MIRA
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Esta revista faz parte integrante da edição de hoje do Diário de Coimbra e não pode ser vendida separadamente
90 ANOS COM
90 anos com Mira Introdução
Diário de Coimbra
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90 anos com Mira
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o coração da Gândara, moldadas pelo sol, pelo sal e pela água, as gentes de Mira traçaram o seu destino, talhado pelo mar e pela terra. Uma vida dura, marcada pela cadência das ondas, pela fortuna das marés ou pela míngua de peixe. Homens calejados pelo sabor do sol, que se fizeram ao mar. Ao longo da costa, a bordo de frágeis embarcações. Ou para terras mais distantes, os mares gelados do Atlântico Norte, à procura de melhor sorte, na pesca do bacalhau. Ontem como hoje, uma resposta pronta, ao apelo profundo e constante do mar. Em terra era outra a luta. Talvez menos arriscada, porque longe de um mar imprevisível, mas igualmente dura, exigente. Uma luta intensa, travada ao longo de séculos, capaz de transformar areia estéril em terra fértil, de dominar a força dos ventos e fazer crescer vida quase a partir do nada. No campo cresceram batatas e milho, que alimentavam homens e animais, mas também nabos, favas, ervilhas e outras hortícolas. Lutas heróicas que, cedo, o turismo descobriu, pelo seu cunho pitoresco, pela sua autenticidade, pelo carácter diferenciador.
Mas também pela simpatia e generosidade das suas gentes, pelos sabores tradicionais de uma gastronomia tão simples quanto genuína, que tem dado ao país chefs de referência. Mira tornava-se, assim, numa praia de eleição, um destino para sucessivas gerações de famílias, que se entretinham a ajudar a puxar as redes da Arte Xávega e a tomar banhos refrescantes entre o mar e a Barrinha. Hoje, outros atractivos se impõem, mantendo firme o abraço à natureza, nas ondas do mar, mas também nos trilhos e percursos que atravessam o concelho. É a Mira que o Diário de Coimbra dedica mais uma revista. Um trabalho onde procuramos recordar algumas das muitas memórias e acontecimentos, balizados pelos 90 anos de publicação do jornal, que fazem parte da história e ajudam a definir o carácter das suas gentes. Um povo resiliente, empreendedor e criativo, que mostra essa tenacidade em projectos empresariais inovadores, mas continua a manter viva a sua fé e a preservar as tradições. Muito fica por dizer, mas ficaremos satisfeitos se estas páginas contribuírem para despertar a vontade de descobrir toda a riqueza que vibra no coração da Gândara.
FICHA TÉCNICA Julho de 2021 Director: Adriano Callé Lucas Directores-adjuntos: Miguel Callé Lucas e João Luís Campos Directora-geral: Teresa Veríssimo Coordenação editorial: Manuela Ventura
Coordenação comercial: Mário Rasteiro Textos: Manuela Ventura Fotos: Ferreira Santos, Figueiredo, Marta Santos, Ricardo Busano,
Câmara Municipal de Mira, Fundação Frei Gil, Arquivo e D.R. Vendas: Marta Santos Publicidade: Carla Borges e Rui Semedo
Design gráfico: Pedro Seiça Impressão: FIG – Indústrias Gráficas, SA Tiragem: 10 mil exemplares
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Opinião 90 anos com Mira
Diário de Coimbra
Um concelho com história e com os olhos postos no futuro Raul Almeida Presidente da Câmara Municipal de Mira
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ira é terra de gente genuína e de muitas potencialidades. E embora a pandemia tenha travado algum do nosso turismo, não travou os investimentos que virão trazer ainda mais valor a este concelho, que espero que seja vivido e aproveitado durante todo o ano. Falar de Mira é também falar das suas praias – a Praia de Mira e a Poço da Cruz – dois dos nossos ex-libris e que todos os anos nos enchem de orgulho e são chamarizes para pessoas de norte a sul do país e até do estrangeiro. A qualidade das nossas praias está mais que assegurada e isso confirma-se com a atribuição da Bandeira Azul à Praia de Mira desde 1987, data da criação deste galardão, e que faz da nossa praia a única com Bandeira Azul há tantos anos consecutivos, 35. Sempre com a inspiração e respeito pelo passado, Mira também tem os olhos postos no futuro e, por isso mesmo, são muitos os investimentos que estão neste momento a decorrer. Um deles é o novo Mercado da Praia de Mira, um investimento a rondar os 400 mil euros, cofinanciado pelos programas MAR 2020 e PDR 2020, e que deverá estar
concluído na próxima Primavera. O objetivo é fazer deste espaço uma referência para os produtos do mar e da terra, juntando o melhor destes dois mundos, desde o peixe fresco do nosso mar, aos produtos das nossas hortas. Em simultâneo, o objetivo é transformar o mercado também num espaço de cultura, preparado para receber diversos eventos. De modo a atrair visitantes ao concelho fora da época balnear, desde 2015 que Mira se tornou referência para assinalar a Passagem de Ano. Uma ideia que resultou completamente e que, nos últimos anos, tem sido um sucesso, trazendo milhares de pessoas ao concelho em pleno mês de Dezembro, mexendo com a nossa economia local e que esperamos que possamos retomar em breve. Para combater a sazonalidade, típica de locais com praia, sol e mar, Mira tem vindo a criar alternativas focadas num turismo de natureza, que se podem realizar todo o ano e mesmo em dias menos solarengos. A prática do surf, as caminhadas, passeios de bicicleta ou corridas pelos nossos trilhos e pelos seis percursos existentes são algumas das hipóteses para aproveitar em pleno a nossa natureza. Outro dos grandes investimentos a concluir em 2021 é a recuperação dos antigos viveiros, um espaço recordado por muitos e que agora, depois de muitos anos de abandono, vão ganhar uma nova vida e ainda um Centro de Interpretação,
espaço que vai permitir revisitar a memória dos antigos viveiros piscícolas da Barrinha da Praia de Mira, promovendo esta herança patrimonial e sendo um polo de atração e interesse. Para terminar, há um outro grande projeto, que também é a realização de um sonho, e que passa pela requalificação das margens, e, futuramente, a criação de uma praia fluvial na Barrinha de Mira. O projeto, numa primeira fase avaliado em 800 mil euros, já foi apresentado ao Centro 2020 – Valorização do Património Natural. O caminho a percorrer ainda é longo e passa pela utilização da barrinha como outrora o foi: como ponto de encontro de famílias e espaço de lazer e que permita realizar um sonho que tenho como autarca: ter uma Bandeira Azul de água salgada e uma Bandeira Azul de água doce.
Para combater a sazonalidade, típica de locais com praia, Mira tem vindo a criar alternativas, focadas num turismo de natureza, que se podem realizar todo o ano
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Arte Xávega 90 anos com Mira
Diário de Coimbra
A safra promete com o saco a estender-se na areia da praia e a revelar uma boa quantidade de jaquinzinhos
ARTE XÁVEGA RESISTE NA PRAIA DE MIRA 2006 A tradição ainda é o que era. Os tractores substituíram os bois e a força de braços, mas o mar, esse continua a ser um mistério, que tanto pode devolver as redes vazias, como garantir uma boa maré de peixe
A
s gaivotas dão o primeiro sinal, esvoaçando, atrevidas. Até então estiveram quietas, pousadas no areal. É o cheiro a peixe fresco. Os jaquinzinhos saltam, brilhantes na rede. Muitos fogem ao “saco” e perdem-se na areia. «É porque usamos malha legal», garante José Vieira, responsável pela companha. O saco não está cheio, mas traz muito peixe. «É o primeiro lanço em condições no ano inteiro», diz, aliviado, o pescador. Serão 30 caixas, vaticina. «Fora o que se perdeu!».
O terceiro tractor puxa o “saco”, já depois de devidamente amarrado, para evitar a fuga do peixe. Bem basta o que conseguiu sair da rede e saltar para a areia. Mãos hábeis vão juntando os pequenos jaquinzinhos, emoldurados pela praia. Uma pequena multidão aproxima-se. Uns, curiosos, querem perceber o que se passa. Outros estão à espera da oportunidade de comprar peixe fresco, acabado de sair. É o caso de Victor Prata, da Adémia (Coimbra), que se desloca de quando em vez à Praia de Mira. «Vim ao peixe», diz, confessando que estava à espera de levar peixe para os muitos gatos que tem em casa. A maré não correu de feição para esse fim. Hesita entre as cavalas ou o sargo. «É bom para tudo, assar, grelhar», garante Milena. É o único elemento feminino que “trabalha” com o peixe. Não faz parte da companha, não senhor! Residente em Ca-
rapelhos, Milena desloca-se à praia para ajudar. «É um vício! Venho cá às vezes para dar uma ajuda». «É tudo boa gente», diz, referindo-se aos 16 homens que, sob a batuta de José Vieira, integram uma das três companhas activas na Praia de Mira. Um tractor foi buscar a banca para tratar do peixe e as respectivas caixas – de 14 kg cada – onde se coloca o pescado. Os homens juntam-se à sua volta para escolher o peixe. Algum, cheio de areia, é lavado. O foco está inteiramente colocado no carapauzinho, jaquinzinhos, como habitualmente denominamos este carapau pequeno. Também há quem lhe chame pelins. É o caso de Alexandre Rodrigues Rodrigues, da empresa “Cardumes & Volumes”, da Figueira da Foz, que antes de se deslocar para a Lota, onde o peixe é vendido, logo acima da praia, faz questão de ir ao areal para ver o que o mar deu. «Todos os dias vou à lota», esclarece. «Faço as lotas todas, desde a Praia da Vieira a Espinho». À Praia de Mira vem «por causa dos pelins», esclarece. Alexandre Rodrigues e Carlos Vidual são, actualmente, os «dois únicos compradores na Lota da Praia de Mira». Quanto ao preço, uma caixa «pode
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Arte Xávega 90 anos com Mira
ir até 40, 50, 60 euros», refere o empresário. Os homens continuam a escolher o peixe. Com a ajuda de uma nassa, Luís Janeiro vai enchendo as caixas. Pára para retirar as cavalas, os sargos, os pinta-roxa, as lulas, os chocos e as raias que a rede trouxe e não vão para a lota. «Essa raia é muito pequena, volta para o mar», indica Milena. A operação é feita, depois de atestar que está viva. O patrão da companha reconhece que valeu a pena ir mais longe. Foi o primeiro lanço da manhã, mas ao invés dos mil e pouco metros habituais, a embarcação fezse ao mar mais para “dentro”, com a rede a ser lançada a 2.400 metros. Foi uma tentativa, depois de dias e dias em que a rede não trouxe mais do que cinco/seis caixas de peixe. O resultado foi bom, com o peixe a encher as caixas. «O preço é que não está a valer a pena!», queixa-se José Vieira. «Hoje, se der 50 euros a caixa já ficamos todos contentes». Ansioso, o pescador analisa o mar. O primeiro lanço da manhã, feito às 6h00, deu resultado, embora a operação tenha sido bastante mais morosa - mais de três horas e meia -, uma vez que a distância foi muito maior. Mas, desta vez, a sorte esteve ao lado dos pescadores. «Foi o primeiro lanço de jeito este ano». Um prenúncio de boa sorte. «Vou voltar ao mar», decide José Vieira. É sempre assim. O primeiro lanço dita o trabalho do dia. «Se der peixe» voltam a lançar-se as redes. Se não der, só se regressa ao mar no dia seguinte.
Escolhe-se o peixe e enchem-se as caixas
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O mar é quem manda
Com as redes a bordo, a embarcação espera o momento de voltar ao mar
«Pescamos quando o mar deixa», afirma José Vieira. As «condições» do mar são fundamentalmente duas: «não pode haver muito vento, nem ondas muito grandes», explica, enquanto dois tractores, bastante distantes um do outro, vão puxando a rede. É o primeiro lance da manhã. O barco, “Alexandre Vieira”, nome do filho do patrão da companha, com quatro homens a bordo, fez-se ao mar com a corda (ressoeiro) e as redes. Eram 6h00. Uma ponta da corda fica amarrada ao tractor, um Massey Ferguson, que José Vieira “controla”, mudando de local consoante o ritmo de recolhimento da rede, sempre em consonância com um segundo tractor, primeiro distante, depois, lado a lado, emparelhados, no final da operação. «É um ano que vai para a história. Não me lembro de um mês de Maio em que literalmente não tenhamos feito nada, zero!», sublinha. «Peixe há», garante, «não é da qualidade certa. Está a faltar o carapau, não se sabe porquê, porque no mar não há falta de carapau», dizia o patrão, enquanto as redes eram puxadas, bem antes de saber o que traziam. «Tem saído um biqueirão pequeno, uns pelins (jaquinzinhos). Não temos literalmente trabalho». Na véspera, durante a tarde, a safra deu «três caixas de peixe». José Vieira está atento ao mar e ao trabalho dos homens e desdobra-se no atendimento do telemóvel. Também é ele que sobe ao volante do tractor e ajusta o melhor posicionamento, orientando, igualmente, o condutor do segundo tractor. Juntos, os dois veículos procedem à re-
colha das redes, operação feita com o recurso a um alador. Trata-se de um equipamento acoplado ao tractor, que «trabalha por fricção» e puxa a imensa rede, com 400 metros de comprimento. Dois homens estão atentos às redes e vão retirando o lixo. São sobretudo algas, mas também surgem paus, sacos e um pequeno depósito de plástico, que não foi fácil de resgatar, tão emaranhado estava. O patrão explica que o sistema de redes usado na arte xávega «trabalha por vibração». «Os peixes sentem alguma coisa a mexer e afastam-se da vibração» e acabam por «vir à frente da rede. Quando chegam à borda, já não há mais água e entram para o saco», adianta. Saco que é fechado, assim que a presença em “terra seca” o permite. Dois homens tratam do assunto. Um terceiro tractor vem içar o saco e puxá-lo para o areal, deixando a zona crítica onde as ondas “morrem”. Uma operação necessária para permitir que os homens possam desenvolver o seu trabalho, na escolha do peixe e enchimento das caixas. Se o trabalho foi muito, é bom sinal. Significa que há peixe em quantidade para levar à Lota, onde é vendido em leilão. É uma “maré feita”. De sorte. Mas com o mar tudo pode acontecer. «Não sabemos o que vem dentro da rede, só o mar é que pode dizer», refere Milena. Actualmente são três as companhas a trabalhar na Praia de Mira. «Já fomos oito», recorda José Vieira. «No ano passado éramos quatro, já perdemos mais uma», adianta o pescador.
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90 anos com Mira Arte Xávega
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Ultrapassar a “diabolização” da Arte Xávega Natural da Praia de Mira, José Vieira foi em criança para Prince Rupert, no Alasca, onde o pai se dedicava à pesca. Viveu ali 35 anos e trabalhou na pesca. Por conta própria e para terceiros. «Fazia épocas na pesca de arrasto e tinha um barco para o salmão e camarão», recorda. Mas também praticou pesca de mergulho, destinada a apanhar ouriços do mar (importantes por causa das ovas) e ameijoas de um tamanho superior. Em 2006, regressou à terra natal e tomou conta da companha que pertenceu ao pai, também ele José Vieira de nome. Com 57 anos, o pescador da Praia de Mira é também presidente da Associação Portuguesa de Arte-Xávega e um defensor desta arte de pesca que, há uns anos, foi considerada «uma pesca maligna, depredadora, destruidora, insustentável». Foi, sublinha, uma «diabolização» da Arte Xávega, que pôs em causa este ancestral sistema de pesca de uma forma «injusta» e «mentirosa». Situação que o levou a sucessivas reuniões com a Secretaria de Estado e a «exigir» que fossem feitos «estudos rigorosos e verdadeiros». «AArte Xávega é um barómetro das condições do nosso mar», considera, sublinhando que é neste tipo de pesca que «se vê o que há e o que se apanha». Quanto aos propalados desperdícios daArte Xávega, adianta que também eles foram «diabolizados». «Fazemos um lanço, se dá peixe, vamos ao mar, se não dá, não vamos», explica. O responsável refere, com satisfação, alguns estudos que entretanto foram efectuados e que asseguraram que esta arte é das que «menos estragos faz». «É uma das pescas mais amigas do ambiente e não está classificada como tal». Um arrastão, adianta, «estraga mais peixe numa semana
José Vieira é patrão de uma companha e presidente da Associação de Arte Xávega
que toda a Arte Xávega num ano inteiro», afiança o patrão da companha. Grande conhecedor das várias artes de pesca e um estudioso e interessado pelo sector, José Vieira não consegue perceber um conjunto de medidas e de imposições. «Onde é que há falta de carapau para olharmos para a medida?», questiona, lembrando que para poder apanhar 50 kg de cantaril, «um arrastão tem de trazer 500 kg de carapau, que é todo para o lixo». «Pesca-se carapau às toneladas para apanhar outras espécies», garante, considerando que se trata de «um contrassenso brutal e sem razão de ser». «Mudar a classificação desta arte de pesca» constitui o grande objectivo de José Vieira, na qualidade de presidente da associação do sector. Uma ferramenta fundamental porque, como está «não recebe
apoio nenhum», um dado que, em seu entender, só consolida a ideia de que o objectivo era acabar com a Xávega. Refere, ainda, o programa Mar 2020, onde «até para estudar as gaivotas há dinheiro», mas aArte-Xávega não tem qualquer cabimentação. José Vieira afirma que já recebeu a visita de elementos da Comissão Europeia das Pescas que também «não entendem a inacção do Governo português nesta matéria».
“Um arrastão estraga mais peixe numa semana do que a Arte Xávega num ano inteiro”, garante o presidente da associação do sector
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Memórias da pesca 90 anos com Mira
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Mestre Alcino já se reformou e no “Refúgio” que criou e onde reúne com os amigos, acumulam-se as recordações de uma vida dedicada à pesca
A PAIXÃOI PELO MARI 1965 Com 15 anos, embarcou pela primeira vez a bordo de uma traineira. Seguiram-se oito anos na faina maior e, depois, o arrasto costeiro. Mestre Alcino é o que se pode chamar um velho lobo do mar
O
mar chama pelas gentes da Praia de Mira. Corre-lhe no sangue. Bate ao ritmo do seu coração. Daqui saíram, desde tempos imemoriais, homens que se fizeram ao mar, lavraram as ondas e ceifaram o pão. Seu e da família, de muitas famílias. Lançando as redes ao mar, ali, na zona costeira, ou viajando para terras mais longínquas, na costa africana ou nos mares gelados da Terra Nova e da Gronelândia. Alcino de Jesus Clemente é um desses heróis do mar. Foram 40 anos a bordo. Agora, reformado, com 70 anos, o mestre continua a responder ao apelo cadenciado das ondas. Fica em terra, na praia vai testando a sua sorte e as marés com uma cana de pesca. Uns dias resulta. Outros nem por isso. Mas mata essa sede enorme que só o mar sacia. Tinha 15 anos quando se fez ao mar. Estreou-se numa traineira, de redes de cerco de pesca de sardinha, em Aveiro. Era a resposta ao apelo do mar, que desde sempre se fez sentir em casa. O pai, recorda, embarcou em 1948 para a pesca do bacalhau, a faina maior. «Era uma vida pirata», afirma. «Sempre convivi com o mar e com a pesca e sempre tive paixão pelo mar». O pai, conhecedor dessa paixão e sabendo, por ex-
periência própria, a dureza da vida de um pescador, «queria que eu estudasse, que me desviasse da pesca, sobretudo da pesca do bacalhau». Ou, pelo menos que entrasse a bordo como “oficial”, “credencial” para a qual era necessário o 5.º ano. «Felizmente», a família tinha condições para que isso acontecesse, pois apesar de dura, a faina maior garantia um bom sustento para a família. Todavia, a vida trocou as voltas ao desejo de José Maria dos Santos Clemente. O filho cedia ao «espírito de aventura». Virava costas à escola e entregava-se ao mar. Depois da estreia, a bordo de uma traineira, Alcino estava pronto para novas marés e o Governo ajudou. Vivia-se a época áurea da epopeia do bacalhau e um decreto governamental oferecia aos jovens a possibilidade de «fazer oito anos na pesca do bacalhau e, assim, livrarem-se de ir para o Ultramar», cumprir o serviço militar. Alcino Clemente foi um dos muitos que trocou as armas pelo navio. Embarcou no lugre S. Jorge e completou 18 anos nas terras da Gronelândia. «Era a espanadeira de bordo», afirma, com um sorriso rasgado, recordando, décadas depois, as muitas solicitações a que estava sujeito para garantir a limpeza a bordo. «Toda a gente mandava
em mim», diz, bem-disposto. Mestre Alcino recorda esses tempos. Com quase 80 pescadores a bordo, os “profissionais” largavam cedo e passavam o dia no mar alto, a bordo dos dóris, pescando bacalhau à linha. Quando chegavam, com os pequenos barcos içados e descarregados, começava o trabalho dos “moços”: «tirar as línguas, as caras, as tripas». E depois, claro está, limpar tudo e deixar o convés impecável. «Só recebi carta dois meses e meio depois». Foram 17, «todas juntas», recorda. De familiares e de amigos. «Só tomávamos banho em condições quando íamos a terra», designadamente a Saint John’s, onde existia a Casa dos Pescadores. «Lavei-me muitas vezes com água do mar», conta, reconhecendo que não estava habituado a um vida tão dura e limitada em termos de higiene. «Cheguei a deitar-me com tripas agarradas à roupa. Era de loucos!» Segundo o mestre, «sentia-se bastante, na altura, os efeitos do fascismo» e exemplifica com o facto de os oficiais terem direito a água potável, enquanto a restante tripulação apenas tinha «uma malga de água para lavar o corpo e outra para tirar o sabão». Na comida «não era diferente». «Havia peixe e carne para os oficiais, mas
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Memórias da pesca 90 anos com Mira
apenas um prato para os restantes. A chora, a sopa típica dos bacalhoeiros «era boa», recorda, lembrando «um velhote que dizia: gostas de chora, sais daqui velhinho! Vais gostar desta vida!». Mas não foi bem assim. «Se reclamávamos, ameaçavam-nos com a PIDE», diz e faz notar que, bastas vezes, quando o lugre atracava, no regresso a terras lusas, “eles”, a polícia política, lá estava para levar os “insurrectos”.
Aprender com os erros «Nos anos 60 andavam mais de 40 barcos na pesca do bacalhau», refere e na primeira viagem, Alcino Clemente, apesar do estatuto de “moço de convés”, ainda andou 15 dias nos dóris, na companhia de um colega de Rabo de Peixe (Açores). Era a preparação para, na próxima viagem, «já ir sozinho». Aconteceu seis meses depois. Era a sua estreia na companhia do pai, «um dos melhores mestres de redes», que por nada do mundo queria ver o filho na pesca e muito menos na sua companhia. «Pai e filho juntos é coisa complicada», dizia. Embarcaram no arrastão Inácio Cunha, «um navio já bastante moderno, era a coqueluche, na altura». Mas a viagem «foi um inferno», devido «aos temporais e tempestades». Um dia, apesar do mestre de redes ter dito que, mesmo que tivessem rasgadas, as redes não eram para remendar, «armei-me em herói, tirei as luvas e comecei a remendar. A agulha caiu-me, tinha as mãos congeladas!». Foi uma lição! «A melhor escola é a da vida. A gente aprende com os erros!», diz, reconhecendo que não seguiu os conselhos do pai, que foi
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encontrar, «a chorar, no camarote». Fez três ou quatro viagens com o pai. Numa delas, no regresso a casa, a bordo do “Brites”, «um ciclone não nos deixava chegar a Portugal». A quatro dias de terra, uma manobra perigosa deixava o convés coberto de água. «Eu gritava pelo meu pai e o meu pai gritava por mim», recorda. «Foi uma sorte ninguém ter ido borda fora», afirma. Já casado, o primeiro filho nasceu no dia em que chegou aos bancos da Terra Nova. «Estive sete meses sem o ver e quando cheguei, gritava ao meu colo, só queria a mãe», recorda. «O mar até o meu filho me queria roubar!...», diz, com emoção. Cumpriu os oito anos na faina maior, salvo-conduto para se “livrar” da tropa e rumar para terras de África. Seguiu-se uma nova rota, sempre a bordo de um navio.Agora nos arrastões de pesca costeira, na África do Sul e Namíbia e, posteriormente na costa nacional. «Sempre pensei, um dia, dar a alegria ao meu pai de comandar um barco», confessa o mestre, que se empenhou em recuperar o tempo perdido e regressou à escola. Um pouco tardiamente, seguiu o conselho do pai. «Comecei a tirar cursos» e a evoluir na carreira: marinheiro, contramestre, pescador, mestre-pescador. «Em 1981/82 entregaram-me um arrastão, o “Príncipe do Vouga”. Era um rapazito novo, com um barco valente de quase 30 metros. Um orgulho!». Mas também uma responsabilidade. «Andei semanas sem dormir!», confessa. A partir de então, foram 24 anos como mestre. «Até me reformar!», aos 55 anos. «Ainda fui a tempo do meu pai se orgulhar de mim», afirma.
A guitarra tem gravados os nomes dos portos por onde andou. Uma musa inspiradora para a alma do poeta
Músico e poeta Do pai, o mestre Alcino herdou o gosto pela música, que o levou, nos anos 60, com 16 anos, juntamente com um primo, António de Jesus Clemente (falecido), a formar um grupo musical. Eram os “Príncipes do Mar”. A guitarra, com os nomes dos vários portos por onde andou gravados, manteve-se sempre afinada, o mesmo acontecendo com a voz. Mas foi depois de se reformar que o apurou o toque da viola e a rima dos poemas. «Comecei a tocar e a cantar», inspirado no que viveu e no que fez ao longo da sua vida. Não tem nada escrito. «Está tudo aqui, na minha cabeça», garante. E, entusiasmado, recita, um a um, os muitos poemas que tem feito. Em 2015, participou no concurso televisivo Got Talent. «Fui dizer um dos meus poemas, só para me divertir», conta. Um poema onde o mestre “ralha com o mar”, que o fez sofrer, mas que também lhe merece um agradecimento, porque lhe permitiu sustentar a família. «Como mestre, tinha milhares de euros à minha responsabilidade», refere. O poema de Alcino Clemente derreteu o coração do jurados. «Fui apurado para a semi-final», lembra, com satisfação. «Andei por lá dois meses, a declamar poemas e a cantar baladas». Ganhou-lhe o gosto e, de quando em vez, lá estão os espectáculos, que faz com redobrado agrado. O filho, João Clemente, tomou-lhe o jeito e a inspiração e tem feito carreira, com o pseudónimo de “Zé Rascunho”. Pai e filho estão a pensar juntar-se, um dia destes, para uma patuscada entre amigos, no “Refúgio”. Mas o mestre, só por si, nunca diz não ao convite para um espectáculo. Sempre inspirado na maresia, nesse mar salgado e sagrado que dá o pão, mas também rouba os amigos, os vizinhos, os irmãos. “Por isso, mar, não sei se te amo, se te odeio, se te abraço, se te desfaço!...”, como reza um dos seus poemas.
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Memórias da pesca 90 anos com Mira
14 anos ao leme do Olívia Ribau
Mestre Alcino “reconstruiu” o arrastão “Olívia Ribau”, aproveitando velhos equipamentos
Na sua vida como tripulante e como comandante, mestre Alcino confessa ter apanhado alguns «sustos», mas nunca naufragou. «Quem entra no mar não pode facilitar nada», afirma. Pior sorte tiveram alguns dos seus companheiros, cuja memória guarda, numa construção simbólica, erguida no “Refúgio”, uma horta-jardim, que, juntamente com a esposa, trata com esmero. À cabeça da lista estão cinco amigos, um dos quais de Mira, que faziam parte da guarnição do Olívia Ribau, arrastão que comandou durante 14 anos e que naufragou em Outubro de 2015, à entrada da barra da Figueira da Foz. Apenas dois dos sete tripulantes se salvaram, naquela que foi uma das mais recentes e maiores tragédias que ocorreram na costa da região. Com um carinho especial por este arrastão, sediado na Capitania de Aveiro, o mestre construiu, neste “Refúgio”, uma réplica do Olívia Ribau, reunindo um conjunto de equipamentos que foram sendo substituídos por outros mais modernos. Ali, numa simulação da “ponte de comando”, encontram-se duas sondas, uma mas antiga e outra mais moderna, que permitiam detectar a presença de cardumes. Junta-se-lhe o “piloto automático”, o sistema de rádio, mas também as bóias originais do Olívia Ribau. As redes que se encontram no “convés”, foram elaboradas pelos alunos de um curso de formação que orientou em Ílhavo.
Poema inédito de Alcino Clemente Há tantos pobres do meu país tanta gente que vive do mar por as reformas serem uma miséria andam até velhinhos a trabalhar Ainda há alguém que diz que o mar faz desfazer certas mágoas, mas não pensam nos que sofrem nas suas águas Há dias, há dias eu fui ver o mar estava ameaçador! encontrei uma pobre mulher, que chorava a sua dor com os olhos postos ao céu e sempre a soluçar, chorava pelo seu querido filho que há tempos morreu no mar olhando a linha do horizonte e com o coração despedaçado rogava pragas ao mar por lhe roubar o seu filho amado Oh mar! Oh mar! Oh traiçoeiro mar, para mim fostes um ladrão roubaste-me o meu querido filho que em ti ia ganhar o seu pão E um linho ramo de rosas brancas ela ao mar atirou em memória do seu querido filho que um dia o mar levou É uma dor enorme tão difícil de aguentar quando se perde um querido filho e a sua sepultara foi o mar
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Neste santuário de memórias, encontram-se outras relíquias, como a roda do leme do “João Macedo”, os fatos de salvamento usados no Atlântico Norte pelo “Brites”, dotados com um engate para resgate através de helicóptero, coletes rígidos, mas também vários documentos, como a sua cédula de contramestre e um grande número de fotografias, onde se destaca a presença do mestre e do pai, José Maria Clemente, a bordo do “Brites”. “Todos os homens nascem iguais, só os melhores se tornam marinheiros”. Um slogan que o mestre elegeu e que “abraça” este pequeno núcleo museológico, onde também se encontram os diferentes tipos de botas usadas na pesca do bacalhau e o célebre saco de lona, que pertenceu ao pai, onde cada um dos homens reunia a roupa e os pertences para uma viagem que podia demorar entre seis a oito meses. «Este saco foi a urna de muitos pescadores», conta, recordando que o pai, grande mestre de redes da frota bacalhoeira, ainda velou, nos anos 50, muitos corpos, que eram lançados ao mar neste saco branco de lona. É, de resto, à faina maior que o mestre dedica uma pequena divisão deste espaço-museu. As imagens documentam o tempo dos frágeis lugres, como o “Gazela Primeiro”, o “Argus” ou o “Santa Maria Manuela”. O metal substituiu a madeira e surgem navios mais potentes, mais seguros e com maior capacidade, de que são exemplo o “Brites” ou o “Santo André” e, mais recente, a verdadeira coqueluche o “França Morte”. Além dos barcos, também os homens estão ali, todos identificados. São “os valentes da pesca do bacalhau”. Mais de 400, todos nascidos em Mira. Muitos deles têm direito a foto, no âmbito de um trabalho de recolha efectuado por Alfredo Pinheiro Marques, do CEMAR – Centro de Estudos do Mar e Navegações, da Figueira da Foz. É igualmente neste santuário que o mestre reúne as réplicas de embarcações que tem vindo a construir. Uma forma de manter, em terra, firme esta ligação ao mar. E também deu largas à arte do macramé. Primeiro, na forma de elegantes sacas. Mais recentemente, com a criação de uma imagem de Cristo, integralmente feita em fio de polietileno. Uma singular demonstração de arte e de fé, com a assinatura do mestre Alcino.
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90 anos com Mira Bandeira Azul
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A BANDEIRA MAIS AZUL DA EUROPA 1987 Desde o início do galardão, a Praia de Mira sempre foi contemplada. Já lá vão 35 anos
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um orgulho, uma responsabilidade e um desígnio municipal». É desta forma que o presidente do município de Mira encara o facto de, desde 1987, altura em que a Fundação para a Educação Ambiental e a Associação da Bandeira Azul atribuíram, pela primeira vez, este galardão, a Praia de Mira ser consecutivamente distinguida. Um registo que soma 35 anos de qualidade reconhecida e que faz desta estância balnear um caso único em toda a Europa. «Todas as pessoas se empenham», garante Raul Almeida. «Sentem a Bandeira Azul de uma forma que não acontece em mais nenhum local», adianta o autarca, e destaca o empenho de todos, desde as escolas ao centro de saúde, passando pelas IPSS, GNR, bombeiros, Junta de Freguesia e município. «Todos os agentes se envolvem de forma afincada», diz. Um projecto que, além desde
empenho emotivo, exige acções práticas, designadamente em matéria de limpeza e segurança. «Investimos muito na limpeza e na segurança», garante o edil, que lembra o facto de a autarquia assegurar a presença de nadadores-salvadores, bem como proceder ao nivelamento da areia da praia, numa parceria que envolve o recurso a maquinaria do Exército. «Há uma panóplia alargada de encargos e investimentos que
fazemos», esclarece, designadamente em termos de «acessibilidade para pessoas com mobilidade reduzida». O autarca recorda os critérios «apertados» da Bandeira Azul, nos diversos parâmetros, designadamente em termos de qualidade ambiental, segurança e bem-estar, infraestruturas de apoio, informação aos utentes e sensibilização ambiental, onde a Praia de Mira obtém, por norma, «a classificação máxima», facto que «demonstra o nosso empenho» neste desígnio. «Investimos muito na imagem associada à Bandeira Azul», conclui, reconhecendo que «toda a gente associa Mira à Bandeira Azul e à Barrinha» e que a história de sucesso deste galardão tem um reflexo muito positivo, pois ajuda a «projectar o concelho». O município, por seu lado, dá o seu melhor para «promover o território», em feiras de turismo e outros eventos».
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Barrinha 90 anos com Mira
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peixe era tanta que, enquanto Maria dos Anjos de Jesus descascava umas batatas, o marido, José Maria dos Santos Clemente, apanhava o peixe necessário para a caldeirada. «Toda a gente pescava, não havia restrições», sublinha o mestre Alcino. Os festivais de motonáutica e de ski aquático eram outra das grandes atracções da Barrinha, para já não falar da prancha de saltos. «Pescava-se, nadava-se, praticavam-se desportos náuticos», adianta. Natural da Praia de Mira, o mestre, que passou toda a sua vida na pesca, recorda o tempo em que os banhistas saíam da praia e «iam tomar o último banho na Barrinha». Muitos levavam mesmo o shampoo e o sabonete, de forma a garantir um banho perfeito. «Tudo funcionava, sempre com a água limpinha e sem nunca faltar o peixe».
Espaço mantém-se como zona lúdica e de lazer, mas com diferentes propostas
SAUDADES DA BARRINHA DE OUTROS TEMPOS 1950 Durante décadas, a Barrinha foi um paraíso para os pescadores e um espaço de eleição para os muitos banhistas que demandavam a Praia de Mira
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embro-me do meu pai dizer à minha mãe: Oh Maria dos Anjos, vai descascar umas batatas que eu vou ali à Barrinha apanhar uma caldeirada». Palavras de Alcino de Jesus Clemente, que recorda uma prática habitual nos anos 50/60. «Havia ali muito peixe», sublinha, apontando as enguias, pimpões, carpas e ruivacos. «Peixe que a gente adorava». Um tempo em que a Barrinha, além de linda, era de uma riqueza extraordinária. «A água era limpinha, podíamos beber à vontade», adianta. Quanto ao peixe, era um lanço certo e representava o pão para a mesa de muitas famílias. Actualmente aposentado, o mestre recorda os tempos da “pesca de candeia”, reconhecendo que se tratava de uma prática um tanto cruel. Praticava-se à noite. «Levávamos uma luz com um prato, que projectava a iluminação para a água e conseguíamos ver o peixe». Acto contínuo, fisgávamos e ferrávamos o peixe». “Saíam”enguias, pim-
pões, carpas. «Tal era a pureza da água, completamente transparente», adianta. Por outro lado, «quase todas as casas tinham uma rede», explica. Era a “chincha”, uma “ferramenta” associada a uma das artes de pesca mais antigas. «É uma rede como a da arte xávega, só que mais pequena», concretiza o mestre, apontando para um comprimento não superior a 20 metros. Duas pessoas puxavam a rede e a fartura de
Prancha era uma das grandes atracções
Dragagem e limpeza dos fundos ainda não conseguiu devolver à Barrinha a água transparente que a caracterizava noutros tempos Os tempos mudaram e hoje já nada assim é. O mestre Alcino aponta o dedo aos “ambientalistas” que «arranjaram maneira de proibir todas as artes de pesca». Foi o caminho errado para proteger a Barrinha, diz o antigo pescador. «Deixou de se poder pescar, mas as redes também deixaram de limpar os fundos», explica. É isso, em grande parte, no entender deste profundo conhecedor da zona, que explica o acumular de lama que se verifica e que torna a água escura. «Não é poluição», assegura, e aponta as várias análises que têm sido efectuadas à qualidade da água. «São os resíduos que se acumulam nos fundos» e que, noutros tempos, eram limpos pelas redes de pesca. Alcino Clemente lembra as «centenas e centenas de pessoas» que ali nadavam ou subiam à famosa prancha de saltos para se atirarem à água. Memórias que representam um “postal”da praia de Mira absolutamente ultrapassado. A prancha além dos danos causados pelo tempo e pela utilização, foi retirada. «Talvez pelos anos 80». Hoje, com as águas escuras, «não há quem se meta na água. Não se vê nada. Nem o peixe se vê», diz. Peixe que, garante o antigo pescador, existe em grande quantidade nas águas
90 anos com Mira Barrinha
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escuras. Sobretudo taínha. «Há 30 anos não havia uma taínha na Barrinha. Agora há milhões», afiança, explicando que se trata de uma espécie que tem uma enorme capacidade de se reproduzir. «Há taínhas com 4/5 kg», garante, muito embora raramente mordam o isco dos muitos pescadores que ainda ali acorrem. Vice-presidente da Associação de Pesca Desportiva, o mestre Alcino fala na ameijoa que já começa a aparecer na Barrinha, que se junta à mexilhoa, um mexilhão grande, praticamente com um palmo, existente há muitos anos, mas que não terá valor comercial. «É uma espécie protegida», alerta. Recorda que, há uns anos, numa altura em que «secaram o rio», apanhou mais de 400 mexilhões para um barco, de forma a garantir que se mantinham vivos. Depois, procedeu à sua redistribuição. «No ano seguinte, a draga veio limpar a Barrinha e limpou tudo», inclusive as mexilhoas. Mas por mais dragas que venham, é impossível, no entender do mestre, proceder a uma completa limpeza da Barrinha, de forma a voltar a ter água limpa e transparente. «Os
Mar de gente a banhos na Barrinha
fundos são irregulares», diz, recordando que essa limpeza, sistemática e profunda, era feita com as redes de pesca que há muitas décadas deixaram de ser lançadas às águas. Crítico, Alcino Clemente considera que «a vontade dos ambientalistas é que a Barrinha seja só para a passarada. Quase metade está entregue aos pássaros! Onde ficamos nós, humanos? Também temos o direito de curtir a Barrinha! Não pode ficar tudo só para os pássaros», afirma, defen-
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dendo uma verdadeira «zona de lazer», mas que vá além dos passeios de gaivota ou de moliceiro que, estranhamente, também já ali atracou, deixando de lado as tradicionais barcas. «Quem conhece a Barrinha sabe que estamos a perder tudo», garante, com cepticismo e lamenta que esses mesmos ambientalistas «não queiram saber como antes eram as coisas, ouvir-nos. Alguém sabe mais da Barrinha do que nós que aqui vivemos toda a nossa vida?», questiona. Em contrapartida, elogia o «esforço» da Câmara Municipal de Mira, que «se preocupa e tem procurado resolver os problemas». Exemplifica com as dragagens que tem procurado assegurar, o mesmo acontecendo com o combate aos jacintos de água. «A máquina devia estar aqui em permanência», sugere, a propósito. «A Câmara quer melhorar, mas não é fácil», garante e exemplifica com a requalificação dos antigos viveiros, outrora uma das atracções da Barrinha. «Os viveiros estão lindos, mas onde estão os peixes? Não há lá um único peixe!», lamenta.
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Barrinha 90 anos com Mira
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O SONHO DE VER A BARRINHA HASTEAR A BANDEIRA AZUL 2021 Autarquia apresentou candidatura para requalificação das margens. Segue-se a intervenção no espelho de água, com o objectivo de recuperar a icónica zona balnear
Recuperação da icónica zona balnear é um desafio assumido pela autarquia
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sensibilidade ambiental e a beleza paisagística caminham de mãos dadas na Barrinha e Lagoa de Mira. Um ecossistema muito peculiar, integrado na Rede Natura 2000, que representa uma inquestionável riqueza em termos de fauna e de flora e, simultaneamente, um desafio em termos de gestão. Trata-se de procurar um equilíbrio entre a protecção/preservação e a fruição, promovendo uma harmonia entre habitantes e visitantes. Alguns passos já foram dados, mas pretende-se ir mais longe.Arecuperação da Barrinha como zona balnear é, reconhece Raul Almeida, presidente da Câmara Municipal de Mira, «um sonho que gostaria de ver concretizado a breve trecho». «Trilhámos um caminho», afirma o autarca. Um caminho que, depois das dragagens, efectuadas há quatro anos, que garantiram a limpeza dos fundos e o desassoreamento da Barrinha, passaram a centrar-se na «monitorização da qualidade da água». Um «problema grande para resolver», atesta, confiante na solução, já assumida pelo Governo, de construção da estação de tratamento de águas residuais (ETAR) de Cochadas, que irá pôr um ponto final na questão dos efluentes provenientes do
vizinho concelho de Cantanhede. A par disso, a autarquia avançou com um projecto de «requalificação das margens», cuja candidatura foi apresentada em Abril, ao Centro 2020 – Valorização do Património Natural, no valor de 800 mil euros. Trata-se de avançar com a «requalificação das margens da Barrinha, desde o Museu Etnográfico à zona dos Viveiros», explica o autarca, que espera que a candidatura seja aprovada, de molde a permitir o avançar da obra. A segunda fase centra-se no “plano de água”. Trata-se de «monitorizar a qualidade da água da Barrinha», explica. Um passo que já começou e que tem um horizonte temporal de cinco anos. O objectivo, assume Raul Almeida é, concluída essa monitorização, avançar para a criação de uma praia fluvial. «Como autarca, o meu sonho, confesso, seria ter uma BandeiraAzul de água salgada e uma Bandeira Azul de água doce». Um caminho para o futuro que representa, igualmente, um regresso ao passado, ou melhor a recuperação da emblemática zona balnear da Barrinha da Praia de Mira, que marcou sucessivas gerações. Raul Almeida salienta a necessidade de
cumprir as duas etapas. Primeiro com o “plano terra”, centrado na requalificação das margens. O objectivo é «tornar o espaço atractivo, lúdico, com relvados, mesas, zonas de estar e de passeio». Numa segunda fase pretende proceder-se à «requalificação plena do espelho de água» e à criação de uma zona balnear. «Estamos a fazer esse caminho», salienta o presidente da Câmara. Sem definir um calendário, Raul Almeida considera que o “plano terra”, desde que a candidatura seja aprovada, será executado rapidamente, em «um dois anos». Quanto ao “plano água”, «demorará mais tempo». «No mínimo, para criarmos a praia fluvial, precisamos de cinco anos de análises à água», além de criar «todas as condições de segurança» necessárias para o seu funcionamento. Um caminho para concretizar um sonho de “duplo azul” na Praia de Mira.
Combate aos jacintos de água em duas frentes O combate às espécies invasoras, designadamente aos jacintos de água, representa uma das preocupações do município, que apostou em duas frentes distintas. O autarca refere um projecto, tutelado pela Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIM-RC), que envolve os municípios da Figueira da Foz, Soure, Montemor-o-Velho, Cantanhede e Mira. Trata-se do projecto intermunicipal Gestão de Plantas Invasoras Aquáticas no Território da CIM-RC que, com apoio de fundos comunitários, permitiu a aquisição de um veículo anfíbio, que representou um investimento a rondar os 600 mil euros. É um dos poucos veículos desta natureza existentes no país, que circula pelos cinco concelhos, numa declaração de guerra aos jacintos de água. Paralelamente, de acordo com Raul Almeida, a autarquia de Mira adquiriu, com o apoio do Fundo Ambiental, uma embarcação, no valor de 70 mil euros, destinada igualmente a combater a proliferação desta espécie invasora na Barrinha e Lagoa de Mira.
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90 anos com Mira Viveiros
RECUPERAR O ANTIGO ESPLENDOR DOS VIVEIROS 2018 Abandonados durante décadas, os viveiros da Barrinha passaram para a gestão do município, em Junho de 2018, no quadro de um protocolo com o ICNF
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obra arrancou nos finais de 2019 e está praticamente concluída. Falta terminar a componente de carácter científico, ou seja, o Centro de Interpretação, espaço que vai permitir revisitar a memória dos antigos viveiros piscícolas da Barrinha da Praia de Mira. Trata-se de promover uma herança, um património que fez história no passado e criar um novo pólo de atracção e interesse, ligado à valorização da natureza e promoção do turismo. Raul Almeida, presidente da Câmara Municipal de Mira, recorda o processo negocial, burocrático, com o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), entidade tutelar dos antigos viveiros, «abandonados há décadas». Um processo iniciado em 2017 e que culminou em Junho de 2018, com a assinatura de um protocolo entre o ICNF e o município de Mira, através do qual a autarquia passou a assumir a gestão do espaço, por um período de 10 anos, prorrogável por mais dois períodos consecutivos de cinco anos. Resolvida a questão da gestão do espaço, coube à autarquia
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Viveiros 90 anos com Mira
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Acordo entre o município e o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas garante à autarquia a gestão do espaço
desenhar a estratégia de requalificação dos antigos viveiros, que passou pela apresentação de uma candidatura a fundos comunitários. O objectivo fundamental da intervenção foi «tornar o espaço visitável», à semelhança do que acontecia outrora. O autarca lembra que nos anos 50 e 70 do século passado, os viveiros eram uma das grandes atracções da Praia de Mira, recebendo grande número de visitantes. Localizados a poente da Barrinha, os viveiros piscícolas foram construídos na primeira década do século XX, num quadro de cooperação entre os antigos Serviços Florestais e a Universidade de Coimbra. Na altura, a região ainda enfrentava focos significativos de malária, razão pela qual os viveiros foram usados para a criação do chamado “peixe-mosquito”(gambúsia), uma espécie que habita em águas doces paradas, pequenos ribeiros e água salobra, alimentando-se das larvas de mosquito, vermes e zooplancton. Os viveiros ocupam uma área que ronda os cinco hectares, sendo a parte poente destinada às maternidades de procriação das espécies e a parte nascente, em direcção ao mar, destinada ao respectivo crescimento.Ali nasciam
Viveiros eram a maternidade de diferentes espécies piscícolas com as quais os Serviços Florestais povoaram rios, lagoas e albufeiras Centro de Interpretação pretende manter viva a memória dos Viveiros. Um projecto que conta com o apoio da Universidade de Aveiro
e cresciam várias espécies piscícolas que os então Serviços Florestais, responsáveis pela gestão dos recursos hídricos, levavam para povoar lagoas e cursos de águas de todo o país. RaulAlmeida destaca o carácter sui generis da tecnologia aplicada nos viveiros, cujo sistema hidráulico funcionava por gravidade, o que permitia a circulação de água sem recurso a bombagem. Os viveiros funcionaram durante décadas, mas o crescente desinvestimento na conservação dos tanques e áreas de apoio por parte da tutela levou à sua progressiva degradação, acabando por ditar o seu encerramento em meados dos anos 90. A empreitada de requalificação agora empreendida implicou a instalação de um conjunto e passadiços, mesas e bancos, a limpeza dos tanques e caminhos e a requalificação e ampliação do centro ambiental. Neste espaço vai ficar instalado o Centro de Interpretação, que pretende conjugar o estudo/memória dos viveiros e das actividades ligadas à pesca com uma componente expositiva. Um projecto que conta com o apoio da Universidade de Aveiro. O investimento total ronda os 500 mil euros.
90 anos com Mira Réveillon
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RÉVEILLON VEIO PARA FICAR
Multidão acorre à Praia de Mira para dar as boas-vindas ao novo ano
2015 Passagem de ano na Praia de Mira ganhou fama e glória, atraindo uma verdadeira multidão. Um evento que arrancou em 2015, numa parceria com a RFM
É
uma ideia “fora da caixa” e da época balnear que resultou em pleno. «Sempre tive a ideia de criar um grande evento em Mira, fora da época balnear», afirma o presidente da autarquia. A ideia tomou forma, cresceu e afirmou-se e hoje, inquestionavelmente, a festa da passagem de ano na Praia de Mira é uma referência no cartaz turístico da região Centro. Raul Almeida recorda que a ideia de promover um evento festivo na passagem de ano “nasceu”do facto de «muitas pessoas se deslocarem, de forma espontânea, nesta altura, à Praia de Mira». A somar a este registo, juntou-se o facto de, em 2014, escassos meses depois de ter assumido a presidência da autarquia, o executivo liderado por Raul Almeida ter feito um “teste” que resultou em pleno. Foi, refere, uma «primeira experiência», apenas com um espectáculo de fogo de artifício realizado na zona da Barrinha. O evento «atraiu milhares de pessoas», recorda. Estavam, desta forma, lançadas as bases para criar o “tal evento”, o que vem a acontecer no ano seguinte. Para dar projecção à iniciativa, era ne-
cessária uma «associação a uma grande marca nacional», continua o autarca, que encontrou a resposta na RFM. «Uma rádio nacional, líder de audiências», sublinha, que «viu com bons olhos o projecto» e se associou ao município. A parceria arrancou em 2015, precisamente o ano da estreia do réveillon da Praia de Mira. De então para cá, o número de pessoas que demandam Mira para festejar a chegada do novo ano tem vindo a crescer de forma contínua. Uma adesão que tem um reflexo claramente positivo no comércio local, particularmente nos sectores da restauração e hotelaria, que ficam com “casa cheia” em pleno Inverno, combatendo a sazonalidade característica da oferta turística que promovem. Mas há mais factores positivos a ter em conta neste espectáculo que já contou, entre outros nomes sonantes, com as actuações de C4 Pedro e David Carreira. «Há pessoas que vêm na passagem de ano e voltam no Verão», garante o autarca, salientando que esta presença, durante um fim-de-semana, permite sentir a beleza da praia, numa altura em que os visitantes não podem fruir dela e, por isso, regressam
mais tarde. «Mas o contrário também acontece», diz, destacando a fantástica promoção à Praia de Mira e ao concelho que esta parceria com a RFM assegura, com uma forte campanha publicitária, durante um mês, a promover o evento a nível nacional. «Desperta a curiosidade das pessoas» para o réveillon, mas igualmente com reflexos «ao longo de todo o ano». No ano passado, a festa da passagem de ano não se realizou devido à pandemia. A expectativa, reconhece o autarca, é que este ano a situação sanitária do país tenha uma evolução favorável, de forma a permitir o regresso da festa à Praia de Mira e celebrar a viragem do calendário e a chegada de 2022.
Festejos da passagem de ano ajudam a projectar Mira em todo o território nacional, com reflexos muito positivos ao longo de todo o ano
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Mercado 90 anos com Mira
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MERCADO MULTIFUNCIONAL E COM SELO DE QUALIDADE 2021 Obras começaram em Janeiro deste ano e devem ficar concluídas na próxima Primavera. Investimento ronda os 400 mil euros, co-financiado pelos programas MAR 2020 e PDR 2020
Empreitada está a decorrer e deve ficar concluída na próxima Primavera
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nuncia-se uma verdadeira “revolução” no Mercado da Praia de Mira. Mais do que reparar e requalificar o espaço, o município pretende inovar e ousar, transformando aquele espaço numa referência para os produtos do mar e da terra. O objectivo é juntar o melhor dos dois “mundos”. O peixe fresco, resultante da Arte Xávega, por um lado e, por outro, os produtos da horta. O mar e a terra de braço dado, com a garantia de um “selo de qualidade” que atesta a frescura e também a genuinidade dos produtos à venda. Mas as novidades não se ficam por aqui. O novo mercado quer, também, afirmar-se como um espaço de cultura, com as bancas a cederem lugar a um palco de eventos e o mercado a proporcionar espectáculos de diferentes naturezas. Raul Almeida, presidente da Câmara Municipal de Mira fala com satisfação deste projecto, que tem, ainda, a particularidade de reunir fundos provenientes de diferentes programas, que habitualmente não se cruzam. «É um projecto multifundos», afirma o autarca, referindo o apoio do programa operacional MAR 2020, um fundo destinado
a apoiar projectos relacionados com o produto pesca e mar, e, simultaneamente do PDR (Plano de Desenvolvimento Rural) 2020, que apoia a componente ligada aos produtos da terra. «Foi considerado uma referência», explica, dando conta que por diversas vezes foi chamado a apresentar este projecto, inclusivamente em encontros internacionais, precisamente pela originalidade de congregar o apoio de dois programas distintos. «Tem despertado grande interesse», sublinha, ao mesmo tempo que destaca o «apoio da AD Elo – Associação de Desenvolvimento Local da Bairrada e Mondego – que nos ajudou muito a construir esta solução». Cerca de 400 mil euros é o investimento a efectuar no espaço, que se pretende afirmar como uma «âncora» importante para a «valorização dos produtos locais». Raul Almeida destaca o peixe fresco, proveniente da Arte Xávega, um dos ícones da Praia de Mira. Mas também dos «produtos da terra», com destaque para as hortícolas. A começar pela batata, uma das referências do concelho, a que se juntam as favas, as ervilhas, as alfaces, o feijão verde e toda
uma panóplia de hortícolas que se produzem no concelho. Raul Almeida destaca a criação de um “selo de qualidade”, que ateste a genuinidade destes produtos locais, bem como a aliança que se pretende fazer com os restaurantes, no sentido de usarem estes produtos, levando-os à mesa, servindo-os aos muitos turistas que demandam a Praia de Mira. Além de «multifundos», o novo Mercado de Mira aposta, igualmente nas «multifunções». Significa que, além de espaço de promoção e venda dos produtos endógenos do concelho, vai também ser um espaço para a «realização de espectáculos e de show cooking», explica o autarca. O “segredo” reside na possibilidade de «recolher as bancas» e criar, desta forma, um espaço para promover eventos culturais. Raul Almeida exemplifica com a possibilidade de convidar chefs – e o concelho tem vários de renome – que possam promover as tradições da gastronomia local, designadamente as afamadas favas à Gandareza ou a sardinha assada na telha. «Ensinar como se confeccionam», adianta. O autarca sublinha o facto de a requalificação do Mercado da Praia de Mira integrar um projecto mais amplo, Praia de Mira – Aldeia do Mar, que envolve todo um plano de comunicação, imagem e marketing que pretende valorizar esta verdadeira “jóia da coroa” que é a Praia de Mira. A intervenção no Mercado começou em Janeiro deste ano e, de acordo com o autarca, a obra deverá estar pronta na próxima Primavera.
Nova filosofia do mercado pretende valorizar os produtos frescos da produção local, mas também conferir uma dimensão cultural e de encontro ao espaço
90 anos com Mira Campismo
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CAMPISMO: UMA OPÇÃO QUE CRESCE EM ADEPTOS 1970 Os Serviços Florestais foram os primeiros
dinamizadores do campismo na Praia de Mira. O município chamou a si o projecto, em 1970, fazendo surgir o Parque de Campismo Municipal
É
um espaço de referência de gerações que, há décadas, demandam o Parque de Campismo Municipal da Praia de Mira. Vizinho da Barrinha, a um “saltinho” da praia”, tem ainda um lago como atracção. «Estamos rodeados de água», sublinha João Cupido, coordenador do espaço, depois de acabar o “check-in”de um casal de austríacos. Antes tinham chegado outros estrangeiros, alemães, franceses e também portugueses. Um dia em cheio, perspectivando uma época balnear de excelência. Um corre-corre constante que tem um longo historial. O espaço onde está instalado o actual
Parque de Campismo Municipal da Praia de Mira pertenceu, outrora, aos Serviços Florestais e foi esta entidade que começou a abrir as portas aos campistas. Em 1970, no quadro de um acordo entre a administração florestal e o município de Mira, a autarquia passou a tutelar o parque e a procurar criar as melhores condições para os campistas e caravanistas que demandam a Praia de Mira. As obras mais recentes, concluídas em 2009/10, vieram introduzir um leque de novos atractivos ao espaço, designadamente com a criação de um conjunto de 21 bungalows. Um projecto com a assinatura da
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arquitecta Carla Barros (já falecida), inspirado nas tradicionais construções palafíticas, em madeira, suportadas em estacas, de molde a permitir a circulação de água e areia. Uma réplica moderna dos típicos palheiros da Praia de Mira, hoje quase desaparecidos. «Ainda conseguimos encontrar alguns, escondidos entre os prédios», diz o coordenador do parque, sublinhando a necessidade de calcorrear com atenção as ruas da vila para conseguir encontrar estas relíquias, que noutros tempos abundavam. Os novos palheiros, são a coqueluche do Parque Municipal. Equipados com kitchenette, um quarto, WC, têm capacidade até seis pessoas. «Cinco é o ideal», diz João Cupido, sublinhando que a sexta pessoa terá que ficar num sofá-cama. «É a resposta ideal para as famílias», afirma o coordenador do parque, dando conta que no quadro da pandemia, assim que foi possível abrir portas, esta foi, sem dúvida, a solicitação de excelência, esgotando a capacidade de resposta praticamente ao longo de todo o ano. Isto porque, desde 2012, o Parque de
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Campismo 90 anos com Mira
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que podem ser usadas pelos campistas e caravanistas. Especialmente para os caravanistas que não ficam instalados, o parque oferece um serviço de descarregamento de sanita e de sanita química e de carregamento de água. Uma medida que procura combater o caravanismo selvagem que tem vindo a crescer em toda a orla costeira do país. Os utentes contam, ainda, com o apoio de um mini-mercado, bar, snack-bar e restaurante.
Palheiros construídos junto ao lago constituem uma das grandes atracções do parque
Campismo passou a funcionar em regime de continuidade e não apenas na época alta. «As pessoas têm o seu espaço, ficam isoladas», realça. O parque tem capacidade para acolher 2.256 campistas, repartidos por várias áreas. Assim, são 151 os lugares disponíveis para caravanas e autocaravanas, uma resposta que é especialmente solicitada pelos estrangeiros, que viajam por todo o país, esclarece João Cupido. A zona de tendas familiares, de maiores dimensões, possui 170 alvéolos e o coordenador do parque refere o facto de muitas famílias, clientes tradicionais do Parque de Campismo há várias gerações, continuarem o hábito de instalar a tenda em Junho e mantê-la durante todo o Verão, para ali ir passar os fins-de-semana. São 66 os alvéolos para as tendas mais pequenas, canadianas, de uma ou duas pessoas. O parque tem uma “zona para grupos”, criada, esclarece João Cupido, na sequência da proibição de fazer acampamentos na floresta e que tem levado para a Praia de Mira vários agrupamentos de escuteiros. Cada um dos alvéolos possui um ponto de electricidade e de água e o parque tem seis zonas de balneários, três das quais, embora requalificadas, datam do tempo dos Serviços Florestais. As restantes três são mais recentes. Além das instalações sanitárias e de duche, cada um destes espaços possui uma zona para lavagem de louça e de roupa à mão. Há, ainda, quatro churrasqueiras, distribuídas pelo parque,
Cenário de telenovela e de muitos eventos Em 2016 o Parque Municipal de Campismo de Mira ganhou fama com a rodagem de vários episódios da telenovela “A Única Mulher”, da TVI. Um espaço escolhido para simular um cenário passado em Angola. Menos artístico, mas mais concorridos foram os Encontros Nacionais de Enfermagem (ENE), que reúnem três a quatro mil jovens estudantes de todo o país. João Cupido recorda que o parque acolheu, nos anos 80, o primeiro ENE, que regressou à Praia de Mira há quatro anos. No ano passado estava previsto mais um encontro de enfermagem e também uma estreia, com um evento semelhante, mas de estudantes de fisioterapia. Nem um nem outro se realizaram devido à pandemia. O coordenador do parque sublinha a importância deste tipo de eventos, que, numa época baixa, designadamente em Abril, levam ao parque milhares de jovens de todo o país. Igualmente com uma dimensão significativa, lembra, em 2018, o Encontro Mundial de Minis, que também escolheu o Parque Municipal como espaço de referência.
Estrangeiros todo o ano portugueses no Verão De acordo com o responsável, o Parque Municipal é muito procurado por estrangeiros, ao longo de todo o ano, com especial destaque para os alemães, austríacos, suíços e franceses. João Cupido recorda que no dia 11 de Março de 2020, quando foi ditado o primeiro estado de emergência e o parque fechou, foram contabilizados campistas de 17 nacionalidades. «Tínhamos aqui uma mini-Europa», sublinha. Os portugueses procuram mais o parque durante a época alta. A reflorestação tem sido uma preocupação, de forma a tentar fazer face ao envelhecimento e morte de muitas das frondosas árvores que caracterizavam o espaço, que também sofreu o impacto negativo de diversas tempestades. «Estamos a tentar criar uma cortina a Norte», explica João Cupido, ciente que este trabalho vai demorar o seu tempo a surtir efeito. Ao lado do Parque Municipal de Campismo, existe um parque privado, gerido pelo Grupo Orbitur desde há longa data, entidade que também assumiu, no quadro de um acordo com o município de Mira, a gestão do Mira Lodge Parque, um outro parque de campismo, pertencente à autarquia. A cerca de 5 km, na aldeia de Lagoa, entre Mira e a Praia de Mira, encontra-se o Parque de Campismo de Vila Caia, igualmente privado.
Parques de campismo da Praia de Mira têm longa tradição no acolhimento de famílias, durante o Verão, e também como palco de eventos para jovens
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90 anos com Mira Museu Etnográfico
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MANTER VIVAS AS TRADIÇÕES 1997 Museu Etnográfico abriu há 24 anos. Em 2020, modernizou-se e ficou mais acessível
É
um palheiro reconstruído e, só por si, representa a memória de um passado, das célebres casas dos pescadores, feitas em madeira, que, noutros tempos, proliferavam na Praia de Mira. Lá dentro encontram-se outras memórias. Vivências de um povo tradicionalmente dividido entre o mar e a terra. Uma viagem ao passado que o Museu Etnográfico consagra. Aberto desde 5 de Outubro de 1997, na sua génese está um projecto da comunidade educativa local, que pretendia «valorizar a herança patrimonial da comunidade piscatória». A ideia foi apresentada, em 1988, ao Concurso Nacional de Projectos “Educar Inovando/Inovar Educando”, propondo a construção de um palheiro. Era o projecto “Renasce Palheiro”. Um processo que juntou a população local e várias entidades, designadamente a Câmara Municipal, a Junta
de Freguesia e o Centro Cultural e Recreativo da Praia de Mira. O “palheiro”foi construído e uma exposição de cariz etnográfico apresentava «a traça original das antigas habitações» e a «tradição cultural da população da Praia de Mira e do concelho de Mira». Ao longo dos anos, o Museu Etnográfico – que também acolhe o Posto de Turismo – foi sofrendo remodelações e adaptações museológicas. A mais recente e “revolucio-
nária” das quais em 2019, perante a possibilidade de uma candidatura para tornar este equipamento mais acessível, com um novo discurso museológico, marcado pelo recurso às novas tecnologias. O Museu, que nasceu com o objectivo de reconstituir a ambiência de um antigo palheiro, ganhava uma nova aura, afirmando-se como um «verdadeiro centro de interpretação de Palheiros de Mira, antiga designação da localidade». A intervenção, orçada em cerca de 200 mil euros, financiada a 90%, foi inaugurada no dia 21 de Agosto de 2020. Verdadeiro refúgio de memórias, saberes e vidas reais, «contadas em múltiplas linguagens», o Museu Etnográfico da Praia de Mira é hoje um «lugar multissensorial», «acessível a todos», que convida a descobrir as histórias, as tradições e a cultura dos homens e das mulheres que «fizeram deste território a sua casa».
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Turismo de natureza 90 anos com Mira
PORTAS ABERTASI AO TURISMOI DE NATUREZAI
Entre o surf e os trilhos e caminhos que se cruzam no concelho, a oferta é diversificada
2017 Condições de excelência permitiram acolher, em 2017,
Campeonato Nacional de Corta Mato e, no ano seguinte, final da Taça dos Clubes Europeus
A
oferta “sol e mar” continua, sem dúvida, a ser uma referência em Mira, mas as alternativas impõem-se e o concelho tem condições de excelência para isso. «Há muitos dias com vento e nevoeiro», que impedem os banhos de sol e de mar ou, pelo menos, os tornam menos atractivos. «Quem nos visita tem de ter alternativas», afirma o presidente da autarquia. Precisamente por isso o município tem vindo a diversificar as apostas, elegendo o turismo de natureza como uma possibilidade de elevado potencial. As alternativas são significativas. Ainda com o sabor a sal
e aproveitando as ondas, está o surf. Não se trata de cavalgar ondas num registo de alta competição, que não é propriamente a “praia” de Mira. Mas um registo mais calmo, familiar. É isso, de resto, que promove a iniciativa “Caravana Surf No Crowd”, um projecto dinamizado pela Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra (CIMRC), que envolve os municípios de Mira, Cantanhede e Figueira da Foz. “Longe das multidões, mas perto das melhores ondas do litoral Centro”constitui o mote deste programa. «Temos condições de excelência para a prática do surf na Praia de Mira e no Poço da Cruz. São locais
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perfeitos para a prática do surf», destaca Raul Almeida, que enfatiza o desejo do município em promover roteiros e eventos que possam ser efectuados durante todo o ano, de molde a combater os problemas da sazonalidade, representando um convite para uma visita ou estadia das famílias. RaulAlmeida entende que os apaixonados pelo surf são, sobretudo, amantes da natureza e, por isso, além das boas ondas, decerto vão saborear as «boas caminhadas e passeios que podem efectuar nos vários trilhos e percursos existentes», que podem ser cumpridos a pé ou de bicicleta em todo o território. São seis os roteiros pedestres, que envolvem cerca de 60 quilómetros, designadamente as rotas do Moinhos, dos Museus, da Vala Real, do Conglomerado, das Dunas de Mira e do Pinhal. Passeios que representam um convite alargado para apreciar o património natural e construído do concelho e também para degustar as típicas iguarias gastronómicas do coração da Gândara. Igualmente a beneficiar das condições de excelência que o território oferece está o que poderemos chamar de turismo desportivo, que tem trazido a Mira eventos de carácter internacional, como aconteceu com a final da Taça dos Clubes Campeões Europeus de Corta-Mato, em 2018, e o Campeonato Nacional no ano imediatamente anterior. Aliás, ancorado no sucesso destes eventos, o município apresentou à Federação Portuguesa de Atletismo uma candidatura no sentido de organizar o Campeonato Nacional de Veteranos, em 2022, que deverá reunir cerca de dois mil atletas de toda a Europa e respectivas comitivas. RaulAlmeida destaca o facto de a selecção nacional de atletismo realizar os respectivos estágios no concelho, o mesmo acontecendo com a Federação Francesa. «Temos condições de excelência para provas de cortamato e estrada», adianta. Provas e estágios de atletismo que envolvem um grande número de pessoas, muitas das quais «vêm uma semana antes e ficam», sublinha o edil, que destaca, igualmente, o impacto positivo das provas de columbofilia realizadas no concelho, que «envolvem milhares de pessoas» provenientes de todo o mundo. Uma actividade desportiva que promove o concelho e tem um impacto marcadamente positivo na dinâmica da economia local, considera.
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90 anos com Mira Acuinova
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Com ajuda de um camaroeiro, os peixes são “pescados”. Podem simplesmente mudar de tanque ou seguir para a linha de “abate”
PREGADO DA PRAIA DE MIRA À CONQUISTA DA EUROPA 2010 Complexo começou a funcionar em 2010 e renasceu para o futuro em 2017. Além do pregado de origem, arrancou uma nova linha de produção dedicada ao linguado e a Acuinova instalou uma maternidade que lhe permite cumprir todo o ciclo produtivo
V
êm da maternidade, instalada no complexo, ou adquiridos no exterior. Não pesam mais do que 10 gramas. São os alevins. Um peixe de pequeno porte que, na Acuinova, na Praia de Mira, tem o seu pequeno mar para crescer. São, em média, necessários dois anos para atingir o peso e o tamanho que levam o pregado ao mercado. Em causa está um circuito simultaneamente simples e complexo, onde a tecnologia dá uma ajuda preciosa, mas onde a mão humana continua a ter um papel essencial.
Quanto mais não seja para “pescar” – isso mesmo, pescar – o peixe que se encontra nos tanques e é levado para a unidade fabril, onde é abatido, lavado e embalado. Cada peixe tem o seu cartão de identidade e faz parte de um lote cujo percurso é totalmente monitorizado, permitindo conhecer todo o trajecto cumprido, desde a maternidade ao estado adulto. Renata Serradeiro, administradora da empresa, e Douglas Maroeli, director financeiro, orientam-nos nesta viagem de descoberta pela maior unidade europeia de produção de pregado em regime de aquacultura. Nada mais nada menos que 35% da produção total, que ronda as 10 mil toneladas. «Produzimos 3.500 toneladas/ano», esclarece a responsável. Mas regressemos aos alevins. O pequeno peixe é instalado na linha de pré-engorda, onde permanece até atingir os 250 gramas. Por estranho que pareça, o pequeno pregado, com a sua forma achatada e arredondada,
parece-nos bastante claro, quase branco, a circular nos tanques. Ao fim de 250 dias, ou seja, quando atinge os 250 gramas, muda de casa e entra na linha de engorda. Os tanques são semelhantes, bem como o sistema de circulação/renovação da água, alimentação e iluminação. Uma luminosidade difusa, porque com muita luz «os peixes não comem». «Uns crescem mais do que outros», faz notar Douglas Maroeli. Renata Serradeiro explica que o próprio factor género faz a diferença. Significa que as fêmeas se desenvolvem mais do que os machos. Um factor a que se juntam outros, designadamente a maior ou menor pró-actividade dos peixes. Daí resulta, também, a necessidade de um acompanhamento à lupa. De resto, toda a vida dos peixes é milimetricamente acompanhada, com uma panóplia de análises diárias, feitas à água e ao peixe. Mas exige-se, igualmente, além das colheitas laboratoriais, a entrada nos tanques para a
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Acuinova 90 anos com Mira
“pescaria”. O objectivo é criar uma harmonia por tanques e por tamanho. O ideal, em termos de mercado, é um pregado com 1,5 a 2,5 kg. Um peso que leva dois anos a atingir. Claro que há peixes maiores, de 4 ou 5 kg. E também umas verdadeiras “feras”, que tivemos oportunidade de "conhecer" e que atingem os 7 kg. «Estes são difíceis de comercializar», atesta o responsável financeiro. Alguns destes exemplares, machos ou fêmeas, são submetidos a outro tipo de análises biológicas, no sentido de averiguar da qualidade do peixe e a sua eventual capacidade como reprodutores. Renata Serradeiro destaca o «ambiente protegido» onde o peixe se desenvolve, com garantias de «qualidade da água» e uma boa alimentação, de forma a produzir um «peixe saudável». Nos tanques da Acuinova o peixe não tem de procurar comida nem de se defender de eventuais predadores. Por isso a administradora fala em «ambiente protegido» ou «condições ideais», onde a única “preocupação” do peixe é mesmo a de crescer. Para que isso aconteça há todo um vasto trabalho, a montante e a jusante. Comecemos pela água. Vem directamente do mar, captada através de um emissário, a 1,5 km da costa. São dois os sistemas instalados, mas apenas um está em funcionamento. A água «vem por gravidade, não é puxada», esclarece Douglas Maroeli, que deixou o Brasil e partiu à descoberta de Portugal e das suas raízes, ancoradas em terras de Lorvão, de onde era natural o avô materno. Ao sabor das ondas e das marés, a água entra para um enorme tanque/poço, de onde é bombeada para entrar no circuito de produção. Todavia, antes é sujeita a um amplo processo de filtragem, que começa logo por detectar a presença de um grande número de mexilhões. «De vez em quando também vem um peixe», refere o responsável financeiro. Peixe que é devolvido ao mar. Da mesma forma que a água, depois de circular pelos inúmeros tanques de préengorda e de engorda, regressa ao local de origem, ao oceano. Um circuito que funciona em regime contínuo. Além da água, os peixes precisam de comida. Os juvenis começam por se alimentar de «comida viva», mas, a partir dos 30 dias, iniciam-se no circuito do alimento sólido. Antes o processo era feito de forma manual, mas a empresa apostou na sua automatização, em 2019, o que significa que basta
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Água do mar, captada pelo emissário, sujeita a filtragem antes de chegar aos tanques
programar o equipamento e a ração cai, qual chuva, nos tanques, devidamente doseada, tendo em conta a numerosa família que ali habita, sempre na casa dos milhares de exemplares. Renata Serradeiro chama a atenção para as preocupações com a sustentabilidade e com a redução do impacto ambiental, o que leva a empresa a ter um crescente «grau de exigência» com os fornecedores, no sentido de garantir uma «evolução da fórmula das rações» que «ano após ano» têm vindo a progredir e a melhorar a sua performance em termos de eficácia, seja no resultado relativamente ao crescimento/engorda dos peixes, seja na diminuição do impacto ambiental da respectiva produção. Exemplifica com a introdução de novos alimentos, designadamente de micro-algas e de insectos. «A ração é como o leite em pó para os bebés», adianta a CEO da Acuinova, destacando a importância decisiva do alimento em todo o circuito de produção de peixe e a atenção que exige.
Pescados para “abate” Quando atinge o tamanho certo, entre 1,5 e 2,5 kg, o peixe é literalmente pescado. «Temos uma equipa de cerca de 35 pessoas, que trabalha diariamente na movimentação do peixe», refere Renata Serradeiro. Trata-se de vestir o equipamento de pescador – um fato de borracha - e entrar para dentro do tanque com um camaroeiro nas mãos. «É um trabalho braçal», explica, que não pode ser feito de outro modo tendo em conta que se trata de um peixe plano, de formato achatado. Apanhados com o ca-
maroeiro, os peixes são submetidos a um processo célere de pesagem. O indicador da balança diz se fica naquele tanque ou segue viagem rumo a outro. 900 gramas era a referência. O peixe que cumpre a exigência segue no pequeno tanque para a nova casa. Os restantes ficam à espera de atingir o tamanho necessário. Semelhante é o processo seguido quando o peixe tem o tamanho certo para entrar no mercado. Desta vez o destino é o “abate”. Aexpressão é violenta, mas a administradora sublinha que é disso mesmo que se trata, muito embora «com todas as garantias de bem-estar animal». Significa, esclarece, que se trata de um «abate humano», de acordo com o qual «os animais não podem sentir dor». «A legislação é muito rigorosa», faz notar e o processo garante, igualmente, «a frescura do produto» e a «sua qualidade». “Preto no branco”, «é induzida a inconsciência e depois morre por choque térmico». Ou seja, não se assiste ao “estrebuchar” do peixe, que é colocado de forma repentina a zero graus, fica inconsciente e morre. Na fábrica de processamento, o pescado é tratado como um produto alimentar que é, ou seja, mais uma vez sujeito a apertadas normas de higiene e segurança. «O peixe, que se encontra numa tina com gelo, é lavado», adianta a responsável, destacando que se trata de uma espécie que não tem escama, antes um muco viscoso que é retirado com a lavagem. Depois, é colocado em caixas com gelo, de acordo com o respectivo tamanho, e está pronto para seguir viagem rumo ao consumidor. Caso o cliente assim pretenda, a fábrica de processamento tem capacidade para proceder à evisceração
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e também pode fazer filetes. Neste caso o pregado é “sangrado”, de forma a garantir que o «peixe fica branquinho». O mercado, melhor, as encomendas são um outro factor fundamental na sustentabilidade da aquacultura. Significa que a “captura” é uma resposta directa às necessidades, procurando minimizar ao máximo o desperdício. Todos os dias se tira peixe, excepção feita para a sexta-feira e o domingo. Dois dias antes o tanque com os exemplares eleitos tem um dístico próprio onde se lê a palavra “Jejum”. Trata-se de um procedimento protocolar, seguido na empresa, de forma a garantir a limpeza das vísceras. Espanha é o maior mercado de destino do pregado produzido na Praia de Mira. Segue-se a Itália, a França e os países da Europa Central. Renata Serradeiro lembra que Portugal é o maior consumidor per capita de peixe da Europa, grande parte do qual é importado. «Esperamos contribuir para o equilíbrio da balança comercial», brinca, lembrando que Portugal já consome mais, mas o pregado ainda não está no “top” das preferências nacionais.
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Preocupação com a pegada ecológica
Paineis fotovoltaicos são uma aposta
«Precisamos de produzir proteína para alimentar o mundo de forma eficiente, sustentável e com segurança alimentar», afirma Renata Serradeiro, apontando os pilares em que assenta a aquacultura. Linhas mestras que na empresa da Praia de Mira são balizadas, igualmente, com preocupações com a sustentabilidade e com o impacto ambiental, designadamente em termos de consumo energético.
«Para a bombagem da água consumimos electricidade», refere a administradora executiva, que aloca a este processo 90% da energia consumida no complexo. Para minimizar esta situação, a empresa avançou, em 2018, com a instalação de um conjunto de painéis fotovoltaicos, que já «produzem cerca de 8% da energia consumida». Um novo projecto, submetido a licenciamento, prevê instalar um novo parque fotovoltaico que vai permitir responder a «quase 40% das necessidade energéticas». Renata Serradeiro aponta, ainda, a possibilidade de recorrer a baterias ou à energia eólica no sentido de «crescer para a autonomia», em termos energéticos, tendo em conta que a resposta fotovoltaica não funciona durante a noite e as exigências do sistema de bombagem são contínuas.
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Acuinova 90 anos com Mira
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Produção de linguado é a nova aposta
Técnica procede à recolha de amostras, de água e de peixe, para análise
Com a produção de pregado, iniciada em 2010 em velocidade de cruzeiro, a empresa apostou em aproveitar o know how instalado para desenvolver um novo e inovador projecto. Sobretudo, aproveitar uma área do complexo que se encontrava parada desde 2014, altura em colapsou o segundo emissário de captação de água. Um projecto desenvolvido pela nova administração que, em 2017, passou a gerir os destinos da empresa e que contemplou a instalação de uma maternidade e criação de uma linha de produção de linguado. Relativamente à maternidade, trata-se de um sistema próprio de criação de alevins, que reduz substancialmente a dependência de terceiros e a necessidade de adquirir os peixes-bebés. O processo é feito com o recurso a reprodutores (fêmeas e machos) seleccionados. A maternidade, que representou um investimento de 5,6 milhões de euros, começou a funcionar no final do ano passado, com a produção de um milhão e meio de alevins, esclarece Douglas Maroeli. O objectivo, adianta, é «produzir 100 mil alevins/mês», entre linguado e pregado. A produção de linguado surge, explica Renata Serradeiro, mais uma vez, à semelhança do que já tinha acontecido com o
pregado, pelo facto de na Praia de Mira «existirem as condições ideais» para a produção desta espécie que tem «um grande valor comercial», além de um «consumo generalizado». «É uma espécie atractiva», sublinha, além de, à semelhança do pregado, ser uma espécie de características endógenas. Este “olhar” para o linguado começou precisamente em 2017, com o “input”trazido pela nova administração, que entendeu imprimir uma nova dinâmica à empresa e dedicar parte de uma zona parada a um espaço de engorda de linguado. Foi «transformar um problema numa oportunidade», assume a administradora executiva, explicando a opção pelo sistema de reciclação da água. Ou seja, contrariamente ao que acontece com os tanques de pregado – com a água, proveniente do mar, a ser
Em finais de 2022, princípios de 2023, a empresa conta colocar no mercado a primeira produção de linguado. A perspectiva é de 175 toneladas
bombeada para a produção e a regressar ao mar - o circuito de produção de linguado funciona em regime fechado. «É um sistema protegido por filtros biológicos», que asseguram o tratamento da água e a desinfecção, sem quaisquer resíduos químicos. Um sistema que, sublinha, tem outro tipo de vantagens, designadamente o facto de evitar a «exposição aos parâmetros ambientais, designadamente a temperatura da água». O linguado, destaca, precisa de temperaturas estáveis, «entre os 20 e os 22 graus». A produção de linguado está em marcha. À semelhança do pregado, a engorda demora, em média, dois anos, o que significa que o primeiro peixe produzido na Praia de Mira, com cerca de 400 gramas, deve chegar ao mercado em finais de 2022, inícios de 2023. Em perspectiva está a colocação no mercado de 175 toneladas de linguado. «Temos um projecto para expandir a capacidade produtiva do linguado, também em sistema fechado, de circulação da água», refere a administradora. O objectivo à «atingir as 10 mil toneladas ano». Trata-se da estratégia da administração para os próximos 10 anos que prevê, igualmente, reactivar toda a área ainda parada do complexo empresarial (denominada fase 2) e atingir as seis mil toneladas de pregado/ano. Um objectivo que representa, praticamente, a duplicação dos valores da produção de pregado, que em 2017 estavam nas 2.300 toneladas e em 2020 atingiram as 3.100. Uma melhoria notória da performance produtiva, uma vez que não implicou o recurso a mais tanques de produção, antes um registo de maior eficácia e eficiência dos recursos instalados. A ampliação das instalações daquela que é a maior exploração da aquicultura de Portugal e uma das maiores da Europa está sobre a mesa. «Estamos a trabalhar no licenciamento e no processo de avaliação do impacto ambiental», diz a administradora. Renata Serradeiro sublinha as «condições ideais» que a zona costeira da Praia de Mira possui para a aquicultura. «Tem um potencial enorme, seja em termos de «qualidade da água», seja de «temperaturas»,
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adianta, elogiando a «visão» do Grupo Pescanova que, em 2007, decidiu avançar com a implantação deste complexo aquícola. O colapso do emissário – um processo decidido em tribunal, alegadamente provocado por um erro de construção – foi o primeiro de um conjunto de problemas em catadupa, que levaram a empresa a um crescendo de dificuldades. AAcuinova é, desde Julho de 2017, herdeira desse património e a administração está empenhada em aproveitar todas as condições para que este seja um projecto bem sucedido e de futuro. Actualmente a empresa tem 150 trabalhadores directos, a grande maioria dos quais oriundos da região. Orgulhosa com o trabalho da equipa, a administradora destaca o facto de os mais recentes investimentos, designadamente na maternidade e na reciclação da água, terem trazido à Acuinova um conjunto de quadros superiores, o que representa mais know how para a região. Até 2030 a empresa estima fazer um conjunto de investimentos faseados, a rondar os 200 milhões de euros.
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Aposta na investigação e em parcerias
AAcuinova tem feito uma aposta grande na investigação e desenvolvimento, de motu próprio e também em parceria com diversas entidades do sistema científico nacional. Renata Serradeiro exem-
plifica com o facto de a empresa ser sócia-fundadora do laboratório colaborativo S2Aqua, vocacionado para a investigação em aquacultura, que tem como associados, entre outros, o Instituto Politécnico de Leiria, a Universidade do Algarve, o IPIMAR e empresas ligadas à aquacultura. Tem, ainda, vários projectos em curso, em colaboração com as universidades de Aveiro e de Coimbra. «Valorizamos muito essa colaboração», afirma. «A forma que temos de liderar não é só com toneladas de peixe, mas também com a qualidade da produção do pregado e linguado», atesta. Destaca, igualmente, o empenho da empresa em, através destas parcerias, ajudar a «estimular a investigação» nacional em áreas ligadas à aquacultura e à segurança alimentar, apoiando «a produção de conhecimento».
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Dom Mira 90 anos com Mira
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EQUIPAMENTO DE MIRA PARA O MUNDO 1994 Nasce a Dom Mira, um projecto liderado por Carlos Miranda, inspirado no saber-fazer do pai, Diamantino Oliveira Miranda, que conquistou o mundo
Fachada da empresa é esclarecedora: aqui produz-se equipamento de pesca
É
um paraíso para os pescadores e amantes da caça. Da unidade fabril instalada em Seixo de Mira sai uma vasta gama diversificada de vestuário e calçado destinado à pesca e à caça. Um nicho de mercado que conquistou o mundo. Uma tecnologia apurada que convenceu marcas de renome. «O nosso principal cliente é a Decathlon», diz Carlos Miranda, proprietário da empresa. Com a maior simplicidade junta outros nomes, igualmente grandes, a este gigante gaulês. A Dunlop, a Goodyear, Le Chameau. Uma ampla cadeia, presente nos quatro cantos do mundo, com vestuário e calçado produzidos em Mira. Uma história de sucesso com uma outra história para contar. Uma história que começa numa grande paixão pela pesca e que tem Diamantino de Oliveira Miranda como protagonista. Carlos Miranda recorda essa vivência, memórias de criança que moldaram toda a sua vida de empresário. «Não havia vestuário próprio para se ir à pesca», explica. O pai, Diamantino de Oliveira Miranda, era um apaixonado por esta arte. Sobretudo por apanhar enguias. «Despiam-se e metiam-se na água, para “armar” as redes. Dez minutos depois, voltavam a entrar na água», explica. Uma pesca feita durante a noite, nas zonas de Mira, mas também nos concelhos de Montemor e de Vagos.
Todavia, o pai de Carlos Miranda tinha um problema de saúde. «Tinha má circulação», uma maleita que não convivia particularmente bem como estas entradas e saídas nocturnas de e para a água. Sapateiro de profissão, Diamantino de Oliveira Miranda empenhou-se em encontrar uma solução para resolver este problema. A resposta foi criar umas “botas de pesca”. Melhor, um fato inteiriço, com botas incluídas, até ao peito. «Usou câmara de ar» de pneu de camião, explica Carlos Miranda. Quando Diamantino Oliveira Miranda se apresentou para a pescaria com as botas envergadas fez furor. «Os colegas começaram a pedir-lhe» um fato idêntico, conta o filho, que, na altura, teria uns cinco ou seis anos. E assim foi. Uma botas atrás das outras, «com máquinas que ele próprio inventou». Carlos Miranda começou a trabalhar com o pai, na empresa Diamantino de Oliveira Miranda, com 13 anos e nunca mais parou. «Em 1994 o meu pai passou-me a empresa», refere, recordando que, até então, pai e filho eram simultaneamente gerentes e trabalhadores. «Tentei dar-lhe um novo arranque», adianta. Um desafio que passou por «arranjar novos clientes e novos produtos». Um processo de crescimento que nunca mais parou. Nascia a Dom Mira, Lda. Um nome que é, por inteiro, uma ho-
menagem de Carlos Miranda ao pai. «Dom são as iniciais de Diamantino de Oliveira Miranda», explica, agradecido. «Foi o meu pai que inventou as botas», sublinha. Diamantino de Oliveira Miranda vai completar 90 anos, tantos quantos os colaboradores actuais da empresa, que tem vindo a crescer de forma exponencial. Em 2005, deixou a casa de Carlos Miranda, onde nasceu, e instalou-se na Zona Industrial de Mira. Três anos depois, em virtude do crescimentos contínuo, a empresa aumentou as suas instalações, com a construção de um novo pavilhão. Instalações que são, de resto, o que se poderá chamar um “cartão-de-visita”, ou melhor, de apresentação da empresa, com imagens esclarecedoras de pescadores em plena actividade, seja a bordo, seja na pesca à linha. «A ideia foi minha», confessa Carlos Miranda, que justifica o recurso a estas imagens pela «identificação imediata» da empresa e do que produz. O desenho e a concepção nasceram dentro da Dom Mira. A montagem foi assumida por outra empresa do concelho. «93% da nossa produção é para exportação», sublinha o empresário, que se tem empenhado em criar novas respostas e novas soluções. «Fazemos tudo o que tem a ver com equipamentos» para pesca e caça, salienta. Os suportes variam entre o neoprene (borracha sintética vulcanizada), PVC, transpiráveis ou nylon. A empresa trabalha com o mercado nacional e internacional. «Em média, em Portugal são usadas cinco mil pares de botas por ano e nós produzimos 5 mil pares por semana», afirma, dando uma ideia da dimensão do mercado internacional, onde a Dom Mira chega através de revendedores, representantes de marcas e da grande distribuição nas áreas de desporto e de pesca. Além de um universo alargado de modelos de botas, a Dom Mira produz aventais, calças, casacos, manguitos, perneiras, albaioses, luvas e chapéus. «Qualidade», «rigor» e «profissionalismo» constituem as traves-mestras da empresa e a razão essencial do seu sucesso. «Uma equipa unida», que tem ao seu serviço «tec-
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nologias de produção únicas» e se empenha em inovar e elevar os índices de satisfação dos clientes, constituem alguns dos “segredos” do negócio. Um projecto que começou com Diamantino de Oliveira Miranda, cresceu e ganhou maioridade com Carlos Miranda. O filho do empresário, Rafael Miranda, um jovem de 26 anos, é a garantia de que a Dom Mira vai continuar a surpreender, com a terceira geração, no futuro.
Novos projectos a pensar no futuro «Falta fazer muita coisa», afirma Carlos Miranda, para quem é fundamental que a «empresa esteja sempre em crescimento». Nesse sentido, «há novos produtos que estão a ser idealizados, ainda em fase de estudo», faz notar. Um sector dedicado à investigação e ao desenvolvimento de soluções inovadoras que sempre fez parte da matriz da empresa desde a sua origem. «Temos uma equipa que faz esse trabalho de investigação», explica. Equipa que vai, ainda este ano, “ganhar” um gabinete próprio, que vai, certamente, permitir desenvolver ainda mais o know how instalado e aproveitar as novas tecnologias.
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Máscaras e batas para combater pandemia
Com o know how adquirido, a Dom Mira diversificou a sua actividade e deu, no início do ano passado, uma resposta pronta no combate à pandemia do Covid-19, com uma aposta na produção de batas laváveis e reutilizáveis, cógulas e máscaras de protecção individual. Uma linha de produção pontual que,
esclarece Carlos Miranda, respondeu a duas frentes de batalha. Por um lado, a falta de trabalho, decorrente da pandemia. Por outro, uma necessidade e um pedido expresso, por parte da Protecção Civil e da Câmara Municipal, no sentido de encontrar soluções capazes de proteger quem se encontrava na linha da frente do combate à Covid-19. As batas, destinadas a proteger todo o corpo, foram produzidas em PVC e em poliester, materiais que, além de uma garantia de protecção, as tornou maleáveis e passíveis de serem lavadas e reutilizadas. Quanto às máscaras, feitas em neoprene e dotadas com filtros de carbono, revelaram-se uma resposta eficaz para evitar a contaminação pelo novo coronavírus, numa fase inicial da pandemia, em que escasseavam as respostas de protecção.
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Associação Empresarial 90 anos com Mira
A UNIÃO FAZ A FORÇA E PROMOVE O PROGRESSO 2003 Criada há quase duas décadas, a Associação Empresarial de Mira tem vindo a crescer e a afirmar-se como uma âncora sólida de apoio ao desenvolvimento do tecido empresarial do concelho
C
om uma larga experiência associativa, ao nível local, regional e nacional, Américo Páscoa é o actual timoneiro da Associação Empresarial de Mira (AEM), uma estrutura criada em 2003 e que tem vindo a crescer, a afirmar-se no seio do tecido empresarial, funcionando como um ponto fundamental de apoio à indústria e ao comércio. «As exigências são cada vez maiores, temos de ter uma equipa capaz, profissional», afirma o empresário, ligado ao ramo do mobiliário, que não tem dúvidas: «hoje o grau de exigência é muito grande e temos de ter capacidade de resposta». Mas também «visão», «disponibilidade e tempo», «dedicação», para encetar «contactos», estabelecer «protocolos e parcerias». Tudo em nome de um serviço optimizado aos associados. Seja ao nível da formação, no apoio jurídico, fiscal ou contabilístico. Américo Páscoa reconhece alguma «crise no associativismo», precisamente pelas «exigências cada vez maiores» a que obriga. «Uma associação exige, hoje em dia, tanto ou mais que uma empresa, ao nível de responsabilidade e de encargos», refere, o que justifica a dificuldade de encontrar pessoas disponíveis para assumirem esta responsabilidade acrescida, ainda por cima num registo de «total voluntariado». Todavia, não tem dúvida alguma de que, com uma retaguarda capaz, ou seja, uma equipa dinâmica e profissional, é possível “dar o salto”. «A união faz a força», sublinha, e permite criar um diálogo profícuo com outras entidades e abrir janelas de oportunidade para as empresas do concelho. «Conseguem-se fazer coisas interessantes», afirma Américo Páscoa, exemplificando com o CERC – Conselho Empresarial da Região de Coimbra, uma entidade que nasceu no seio do Conselho Empresarial do Centro (CEC) e que congrega associações empresariais do distrito. «Sentia-me fora
Associação está sediada no Mira Center
da região», confessa o empresário, assumindo alguma “periferia”por parte de Mira, localizada na fronteira do distrito, relativamente ao todo da região. Um sentimento que depressa foi ultrapassado. «Tem sido uma equipa brutal», faz notar, referindo a «força» e a «dinâmica» do CERC, que veio dar voz aos empresários da região e «fazer mexer». «Todos ficam a ganhar», adianta, sublinhando a troca de experiências, a partilha de problemas e soluções, a sintonia que, «em menos de um ano» fez do CERC uma “família”, criando uma aliança estratégica para a defesa dos empresários e da região.
Aproximação ao comércio Américo Páscoa reconhece que a Associação Empresarial de Mira esteve, na sua origem, muito ligada à parte industrial, situação que, no mandato que está a terminar, a sua equipa tem procurado reverter, colocando um enfoque grande na «aproximação ao comércio local». «A indústria tem o seu papel, nas zonas industriais, mas o comércio local é o rosto do concelho e nós somos uma terra de turismo», faz
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notar, destacando muito particularmente o sector da restauração e da hotelaria, que tem um peso significativo no concelho. Uma proximidade que tem vindo a ser ganha. «Já é muito maior», diz, lamentando que a pandemia não tenha ajudado esse percurso. O presidente da direcção exemplifica com o facto de as acções desenvolvidas na quadra natalícia terem ganho uma nova dimensão, sobretudo estendendo-se no tempo e criando uma nova oferta. A propósito do Covid-19, refere as acções de esclarecimento/formação, efectuadas online, que permitiram dar às empresas as ferramentas necessárias para esclarecerem questões de procedimentos, nomeadamente relacionadas com o lay-off e com os processos de candidaturas a apoios. Dos projectos da equipa liderada por Américo Páscoa faz parte a realização de «um levantamento geral de todos os sectores de actividade, para termos uma visão mais global de todos os pólos industriais e do que está em perspectiva». A isto acresce «uma visão global do comércio local», fundamental para «criar uma base mais forte e chegar mais longe». O empresário faz notar a dinâmica crescente que o comércio em particular revela, fruto das condicionantes impostas pela pandemia. «O comércio reinventou-se» e, num curto espaço de tempo, «avançou três/quatro anos, talvez até mais», apostando em formas alternativas, designadamente nas plataformas on-line. Instalada no espaço Mira Center, a AEM tem em curso um programa de formação/ acção que envolve 24 empresas, que representa «uma mais-valia». O presidente aponta, igualmente, uma acção modular para empresas e outra para desempregados, com mais de 23 anos, na área da saúde. «É importante, é uma forma de ajudar desempregados e também as empresas», faz notar. «Ter a sede da AEM aberta todos os dias» foi um dos desígnios queAmérico Páscoa assumiu no início do mandato. «É importante, pois as solicitações são cada vez maiores», refere o empresário.
Américo Páscoa presidente da direcção
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Batata 90 anos com Mira
Batata primor representa uma referência na região
O PARAÍSO DA BATATA Tradição Terras leves, de primeira, adaptaram-se a esta
cultura, permitindo que se façam duas colheitas por ano
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odem ser brancas, vermelhas ou com “olho de perdiz”. Mais lisas ou mais rugosas, com uma cor mais ou menos viva, por fora e também por dentro. Umas têm mais amido, outras mais matéria “seca”. Por isso, as primeiras são mais indicadas para cozer, enquanto as segundas, mais rijas, são ideais para fritar. Certamente já percebeu que falamos de batatas, um tubérculo de referência, presença obrigatória em muitos pratos da gastronomia portuguesa, particularmente da Gândara. O que não acontece por acaso, pois é aqui que crescem as batatas mais saborosas que se produzem no território nacional. Uma tradição com história, transversal aos tempos, que se mantém hoje. As razões para isso acontecer são de vária ordem. Fundamental são os solos, «leves», faz notar Fernando Taveira, que recorda que as terras que hoje pertencem às Gândaras, no concelho de Mira e também em Cantanhede, eram noutros tempos «dunas de areia, transportadas pelos ventos da beira-mar». «A areia é um inerte, não tem nutrientes», alerta, explicando o longo processo de enriquecimento das terras, de forma a transformar um deserto de areia em terra fértil. Um processo em que os animais, particularmente as vacas, assumiram um papel fundamental. Davam leite, davam carne, davam a sua força de trabalho
e até os excrementos eram aproveitados. Era, explica o engenheiro agrónomo, o «estrume que fertilizava os terrenos», transformando, juntamente com restos vegetais, as areias inertes em solo fértil. «Antigamente não havia adubos», faz notar Fernando Távora, quadro da Lacticoop, responsável pelas Lojas Agro-Rurais Terra a Terra, o que justifica que na «Beira Litoral se tenha registado uma densidade animal muito grande, sobretudo de vacas», cujos excrementos permitiram que nascessem as Gândaras e as suas terras agrícolas. Antigamente, refere, o milho e a batata eram as principais culturas. O milho servia para a alimentação dos animais, mas também permitia a farinha, necessária para a broa. Quanto à batata, Taveira recorda a sua importância, sobretudo «no tempo da guerra». «É uma cultura de ciclo curto», explica, o que significa que «em três/quatro meses» a batata está criada, o que representa uma «alta rentabilidade, porque se consegue um alimento muito rápido». As «condicionantes» desta cultura, que, como tubérculo, «necessita de terras leves, soltas, encontraram nestes solos o seu meio ideal. «Os solos argilosos são mais pesados» e não são tão pródigos para a batata. Juntou-se o clima, numa zona próxima do mar, onde não há geada. Significa que «se consegue fazer a plantação em
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Dezembro/Janeiro e colher emAbril/Maio». É a chamada batata primor, a rainha da batata que, «como chega ao mercado mais cedo, tem valor acrescentado» e é uma referência na zona das Gândaras. «Há pessoas que fazem duas culturas por ano», com a segunda a ser feita em Maio/Junho e a colheita a acontecer em Agosto/Setembro. Os solos arenosos também conferem uma qualidade acrescida. «A batata tem um sabor diferente. A mesma variedade, com cultura na areia ou em terras mais argilosas fica com um sabor diferente» e Fernando Taveira não tem dúvidas que «é para melhor», com a Gândara a ganhar. Quanto às "qualidades", além da branca, vermelha e olho de perdiz, cada uma destas possui um conjunto alargado de variedades. «Distinguem-se pelo sabor, pela percentagem de amido e de matéria seca». As que têm mais matéria seca são mais duras, «boas para fritar». As outras, «mais doces, mais moles e mais saborosas», aconselhadas para cozer. «Há uma variedade imensa» e a «indústria das sementes está permanentemente a colocar coisas novas no mercado». A maioria é importada, mas em Portugal, na zona de Trás-os-Montes, em Montalegre, «fazia-se historicamente batata de semente», porque é «uma zona pouco endémica». Quanto à batata de consumo, além da produzida a nível nacional, também é importada, sobretudo de França, Espanha e Marrocos.
Redução do preço e do consumo Nos últimos anos, a batata «tem sido menos rentável», o que significa um preço baixo pago ao produtor. No último ano, de acordo com Fernando Taveira, devido à pandemia, o mercado foi invadido por batata proveniente de França e Espanha a preço muito baixo, resultante das reservas não escoadas pela restauração. «A batata chegou a ser paga ao agricultor a 4 cêntimos, o que é um valor muito baixo», faz notar. Mas há outras razões. «A batata está a “cair” porque os hábitos estão a mudar», salienta, apontando um novo paradigma alimentar que começou a ter reflexos nos últimos anos. E se nos restaurantes continuamos a ter arroz e batata frita, em casa «há muito mais cuidado com o os hidratos de carbono e consome-se menos batata. «Antes comprava-se uma arroba ou um saco de 20 kg, agora compra-se um saco de 5 kg», exemplifica. Mais um impacto para baixar o preço e, consequentemente,
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para a «desmotivação dos agricultores». As pragas e as maleitas clássicas, designadamente o escaravelho e o míldio, não constituem problema de maior. «Hoje a indústria fitofarmacêutica resolve o problema das doenças com facilidade. Os produtos são caros, mas são eficazes», garante. Sem solução, ou pelo menos com uma solução mais complicada estão outros factores que, segundo o engenheiro agrónomo, têm contribuído para uma crescente redução da área de cultura da batata na região: «o minifúndio, o envelhecimento da população e a industrialização da região», que “roubou” mão-de-obra à agricultura. «Não há grande rejuvenescimento, embora haja bons exemplos», por um lado e, por outro, a área é muito retalhada, a superfície agrícola disponível está muito dividida e a mecanização não se compadece com isso». Fernando Taveira recorda que a zona de Mira, Tocha, Vagos eAveiro eram «brutais de produção de batata». Agora é a zona do Montijo que assume a preponderância. Todavia, «historicamente, a produção e comercialização de batata era tão importante que os grandes operadores, estão instalados na Gândara. Há outros no país, mas os maiores estão aqui», afirma.
90 anos com Mira Batata
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Consumir produto nacional
As características do solo e as condições climatéricas, designadamente a ausência de geada, colocaram a Gândara como uma referência na produção de batata mas também são de eleição para a produção de hortícolas, que tem vindo a registar «algum incremento». Fernando Távora aponta a produção de favas, ervilhas, couves, feijão e cenoura, mas também morango, como culturas que se têm vindo a evidenciar. Mas «há potencial para muito mais», diz. Além de profissionalmente sempre
ter trabalhado na agricultura, Fernando Taveira é um apaixonado pelo campo. «Aagricultura faz as pessoas mais felizes», diz. Por isso gostava de ver mais gente a regressar à terra. «A agricultura é o primeiro sector, a base de tudo», sublinha, salientando que «não há nenhum país desenvolvido que não tenha uma agricultora forte e desenvolvida». França, Espanha, Suíça ou o Japão são disso exemplo, com um «sector primário muito sólido». Fernando Taveira salienta a necessidade de olhar com outros olhos quem trabalha na terra. «Quando nos levantamos precisamos de um agricultor», que nos garante o trigo para fazer o pão e o copo de leite que bebemos. E apela para a compra produtos nacionais. «Um euro gasto na batata portuguesa circula na economia nacional». «Ajude os agricultores deste país, a agricultura é um sector a defender», conclui.
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Loja Terra a Terra 90 anos com Mira
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APOIO AOS AGRICULTORES 2010 “Herdeira” da Cooperativa Mirense, a Loja Agro-Rural Terra a Terra mantém,
em Mira, o necessário apoio aos agricultores do concelho
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Cooperativa Mirense não ficou imune às dificuldades crescentes que atingiram o sector cooperativo. Bem pelo contrário. À semelhança de muitas outras cooperativas, sofreu o impacto negativo da perda de mercado e viu colapsar o seu propósito de manter o apoio que durante décadas garantiu aos agricultores do concelho. A Lacticoop – União de Cooperativas de entre Douro e Mondego foi a tábua de salvação. Com efeito, a Cooperativa Mirense fazia parte desta “união”, desta vasta cadeia de cooperativas tutelada pela Lacticoop e, como aconteceu com outras, primeiro recebeu algum apoio. Depois, com a situação a agravar-se, acabou por ficar sob a chancela da “casa-mãe”, que ali instalou uma Loja Agro-Rural “Terra a Terra”. Um projecto que, esclarece Fernando Taveira, responsável por esta valência da Lacticoop, tem como objectivo «manter a proximidade com o agricultor», e dar continuidade ao registo cooperativo. «Não sendo a cooperativa, é a Lacticoop». Mantém-se o «eixo cooperativo», um «marco diferenciador» no apoio ao agricultor. «Os princípios são diferentes», afirma o engenheiro agrónomo. Diferença que se situa particularmente no facto de «todos os capitais gerados serem investidos para melhorar, garantir melhores condições. Todo o valor apurado é reinvestido», garante, sublinhando que o objectivo do eixo cooperativo não está focado no lucro, contrariamente ao que acontece com o tecido empresarial. São quatro as Lojas Terra a Terra que a Lacticoop possui na região: Mira, Canta-
Loja Agro-Rural Terra a Terra tem tudo o que os agricultores necessitam
nhede, Soure e Vila Nova de Paiva. Uma cadeia que garante os mais diversos produtos de que o agricultor necessita. «Desde a pequena semente aos adubos, passando pelas rações». O responsável lembra que a Lacticoop possui, inclusivamente, uma fábrica, instalada na Tocha, onde são produzidos alimentos compostos para animais, feitos à medida das necessidades de cada proprietário. «Fechamos o ciclo de tudo o que o agricultor precisa», atesta. O universo da maquinaria é que «é mais residual», muito embora se registe uma atenção especial ao equipamento direccionado para a produção leiteira. O restante equipamento «não faz sentido», sublinha o responsável, uma vez que existe uma ampla oferta no mercado,
que permite que o agricultor esteja «bem servido». Por outro lado, essa aposta implicaria, por parte da União de Cooperativas, um investimento muito grande, uma vez que seria necessário, igualmente, criar toda uma estrutura em termos de assistência técnica. Fernando Taveira faz um balanço positivo destes 11 anos de existência das Lojas Terra a Terra e elogia a «equipa excelente e dedicada», que «trabalha bem» e responde de forma muito positiva aos desafios que lhe são colocados. Respostas positivas que se revêem na «fidelização de clientes». Outro factor, igualmente importante, é a «escolha de produtos de referência, com provas dadas no mercado em termos de qualidade», que as Lojas Rurais procuram garantir.
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CERCIMIRA: RESPOSTA INTEGRADORA 1978 Necessidade de dar apoio a crianças com dificuldades fez nascer, em 1978, a Cercimira.
À semelhança dos utentes, cresceu e criou novas respostas para responder às necessidades
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m grupo de pessoas, grande parte das quais ligadas à educação, assumia, em 1978, o desafio de criar uma instituição que fez a diferença. O objectivo era dar resposta às crianças que, devido a vários problemas, estavam fora do ensino regular e também não tinham acesso a qualquer sistema de ensino. Havia, ainda, as crianças que claudicavam, repetidamente, no exame da 4.ª classe. Nuno Castelhano, director executivo da Cercimira recorda a origem da instituição. «Foi preciso muita coragem», diz. Mas também a ousadia de querer fazer, mais e melhor, diferente. «Pediram uma casa emprestada», a Diamantino Castelhano (já falecido), tio do actual director executivo, quadro da PSP, que tinha uma casa em Seixo de Mira. A residência, até então pouco usada, passou a ser o ponto de apoio para
um grupo de crianças que não “cabia” nas carteiras da escola, com as salas, quartos e anexos transformados em salas de aula e oficinas. Se a casa era emprestada, o transporte também foi “inventado”, numa colaboração estreita com o padeira do terra, o senhor Hamilton Morais, «a única pessoa da terra que tinha uma carrinha», com a qual assegurava o transporte das crianças. «Houve tempos difíceis», refere Nuno Castelhano, referindo-se às «dores de crescimento» de uma entidade que, além do apoio às 12/15 crianças iniciais, tinha de cumprir compromissos, designadamente pagar aos funcionários e aos fornecedores e «o dinheiro nem sempre chegava». O primeiro grande “salto” foi dado em 1988. A comemoração dos 10 anos ficou marcada pela mudança para as novas ins-
Sustentabilidade Com cerca de 60 colaboradores, 51 dos quais pertencentes ao quadro e oito em regime de prestação de serviços, a Cercimira tem um orçamento anual da ordem do milhão e 300 mil euros. Para o futuro, além da ampliação da URBE, definiu uma visão estratégica, com um horizonte de quatro anos, que aposta na qualificação e modernização da instituição e na sua sustentabilidade, dando atenção à componente ambiental e às questões energéticas. “Pensar, Recriar e Renovar” é o lema deste percurso, definido por colaboradores, utentes e respectivas famílias.
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Cercimira 90 anos com Mira
Cercimira tem vindo a crescer e a assumir novos desafios em resposta às necessidades
talações, onde ainda hoje está instalada a Cercimira. Nuno Castelhano, que trabalha há 22 anos na instituição, era criança, mas recorda a festa grande, com baile e ranchos folclóricos, que marcou o momento. Um abraço de e à comunidade, cumprindo um desígnio de integração que faz parte do ADN da Cercimira. Instalações novas que representam, igualmente, um reforço nas respostas, ditado pelas necessidades. As crianças cresceram e tornaram-se adultos. «Algumas ainda estão connosco», refere Nuno Castelhano, que destaca a mudança de paradigma que, do apoio escolar, começa, nos anos 90, a ganhar outro foco, centrado nas actividades ocupacionais e também na formação e qualificação, praticamente em simultâneo. «O foco de intervenção na educação escolar, o ensino adaptado, passou para a escola pública, refere o director executivo, lembrando que as turmas de educação especial deixaram de existir por volta de 2010. O Centro de Actividades Ocupacionais (CAO) tem actualmente 89 clientes. «Temos
uma vaga e uma lista de espera enorme», assume Nuno Castelhano, que não esconde a sua preocupação por a Cercimira não conseguir dar apoio a pessoas que precisam dele. Parte dos utentes do CAO estão, adianta, envolvidos em actividades socialmente úteis, que desempenham na comunidade, no quadro de protocolos de parceria com autarquias, instituições, empresas. O director destaca a preocupação de «individualizar» o plano de actividades ocupacionais, tendo em conta «o perfil, as expectativas e potencialidades de cada pessoa», com o objectivo de «melhorar a sua qualidade de vida, promover o seu empoderamento e as suas capacidades». Há, todavia, pessoas mais profundamente afectadas pela deficiência, para as quais este plano é focado na «prestação de cuidados que garantam o seu bem-estar e conforto». A formação profissional, com apoio de fundos comunitários, arrancou nos anos 90, visando a «qualificação e integração no mercado de trabalho».Actualmente são 23 os formandos, distribuídos pelos cursos de
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serralharia, carpintaria, assistente familiar e de apoio à comunidade e operador agrícola. Trata-se de cursos certificados, que garantem equivalência ao 9.º ano de escolaridade. Formação que tem «tido bastante procura» e que, além dos utentes da instituição, dá resposta à comunidade. Igualmente como «resposta às necessidades» começa a funcionar, em 2011, a Unidade Residencial e Bem-Estar (URBE). «Abrimos com 17 residentes e pelo menos dois deles eram as crianças que, em 1978 inauguraram a Cercimira. São relações de longo prazo que se estabelecem», afiança Nuno Castelhano. Relações de confiança, que a experiência do passado projecta para o futuro. Por isso, a pergunta feita há alguns anos às famílias dos utentes, para saber se contavam, no futuro, com um apoio residencial para os seus filhos, não deixou margem para dúvidas. A resposta passa pela ampliação da URBE. «É uma necessidade grande, temos uma lista de espera com mais de 20 pessoas», atesta o director executivo, que se refere ao facto de muitas famílias não formalizarem a inscrição, uma vez que «vão para uma lista de espera». E a esperança de haver uma vaga é muito pequena «E uma valência com pouca mobilidade», adianta. Para Nuno Castelhano esta é uma «situação dramática», que afecta cada vez mais agregados familiares, «que já não têm capacidade para apoiar os seus e estão na expectativa de uma solução na Cercimira». Ainstituição já apresentou uma candidatura ao programa PARES, com o objectivo de ampliar a URBE e criar capacidade para receber mais 12 pessoas. O investimento ronda os 600/700 mil euros. Com angústia, o director sublinha que, quando esta nova resposta estiver pronta, rapidamente fica lotada e outras famílias continuam à espera de solução.
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90 anos com Mira Obra de Frei Gil
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OBRA DE FREI GIL FIEL À VOCAÇÃO DE CUIDAR DE CRIANÇAS E JOVENS 1942 Frei Gil dá início a uma vasta obra social, que, nos inícios da década de 50 se instala
na Praia de Mira, visando garantir o futuro de crianças e jovens sem eira nem beira
C
om sede na Praia de Mira, a Obra do Frei Gil tem, ainda hoje, um conjunto de valências espalhadas pelo Centro e Norte do país. Todas destinadas a acolher crianças e jovens. Com orientações diferentes, mas complementares. Uma resposta social que nasceu no tempo do Estado Novo, numa época difícil, marcada pela pobreza, pela fome, pela carência de quase tudo. O frade dominicano Manuel Nunes Alferes (19051979) foi o fundador desta obra assistencial, que encaminhou muitos jovens, lhes garantiu um lar, uma formação e deu rumo a uma vida que, de outra forma, não seria senão de miséria. Uma obra que começou em 1942, com a fundação da Obra da Criança Abandonada, em Vila Verde (Braga). Cerca de uma década depois, começa a funcionar, na Praia de Mira, a Quinta Agrícola Frei Gil. Um espaço com 16 hectares, que foi uma espécie de escola agrária, onde muitos jovens sem eira nem beira e com fraca aptidão para os estudos, tiveram uma formação que lhes permitiu dar um rumo à sua vida, crescer e ser homens. Hoje funciona como Lar de Infância e Juventude e é a sede da Obra de Frei Gil. Gonçalo Mendes, director técnico da instituição, fala-nos da realidade actual desta obra, com 80 anos de vida, criada pelo espírito benemérito de um homem bom, Frei Gil, natural de Bustos, Oliveira do Bairro, que dedicou a sua vida à protecção dos mais desfavorecidos, sobretudo crianças e jovens, mas também trabalhadores pobres e seniores. «Era uma pessoa muito altruísta», refere, recordando que Frei Gil foi contemporâneo do Padre Américo e ambos se empenharam numa ampla acção social, cuja obra se mantém hoje. Gonçalo Mendes recorda mesmo um episódio, que se afigura quase como uma lenda, dos dois religiosos, nos anos 40, à porta de um cinema, em Coimbra. «Parece que quase chegavam a “vias de facto”, cada um defendendo a sua causa». Até um jornal têm em comum. “O
Lar de Infância e Juventude é também a sede da Obra de Frei Gil
Gaiato”, no caso da Obra da Rua criada pelo Padre Américo. “O Libertador”, na Obra de Frei Gil. Além da casa da Praia de Mira, a instituição tem mais duas casas de acolhimento, uma em Ramalde (Porto) e outra em Lobão (Santa Maria da Feira) e um infantário em Oliveira do Bairro. Na sua terra natal, Frei Gil criou, ainda, uma escola, o Instituto de Promoção Social da Bairrada, que «chegou a ter mais de mil alunos», e entretanto encerrou. Fechou, igualmente, há cerca de 20 anos, a Obra da Criança Abandonada, em Vila Verde, assim como encerraram os lares para idosos de Oliveira do Bairro e da Moita (Anadia), ou a Casa dos Rapazes no Bairro Frei Gil, em Ílhavo. Gonçalo Mendes explica que «cada casa tinha uma aptidão distinta». Na Praia de Mira ficavam os rapazes que tinham menos aptidão para estudar e aqui obtinham uma formação sólida na área da agricultura. Numa segunda casa, em Lobão, «uma zona mais industrializada», tinham depois da formação em “casa”, futuro assegurado numa das muitas fábricas. Para o Porto seguiam aqueles – rapazes e raparigas - que, no entender de Frei Gil, tinham capacidade
para prosseguir os estudos e entrar no ensino superior. As outras duas apenas acolhem rapazes. Orientavam-se vocações, consolidavam-se competências, seguindo o perfil de cada um. Gonçalo Mendes recorda o quadro de grande miséria que se vivia no tempo em que começou a funcionar a Obra de Frei Gil, onde além dos órfãos reais, desamparados, «havia miúdos que deambulavam pelas ruas, porque os pais não tinham comida para lhe dar». Uns, órfãos verdadeiros, outros, órfãos da vida foram recolhidos nas diferentes casas de acolhimento.
Comportamentos desviantes juntam-se à pobreza Os tempos mudaram, mas o director técnico, há 23 anos a trabalhar na instituição, recorda que, nessa altura, ainda recebiam directamente rapazes, a pedidos das famílias, que «não conseguiam educar a e alimentar os seus filhos». Um paradigma actualmente impensável, com as crianças e jovens e enviados através dos organismos próprios, num processo que habitualmente envolve a Comissão de Protecção e Crianças e Jovens, o Tribunal de Família e Menores e
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Obra de Frei Gil 90 anos com Mira
a Segurança Social. O director técnico chama a atenção para os riscos de uma «institucionalização cada vez mais tardia», por falta de uma resposta célere dos tribunais, da qual resulta a chegada à instituição de jovens com 17 anos. «Aqui, quase não conseguimos fazer nada. Não há milagres e com 18 anos, o jovem é maior, sai», refere. Hoje, apesar de haver menos miséria, continua a haver famílias que não têm condições para educar os seus filhos. Mas, alerta Gonçalo Mendes, há outro tipo de questões, problemas que se prendem com comportamentos desviantes, como a fuga à escola/abandono escolar ou consumo de substâncias estupefacientes, explica Também reduziu o número de utentes. Um processo decorrente do Plano DOM – Desafio, Oportunidade e Mudança, lançado pela tutela, de reestruturação geral destas respostas. Um programa que surgiu numa altura de grande sensibilidade relativamente a estas instituições, na sequência do caso Casa Pia, que procurava «melhorar os serviços e garantir um melhor acompanhamento das crianças e jovens, apetrechando as instituições com mais e melhores recursos». Um programa à qual Obra de Frei Gil aderiu, em 2008, e que continuou, em 2012/12 com o plano Ser +. Quanto à capacidade, passou de 40 para 30 crianças e jovens. «Não conseguimos ter mais», garante. No ano passado, com a pandemia, a capacidade reduziu, para evitar quartos com três pessoas, e estão ali, actualmente 24 crianças e jovens. O mais novo tem oito anos. Os mais velhos 22. Cinco a seis anos é a idade mínima e a saída da Casa da Criança é ditada por decisão judicial, quando o tribunal entende que a criança pode regressar à família. Ou então quando o jovem «consegue a sua autonomia». «Apetrechamos os novos jovens com condições para trabalhar, terem a sua vida activa, estarem integrados profissional e socialmente», explica. De resto, quando não regressam casa e continuam o seu caminho sozinhos, contam com o apoio da Obra. Os habitantes da Casa da Criança são preferencialmente do distrito de Coimbra, mas também dos distritos vizinhos deAveiro e Leiria. Santarém e Lisboa, onde há mais casos problemáticos e menos respostas, juntam-se-lhes. Recentemente, a instituição acolheu duas crianças de origem brasileira, filhos de imigrantes sem autorização legal, sem documentos.
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Viver entre a casa e a escola
Crianças e jovens acompanhados sistematicamente nos estudos
Embora eventualmente com mais regras e mais disciplina, a vida destas crianças e jovens é muito semelhante às de todos os outros da mesma idade. Grande parte do dia passam-no na escola, em Mira, em cursos de formação, na Cercimira, ou na Escola Profissional de Vagos. Dois estão em “pré-autonomia”, já inseridos profissionalmente e em breve deixam a Casa da Obra. Casa que é o seu lar, alguns o
único que têm. É ali que tomam as refeições, dormem estudam, brincam e recebem o acompanhamento de uma equipa multidisciplinar. Equipa que inclui o director técnico (assistente social), uma psicóloga clínica com mestrado em ensino especial (que exerce o papel de encarregado de educação e faz a ligação coma escola), dois educadores sociais (que fazem a ligação entre os jovens, a instituição e a família, procurando manter e estimular uma relação com a família, que «é muito importante», salienta). Há ainda uma pedopsiquiatra (que trabalha com a psicóloga e se desloca uma vez por mês à instituição, garantindo o acompanhamento particularmente dos jovens que carecem de medicação).Aequipa educativa inclui sete monitores, que acompanham as crianças e jovens 24 sobre 24 horas. Um professor garante apoio escolar depois das aulas, a qual se juntam outros dois professores destacados, pertencentes ao Agrupamento de Escolas, que se revezam entre si. Para assegurar toda a restante vida da instituição estão duas cozinheiras, quatro auxiliares de serviços gerais (roupa/lavandaria, horta e fruticultura), uma pessoa adstrita à manutenção e uma funcionária administrativa.
Uma casa onde falta quase tudo Gonçalo Mendes destaca que um dos objectivo do Plano DOM, secundado pelo Ser + era apetrechar estas instituições com «maior capacidade financeira». Todavia, apesar de «algum apoio financeiro, não foi o devido e continuamos a viver no limite, às vezes um bocado abaixo do limite», lamenta. Isso significa que falta quase tudo na Casa da Criança da Obra do Frei Gil da Praia de Mira. Todos os géneros alimentares são bem-vindos, mas o director técnico destaca os leites achocolatados e os iogurtes (importantes para os lanches). Entre as prioridades está roupa e calçado para crianças/jovens entre os 8 e os 22 anos e produtos de higiene pessoal, com destaque para o shampoo, que tem um consumo muito significativo. O material
escolar é outra das necessidades. «São 20 e tal miúdos da escola», salienta o director técnico, que aponta a necessidade constante de lápis, canetas, cadernos, borrachas, calculadores, regras, esquadros. «Tudo o que é preciso para qualquer criança que anda na escola», sintetiza. «Ainstituição pode passar recibo a quem nos dá apoio», salienta Gonçalo Mendes. A instituição agradece quem quiser dar o seu contributo através do IRS. Na página da Obra do Frei Gil está, igualmente, a referência do número da conta, caso algum mecenas queira ajudar com uma transferência e a instituição pode ser contactada directamente ou pelo e-mail lij.mira@obradofreigil.pt. As crianças e jovens da Obra do Frei agradecem..
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90 anos com Mira Bombeiros
BOMBEIROS SEMPRE PRONTOS PARA SERVIR A COMUNIDADE 1982 Criação de um corpo de bombeiros, em 1982, veio pôr termo à dependência dos vizinhos concelhos de Vagos e de Cantanhede
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m corpo activo jovem, bastante motivado, que tem demonstrado grande resiliência e capacidade para ultrapassar crises». É assim que Miguel Grego, presidente da comissão administrativa da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Mira, classifica o corpo activo. São cerca de 60 operacionais, entre homens e mulheres, 25 dos quais são profissionais. «São o maior capital que a associação tem», adianta, satisfeito com o desempenho, mas sobretudo com o empenho deste grupo, liderado por um comando constituído por «pessoas novas,
Bombeiros dão resposta pronta às necessidades de socorro do concelho
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Bombeiros 90 anos com Mira
muito capazes e bem preparadas», que além do trabalho operacional, voluntariamente, dão o seu contributo para melhorar o quartel. Recentemente, um grupo de voluntários, com algum apoio, procedeu à remodelação da cozinha, exemplifica. Isto sem esquecer a atenção à manutenção das viaturas, parte da qual feita em “casa”, essencial para prolongar a sua vida útil. Se em termos humanos, tendo em conta que Mira «é um concelho pequeno», o espectro é francamente positivo, já no que se refere a equipamentos e instalações Miguel Grego reconhece que uns e outros começam a acusar o peso da idade e a «precisar de alguns retoques» e de «renovação». No que se refere ao parque de ambulâncias, «que percorrem milhares de quilómetros em acções de socorro e emergência pré-hospitalar», algumas «têm mais de 300 mil quilómetros» e «precisam de ser renovadas urgentemente», uma vez que também começam a dar “dores de cabeça” acrescidas em termos de arranjo/manutenção. Relativamente ao combate a incêndios, Miguel Grego reconhece algum envelhecimento, mas destaca, sobretudo, «o mérito das anteriores direcções e comando», que «têm sabido ir buscar alternativas e soluções». «Estas viaturas custam milhares de euros», faz notar, explicando que a alternativa,
eficaz, tem consistido na aquisição de viaturas usadas, designadamente em França e na Suíça. «Estamos razoavelmente equipados», o que não significa que não haja preocupações. «Se nos arder uma viatura, como já aconteceu, ficamos “descalços”, não temos plano B», diz. O quartel começa a dar sinais da idade e a «necessitar de algumas obras». Miguel Grego exemplifica com a retirada de uma cobertura em fibrocimento, «que não é um bom exemplo». A comissão administrativa está a proceder ao levantamento das necessidades, com o apoio de empresas da especialidade, para ter uma «previsão global dos custos». «Estamos na expectativa da abertura de candidaturas que possam apoiar esta intervenção», refere, designadamente em termos de poupança energética. «Não ambicionamos fazer tudo, mas queremos fazer o seu seja possível», diz, destacando a responsabilidade assumida pela comissão administrativa, instituída no quadro de um vazio directivo, que se vai manter até Outubro, garantindo a operacionalidade da corporação. «Acredito que vai aparecer gente nova, capaz, com uma forte ligação aos bombeiros e com vontade de trabalhar», diz, confiante. Com um orçamento anual a rondar o milhão e cem mil euros, Miguel Grego faz
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questão de “colocar o dedo na ferida” e chamar a atenção para a «parte ínfima» da verba assegurada pelo Estado. «O cidadão comum não sabe isso», assim como não sabe que os bombeiros vivem graças ao contributo de beneméritos e a direcção «anda quase de chapéu na mão». Lamenta que, «quando há problemas, se “caia” em cima de entidades que não são profissionais» e lembra o caso do comandante dos Bombeiros de Pedrógão Grande, que está em tribunal. «Também não é lícito que os corpos sociais tenham de hipotecar a sua vida pessoal para pagar salários e comprar equipamentos», adianta. Situações que “passam ao lado”do cidadão comum, que também não sabe que poucas vezes a sirene toca, não porque não haja ocorrências, mas «porque há pessoas no quartel que garantem resposta», refere.
Rejuvenescer e aumentar os sócios Miguel Grego deixa um apelo, no sentido de mais pessoas de associarem aos Bombeiros de Mira. «Temos muitos sócios, mas muito envelhecidos»: 90% têm mais de 50 anos e apenas 3% menos de 40. «Ao fazerem-se sócios, estão a ajudar a instituição», diz. Além da quota anual, de 15 euros, destaca o apoio dos sócios, o «darem alguma coisa de si à instituição».
Uma mais-valia na segurança das populações Fernando Almeida, presidente da direcção cessante, tem tantos anos de bombeiro como os Bombeiros de Mira têm de vida. Recorda que, em 1982, um grupo de cidadãos se reuniu para constituir a associação, processo que contou com o apoio de várias entidades, entre as quais destaca a Câmara Municipal, ao tempo presidida por Mário Ferreira Maduro, e do então comandante dos Bombeiros de Poiares, Jaime Soares, actual presidente da Liga Portuguesa de Bombeiros. Carlos Rodrigues foi o primeiro presidente da direcção. Fernando Almeida inscreveu-se, juntamente com mais de duas dezenas de jovens, em 1983, e fez parte do primeiro “pelotão” de formandos que integraram, depois, o corpo de bombeiros. O responsável - que actualmente faz parte da comissão administrativa e passou por todos
os lugares, designadamente pelo comando e presidiu por duas vezes à direcção – não tem dúvidas sobre a «mais-valia» e a «segurança» que a criação de um corpo de bombeiros representou para a população de Mira, para os comerciantes e para os industriais, que «na altura eram poucos». Antes, recorda, o socorro era assegurado pelos Bombeiros de Vagos e de Cantanhede. «Lembro-me de um incêndio na Casa do Sal, no Cabeço de Mira e foram chamados os Bombeiros de Vagos». O antigo comandante recorda o primeiro quartel, instalado na casa do Visconde da Corujeira, na Praça da República, onde funciona o Tribunal, e ali se manteve até 1995, altura em que foi inaugurado o actual quartel. Quanto às viaturas, lembra que os bombeiros trabalhavam com uma ambulância comprada pela Casa do Povo, designada
“ambulância de São Tomé”, mais tarde cedida aos bombeiros, e com uma segunda ambulância da Comissão de Melhoramentos da Praia de Mira. «Era o que tínhamos». Mais tarde, «foi-nos cedido um Mercedes 710, do Exército», que foi transformado em veículo de transporte de água e só posteriormente «comprámos o primeiro carro de combate a incêndios, um Land Cruiser Toyota e uma ambulância, uma Renault Trafic». Fernando Almeida destaca as exigências acrescidas que a existência de várias zonas balneares coloca aos Bombeiros de Mira, plasmada numa equipa especializada no socorro aquático. Durante a época balnear, os bombeiros têm uma ambulância de socorro, em regime de permanência, na Praia de Mira, que também garante apoio à praia do Poço da Cruz. «E uma resposta de proximidade», adianta.
90 anos com Mira Filarmónica
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FILARMÓNICA RESSURREIÇÃO: UMA REFERÊNCIA CULTURAL DO CONCELHO 2005 Casa Municipal da Música, inaugurada a 10 de Setembro de 2005, concretiza
o velho sonho da centenária banda ter uma sede própria
Filarmónica é maioritariamente constituída por músicos muito jovens
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juventude constitui a marca diferenciadora da Filarmónica Ressurreição de Mira, uma banda de origens centenárias, que sempre se apresentou como um “ex libris” do concelho e um orgulho para as suas gentes. Foi uma das filarmónicas que figurou no programa da Expo’ 98 (Setembro de 1998), brilhou no festival “Filarmonias ao Mais Alto Nível”, no Europarque, em Santa Maria da Feira (Novembro de 2012) ou no evento “Ao som das Bandas”, no Casino da Figueira da Foz (Dezembro de 2013). Mas os seus pergaminhos são muito mais vastos, com deslocações a Espanha e a França, sem es-
quecer a participação contínua nas afamadas festas de Nossa Senhora da Agonia, em Viana do Castelo. Licínia Neves, presidente da direcção, socorre-se da obra “Filarmónica Ressurreição de Mira – Fragmentos de 144 de História”, da autoria de Carlos Manuel da Silva Oliveira, para nos orientar pelos meandros da origem da banda e no vasto património que subjaz à actual filarmónica. Vivia-se no final do século XIX e eram duas as referências na cultura musical de Mira à época, com a Phylarmonica Independencia, «de cariz popular, constituída em Fevereiro de 1893», que «contava com o apoio da classe operária,
que lhe valeu a designação de Música dos Pobrezinhos». «No mês seguinte, em Março de 1983, é constituída a Phylarmonia União Popular, conhecida pela Música dos Fidalgos, devido ao apoio recebido das classes mais privilegiadas de Mira». Carlos Oliveira destaca a grande rivalidade entre as duas colectividades, mas também a qualidade exímia de ambas as formações musicais. Exemplo disso foi a actuação nas festividades em honra de Nossa Senhora do Carmo, onde «tocaram ao fogo (…) batendo-se fortemente sem a menor interrupção, desde as 9 horas da noite até às 6 da manhã». A partir de 1900, segundo o autor, não se encontram «registos de actividade» das duas bandas, «o que vaticina o final das suas curtas existências, limitadas a sete anos dourados». Após sete anos de silêncio, «a 20 de Novembro de 1908» surge «a primeira referência ao nome Resurreição (com esta grafia), que nos remete para a existência de uma banda filarmónica». Embora sem documentação que ateste a ligação às outras duas bandas, o certo é que «o curto espaço temporal» permite «deduzir que será enorme a probabilidade de interrelação entre as bandas». O próprio nome, sublinha Carlos Oliveira representa «uma terminologia plena de significado: ressurgimento, ressurreição, revivescência, renascimento, reaparição… ou talvez o início da sua actividade esteja relacionado com a época pascal». Certo é que no dia 20 de Novembro de 1908, «a banda e o executivo
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Filarmónica 90 anos com Mira
municipal se deslocam a Coimbra, a convite do governador civil, a fim de participarem na recepção real do rei D. Manuel II». Data de 1912 a memória fotográfica da Filarmónica Ressurreição, constituída por 28 elementos e regida por Jorge Augusto de Carvalho. O investigador faz notar «um novo interregno em termos documentais» no período entre 1918 e 1924» e, em finais de 1939 destaca as «dificuldades financeiras» que impediam a banda de «pagar salários ou mandar consertar instrumentos». A desagregação, todavia, terá acontecido mais tarde, «entre 1959 e 1977». A segunda “ressurreição”acontece em 1977. Sete meses depois de reactivada, a Filarmónica Ressurreição de Mira faz a sua apresentação pública em Setembro. Ainda em 1977 avança a criação de uma escola de música. Em Abril de 1983 a Filarmónica Ressurreição de Mira era registada no Cartório Notarial. Passo importante foi a inauguração da nova sede, em 10 de Setembro de 2005, a Casa Municipal da Música. Um processo que começa em 1999, com o início do projecto. Até então a banda estava instalada na Casa do Visconde da Corujeira – onde funciona o Tribunal – passando ainda pela Casa do Povo. Em 2019, a Casa Municipal da Música passou a incluir o nome de Manuel Anilde de Oliveira, em homenagem póstuma a uma figura de relevo na colectividade, que presidiu durante vários anos ao destino da filarmónica. Actualmente, a Filarmónica Ressurreição conta com 45 elementos, «todos muitos jovens». O mais novo tem 10 anos e o mais velho 52», esclarece Licínia Neves, que enaltece a «grande juventude» da banda, que tem uma média etária de 15 anos e é dirigida pelo maestro Ricardo Lameiro. A Escola de Música é o alfobre desta cultura musical, onde a banda se renova. Tem cerca de meia centena de alunos, entre os 3 e os 16 anos, e um quadro de 16 professores. Da história de feitos da filarmónica faz parte
a criação, em 1999, da Orquestra Ligeira, apresentada nas comemorações do 129.º aniversário, constituída por alunos saídos da Escola de Música que, desta forma, ganhavam novas competências. Seguiu-se, em 2014, a orquestra infantil “Os Pautinhas”, formada pelos alunos da Escola de Música. Possui, ainda, um Grupo de Música Sacra. Referência, ainda, para a gravação de CD, o primeiro - “Em… Cantos de Mira” - gravado em Outubro de 2004 e apresentado em Março do ano seguinte. Um momento singular que acontece depois de, em 1981, ter feito a primeira gravação em fita magnética. Era a «concretização de um sonho», assumia a direcção, que destacava o «estímulo» para os músicos, sobretudo para os mais novos. Em Maio de 2009 a filarmónica lançou o segundo CD “Show Time!”. Um terceiro CD, “Manuel Anilde”, foi gravado em 2018, em homenagem ao “eterno presidente” da associação e o quarto CD, gravado ao vivo num concerto com o maestro inglês Douglas Bostock
Nova farda e instrumentos O fardamento é uma preocupação constante da direcção, tendo em conta que os músicos, todos bastante novos, crescem de dia para a dia, mas o mesmo não acontece com as calças, camisas e casacos. «Actuámos numa missa, no Dia da Mãe, e tivemos que andar a redistribuir roupa», afirma Licínia Neves. Uma forma de «remediar» a questão, mas que não anula a necessidade de uma nova farda. «Já pedimos um orçamento», diz, apontando um custo a rondar os 15 mil euros. A agravar esta “dor de cabeça” está outra necessidade, que se prende com a aquisição de novos instrumentos, também ele muito caros. Necessárias são, igualmente, obras na sede, um edifício pertencente ao município, que precisa de ter o terraço isolado, uma vez que há infiltrações, além de uma pintura geral, por dentro e por fora.
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Regressar aos palcos
Habitualmente com um grande número de actuações, particularmente durante os meses de Verão, sobretudo em Agosto, onde chega a “ter saídas” durante a semana, a Ressurreição de Mira espera agora recuperar o tempo perdido e regressar em força ao palco. Em agenda estão vários concertos, designadamente em Mira e na Praia de Mira, em Agosto. Para Outubro está previsto um concerto, em Mira, integrado no programa “Música e Monumentos”, da Confederação Musical Portuguesa. Desde 2014 que a Filarmónica Ressurreição promove anualmente um Encontro de Bandas, com a participação de filarmónicas de vários pontos do país e de Espanha. As actuações são fundamentais, pois representam um contributo importante para a solidez financeira da associação. Igualmente com o propósito de angariar receitas, mas também de mostrar o dinamismo da colectividade, a «banda organiza muitos eventos», esclarece Licínia Neves, que destaca a participação nas Festas de S. Tomé, onde a banda marca presença com um stand. Conta, ainda, com algum apoio do município.
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90 anos com Mira Caretos
CARETOS DA LAGOA: UMA TRADIÇÃO QUE PERDURA 1960 Tradição viveu momentos de crise devido à imigração e à guerra colonial, mas os caretos nunca deixarem de “jogar ao Entrudo” e empenharam-se em revigorar esta peculiar vivência
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ara se ser careto tem de se ter vigor, tem de se ser audaz, ter capacidade para interagir. Se não for assim, temos um careto capado!» Quem o diz é João Pinho, um careto e, sobretudo, um homem empenhado em manter viva esta tradição ancestral, que desde tempos imemoriais marca a identidade do povo da Lagoa. Fundamental é, igualmente, a resistência e capacidade física, pois os caretos palmilham quilómetros, a pé. Desconhecem-se as origens. «Não há nenhum documento sobre isso», atesta. O
Coração da Gândara criou uma tradição muito própria de “jogar ao Entrudo”
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Caretos 90 anos com Mira
que existe é uma tradição, que passou de pais para filhos e se manteve, sempre, conferindo um carácter muito peculiar a este “jogar ao Entrudo” no coração da Gândara. As pessoas que nasceram na primeira década do século passado testemunham essa longevidade no tempo, garantindo que já os seus avós «faziam e usavam as máscaras, as campinas» por alturas do Entrudo. Um tempo em que os rapazes tinham de “roubar” uma saia à avó, à mãe ou a uma irmã para vestir. Um elemento feminino, de cor vermelha, ao qual se junta um avental branco, que contrasta com a camisa, igualmente branca, numa caracterização do “bicho-homem”, que impõe respeito, para não dizer medo. Sobre a camisa, cruzam-se os “arreios” de couro, a maioria das vezes usados nas vacas ou nos bois e juntam-se os chocalhos, cujo alarido ajuda a criar um cenário fantástico. A campina, esclarece João Pinho, é feita em cartão e canas de valados, incluindo, igualmente, algum vime, para conferir «mais resistência à arcada semi-circular». «Cada careto fazia a sua máscara», um facto que lhe conferia características únicas.Aadornar a máscara ficavam os chifres, de carneiro ou de bovino, pintados de vermelho e adornados com fitas de papel de seda, com 30/40 centímetros de comprimento. Fitas que, explica, esvoaçavam com o movimento e conferiam um «ar poderoso e simultaneamente assustador, qual juba de leão» ao careto. De origem desconhecida, a tradição instalou-se na localidade da Lagoa e ficou. «Talvez por ser o povoado mais próximo da vila e do mar», adianta o careto, lembrando que a Praia de Mira é «mais recente» e na Lagoa houve uma larga tradição ligada à construção naval ligada à pesca. «Não há registo destas manifestações noutras aldeias, que não seja a Lagoa, nem há manifestações
Promover este património singular Orgulhosos desta marca identitária, os habitantes da Lagoa fazem questão de promover os seus caretos. «Já estivemos em Espanha, participamos no desfile da Máscara Ibérica, em programas televisivos e noutro tipo de eventos», refere. O objectivo é dar a conhecer este sui generis património. Um desígnio que não envolve apenas os habitantes de Lagoa. «Há uma união de aldeias pelos caretos da Lagoa», sublinha João Pinho, que destaca, igualmente, o interesse da Câmara Municipal de Mira e o apoio que assegura às deslocações dos caretos.
mais a Sul. Há a Norte, na zona de Trás-os.Montes, mas mais a Sul não existem, terminam na Lagoa», refere. Tudo indica que se trata de um ritual de «iniciação», de «passagem» dos mancebos para a idade adulta, também associado aos rituais pagãos de agradecimento à mãe natureza e de fecundidade, explica. A atestar isso está o facto de, nos termos da tradição pura e dura, «só os jovens solteiros poderem ser caretos». «Deixava de se ser careto quando se casava», adianta João Pinho. As razões são do foro moral; «não ficava bem, sendo casado, andar atrás das raparigas», faz notar. A tradição manteve-se, sempre. «Nunca foi interrompida», assegura, muito embora com grandes limitações e dificuldades. Na década de 60 do século passado, recorda, tendo em conta a grande força da imigração
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e a guerra colonial, a população de jovens sofreu um decréscimo significativo. «Chegaram a só sair à rua três caretos», sublinha. Mas o certo é que saíram sempre para “jogar ao Entrudo”. João Pinho recorda o empenho de dois moradores, Zé Moreira e o Ti Alírio, este último um antigo sapateiro, que «nos anos 80/90, se empenharam em ensinar aos mais novos como se faziam as campinas», de molde a manter viva a tradição e a continuar a celebrar o Entrudo. Nos mesmos moldes, embora com alguns diferenças. A interdição aos casados deixou de se verificar, sobretudo tendo em conta a necessidade de mobilizar todos o meios disponíveis. «Já tivemos momentos em que conseguimos sair com cerca de 30 elementos», diz. Um grupo constituído por rapazes desde os 14/15 anos a homens de 40 anos , que «querem manter a tradição». Uma corrida atrás das moças solteiras, feita a pé, desde a localidade da Lagoa às povoações das redondezas. «Percorriam-se 40/50 quilómetros», refere João Pinho. Sempre a pé. Ainda hoje é assim. Daí a necessidade do vigor, da boa preparação física. Elementos a que se juntam outros traços de personalidade, como «ser ousado», «ser audaz». Só assim era possível perseguir as jovens e insinuar-se perante elas, num tempo em que o convívio entre os dois sexos praticamente não existia e que o Entrudo, como tempo «mais permissivo» que era, permitia acontecer.
Tradição defendia que só os rapazes solteiros podiam ser caretos, mas hoje o grupo já inclui elementos casados
90 anos com Mira Confraria
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Confraria afirma-se como uma embaixadora da Gândara e do concelho de Mira
CONFRARIA PROMOVE NABOS E COMPANHIA 2000 Característicos da localidade de Carapelhos, os grelos
de nabo inspiraram um grupo de amigos na criação de uma confraria, que destaca este produto endógeno e as tradições gastronómicas da Gândara
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á 20 anos 80% das pessoas de Carapelhos viviam dos grelos», garante Nuno Janicas, grão-mestre da Confraria Nabos e Companhias. Hoje a realidade é diferente. As pessoas de mais idade «deixaram de se dedicar à agricultura» e os mais novos «têm outras vontades, oportunidades e ambições» que não contemplam o cultivo da terra. Todavia, de acordo com aquele responsável, seguramente que «30 a 40% da população ainda vive, directa ou indirectamente, da cultura do nabo». Muitos semeando e co-
lhendo, outros adquirindo os grelos e assegurando o seu transporte para o mercado. Uma tradição que levou, no ano 2000, à criação da Confraria Nabos e Companhia. Na sua génese, explica Nuno Janicas, está um grupo de amigos, amantes de grelos de nabo, claro está, mas sobretudo da singularidade da gastronomia local, das tradições, do modo de viver característico da Gândara. O nabo ficou na designação da colectividade, como centro de produção. A “Companhia”, o outro termo do nome próprio da Confraria,
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aplica-se às nabiças, ao grelo - «que é o mais forte», salienta Nuno Janicas, mas também «a tudo o que acompanha à mesa», sublinha.Acomeçar pelos «amigos», destaca, juntos para saborearem os rojões, o bacalhau ou qualquer outra especialidade. «Sempre acompanhada por grelos», claro está!. «Os grelos substituem a salada», faz notar o grão-mestre, que destaca as particularidades e qualidade de uma cultura que, durante largos anos, foi tipicamente de Inverno. «São os melhores grelos», garante. Os nabos «semeavam-se no final deAgosto e nasciam com as primeiras chuvas». O calor de Setembro «fazia-os murchar» e ganhavam novo fulgor com as chuvas de Outubro e Novembro. Em Dezembro, surgiam os primeiros grelos. «Os grelos criados nestas condições são os melhores, têm um sabor único», afiança. A cultura dos nabos e dos grelos surge como cultura intercalar. «Aqui cultiva-se sobretudo milho e batata», culturas de Verão, que deixavam a terra em repouso no Inverno. Todavia, nos Carapelhos quebrou-se a tradição, com um conjunto de pessoas a semearem nabos, uma cultura de Inverno, que «não cansava a terra» - ou seja, permitia que, na Primavera, se plantassem as batatas e semeasse o milho – e «dava para alimentar os animais e também os humanos». Do consumo caseiro, depressa se chegou ao mercado e o sucesso dos grelos de Carapelhos foi de tal ordem que a cultura de Inverno se alargou, começando a ser feita em diferentes épocas do ano, mais cedo e mais tarde, relativamente ao procedimento tradicional. Os sistemas de rega substituíram as chuvas e praticamente há grelos todo o ano, excepção feita para Março e Abril. É esta herança, este património, esta cultura e esta identidade de Carapelhos que a Confraria Nabos e Companhia pro-
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Confraria 90 anos com Mira
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Reconhecida com prémio de boas práticas
Confraria promove a gastronomia da região, sempre com um enfoque nos grelos
move. Os grelos são o seu símbolo, uma oferenda que transporta consigo onde quer que se desloque, especialmente nas recorrentes visitas efectuadas às muitas confrarias existentes de Norte a Sul do país. Confrarias que, de resto, são as convidadas de honra do Capítulo da Confraria Nabos e Companhia, que se celebra no fim-de-semana que antecede o dia 8 de Dezembro, dia da padroeira, Nossa Senhora da Conceição. «É o momento alto da vida da Confraria», destaca o grão-mestre, referindo a presença de cerca de 300 confrades, em representação de sete dezenas de confrarias, provenientes de todo o país, mas também de França, Espanha e da Suíça.
Eventos promovem grelo e Carapelhos A Feira do Grelo, realizada habitualmente no terceiro fim-de-semana de Maio, é outra das iniciativas de relevo com a chancela da Confraria. Já se contabilizam 15 edições e «é um evento que reúne nos Carapelhos milhares de pessoas», garante Nuno Janicas, que destaca a presença em massa, nesse fim-de-semana, dos muitos emigrantes da terra que estão radicados em França e fazem questão de regressar para saborear os nabos e companhia, o mesmo é dizer a riqueza da gastronomia da Gândara, «sempre acompanhada com grelos». AConfraria é, igualmente, presença assídua
nas Festas de S. Tomé e no festival de gastronomia da Praia de Mira. «Somos sempre a tasquinha mais visitada», afirma, com orgulho, o grão-mestre. Num registo mais “interno” estão as reuniões de confrades que de dois em dois meses acontecem. Encontros que têm a particularidade de elegerem um confrade para preparar a refeição, com grelos como acompanhamento, claro! «É um teste para ver se está à altura», brinca Nuno Janicas, que destaca esta refeição, preparada com produtos locais, que também pode contar com a presença de alguns convidados que, desta forma, se aproximam da colectividade e dos seus valores. Com grande proximidade estão as crianças e jovens de Carapelhos. «Adoram a Confraria», diz o grão-mestre, que também elogia o facto de os habitantes mais novos serem grandes adeptos das comidas tradicionais da Gândara. Com 72 confrades efectivos e um número significativo de confrades de honra, onde se incluem alguns nomes sonantes de todo o país, a Confraria Nabos e Companhia faz questão de ter uma porta sempre aberta para a cultura local. «Apoiamos o lançamento de livros da Gândara», refere Nuno Janicas, que refere uma antologia de escritores ficcionistas. A sede da Confraria é, por si só, digna de uma visita. «A fachada é uma réplica de uma casa Gandaresa», esclarece o grão-mestre. No Largo de Cara-
Com uma dinâmica invejável, a Confraria Nabos e Companhia viu o seu trabalho ser publicamente reconhecido com a atribuição, há três anos, do Prémio Boas Práticas para a Valorização da Gastronomia. Um galardão atribuído pela Federação Portuguesa das Confrarias Gastronómicas, em parceria com o Turismo Centro de Portugal. Um prémio que se destina a premiar a confraria «cujo trabalho, esforço e desempenho, no decorrer de um triénio, mais valorize a transversalidade da gastronomia portuguesa». A avaliação contempla as boas práticas na vertente de divulgação de produto ou receita, recolha e inventariação das tradições culturais associadas à gastronomia local, bem como a promoção de processso que visem garantir a autenticidade e genuinidade dos produtos, a associação entre o património gastronómico e o património histórico e arquitectónico e ainda o envolvimento da confraria com a comunidade local na realização de actividades que promovam o entrosamento entre ambas.
pelhos, a Confraria ergueu uma estátua, em 2018, da autoria do mestre-escultor Alves André, que não é mais do que um hino às gentes da Gândara. Possui, ainda, uma vinha, «para manter a tradição de produção de vinho na zona» e uma horta, que pretende dar a conhecer aos mais novos esta cultura ancestral ligada à terra e ao mundo rural. Também há espaço para a inovação na Confraria Nabos e Companhia. Exemplo disso é a criação, que data de 2016, do Ginabo, o único gin com sabor a nabo, criado no âmbito de uma parceria com as Caves Montanha, que se tem revelado um sucesso. No ano seguinte foi a vez de um gelado de nabo, resultante de uma parceria com a Fabridoce, gelados de Portugal.
90 anos com Mira Columbofilia
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MIRA NO EPICENTROI DA COLUMBOFILIAI NACIONALI
Região Centro acolhe um número significativo de columbófilos
2020 Federação Portuguesa de Columbofilia decide mudar a sua sede social e instalar-se em Mira. No país há cerca de 9.000 columbófilos, 3.000 dos quais na região Centro
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abia que um pombo-correio é capaz de percorrer, num só dia, distâncias entre os 700 e os 1.000 km, a uma velocidade média superior a 90 km/hora? E que têm uma capacidade inata de regressar a casa (pombal), quando postos em liberdade, mesmo a uma distância considerável? Estes são, de resto, os pilares em que assenta um dos desportos que mais adeptos movimenta em Portugal. «É a segunda modalidade desportiva do país», garante a Federação Portuguesa de Columbófila (FPC), com sede em Mira, sustentando-se nas 14 associações distritais e nos cerca de 400 clubes seus filiados. «São cerca de 9 mil associados», atesta, distribuídos por todo o território nacional, incluindo Madeira e Açores. Quando à população columbina recenseada, o efectivo é de cerca de «um milhão de
pombos-correio em Portugal, originários de 40 países». «O pombo-correio português é reconhecido em todo o mundo, sendo a columbofilia uma das modalidades desportivas que mais títulos internacionais conquistou», refere a FPC, que aponta os títulos de campeã olímpica, individual e na classificação por países, campeã da Europa individual e colectivamente, campeã do mundo nas camadas jovens e campeã ibero-latino-americana. Em 2018, esclarece, «Portugal conquistou praticamente todos os títulos em disputa, com especial destaque para o Campeonato do Mundo, em Taiwan, onde se sagrou campeão mundial em três categorias em disputa: individual, pombo às e países». Em 2019, prossegue, Portugal «sagrou-se campeão olímpico de columbofilia, na categoria de velocidade, em Poznan, na Polónia». Em 2020, apesar da pandemia ter ditado a interrupção das provas oficiais, entre Março e Junho, a selecção nacional obteve «excelentes resultados» na 2.ª Exposição Mediterrânica, «com 10 primeiros lugares e 31 posições no pódio». O mesmo aconteceu nos Cam-
peonatos Internacionais de Mira, «onde os pombos portugueses e a selecção nacional alcançaram resultados prestigiosos», refere. Depois da «incerteza» de 2020,
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«2021 é um ano particularmente desafiante para o desporto columbófilo», considera a direcção da FPC, que sublinha a necessidade de «um enorme esforço organizativo para encontrar soluções que permitam alcançar, a cada momento, a estabilidade possível e desejável para a prática da columbófila». De resto, com esse objectivo, criou um pacote de medidas, no valor de 70 mil euros, para permitir «aos sócios e colectividades enfrentar as dificuldades financeiras». Do plano de actividades parte a promoção de acções de formação (fiscalidade, contabilidade, liderança e gestão de conflitos), pretende, embora com ajustamentos, manter os quadros competitivos nacionais, bem como as iniciativas de divulgação e promoção, visando captar novos praticantes e apoios. O estabelecimento de novas par-
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Columbofilia 90 anos com Mira
cerias e a promoção da investigação, são outros objectivos. Além da componente desportiva, que tem consagrado Portugal a nível internacional, a columbofilia afirma-se como uma modalidade que promove o «convívio social entre milhares de praticantes e simpatizantes», além de se distinguir pelas suas «características de combate ao isolamento social», sublinha a direcção da FPC, presidida por José Luís Rodrigues Jacinto.
Federação instala a sede em Mira Fundada a 5 de Novembro de 1945, a Federação Portuguesa de Columbofilia tem a missão de «difundir e desenvolver a prática da columbofilia em todo o território nacional, nas diferentes vertentes de competição e lazer». É membro da Confederação do Desporto de Portugal e do Comité Olímpico de Portugal, filiada na Federação Columbófila Internacional, com sede em Bruxelas, e membro fundador da Associação IberoLatino-Americana de Columbofilia. Em 1978 obteve o estatuto de Utilidade Pública e em 1994 de Utilidade Pública Desportiva. Sediada em Coimbra, em 4 de Janeiro de 2020, num congresso extraordinário, realizado na sua sede, no Mira Center, a Federação decide, por unanimidade, transferir a sede para Mira, tendo em conta «as boas relações com o município de Mira e a proximidade com o Columbódromo Gaspar Vila Nova, em Portomar». Seguiram-se as necessárias formalidades, designadamente a «assinatura de contrato com a Câmara Municipal de Mira, em Fevereiro».Amudança de todo o equipamento, explica, «decorreu no final deAgosto». Desde Setembro de 2020 que a FPC opera a partir da nova sede. O objectivo é «sedimentar e desenvolver» a estrutura instalada, tendo como objectivo transformar Mira na «capital nacional da columbofilia».
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A arte de criar pombos-correio
Criação de pombos obedece a um conjunto de requisitos
A columbofilia é a arte de criar pombos-correio com fins desportivos. O seu fundamento, esclarece a FPC, baseia-se na capacidade inata de orientação destas aves, que as leva, quando postas em liberdade, a regressarem ao pombal. «Com o treino», esta característica inata, conjugada com o «amor ao ninho, ao cônjuge, ao seu pombal e ao próprio treinador», leva o pombo-correio a percorrer distâncias enormes. A velocidade média de voo é superior a 90 km/hora, o que significa que, apenas num dia, uma ave - com um peso médio entre os 425 e os 525 gramas (machos), e de 480 gramas (fêmeas) pode percorrer entre 700 e 1.000 km. A aprendizagem/treino começa a partir do nascimento, tendo como objectivo «a adução ao pombal e proporcionar-lhe o vigor e a preparação necessária para que, quando solto, regresse ao seu pombal com segurança e na maior rapidez», adianta. Praticada por todas as idades, a colum-
bofilia é, acima de tudo, «um acto de amor», faz notar a FPC, sublinhando que «o pombo-correio passa a ser um companheiro, um amigo, que necessita de ser entendido, cuidado e acarinhado diariamente».«Ter consciência e disponibilidade para isso são os principais requisitos», refere ainda, admitindo a necessidade de «alguma capacidade financeira», de molde a garantir «as melhores condições» às aves. «Há quem diga que é uma modalidade cara, mas tudo depende do número de pombos-correio que se pretende ter», considera. A preparação dos pombos, para treino ou concurso, implica um prévio «reconhecimento minucioso», de molde a comprovar a sua boa forma, «o estado das penas, assim como das mucosas». Seleccionados os habitantes do pombal, estes são colocados em cestos de viagem e levados ao clube columbófilo, de onde são expedidos, em cestos, para os locais de solta.
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90 anos com Mira Columbofilia
Columbódromo internacional instalado em Portomar Uma das estruturas de referência da columbofilia nacional é o Columbódromo Internacional Gaspar Vila Nova, localizado em Portomar. Uma valência erguida num terreno cedido pela Câmara Municipal de Mira à FPC, inaugurado em 1997, aquando da realização do Campeonato do Mundo. Tem capacidade para receber dois mil pombos-correio e possui 17 pombais, estando equipado com sistema de constatação electrónico e sistema informático. Possui, também, um centro de quarentena, criado em 2017, com capacidade para 700 aves. «Já este ano de 2021, a FPC fez um investimento na remodelação das instalações do Columbódromo, dignificando as condições das estruturas de apoio, tendo em vista a melhoria significativa do local de trabalho dos funcionários que ali prestam o seu serviço», esclarece.
O Columbódromo de Mira é também usado para a realização de provas “one loft race”, conhecidas por derbies. Trata-se, esclarece a FPC, de uma vertente da competição onde os columbófilos «entregam os seus pombos, ainda borrachos, para serem criados em conjunto com ou-
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tros num mesmo pombal, com as mesmas condições». Na altura da realização das provas, ao invés de regressarem aos seus pombais residenciais, espalhados pelo país, as aves voam para o pombal onde foram criadas, em Portomar. «Esta modalidade promove uma vertente espectáculo, com a chegada dos pombos-correio em simultâneo», refere a FPC, «o que tem atraído milhares de adeptos e pessoas não ligadas à modalidade». De referir, ainda, a realização de outras competições, de carácter nacional e internacional, em Mira, algumas das quais integram o Ranking Mundial. Este ano a realização dos campeonatos está prevista para o dia 16 de Outubro. «É sempre uma grande festa da columbofilia, que atrai praticantes e amantes da modalidade oriundos de todos os continentes», faz notar. A Federação sublinha, de resto, os «fluxos significativos de pessoas e famílias» que «a modalidade chama regularmente a Portugal», constituindo-se como «uma força mobilizadora para o turismo e para a economia regional e nacional».
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Biblioteca 90 anos com Mira
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BIBLIOTECA PROMOVE ENCONTRO COM OS LIVROS E COM A CULTURA 1995 Inaugurada em Julho de 1995, Biblioteca Municipal está a sofrer as primeiras obras
de requalificação da sua história e sonha ver o seu espólio renovado e enriquecido
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m Julho de 1995 assistia-se à instalação da Biblioteca Municipal de Mira. Um marco na história da cultura do concelho, que até à data só tinha acesso ao livro – à semelhança do que acontecia em grande parte do território nacional – através da carrinha da Biblioteca Itinerante da Fundação Calouste Gulbenkian. Mira aproveitou o programa de incentivos lançado pelo Instituto Português do Livro e da Leitura e, inclusivamente, para não perder a oportunidade e ganhar tempo, apostou em instalar-se num edifício, construído cinco anos antes, no Largo Visconde da Corujeira. Fernando Ferreiro, assistente técnico da biblioteca desde a sua origem, recorda essa adaptação de um edifício destinado a escritórios, que acolheu a Biblioteca Municipal. «Abrimos com 10 mil documentos», entre livros, material audiovisual e periódicos. «Neste momento são cerca de 20 mil», adianta, e o número de leitores é de 4.556. «Um número razoável», considera, tendo em conta o universo populacional do concelho que ronda os 13 mil habitantes. Menos razoável, ou melhor, a merecer maior atenção, está o espólio da biblioteca. «Mais de 80% são doações», refere o assistente técnico, que lamenta alguma «falta de investimento» da autarquia ao longo das duas últimas décadas. «Passam-se anos sem qualquer aquisição», adianta, o que dita a existência de «um fundo documental envelhecido». «Precisava de alguma reno-
Biblioteca tem mais de 4.500 leitores
vação, sobretudo para manter o interesse dos leitores», considera, sublinhando que «não havendo novidades, esse interesse esmorece». Apesar desta dificuldades, não falta dinâmica à biblioteca. «Temos que nos reinventar», diz Fernando Ferreiro, apontando as diferentes actividades que a biblioteca dinamiza junto das escolas, lares e associações culturais. Atenção especial merece o programa “Maré de Livro”, que já conta com 11 anos de existência. Um projecto destinado às escolas que não têm biblioteca escolar. «Todos os meses levamos às escolas um baú com cerca de 40 livros», explica. A iniciativa tem «funcionado bem», recorrendo
a um «fundo próprio do projecto», o que significa que não são livros da biblioteca. Também este fundo está «um bocado envelhecido» e a precisar de «uma injecção de livros novos», faz notar. Satisfeito, aponta uma verba alocada ao programa que vai permitir «comprar mais livros» e também «substituir os baús», que já «estavam bastante envelhecidos Todos os meses a Biblioteca Municipal de Mira prepara os baús. São 18, para levar a outros tantos estabelecimentos de ensino. No último ano lectivo, devido à pandemia, o projecto sofreu uma paragem, mas em finais de Setembro, com o regresso às aulas, também está de volta. Tendo em conta o
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sucesso da iniciativa, a biblioteca está a ponderar a possibilidade de alargar a “Maré de Livros” a outro público, levando os baús também aos lares do concelho. Também já com pergaminhos está a Biblioteca de Praia, que entre Julho e meados de Setembro é instalada na Praia de Mira. São entre 1.500 e 1.600 livros alocados ao projecto, que nos últimos três/quatro anos ganhou uma nova casa, com a adaptação dos antigos quartos de banho, instalados na marginal. «Os banhistas aderem muito bem», afirma Fernando Ferreiro, que destaca o espaço atractivo, com uma esplanada, onde se encontram espreguiçadeiras, e as várias actividades que a biblioteca desenvolve de per si ou por iniciativa de professores que acompanham campos de férias. Tertúlias, ateliers literários, encontros com escritores, conferências, sessões de teatro, são outras das actividades que a Biblioteca de Mira desenvolve habitualmente. Tem, ainda, um grupo de leitura, “Palavrinha, Meia Palavra e Palavra”, envolvendo as diferentes faixas etárias, através do qual se desenvolvem tertúlias relacionadas com a leitura. A biblioteca acolhe, também, exposições de artistas plásticos e de artesanato.
90 anos com Mira Biblioteca
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Obras de requalificação A funcionar há 26 anos, a Biblioteca Municipal está actualmente a sofrer as primeiras obras de requalificação. A empreitada começou em Setembro do ano passado e envolve a substituição do chão, pintura e uma intervenção ao nível das instalações sanitárias. À espera de melhor oportunidade fica a sala de audiovisuais, que «se encontra desactivada», depois de uma inundação, registada há anos. «Era bom que estivesse activa», pois «representa um complemento à biblioteca», refere o assistente técnico, que aponta, ainda, a necessidade de uma intervenção no espaço infanto-juvenil/Ludoteca, que carece de novo equipamento, designadamente de sofás e almofadas, sem esquecer um novo espólio, mais moderno, designadamente em matéria de jogos. Empenhada em “lutar contra a maré”, a biblioteca tem ainda um Es-
paço Internet, inaugurado há 18 anos, com 14 computadores. Um espaço que também já estava obsoleto e que foi remodelado, dando lugar a um mini-espaço internet.
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Casa da Criança 90 anos com Mira
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MIRA INAUGURA CASA DA CRIANÇA 1957 A 25 de Julho de 1957 era inaugurado o projecto com a assinatura de Bissaya Barreto
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stamos, pois, e com razão em festa; festa que se vem juntar à festa do padroeiro de Mira. Não trazemos foguetes, não trazemos música, mas trazemos pão para as crianças com fome, trazemos agasalho para as crianças com frio, trazemos fortuna para as crianças desafortunados». Palavras de Bissaya Barreto, presidente da Junta de Província da Beira Litoral, publicadas dia 26 de Julho de 1957 pelo Diário de Coimbra Com destaque na primeira página, o jornal enaltecia a inauguração desta obra de «assistência infantil». «É menos ruidoso o nosso contributo para a festa de hoje, mas é mais humano, mais de harmonia com as doutrinas de Cristo, de maior consolação para os espíritos bem formados...», adiantava o médico, num longo discurso. «Fazendo felizes as crianças da nossa terra, pois outro não é o lema nem a finalidade deste monumento que é a Casa da Criança, somos felizes também...», sublinhava o presidente da Junta de Província, responsável por este projecto, que criou valências em praticamente todos os concelhos, garantindo apoio à formação das crianças, sobretudo das mais desprotegidas. O responsável procedeu à apresentação do projecto da «Casa das Crianças de Mira», que «até aos 7 anos», ali «encontrarão o que precisam para se desenvolverem, crescerem, educarem e adquirirem preparação para entrarem na escola primária, de modo a ser mais eficiente e proveitosa a sua aprendizagem». Tiradas «ao abandono da rua», «à promiscuidade e convivência com os animais domésticos», «à agressividade de outras crianças maiores», as crianças
Casa da Criança continua a prestar serviço à comunidade
seriam «acarinhadas, alimentadas, lavadas, docemente tratadas» e «convenientemente observadas, dirigidas e orientadas (…) crescem no corpo e na alma». Em simultâneo, esclarecia, «os pais seguem a sua labuta», (…) no campo ou nas oficinas (…), com o espírito tranquilo, sem preocupações aflitivas nem cuidados perturbantes, provocados pela sorte dos filhos – pois estão a coberto de todos os malefícios; alguém deles toma conta com ternura e carinho, sem nada pedir em troca». «A educação nas Casas da Criança é mais sólida, mais rigidamente orientada do que no meio familiar, aventava Bissaya Barreto, apontando «a pieguice dos pais e a idolatria das mães» como factores que contribuem para «atitudes menos próprias» da criança «que se podem enraizar». Defensor de uma formação sólida desde tenra idade, o responsável considerava as Casas da Criança a melhor forma de preparar
os mais novos «para o embate que convulsiona o mundo de hoje», fomentando neles «o espírito criador», de forma a «sentirem a necessidade de fazerem alguma coisa de bem feito, sobretudo para bem da comunidade, servindo a colectividade». ACasa da Criança «representa um grande bem para os homens de amanhã de Mira, que irão iniciar aqui a sua preparação para a vida», disse ainda Bissaya Barreto, que enalteceu a «compreensão e inteligência» do ex-presidente da autarquia, Luís Torreira, que, «num rasgo de bom senso e boa administração», cedeu à Junta de Província o imóvel onde foi instalada a valência. Palavras «coroadas por uma prolongada salva de palmas», escrevia o Diário de Coimbra, que referia as intervenções do presidente da Câmara de Cantanhede e do vice-presidente da Câmara de Mira, um «delicado colaborador na construção da Casa da Criança».
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90 anos com Mira Paços do Concelho
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PAÇOS DO CONCELHO ESPERAM OBRAS 1917 Com 104 anos de vida, o edifício carece de uma intervenção profunda
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anter a traça original», mas «criar as condições para que as pessoas se sintam bem» são as traves mestras que balizam a intervenção a efectuar no edifício dos Paços do Concelho. Em causa está um edifício com 104 anos, que poucas obras de adaptação sofreu e que hoje claramente tem um problema de organização e gestão de espaço, para já não falar nas dificuldades que representa em termos energéticos. «Estamos a trabalhar no projecto», diz o presidente da autarquia, que encara a requalificação e modernização do edifício como «um dos grandes desafios» que se colocam ao executivo «nos próximos anos». O financiamento afigura-se como um problema, uma vez que não se perfilam, de momento, programas de apoio que possam
contemplar uma candidatura desta natureza. Todavia, a necessidade é real. «É um edifício muito desconfortável no Inverno», assume o autarca, apontando o enorme pé direito, que inviabiliza qualquer tentativa de aquecimento e representa uma factura significativa de energia. O objectivo é «preservar a traça original, atesta o autarca, bem como alguns dos elementos icónicos, designadamente os vitrais e os painéis de azulejos que o orna-
mentam, mas conferir-lhe um toque de modernidade e eficiência que está longe de possuir. Raul Almeida reitera, assim, a intenção já expressa em 2017, nas comemorações do centenário dos Paços do Concelho. Na sessão, de acordo com o Diário de Coimbra de 15 de Maio, Manuel Miranda deu a conhecer a história do edifício. Uma obra que arrancou em Fevereiro de 1904, após um temporal nocturno. «Os Paços do Concelho já estavam muito degradados, mas o temporal danificou ainda mais o edifício», explicou. Depois de «um processo longo e demorado, que atravessou cerca de 10 anos, os novos Paços do Concelho começaram a ser construídos a 20 de Junho de 1914». «No dia em que se colocou a primeira pedra do edifício foi feriado municipal e convidados todos os trabalhadores. As chaves do novo edifício seriam entregues a 12 de Maio de 1917», recordou Manuel Miranda.
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Luís Lavrador 90 anos com Mira
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LUÍS LAVRADOR: UM TALENTO NA ARTE DE BEM COZINHAR 1959 Chef, professor e cozinheiro da selecção nacional de futebol é uma referência no mundo da cozinha e na área da formação. A paixão pelo saber levou-o a crescer sempre mais. É o primeiro cozinheiro doutorado do país
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ozinhar é combinar ingredientes, criar sabores únicos e singulares, que permitem proporcionar, mais do que um momento, uma experiência vivencial». Palavras do chef Luís Lavrador, um homem que dedicou toda a sua vida à arte de bem cozinhar, ajudou sucessivas gerações de jovens, orientou projectos, formou pessoas. Um mestre de muitos chefes, que imprimiu a sua marca. Sobretudo, procurou elevar a profissão, conferir-lhe uma nova dignidade, hoje claramente reconhecida. Talento e desafios caminharam lado a lado, condimentando a vida de José Luís Pimentel Lavrador. «Gosto imenso do que faço. Para mim, cozinhar é um prazer, uma forma de passar uma mensagem, de transmitir afectos. O que quero é que as pessoas se sintam felizes com o que faço para elas», afirma. Uma apetência para a cozinha que «não nasceu, foi cultivada», faz questão de esclarecer, recordando o seu percurso e as muitas pessoas que, ao longo deste caminho, lhe foram lançando desafios e às quais manifesta a sua enorme gratidão. «Nunca devemos dizer “não”. Devemos aceitar. Depois, logo vemos se precisamos de ajuda ou se procuramos outro caminho. Mas nunca devemos, à partida, dizer “não”», afirma Luís Lavrador, que assume este princípio como uma base de referência pessoal e igualmente um conselho que dá aos seus alunos. O primeiro desafio feito a Luís Lavrador surgiu há 42 anos. Tinha acabado o liceu e impunha-se uma decisão para o futuro. Um vizinho, de Seixo de Mira, de onde é natural, perguntou-lhe, numa conversa de café, o que pensava fazer. «Entrar para a Universidade, ir para enfermagem» eram
Luís Lavrador é o mestre de um grupo de novos chefs que se tem vindo a afirmar
algumas das hipóteses sobre a mesa. «O futuro vai ser o turismo e a gastronomia», garantiu-lhe o dr. Gabriel da Frada. «Se fosse a ti, tirava um curso nesta área», adiantou, apontando as escolas de Hotelaria do Porto e de Lisboa. «Vou dar-te o telefone e o endereço», disse ainda o vizinho, a primeira pessoa a imprimir uma marca, esta decisiva, no caminho de Luís Lavrador. O passo seguinte foi inscrever-se, em 1980, na Escola de Hotelaria do Porto e dar início à sua formação, num núcleo daquele estabelecimento de ensino que abriu na altura, no antigo Hotel Vidago. «À época era um modelo bastante arrojado e progressista, era uma escola-hotel, aprendíamos em contexto de trabalho», esclarece. O mestre destaca a importância deste curso, numa altura em que a formação na área da cozinha era incipiente. «Aprendi a gostar e a alimentar esse gosto», afirma, fazendo notar que, nesta como em qualquer área profissional, «é importante estudar, estar sempre actualizado, “em cima” do acontecimento, perceber o que a concorrência faz. Não concebo que as pessoas fiquem quietas, paradas. O conhecimento é que move o mundo e cada um, na sua área, deve fazer o máximo que pode»,
considera. Foi isso precisamente que fez. Luís Lavrador, o primeiro chef doutorado, sempre fez questão de aprender e saber mais. «Na minha área, o nível académico era muito baixo e sempre achei que era importante fazer uma promoção das profissões de hotelaria. Foi isso que fiz na minha área, da gastronomia e restauração», afirma. «Investi mais a pensar na profissão, nos meus colegas, do que na valorização pessoal», adianta, pois «quanto mais valorizada for, mais importante a profissão é e mais reconhecidos somos». Mal acabou o curso, Luís Lavrador foi convidado para as funções de formador, na Escola de Vidago. «Não fiquei muito tempo. Era muito jovem e tinha poucos conhecimentos». A opção foi sair, trabalhar no sector privado e ganhar experiência. «Não concebia estar a dar aulas sem ter mais conhecimentos práticos e teóricos», diz, destacando a importância de aprender com a prática, «a tarimba da vida». Mais tarde regressou à escola, como aluno, primeiro e como formador, depois. Do seu percurso profissional, o chef destaca um «trabalho fantástico», que desenvolveu durante três anos, como formador,
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através de «cursos de reciclagem para hotéis». Viajou do Minho ao Algarve, para «ajudar os colegas da cozinha» das mais diversas unidades hoteleiras. Só parou, recorda, porque entretanto nasceu Luís Daniel, o filho mais velho. «Tive de deixar essa vida», refere. Depois de «uma experiência de tirocínio bem colocada, com grande lastro de conhecimento. Conheci a realidade nacional e a gastronomia de todo o país, doAlgarve, Norte, Centro, Trás-os-Montes», recorda. Foi com esse esteio, essa experiência enriquecida que Luís Lavrador chegou a Coimbra. Era o início de uma nova fase da sua vida e de muitos mais desafios. Grande parte deles na Escola de Hotelaria e Turismo, uma casa que sempre foi uma referência no seu percurso de vida.
Fazer a “fusão” entre a prática e a teoria Na primeira conversa formal com o director da Escola de Hotelaria de Coimbra, Luís Lavrador traçava mais um rumo para a sua vida e para a vida da escola. «Coimbra é a cidade do conhecimento, da Universi-
90 anos com Mira Luís Lavrador
dade», destaca, um conceito que, em seu entender, a Escola de Hotelaria deveria assumir. «Vamos tentar ser, na hotelaria da região, o que a Universidade é na sua área de acção», ou seja, «trabalhar no sentido de sermos tão reconhecidos como a Universidade na sua área», disse. Desafio lançado, Luís Lavrador entendeu que tinha que “ir na frente” e «fazer a fusão», como se diz em cozinha, «entre o conhecimento teórico e prático». Mais uma vez o chef contou com um reptum, desta vez lançado, há 14 anos, pela professora Maria JoséAzevedo Santos. «Entrou-me pela escola dentro a dizer: o senhor tem de ir para a Universidade. Acabámos de criar um mestrado que lhe assenta que nem uma luva». Na altura estava matriculado no curso de Sociologia, que trocou pelo mestrado em Alimentação. «Sentia necessidade, era importante, quer pessoalmente, quer para a profissão, quer mesmo em termos de autoridade científica perante os alunos. Uma coisa é o conhecimento empírico e a experiência acumulada, outra coisa é ter isso consolidado e sustentado com um co-
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nhecimento científico. Dá credibilidade e outra robustez ao que dizemos», diz. Tudo isto conjugado por «um gosto enorme por aprender». Luís Lavador continuou seu percurso como docente, na Escola de Hotelaria e Turismo, mas também como aluno. Primeiro de mestrado, depois de doutoramento. Em 2016, quando concluiu a tese de doutoramento, surge em Coimbra a primeira licenciatura em Gastronomia. «Há 30 anos dizia ao director da Escola de Hotelaria que tínhamos que criar um caminho nobre para trilhar», recorda. A resposta estava ali. Era mais um desafio, como docente e como coordenador do curso. Um curso «pioneiro, único no país» e «inovador», faz questão de sublinhar, que resulta de uma colaboração estreita e uma parceria entre várias escolas do Instituto Politécnico de Coimbra, todas com competências diferentes (escolas superiores de Educação,Agrária, de Tecnologias de Saúde e de Tecnologia e Gestão) e a Escola de Hotelaria e Turismo de Coimbra. «Os alunos bebem o melhor de cada escola», garante o chef.
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Luís Lavrador 90 anos com Mira
Descobrir na Bíblia o mundo das caçarolas O chef, que tem um conjunto de trabalhos de investigação efectuados, confessa a sua paixão pela alimentação no mundo antigo. «Sempre tive curiosidade em saber como é que os antigos comiam e bebiam, utensílios que usavam, as roupas. Lia algumas coisas e queria sempre saber mais a fundo». É nessa linha que surge o “Ao Sabor da Bíblia”. «Não há muitos documentos sobre o mundo antigo», excepção feita para alguns textos em latim ou grego. Todavia, «há uma fonte inesgotável», afirma, referindo-se a uma “dica” dada pelas professoras Maria Helena Coelho e Paula Barata Dias – outras duas pessoas importantes que marcaram a sua vida - que lhe indicaram mais um caminho: a Bíblia. «Conhecia a Bíblia como católico, diz, confessando que ficou assustado quando as duas professores lhe disseram que tinha a Bíblia como elemento de consulta. «Assustei-me, até por uma questão de respeito, quando pensei que ia escrutinar a Bíblia à procura de caçarolas e de comida. “vou ser crucificado”, pensei». Mas não foi isso que aconteceu. Pelo contrário, o trabalho teve uma «enorme aceitação». «A Bíblia é um repositório de várias civilizações, desde a egípcia, à Grécia antiga e ao império romano e apresenta um enorme manancial de informação sobre gastronomia», refere. Quanto à investigação, «foi um trabalho enorme, nem sei como o fiz, mas como dizem que o poder do Espírito Santo ilumina todos, talvez me tenha ajudado», adianta. Trabalho cuja primeira fase consistiu em «fazer um levantamento estatístico de todas as referências gastronómicas da Bíblia, indicando o livro e o versículo. «Foi um trabalho brutal. Andei um ano inteiro a palmilhar e a fazer a catalogação geral». Um trabalho pioneiro e exigente. Como sublinha Paula Barata Dias, especialista em textos bíblicos, «ninguém tinha, até à data, tido a paciência necessária para fazer este trabalho». Luís Lavrador destaca a percepção que este inventário permite relativamente às rupturas e à continuidade entre o Novo e o Velho Testamento, bem como o significado do pão, do vinho, do cordeiro. Terminada esta tarefa, um novo desafio surge. Desta vez, recorda, protagonizado por um biblista de renome. José
Ramos, arguente na defesa da tese, vinha a terreiro: «Não deixe isto por aqui. Há muito para descobrir, um trabalho brutal à sua espera», vaticinou. Habituado a aceitar todos os desafios, Luís Lavrador hesitou. «Tinha uma família para sustentar, só podia trabalhar nisto à noite e aos fins-de-semana», recorda. Volvidas duas a três semanas, era Maria Helena Coelho que reforçava o desafio: «Agora tem de fazer o doutoramento. Já tem a alimentação toda caracterizada, agora falta levá-la à mesa. A Bíblia tem muitas refeições, muitos banquetes e não há ninguém como o senhor para tratar essa alimentação sob a forma de banquete». Mais uma vez, Luís Lavrador, disse “sim” e traçou um caminho. «Fui para o turismo, transformei este património enorme da gastronomia bíblica em produção gastronómica para o nosso tempo». Aqui o apoio veio de Fernanda Cravidão, coordenadora do Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Coimbra. A tese foi concluída em 2016 e conferiu ao chef o grau de doutor em Turismo, Lazer e Cultura pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. «Tem uma outra envergadura, saiu-me do corpo e da alma», confessa. Mais uma vez, um trabalho feito pela noite dentro e aos fins-de-semana. Mas «valeu a pena!», conclui.
Mestre fez um trabalho pioneiro com a Bíblia
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Perfil José Luís Pimentel Lavrador nasceu há 62 anos, em Seixo de Mira. Casado com Maria Alice, professora de Português e Inglês, que conhece desde criança e desempenha um papel «muito importante» na sua vida. «É a mãe, a amiga, a companheira de uma vida, sempre com grande cumplicidade», afirma. O casal tem três filhos, Luís Daniel, de 36 anos, o mais velho, está à frente de dois restaurantes - “O Fama, em Aveiro, e “Marina”, na Barra - Mariana e Marta, gémeas, de 29 anos. A Mariana é médica e está a terminar a especialidade em Endocrinologia. A Marta é farmacêutica e está a terminar o doutoramento. «Nunca tive tempo para avançar com um restaurante», confessa o chef, que ajudou muitos empresários neste percurso, mas nunca fez esse caminho. Por isso fala com especial satisfação do facto de o filho ter feito essa opção, juntamente com a esposa. «Estou por detrás e dou o apoio que posso». «É um projecto familiar, com um conceito de cozinha familiar, muito nosso, que representa colocarmos no restaurante o que mais gostamos. As pessoas que lá vão são convidadas a desfrutar a nossa casa». Luís Lavrador não tem mãos a medir, repartido entre a actividade como docente, o trabalho com a selecção, o apoio ao projecto dinamizado pelo filho, sem esquecer um vasto conjunto de solicitações que lhe são feitas e às quais nunca diz “não”. E claro que continua a cozinhar. «Cada vez coisas mais simples». «Posso fazer um leitão, assado, uma chanfana ou uma caldeirada, mas o que mais gosto é cozinhar, combinar ingredientes e criar sabores», remata.
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90 anos com Mira Luís Lavrador
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Menus de excelência para a selecção nacional Luís Lavrador assume estar na recta final da sua colaboração com a selecção nacional de futebol. «É uma paixão!», confessa. O desafio data de 1996. Na altura era presidente da Federação Portuguesa de Futebol Gilberto Madaíl. Um velho conhecido do chef, dos tempos do restaurante Cozinha do Rei, em Aveiro, onde iniciou a sua carreira como cozinheiro. O convite foi feito no sentido de integrar uma equipa que assegurasse o apoio à selecção nas suas viagens. Mais uma vez, habituado a nunca dizer “não”, Luís Lavrador deu início a mais uma jornada, que arrancou com o Campeonato Europeu, disputado em Inglaterra. Pouco depois juntava-se-lhe outro chef de referência, Hélio Loureiro. Uma dupla que se manteve até 2012. O filho, Luís Daniel Lavrador já começou a embarcar neste projecto de acompanhar os craques nacionais. «Na sua vida privada, os atletas fazem a gestão que entendem, ninguém tem nada
a ver com isso», afirma, muito embora saliente que a dimensão profissional que o futebol adquiriu incutiu um conjunto de procedimentos e cuidados, em termos alimentares, de exercício físico e acompanhamento médico. Um verdadeiro “pack” que já faz parte da rotina dos atletas. Na alta competição, a «alimentação acaba por ser um detalhe importante», pensada ao pormenor. Um menu que, antes de chegar à cozinha e às mãos dos chef já passou pelo olhar clínico de outros especialistas e recebeu o seu aval.
Noutros tempos, a logística era mais complicada, uma vez que nalguns países dificilmente se obtinham os ingredientes necessários para realçar os sabores portugueses. Agora tudo isso é muito mais simples. A palavra de ordem é garantir «uma alimentação rica em termos nutritivos, mas que também represente um acto de prazer, bem temperada, para que os atletas comam com satisfação», refere, salientando que a componente «psicológica e afectiva também se alimenta». Ao almoço e ao jantar a sopa é obrigatória, sublinha Luís Lavrador. Segue-se um prato de peixe ou carne, assado ou grelhado, «de confecção ligeira», acompanhado com massa ou arroz e salada. O chef fala com prazer e com orgulho desta outra “família”, que acompanha desde 1996. Os craques habituaram-se aos seus menus e aos seus “mimos” e o chef partilha com eles a amargura das derrotas e, todos juntos, vibram com as vitórias.
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Visconde da Corujeira 90 anos com Mira
VISCONDE DA CORUJEIRA: UM DEFENSOR DE MIRA 1869-1953 Reinaldo Augusto Moreira da Costa e Silva
é recordado como um homem culto e bondoso
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arcou a sociedade do seu tempo e a sua memória ainda hoje se mantém viva. O município faz questão que assim seja e este ano, nas comemoração do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, fez uma homenagem ao Visconde da Corujeira, através da reposição de um busto em bronze, no Jardim Municipal, onde em 2011 foi furtado o elemento escultórico inicial. Reinaldo Augusto Moreira da Costa e Silva nasceu em Mira a 6 de Outubro de 1869, filho de Francisco Moreira da Costa Silva e de Belarmino Toscano Ribeiro Sanches Moreira da Costa Silva. Ao contrário do pai, formado em Direito pela Universidade de Coimbra, Reinaldo Costa e Silva não finalizou os estudos superiores, assumindo a administração dos bens da família. Um extenso rol, onde se incluíam as quintas da Corujeira, do Cercado, da Pocariça, do Cabeço e a quinta e casa de Mira, património que o colocava na «lista dos 40 maiores contribuintes do concelho e Mira». Casado com Maria Evangelina de Pimentel Calisto, teve cinco filhos: Flávia, Aquiles António, Fernando, José Reinaldo e Francisco. O título de visconde da Corujeira foi-lhe concedido pelo rei D. Carlos, em 20 de Setembro de 1890 e publicado no Diário do Governo três dias depois. Em 1908, o visconde assumiu a vice-presidência da Câmara Municipal de Mira. Depois disso e muito embora não desempenhasse qualquer cargo político, “bateu-se”, em 1927, pela res-
Busto colocado no Jardim Municipal
tauração da comarca de Vagos, juntando o seu nome ao do presidente da comissão administrativa, numa missiva remetida ao ministro da Justiça. De notar que a restauração da comarca oferecia uma nuance curiosa, uma vez que a proposta defendia a passagem da sua sede para a vila de Mira. A beleza dos seus possantes cavalos «impressionava toda a região» e as suas quintas eram um ponto de encontro com homens poderosos do reino, «com quem conviveu de perto». Mas as portas dessas herdades também se abriam ao povo. «Albergava e permitia, nas suas quintas ciganos, pobres e todos os que necessitavam», refere nota do município. Em dias da romaria de São Tomé, franqueava essas mesmas portas aos «romeiros e seus animais, para que
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pudessem aceder à fonte e sombras frondosas da sua quinta, em Mira». O «bom trato» e «afecto» dominavam a sua relação com a comunidade local, razão pela qual o visconde da Corujeira se predispunha a pagar do seu bolso a multa aplicada por um cantoneiro a um trabalhador que lhe prestava serviços na quinta. «Deixou na memória colectiva a lembrança de um homem humano (…) mas também digno e fidalgo, reconhecido pelas melhores relações sociais da época». Reinaldo Augusto Moreira da Costa e Silva faleceu a 22 de Julho de 1953, vítima de uma hemorragia cerebral. Tinha 83 anos. A 5 de Julho de 1997, em homenagem à figura emblemática do visconde da Corujeira, foram colocados no município dois bustos em bronze. Um no Jardim do Visconde da Corujeira, em Mira, e outro no centro da localidade da Corujeira, uma obra da autoria do escultor Alves André. Em Outubro de 2011 foi roubado o busto colocado no Jardim Municipal, que outrora foi o jardim particular da residência da família do visconde. À época era uma espécie de jardim exótico, com plantas e animais sobre os quais ainda hoje se contam histórias, designadamente sobre os ossos da baleia, os pombos de rabo de leque, plantas e árvores raras, oriundos da diferentes partes do planeta, desde os trópicos à Zona Boreal, alguns dos quais, mais de um século depois, continuam a existir e a conferir um sentido muito especial ao Jardim Municipal. Uma década depois, «com o objectivo de condignamente perpetuar a memória do ilustre benemérito em terras de Mira», o município empenhou-se na colocação de um novo busto em bronze, da autoria do mesmo artista. Num «justo reconhecimento a uma das figuras de destaque do concelho de Mira dos séculos XIX e XX».