses nacionais, livre de pressões e ameaças de qualquer natureza e a garantia aos cidadãos do exercício dos direitos e deveres constitucionais; II - Defesa Nacional é o conjunto de medidas e ações do Estado, com ênfase na expressão militar, para a defesa do território, da soberania e dos interesses nacionais contra ameaças preponderantemente externas, potenciais ou manifestas." Portanto, rapidamente se transformou a área de atuação do Ministério da Defesa de uma política setorial em uma política que tem por "finalidade estabelecer objetivos e diretrizes para o preparo e o emprego da capacitação nacional, com o envolvimento dos setores militar e civil, em todas as esferas do Poder Nacional. O Ministério da Defesa coordena as ações necessárias à Defesa Nacional." Assim, sob este ponto de vista, toda a Nação deveria estar sob as diretrizes elaboradas neste ministério. Entretanto, mais alguns pontos de mudança merecem ser destacados. Pela primeira vez se passa a apresentar algum indicativo de que tipo de estrutura militar o Brasil deve ter, uma vez que se define nas diretrizes: manter forças estratégicas em condições de emprego imediato, para a solução de conflitos; aperfeiçoar a capacidade de comando e controle e do sistema de inteligência dos órgãos envolvidos na Defesa Nacional; incrementar a interoperabilidade entre as Forças Armadas, ampliando o emprego combinado; aumentar a presença militar nas áreas estratégicas do Atlântico Sul e da Amazônia brasileira. Para uma sociedade que nunca havia discutido abertamente que tipo de Forças Armadas deveria ter, esse seria um primeiro passo, mas, dentro da visão de que a Política de Defesa Nacional não é uma política setorial.
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Exemplos dessa visão aparecem nas Diretrizes dessa nova PDN, como: aperfeiçoar a capacidade de comando e controle e do sistema de inteligência dos órgãos envolvidos na Defesa Nacional; garantir recursos suficientes e contínuos que proporcionem condições efetivas de preparo e emprego das Forças Armadas e demais órgãos envolvidos na Defesa Nacional, em consonância com a estatura político-estratégica do País; implantar o Sistema Nacional de Mobilização e aprimorar a logística militar; fortalecer a infraestrutura de valor estratégico para a Defesa Nacional, prioritariamente a de transporte, energia e comunicações; promover a interação das demais políticas governamentais com a Política de Defesa Nacional. Dentre esses, um merece destaque. As Forças Armadas brasileiras fazem seus planejamentos estratégicos visando um tipo de conflito que não existe mais. Justamente nas Diretrizes da PDN define-se que se deve implementar o Sistema Nacional de Mobilização, ou seja, durante o período de paz a Nação como um todo deve se planejar para, havendo uma guerra, toda a sociedade se transformar em fornecedora das necessidades militares. Justamente o que os países fizeram para a Primeira e Segunda Guerras Mundiais, portanto, conflitos longos, com duração de anos, e por isso mesmo, a necessidade de ter o Serviço Militar Obrigatório. Tanto é que foi aprovada uma legislação específica para isso. 3.3. A Mobilização Nacional No dia 2 de outubro de 2008, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 6.592, que regulamentou o Sistema Nacional de Mobilização, o SINAMOB(20). Este documento é a regulamentação da Lei nº 11.631, de 27 de Dezembro de 2007, que criou este sistema. Nesse decreto fica explícita a visão dos militares brasileiros de como o País deve se preparar para o próximo conflito, ou seja, para uma guerra igual às da Primeira e Segunda Guerras Mundiais. Esta lógica fica explícita nos destaques de alguns itens, como no seu Artigo 2º, onde está definido que "Mobilização Nacional é o conjunto de atividades planejadas, orientadas e empreendidas pelo Estado, complementando a Logística Nacional, destinadas a capacitar o País a realizar ações estratégicas, no campo da Defesa Nacional, diante de agressão estrangeira". Sendo que no artigo 3º, passa a ficar claro a visão de uma guerra na qual a totalidade do País tem que se preparar, inclusive antes que aconteça, uma vez que "O preparo da Mobilização Nacional consiste na realização de ações estratégicas que viabilizem a sua execução, sendo desenvolvido desde a situação de normalidade, de modo contínuo, metódico e permanente". E o último ponto interessante é o Art. 4º, que define a visão do que é a mobilização nacional para os militares, "A execução da Mobilização Nacional, caracterizada pela celeridade e compulsoriedade das ações a serem implementadas, com vistas em propiciar ao País condições para enfrentar o fato que a motivou, será decretada por ato do Poder Executivo autorizado pelo Congresso Nacional ou referendado por ele, quando no intervalo das sessões legislativas", ou seja, não será possível questionamentos acerca da implementação desta política por parte da sociedade. Tanto é que está definido que: "Na decretação da Mobiliza-
Alan Marques/Folhapress
Lançamento da Estratégia Nacional de Defesa, elaborada pelos ministros Mangabeira Unger (dir.) e Nelson Jobim (em pé).
ção Nacional, o Poder Executivo especificará o espaço geográfico do território nacional em que será realizada e as medidas necessárias à sua execução, dentre elas: I - a convocação dos entes federados para integrar o esforço da Mobilização Nacional; II - a reorientação da produção, da comercialização, da distribuição e do consumo de bens e da utilização de serviços; III - a intervenção nos fatores de produção públicos e privados; IV - a requisição e a ocupação de bens e serviços; e V - a convocação de civis e militares." Portanto, com esta legislação, todos os setores da sociedade estarão subordinados ao controle militar em caso da decretação da mobilização nacional. O que mais chama a atenção nesse decreto é a sua dissociação com a realidade. As guerras modernas entre Estados não têm duração longa, realidade que já foi observada aqui na América do Sul, em 1982, quando a Argentina tentou retomar pelo uso da força as ilhas Falklands/Malvinas do Reino Unido. O governo argentino anunciou o desembarque das suas tropas no arquipélago em 2 de abril daquele ano, com a reação britânica rápida e decisiva, retomando as ilhas em 14 de junho, ou seja, dois meses após o início das hostilidades. Desde então, vários conflitos ocorreram e o tempo entre a eclosão da crise, passando pelos combates iniciais, e o fim da guerra, foi de meses, e não mais anos. Por tudo isso, chamam a atenção alguns pontos que a Estratégia Militar de Defesa aponta. 3.4. A Estratégia Militar de Defesa Ao se analisar o documento denominado Estratégia Militar de Defesa (EMD), elaborado pelos ministros Mangabeira Unger, que deixou a Secretaria de Assuntos Estratégicos em junho
de 2009, e Nelson Jobim, do Ministério da Defesa, percebe-se que ele nos remete a uma visão do passado e permite avaliar que não há o controle civil sobre os meios militares. Um dos primeiros tópicos da EMD é denominado Estratégia Nacional de Defesa e Estratégia Nacional de Desenvolvimento (21), o que nos remete à Doutrina de Segurança Nacional da Escola Superior de Guerra. Nesta visão, a ESG defendia o binômio Segurança e Desenvolvimento, ou seja, somente com o controle das ameaças à segurança nacional (guerra subversiva naquela época) e com desenvolvimento econômico, é que o Brasil conseguirá alçar seu destino de grande potência internacional. Essa visão militarizada de Segurança Nacional e Desenvolvimento, portanto, está presente até hoje. Em uma análise mais aprofundada, se percebe que existem visões do que seriam Forças Armadas modernas. Dos vinte e três itens das Diretrizes, muitos são aplicáveis a qualquer força moderna, como: desenvolver as capacidades de monitorar e controlar o espaço aéreo, o território e as águas jurisdicionais brasileiras; desenvolver, lastreado na capacidade de monitorar/controlar, a capacidade de responder prontamente a qualquer ameaça ou agressão: a mobilidade estratégica; aprofundar o vínculo entre os aspectos tecnológicos e os operacionais da mobilidade, sob a disciplina de objetivos bem definidos; fortalecer três setores de importância estratégica: o espacial, o cibernético e o nuclear; unificar as operações das três Forças, muito além dos limites impostos pelos protocolos de exercícios conjuntos; adensar a presença de unidades do Exército, da Marinha e da Força Aérea nas fronteiras; desenvolver, para atender aos requisitos de monitoramento/controle, mobilidade e presença, o conceito de flexibilidade no combate; desenvolver, para atender aos requisitos de monitora-
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mento/controle, mobilidade e presença, o repertório de práticas res quando as circunstâncias o exigirem, mobilizando em grane de capacitações operacionais dos combatentes; promover a reude escala os recursos humanos e materiais do País. A elasticidanião, nos militares brasileiros, dos atributos e predicados exigide exige, portanto, a construção de força de reserva, mobilizável dos pelo conceito de flexibilidade. Mas, principalmente, estrutude acordo com as circunstâncias. A base derradeira da elasticirar o potencial estratégico em torno de capacidades. Pois é desta dade é a integração das Forças Armadas com a Nação, e por isso, forma de organização de estrutura militar que as melhores forças reforçaria a necessidade do Serviço Militar Obrigatório e da moarmadas do mundo focam seu planejamento hoje em dia. bilização nacional. Mas, não se explica como esses soldados reHá também pontos importantes para a realidade do Brasil, crutados conseguirão se adequar ao que se denomina como como a necessidade de reposicionar os efetivos das três Forças. uma força sendo inteiramente uma vanguarda, que exige amplo As principais unidades do Exército estão no Sudeste e no Sul do espectro de meios tecnológicos, desde os menos sofisticados, Brasil. A esquadra da Marinha concentra-se na cidade do Rio de tais como radar portátil e instrumental de visão noturna, até as Janeiro. As instalações tecnológicas da Força Aérea estão quase formas mais avançadas de comunicação entre as operações tertodas localizadas em São José dos Campos, em São Paulo. As restres e o monitoramento espacial. Como um soldado que terá preocupações mais agudas de defesa estão, porém, no Norte, no um ano de treinamento conseguirá operar tais equipamentos? Oeste e no Atlântico Sul. Assim, a estratégia propõe: priorizar a Por fim, faz o seu planejamento para enfrentar uma guerra na região amazônica; desenvolver, para fortalecer a mobilidade, a Amazônia, uma vez que definem que os "imperativos de flexicapacidade logística, sobretudo na região amazônica. Também bilidade e de elasticidade culminam no preparo para uma guersão atuais as estratégias de preparar efetivos para o cumprimenra assimétrica, sobretudo na região Amazônica, a ser sustentada to de missões de garantia da lei e da ordem, contra inimigo de poder militar muito supenos termos da Constituição Federal; preparior, por ação de um país ou de uma coligação rar as Forças Armadas para desempenhade países que insistam em contestar, a pretexrem responsabilidades crescentes em operato de supostos interesses da Humanidade, a As principais ções de manutenção da paz; ampliar a capaincondicional soberania brasileira sobre a unidades do Exército cidade de atender aos compromissos intersua Amazônia". Ou seja, planejam contra a nacionais de busca e salvamento; e capacitar hipótese de lutar contra forças americanas, estão no Sudeste e a indústria nacional de material de defesa que são as únicas com capacidade de operar no Sul; a Marinha para que conquiste autonomia em tecnoloum conflito em larga escala em território braconcentra-se no gias indispensáveis à defesa. sileiro. O principal é que não faz nenhuma Rio de Janeiro; e as Contudo, há ainda visões que não se ajusmenção de como fazer esse tipo de operação instalações da Força tam à realidade da guerra moderna como: reem conjunto com Marinha e Aeronáutica. ver, a partir de uma política de otimização do Esses destaques são importantes tendo em Aérea estão quase emprego de recursos humanos, a composição vista que na guerra moderna o cerne deste todas localizadas dos efetivos das três Forças, de modo a dimencombate é a combinação de comando, conem São José dos sioná-las para atender adequadamente ao trole e ações conjuntas. Com cada Força faCampos (SP). disposto na Estratégia Nacional de Defesa; e, zendo seu planejamento individualmente, principalmente, manter o Serviço Militar sem ter definições acerca de como será estruObrigatório, visto como uma condição para turada a comunicação entre as mesmas, não que se possa mobilizar o povo brasileiro em se fará nenhuma grande transformação em defesa da soberania nacional. Ele é, também, instrumento para relação ao que as mesmas sempre fizeram ao longo da história afirmar a unidade da Nação acima das divisões das classes sobrasileira. Portanto, há muitas mudanças urgentes a serem imciais. Ou seja, apesar de se defender o aprofundamento dos veplementadas pelo novo governo a fim de que finalmente se tetores tecnológicos, a unificação das operações das três forças, e nha o controle civil sobre os meios militares no Brasil e para que buscar desenvolver as capacidades, ainda se espera contar com as suas Forças Armadas atuem de forma integrada. os soldados conscritos, aqueles que são recrutados e, após um ano de treinamento, são mantido como reserva mobilizável. Fica a 3.5. Indústria de Defesa questão de como compatibilizar essas duas realidades. Ademais, quando se passa a analisar as ações que as forças Sem dúvida, é fundamental que o Brasil passe a produzir seguirão, fica patente que cada uma continua a fazer seu plaseu próprio material de Defesa. Entretanto, não se pode correr nejamento de forma independente. Cada Força relata suas o risco de repetirmos situações do passado, quando houve o prioridades, como a Marinha com seus meios navais e no másurgimento de indústrias desse ramo, mas que, ao dependeximo, com o monitoramento da superfície do mar, a partir do rem quase exclusivamente das compras nacionais, não conseespaço, deverá integrar o repertório de práticas e capacitações guiram se sustentar. O maior exemplo dessa situação foi a Enoperacionais da Marinha. Mas, não diz nada de como fazer isgesa, que desenvolveu excelentes equipamentos à época, coso com os meios na Força Aérea, que teria muita capacidade de mo o veículo principal de combate EE-T1 Osório, mas não teve executar tais missões baseadas em suas aeronaves. escala de produção suficiente. Já o Exército defende a elasticidade, como a capacidade de Hoje em dia, poucos são os países que conseguem ter essa aumentar rapidamente o dimensionamento das forças militaescala sozinhos, sendo que mesmo os Estados Unidos estão
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começando a ter dificuldades em manter sua indústria. A simples transferência de tecnologia avançada não conseguirá solucionar esse problema. E necessário que padrões econômicos estejam presentes nestes projetos, a fim de evitar que no futuro o governo tenha que dar subsídios ou mesmo participar no capital destas indústrias. A área do Vale do Paraíba, mais especificamente ao redor de São José dos Campos, tem a infraestrutura de conhecimento necessário para ser o polo produtor militar brasileiro, principalmente no setor aeroespacial e de comunicação, fundamentais à guerra moderna.
da República. Pontos fundamentais, como a nomeação dos Comandantes das Forças, precisam ser feitos por indicação do Ministro e não mais somente ouvido este último. Também deve o Ministro da Defesa estar presente na hierarquia de comando, com a subordinação das Forças Armadas ao Presidente da República por intermédio do Ministro da Defesa, e não mais somente subordinados ao Presidente. - A fim de que haja controle civil sobre os meios militares, cabe a modificação do Decreto Nº 4.735, de 11 de junho de 2003. Tendo em vista que já há civis com conhecimento necessário e suficiente para a definição das Andre Dusek/AE 4. Propostas políticas da área de Defesa, fazse necessário e urgente que se 4.1. Segurança Nacional modifique o Capítulo V do Decreto (Das Disposições Gerais, - A primeira ação do próximo Art. 36) o qual trata do provigoverno deverá ser uma promento dos cargos de Secretários posta de Emenda Constitucio(Grupo 0001-A). Não se pode ter nal a fim de modificar, no Capío efetivo controle civil se somentulo II (Da União) acerca da Orte os militares tiverem a autoriganização do Estado, os conteúdade e controle na elaboração dos acerca da Defesa Nacional. das políticas militares. É necessário introduzir nova- A fim de que haja, real e efemente a questão da Segurança tivamente, um planejamento Nacional, a fim de que não haja para ação conjunta entre as Formais confusão em torno de ças Armadas brasileiras, é necesquem tem a responsabilidade sário ter uma hierarquia clara e da segurança da Nação. bem definida nesse processo. - Consequentemente, transAssim, sem fazer com que o Esformar o Gabinete de Segurança tado Maior de Defesa (EMD) teInstitucional (GSI) em Gabinete nha precedência sobre os Code Segurança Nacional (GSN), a mandantes das Forças, não se quem caberá elaborar a política conseguirá transformar as ForÉ fundamental que o Brasil passe a de Segurança Nacional. Este doças Armadas para operar conproduzir seu próprio material de Defesa. cumento servirá como um norjuntamente, principalmente no teador das outras políticas setoque se refere ao Comando, Conriais, dentre elas, a da Defesa. trole e Comunicação. Assim, é - Centralizar a direção do setor de Inteligência do governo necessário mudar a Lei Complementar 97, de 1999, a fim de dar sob o comando do futuro GSN. Tanto o Ministério das Relações a condição ao EMD de precedência sobre os Comandos das Exteriores (MRE), quanto o Ministério da Defesa, têm seus Forças, como pode se observado na Figura 2. próprios sistemas de Inteligência, contudo, estes, corretamen- Fazer com que o período no qual o oficial de uma das Forças te, são direcionados às tradições e peculiaridades de cada área. sirva no MD seja computado com peso maior na sua promoção. Além disso, há ainda a área de Inteligência da Polícia Federal - Preparar as Forças Especiais das três Forças para que pos(PF) junto ao Ministério da Justiça, como também a área do Misam atuar em auxílio às forças policiais em casos extremos nos nistério da Fazenda, com o Conselho de Controle de Atividagrandes centros urbanos e, com mais vigor que atualmente nas des Financeiras (COAF) e a própria Agência Brasileira de Ináreas fronteiriças, sobretudo em ações voltadas para o contraformação (ABIN). É necessário e premente que haja uma cobando de armamentos e a repressão ao narcotráfico. ordenação e principalmente uma visão civil sobre todas as ati- Criar, subordinada ao Ministro da Defesa, a Guarda Costeira, vidades de Inteligência a fim de assessorar a Presidência da a fim de que se possa aumentar a capacidade de patrulhamento e República, sendo, portanto o futuro Gabinete de Segurança controle das águas territoriais frente aos delitos comuns. Nacional o órgão mais adequado para exercer esse papel. - Transferir a Infraero para o Ministério dos Transportes, com a ANAC também deixando o Ministério da Defesa, e 4.2. Ministério da Defesa passando a agência reguladora independente, pois que hoje está subordinada a esse ministério. Consequentemente, - É necessário mudança na legislação a fim de transformar o promover a transferência para a Casa Civil da Presidência, Ministro da Defesa para exercer um efetivo comando das Forpara o Ministério dos Transportes, ou supressão do Conseças Armadas em nome do Comandante Supremo, o Presidente lho Nacional de Aviação Civil (CONAC), que também faz
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Figura 2
Em que: EMCFA = Estado Maior Conjunto das Forças Armadas; SELOM = Secretaria de Logística e Mobilização; SEORI= Secretaria de Organização Institucional; SPEAI= Secretaria de Política, Estratégia e Assuntos Internacionais; MB= Marinha do Brasil; EB= Exército do Brasil; FAB= Força Aérea Brasileira; ESG= Escola Superior de Guerra; CISET= Secretaria de Controle Interno; CONJUR= Consultoria Jurídica; ASPLAN= Assessoria Parlamentar; ASCOM= Assessoria de Comunicação Social.
parte da estrutura do Ministério da Defesa. Não há mais a necessidade da interferência militar no setor de transporte aeronáutico civil no Brasil, sendo, contudo, necessário estudar melhor como tentar separar o controle do espaço aéreo, pois este foi construído com recursos do orçamento militar e o desenvolvimento de um completamente civil implicaria em gastos muito elevados. - Adequar a Política de Defesa Nacional (PDN) à realidade de ser uma política setorial de governo. Tendo por base uma Política de Segurança Nacional, definir claramente quais os objetivos a serem defendidos pelos militarmente, a fim de que a sociedade brasileira possa ter o mínimo de conhecimento de qual estrutura militar pretendemos ter. Outros governos poderão conhecer quais são as diretrizes militares brasileiras. - Adequar a concepção de Mobilização Nacional à realidade da guerra moderna. É necessário haver uma estrutura jurídica para períodos de conflito (não é preciso planejar toda a sociedade para conflitos prolongados). Com o equipamento disponível e estoques é que se consegue lutar e vencer uma guerra moderna, que não dura mais do que meses. Assim, a logística tem que estar pronta para esta situação.
4.3. Estratégia Militar de Defesa - Definir claramente as diretrizes para um real planejamento de operações conjuntas. Cabe ao EMD, com participação dos Comandos Singulares, a elaboração do planejamento futuro da arquitetura militar brasileira, tendo como princípio a construção de capacidades, não mais de Hipóteses de Emprego. - Definir estrutura de comando e controle que realmente unifique a comunicação de troca de dados entre as três Forças. Para tanto, o desenvolvimento de infraestrutura de comunicação comum por satélite é fundamental. - Priorizar o desenvolvimento das capacidades de combate e não mais as Hipóteses de Emprego. - Priorizar o adestramento visando a efetiva ação conjunta entre as Forças, principalmente com a interoperabilidade de equipamento. Favorecer ao máximo a formação de quadros com capacidades inter-forças. - Iniciar o processo de profissionalização das Forças, visando a necessidade de soldados aptos a lidar com a complexidade da realidade da guerra moderna.
Referências Bibliográficas BANHA, Paulo da Motta. História do Estado-Maior das Forças Armadas. Brasília EMFA, 1987. BORGES FILHO, Nilson. Segurança Nacional e Constituição. Em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/ buscalegis/article/viewFile/14081/13645 FRAGOSO, Heleno Cláudio. A Nova Lei de Segurança Nacional. Em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/ Rev_58/panteao/HelenoClaudioFragoso.pdf NEUMAN, Stephanie G. Defense Planning in Less-Industrialized
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States. Lexington, Massachusetts, Toronto: Lexington Books, 1984. PEREIRA, Ana Claudia J. A Política Externa e a Política de Defesa dos governos FHC e Lula: uma reflexão sobre a proeminência de atores e a abertura do debate democrático. Em: http://observatorio.iuperj.br/pdfs/ 27_observador_topico_Observador_v_2_n_12.pdf ZAGORSKI, Paul W. Democracy vs. National Security. Civil-Military Relations in Latin America. Boulder, C.O.: Lynne Rienner Publishers, 1992.
- Usar seletivamente a expressão "aliado estratégico", pois sua vulgarização compromete qualquer relacionamento que se queira aprofundar. - Transferência e criação de unidades na Amazônia, para a defesa do território e espaço aéreo, assim como, mesmo que em missão subsidiária e já com respaldo legal, apoiar a Polícia Federal no combate ao narcotráfico e tráfico de armas. Para tanto, é fundamental a cooperação com o Ministério da Justiça para desenvolver toda a estrutura de comunicação e de procedimentos.
4.4. Indústria de Defesa - Desenvolver junto às empresas brasileiras as tecnologias para as áreas de monitoramento, comunicação e controle aeroespacial. Parcerias com o Ministério da Ciência e Tecnologia e universidades são fundamentais para esse processo. - Buscar incentivar a cooperação da indústria de defesa brasileira com outras estrangeiras, tendo em vista que somente as compras do governo brasileiro não serão suficientes para manter linhas de produção unicamente nacionais.
Joel Silva/Folhapress
Soldados do Exército patrulham o Rio Paraguai, uma das principais rotas usadas por traficantes de armas e drogas. A ação ocorreu no fim do ano passado e contou com a Marinha e a Polícia Federal.
Notas (1) Figura adaptada a partir do trabalho de NEUMAN,
Stephanie G. Defense Planning in Less-Industrialized States. Lexington, Massachusetts, Toronto: Lexington Books, 1984, p 7. (2) http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Constituicao/ Constitui%C3%A7ao37.htm (3) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ Constitui%C3%A7ao46.htm (4) Borges Filho, Nilson. Segurança nacional e constituição. Em: http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/ buscalegis/article/viewFile/14081/13645 (5) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constitui%C3%A7ao67.htm (6) http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/ 55_Legislacao%20(Caso%20UNE).pdf (7) http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L7170.htm (8) FRAGOSO, Heleno Cláudio. A Nova Lei de Segurança Nacional, em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/ Rev_58/panteao/HelenoClaudioFragoso.pdf (9) BANHA, Paulo da Motta. História do Estado-Maior das Forças Armadas. Brasília EMFA, 1987. (10) ZAGORSKI, Paul W. Democracy vs. National Security. Civil-Military Relations in Latin America. Boulder, C.O.:
Lynne Rienner Publishers, 1992. http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/128488/lei-5862-72 (12) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20042006/2005/Lei/L11182.htm (13) http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/LCP/Lcp97.htm (14) http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/98579/decreto4735-03 (15) http://www.naval.com.br/blog/2009/10/05/aposentadoriase-pensoes-sao-o-que-pesa-no-orcamento-da-defesa/ (16) Pereira, Ana Claudia J. A Política Externa e a Política de Defesa dos governos FHC e Lula: uma reflexão sobre a proeminência de atores e a abertura do debate democrático. Em: http://observatorio.iuperj.br/pdfs/ 27_observador_topico_Observador_v_2_n_12.pdf (17) http://www.planalto.gov.br/publi_04/colecao/DEFES.htm (18) http://www.planalto.gov.br/publi_04/colecao/DEFES.htm (19) https://www.defesa.gov.br/pdn/index.php?page=home (20) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2008/Decreto/D6592.htm (21) https://www.defesa.gov.br/eventos_temporarios/ 2009/estrategia/arquivos/estrategia_defesa_nacional_ portugues.pdf (11)
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Os DESAFIOS d Habitação,
Sanea
Divulgação
Vladimir Fernandes Maciel Economista pela FEA-USP, mestre em Economia pela FGV-SP e doutorando em Administração Pública e Governo pela FGV-SP (com passagem pelo Massachusetts Institute of Technology - MIT). Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultor em Economia Regional e Urbana. Atuou na Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo no período 2001-2004.
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Leonardo Rodrigues/e-SIM
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Marcos Peron/Virtual Photo
os SETORES de mento e
Transportes Urbanos Se existem setores em que o Brasil se aproxima mais dos países subdesenvolvidos, habitação, saneamento e transporte urbano são os escolhidos. É impressionante que um país capaz de explorar petróleo em grandes profundidades e utilizar combustíveis alternativos em larga escala ainda não conseguiu tratar decentemente dos dejetos humanos de sua população.
Masao Goto Filho/e-SIM
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Introdução
Resumo Este artigo apresenta um conjunto de diretrizes e propostas relacionadas à área de desenvolvimento urbano, tendo por base uma análise das características institucionais e dos programas federais em curso e o hiato no atendimento das demandas por moradia popular, saneamento básico e transporte coletivo. Tradicionalmente, os mecanismos de subsídio à habitação de interesse social no Brasil são complexos e ineficazes para atingir as classes de renda familiar de 1 a 3 salários mínimos, apesar de aperfeiçoamentos recentes. O setor de saneamento básico continua sem definições claras do marco regulador para nova organização industrial do segmento e com investimentos abaixo do necessário para zerar o déficit de cobertura. O resultado é o descasamento entre expansão de moradias e cobertura do saneamento básico. A decisão de investir em moradia e saneamento é também a de ocupar um espaço na cidade, o que implica na criação ou expansão de demanda por transportes. A expansão quantitativa e qualitativa de rede de transporte coletivo esbarra em questões federativas que o Governo Federal poderia sanar ao contemplar e priorizar programas de investimentos nesse transporte, que se integrem aos de moradia e saneamento. Hoje, as três áreas são administradas de modo não integrado: os programas não se conversam e as metas não convergem. Entre outras propostas, estão as de: (1) compatibilizar e integrar os programas e a ações dos três setores; (2) simplificar e focar os programas existentes; (3) articular os programas e as ações entre as diferentes esferas de governo; (4) priorizar o uso de recursos públicos para subsidiar programas destinados à baixa renda; (5) modernizar os mecanismos de gestão e de atração de recursos privados para os investimentos de longo prazo; (6) prestar de contas dos recursos públicos utilizados e dos resultados atingidos – avaliação das políticas.
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iscutir habitação, saneamento e transportes urbanos é uma tarefa ingrata, pois é quase tão sem charme quanto um passeio por conjuntos habitacionais em qualquer grande cidade do Brasil. Dentre os ramos da área de infraestrutura, estes não apresentam qualquer apelo à grandiosidade e ao suposto "dinamismo econômico", tais quais portos, aeroportos, rodovias e ferrovias. No entanto, se existem setores em que o Brasil, em sua contradição, se aproxima mais dos países subdesenvolvidos, habitação, saneamento e transporte urbano são os escolhidos. Veja-se o caso do saneamento básico. É impressionante que um país capaz de desenvolver satélites, explorar petróleo em grandes profundidades e utilizar combustíveis alternativos em larga escala ainda não conseguiu tratar decentemente dos dejetos humanos de sua população. O nosso tão festejado litoral sofre com a questão da balneabilidade de suas águas. De acordo com Vitor (2002), aproximadamente 40 milhões de pessoas residem nas cidades litorâneas brasileiras, que lançam em torno de 150 mil litros de esgoto in natura no oceano, ou seja, quase seis bilhões de litros anuais. Para abordar estes temas, o artigo está divido em quatro grandes seções. A Seção 1 apresenta os fundamentos econômicos para analisarmos as questões urbanas. A Seção 2 faz um diagnóstico da situação da moradia, do saneamento básico e do transporte urbano numa perspectiva nacional. A seção seguinte aponta as instituições e os programas existentes por parte do Governo Federal, destacando-se os pontos fortes e as deficiências. A Seção 4 elenca para cada uma dessas áreas um conjunto de diretrizes e propostas de atuação para o próximo Governo Federal. A Seção 5 apresenta alguns comentários finais. 1. A Economia do espaço urbano Habitação, saneamento básico e transportes urbanos são faces de um mesmo fenômeno: as cidades. Todos se relacionam à decisão de famílias ao ocuparem um lugar no espaço urbano. Passemos aos fundamentos econômicos que estão por trás das cidades. A existência da atividade econômica concentrada vem de economias de escala na produção e de aglomeração, ambas associadas a custos de transporte. A ideia básica é que, por algum fato histórico, a partir de um dado momento, as empresas passaram a se agrupar numa dada localidade. Pela existência de competição imperfeita e, portanto, ganhos de escala (internos à firma e externos ao setor), passa a ser vantajosa a aglomeração. Na existência de mobilidade do fator trabalho, a aglomeração atrai população em busca de salários reais maiores e, portanto, melhores condições de vida. A paisagem urbana ou metropolitana apresenta de um modo geral um padrão em que as áreas mais centrais concentram os locais de comércio, principalmente varejista, as sedes de empresas e de prestadores de serviços (desde hospitais e clínicas odontológicas a consultorias), os locais de refeições e de entretenimento (como teatros e cinemas), e, portanto, as principais concentrações de emprego. Mais afastadas em relação ao centro ficariam as habitações e as eventuais manufaturas.
A formulação teórica mais consistente sobre o uso do solo urbano e que iluminou a intuição que acabamos de descrever foi desenvolvida por William Alonso (1964), urbanista e economista de origem argentina. Sua intuição básica é que, como o produtor agrícola, tanto empresários como famílias disputariam economicamente a ocupação do solo. Ou seja, o agente econômico que oferecesse o maior preço ocuparia determinado pedaço de terra urbana. Isso explicaria que, mesmo sem a existência de um zoneamento urbano conduzido por mecanismos de planejamento público, haveria um padrão definido de uso do solo de acordo com a atividade (negócios ou residências). A referência agora é que a distribuição de terras ocorre em torno do centro da aglomeração urbana, o "distrito central de negócios", cuja sigla correspondente em inglês é CBD. Assim como haveria diferentes padrões de uso do solo por atividade (comercial/serviços, industrial, residencial e agrícola), o uso habitacional também é diferente em si. Para o uso residencial há diferentes padrões habitacionais (por estrato de renda e por dimensões de terreno) que caracterizariam o espaço das cidades. De forma bastante intuitiva e ilustrativa, há na observação da realidade dois padrões gerais: o norte-americano e o europeulatino-americano. No primeiro, em geral, as classes de menor poder aquisitivo moram mais próximas às áreas centrais, em habitações menores, porém com mais fácil acesso ao centro da cidade (dada a infraestrutura de transportes públicos e a proximidade). As classes mais abastadas, residem nas localidades mais periféricas. Já no padrão europeu/latino-americano, predomina geralmente a localização residencial das classes de maior renda próximas às regiões mais centrais da cidade, enquanto que na periferia residem as classes de renda inferior. A argumentação de Muth (1969) é que se o consumidor que possuir maior nível de renda tiver os mesmos custos marginais de transporte do que outro consumidor mais pobre, porém maior necessidade de espaço, então ele residirá mais distante do centro. Esta seria umas das explicações teóricas do padrão de
uso residencial norte-americano. O baixo preço da gasolina e a configuração das cidades por grandes avenidas e vias expressas são causas disso. Outra possibilidade teórica é que se o consumidor mais rico tiver a mesma necessidade de espaço do mais pobre, porém com custo marginal de comutação maior, ele preferirá residir mais próximo das áreas centrais da cidade. Neste argumento teórico residiria a explicação do padrão europeu/latino-americano de uso residencial do solo urbano. Cidades com configurações mais antigas (ruas estreitas e sinuosas) aliadas ao maior preço do combustível causam este fenômeno. Quando um comprador adquire uma propriedade no solo urbano, afirma Alonso (1964), ele está em uma única transação obtendo dois bens: espaço (terra) e localização. A localização, em relação ao centro da cidade, pode ser entendida de duas formas: (a) um 'mal' (oposto de bem, ou seja, um 'bem negativo'): a distância com custos positivos (custos de comutação, ou seja, de ir e vir do local de trabalho, do local de consumo/comércio etc.); ou (b) um bem, a acessibilidade, com custos negativos (economias que se fariam no deslocamento). O CBD, por suposição, concentra empregos e atividades empresariais da cidade. Portanto, nas zonas centrais a ocupação do solo é mais elevada (maior demanda e lotes menores), daí nas grandes cidades se apresentarem no centro a verticalização das construções. Logo, o aluguel da terra é mais alto, embora o custo de deslocamento seja menor para quem nelas reside. Nas zonas periféricas, a densidade é menor (menor demanda e lotes maiores), porém o custo de deslocamento até as zonas centrais é maior. Dentro desta perspectiva adiciona-se o fato de que infraestrutura de transportes e de saneamento básico constitui-se em bens cuja provisão é caracterizada por elevadas economias de escala (resultando em monopólios naturais) e externalidades. Em muitos casos a infraestrutura ainda pode ter consumo não rival e não excludente, caracterizando-se como bem público. O mecanismo de livre mercado, portanto, não consegue prover
L.C. Leite/AE
Habitação, saneamento e transportes geram demandas interconectadas, mas as ações não são coordenadas.
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José Luís da Conceição/AE
Canteiro de obras em Cajamar (SP), que faz parte do programa Minha Casa, Minha Vida, do Governo Federal.
de modo eficiente tais bens, o que nos leva a demandar a provisão direta ou regulada pelo Estado. Habitação, saneamento e transportes geram demandas sobrepostas e interconectadas no espaço. Este é talvez o aspecto mais óbvio, porém mais difícil, em relação a essas políticas públicas urbanas. Elas dificilmente são integradas e coordenadas, embora tratem de aspectos interrelacionados. Mas, é preciso insistir na sua integração e coordenação. 2. O quadro atual: déficits de atendimento e de cobertura
estatal, pelo antagonismo de interesses políticos (não apenas entre oposição e situação, mas dentro do Estado, entre grupos, como burocracia e governo eleito, entre membros da coalizão etc.). Na esfera administrativa, muitos dos problemas que mencionaremos a seguir ultrapassam o raio de atuação dos municípios individualmente e são de âmbito metropolitano ou regional. Isto se torna uma dificuldade, pois não está prevista no Brasil esfera de governo entre municípios e estados, de sorte que ocorrem situações do tipo "terra de João Ninguém": nenhuma esfera de poder se responsabiliza pela solução. 2.1. Desenvolvimento urbano no Brasil
A oferta de infraestrutura fundamental deixa muito a desejar no País. A questão é bastante complexa porque envolve setores de atividade econômica que interagem no espaço e que perpassam a decisão de localização de empresas e famílias. A existência de economias de escala na provisão e de externalidades tornam ainda mais difícil a equação, pois o simples funcionamento de mecanismos de mercado não necessariamente gera resultados eficientes. Há necessidade de regulação estatal ou de políticas públicas, que sofrem de todas as falhas de governo também. O imbróglio é grande, e no caso brasileiro, maior ainda. Institucionalmente ainda não foi superado o velho modelo oriundo do Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) e do II PND (Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento). As dificuldades também passam pelo direcionamento de recursos financeiros, pela capacitação dos quadros da burocracia
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A depender da velocidade desse processo no tempo, a dinâmica interna da cidade pode gerar uma expansão da fronteira urbana concentrada nas classes de renda inferior e, a depender dos condicionantes histórico-institucionais, a ocupação da periferia por meio de habitações informais ou irregulares, sem que a infraestrutura pública acompanhasse paripassu essa evolução espacial. Este foi o caso do Brasil na segunda metade do século 20. Uma moradia digna não é resultado apenas de uma construção sólida que proteja a família das intempéries, mas um bem composto, que significa o consumo em conjunto de eletricidade, saneamento básico, vias públicas e transporte. A habitação, portanto, é um bem complexo e de características peculiares e possui oferta inelástica no curto prazo. O resultado é que o aumento
Paulo Pampolin/Digna Imagem
Uma moradia digna não é resultado apenas de uma construção sólida que proteja a família das intempéries, mas um bem composto, que significa o consumo em conjunto de eletricidade, saneamento básico, vias públicas e transporte. A habitação, portanto, é um bem complexo e de características peculiares e possui oferta inelástica no curto prazo.
da demanda por moradias, fruto da migração, torna-se, em sua quase totalidade, uma expansão dos aluguéis, de modo a direcionar (dentro de hipóteses específicas) a população de baixa renda em direção às zonas periféricas, em que a renda da terra é mais baixa. No entanto, não somente a habitação possui oferta inelástica no curto prazo, mas também a oferta de bens públicos (infraestrutura urbana, por exemplo), o que pode vir a criar um acréscimo ao problema de insuficiência de renda das famílias, sobretudo nos bairros degradados. Esta relação entre a urbanização e o problema habitacional é melhor visualizada quando se analisa a evolução dos sistemas urbanos brasileiros e, portanto, pelo fluxo migratório campo-cidade que se acelera entre o final do século 19 e o final do século 20 (principalmente na segunda metade do século 20, quando se consolida a matriz produtiva calcada na indústria de transformação. Durante décadas, migrantes chegaram em número muito superior à capacidade das cidades de gerar empregos. Este evento não foi pequeno em escala, muito menos gradual e, em menos de cem anos, especificamente em cinquenta anos (de 1930 a 1980), mais do que a questão do crescimento populacional no período foi o da redistribuição espacial da população o grande fato demográfico, sendo que um dos processos de destaque é a "avassaladora migração rural-urbana" (MOTTA, MULLER E TAVARES, 1997: p.8) - ver Tabela 1. Esse crescimento culmina com uma série de problemas intra-urbanos: pobreza, escassez de recursos financeiros na esfera pública local, congestão de tráfego, assentamentos precários (favelas, cortiços e outros de mesma natureza), subemprego, degradação ambiental e carência de infraestrutura e de serviços urbanos (do saneamento básico aos aparelhos públicos de cultura e lazer). Nos últimos 30 anos o processo mudou de característica, levando Motta, Muller e Tavares (1997) a caracterizá-lo como um
novo padrão de expansão do sistema urbano, o que implica em dizer que as grandes metrópoles não apenas perdem sua capacidade de atrair fluxos migratórios, como passam também a expulsar determinadas atividades econômicas industriais e, por vezes, populações. Nesse novo padrão, que Maciel (2003) busca associar também à mudança econômica em torno da abertura comercial, há um crescimento das cidades médias e grandes fora das regiões metropolitanas. Se isto significa uma menor pressão populacional em grandes centros urbanos, como São Paulo; por outro lado, implica que a mudança de padrão produtivo rumo aos serviços de maior qualidade não garantem dinamismo econômico capaz de propiciar melhoria de vida nas áreas mais periféricas, tampouco redução do estoque de problemas "intra-urbanos" herdados do período de expan-
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são. Já as áreas de crescimento no interior passam a lidar, também, com os mesmos desafios das metrópoles no período de atração econômica e populacional, pois nem tudo é benefício no processo de crescimento. 2.2. Habitação de interesse social De acordo com Malpas (2004), a habitação é um dos cinco serviços públicos essenciais destacados pela academia, ao lado de educação, saúde, seguridade social e serviços sociais pessoais. Essa definição está relacionada a uma concepção de Estado de Bem-Estar Social e, embora grande parte da provisão habitacional ocorra por parte do setor privado, seu status como variável de política pública consolidou-se ao longo do século 20. A Secretaria Nacional de Habitação (2009) classifica, de acordo com a nova metodologia de cálculo, o déficit habitacional como sendo composto por: (a) Déficit por Incremento do
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estoque (domicílios improvisados, coabitação familiar, cômodos alugados e cedidos, famílias conviventes secundárias com intenção de constituir domicílio exclusivo, ônus excessivo com aluguel, domicílios alugados com adensamento excessivo de moradores por dormitório) e (b) Déficit por reposição de estoque (moradias rústicas). Em 2007 o déficit habitacional estimado pela metodologia acima descrita foi de 6,273 milhões de residências, sendo que 82,6% estão localizados nas áreas urbanas, ou seja, pouco mais de 5 milhões de domicílios. A Figura 1mostra como este valor se distribui entre os estados do País. Garcia e Rebelo (1999) indicam, por meio de análise empírica para o Brasil, que o déficit habitacional é um problema associado à carência de renda das famílias. Aproximadamente 89% do déficit habitacional está concentrado em famílias que recebem até três salários mínimos mensais, conforme mostra a Figura 2.
Acrescente-se a este processo o fato de que o crescimento das zonas periféricas convive com escassez de investimentos públicos que, combinados com os baixos níveis de renda, tendem a implicar em moradias inadequadas, ampliando o risco não apenas ao sistema ambiental, mas também aos habitantes que se tornam sujeitos a enchentes, desmoronamentos, doenças etc., como observado neste ano, principalmente em São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro. 2.2.1. O modelo do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) Por mais contraditório que pareça à primeira vista, a primeira política em larga escala na área habitacional foi concebida no Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) nos primeiros anos da ditadura militar. O Sistema Financeiro da Habitação, como mostra a Figura 3 , concebido por Mário Henrique Simonsen, valia-se do instrumento de poupança forçada de longo prazo criado pelo Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para gerar fundos de recursos às ações de habitação de interesse social. Além disso, através da Caderneta de Poupança, "carimbou-se" recursos do sistema financeiro privado para financiar construtores e compromissários compradores de residências.
No caso da habitação de interesse social, que nos interessa neste artigo, o sistema era controlado centralmente pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), extinto em 1986 e cujas atribuições foram parcialmente dirigidas à Caixa Econômica Federal. Cabia às companhias de habitação estaduais e municipais a operacionalização das ações de produção e financiamento habitacional. A recém criada correção monetária incidia mensalmente sobre os saldos devedores dos compromissários com as companhias de habitação e sobre os saldos
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devedores dessas com o BNH. A prestação dos compromissários era corrigida trimestralmente. Eventuais descompassos ao longo da vida útil do contrato seriam quitados ao término pelo Fundo de Compensação de Variações Salariais (FCVS), que era constituído por parcelas cobradas junto às prestações do financiamento. Embora questionável em termos urbanísticos, por produzir habitação de interesse social segregada e distante dos centros urbanos, um volume relativamente grande de moradias foi viabilizado. O problema é que na medida em que o cenário macroeconômico foi se degradando, com aceleração inflacionária e perda de renda por parte das famílias, o sistema foi ruindo pelo descasamento entre ativos e passivos (1) e por conseguir atender cada vez menos famílias realmente de baixa renda (até três salários mínimos). Resta hoje um grande passivo e a completa decadência das companhias habitacionais, totalmente descapitalizadas. Do SFH original resta em funcionamento apenas o circuito do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). O volume de crédito concedido vem se recuperando desde 2005 (conforme o Gráfico 1), e contribui para o atual período de boom do setor da construção civil. No entanto, o SBPE é muito sujeito a flutuações cíclicas, já que a captação por meio das cadernetas de poupança é na forma de uma aplicação de curto prazo, que disputa com alternativas como CDBs/RDBs e Fundos DI. Ainda pesa sobre o setor público a responsabilidade pela maior parte do crédito imobiliário concedido. O monopólio da gestão do FGTS é um dos motivos. A Caixa Econômica Federal foi responsável por 73% do financiamento imobiliário a pessoas físicas concedidos em 2009, de acordo com informações do Boletim do Banco Central do Brasil (2009).
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Sem entrarmos nas motivações ideológicas, o fato é que a estrutura básica de intervenção não foi alterada na essência desde então. Em particular acreditamos que dificilmente o será, porém é preciso, ao menos, modernizá-la. Este processo vem sendo feito "aos trancos e barrancos" desde 1995, porém ainda insuficiente para equacionar as contradições sociais brasileiras. 2.3. Saneamento básico A expansão da urbanização nas condições que estamos apresentando também amplia a probabilidade de contaminação das águas e do solo, sobretudo quando se considera que a maior parte dos esgotos e do lixo não é tratada (TORRES, 2000). Este é um dos maiores "calcanhares de Aquiles" da infraestrutura brasileira. De acordo com a Agência Nacional de Águas (2009), somente 25,8% do esgoto coletado possui tratamento. O quadro é mais grave se considerarmos as informações da Tabela 2. Quase metade dos domicílios brasileiros não tem coleta de esgoto. O abastecimento de água também é alvo de preocupação diante da progressiva escassez que implica, inclusive, em contingenciamento no abastecimento em metrópoles como São Paulo, quando dos períodos de chuva abaixo da média. O Brasil tem avançado bem lentamente na coleta e no tratamento de esgotos. Mesmo em relação à coleta de lixo, os números mais escondem do que revelam. Os resíduos sólidos não são necessariamente depositados em aterros sanitários. Muitas vezes o depósito é em lixões, sem qualquer medida de impermeabilização contra contaminação do solo e do lençol freático.
2.3.1. O modelo do Planasa Assim como no caso da habitação, a expansão em larga escala da malha de abastecimento de água e coleta de esgoto se deu a partir do governo militar, mais especificamente em 1971, em meio ao "Milagre Econômico", por meio do lançamento do Plano Nacional de Saneamento (Planasa). A mesma lógica do SFH se deu no Sistema Financeiro de Saneamento (SFS), como ilustra a Figura 4. O FGTS fornecia os fundos de longo prazo, de modo que o BNH poderia repassar, via contrato de empréstimos, às empresas de saneamento básico estaduais (órgãos de execução das políticas de saneamento) para expansão da rede (BARAT, 1998). O SFS entra em decadência na década de 1980, como boa parte das instituições estatais e das políticas públicas. A Crise Fiscal do Estado se mostrou também no setor de saneamento. A aceleração inflacionária e a queda do poder aquisitivo da população fizeram com que a inadimplência dos usuários afetasse as companhias estaduais e, por sua vez, comprometesse a taxa de retorno e a capacidade de re-investimento do sistema como um todo. Apesar de ter possibilitado a expansão dos serviços de abastecimento de água tratada, afirma Passos (2006), o modelo do Planasa não produziu o mesmo resultado com relação ao tratamento do esgoto e não garantiu a sustentação financeira dos operadores. Além disso, como comenta Barat (1998), a Constituição de 1988 deixou não claramente definida a questão da titularidade dos serviços e as responsabilidades de cada esfera de governo. É por isso que a partir de meados dos anos 1990 começou o processo de redesenho institucional do sistema, reforçando o papel regulador do Estado e buscando incorporar o capital privado. No entanto, ainda não foi completamente desenhado um marco regulatório que conseguisse mitigar as grandes incertezas associadas aos investimentos e aos retornos em saneamento básico. Deste modo, a atração de recursos para expansão do setor tem sido muito tímida. 2.4. Transportes urbanos A imagem que temos das grandes metrópoles brasileiras é de um aglomerado de pessoas se movendo de um lado para o outro nas calçadas, com passos apressados, congestionamentos de automóveis e transportes públicos abarrotados de usuários. Com exceções de algumas regiões metropolitanas, como a de Curitiba ou Porto Alegre, esta descrição se aplica quase uniformemente. São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, por suas dimensões, mostram-se como os piores casos no Brasil. Em particular, São Paulo chegou a um estado dramático de
congestionamento viário, que tem levado o poder público municipal a adotar medidas paliativas e emergenciais na tentativa de amenizar momentaneamente a reduzida mobilidade. Como discutido anteriormente, a intensa migração, o encarecimento dos terrenos centrais, mais bem situados (levando-se em conta o transporte deficiente), e demais fatores criaram incentivos para configuração espacial das nossas metrópoles: as classes de menor poder aquisitivo acabam por se concentrar nas periferias. Lá os preços dos terrenos são menores, compensando a baixa acessibilidade e a insuficiência de infraestrutura. Logo, as classes com menores condições residem, em sua maioria, distantes dos locais de emprego, de consumo e de entretenimento (que em geral se concentram nas áreas mais centrais). Além disso, elas dependem de transporte público pouco eficiente e de baixa qualidade, pois este não foi priorizado ao longo de décadas. Agravando ainda mais o quadro, quando membros das classes menos abastadas conseguem obter crescimento de sua renda e acesso ao crédito, o principal impulso em termos de transporte é a aquisição de automóveis particulares. Isto, por sua vez, somente agrava o quadro de engarrafamentos em massa das metrópoles. Esta atitude é muito menos por status, mas pelo fato de serem desprivilegiados em sua mobilidade – o ir e vir diário ao trabalho em condições de baixa qualidade de transportes públicos piora sua qualidade de vida e reduz a produtividade. JULHO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 105
Cabe relembrar que uma das estratégias adotadas para desenvolver o setor industrial no Brasil foi priorizar a indústria automobilística. A produção de automóveis envolve a expansão e consolidação de diversos setores econômicos (produção de insumos e combustíveis, desenvolvimento do mercado de crédito e financiamento etc.). O preço pago por isto é caro. O automóvel individual foi prioridade dos investimentos em mobilidade urbana (e em boa parte dos casos ainda é). Túneis, vias expressas e investimentos correlatos superaram aqueles dedicados aos diferentes modais (como o ferroviário). Tomando o caso da maior metrópole como referência, já que não há dados equivalentes disponibilizados para outras regiões metropolitanas do País, observamos no Gráfico 2 a tendência histórica de crescimento do modo privado e redução do modo coletivo na decisão de deslocamentos diários. A reversão da última observação de 2007 ainda não pode ser explicada totalmente. Acreditamos que a criação do Bilhete Único (2) e a sua posterior integração com a rede metroviária e ferroviária explica boa parte deste resultado. Isto vai ao encontro do argumento de Barat (1998) que aponta para subsídios, política de Vale Transporte como medidas necessárias para redirecionar a demanda para modos coletivos. O modelo da Política Nacional de Transportes Urbanos O transporte urbano sobre trilhos inicialmente era administrado por concessões do poder público a empresas privadas com capital de origem estrangeiras. A partir dos anos 1940 essas empresas foram encampadas pelo Estado e passaram a ser administradas pelos poderes públicos locais (estados e municí-
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pios). Os recursos locais eram insuficientes para expansão adequada da rede. Mesmo a reposição do estoque e do material rodante não foi totalmente coberta. O resultado foi a depreciação e a degradação dos serviços prestados (Barat, 1998). De outro lado, o transporte coletivo sobre pneus foi ganhando força, inclusive pelo menor custo de investimento. Porém, mesmo neste modo, do ponto de vista de espaço ocupado nas vias públicas, os automóveis tiveram prioridade, na maioria das vezes, em detrimento dos ônibus. Como discute Barat (1998), a questão do transporte urbano foi tratada nas décadas de 1950 e 1960 como eminentemente local. O fato é que ela não é. Seu âmbito é, no mínimo, intermunicipal para boa parte do País. O problema é que no âmbito federativo não há nenhuma instância intermediária entre estados e municípios que garanta a coordenação de políticas públicas entre as municipalidades. Isto implica em ineficiências diversas, pois a escala mínima viável para muitos investimentos fica comprometida (aliás, este mesmo problema perpassa a questão do saneamento básico). Em 1975, no espírito do II PND e sob a mesma lógica centralizadora do SFH e SNS, o Governo Federal reconheceu que o transporte urbano não era apenas uma questão local. Transportes urbanos ineficientes afetam produtividade, custos e criam um ambiente de insatisfação social. Foi implantada, portanto, a Política Nacional de Transportes Urbanos (PNTU), composta pelos elementos mostrados na Figura 5. A recém-criada Empresa Brasileira de Transportes Urbanos era o órgão gestor da política, cuja execução se dava a cargo das empresas metropolitanas ou municipais de transporte coletivo. O funding para custear projetos e investimentos vinha do Fundo de Desenvolvimento dos Transportes
Urbanos, alimentado por recursos advindos dos tributos "Adicional ao Imposto Único sobre Combustíveis e Lubrificantes" (AIUCL) e "Taxa Rodoviária Única" (TRU). Estes impostos redistribuíam recursos do transporte rodoviário para o transporte urbano (sobre pneus ou sobre trilhos). O foco da PNTU era o desenvolvimento de soluções para transporte de massa, como corredores de ônibus, metrôs e trens urbanos. O foco da ação era as regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Curitiba). A preocupação era também diminuir a dependência do petróleo nos deslocamentos urbanos, numa década de crise mundial, (Barat, 1998). Vale citar que o sistema BRT (Bus Rapid Transit) de transporte rápido sobre pneus em corredores de ônibus, que está tão em voga em várias capitais mundiais (como em Bogotá, com o aclamado Transmilenio), foi desenvolvido originalmente em Curitiba sob a égide do PNTU. Críticas à parte ao modo centralizador e estatizante, o papel indutor e coordenador do Governo Federal e a redistribuição de recursos do transporte rodoviário para o transporte urbano coletivo foi desmontado pela crise econômica dos anos 1980 e pelo encerramento do FDTU e da EBTU no final da mesma década. Não foram substituídos por nada melhor. Ao contrário, houve um retrocesso, pois os transportes urbanos voltaram a ser uma questão essencialmente local. Quem sabe a necessidade premente de modernizar a infraestrutura de transportes urbanos para a Copa do Mundo de 2014 e para as Olimpíadas de 2016 não recoloque, tardiamente, em pauta a necessidade coordenação e planejamento integrado pelo maior ente federativo: o Governo Federal. 3. As instituições e os programas federais existentes: a não superação do velho modelo e a ausência de integração. Em 2001 é promulgada a Lei 10.257 que regulamenta o capítulo "Política Urbana" da Constituição. Ela é conhecida como "Estatuto da Cidade" e foi festejada por muitos urbanis-
tas como a panaceia. Era como se, automaticamente, todos os problemas urbanos fossem resolvidos, pois a lei prevê uma série de instrumentos de planejamento e de intervenção. No entanto, como toda lei, há necessidade de enforcement. Além disso, sua complexidade exige capacidade técnica e especialização dos quadros do poder público local, situação difícil de ser observada em milhares de municipalidades do País. É um avanço institucional, mas depende de muitos requisitos para ser executada. Em 2003, ainda no espírito de celebração do Estatuto da Cidade, foi criado o Ministério das Cidades. Sua composição foi por meio de antigas secretarias ligadas ao Ministério do Planejamento, secretarias especiais ligadas ao Gabinete da Presidência e algumas autarquias e empresas públicas anteriormente vinculadas ao Ministério dos Transportes. A Figura 6 representa a estrutura do Ministério das Cidades. Diversos especialistas consideram sua criação inócua e sua atuação fragmentada. Todavia, consideramos que a pro-
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Marcos Peron/Virtual Photo
A Secretaria Nacional de Saneamento não consegue emplacar nenhum programa em larga escala.
posta de unificar as três áreas do tripé do desenvolvimento urbano sob um mesmo órgão tem potencial de coordenar e harmonizar as políticas intersetorialmente. Mas isto não é automático, é construído e ainda estamos muito longe do desejável. As três áreas (habitação, saneamento e transportes) se desenvolvem de modo independente. O desempenho também é distinto. Enquanto que a Secretaria Nacional de Habitação vem desenvolvendo vários programas com relativo êxito, a Secretaria Nacional de Saneamento não conseguiu emplacar nenhum programa em larga escala. Já a Secretaria Nacional de Transporte e Mobilidade não produziu nada de significativo. Há ainda a Secretaria Nacional de Programas Urbanos, que trata de modo separado das demais questões que são transversais, como a reabilitação de áreas centrais e a regularização fundiária. 3.1. Área habitacional Pontos Fortes: a) Conseguiu viabilizar e implantar programas habitacionais com desenhos diferentes do tradicional modelo SFH, como o "Minha Casa, Minha Vida"; b) Possui forte articulação com os setores organizados da sociedade, desde movimentos sociais, empresários da construção civil e do crédito imobiliário (têm "ressonância").
Fragilidades: a) Não equacionou de forma definitiva a política de subsídios para famílias residentes nas regiões metropolitanas com renda inferior a três salários mínimos; b) Não integra suas políticas habitacionais com as políticas de transportes urbanos e de saneamento; c) Muitos programas e decorrente fragmentação das ações, o que gera ineficiência; d) A "ressonância" mencionada acima também abre espaço para fortes lobbies dos grupos de interesse organizados em detrimento da "maioria silenciosa". As linhas de atuação da área habitacional estão definidas na Política Nacional de Habitação (PNH). Em uma simplificação muito grande, a política tenta incorporar princípios como subsídios diretos às famílias, urbanização de favelas, regularização fundiária e estímulos ao setor privado num arcabouço institucional ainda muito espelhado no velho SFH, porém sem a atuação direta das COHABs e com a Caixa Econômica Federal, exercendo parte das funções delas e daquelas do extinto BNH. O maior problema, no entanto, é a profusão de programas (ver Tabela 3) e regulamentações. Há até recursos do FAT e a participação do BNDES em deles. Isto gera sobreposições, burocracias e desperdício de recursos. Tradicionalmente, os mecanismos de subsídio à habitação de interesse social no Brasil são complexos e ineficientes para JULHO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 109
atingir as classes de renda familiar de 1 a 3 salários mínimos. Novos mecanismos, como o Programa de Subsídio à Habitação (PSH) e Minha Casa Minha Vida, apresentam aperfeiçoamentos: no primeiro o subsídio é concedido diretamente à família, abatendo-se do valor do imóvel; no segundo a produção habitacional, via mercado, tem subsídio da União diretamente às famílias de baixa renda, seja no financiamento seja abatendo do valor do imóvel. Contudo, a eficácia tem se mostrado baixa ao se observar o atendimento de famílias com renda de até três salários mínimos nos grandes centros urbanos, onde os custos fundiários e construtivos são mais elevados e que concentram o déficit habitacional. 3.2. Área de saneamento básico Pontos Fortes: a) Existência de uma base de diagnósticos e de programas que pode ser aperfeiçoada; b) Considera a possibilidade de operadores privados e A solução do de sociedade de propósitos congestionamento específicos na realização de nas grandes investimentos no setor de saneamento. metrópoles passará Fragilidades: não apenas pela a) Não integra suas políticas oferta de transportes habitacionais com as políticas públicos de de transportes urbanos e de qualidade, mas pelo habitação; b) Muitos programas e deencarecimento do corrente fragmentação das uso do transporte ações, o que gera ineficiência; individual frente ao c) Muitas instituições coletivo. Taxas e c o o rd e n a n d o p ro g r a m a s pedágios urbanos paralelos; d) Não incentiva ganhos de têm que existir. escala via operação conjunta entre municípios; e) Regulação econômica não está clara; f) Subsídios não estão claramente definidos e declarados. Embora as linhas de atuação estejam em consonância com as diretrizes do Conselho Nacional das Cidades, o setor de saneamento básico continua órfão de uma linha clara como a do Planasa. Não há definições claras e seguras do marco regulador para nova organização industrial do segmento e os investimentos são abaixo do necessário para zerar o déficit de cobertura (principalmente de coleta e tratamento de esgoto). O resultado é o descasamento entre expansão de moradias e cobertura do saneamento básico. A área sofre da síndrome de "muito cacique para pouco índio"( Figura 7). Há várias instituições federais, diversos programas e dispersão de recursos e de esforços (Tabela 4). 3.3. Área de transporte coletivo Pontos Fortes: a) Há programas embrionários que apontam em direções corretas.
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Fragilidades: a) Não integra suas políticas habitacionais com as políticas de habitação e de saneamento; b) Não tem plano claro e bem definido, com metas objetivas e acompanhamento de resultados (o pouco que existe é fruto das ações contidas no PAC); c) Não incentiva a incorporação de recursos privados nos investimentos do setor de transportes urbanos, nem tampouco articula parcerias entre os municípios; d) Os programas se apresentam sem efetividade e sem direcionamento mais definido e claro de recursos. A área de transportes urbanos do Ministério das Cidades é um arremedo de partes fragmentadas, que não consegue ter um plano, apenas princípios vagos. A juntada de autarquias resultou em um corpo estranho. Sob o título de "Transporte e Mobilidade" urbana estão os programas de resultados pouco significativos e dispersos (ver Tabela 5), o órgão normativo de trânsito (Denatran) e as companhias de atuação local que são dependentes do Tesouro Nacional (CBTU e Trensurb). Além da provisão de infraestrutura, é preciso criar incentivos a determinadas práticas e isso requer enfrentamentos. Por exemplo, a solução do congestionamento nas grandes metrópoles passará não apenas pela oferta de transportes públicos de qualidade, mas pelo encarecimento do uso do transporte individual frente ao coletivo. Taxas(3) e pedágios urbanos têm que existir. Não há qualquer ação do Governo Federal nesta direção, nem incentivo à adoção dessas práticas por parte dos municípios das regiões metropolitanas. Pelo contrário, há interesses macroeconômicos e setoriais que garantiram a redução do IPI sobre automóveis particulares.
4. Diretrizes e propostas para o novo governo: superando o passado e organizando o futuro. As soluções não passam apenas pelo "velho" planejamento urbano, de "cima para baixo". Numa sociedade democrática as soluções devem contemplar o atendimento das demandas da sociedade, isto implica que o Estado deve ouvila na formulação e implantação das políticas públicas. Isto tem sido contemplado com o Conselho Nacional das Cidades. Todavia não se espera soluções únicas, mas o estabelecimento de desenhos inovadores, como parcerias públicoprivadas e outras práticas de gestão mais modernas e flexí-
veis. Neste sentido, é crucial accountability e clareza dos marcos regulatórios e das formas de relacionamento entre o poder estatal e suas esferas e entre ele e o setor privado. As linhas gerais de atuação do novo governo devem ser no sentido de aperfeiçoar ou redesenhar os programas (fundos de recursos, sistema de subsídios, prioridades, metas etc.) e de avançar institucionalmente (desenho do Ministério das Cidades – ver Figura 8, definição de marcos regulatórios para aporte de novas fontes de recursos, fomento à participação conjunta de estados e municípios - tendo em vista o federalismo brasileiro e a descentralização de atribuições – ver Figura 9). JULHO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 111
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Será preciso ainda assegurar fonte de recursos aos investimentos na manutenção e na ampliação da infraestrutura pública urbana. Tem que se tornar evidente o montante de subsídios necessários, as fontes de recursos onerosas e não onerosas para todos os programas (Figura 10). Subsídios devem ser dados única e exclusivamente à população de baixa renda e no estímulo de modos coletivos e sustentáveis de transporte e de soluções ambientalmente corretas de disposição de resíduos e de tratamento de efluentes. As políticas públicas urbanas devem incorporar não apenas uma previsão dos impactos causados, mas serem constantemente alvo de avaliação e de correção de rumos. Não há hoje o hábito de avaliar o que aconteceu a fim de mensurar os custos e os benefícios efetivos. Na Tabela 6 apresentamos uma síntese de nossas propostas para a ação federal na área de desenvolvimento urbano, abrangendo suas três ramificações analisadas. 5. Comentários Finais
As políticas públicas urbanas devem incorporar não apenas uma previsão dos impactos causados, mas serem constantemente alvo de avaliação e de correção de rumos.
Ao fim e ao cabo realizamos o esforço de: 1) mostrar a lógica econômica do funcionamento dos espaços urbanos; 2) diagnosticar as características da urbanização brasileira; 3) mostrar os problemas relativos a cada grande área do desenvolvimento urbano; 4) mostrar como se deu historicamente a intervenção do Governo Federal no setor; 5) descrever a intervenção atual – instituições e programas – do Governo Federal no setor; 6) propor linhas de atuação, desenho institucional e programas para o setor – abertos em cada um dos seus componentes, isto é, habitação, saneamento e transportes. Acreditamos que há espaço e é necessária política pública urbana ao nível federal caso o novo governo queira melhorar a qualidade de vida nas cidades brasileiras.
NotasNotas (1) Na década de 1980 a inflação se acelerou. Para minimizar os problemas momentâneos oriundos da insatisfação popular, os contratos passaram a ter suas prestações corrigidas pelo reajuste do salário da categoria profissional dos compromissários. Isto foi a "pá de cal" no Sistema Financeiro da Habitação, gerando enorme descasamento entre passivo e ativo e a falência do FCVS. (2) Bilhete Único foi instituído no município de São Paulo e permite que o passageiro faça quatro integrações de ônibus
pagando uma única passagem dentro do período de três horas ou fazer integrações com Metrô e Trem Urbano pagando tarifa menor do que o valor da completa. Há uma versão carioca, o Riocard, que tem características específicas, mas compartilha o mesmo princípio geral. (3) Como a CIDE (Contribuição de Intervenção de Domínio Econômico) incidente sobre gasolina e diesel, cuja receita tributária vem sendo destinada apenas à contribuição ao superávit fiscal primário.
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Programa de Tratamento de esgoto Programa de Resíduos sólidos e Aterros Sanitários Programa de Drenagem Urbana
Financiar implantação de obras de infraestrutura de transportes estruturadores.
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Paulo Pampaolin/Hype
Pátio de manobra de trens da Linha 4 Amarela do Metrô de São Paulo, que ligará a Estação da Luz, no centro, à Vila Sônia, zona oeste da cidade, numa extensão de quase 13 km e 11 estações.
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Energia ElĂŠtrica
Propostas para uma agenda setorial
Fernando Donasci/Folhapress
Divulgação
Virginia Parente Economista pela Universidade de Brasília, pós-doutora em Energia pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do Programa de Pós-Graduação em Energia, do Instituto de Eletrotécnica e Energia, da mesma universidade. Foi pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e trabalhou em vários bancos nacionais e internacionais. Integra o Conselho de Administração da Eletrobrás, preside o Comitê Estratégico de Energia da Câmara Americana de Comércio (AMCHAM), é conselheira da Associação Nacional dos Consumidores de Energia (ANACE) e diretora da Sociedade Brasileira de Planejamento Energético. Desenvolve atividades de pesquisa e consultoria com ênfase em políticas públicas, economia e finanças aplicadas à energia e ao meio ambiente.
Resumo Este artigo tem duas metas básicas. A primeira é uma reflexão sobre temas afetos ao segmento de energia elétrica no Brasil. A segunda, propor uma agenda setorial que mire a formação de um sistema de suprimento de energia elétrica cada vez mais seguro, robusto e competitivo, sem perder de vista que ele deve ser, ao mesmo tempo, social e ambientalmente responsável. Dentre as sugestões aqui reunidas destacam-se: (1) priorizar a oferta hidroelétrica, que é a de melhor relação custo/benefício, o que implica em equacionar, em nível federal, os entraves à expansão desta oferta; (2) fortalecer a independência das agências reguladoras que atuam na área de energia, com destaque para a ANEEL e ANP, como condição necessária para garantir os volumosos investimentos requeridos no setor ao adicionar o capital privado; (3) reestruturar e reduzir a carga tributária que recai sobre a cadeia de energia elétrica, pois, por haver uma demanda largamente inelástica, ela resulta em uma enorme perda de bem estar social; (4) inserir as questões climáticas como fator de vantagem comparativa para o Brasil, tendo em vista que segmentos da indústria doméstica apresentarão vantagens em relação aos seus competidores globais se as regras climáticas se tornarem mais restritivas para todos; (5) praticar uma geopolítica responsável, que amplie a segurança e a oferta energética na região no médio e longo prazos, através de uma diplomacia de ganha-ganha.
Introdução
A
relevância da energia elétrica é indiscutível para qualquer economia. A energia elétrica é não apenas um importante insumo de produção, mas ela está nas bases do funcionamento de qualquer sociedade moderna. No caso brasileiro, além de ter um peso próprio, sinalizado pelo seu faturamento de mais de R$ 100 bilhões anuais, em 2009, a infraestrutura de serviços de energia elétrica ganha um significado ainda maior numa economia cuja parte expressiva da produção é energointensiva, ou mais precisamente, eletrointensiva, pois tem na energia elétrica um de seus principais insumos de produção. Definir energia é sempre um grande desafio. Tantas são as suas formas – cinética, potencial, luminosa, sonora, mecânica, eletromagnética etc. Tantas são as suas fontes, sejam elas renováveis ou não-renováveis. Pode-se perceber, entretanto, com maior facilidade em algumas dessas formas e fontes, do que em outras, a presença de um simples e ao mesmo tempo complexo denominador comum. Tal denominador encontrase contido na origem da palavra "energia", que deriva do grego "en" e "ergon", ou seja, "trabalho" ou "a capacidade de realizar trabalho". Assim, energia é esta capacidade de ação, de realizar uma transformação, modificação de forma e estado, de sítio, entre outras, seja através de uma máquina ou de uma pessoa, que só será capaz de realizar uma ação se possuir ou for alimentado pela energia.
dida, sem acesso à energia elétrica. Em várias dessas comunidaVários dos "trabalhos" que são realizados ou viabilizados des, a expectativa de vida situa-se em 45 anos. Por muitos fatores, pela presença ou pelo acesso à energia, especialmente na sua dentre os quais pela simples falta de acesso à energia elétrica, esforma de "eletricidade", são fundamentais para se alcançar o sas populações não conseguem escapar dos ciclos de pobreza e desenvolvimento econômico e social. A simples sinalização de miséria, ficando aprisionadas a uma economia de subsistência. uma possível escassez energética é suficiente para abalar o ritTais populações gastam horas preciosas de seus dias providenmo de crescimento econômico, o nível geral de preços da ecociando atividades cotidianas como o abastecimento de água ponomia, de forma que a concretização de uma escassez energétável, que, sem energia elétrica, exige um enorme dispêndio de tica se transforma num choque de oferta, num aumento geneenergia humana na sua obtenção e distribuição. ralizado de custos, tal a importância deste insumo tão presente Observa-se ainda que há outros aspectos de bastante releno modus operandi da sociedade moderna. Torna-se, portanto, vância na escolha energética pelas populações de baixa renda. compreensível a preocupação com a "segurança energética", A falta de informação e de acesso a alternativas energéticas, os sendo que compromissos para evitar a escassez ou as interrupcustos de implantação e de operação dos sistemas alternativos ções no fornecimento de energia elétrica tenham feito retornar ou, ainda, o fator renda que impele as populações mais carenao centro da agenda de política sócio-econômica a questão da tes a obter energia através da queima de madeira, seja para cocsegurança do suprimento, especialmente após o racionamenção, calefação ou aquecimento de água. to que marcou o País em meados de 2001. Sergio Neves/AE Observe-se ainda que do ponto de Explorando a relevância da infraesvista conceitual, a energia tamtrutura energética, verifica-se que bém está ligada às questões existe uma unanimidade ambientais e de saúde. Poquanto ao fato de a energia de-se dizer que, o que constituir-se num insusepara o aspecto ammo essencial à qualidabiental daquele da de de vida em tempos saúde é apenas o atuais. Como qualiprazo. Com efeito, dade de vida podequestões ambiense pensar não apenas tais trazem em seu no conforto das sobojo preocupações ciedades modernas, com a sobrevivênmas, também, na sua cia do planeta e com capacidade produtia sua consequente va. A falta de energia transformação num elétrica, por exemlocal impróprio ao plo, está geralmente A sinalização de uma escassez longo do tempo. Já associada não soenergética abala o crescimento econômico. as preocupações mente a uma ilumicom as questões de nação precária, mas saúde tendem, no a incapacidade de reque tange ao uso de energia elétrica, a centrarem-se nos efeifrigeração de alimentos, que implicam em maiores gastos diátos da poluição no curto prazo, mas também no acesso à rios de tempo e deslocamento até mercados e feiras em prepaágua potável e a um cotidiano menos desgastante. ração de alimentos perecíveis, sem as facilidades de poder preConstata-se, pois, que a energia elétrica vincula-se a uma gapará-los com antecedência ou fazer e manter um estoque de ma de questões sócio-econômicas. Essas questões vão desde a alimentos semiprontos. Adicionalmente, observa-se facilviabilidade produtiva, passando pela urbanização, até o aumente que a falta de energia elétrica traz consigo a impossibimento de oportunidades para inserção das mulheres e homens lidade de usufruir de um gama de equipamentos domésticos no mercado formal de trabalho. Esse incremento de oportunique poupam tempo e esforço e aumentam a qualidade de vida, dades é propiciado pela redução do peso das atividades docomo lavadoras de roupa, micro-ondas, condicionamento de mésticas no cotidiano das famílias. ar, aquecimento de água, movimentação em elevadores, acesNo Brasil, no âmbito da oferta de energia elétrica, são muitos so às telecomunicações, internet etc. Tais facilidades, enfim, os desafios que precisam ser equacionados no curto, médio e lonextrapolam o universo das famílias como unidades consumigo prazos. Entre eles estão: (1) como lidar com a segurança da doras e viabilizam uma enorme produtividade também nas oferta; (2) como lidar com a escalada de preços da geração de atividades de primárias, secundárias e terciárias. energia elétrica convencional, através da fonte hidráulica, em deAinda que reconhecidamente essencial às sociedades modercorrência de aproveitamentos hidrelétricos cada vez mais disnas, estima-se que de um terço da população mundial – aproxitantes dos centros de carga, que demandam investimentos em madamente 2,2 bilhões de pessoas (1)– encontra-se ainda desatenlinhas de transmissão e implicam em maiores perdas de energia pelo aumento das distâncias; (3) como lidar como o esperado au(1) mento do custo de oportunidade da formação de reservatórios, United Nations Development Programme, 2008. JULHO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 119
tendo em vista o aumento do preço da terra, e seus múltiplos usos da terra e da água; (4) como lidar com o declínio naturalmente esperado da disponibilidade das fontes fósseis, decorrente da sua natureza não-renovável; (5) como lidar com o aumento das exigências advindas do reconhecimento das externalidades de ordem ambiental e social, inerentes a todas as formas de geração de energia elétrica; (6) como lidar com o equacionamento da oferta de energia elétrica em um país de dimensões continentais; (7) como englobar as populações desatendidas, com uma clientela de baixo poder aquisitivo, fortemente marcada pela má distribuição de renda, em regiões de baixa densidade demográfica, significativas diferenças regionais, de nível de consumo e do próprio custo da oferta; (8) como expandir suficientemente a oferta energética para, não apenas, satisfazer a demanda ascendente que dá suporte à industrialização e ao crescimento, mas, sobretudo, fazer a expansão da cadeia de energia elétrica ao menor custo possível, praticando tarifas finais realistas que remunerem o capital investido nessa atividade. As respostas a essas questões começam a ser delineadas na medida em que se constroem consensos no País de que é possível criar sistemas energéticos mais equânimes e acessíveis, integrados ao meio ambiente e, ao mesmo tempo, economicamente viáveis. São três os pontos de partida. O primeiro leva em conta que, de fato, é preciso aumentar a oferta energética. O segundo, que é preciso fazê-lo com qualidade, ou seja, dentro de uma análise que leve em conta e minimize os impactos sobre o meio ambiente. O terceiro, que implique também no menor custo, versus os benefícios, para a sociedade brasileira. Nessa linha, o texto a seguir foi estruturado em quatro seções. A Seção 1 é voltada para a segurança e competitividade na ampliação da oferta hidroelétrica, e a Seção 2 aborda a matriz energética brasileira em sua relação com questões climáticas e de eficiência energética. A Seção 3 discute os desafios do planejamento da oferta e demanda da energia elétrica. A Seção 4 apresenta propostas derivadas da análise realizada. 1. Segurança e competitividade na ampliação da oferta hidroelétrica Não há dúvidas de que a disponibilidade de energia elétrica a preços competitivos será crucial para o desenvolvimento brasileiro nos próximos anos. Por mais que se deseje que o Brasil evolua para uma economia menos lastreada em commodities, e passe para uma produção baseada em produtos mais elaborados, com maior valor agregado, essa evolução não ocorre no curto prazo. Assim, grande parte da produção que perfaz o Produto Interno Bruto brasileiro encontra-se ainda baseada em tradables (produtos transacionais com o exterior), muitos dos quais energo e/ou eletrointensivos. Minério de ferro, aço, alumínio, suco de laranja, carnes ou laticínios têm todos em comum um forte componente de energia elétrica em sua produção. Embora críticas sejam feitas de que o Brasil exporta energia sob a forma de diversos produtos, e que esses apresentam baixo valor agregado, a passagem do "quartzo ao chip" ou do "etanol ao perfume" não é automática. Nem tão pouco advém da negação ou inviabilização do investimento em tradables. Em outras palavras, não é subindo o custo da energia elétrica que o capital investido na
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produção de energo ou eletrointensivos vai passar a ser investido na produção de bens e serviços de maior valor agregado. Mais realista seria constatar que o investimento no mundo globalizado possui vários portos seguros e que pode migrar facilmente de um país a outro de em busca de atividades rentáveis. A oferta de energia elétrica no Brasil através da fonte hídrica ainda é a mais competitiva. Assim, o Operador Nacional do Sistema, em circunstâncias normais de reservatórios abastecidos, busca despachar inicialmente as geradoras hidroelétricas mais competitivas, antes de lançar mão de outras formas de geração. Entretanto, a expansão da matriz energética brasileira na média dos dez primeiros anos do novo século se deu numa direção contrária a essa geração de menor custo. Os leilões de energia realizados privilegiaram e facilitaram a contratação de uma parcela expressiva de energia oriunda de fontes térmicas a óleo combustível, carvão e gás natural, resultando no aumento do custo médio final ponderado da energia disponibilizada no País. Mais recentemente essa situação começou a se reverter. Adicionalmente, as contendas ambientais fizeram com que,
Robson Fernandjes/AE
embora a quantidade de empreendimentos hidroelétricos aumentasse nos últimos anos, esse aumento não fosse acompanhado da capacidade de geração de energia. Isso porque, se a maioria dos novos empreendimentos não previu reservatórios significativos, sendo que muitos deles foram do tipo "fio d'água", ou seja, sem qualquer reservatório, como se pode observar nos gráficos 1 e 2, que destacam, respectivamente, o aumento da capacidade instalada, mas a estagnação da capacidade de armazenagem e consequentemente de geração de energia elétrica. Priorizar a oferta hidroelétrica significa equacionar em nível federal os entraves à expansão desta fonte de energia na matriz elétrica brasileira. Com efeito, a construção de uma central hidroelétrica tornou-se uma tarefa das mais difíceis no País ao longo das últimas décadas. A cada empreendimento aprovado, uma chuva de liminares de instala, retardando e prejudicando o cronograma de execução das obras, pondo em risco ou adiando os primeiros fluxos positivos de caixa, aumentando as incertezas dos empreendimentos. Tal situação não apenas reduz os valores presentes dos investimentos objeto de controvérsia, como também sinalizando mais risco e mais custo para novos empreendimentos, dificultando as suas viabilizações futuras. Certamente uma equipe multidisciplinar é necessária para tomar decisões da magnitude dos empreendimentos hidroelétricos de grande porte. Isso porque as externalidades sociais e ambientais devem ser avaliadas e internalizadas de forma profissional. Assim, não se trata de uma tarefa que deva se restringir uma equipe de engenheiros e/ou economistas, mas que também inclua sociólogos, biólogos, antropólogos, entre outros profissionais. Na hora de decidir, entretanto, será necessário estruturar uma comissão mais forte e definitiva, a exemplo do que ocorre com o Comitê de Política Monetária (Copom), que é soberano nas decisões de política monetária do País. Dá para imaginar como seria a condução da política monetária se a cada decisão de alterar o nível da taxa básica ou do depósito compulsório ocorresse uma série de liminares questionando, suspendendo ou revendo a decisão tomada. Estruturar uma arquitetura decisória da política energética é no mínimo uma tarefa tão importante quanto foi a estruturação de sua arquitetura de política monetária. 2. Matriz energética brasileira e mundial: clima e eficiência A otimização do custo de geração de energia em um país somada à utilização racional representa um dos grandes desafios do planejamento energético. A atual estrutura de produção, distribuição e consumo vigentes no sistema capitalista tem suscitado cada vez mais a reflexão sobre modelos mais sustentáveis e que aportam maior confiabilidade quanto à segurança de suprimento energético (CGEE, 2008). No contexto do uso eficiente de energia, importa mencionar sua crescente significância para a mitigação dos Gases de Efeito Estufa (GEE). Em maio de 2007, o Painel Intergovernamental em Mudanças do Clima – IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), divulgou seus dados reforçando a insustentabilidade do modelo de desenvolvimento econômico vi-
A construção de uma central hidroelétrica tornou-se uma tarefa das mais difíceis no País ao longo das últimas décadas.
gente, especialmente no que concerne ao uso de energia oriunda de fontes não renováveis. Em termos de economia de energia e mitigação de baixo custo, o segmento de geração de energia a partir de fontes renováveis, juntamente com ações de eficiência energética, representam os mais amplos potenciais para reduções em termos de custo-benefício (IPCC, 2007). Nesse sentido, tanto a regulação econômica aplicada à cadeia de suprimento de energia, quanto as políticas energéticas propriamente ditas têm se tornado cada vez mais complexas com as transformações sócio-ambiental globais. Tais transformações estão representadas pelos processos de reestruturação industrial e pela reorganização institucional das atividades energéticas. Essa evolução produziu uma mudança de abordagem na ação regulatória sobre as atividades energéticas com resultados importantes nos meios de articulação dos agentes. Considerando que as decisões concernentes ao setor energético têm impactos fundamentais na sociedade (seja em níveis social, ambiental ou econômico), as decisões que orientam essas ações constituem parte de uma estratégia política de governo como resposta a um conjunto de interesses, aspirações e expectativas de uma parte cada vez mais crescente da sociedade (WRI, 2008). JULHO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 121
A implementação de programas no setor energético representa um importante objetivo de longo prazo, que deve ser institucionalmente construída e socialmente demandada como resultado de um valor culturalmente compreendido pela sociedade (INEE, 2007). Nesse sentido, compreender o cenário da situação energética do País e o processo em que as medidas de segurança de suprimento energético são tomadas representam condições essenciais para elevar a competitividade do setor energético e da economia como um todo. As economias que melhor planejam e se posicionam em relação ao seus aportes energéticos e que melhor otimizam seus custos (de acordo com as suas disponibilidade de fontes) são as que têm mais chances de obter vantagens comparativas mais significativas. No contexto nacional, o Governo Federal publicou, em maio de 2009, o Plano Decenal de Expansão da Energia 2019, apresentando cenários e projeções sobre o crescimento da produção energética do Brasil e tendências e perspectivas dessa produção. O referido documento subsidia informações importantes para a orientação do planejamento do setor energético do País, uma vez que os dados são utilizados para projeções futuras e estão relacionados aos leilões para construção de empreendimentos no setor energético. Observa-se que os planos decenais anteriores do atual governo foram criticados porque não estimularam o País à expansão de uma matriz energética mais limpa. Se observados os leilões de energia nova nos últimos anos, percebe-se como resultado o aumento substancial da geração de eletricidade oriunda de usinas termelétricas e, consequentemente, a redução da participação das energias renováveis (Goldemberg, 2010). De acordo com Bajay et al (2005), uma das principais barreiras à produção de energia renovável é o fato de não serem considerados os custos externos da energia, como os custos ambientais. São ignorados por muitas vezes custos e benefícios adicionais, conhecidos como externalidades, os quais refletem na sociedade. A externalidade é conceito oriundo da teoria econômica neoclássica do bem estar, na qual determinados efeitos de atividades econômicas não são contabilizados no processo de produção. Consequência das falhas do mercado é importante que sejam considerados, pois representam os efeitos sobre a sociedade, entre outros afetados, e não somente as partes interessadas na transação e produção. As mudanças climáticas são alguns dos problemas relacionados às atividades energéticas que, junto a outros problemas, demonstram os custos externos que comumente não são contabilizados quando da escolha da fonte de produção de energia. Nesse sentido, o novo plano tenta retificar alguns desses entraves: uma medida relevante é a indicação da retomada da participação de fontes renováveis na matriz elétrica, a partir de 2014, em relação às fontes baseadas em combustíveis fósseis. O plano prevê a expansão através da biomassa, hidrelétricas e usinas eólicas, e não prevê qualquer tipo de expansão de geração elétrica a partir de carvão, gás e óleo combustível após 2013. De acordo com os dados preliminares do Balanço Energético Nacional (BEN), a demanda nacional de energia no Brasil em 2009 totalizou 243,9 milhões de toneladas equivalentes de petró-
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leo (tep), uma redução de 3,4% em relação a 2008. Dentre as fontes de energia primária, destacaram-se as renováveis e o aumento na geração hidráulica acarretou na redução do uso da geração térmica a partir do carvão, óleo combustível e gás natural, se considerados os anos anteriores (conforme apresenta a Tabela 1): O carvão mineral representou a fonte energética com maior retração no registro de participação, se comparado os últimos anos (19,4%). Parte deste cenário pode ser justificado em razão da crise econômica iniciada em meados de 2008, a qual retraiu significativamente as atividade do setor siderúrgico. Enquanto a oferta de energia não renovável reduziu em quase 6%, a oferta de energia renovável apresentou uma redução de apenas 0,6%, índice dez vezes menor que o ano anterior (BEN,2010). O Gráfico 3 apresenta o perfil da matriz energética brasileira em 2009:
gas, para calefação e cocção As fontes modernas, como eólica, solar térmica e fotovoltaica, e maremotriz entre outras, representam uma parte insignificante da matriz energética mundial. Embora se venha tornado mais competitivas, seus custos se situam em média 2 a 10 vezes mais caras que as fontes tradicionais. No que tange à Matriz Elétrica Brasileira, a oferta de energia hidráulica apresentou um aumento de 5,8% da em relação ao ano de 2008, incluindo neste percentual o montante importado da Itaipu Binacional. A participação de fontes renováveis na geração de energia elétrica superou 90% (em que 85% são de fontes hidráulicas). Os resultados preliminares do Balanço Energético Nacional – BEN 2010 indicam que a demanda nacional de energia elétrica no Brasil em 2009 atingiu com um total de 509,5 terawatthora (TWh), representando uma redução de apenas 0,6% em relação a 2008, conforme pode ser visto na Tabela 2. Duas das principais fontes renováveis mantiveram-se crescentes: a presença de biomassa aumentou em 17,5% e a energia eólica em 4,7%. Dentre as fontes não renováveis, destacam-se a redução de 53,70% do uso de gás natural fortemente vinculado à retração do setor produtivo e ao aumento de competitividade do óleo combustível (BEN, 2010). Apesar da crise desencadeada em meados 2008, a partir do colapso do mercado imobiliário americano, o consumo de energia elétrica residencial seguiu forte tendência de crescimento em 2009, aumentando em 5,3% frente ao consumo do ano anterior. A demanda maior de eletricidade nas residências pode ser um indicativo de aumento da renda das famílias nos últimos anos, associado a uma perspectiva otimista do desempenho da economia brasileira. O consumo per capita mensal elevou em 1,8% (de 42% para 43,8%) quilowatt-hora (kWh) por habitante, implicando em uma alta de 4,3% (EPE, 2010). A principal preocupação reside na coordenação do crescimento da oferta e demanda por energia elétrica. O desafio é garantir que uma perspectiva maior de crescimento da economia brasileira não seja tolhida pelo falta de resposta da oferta de energia elétrica. 3. Desafios do planejamento da oferta e demanda da energia elétrica A participação das fontes renováveis representou 47,3% de toda a matriz, o maior índice desde 1992, época em que o uso de carvão vegetal e lenha eram muito intensos (17% do total de energia consumida no País). O Gráfico 4 apresenta o perfil da matriz energética mundial em 2007. Nela, destacam-se a presença de fontes não renováveis como o petróleo, o carvão mineral e o gás natural como responsáveis por mais de 80% da oferta de energia mundial. Vale a pena ressaltar que a participação de 11% da biomassa representa essencialmente a biomassa tradicional, dentre outras a lenha catada para cocção e calefação. Apenas uma pequena parte dessa biomassa reflete a biomassa moderna, como o etanol, e o biodiesel, ou mesmo a energia elétrica a partir do bagaço da cana de açúcar. Do total da matriz energética mundial, cerca de um terço é utilizada sob a forma de energia elétrica, sendo dois terços consumida através de outros usos, que não passam pela transformação em eletricidade, dentre os quais para transportes de pessoas e car-
Entre meados da década de 90 até o início dos anos 2000, o planejamento energético de longo prazo no Brasil, sobretudo o de energia elétrica – então coordenado pela Eletrobras – havia sofrido descontinuidade pelo menos no alto nível de detalhamento como era realizado. Os Planos Decenais de Expansão de Energia (PDEs) marcam, por assim dizer, a retomada do planejamento mais detalhado, tão necessário ao norteamento de uma infraestrutura energética tão crucial ao País. A própria constituição da EPE, responsável por desenvolver esse planejamento, foi sinal do reconhecimento dessa urgência. O reflexo da curva de aprendizado e da troca com os agentes sociais já é perceptível quando se compara o PDEs iniciais com os mais recentes. O recém-lançado plano incorpora melhor as necessidades de ampliação das energias renováveis na matriz energética do País. O de 2007-2016 chamou a atenção por ser bastante explícito quanto à necessidade de reformas microeJULHO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 123
conômicas para que o Brasil veja os investimentos em infraessente crescimento mais modesto. Também não se deve alimentrutura se tornarem realidade, embora tais reformas venham tar a expectativa de que esses consumidores dêem conta de protardando a se concretizar. videnciar suas necessidades energéticas, driblando as dificulAliás, registra-se nesse último tópico uma grata surpresa. É codades latentes na infraestrutura de geração de energia. mo se houvesse plena consciência nos bastidores do governo do Do lado da oferta, por sua vez, embora a situação mostre-se poderoso impacto que essas reformas microeconômicas poderão confortável pelo acúmulo de água em anos recentes, a situação ter sobre a oferta de infraestrutura. Como tais reformas avançam parece ainda mais intricada. Pode-se constatar que a opção pea passos mais lentos que os necessários, elas serão inevitavelmenla diversificação do mix de energia elétrica via termoeletricite um compromisso que o futuro governo terá que enfrentar. dade tem representado um choque de oferta pela permeabiliEmbora representem a retomada de um planejamento mais dade do insumo energético no parque produtivo. detalhado os PDEs não trazem tranquilidade. Dentro do amplo Assim, a busca do equacionamento do equilíbrio energético espectro energético abrangido – com previsões de oferta e depassa também pela revisão da forma de utilização das fontes manda para petróleo e derivados, gás natural, biomassa e enerde energia disponíveis no País. O gás natural tem sido um gia elétrica –, é possível notar que as maiores tensões já captadas exemplo típico desta situação. Seu uso direto, sem passar pela pelos termômetros do mercado são relativas ao balanço da enerforma de energia elétrica, pode deslocar parte da demanda por gia elétrica. Então, mais do que uma insegurança energética geeletricidade, reduzindo as pressões de demanda sobre a enerneralizada, advinda das vágia elétrica. Até que o gás Agliberto Lima/DC rias fontes de energia, os disponibilizado pelo Préagentes mais diretamente sal entre na matriz que levaenvolvidos temem os aurá alguns anos em que o seu mentos de risco de um novo papel de transição precisa estrangulamento advindo ser mais bem explicitado. do setor elétrico. Até lá será preciso incorDiga-se, de passagem, porar plenamente os efeitos que nem é preciso que um de sua volatilidade e de seu estrangulamento ocorra papotencial aumento de custo ra que cause estragos. A simno mix, mais específico, de ples perspectiva de um energia elétrica. Fatores comaior risco, por si só, é capaz mo: (1) as restrições ao increafetar a taxa de crescimento mento do suprimento do PIB, seja pela postergação oriundo da Bolívia, pelo aude novos investimentos namento do risco institucional cionais e internacionais, pela daquele país, associado às Usina para coleta e queima de gás metano gerado procrastinação de aumentos pressões de demanda de Arpelo Aterro Municipal São João, na zona Leste de São Paulo. de produção ou pelo augentina e Chile; (2) a ausênmento do custo do insumo cia generalizada de intereseletricidade, que poderá se se em novos empreenditornar restritivo no futuro, reduzindo, desde o presente, a commentos de geração a gás, uma sinalização de que múltiplos e popetitividade da indústria e o bem estar da população. tenciais agentes não estão considerando este um negócio Do que se alimenta a preocupação quanto ao equilíbrio no minimamente rentável; (3) a constatação da redução da capasetor elétrico? Essencialmente os cenários apresentados pelos cidade de resposta e, portanto, da energia firme, proveniente do PDEs são sempre muito apertados, com baixo grau de manoparque termelétrico em circunstâncias de teste em anos recenbra no curto prazo. tes; (4) a percepção de fragilidade dos termos de compromisso Do lado da demanda, o País tem dificuldade em crescer a taentre Petrobras e Aneel quanto à disponibilidade das termeléxas mais fortes como a de alguns países emergentes sem que hatricas, que não o enforcement em caso de eventual dificuldade de ja um aumento inaceitável na percepção do risco de falta de oferta sem repor totalmente a redução da energia firme detecenergia elétrica. Uma rápida olhada em taxas de crescimento do tada; (5) as dificuldades na importação de GNL em caso de rePIB de vários países mostra o quanto elas são voláteis e indistomada do comércio mundial, dificultando a celebração de conciplinadas. Não será diferente com a taxa de crescimento do Bratratos de suprimento desse insumo em bases mais firmes e nos sil nos anos vindouros. Associe-se a isso o fato de que, num cevolumes desejáveis para cobrir o crescimento projetado da denário de PIB mundial em recuperação como o atual – com o comanda; e (6) as incertezas associadas aos estudos ainda pouco mércio global apresentando taxas de crescimento superiores às conclusivos sobre a viabilidade econômica da infraestrutura de esperadas àquelas do próprio PIB mundial –, as taxas de cresregaseificação, e o reflexo que decisões vistas como precipitadas cimento das exportações brasileiras tendem, consequentemenpoderão desencadear sobre seus investidores em Wall Street, este, a continuar fortes por mais tempo. Assim, talvez não seja ratão entre os inúmeros "senões" que se interpõem ao "uma vez zoável se apostar que a demanda dos grandes consumidores desejado" lastro de seguridade que seria aportado pelo gás nanacionais, muitos dos quais voltados ao setor exportador, apretural ao setor elétrico brasileiro (Marques e Parente, 2007).
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Lucy Nicholson/Reuters
Do ponto de vista da biomassa, especialmente da cana-deaçúcar, outras considerações merecem ser feitas. Lições do passado não devem ser esquecidas, quando a subida do preço do açúcar, associada à queda de preço do petróleo em meados da década de 80, teve forte impacto na descontinuidade do abastecimento de etanol para o mercado interno. Do ponto de vista do bagaço da biomassa da cana-de-açúcar destina à geração de energia elétrica, observa-se que a rentabilidade da cana, tanto no fornecimento de álcool como de açúcar, tem se apresentado historicamente muito superior à do setor de geração termelétrica (Brito et al, 2009). A cana possui cerca de um terço de sacarose e dois terços de celulose e, atualmente, só é produzido etanol a partir da sacarose. Entretanto, tecnologias ditas de segunda e terceira gerações tais como: (1) a hidrólise enzimática, que transforma o bagaço da cana ou qualquer celulose em material fermentável, que pode ser utilizado para produção de álcool, e (2) a biomassa gaseificada associada a reações de síntese para produzir combustíveis líquidos, acenam para um uso dos quase três terços da cana. Assim, com os novos avanços que despontam no horizonte de P&D&I (pesquisa, desenvolvimento e inovação), é possível se imaginar que um aumento na produtividade de etanol, associado ao crescente interesse por este combustível no mercado externo, possam canibalizar seu uso na geração termoelétrica com o bagaço. Outro desafio ao novo governo consiste na contabilização acurada da nova geração elétrica que estará de fato disponível a agregar energia à matriz. Será necessário fazer um levantamento da situação de cada empreendimento, seja ele de pequeno ou grande porte e sua real capacidade de entrada em operação. Como a oferta de energia leva um tempo não irrisório para se concretizar, tal acompanhamento é fator chave no aporte de segurança energética. O que restaria, então, para garantir a segurança do suprimento de energia elétrica? De fato, diante dos custos elevados da geração termoelétrica e também da constatação de que a biomassa poderá ter usos mais rentáveis que desviariam o bagaço da geração de energia elétrica, e que outras fontes de energia, como nuclear e fontes incentivadas, embora com contribuições relevantes, ainda serão mais caras, e não poderão dar conta de uma solução no atacado, é preciso se render à realidade que indica para o Brasil um velho lema. Um lema tão simples quanto "mais do mesmo". Ou seja, a despeito de todos os percalços, a geração hidrelétrica, fonte sobre a qual há domesticamente mais segurança e know-how, precisa ser viabilizada: ainda que essa energia advenha de empreendimentos hidrelétricos cada vez mais distantes; ainda requeira mais investimento em linhas de transmissão; ainda que os sinais locacionais de custos dessas linhas sejam incorporados à oferta hidrelétrica e que mais explícitos para orientar as novas ofertas e demandas. Muitos sinais indicam que a opção hidrelétrica deve ser enfatizada e respaldada pela presença firme do governo. Para isso será necessário prover o Governo Federal de uma instância decisória definitiva nas questões de energia e meio ambiente, tal qual o Copom, do Banco Central, está para as definições das metas de política monetária no País.
No Brasil, a energia eólica cresceu 4,7% entre 2008 e 2009, passando de 1,18 TWh para 1,24 TWh.
Não se imagina uma enxurrada de ações e liminares quando o Copom decide elevar os níveis da taxa básica de juros, ou o Banco Central, dos depósitos compulsórios. Ou mesmo que tais ações se existirem vão ter êxito de seguir adiante. E isso num país que já teve a "Lei da Usura", que tabelava o juro máximo em 12% ao ano. Porém, não se pode dizer que não ocorra uma enxurrada de ações e liminares nas decisões das metas da política energética no País. Embora sejam assuntos distintos, política energética e política monetária, o que se almeja é obter uma instância percebida como "acima de qualquer suspeita". Aquela que transmite o conceito verdadeiro de que é capaz de examinar e decidir após considerar opções energéticas existentes, todas embutidas de muitas externalidades, pois em energia, assim como em economia, não existe "almoço de graça". Qualquer opção energética tem externalidades positivas e negativas. Assim, trata-se se estruturar uma arquitetura decisória em âmbito energético com muita liderança e credibilidade, de forma que quaisquer ações sejam desencorajadas, por haver uma percepção prévia de que tais decisões foram tomadas por lideranças críveis, tecnicamente preparadas e bem intencionadas. De tal instância espera-se uma atuação firme, capaz de arbitrar JULHO 2010 DIGESTO ECONÔMICO 125
com prontidão os conflitos referentes às questões ambientais, regionais e de reservas adequadas ou inadequadas de direitos. 4. Propostas Tendo em vista as questões anteriormente discutidas, abaixo estão colocadas sugestões sob a forma de propostas. Envolvem desafios na área de energia elétrica que precisarão ser considerados e enfrentados pelo futuro Governo Federal: - Priorizar a oferta hidroelétrica, equacionando a nível federal os entraves à expansão desta oferta. A energia elétrica proveniente de centrais hidrelétricas de médio e grande portes ainda é, e tende a ser, pelos próximos anos aquela de melhor relação custo/benefício no País. Não só existe um enorme know-how doméstico sobre como construir e operar tais centrais, mas, sobretudo, o potencial hídrico explorado, ainda que cada vez mais longe dos centros de carga/consumo sinalizam que este caminho é possível. A discussão dos entraves à concretização deste potencial deve levar em conta que as opções alternativas implicam em efeitos colaterais ainda mais negativos para a sociedade como um todo e que sem energia não há desenvolvimento; - Fortalecer a independência das agências reguladoras que atuam na área de energia com destaque para a Aneel e ANP, como condição necessária para aumentar a capacidade de investimento na infraestrutura energética. Tendo em vista que os investimentos na área energética são de longa maturação e ultrapassam vários mandatos presidenciais, tais investimentos para se concretizarem precisam contar com o abrigo de instituições que independam situação partidária de momento, que sejam constantes e consistentes na condução das regras setoriais. Ou seja, tais agências reguladoras precisam ser reconhecidas como instâncias de estado, que é perene, e não de governo, que se alterna. Diante da percepção de constância e independência institucional será possível fomentar um ambiente em que o capital privado some-se ao estatal na ampliação da oferta energética necessária ao País; - Reestruturar e reduzir a carga tributária que recai sobre a cadeia de energia elétrica. Embora apresente o aspecto de facilidade arrecadatória, e deva compensar as externalidades
causadas pela oferta energética, a tributação sobre a energia é pesadamente geradora de perda de bem estar social. A estrutura de cobrança agrava mais ainda essa situação pela precária "diferenciação de preço", o que torna a carga tributária um instrumento de arrecadação regressivo para parte da base de contribuintes. Os efeitos sobre a competitividade do país também precisam ser mais bem considerados e a estrutura de encargos, revisitada; - Inserir as questões climáticas como fator de vantagem comparativa para o Brasil, pois vários segmentos da indústria doméstica tendem a se sair melhor do que os muitos de seus competidores externos se as regras climáticas se tornarem mais restritivas para todos. Por uma série de razões, dentre as quais por haver uma dotação expressiva de fontes renováveis de energia e existir terras abundantes em sua dimensão continental, o Brasil tende a requerer sacrifícios menores das indústrias situadas sem seu território do que aqueles exigidos que suas congêneres mundiais, na adaptação a situações de maiores restrições no cenário internacional; - Praticar uma geopolítica responsável que amplie a segurança e a oferta energética através de uma relação diplomática de ganha-ganha na região, no médio e longo prazos. A ampliação inteligente da oferta energética passa pelo entendimento de que soluções locais entre países fronteiriços tendem a ser sempre superiores a soluções nacionalistas de autossuficiência. Isso se deve ao fato de, entre outras razões, haver importantes perdas energéticas, maiores riscos e impactos ambientais em soluções domésticas que impliquem grandes distâncias, e baixa diversidade de fontes de energia, ou em ambas. As lições do relacionamento energético entre o Japão e seus vizinhos, e, especialmente aquele entre Canadá e EUA, são eloquentes nesse âmbito. Ambos os países, EUA e Canadá, buscam soluções energéticas regionais de comércio externo, entre seus respectivos estados e províncias fronteiriços, que minimizam custos e reduzem riscos, ao invés de soluções nacionalistas ineficientes e autocentradas. Certamente isso requer avaliar e inserir o componente de maturidade institucional na costura de negociações, mas também requer contratos bem estruturados e cuidadosamente negociados, com vistas ao longo prazo das relações das nações e populações envolvidas.
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