90 Anos com Penacova

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PENACOVA

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Esta revista faz parte integrante da edição de hoje do Diário de Coimbra e não pode ser vendida separadamente

90 ANOS COM



90 anos com Penacova Introdução

Diário de Coimbra

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90 anos com Penacova

É

um «admirável panorama de água, pinho e penedia». A alma do poeta via, assim, Penacova. Arrebatado pelos seus encantos, Vitorino Nemésio elegeu-a como musa inspiradora e chão sagrado, à semelhança do que fez o pintor Martins da Costa. Dois exemplos, entre muitos, das paixões que a “Sintrazinha do Mondego”, para uns, a “Suíça portuguesa”, para outros, despertou. Ontem e hoje. Teresa de Portugal, neta de D. Afonso Henriques, terá sido uma das primeiras. Com a alma e o coração amargurados, encontrou, no meio das serranias, o vale encantado de Lorvão. Conquistou a paz e guindou o Mosteiro, já afamado, a um patamar de referência. Um legado que transpôs as sólidas paredes, se entranhou na comunidade e continua, hoje,vivo. Na confecção dos afamados palitos ou nas doces tentações, uma herança do requinte e da paciência das monjas. O património arquitectónico, esse espera voltar a ter oportunidade de brilhar. Património de uma terra abençoada pela mãe natureza. Abraçada pelo verde das serranias e pelo serpentear dos rios e das

ribeiras. Nos primeiros ergueram-se majestosos moinhos. Nos segundos azenhas. Juntos moeram, durante séculos, os cereais e deram o pão às gentes de Penacova. Dos rios vinha o peixe, para todos, e a lampreia, só para alguns. Mondego que foi caminho de barcas serranas e de negócio e hoje é espaço lúdico e de lazer. Um rio onde existe uma das maiores barragens da região, que produz energia eléctrica e regulariza o caudal do rio, contribuindo para evitar cheias. É a Penacova, a terra que viu nascer António José de Almeida, o único Presidente da Primeira República que cumpriu o seu mandato até ao fim, que o Diário de Coimbra dedica mais esta revista. Um projecto editorial que assinala as nove décadas de publicação do jornal. Aos nossos leitores propomos uma viagem de redescoberta por alguns dos momentos e das memórias mais significativos desta terra e desta gente. Uma viagem curta e que necessariamente peca por omissão. Mas que, gostaríamos, fosse uma “janela” aberta para descobrir os muitos encantos de “Penacova-a-Linda”. 

FICHA TÉCNICA Junho de 2021 Director: Adriano Callé Lucas Directores-adjuntos: Miguel Callé Lucas e João Luís Campos Directora-geral: Teresa Veríssimo Coordenação editorial: Manuela Ventura

Coordenação comercial: Mário Rasteiro Textos: Manuela Ventura Fotos: Ferreira Santos, Figueiredo, Colecção Fundação Bissaya Barreto, Marcela Silva Uchoa, Arquivo e D.R.

Vendas: Luís Ferrão Design gráfico: Pedro Seiça Publicidade: Carla Borges e Rui Semedo Impressão: FIG – Indústrias Gráficas, SA

Tiragem: 10 mil exemplares Agradecimentos: a Paula Silva, chefe de Divisão da Cultura da Câmara Municipal de Penacova


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Opinião 90 anos com Penacova

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“Com olhos de ver” Humberto Oliveira Presidente da Câmara Municipal de Penacova

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o ser desafiado a escrever sobre a minha terra, não resisto a olhar para os últimos anos. Espero não ser fastidioso, mas não resisto a referir algumas intervenções e políticas que, “imodéstia à parte”, julgo terem tido resultados muito positivos, cujas mudanças provocámos e ajudámos a provocar no concelho de Penacova. Começo por destacar a regeneração urbana que levámos a efeito na sede do Concelho. Iniciámos no primeiro mandato a construção do Parque de Estacionamento na Rua da Eirinha, bem como a regeneração do espaço público. Apesar de tantas discussões e polémicas, valerá a pena revisitar algumas fotos existentes desse espaço antes da intervenção e vislumbrar a imagem que, por exemplo, os milhares de turistas que percorrem a N2 levariam de Penacova caso a intervenção em causa não tivesse sido efetuada. É só “olhar” com olhos de ver. Continuámos neste mandato com a requalificação do Parque Municipal “do Ténis”, espaço há muito tempo abandonado. Mais recentemente, com a requalificação do antigo Tribunal para Casa das Artes. Se, infelizmente, não alcançámos financiamento para intervenções em Lorvão e São Pedro de

Alva, como pretendíamos, pelo menos avançámos com operações de reabilitação urbana (ORU) nestas duas vilas, as quais já beneficiaram um conjunto de proprietários de imóveis aí localizados, tal como neste momento o estamos a fazer também no Porto da Raiva e na Foz do Caneiro. Não podemos também deixar de destacar o trabalho desenvolvido no Mosteiro de Lorvão, no Museu do Moinho, na reabilitação das escolas primárias desativadas ou a aquisição da casa onde nasceu António José de Almeida. Destacamos também o Centro de Trail Carlos Sá, o Centro BTT, os cinco Percursos Pedestres de Pequena Rota definidos em todo o Concelho, as Grandes Rotas do Mondego, do Alva, do Bussaco e da Espiritualidade, o Roteiro do Arista, os Caminhos da Batalha do Bussaco ou as nossas praias fluviais com o galardão de Bandeira Azul, entre muitos outros. Se mencionei a importância que atribuímos ao património cultural e natural para a economia local, não quero deixar de destacar a evolução que a nossa economia teve nos últimos dez anos. Ela é bem visível quando analisamos as principais variáveis económicas das nossas empresas. De 2009 a 2019, o volume de negócios cresceu 56%, a rentabilidade 333%, as exportações 254% e os postos de trabalho 17%. Em 2009 tínhamos cinco PME Líder. Em 2019 eram 12. Os números não deixam qualquer dúvida. O mérito é dos empresários de Penacova. A classe política tem como função permitir e criar condições para que as empresas

possam crescer e desenvolver-se. Tenha sido na implementação e futura ampliação dos nossos Parques Empresariais, na organização de eventos de promoção do território, na promoção da gastronomia, nas iniciativas de apoio ao comércio local ou na organização de eventos desportivos e culturais, penso terem sido contributos para a nossa evolução. Se neste texto tivesse apresentado o trabalho que desenvolvemos na educação ou no desporto, na cultura ou no apoio às nossas associações ou freguesias, também nos poderíamos orgulhar do mesmo. Optei, face ao espaço disponível, por dar enfase às políticas de valorização do património natural e cultural de Penacova e do tecido empresarial. Que, na minha perspetiva, são bastante elucidativas do trabalho desenvolvido. E conseguimos fazê-lo mantendo as condições financeiras do Município equilibradas.

As políticas de valorização do património natural e cultural de Penacova e do tecido empresarial (...) são bastante elucidativas do trabalho desenvolvido



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Mosteiro de Lorvão 90 anos com Penacova

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OS TESOUROSI DO MOSTEIROI DE LORVÃOI

Mosteiro de Lorvão é um dos maiores “ex libris” do património construído do concelho de Penacova e da região

Século VI Antecedeu a fundação da nacionalidade e revelou-se um centro de cultura ímpar. Primeiro sob a Ordem de S. Bento, depois, no feminino, com a Ordem de Cister

É

considerado um dos mosteiros mais antigos da Europa. Algumas teorias apontam para a sua fundação em meados do século VI. Outras situam-na depois da reconquista cristã de Coimbra, em 878. São, de resto, desta data os primeiros documentos conhecidos relativos ao Mosteiro de Lorvão, testemunhos da existência de uma comunidade que desempenhou um papel de relevo no repovoamento da região. Os monges fundadores dedicaram o mosteiro a São Mamede e São Pelágio e no século XI foi adoptada a regra de S. Bento. Durante o reinado de D. Afonso Henriques, o Mosteiro de Lorvão, juntamente com o Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, tornou-se num importante centro de produção de manuscritos iluminados do jovem reino. No scriptorium do Lorvão foram produzidos vários documentos e manuscritos de relevo, como o Livro das Aves (1183) e o Livro do Apocalipse (1189), considerados duas raras obras do género da Idade Média portuguesa, que sobreviveram até aos dias de hoje.

No início do século XIII, assiste-se a uma mudança significativa. Aos monges da Ordem de S. Bento sucedem-se as monjas da Ordem de Cister. Uma transformação profunda que «se ficou a dever à vontade de uma mulher, D. Teresa, filha de D. Sancho I», escreve o historiador Nélson Correia Borges, na obra “Doçaria Conventual do Mosteiro de Lorvão”, editada pelo município de Penacova. Casada com Afonso IX de Leão, depois de ter três filhos com o monarca leonês, viu o seu matrimónio ser declarado inválido pelo Papa Celestino III, por serem primos direitos. Com o desgosto, a neta de D. Afonso Henriques decidiu regressar a Portugal e quis viver no Mosteiro de Lorvão, onde fundou o primeiro mosteiro feminino da Ordem de Cister, devotado a Santa Maria. Ali morreu (1250) e está sepultada, juntamente com a irmã, Sancha.As duas infantas foram beatificadas em 1705 e os seus restos mortais repousam em duas urnas de prata, uma das relíquias do tesouro do Mosteiro. Conduzido por D. Teresa, o Mosteiro prosperou a olhos vistos, com a bênção real. Chegou a ter mais de 300 religiosas, fazendo crescer em seu redor uma comunidade atraída pelo trabalho oferecido nas suas vastas propriedades. Ao longo dos séculos seguintes, as sucessivas abadessas, oriundas de famílias da mais alta linhagem da nobreza, dotaram o mosteiro de preciosas

obras de arte, ao mesmo tempo que foram realizando obras de ampliação, que resultaram no enorme complexo hoje existente. «Desde 1205 que os muros de Lorvão abrigaram um sem número de membros das mais nobres e antigas famílias portuguesas», escreve Nelson Correia Borges, sublinhando que não é «de admirar que o mosteiro fosse crescendo em bens e privilégios, concedidos e confirmados por todos os monarcas». Mas, realça, «as monjas de Lorvão foram sempre excelentes administradoras dos bens da comunidade». «A beatificação das Santas Rainhas trouxe a Lorvão grande prestígio, não só no seio da congregação cisterciense, mas igualmente em todo o reino. Os papas concederam várias privilégios e indulgências à sua igreja», refere. Tempos áureos que resultaram em obras de vulto. Nelson Correia Borges refere, a título de exemplo, que «nas primeiras décadas de setecentos, o espaço litúrgico da igreja e coro encontrava-se completamente renovado, esplendoroso e cintilante de ouros, pratas e vidrados azulejares». «No governo de D. Madalena Maria Joana de Vasconcelos Caldeira (1783-1786) gastaram-se em obras, jóias e alfaias 15.232$860 réis e ainda sobraram 10.400$000, que se deram a juros, o que atesta bem o desafogo económico da comunidade». Era verdadeiramente “a corte no Mosteiro”. Foi esta



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Mosteiro de Lorvão 90 anos com Penacova

mesma abadessa que se empenhou na obra do novo órgão, em 1785, que só terminaria 10 anos mais tarde, refere ainda.

O princípio do fim «Mas os dias felizes estavam a terminar», faz notar. «Em 1780, D. Maria I reduz o número de religiosas a 100, dando início a um período de restrições que iria passar pelo encerramento das noviciarias, impedindo as comunidades de se renovarem, e culminaria, em 1843, com a extinção total das ordens religiosas em Portugal». Seguiram-se tempos conturbados, de miséria e fome. «Sem rendas nem privilégios, a miséria bateu à porta do Mosteiro que tão abastado havia sido. As monjas de Lorvão, ricas na mocidade, acabaram velhas, pobres e sozinhas, por vezes sem uma côdea de pão para saciar a fome», diz o historiador. «A 8 de Julho de 1887 falecia a D. Luísa Madalena Tudela de Castilho, a última monja, a última abadessa de Lorvão». Nesse mesmo ano, por decreto, a igreja monástica passou a paroquial. Em 1904, o Estado decide «arrendar as celas do dormitório a particulares», situação que se manteve durante cerca de meio século. Também ali se instalaram pequenas indústrias artesanais de palitos. A antiga zona dos locutórios das monjas foi transformada em Posto dos Correios e em residência paroquial. A chamada Casa dos Padres foi convertida em escola primária e, mais tarde, acolheu a Repartição de Finanças e o Centro de Saúde. O Mosteiro de Lorvão fez parte da primeira lista de monumentos nacionais publicada em Diário do Governo, de acordo com o decreto de 16 de Junho de 1910. Todavia, as urgentes obras de recuperação tardavam, apesar de oportunamente sinalizadas. Só a partir de 1943 a Direcção-Geral de Monumentos Nacionais começou a fazer obras. Uma segunda intervenção estendeu-se até aos anos 60. Nos anos 60 assistiu-se à ultima fase de intervenção. O objectivo, agora, era adaptar o edifício do antigo dormitório a Hospital Psiquiátrico, um projecto do Prof. Bissaya Barreto. Concluída a obra, foi entregue ao Ministério da Saúde e Assistência. O terreno a Sul, com mais de dois hectares, foi aproveitado para a construção de uma Colónia Agrícola Psiquiátrica, destinada a actividades terapêuticas complementares ao Hospital. Ali foram criadas oficinas, estufas, armazéns e outras estruturas de apoio, visando a integração socioprofissional e pessoas com deficiência. O Hospital encerrou em 2012. O espaço vai ser ocupado por uma unidade hoteleira de luxo. 

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Doces divinos e palitos requintados

Palitos em flor utilizados como elemento decorativo na apresentação dos doces

Os tempos áureos do Mosteiro também tiveram reflexos na cozinha. O historiador Nelson Correia Borges destaca o vasto receituário conventual que ali foi criado. Farinha, tinham-na as monjas de sobra, nas muitas terras e moinhos que eram sua pertença. Os mesmo acontecia com os ovos, «provenientes do pagamento de foros e rendas» ou das próprias capoeiras do mosteiro. «Os azeméis adquiriam para as monjas toda a sorte de produtos de que elas necessitavam, desde o trivial peixe ao chá, nunca esquecendo as necessárias amêndoas e o imprescindível açúcar». «Ainventiva das monjas laurbanenses foi inesgotável», sublinha. Os mais conhecidos são, necessariamente, os pastéis de Lorvão e as nevadas, antes denominados “palermos cobertos”. Mas o rol é enorme, incluindo biscoitos, bolos e doces de colher, mas também doces e compotas. Doces que representavam um presente das monjas e que «atingiam toda a gente», no entender do historiador. Um hábito frequente confirmado pela despesa na aquisição de tigelinhas e caixas. «Mas eram principalmente oferecidos aos visitantes e hóspedes ilustres», refere. Nessas situações eram designados por “mimos” ou “colacções”. Entre os contemplados, o historiador aponta os convidados para a trasladação das Santas Rainhas, em 1715, ou a hospedagem de Lord Wellington, em 1810, que «agradeceu

muito à prelada» o “mimo”, como relatava a madre-escrivã. Se a confecção dos doces merecia «o esmero e requinte das monjas», também a «apresentação era igualmente importante e o regalo para o paladar podia também sê-lo para os olhos». E por isso, explica Nelson Correia Borges, que «surgem os delicados palitos de flor e de pestana ou simplesmente os palitos de pá e bico». Os primeiros, os palitos trabalhados, «foram a nota de requinte supremo na apresentação da lauta doçaria, dando à mesa um toque de bom gosto e requinte inigualável». «Aos palitos estaria destinado um futuro de sucesso. Talhados pelas criadas, passaram os muros da clausura para o povo lorvanense, que fez do seu fabrico artesanal um modo de sustento ao longo de muitas décadas», conclui o historiador. Percurso idêntico tiveram as iguarias. Talvez com um grau acrescido de dificuldades. Mas perduram, hoje, mantendo viva a memória do génio criativo das monjas de Lorvão. Tentações às quais é impossível resistir.

A riqueza da doçaria do Mosteiro de Lorvão impulsionou a arte de fazer palitos, como artefacto útil e decorativo


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90 anos com Penacova Órgão de Tubos

ÓRGÃO CENTENÁRIO VOLTA A FAZER-SE OUVIR 2014 O maior órgão histórico de Portugal, construído no século XVIII, volta a tocar no Mosteiro de Lorvão, em Maio de 2014, depois de décadas de silêncio

Órgão apresenta quatro mil tubos

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o dia 3 de Maio de 2014, o Mosteiro de Lorvão vivia um dia histórico. Depois de décadas de silêncio, o famoso órgão de quatro mil tubos volta a fazer-se ouvir. João Vaz, uma referência em Portugal, e Harald Vogel,

organista de renome no Norte daAlemanha, foram os protagonistas de um serão memorável na Igreja do Mosteiro. Para trás ficava uma complicada odisseia. Com efeito, o trabalho de recuperação do Órgão de Tubos começou a ser feito duas décadas antes, por um organeiro de Condeixa. Todavia, diferendos com a tutela ditaram a paragem da recuperação. Seguiu-se mais um “passeio pelo deserto”, com o equipamento disperso durante anos e anos, sem solução. Dinarte Machado acabaria por assumir, em 2012, a sua recuperação. Uma tarefa gigantesca, confessava o mestre, apontando as cerca de um milhão de peças, muitas das quais ainda encaixadas no Mosteiro, outras, dispersas, que foi necessário reunir. Os quatro mil tubos, metade dos quais originais, representam um verdadeiro puzzle que o organeiro ajustou no local certo, de molde a garantirem o som próprio, que há dois séculos caracteriza aquele órgão. «É o maior órgão histórico construído em Portugal no século XVIII», explicava, na véspera do concerto, ao Diário de Coimbra, Dinarte Machado, enquanto testava as teclas e explicava a obra projectada pelo organeiro e escultor Manuel Teixeira de Miranda, pai do escultor Machado de Castro, responsável pelo trabalho escultórico que ornamenta a caixa do

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órgão, e de António Machado e Cerveira que, mais tarde, 14 anos após a morte do pai, decide terminar o trabalho. Em conversa com a jornalista Margarida Alvarinhas, Dinarte Machado explicava que o Órgão de Tubos de Lorvão, datado de 1795, foi sofrendo adaptações e modificações, nomeadamente com a retirada de filas de tubos. «Intervenções que existem para justificar a sua existência e continuação», esclarecia. A última aconteceu, adiantava, em 1954, a mando da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais. «O órgão passou a tocar por mais uma década, para se calar em definitivo». O organeiro destacava, ainda, o facto deste órgão apresentar «duas fachadas, uma virada para o pública e outra para o coro».«É uma situação única em Portugal e muito rara no mundo inteiro», afiançava o mestre, que referia, igualmente, a sua localização física, a meio da igreja conventual, que «uma vezes abria ao público, outras não». Celeste Amaro, então directora regional da Cultura do Centro, destacava a importância deste órgão e a recuperação feita «em tempo recorde». Humberto Oliveira, presidente da Câmara Municipal, salientava o «final de um processo longo que chegou a bom termo», pondo um ponto final numa «preocupação» que marcou gerações. «Agora é preciso dar-lhe utilização», desafiou salientando o papel importante que o município, a Secretaria de Estado da Cultura e a Diocese teriam de assumir nesse desígnio.  Dinarte Machado, o mestre que recuperou o órgão


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Livro do Apocalipse 90 anos com Penacova

LIVRO DO APOCALIPSE CONSIDERADO “MEMÓRIA DO MUNDO” PELA UNESCO 2015 Manuscrito iluminado, datado de 1189, foi retirado do Mosteiro de Lorvão em 1853, por Alexandre Herculano, e guardado na Torre do Tombo

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apontado como uma obra do scriptorium do Mosteiro de Lorvão. Datado de 1189, no início do reinado de D. Sancho I, segundo rei de Portugal, o Apocalipse do Lorvão é um comentário ao Livro do Apocalipse, o último livro do Novo Testamento, que contém as revelações recebidas pelo Apóstolo S. João, o Evangelista, quando se encontrava na ilha de Patmos. A obra é uma cópia de um dos vários códices então existentes no “Commentarium in Apocalypsin” do chamado Beato de Liébana (Cantábria, Espanha), no século VII e insere-se no universo dos chamados Beatos. O escriba do Apocalipse do Lorvão, identificado como Egeas, terá sido, também, o iluminador da obra, que apresenta 66 gravuras. A obra está à guarda do Arquivo Nacional da Torre do Tombo desde 1853, altura em que Alexandre Herculano o recuperou do então já bastante degradado Mosteiro de Lorvão. Seria uma das muitas relíquias pertencentes às monjas da Ordem de Cister que, desde o século XIII eram as senhoras do Mosteiro. O historiador terá dado nota da importância do documento, escrevendo: “Documento de extrema importância para a História do país”, muito embora não tivesse procedido à sua identificação. Identificou, isso sim, a miséria extrema em que viviam as monjas, assoladas pela fome. «Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas numa tumba de pedra e ferro», escreveu, numa carta dirigida a um amigo. «Lorvão é pior do que o caneiro onde se houvessem metido vinte esquifes de catalépticos, selando-se para sempre a laje da entrada. O cataléptico, fechado no seu caixão, ouve, sente, tem a consciência de que foi sepultado vivo. Nas trevas e na imobilidade, o terror, a desesperação, a falta de ar matam-no em breve; a sua agonia é tremenda, mas não é longa. Aqui é outra cousa: aqui, vê-se, por entre

Obra do escriba Egeas apresenta 66 gravuras

as grades de ferro, a luz do céu, a árvore que dá os frutos, a seara que dá o pão, e tudo isto vê-se para se ter mais fome», escrevia. Alexandre Herculano testemunhou a opulência exterior do Mosteiro e o contraste com o interior, a vida miserável das monjas, onde «não há pão, só lágrimas». Uma carta que resultou na atribuição de um subsídio, por parte do Governo, que veio minorar a miséria em que viviam as últimas monjas de Lorvão. O Livro do Apocalipse do Lorvão será um dos 22 que existem em todo o mundo. Uma relíquia que, em Outubro de 2015, foi considerada Memória do Mundo pela UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, que o classifica como um dos «mais belos documentos da civilização medieval oci-

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dental». O scriptorium do Mosteiro de Lorvão produziu várias outras obras, que sobreviveram, entre as quais o Livro das Aves, datado de 1184, também ele uma cópia de um manuscrito estrangeiro, mas comprovadamente executado no Mosteiro do Lorvão. O Apocalipse do Lorvão possui 221 fólios em pergaminho, com as dimensões de 345X245mm. O texto apresenta-se regrado, com 29 linhas a duas colunas. A obra distingue-se pelo uso de uma paleta de cores limitada, onde pontua o negro, o amarelo, o laranja e o vermelho. As ilustrações são românicas com influências bizantinas. O texto é em latim e emprega a escrita gótica da era. A obra foi publicada em 2003 como facsimile, com encadernação a imitar a original e tiragem limitada a 999 exemplares numerados. Uma tarefa assumida pela editora espanhola Patrimonio, de Valência, especializada em edições fac-simile de luxo. Juntamente com a edição fac-simile foi publicado um estudo sobre a obra, da autoria de Peter k. Klein, da Universidade de Tübingen (Alemanha), que tem dedicado grande parte da sua investigação ao estudo dos Beatos. A editora Patrimonio considera o Códice de Manchester o mais sumptuoso de todos, no que diz respeito à riqueza das ilustrações. Sobre o Apocalipse do Lorvão entende que «é o códice mais completo dos manuscritos que pertencem à mais antiga tradição pictórica dos Beatos. Muitas das suas ilustrações constituem o único testemunho que sobreviveu desta original tradição. Utiliza um estilo muito linear e uma grande abstracção, exibindo uma iconografia que se baseia em modelos muito próximos do manuscrito original do Beato», refere. 

Livro do Apocalipse do Lorvão será um dos 22 exemplares que existem no mundo e um dos mais belos documentos da civilização medieval ocidental


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90 anos com Penacova Hospital de Lorvão

AMÉRICO THOMÁS VISITA HOSPITAL COLÓNIA DE LORVÃO

Viriato Namora, Américo Thomás e Bissaya Barreto

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1960 Instalada há menos de meio ano, unidade recebeu a visita do Presidente da República, no âmbito de uma deslocação oficial a Coimbra

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envindo seja nesta casa de Assistência, destinada a receber doentes transviados da vida normal para os fazer voltar a ela, conseguindo a sua readaptação e integração na Sociedade e na Família. Grande é pois, a sua missão: dar Razão a quem a perdeu, chamar à Verdade quem deixou de a conhecer, dar Compreensão a quem não tem…». Palavras de Bissaya Barreto, presidente da Junta Distrital, dirigidas ao Presidente da República, almirante Américo Thomás, na visita inaugural ao Hospital Colónia de Lorvão. Um momento de particular significado, que o Diário de Coimbra destacou na edição de 13 de Maio de 1960, no âmbito de uma visita oficial do chefe de Estado a Coimbra. Sob uma chuva intensa, o programa cumpriu-se, com reiteradas manifestações de regozijo popular. Na Foz do Caneiro, es-


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Hospital de Lorvão 90 anos com Penacova

creve o jornal, aguardava a comitiva presidencial uma verdadeira multidão, que havia decorado a entrada da povoação com «festões de verdura» e um dístico que saudava o Presidente da República. «Mais adiante, em Rebordosa e Chelo, as manifestações repetiram-se». «Em Lorvão, o sr. Presidente da República teve entusiástico acolhimento (...), embora chovesse copiosamente (...) Subiram no ar foguetes, as ruas encontravam-se decoradas a capricho e a banda de música local executou à chegada “A Portuguesa”». «Bem haja, Senhor Presidente pela sua presença aqui e neste momento; bem hajam os Senhores Ministros (...) todas as autoridades (...) e mais pessoas que vieram juntar-se-nos nesta hora festiva, festiva de verdade, porque não há festa mais nobre, direi mesmo mais divina do que procurar dar saúde, dar vida aos que duma e doutra precisam e as não têm», afirmava Bissaya Barreto. O presidente da Junta Distrital destacava o Presidente do Conselho, Oliveira Salazar, como «um grande animador» desta obra, uma vez que, mal surgiu «a ideia do aproveitamento das ruínas do antigo Mosteiro de Lorvão e a sua possível adaptação a casa de doentes mentais de doença prolongada a perfilhou com visível emoção e dela jamais se alheou». «Foi acompanhando com entusiasmo as diferentes fases da construção, foi inquirindo da sua instalação

e equipamento», adiantou. Bissaya Barreto explicava alguns dos contratempos e morosidade da obra, parte dos quais se ficaram a dever às próprias exigências do Presidente do Conselho, que «não quis que as 32 famílias que viviam nas celas do velho Convento, na mais imunda promiscuidade, fossem desalojadas sem estar concluído o Bairro do mesmo número de casas, construído de propósito para as receber». «Lutamos pela instalação de uma Assistência Psiquiátrica no Centro do País há mais de 30 anos», recordava Bissaya Barreto, que sublinhava «a curva ascen-

Diário de Coimbra acompanhou a visita

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dente no agravamento progressivo das psicoses» que atingiam a população portuguesa. «Mesmo sem possuirmos ainda o Censo exacto dos doentes que sofrem de perturbações psíquicas (...) a realidade dos factos impõe já um grande esforço, no sentido de atender, e dentro dos moldes da assistência psiquiátrica, às necessidades imperiosas e urgentes, que a Nação vai apresentando». «Não se pode considerar impossível ou mesmo difícil apetrechar o Centro do País com uma assistência psiquiátrica que nos mantenha ao nível dos países considerados mais adiantados na assistência aos seus doentes mentais, se tomarmos em consideração o número de leitos de que presentemente dispomos: basta executar o projecto do Hospital Sobral Cid e completá-lo com o tantas vezes solicitado pavilhão para loucos difíceis, loucos perversos, loucos criminosos e criminosos loucos. Continuamos a confiar que o senhor Ministro da Justiça não deixará de prestar tão grande serviço a Coimbra», dizia o responsável da Junta Distrital, em jeito de recado. Actualmente, salientava o médico, «as doenças e anomalias mentais são o problema n.º 1 da saúde nos países civilizados» e destacava, igualmente, o «vivo interesse» com que eram acompanhados os problemas «das neuroses e psicoses». Portugal «tem forçosamente de galgar o atraso em que nos encontramos...», desafiava. 

Não é um asilo nem um manicómio «Senhor Presidente, Lorvão não é um asilo psiquiátrico. Lorvão não é um manicómio. Lorvão é uma casa de recuperação pelo trabalho e para o trabalho. (…) Lorvão é o filho mais novo da organização psiquiátrica do nosso país», explicava Bissaya Barreto. O responsável lembrava que a unidade psiquiátrica estava a funcionar há menos de meio ano, mas já permitia sentir «o benefício de Lorvão, a actuar como instrumento que tem a missão de reintegrar e readaptar à sociedade, à família o doente mental, que andava extraviado». Tecendo um quadro geral do funcionamento da Colónia do Lorvão, Bissaya Barreto explicava: «os nossos doentes trabalham nos serviços domésticos da casa, no campo, vivem e convivem com a po-

pulação local, que os acarinha, assistem na igreja da terra aos actos religiosos, à mistura com a outra gente. Tudo isto sob uma vigilância permanente, discreta, sistemática, de pessoal competente». «Vossas Excelências vão ver que Lorvão em nada faz lembrar os velhos asilos. Que Deus haja», garantia. E exemplificava com o facto de não haver fardamentos nem uniformes, com o doente a escolher o seu fato. «Quase não há portas fechadas, mas há ordem e disciplina», fazia notar e referia o trabalho nos campos, nas ainda rudimentares oficinas, mas também os divertimentos, com jogos ao ar livre, música, telefonia, televisão, livros, jornais e revistas «e tudo o mais que lhes podemos dar para distracção e prazer do seu espírito».

«Os nossos doentes não são penitenciários nem se encontram armazenados em regime de acumulação e sobrelotação, como indesejáveis e inúteis que a sociedade arrumasse para aqui, a fim de se libertar de um fardo incómodo; os nossos doentes não vivem na ociosidade, numa vida vegetativa sem fim, nem horizonte: os nossos doentes, Senhor Presidente, fazem ergoterápia, fazem ludoterápia e sentem-se rodeados dum ambiente risonho, florido, de semi-liberdade, que os torna alegres e lhe dá a sensação de perfeita felicidade». Bissaya Barreto terminava de forma taxativa: «Lorvão já era grande, muito grande mesmo, com o Mosteiro hoje é maior, muito maior como Centro de Tratamento e Readaptação de Doentes Mentais». 



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Associação Pró-Defesa do Mosteiro 90 anos com Penacova

GUARDIÕES DO MOSTEIRO 1983 Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão é uma bandeira erguida em nome deste património único

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vitar que o Mosteiro caia no esquecimento» foi a palavra de ordem que levou, em Dezembro de 1983, à criação da Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão. Nelson Correia Borges, historiador e professor da Universidade Coimbra e um dos grandes estudiosos do Mosteiro, foi um dos mentores deste movimento cívico, empenhado em valorizar este património único. «Há imensas coisas que podem ser feitas» para travar o esquecimento e salvaguardar a memória de uma cultura de bem-fazer que foi apanágio do Mosteiro», considera Fábio Nogueira. O arquitecto, que faz parte da direcção da associação, exemplifica com recitais de órgão ou colóquios. «Estamos muito atentos à conservação do edifício e de todo o espólio», afirma, lembrando que é originário do Mosteiro o Livro doApocalipse, considerado “Memória do Mundo” pela UNESCO, em 2015, bem como um conjunto de dinâmicas que foram sendo imprimidas e permitem essa valorização. Fábio Nogueira destaca a integração na Rota dasAbadias Cistercienses e a adesão à Carta Europeia de Abadias e Sítios Cistercienses. A proposta apresentada, em 2017, pelo Mosteiro deAlcobaça, representa a integração do Lorvão numa rota que envolve mais de duas centenas de abadias e mosteiros de vários países da Europa. O responsável da associação afirma que a integração neste roteiro tem efeitos visíveis, particularmente no fluxo de visitantes estrangeiros que demandam o Mosteiro de Lorvão. «Esta rota garante mais visibilidade». Na Rota de Cister, os turistas de origem belga e francesa têm vindo a aumentar. De resto, em termos gerais, o número de visitantes tem crescido. «Todos os anos registamos um crescimento acentuado»,diz. As visitas representam um elemento fundamental na estratégia de promoção e valorização deste património. Visitas asseguradas por três guias, que fazem parte da Penaparque – Empresa Municipal e asseguram uma explicação sobre a história e a vivência dos diferentes espaços, designadamente da nave da igreja, claustros,

Tumúlos das Santas Rainhas

sala do tesouro, sala do capítulo e sacristia, espaços alocados ao culto. O Mosteiro de Lorvão foi uma das casas mais ricas do reino e embora a miséria tenha batido às portas das monjas e uma parte importante das suas relíquias esteja dispersa por vários museus, ainda ali se mantém a memória desses tempos de grandeza. Particular atenção merecem os túmulos de D. Teresa e de D. Sancha, netas de D. Afonso Henriques. Datados de 1715, são revestidos a prata recortada, uma obra do ourives Manuel Carneiro da Silva. Ao lado deste tesouro, está outro. O famoso cadeiral, considerado «o mais espectacular cadeiral português e o mais magistral, sob o ponto de vista técnico». São 102 cadeiras, em madeira de jacarandá e nogueira, esculpidas com figuras de santos e mascarões. Levou cinco anos a construir e sobreviveu a um incêndio onde arderam 11 cadeiras. Outro tesouro são as pinturas, obras de Pascoal Parente, Agostino Masucci e Miguel Paiva, sem esquecer o majestoso órgão do século XVII, a imagem quinhentista de Nossa Senhora da Via, o silhar de azulejos,

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os retábulos de pedra e talha dourada, bem como as mobílias e tapeçarias dos séculos XVII e XVIII. Independentemente de cada uma destas referências singulares, Fábio Nogueira destaca a relevância do todo, de «um edifício com uma longa história». Uma história que merece ser conhecida.

Centro Interpretativo vai avançar A criação de um museu, que permita reunir o vasto espólio do Mosteiro é uma ambição de longa data, partilhado pela Câmara e pela Associação Pró-Defesa do Mosteiro de Lorvão. Fábio Nogueira recorda que nos anos 60 foi feita uma tentativa. Ainda foram feitos alguns móveis expositivos, mas o projecto acabou por parar. No final do século passado, início deste, o assunto voltou a merecer atenção e foram, entretanto, dados passos significativos no sentido de acontecer. Agora já não como Museu, mas como Centro Interpretativo. Um projecto que pretende criar uma relação com o público, dar vida às peças, promover uma visitação simultaneamente agradável e enriquecedora, lúdica e cultural. «O espaço físico está pronto a receber a colecção», explica Fábio Nogueira, referindo-se à requalificação e adaptação dos claustros, um projecto do arquitecto Mendes Ribeiro, que implicou um investimento de 1,7 milhões de euros, concluído em 2014. O responsável da Associação Pró-Defesa do Mosteiro é o autor do projecto de museologia e musealização, que também está pronto. «Estamos à espera que sejam desbloqueados fundos europeus para avançarmos», adianta. Pretende-se que «o visitante fique a saber a história do Mosteiro», uma vez que o edifício, com a monumentalidade que o caracteriza e que assombra quem o visita, está lá, não precisa de explicações.Ahistória sim, precisa de ser conhecida. Significa que vai ser criada uma «linha cronológica, que conta a história do Mosteiro, inserindo, igualmente, as obras de arte». O objectivo, explica, é «perceber o porquê, como o Mosteiro foi tão útil e se perpetuou como casa de cultura, primeiro com os monges beneditinos, depois com as monjas de Cister, numa perspectiva diferente». O projecto de musealização está orçado em 600 mil euros e vai avançar assim que estejam reunidas as condições, em termos de financiamento. 


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90 anos com Penacova Hotel de 5 estrelas

DEZ MILHÕES PARA HOTEL DE 5 ESTRELAS 2021 Empresário madeirense assina, no dia 18 de Março deste ano, o contrato de concessão, ao abrigo do programa Revive. Um acordo válido por 50 anos

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Mosteiro prepara-se para ganhar uma nova vida. Depois de várias demarches sem êxito, seguidas mesmo de uma desistência, no âmbito do programa Revive, o empresário madeirense Sérgio Aleixo apresentou uma proposta vencedora e prepara-se para avançar com a recuperação do velho Mosteiro, transformando-o numa unidade hoteleira de 5 estrelas. Em perspectiva está, assegurou, um investimento a rondar os 10 milhões de euros. Junta-se uma renda anual, com efeitos imediatos, de 37.320 euros a pagar ao Estado. O acordo de concessão prevê que a unidade hoteleira esteja a funcionar em 2024. O projecto, explicou o empresário, está a ser elaborado pela designer Nini de Andrade. O Ceo da Soft Time Unipessoal, Lda., que tem vários projectos turísticos em estudo para o Centro e Norte do país, está apostado em desenvolver um projecto de «turismo temático», «assente no património riquíssimo» existente no Lorvão. Sem entrar em grandes pormenores, SérgioAleixo adiantou que os quartos da unidade hoteleira irão «reflectir a história do Mosteiro ao longo dos tempos». Isto a juntar a espaços exteriores de carácter lúdico. O objectivo é «deixar falar o Lorvão, os seus recantos e segredos, para que volte a fazer história, aqui, entre nós», afirmou na cerimónia, realizada no espaço exterior do Mosteiro no passado dia 18 de Março.

Sérgio Aleixo apresentou projecto

Humberto Oliveira, presidente da Câmara de Penacova, alertava para a responsabilidade acrescida do município, no sentido de «contribuir para viabilizar e facilitar o sucesso do empreendimento com outras acções de valorização». O secretário de Estado do Tesouro, que participou na cerimónia por videoconferência, destacou «a valorização e o novo destaque» que o investimento vai conferir ao Mosteiro e à vila de Lorvão, enquanto a vice-presidente do Turismo de Portugal, Teresa Monteiro, considerou que a concessão deste imóvel e o investimento que o empresário pretende fazer irão ter um impacto positivo na «valorização da região»,

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contribuindo para «reforçar a sua atractividade». Uma cerimónia que ficou, igualmente, marcada pelo protesto do Movimento + Saúde para o Hospital de Lorvão, que mostrava a sua «indignação pela opção» feita pelo Governo relativamente ao futuro do Mosteiro. O Movimento defendia a criação de uma Unidade de Cuidados Continuados, recuperando o histórico de dedicação à saúde, através do Hospital Psiquiátrico, que ali funcionou até 2012. De resto, o Movimento desdobrou-se em diligências e contactos com várias entidades da região e promoveu uma petição, que recolheu mais se sete mil assinaturas, entregue em 2018 à Assembleia da República. No ano seguinte, o Parlamento recomendava ao Governo a criação deste serviço, integrado na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados. Um projecto que, com a concessão, caiu por terra. A Associação Pró-Defesa do Mosteiro espera que, dentro de dois anos, o edifício possa oferecer as condições necessárias para uma nova fruição. Apesar de entender que «todas as utilizações são válidas», Fábio Nogueira, secretário da direcção, considera «uma mais-valia» o facto de esta ser uma utilização mais próxima da sua vocação inicial, de «acolher monges e monjas». Admite mesmo que talvez a utilização do Mosteiro como Hospital Psiquiátrico «não tenha sido a mais indicada», muito embora tenha sido «fruto da época». Pelo contrário, uma unidade hoteleira de 5 estrelas, pode contribuir para «elevar o edifício», ao mesmo tempo que recupera, em parte, «o fim para que foi criado». O responsável lembra, de resto, que o Mosteiro de Lorvão, sob a regência da Ordem de Cister, foi «usado pelas filhas da mais alta nobreza, era um espaço de cultura e de acolhimento». Afigura-se, pois, um quase regresso às origens. 


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Doçaria 90 anos com Penacova

Nuno Esperança é um dos mais afamados doceiros de Lorvão

O MOSTEIRO DE DOCES TENTAÇÕES 1996 Nuno Esperança resolve avançar com um projecto empreendedor. Com 19 anos “meteu as mãos na massa” e começou a produzir e comercializar doces conventuais de Lorvão. Já lá vão 25 anos

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pesar da fama que vinha de longe, os doces conventuais de Lorvão eram ilustres desconhecidos. «Não havia quem confeccionasse, não havia venda assídua do produto», recorda Nuno Esperança, apesar de se «falar muito nos pastéis de Lorvão e nas nevadas de Penacova». Em casa, a mãe fazia, uma vez por outra, pastéis. Uma situação que, por certo, era replicada na casa de muitas famílias. Todavia, em rigor, os doces de Lorvão não existiam no mercado. Foi isso que o jovem Nuno Esperança, então com 19 anos, viu, percebendo que tinha ali uma oportunidade. «Noutros locais já havia uma tradição de produção de doces, mas Lorvão não tinha nada», faz notar, reconhecendo que, na altura, foi «um empreendedor» ao decidir reverter este estado de coisas e avançar com um projecto de produção e comercialização de doces conventuais. Já com algum interesse pelas artes da cozinha, confessa que o facto de a irmã,

Ana Cristina – que trabalha consigo – ter participado num concurso da Teleculinária, promovido pelo chef Silva, em 1989, precisamente com a receita dos pastéis de Lorvão, ajudou a fermentar a ideia. Seguiram-se as pesquisas pessoais e a preciosa ajuda do historiador Nelson Correia Borges, cuja investigação também contemplou o receituário das doces tentações produzidas pelas monjas do Mosteiro de Lorvão. Açúcar, muito açúcar, amêndoa a rodos, ovos e mais ovos, farinha e alguma canela. É este o mundo dos ingredientes onde nascem os afamados doces de Lorvão. «A escolha dos ingredientes é fundamental. Não há volta a dar, se tivermos ingredientes com qualidade, tudo o resto corre bem», sublinha Nuno Esperança. O “resto” – decisivo, diga-se – tem a ver com a dedicação, o engenho e a arte de quem sabe, mas, sobretudo, de quem gosta de fazer bem e se empenha em conseguir que cada bolinho seja um verdadeiro manjar dos deuses. Exigente, o doceiro acompanha passo a passo cada um dos doces e confessa que todos eles, se não for no processo completo, pelo menos em alguma das fases, passam pelas suas mãos. São os segredos de quem faz e que marcam a diferença. Mas igualmente o rigor que Nuno Esperança coloca no seu trabalho, sempre em busca da perfeição. Estes doces, reconhece, «precisam

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de tempo» e de «paciência». Os tradicionais pastéis de Lorvão e as nevadas de Penacova foram, praticamente em simultâneo, os primeiros doces que começou a produzir e a comercializar, já lá vão 25 anos. Situada mesmo em frente ao Mosteiro de Lorvão, a Pastelaria O Mosteiro é um verdadeiro desfile de doces tentações. Aos clássicos pastéis e nevadas juntam-se os queijinhos de Lorvão, os palitos doces, mas também os beijinhos de freira ou a lampreia doce de Lorvão. Esqueça por momentos o colestrol, os diabetes e as demais maleitas que nos afligem e delicie-se com uma destas divinas criações das monjas de Lorvão. Acredite que a experiência vale a pena. A “frescura” dos doces, confeccionados diariamente, representa uma outra garantia de qualidade. «Temos sempre produto fresco», assegura o empresário, que sempre procurou crescer no ofício, aprender mais e mais. Recentemente concluiu a licenciatura em Gastronomia, todavia, sublinha, «o contacto com outros doceiros, a nível nacional, tem-se revelado uma verdadeira escola, permitindo uma «troca de saberes e de experiências que nos ajuda a crescer». Com 25 anos de dedicação exclusiva aos doces conventuais de Lorvão, Nuno Esperança faz um balanço positivo. Apesar de alguns momentos difíceis. «Não me arrependo de ter embarcado nesta barca», afirma. «São 25 doces anos», remata.

Projectos para o futuro 25 anos será, também, o tempo certo para «traçar uma marca, a nível nacional, da doçaria conventual». Um registo que Nuno Esperança considera fundamental para «valorizar este património» e que gostaria de «partilhar com outros doceiros do país». Também entende que, muito embora os seus doces já se encontrem na região Centro, em Lisboa e no Porto, seria importante «melhorar e alargar a rede de distribuição», fazendo os doces de Lorvão chegar a outros pontos do país. «Há passos que têm de se dar», assume o doceiro que, pese embora aponte o carácter «muito delicado» desta doçaria, reconhece que «não perde qualidade». O mundo além fronteiras também é uma realidade e Nuno Esperança já começa a olhar para “fora”. Todavia entende que ainda há uma enorme margem de crescimento “cá dentro”. 


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90 anos com Penacova Palitos em Flor

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TRADIÇÃO DOS PALITOS EM FLOR 1970 Fátima Lopes aprendeu a arte com a mãe, que continuou o trabalho iniciado pelo pai.

De geração em geração transmite-se um saber-fazer ancestral, originário do Mosteiro

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Fátima Lopes explica os segredos desta técnica ancestral

aria de Fátima Conceição Lopes representa a terceira geração dedicada à arte de trabalhar a madeira com a técnica de palitos em flor. Uma herança que tem as suas raízes no Mosteiro de Lorvão, onde esta família foi “beber”a sua aprendizagem. Mas a partir dos palitos em flor nasceram outras ideias, floresceram outras formas. A secular tradição mantém-se viva, mas renovada a cada passo, caminhando lado a lado com a inovação. Natural da Ronqueira, Penacova, Fátima começou bem cedo a trabalhar com a mãe, Palmira Conceição Lopes que, por sua vez, aprendeu a arte com o pai. João Lopes, natural de Ervideira, Poiares, era cesteiro. «Ia para fora, às semanas, para casa de pessoas, onde fazia e arranjava cestos», explica a neta. Todavia, nem sempre


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Palitos em flor 90 anos com Penacova

havia trabalho ou os cestos rendiam. Por isso, João Lopes começou a transferir a técnica dos cestos para outros objectos, inspirando-se nos palitos em flor que algumas mulheres, designadamente umas primas, faziam. Entre as primeiras peças terá estado um talher. Um artefacto que a filha e a neta continuam a produzir. Palmira aprendeu com o pai. Ganhou-lhe o jeito e ficou ali com o seu ganha-pão. Penacova foi sempre um local de eleição para venda dos palitos em flor, no Café Turismo ou no Café Beirão. O casamento encurtou-lhe a distância, fixando-a na Ronqueira. Cresceu na arte, aventurou-se em feiras, há 25 anos, e conquistou o seu lugar. A filha seguiu-lhe o exemplo. «Com 6 anos já fazia palitos de dentes», recorda. Aos 11 fazia palitos em flor e muito mais. «Para me incentivar, a minha mãe dava-me madeira para fazer uma peça mais simples», explica. Foi precisamente uma esferográfica. Depois, foi «experimentando», criando coisas novas, diferentes. Umas de “motu próprio”. Outras em resposta a encomendas, como acontece com os temas dos casamentos, que a levam a criar arados, enxadas, pipas ou dornas. «Adaptamo-nos», sublinha. Sempre pronta a responder a novos desafios, Fátima Lopes confessa que quando as encomendas apertam – «o que é bom sinal, porque significa trabalho» – não há tempo para fazer experiências, mas sempre que é possível, responde positivamente. Pode ser o desafio lançado por um cliente, como aconteceu com o moinho pequeno, em resposta ao pedido de um cliente radicado no Brasil. Ou um mocho, «símbolo da sabedoria», pedido por uma amiga. Um e outro fazem parte do “top” das vendas do atelier, localizado na Rua da Volta, na Ronqueira. Também produz uma gama diversificada de presépios, cestos de flores, uma singular imagem da Rainha Santa, talheres, barcas serranas e, claro, palitos em flor. «Tive que aprender. Não me incentivaram a estudar», recorda. Concluído o 9.º ano, começou a trabalhar com a mãe. Mais tarde, quando casou e teve a filha, Mariana, Fátima assumiu que queria continuar esta arte. A mãe tinha começado a “fazer feiras” e «vendia-se muito bem». O facto de poder trabalhar em casa e tomar conta da filha representou um atractivo, apesar de inconvenientes como «não ter horário, nem subsídio de férias ou de Natal». 

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Arte desenhada a madeira e canivete

Peças produzidas por Fátima Lopes

Com a habilidade conferida por muitos anos de experiência, Fátima vai fazendo os palitos ao mesmo tempo que nos explica os segredos desta tradição. Usa sobretudo madeira de salgueiro, mas também algum choupo, para as bases. A madeira tem os seus segredos. Ajudada pelo marido, apanha o salgueiro, entre Dezembro e Janeiro, «com minguante», ressalva. As árvores que crescem nos seus terrenos, à beira-rio, não chegam para as encomendas, razão pela qual tem de adquirir a terceiros. Segue-se a operação de seca. Sol e vento são fundamentais. Depois de secos, os troncos são guardados no sótão e os rolos cortados à medida das necessidades e dos artefactos a criar. Para trabalhar a madeira Fátima Conceição usa três navalhas diferentes. Duas são para os cortes, uma para os maiores, outra para os intermédios. A terceira navalha, mais fina, com a lâmina já gasta pelo uso, é reservada para fazer as flores. Segue-se a explicação detalhada da manufactura dos palitos. Primeiro, «lavra-se o palito», ou seja, do tronco corta-se um pedaço de madeira e “ajusta-se” ao que se pretende. Fátima conta o seu segredo: convém preparar 50/100 de cada vez, ao invés de concluir um palito de per si. A terceira fase consiste em pegar em cada um destes pedaços e proceder ao seu alisamento. Depois faz-se a flor e, por último, a “cabecinha”, nada mais nada menos

que o local apropriado para manusear o palito, evitando estragar a flor.Aexplicação é simples. O fazer certamente será mais complicado. Nada como experimentar! «O palito é o que se vende menos», confessa. Casas de artesanato, pessoas que utilizam como enfeite – cumprindo a vocação – são os destinatários dos tradicionais palitos em flor. Mas são os moinhos, sobretudo, que “enchem o olho” dos turistas que demandam Penacova. A Câmara Municipal também elegeu os moinhos como um “cartão-de-visita”do concelho. Os presépios respondem, por alturas do Natal. A Rainha Santa juntou-se a Santo António e a S. Pedro, como referências nas feiras de Coimbra. As barcas navegam a bom ritmo e os talheres são uma atracção, que podem ou não ter escritas as referências Penacova, Coimbra ou Lorvão. A pandemia afectou de sobremaneira o negócio. «A última encomenda, digna desse nome, que entreguei à Câmara de Penacova, foi no dia 14 de Março de 2020», diz Fátima. A artesã aguarda, com expectativa a retoma, depois de um período complicado, sem baptizados, casamentos ou feiras. Certo é o trabalho que faz todos os dias e vontade de continuar a criar peças bonitas, novas, diferentes.

Prémios são “um estímulo Fátima Lopes com os seus palitos em flor venceu o concurso regional European Food Gift, na categoria não comestíveis e vai representar a Região de Coimbra no concurso European Food Gift Challenge, promovido pelo Instituto Internacional de Gastronomia, Arte, Cultura e Turismo, a realizar a 22 e 23 de Julho, em Oliveira do Hospital. Satisfeita, a artesã confessa que estes prémios constituem «um reconhecimento do trabalho feito» e «um incentivo». Todavia, prémios não faltam no seu vasto currículo e no da mãe. Especialmente em concursos nas feiras de artesanato. Prémios, diplomas, menções honrosas não têm conta. Mas Fátima tem bem presente um primeiro prémio, ganho em Vila do Conde, há 25 anos: «foram 25 contos», recorda, com satisfação. 


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90 anos com Penacova Palitos de pá e bico

João aprende a fazer palitos. O mestre é o avô, Luís Carvalho da Silva

ARTE CENTENÁRIA DE FAZER PALITOS DE “PÁ E BICO” 2021 A manufactura de palitos continua, agora sem a pressão de ser o “pão nosso de cada dia”. Luís Silva e a irmã, Rosa Maria, mantêm viva a tradição. O neto João inicia-se na arte

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oda a freguesia fazia palitos. Praticamente 99% da população de Lorvão e dos arredores. Homens, mulheres e crianças. Ainda há 40 anos se faziam bastantes palitos». Palavras de Luís Manuel Carvalho da Silva. Com 66 anos, foi taxista em Coimbra e em Lorvão. Agora, reformado, dedica-se ao Grupo Etnográfico e continua a ser exímio na arte de fazer palitos.Airmã, Rosa Maria Laranjeira Silva Félix Baptista, de 60 anos, junta-se-lhe. Ainda está no activo e toda a vida esteve ligada à produção e ao negócio dos palitos. Um e outro aprenderam com a mãe e com a avó… com os vizinhos, pois «toda a gente fazia palitos». Hoje já não é assim. Mas há quem persista... João, neto de Luís Silva, acaba de chegar. Reside em Coimbra, mas aos fins-desemana encontra-se em Lorvão. De poucas falas, sobe à cozinha e vai buscar um banco. Senta-se na garagem, ao lado do avô. Pega na coira, ajeita-a sobre a perna, agarra na navalha e começa a trabalhar. Ainda não faz palitos perfeitos de pá e bico. São “croques”, explica o avô, que olha com ternura

para o neto, que teria uns 4 anos quando começou a aprender a arte. Nada de navalhas. Era mesmo com a faca de cozinha. Com 10 anos, aluno do 5.º ano no Colégio de São Teotónio, em Coimbra, ainda não sabe se quer ser veterinário ou engenheiro agrónomo, mas tem a certeza que quer aprender na perfeição a arte de fazer palitos de pá e bico. É importante «para não deixar morrer a tradição», atesta. Concentra-se no trabalho e remete-se ao silêncio. Apenas cortado pelo protesto face à “pegada” torta que o avô acabava de lhe dar. Rosa Maria trabalha com desenvoltura. Antes, porém, cumpriu o ritual. Sentada num banco baixo, pôs um pano sobre as pernas, seguiu-se o “coiro” (pedaço de couro) e a “coira” (pedaço de couro mais pequeno, que também podia ser feito de chifre de carneiro ou unha de boi). A “coira” é a mesa de trabalho onde se afiam os palitos. Com um cordão, fica presa aos pés. «O serviço do homem é só de uma perna e podia andar todo o dia com a “coira”», explica Luís. A mulher, como usava saias, tinha uma preparação mais complexa.

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Rosa Maria pega nas “rachas”ou “pegadas” e começa a fazer palitos.Aprimeira remessa, depois de se benzer, é “individual”, ou seja, um palito feito de cada vez. Depois, é aos 4, 5, o que o génio artístico do preparador da madeira conseguir fazer. Rosa segura as “rachas” e, com a navalha, afia em direcção ao bico. Uma navalha sagrada. «Nem para cortar um bocado de pão era usada», diz Luís, que agora, como usa menos as navalhas, as guarda em farinha «para não enferrujarem». Quando o palito está suficientemente afiado e tem a grossura pretendida, «vira-se a “racha” ao contrário e faz-se a pá». O palito está pronto e junta-se a outros, na mão de Rosa, antes de ir para a cesta. Por estranho que pareça, não há medida. Ou melhor, a medida está nas mãos e os palitos ficam todos do mesmo tamanho. Mas as mãos dos artesãos do Lorvão também sabem contar, sem se darem ao trabalho de rever, um a um, os palitos acabados de fazer. Já agora, outra curiosidade: «No Lorvão, um par de palitos são quatro». «É o único sítio no mundo onde um par são quatro», afirma, bem-disposto, Luís Silva. «É mais fácil para contar», explica. Um trabalho praticamente só feito pelas mulheres, ao fim de um dia de trabalho. «Em vez de contar de dois em dois, para perfazer os 100, conta-se de quatro em quatro». Ao fim de contar 25, os 100 palitos estão prontos para serem amarrados com uma guita. «A maior parte das vezes nem contava», confessa Rosa. Tinha a contagem nas mãos. «Sabiam “ursar”», esclarece o irmão. E quando se queria tirar a “prova dos 9” e contava os palitos, batia sempre certo: 100. Luís vai preparando as “pegadas” e vai contando como no Lorvão havia sempre gente a trabalhar. «Uns madrugavam, outros sereavam e trabalhavam noite dentro». Nos arredores, havia quem guardasse gado e fosse fazendo palitos. «Era o ganha-pão», sublinha. E também a moeda que circulava em Lorvão. «As pessoas iam à “venda”, levavam palitos e traziam o que precisavam. Era troca directa». “Moeda” que também era usada para comprar a “guita”, ou para pagar ao forneiro, porque, depois de secos ao sol, os troncos de salgueiro ou de choupo tinham de ir ao forno. Além da “venda” (loja), os palitos também eram vendidos a negociantes, que os embalavam e levavam para todo o país e além-fronteiras. «Há 50/60 anos havia mais de 50 negociantes a vender palitos em todo o país», refere. 


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Palitos de pá e bico 90 anos com Penacova

“Industrializar” o fabrico para aumentar produção

Rosa Maria Baptista transforma, com mãos ágeis, as “rachas” em palitos de pá e bico

“Pá e bico”é a grande referência dos palitos de Lorvão. «As máquinas nunca fizeram pá e bico», sublinha. «A pá seria, originariamente, para pegar no palito», explica Rosa Maria, mas também serve para “espatular” os dentes, adianta. Luís lembra os vários tipos de palitos: pá e bico, dois bicos, pá e bico comprido, dois bicos compridos, serrados, croques (grosseiros), curtos de pá e bico ou de relógio. Estes últimos eram uma “especialidade”. «A minha avó fazia», diz, lembrando «um palito muito bem feito, comprido, usados pelos relojoeiros». Quanto aos palitos decorativos, de flor e pestana, «há muito que se deixaram de fazer em Lorvão. Nem me lembro de os ver fazer», adianta Luís Silva. A explicação está no facto de, apesar de ser uma criação artística saída do Mosteiro, «não tinham valor» em termos comerciais e, por isso, não se faziam. Aliás, em Lorvão e S. Mamede, «como se vivia só dos palitos» e era necessário «fazer muitos para se governarem», o génio criativo das suas populações “industrializou”o palito. Não, não estamos a falar de máquinas. Antes e sim de, ao invés de produzir um a um de cada vez, como acontece nas localidade em que é um complemento ao orçamento familiar, aqui aguçou-se o engenho

para fazer uma mão cheia de cada vez. Luís fala à medida que “racha o pau”. «É mais difícil que fazer o palito», garante. «Tínhamos que pedir aos mais velhos», diz, recordando que havia «mulheres, sobretudo solteiras e viúvas, que andavam aos meios-dias a “rachar o pau”em diversas casas». A dificuldade na aprendizagem está no facto de se estragar madeira. «Era uma preciosidade, como o ouro», daí serem poucos os que tinham a possibilidade de aprender. Luís aprendeu com a mãe. Pega na foice do pau (sem bico) e começa a abrir um pedaço de choupo. O rolo fica dividido em quatro “catanas”. Da “catana” saem três pedaços: o miolo, o entrecosto e a côdea. No salgueiro, como é mais fino, o processo é mais simples. O rolo abre-se ao meio e ficam as “ametades” ou “nacas”, se forem mais grossas. As ametades voltam a abrir-se ao meio. A foice é substituída pela navalha de cortar pau, à medida que o processo avança. É a arte de rachar o pau, fazer as “pegadas” ou “rachas”. São quatro, cinco – os mais hábeis conseguem fazer mais – pedaços finos de madeira – praticamente iguais em tamanho, que depois, com a navalha dos palitos ,são “afinados” e afiados. Quando a “pegada”só tem um elemento, chama-se “coto”. E é com um “coto”

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que o paliteiro deve começar sempre a sua jornada. «Havia pessoas a quem os palitos nasciam nas mãos», conta Luís Silva, elogiando a mestria de alguns artesãos. Eram os artistas. Do lado oposto estavam os “espicuçeiros”, sem agilidade, que faziam palitos mal feitos, chamados “estroça”.

Tarefas divididas «Não se vê isto em mais sítio algum», garante Luís Silva, apontando o facto de em Lorvão «a mulher nunca trabalhar na agricultura». Isso só acontecia nos arredores. Ali reinava o manufactura do palito. «Qualquer mulher que não soubesse fazer palitos estava tramada, era considerada preguiçosa e nunca casava».Aaprendizagem, sublinham, tem de se fazer em criança. «Depois de adulto já não se aprende». Aos homens competia a tarefa de cortar e preparar a madeira. «Iam até Santarém», refere Rosa Maria. Os negociantes «levavam dois/três homens e andavam dois, três meses a comprar madeira nas herdades. Depois era encaminhada, em vagões, para Souselas e chegava ao Lorvão em carros de bois. Para Souselas, explica Luís Silva, iam também, a partir de Lorvão, os homens com duas caixas (de madeira), cheias de palitos para expedir. No regresso «traziam cartonagem», destinada a fazer as embalagens «Chegámos a ter aqui três tipografias», afirma. «O choupo, quando é bom, dá mais rendimento», afirma Luís Silva. «Mas o salgueiro é mais bonito, a madeira é mais brilhante, ficam uns palitos mais bonitos», acrescenta a irmã, que alerta para o «sabor doce» desta madeira, a grande diferença relativamente aos palitos importados da China. «Sente-se logo», afiança. Depois de “rachar o pau”, Luís junta-se à irmã a fazer palitos. Peça no “coiro” e coloca-o sobre a perna. Segue-se a “coira”, que amarra com uma fita. Afia na navalha, usada por uma tia da avó, uma obra de Xico Maluco, um expert em fazer as preciosas navalhas. Benze-se e agarra num “coto”. «Começa-se sempre por um “coto”, uma “pegada” com um só "membro", o que obriga a fazer os palitos um a um. O seu número vai crescendo na cesta e as raspas aumentam no chão, sobre as serapilheiras onde trabalham os dois artistas e o jovem aprendiz. Chega a hora de contar os palitos e, por hoje, termina a jornada. 



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Palitos Campeões 90 anos com Penacova

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António Simões tem à sua guarda as máquinas de embalamento individual, que produzem, em média, 600 mil palitos por semana

DO NEGÓCIO DOS PALITOS À APOSTA EM PRODUTOS DESCARTÁVEIS 1969 Empresário começou por adquirir palitos e proceder à sua distribuição. Depois avançou para a produção. Mas há muito que os “Palitos Campeões” deixaram se ser fabricados no Lorvão. Novos produtos emergiram, ganhando peso na estrutura da A.J. Simões

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ntónio de Jesus Simões, funcionário do Hospital de Lorvão, decide tirar um mês de férias para vender palitos. Foi o primeiro passo, decisivo, para o surgimento de uma empresa pioneira e uma marca que fez história: Palitos Campeões. Hoje continua a haver palitos, mas o core business da empresa está centrado noutros produtos. E uma nova marca ombreia com a primeira, criada nos anos 80. “Liró”, uma homenagem a Elisete Rodrigues, a matriarca da família. «Ganhei mais dinheiro», afirma António Simões, recordando essa «experiência», como lhe chama, que o levou a adquirir os palitos a um conjunto de senhoras de Lorvão, que ocupavam o seu tempo, sobretudo ao serão, a fazer os artesanais palitos. Um complemento importante para o equilíbrio do orçamento familiar. «Comecei em Trás-os-Montes», conta, justificando a escolha com os seus parcos «conhecimentos comerciais» e o facto de «as pessoas serem mais pacatas» naquela zona. Mas depressa António Simões percorria o país de lés a lés e virava definitiva-

mente costas ao Hospital. Em 1969, com 24 anos, criava a sua primeira empresa em nome individual e levava a todo o território nacional palitos feitos em Lorvão. A moto era o transporte utilizado na distribuição. Ou melhor, na entrega das encomendas. Por detrás deste “front office” de duas rodas existia um complexo e eficaz trabalho de bastidores, feito a partir de casa, em Lorvão. Era a esposa, Maria Elisete, Lili como lhe chamam, que comandava as operações. «Com duas funcionárias, embalava e despachava as encomendas por caminho-de-ferro», conta o empresário. A camioneta da Central passava por Lorvão, recolhia as embalagens e entregava-as, em Coimbra, na estação do caminho-de-ferro. Seguiam viagem, de comboio, rumo aos diferentes destinos. António Simões levantava as encomendas e procedia, com a sua motorizada, à distribuição junto dos clientes, que tanto podiam ser restaurantes como armazéns de distribuição. Só em 1971 comprou o primeiro carro. Com a empresa a crescer a bom ritmo, o empresário resolve dar mais um salto. Es-

távamos no início da década e 80 e o seu espírito empreendedor levou-o a “descobrir” uma máquina de fazer palitos, numa empresa ligada à indústria da madeira. Com um grupo de sócios avança para a constituição de uma empresa e lança-se no fabrico de palitos. Um experiência que não correu de feição e, em menos de um ano, António Simões resolve estabelecer-se sozinho. Nasce, assim, em 1982, nos anexos da residência da família, a Palitos Campeões – A.J. Simões, Lda. Num piso estava a produção, no outro o embalamento. Um salto quantitativo e qualitativo no fabrico de palitos. António Simões recorda o fabrico artesanal, de “pá e bico”, com os palitos espalmados de um lado e afiados do outro e a primeira máquina, que produzia palitos de dois bicos. «Já não era redondo, mas triangular, com três faces». «Todas as semanas íamos cortar choupo», recorda, explicando que o salgueiro era a madeira tradicionalmente usada, mas não aquela que mais se adequava à produção industrial. Os investimentos vão crescendo, com uma nova máquina, de palitos redondos, de dois bicos.


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90 anos com Penacova Palitos Campeões

«Foi um investimento muito grande», recorda. Máquinas que ainda mantém. «Ferro velho», diz. O filho, Renato, espera que possam integrar um núcleo museológico que preserve a tradição paliteira de Lorvão. À produção e embalamento juntava-se, necessariamente, a cadeia de clientes que, em todo o país, António Simões tinha fidelizado. Como conseguia?, questionamos. «Era o primeiro a acordar e o último a deitar-se. Chegava a deitar-me à uma e a levantar-me às 3 ou 4 da manhã», recorda. «Cheguei e ir ao Algarve e vir no mesmo dia». Isto num tempo em que uma viagem a Lisboa demorava seis a oito horas e mais do dobro para o Algarve. «Não era brincadeira!», diz. «Não me lembro, em miúdo, de ver o meu pai em casa», faz notar Renato, o mais novo dos cinco filhos do casal. Foi o filho mais velho, Óscar, que começou a dar uma preciosa ajuda ao pai. Renato seguiu-lhe o exemplo, mal saiu da escola. «Com 19 anos já corria o país todo», recorda. «Felizmente, contei sempre com o apoio dos meus filhos, que fizeram crescer a empresa», seguramente «80% em relação ao que era». De resto, desde 2015 que Óscar e Renato possuem, cada um, 20% da empresa, com o casal a manter a posse de 60%.

meçámos a introduzir produtos relacionados com descartáveis de plástico, designadamente palhinhas para sumos e refrigerantes». Seguiu-se «tudo o que é louça descartável», desde copos de café ou de água, soluções “take away”. Um negócio que cresceu de vento em popa. Surgia um produto e o cliente pedia logo outro. «Os clientes ditaram o progresso da empresa, ajudaram-nos bastante no crescimento, deram-nos abertura para pensar mais e mais além». AA.J.Simões adquiria praticamente 100% dos produtos a uma empresa de Santo Tirso e começou a fazer uma aposta no retalho. «Procurámos clientes antigos, que não tinham esta linha» e novos mercados. «Toda a gente quer trabalhar com o Pingo Doce ou com o Continente, mas já não quer trabalhar com quem tem dois supermercados ou meia dúzia de armazéns», refere o empresário. Foi este o nicho de mercado onde entrou aA.J.Simões. Os resultados não se fizeram esperar, com um grande crescimento. «Tivemos sorte, mas procurámos a sorte», diz Renato Simões, recordando o esforço enorme, em contactos por todo o país, para procurar e criar mercado. Crescimento que, de resto, tem sido uma constante. «Não me lembro de um ano em

Novos produtos diferenciadores Os palitos representavam o foco central da empresa, mas não “enchiam as medidas” de António Simões. «Sempre teve um complemento», explica o filho mais novo. Tudo artigos de madeira e de uso culinário. Desde colheres de pau a almofariz, tábuas de cozinha. «Quando cheguei à empresa, uma das minhas preocupações foi introduzir mais alguns produtos diferenciadores», adianta Renato Simões. O tempo, mas sobretudo o mercado, deram-lhe razão. Renato Simões juntou às utilidades de madeira um diversificado portefólio.«Co-

Renato Simões herdou o espírito do pai

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que não tivéssemos aumentado o volume de negócios, por pouco que fosse», diz Renato. Mesmo na crise de 2010/11, quando ao nível dos palitos, a empresa perdeu um grande número de clientes, por insolvência. «Grupo inteiros deixaram de existir. Ficámos praticamente sem carteira de clientes, além de todo o dinheiro que não recebemos». «Isto veio dar um grande input aos plásticos», refere. Os palitos continuavam, mas a empresa já não era a mesma. «Já mexia com muita coisa», sublinha Renato Simões. E se no início representavam a fatia mais gorda do volume de negócios, o tempo ditou uma mudança significativa. Por isso, os Palitos Campeões deixaram, em 2015, de integrar o nome da empresa,A.J. Simões, e passaram a figurar como marca. Antes porém, ainda na década de 90, a produção acaba. «Só não foi mais cedo porque o meu pai nunca quis despedir ninguém», diz Renato. Por isso, à medida que algum trabalhador saía, a produção, paulatinamente, foi sendo abandonada. Foi uma viragem decisiva. «Na altura, já entravam produtos importados no país. Era uma questão de timing. Ou importávamos e tínhamos uma janela para o futuro ou acabávamos», adianta o filho mais novo, que herdou do pai o mesmo espírito empreendedor, de horizontes largos, de visão mais além. «O que era importado tinha um custo diminuto em relação ao que era aqui produzido. Talvez pela mão-de-obra, não tanto pela tecnologia», aventa. Com toda a certeza «pela metodologia e pela escala» usada na China. Mais, Renato Simões percebeu que em Espanha já começava a haver “mexidas” e um “piscar-de-olhos” ao sector. A decisão da empresa foi avançar com a importação e proceder ao embalamento, personalizado, para cada cliente, e colocar os palitos no mercado. Ainda hoje é assim. 


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Palitos Campeões 90 anos com Penacova

Mudar de rota a meio da viagem

Em várias situações as máquinas de embalar não são solução e o trabalho é feito manualmente

A navegar em velocidade cruzeiro, a A.J.Simões vê-se confrontada, em 2018, com a declaração de “guerra” ao plástico. A resposta foi mudar a rota: «arranjar soluções alternativas para a produção». Soluções que, sublinha, tiveram de vir todas do Oriente, particularmente da China. Renato Simões critica a forma como a União Europeia avançou com as normas relativamente ao plástico, sem criar alternativas. Ao contrário, a China já produzia uma vasta gama de produtos em papel, bambu, PLA (polímetro de base orgânica), restos de cana-de-açúcar, exemplifica. A solução foi mesmo “investir” em produtos “made in China”. O pai tinha, em 2004, viajado para a China. Em 2019 foi Renato quem foi fazer negócio e criar plataformas de abastecimento. É ele quem define o design, personaliza o produto, uma tarefa para a qual, além do jeito natural, a licenciatura em Arte e Design deu uma ajuda importante. Na empresa de Lorvão recebem-se as encomendas, procede-se ao respectivo embalamento e entrega-se ao cliente. Podem ser talheres de PLA, pratos de papel e copos de diferentes tamanhos, taças, soluções para take-away. Vindas da China, da mesma forma como, desde os anos 90, acontece com os palitos. Agora os motivos são de “força ainda maior”. Além do preço, há falta de resposta do mercado.Até na China estão a surgir dificuldades, designadamente matérias-primas mais caras e falta de contentores para transporte. Toda esta nova gama de produtos “alternativos” tem uma marca, Liró. Uma homenagem à mãe. Maria Elizete Rodrigues. «A empresa sempre andou à roda do nome do meu pai, com a minha mãe sempre na sombra. É um momento de viragem», esclarece Renato. O pai concorda.

Os Palitos Campeões continuam, sempre, na linha da frente.

Crescimento impõe novas soluções A empresa mudou, em Julho de 2006, instalando-se num espaço construído de raíz. Só no edifício, o investimento rondou os 350 mil euros. «Era uma necessidade extrema, as instalações já não tinham capacidade de resposta», diz Renato Simões. Uma mudança que «nos abriu a mente, criou horizontes. Permitiu não termos receio de não ter um espaço físico para stock’s, de apresentar a casa aos clientes e melhorar o sistema de segurança e higiene. Ficámos mais capazes». Espaço que deu amplas possibilidade ao florescimento do negócio dos produtos descartáveis. Actualmente, tendo em conta o volume de crescimento – facturou 1,5 milhões no ano transacto - o espaço começa a escassear.As primeiras instalações foram transformadas em armazém e a empresa já tem um pavilhão de retaguarda em Poiares. A necessidade de criar stocks, uma vez que a importação é de contentores, leva Renato Simões a ponderar a criação de uma estrutura de logística.Apossibilidade de aumentar a capacidade das instalações ou criar outras está sobre a mesa. E certamente vai avançar se «continuarmos a ter crescimento», com impacto na contratação de mais pessoas e aquisição de mais equipamento. O empresário não esconde, também, o desejo de, num futuro próximo, «criar uma linha de produção». A empresa tem 17 trabalhadores. Tirando os sócios gerentes, são todas senhoras, entre elas há mães e filhas. Um «espírito de família» que se mantém e pretende tenha continuidade. 

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Empreendedor nato O espírito empreendedor de António Jesus Simões, actualmente com 78 anos, fez história na indústria da produção de palitos. Orgulhoso, o filho lembra que foi ele que lançou no mercado o primeiro paliteiro em plástico, com um furo para a saída do palito. «Comprei os moldes na Marinha Grande», explica, recordando que essa inovação aconteceu logo no início, quando procedeu à aquisição da máquina de fazer palitos redondos. Até então os paliteiros eram todos em caixas de cartão, rectangulares ou triangulares. Uma solução pouco prática e, sobretudo, nada higiénica, no entender do empresário. Sobretudo quando se tinha de abrir a caixa para retirar um exemplar. O paliteiro cilíndrico, com um buraquinho que permitia a saída de um palito de cada vez, fez furor. A ideia pegou e a partir de então praticamente desapareceram os paliteiros de cartão. Foi também a A.J. Simões que avançou, mais tarde, com a criação de uma caixa redonda, uma embalagem rígida, em polietileno, inspirada nas caixas dos cotonetes, para embalar palitos individualizados em invólucros de papel. Até então eram embalados em caixas de cartão ou em simples sacos de plástico. «Estivemos sempre na vanguarda da classe de embalagens», frisa António Simões. Também foi António Simões quem lançou no mercado o primeiro suporte de madeira para os rolos de cozinha. Satisfeito, recorda que foram muitas e muitas paletes que entregou a uma das mais reconhecidas marcas, ainda hoje no mercado. 


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90 anos com Penacova Bombeiros

BOMBEIROS: UMA ESCOLA DE BEM SERVIR 1930 A 24 de Fevereiro de 1930 nascia a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Penacova. Uma das corporações com maior capacidade de resposta do distrito

Bombeiros de Penacova têm uma das mais multifacetadas capacidades de resposta

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emos as valências necessárias para responder às necessidades». As palavras são deAntónio Simões, comandante dos Bombeiros Voluntários de Penacova. Com um saber de experiências feito, ligado aos bombeiros desde 1985, primeiro como elemento da direcção e segundo comandante, depois ao comando desta casa, António Simões destaca o crescimento progressivo dos bombeiros e, sobretudo, a sua adaptação às novas realidades e desafios. Foi isso que, explica, ditou a criação de duas valências especialmente importantes, designadamente a equipa de salvamento e resgate e a de intervenção em meio aquático, tendo em conta a orografia do território, «com escarpas muito acentuadas» e o facto de o concelho ser atravessados por dois rios, possuir duas barragens e ter uma grande aptidão para os desportos náuticos. «Também nos adaptámos ao IP3», diz e recorda a altura em que esta via entrou em funcionamento. «Era uma calamidade, uma estrada de morte». «Também nos adaptámos, com o pessoal a receber formação de desencarceramento». Por isso mesmo, a corporação possui dois veículos de desen-

carceramento, um dos quais «especial, com equipamento pesado, único no distrito». O comandante lembra que a grande fatia da intervenção se centra na área da saúde. Os Bombeiros de Penacova são “posto INEM”, o que significa que têm uma ambulância de socorro desta entidade, à qual juntam mais cinco. «São seis ambulâncias de socorro», destaca, que cumprem uma média de «12 emergências pré-hospitalares por dia». «É preciso ter meios para dar resposta», sublinha. Em termos materiais e humanos. E existem, efectivamente. Durante o dia, as respostas são asseguradas pelas equipas profissionais, com um total de 21 elementos. À noite, são os elementos voluntários que assumem todas as respostas. No total são 118 voluntários. Uma família onde as mulheres têm vindo a ganhar terreno, actualmente são 33. O comandante faz, ainda, questão de referir o aumento significativo das qualificações dos bombeiros. «Muitos jovens e uma boa parte licenciados», muitos dos quais na área da saúde, o que representa uma mais-valia para a corporação, mas também, e sobretudo, para a qualidade dos serviços prestados à população

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Grande incêndios ditou criação dos bombeiros Um incêndio de grandes dimensões terá motivado um grupo de penacovenses a mobilizar-se para a constituição de uma Associação de Bombeiros.Aescritura pública foi lavrada no dia 24 de Fevereiro de 1930, ano de fundação do Diário de Coimbra. Depois de algum tempo de maturação, com poucos meios, humanos e materiais, a corporação começa a cumprir o seu percurso. O primeiro quartel foi instalado numa casa emprestada. «Mudámos depois para uma casa doada, na Avenida Abel Rodrigues da Costa, que ainda hoje pertence aos bombeiros», recorda o comandante. Em 1997, assistiu-se à transferência para o actual quartel, construído de raíz, que tem vindo a sofrer obras de remodelação e adaptação. «Tem o essencial», refereAntónio Simões, embora reconheça «falta de espaço para instalações de treino». O comandante alerta para a necessidade de reflectir sobre o futuro do modelo organizacional. «Os bombeiros precisam de uma reorganização, no sentido da profissionalização», defende. «O voluntariado tem as suas virtudes», afirma. «É uma escola de vida e de cidadania, mas tem de ser complementado, não pode ser a base do sistema de socorro». Escolinha e Fanfarra são ex-libris da corporação Criada há seis anos, em termos oficiais, a Escolinha de Bombeiros já antes existia no seio dos Bombeiros de Penacova, alimentando o sentido cívico e o serviço de voluntariado desde tenra idade. Neste momento integram a Escolinha três dezenas de crianças e jovens, que aqui se vão entrosando na vivência e nos valores dos bombeiros. Uma estrutura que, além de uma formação base que garante em termos de socorro, representa uma aposta no futuro do voluntariado. Criada em 1988, a Fanfarra dos Bombeiros é outra das valências da corporação de Penacova. Chegou a estar parada, mas regressou ao activo em 1995. São 28 músicos, «a maior parte dos quais são bombeiros», diz António Simões. Uma presença obrigatória em todos os eventos promovidos pela Associação Humanitária. «Estamos tão habituados, que já não conseguimos fazer uma formatura sem a Fanfarra», brinca o comandante.


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Misericórdia 90 anos com Penacova

Na Quinta de Santo António concentram-se as respostas para crianças e seniores

MISERICÓRDIA ADAPTA-SE AOS NOVOS DESAFIOS 1974 Encerramento do Hospital criou um vazio, mas a Irmandade abraçou novos projectos e iniciou uma nova era, mantendo a matriz social

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urante mais de quatro décadas foi a saúde que concentrou as atenções da Santa Casa da Misericórdia de Penacova. Uma instituição que teve o seu primeiro alvará em 1902, mas que foi, efectivamente, em 1928, com a fundação do Hospital de Penacova, que foi criada a respectiva Irmandade. Tratava-se, refere o provedor, António José Rodrigues Amaral, de dar resposta a um território carente, «com pouca oferta de emprego», com muitas famílias «com dificuldades» e com problemas de resposta em termos de saúde. Com o apoio de alguns beneméritos, entre os quais se destaca Abel Rodrigues da Costa, que fez fortuna no Brasil, e com fundos da Irmandade, o Hospital foi construído, entrando ao serviço em 1928. Uma tarefa que cumpriu até à sua nacionalização, após Abril de 1974. «O Estado apoderou-se do Hospital», recorda o provedor, que sublinha o facto de, durante muitos anos, nem renda pagar pelo espaço, onde foi instalado o Centro de Saúde. Valência que, em 1998, se mudou para as novas instala-

ções, deixando o velho hospital devoluto. Desapossada do Hospital, a Misericórdia ficou de “mãos vazias”, mas «não podia ficar parada», refere António Amaral. Assiste-se, pois, a uma viragem na orientação, com o foco a centrar-se no apoio social. Surge, assim, na Quinta de Santo António, o lar de idosos, inaugurado a 28 de Dezembro de 1987, com 30 utentes. Imediatamente a seguir, entra em funcionamento o centro de dia – resposta que «nunca teve muita adesão», refere Paula Fonseca, coordenadora da Misericórdia - e o serviço de apoio domiciliário. Respostas que se mantêm, mas cresceram, na sequência da construção de um novo edifício. Assim, a estrutura residencial tem capacidade para 50 utentes, o centro de dia para 20 e o serviço de apoio domiciliário 12. Em 2003, a Misericórdia abraça um projecto ligado à infância, no quadro de um problema com os proprietários de uma unidade com creche, jardim-de-infância e ATL. «A Câmara teve conhecimento do possível encerramento e solicitou a compreensão da Misericórdia», refere o provedor, que recorda as negociações com os proprietários e com a Segurança Social. «Daí nasceram mais três valências para a Misericórdia». Todavia, o Estado acabaria, mais tarde, por criar uma oferta de ATL e de jardim-de-infância, levando a Santa Casa a

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encerrar estas valências. Ficou a creche, que transita para o novo edifício, construído em 2006 na Quinta de Santo António, com o apoio do programa PARES, com capacidade para 30 crianças. O berçário acolhe oito bebés e as salas do 1 aos 2 anos e dos 2 aos 3 têm, respectivamente, capacidade para 10 e 12 crianças. Além dos seniores e das crianças, a «preocupação com a comunidade» sempre constituiu uma pedra de toque da instituição, refere Paula Fonseca, destacando os vários projectos , designadamente a Cantina Social, criada em 2012, que arrancou com um número significativo de refeições e actualmente apoia diariamente 11 famílias. No âmbito do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Carenciadas, que arrancou em 2017, em parceria com as misericórdias deArganil e Poiares, são apoiadas 109 famílias. «Começámos com 50, com a pandemia o número cresceu», diz. A coordenadora destaca a envolvência deste programa, que fornece géneros alimentares, desde frescos, peixe, carne, a produtos de longa duração, mas também envolve acções de formação para uma melhor gestão da economia doméstica. Ainda em termos de apoio alimentar, dá apoio mensal a 40 famílias, através de donativos do Banco Alimentar. A Misericórdia garante, desde 2018, o fornecimento de refeições escolares, um serviço contratualizado com o município. «São, em média 175 refeições por dia», esclarece. Também em termos escolares, assegura, desde 2017, o transporte de crianças com mobilidade reduzida. Importante em termos de apoio à comunidade foi o programa RLIS – Rede Local de Intervenção Social, que durante três anos, explica Paula Fonseca, permitiu criar «uma grande proximidade com as pessoas», com um «atendimento descentralizado», que identificou situações de

António Amaral e Paula Fonseca


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maior carência e fragilidade e agilizou uma resposta capaz por parte da Segurança Social.

Respostas estendem-se à freguesia do Carvalho A necessidade de garantir apoio à população de Carvalho, decorrente de um estudo efectuado pela Santa Casa e pelo município, levou a Misericórdia a avançar para aquela freguesia, refere o provedor. Paula Fonseca recorda uma candidatura ao programa PARES, que permitiu requalificar e adaptar a antiga escola primária cedida pelo município. O centro de dia e apoio domiciliário entraram em funcionamento em 2014, com capacidade para 30 e 15 utentes, respectivamente. Paula Fonseca refere o facto de a freguesia ter uma população envelhecida, muito ligada à actividade rural, que foi pouca receptiva ao centro de dia. «Quando recorriam a nós, precisavam, sim, de um lar». Uma situação que leva a Mesa Administrativa a apostar, em 2019, na requalificação deste espaço «para uma ERPI destinada a 15 utentes. «Estamos a terminar as obras», sublinham os dois responsáveis. O objectivo é inaugurar em Julho. O lar vem juntar-se ao centro de dia (12 utentes) e apoio domiciliário (15 utentes). Há 34 anos ligado à Santa Casa, onde começou a trabalhar como chefe da secretaria, António José Amaral integra os órgãos sociais desde 1990 e é provedor desde 2012. «44,74% da minha vida foi dedicada à Misericórdia», diz, bem-disposto. Satisfeito com o trabalho que tem sido feito e com os projectos para o futuro, sublinha o facto de todos os elementos dos órgãos sociais trabalharem em regime de voluntariado. Destaca, ainda o empenho dos 54 colaboradores da instituição, particularmente durante a pandemia. «Chegaram a trabalhar sete dias seguidos. Quase esqueceram a família e a sua vida social», afirma, agradecido. Uma palavra, ainda, para o «apoio e relação de proximidade» com a Segurança Social, com o município de Penacova e com as estruturas regional e nacional das Misericórdias. Destaca, ainda, que o concelho tenha sido contemplado, em 2019, com o programa CLDS – 4G, no âmbito dos incêndios de 2017. «Foi a primeira vez que isso aconteceu», faz notar, lamentando, todavia, que o pacote de 540 mil euros destinado ao município tenha ficado sem efeito, não servindo Penacova, apesar de a Misericórdia se ter perfilado para assumir o projecto. «Tínhamos o know how do RLIS», faz notar Paula Fonseca, que lamenta, igualmente «esta perda para o concelho». 

90 anos com Penacova Misericórdia

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Hotel continua em “banho Maria”

Unidade hoteleira está encerrada desde 2010

O Hotel Palacete do Mondego, instalado no antigo Preventório, depois de amplas obras de remodelação e adaptação, continua ao abandono e sem grandes perspectivas. «Tem havido alguns projectos, mas por vicissitudes várias, ainda não conseguimos avançar» e colocar a unidade hoteleira de novo em funcionamento, refere o provedor. A Misericórdia, proprietária do antigo Preventório, detém 71% da Sociedade Hotel de Penacova, S.A., que envolve a Câmara Municipal e um grupo de investidores privados, à qual pertence a unidade hoteleira, que abriu em Janeiro de 2002 e encerrou em 2010. Três concessionários passaram pelo espaço. Todos

acabaram por entrar em incumprimento, não conseguindo pagar os 50 mil euros de renda anual e suportar os cerca de 120 mil euros da exploração. O provedor reconhece a «colaboração da Câmara Municipal» e o seu empenho na realização de contactos, com vista a encontrar um investidor credível. Todavia, nenhum deles «foi além de promessas», repara. «Continuamos num impasse, com muita pena nossa», garante António José Amaral. O provedor lembra que a Misericórdia investiu ali um milhão e 300 mil euros. Dinheiro que «nos fez muita falta», assegura. «Mantemos viva a esperança de que um dia o problema se resolva», remata. 

Antigo Hospital vai acolher um lar

ERPI vai acolher 40 utentes

Desocupado desde Maio de 1998, altura em que o Centro de Saúde foi transferido para um novo edifício, construído de raiz, o velho Hospital de Penacova ficou votado ao abandono. Mas tudo indica que será por pouco tempo.Acandidatura

para a requalificação e recuperação do imóvel foi apresentada em Setembro de 2020 ao programa PARES. O objectivo, esclarece Paula Fonseca, é proceder à instalação de um nova estrutura residencial para idosos (ERPI). Uma necessidade, considera, tendo em conta «uma lista grande de espera para esta valência». O investimento previsto ronda um milhão e 350 mil euros e a ERPI vai ter capacidade para 40 utentes, com a particularidade de reservar quatro quartos para casais. O projecto contempla, ainda, a centralização, no edifício do antigo hospital, dos serviço de lavandaria e de cozinha, actualmente dividido entre Penacova e o Carvalho. 


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Fundação Mário da Cunha Brito 90 anos com Penacova

FUNDAÇÃO AJUSTA-SE AOS NOVOS TEMPOS 1959 No dia 31 de Maio de 1959, S. Pedro de Alva engalanava-se em espírito de festa. Era a inauguração do Hospital da Fundação Mário da Cunha Brito

Vontade de servir a ajudar a sua terra e conterrâneos levou à criação da Fundação

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udam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Foi isso que aconteceu em S. Pedro de Alva. Uma terra singular, que se tornou uma referência única quando se viu dotada com um hospital. Uma unidade de saúde de excelência. Ernesto Coelho, administrador da Fundação Mário da Cunha Brito, aponta-nos as 18 camas de internamento, um serviço de Maternidade, dotado com três camas, bloco operatório, serviço de puericultura e consultas externas. Inaugurado no dia 31 de Maio de 1959, era a resposta pronta, mais, enriquecida, à promessa feita por Mário da Cunha Brito. Em causa está um jovem da terra, que foi paraAngola e fez fortuna, como produtor e comerciante de café. «Era pobre, mas, com muito trabalho, enriqueceu». E quis também enriquecer e engrandecer a sua terra natal. Por isso, adianta Ernesto Coelho, numa das várias viagens que fez a S. Pedro de Alva questionou o médico e o pároco sobre o que podia fazer para ajudar a população. Em resposta, o médico apontava

a «grande pobreza, casas sem as mínimas condições» e sugeria uma casa, com «três ou quatro camas», que pudesse acolher os doentes no período de convalescença das várias maleitas. «Mário da Cunha Brito assumiu o compromisso», mas a morte precoce, aos 64 anos, impediu-o de concretizar a obra. O filho, Maurício Vieira de Brito, empenhou-se em fazer cumprir a vontade do pai. Nascia, assim, a Fundação Mário da Cunha Brito, uma instituição com «fins humani-

Diário de Coimbra destacou inauguração do Hospital

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tários, caritativos e educacionais, visando especialmente proteger, na infância, na adolescência, na velhice, na maternidade e na doença, os indigentes e os pobres de S. Pedro de Alva» e freguesias limítrofes. Além do Hospital, inaugurado com pompa e circunstância - «foi fretado um comboio especial, que veio de Lisboa para Coimbra, com os convidados», recorda Ernesto Coelho, que, na altura, tinha 10 anos – a Fundação Mário da Cunha Brito tinha o serviço de Sopa dos Pobres, Cantina Escolar, que garantia as refeições às crianças da escola. Mas também uma resposta de formação, «precursora da formação profissional», refere o administrador, onde eram leccionados cursos de cozinha, costura, entre outros, destinados ao público feminino. A revolução do 25 de Abril de 1974 veio pôr um ponto final nesta estrutura. «O Hospital foi nacionalizado. Tomaram conta disto e a certa altura fechou mesmo», refere Ernesto Coelho. Houve, recorda, «uma tentativa de reabrir como hospital», quase em resposta a uma “exigência” da população, que defendia o facto de a estrutura ter nascido como hospital e não poder ser outra coisa. “Um hospital é para dar vida. Um lar é para a morte”, sublinha, recordando a mentalidade da época. Os responsáveis da Fundação ouviram várias promessas por parte da tutela e, inclusivamente, chegou a ser assinado um protocolo com a Administração Regional de Saúde, nos termos do qual a Fundação cedia o espaço e a ARSC geria a unidade de saúde. Todavia, tudo se gorou. Ernesto Coelho refere o facto de, neste impasse, a Fundação ter procedido à contratação de uma enfermeira, que começou a “tomar conta” de «seis idosos que se encontravam numa casa da Fundação, no denominado asilo». Uma casa que «não tinha grandes condições», o que levou a enfermeira a proceder à transferência dos utentes para o espaço onde funcionou o Hospital. Estava dado o primeiro passo para a criação de um lar. «Fomos recebendo cada vez mais solicitações», explica o administrador, sublinhando que só em 1988 foi firmado um acordo com a Segurança Social para o funcionamento do lar, com 42 utentes. Avançava, igualmente, o centro de dia, com capacidade para 20 utentes. Seguiu-se, em 1994, a implementação do serviço de apoio domiciliário, com 40


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utentes. «Há cerca de 11 anos avançámos para a criação da creche, com capacidade para 26 crianças». Ernesto Coelho destaca, também, as obras de ampliação do edifício, que permitiram, em 1999, aumentar a capacidade do lar, que passou para 60 utentes, número que se mantém. O centro de dia (actualmente encerrado) continua com 20 pessoas e apoio domiciliário, na sequência da pandemia, atingiu os 40 utentes. A creche mantém aos 26 crianças e já estão abertas as inscrições, sublinha a instituição, que destaca o facto de a Fundação não ter registado qualquer caso de Covid. A Fundação tem um quadro de 54 funcionários, aos quais acrescem vários prestadores de serviço, designadamente em termos jurídicos e de medicina. A sua área de intervenção, estatutariamente consagrada, abarca todo o território «entre o Mondego e o Alva», designadamente as freguesias de S. Pedro de Alva, S. Paio do Mondego, Travanca do Mondego, Oliveira do Mondego e Paradela da Cortiça. Maurício Vieira de Brito além de instituir

90 anos com Penacova Fundação Mário da Cunha Brito

Creche é uma das valências da Fundação

a Fundação Mário da Cunha Brito fez questão de a dotar «com o património adequado à sua sustentabilidade», refere Ernesto Coelho. Em causa estão dois prédios em Lisboa, que actualmente têm 34 inquilinos. «Já reabilitámos oito apartamentos», adianta o responsável.

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Crescer e criar Unidade de Cuidados Continuados A Fundação Mário da Cunha Brito está a preparar uma candidatura para apresentar ao programa PARES, no sentido de avançar com a remodelação e ampliação das instalações. Trata-se de «criar mais espaço para o centro de dia e também para ampliar o lar, de forma a acolher mais cinto utentes», explica Ernesto Coelho, e dar resposta as crescentes solicitações. O investimento na obra está estimado em cerca de dois milhões de euros. Acalentado há muito é o projecto de criação de Unidade de Cuidados Continuados de longa duração. «Em tempos já fizemos uma candidatura», diz o administrador, apontando o facto de a Fundação ter procedido à aquisição de um terreno com esse propósito. É uma valência «que faz falta», frisa o responsável, que faz notar o facto de os lares «estarem sobrecarregados com pessoas que deviam estar em unidades de cuidados continuados». Uma situação que «exige mais cuidados e mais recursos», adianta.


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Escola Beira Agueira 90 anos com Penacova

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mação”, a EBA foi galardoada com o Selo de Escola eTwinning 2021/2022, que consagra os inúmeros projectos de eTwinning que promove. «A obtenção da VET-Charter Erasmus+, em 2015, foi um marco fundamental ao nível da aposta na dimensão internacional», sublinha a directora, que considera a aprovação da candidatura à Acreditação Erasmus+ 2021-2027 «resultado da vasta experiência ao nível do desenvolvimento, com qualidade, de projectos transnacionais, do trabalho em rede e partilha de boas práticas». A internacionalização, sintetiza, representa «uma estratégia diferenciadora do projecto educativo».

EBA: TRÊS DÉCADASI A FORMAR BONSI PROFISSIONAISIE CIDADÃOSI EBA aposta num projecto formativo muito prático e com bons índices de empregabilidade

1990 Criada em Agosto de 1990, a Escola Profissional Beira Aguieira acredita num projecto educativo com uma forte vertente técnica, apostada no mercado de trabalho

P

romover a aquisição de competências fundamentais e o desenvolvimento pessoal dos alunos e, simultaneamente, dar resposta às necessidades do mercado de trabalho e contribuir para o desenvolvimento da região constituem os pilares da Escola Profissional Beira Aguieira (EBA). «A EBA pretende ser uma referência de sucesso no processo educativo e formativo, assumindo um papel indutor de transformação na comunidade, garantindo um ensino/formação baseado na inovação», sublinha Teresa Matos, directora da escola. Uma missão que tem como suporte um «espírito de colaboração e parceria», que se consubstancia na participação «em diversas redes de cooperação, ao nível local, regional, nacional e internacional», refere. Apostada em apresentar um projecto educativo sólido e um plano de actividades

dinâmico, a EBA acredita que o ensino profissional constitui, «cada vez mais», uma «escolha fundamentada» de muitos jovens. «Os cursos têm uma componente técnica muito significativa, visando, de forma privilegiada, a inserção na vida activa», refere a directora. Por isso, «durante todo o ciclo de formação existe contacto directo com o mundo do trabalho». Teresa Matos destaca a frequência com que os jovens formandos «são convidados a integrar os quadros das empresas, facto que reflecte a qualidade da formação administrada». A formação contempla as áreas da Saúde, Ciências Informáticas, Turismo e Hotelaria e Restauração – Cozinha/Pastelaria e Restaurante/Bar. Cursos de nível IV, que garantem «a formação de quadros intermédios altamente qualificados». Os cursos nas áreas de Hotelaria/Restauração e Turismo constituem «uma marca de especialização da escola». As áreas da Saúde e de Informática têm igualmente «grande procura» e «grande sucesso a nível de empregabilidade», diz a directora. Reconhecida em 2020 com o Selo de Conformidade EQAVET, que garante a “qualidade no processo de ensino e for-

Restaurante Pedagógico Nada melhor do que a prática para testar o sucesso da aprendizagem. Sobretudo tendo em conta se trata de um espaço aberto ao público. Falamos do Restaurante Pedagógico.Aos alunos de Cozinha-Pastelaria cabe confeccionar as ementas, servidas pelos alunos de Restaurante-Bar, sob orientação dos respectivos formadores. Trata-se de um contributo de excelência para «o desenvolvimento de competência e aprendizagens adquiridas nas aulas teóricas, potenciando o talento dos alunos e os desenvolvimento do sentido de responsabilidade diante do público», afirma Teresa Matos. O Restaurante Pedagógico representa, também, um estímulo, pois «aumenta o interesse pela formação e motiva os jovens a investir no percurso formativo». O contacto com o público «facilita o desenvolvimento integral dos alunos, reforçando a confiança e segurança relativamente às suas competências para enfrentar com sucesso as exigência do mundo do trabalho», conclui. Centro Qualifica Melhorar os níveis de educação/formação de adultos é o objectivo do Centro Qualifica, a funcionar desde 2020. Trata-se de «responder com eficácia ao défice de qualificação/certificação, potenciando a formação/aprendizagem ao longo da vida dos adultos». Um projecto que contempla, a título excepcional, jovens que não frequentam modalidades de educação/formação e não estejam a trabalhar, «permitindo a construção de trajectos de vida conducentes à sua realização», e, ao mesmo tempo, «satisfazer as necessidades empresariais da região».



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Biblioteca 90 anos com Penacova

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BIBLIOTECA REINVENTA-SE PARA CATIVAR UTILIZADORES 2011 Novas instalações entraram em funcionamento em Maio de 2011. Anunciava-se uma nova era e multiplicavam-se os desafios para a equipa. Ontem como hoje, o objectivo é dar resposta aos utilizadores

U

m novo edifício, moderno e funcional, vem substituir as velhas instalações e dar uma dignidade maior à Biblioteca Municipal. Sobretudo, vem imprimir uma nova dinâmica a um espaço imprescindível em matéria de promoção cultural. A mudança é notória: Em 2010 o número de utilizadores era de 400. Em 2019 rondou os 28 mil. Paula Silva, coordenadora da Biblioteca desde Abril de 2010, tem uma visão muito própria da realidade das bibliotecas. Talvez isso justifique, em grande parte, o sucesso do projecto. O importante, sublinha, «é percebermos o que faz falta». «A biblioteca é, por excelência, a “casa dos livros”. Mas tem de ser mais do que isso. «Pensar só no livro é ter a morte anunciada», considera. Por isso importa «perceber quais são as necessidades», o que faz falta à comunidade «Cada biblioteca é um caso», sublinha. E não é por acaso que nunca utiliza a expressão “leitores”, optando pelo conceito de “utilizadores”. Até podem ir à biblioteca por outras razões, outras necessidades. O livro pode acabar por se cruzar no seu caminho. Mas o mais importante é ir e… descobrir a biblioteca. «Temos de fazer actividades de acordo com as necessidades», insiste, lembrando que hoje em dia, com as plataformas digitais, «consegue-se fazer uma pesquisa em casa, sem necessidade de recorrer à biblioteca». Mas outros caminhos se abrem. Novos, diferentes. Já ouviu falar de uma biblioteca de coisas? Uma “Coisoteca? Fique a saber que existe uma na Biblioteca de Penacova. Em causa está um projecto que avançou em 2017. «Pioneiro a nível nacional», afirma. Trata-se, tão só, de pensar que, de quando em vez «as pessoas podem precisar de um carrinho de mão». Ou de um berbequim ou uma aparafusadora eléctrica. Tudo isso

A Biblioteca de Penacova é muito mais do que um simples espaço de livros

existe na “Coisoteca”. Uma verdadeira oficina. «Algumas pessoas vêm cá requisitar as nossas ferramentas», afirma a bibliotecária, satisfeita por este ser mais um chamariz para levar utilizadores à biblioteca. «O importante é que venham, seja pelo que for». Durante o primeiro confinamento, a Biblioteca desenvolveu um serviço de “takeaway”. «As pessoas telefonavam ou enviavam um e-mail a pedir o que queriam ler, ver ou ouvir». Os funcionários preparavam a encomenda e o “pacote” ficava à entrada, pronto a ser entregue à hora combinada. No segundo confinamento, o serviço alargou as suas valências. «Não dava resposta às pessoas isoladas», constata. A solução foi colocar o Bibliomóvel - serviço itinerante e de proximidade, criado em 2016 pelo município, que “transporta”as valência do Balcão do Cidadão e assegura, igualmente, o serviço de empréstimo documental, mas também um trabalho de levantamento do património imaterial. Significa que o Bibliomóvel passou a proceder, também, à entrega domiciliária de livros, CD ou DVD. O projecto completava-se, mas havia ainda uma “branca”. «A pessoas de idade, que estavam em casa, privadas da família, isoladas e que não sabiam ler». Estava feito o diagnóstico de necessidades. Faltava conhecer os rostos, saber quem eram as pessoas. A ajuda veio do serviço de acção

social da Câmara e a resposta foram as leituras pelo telefone. Um projecto que arrancou em Fevereiro deste ano. «Parece que algumas pessoas descobriram a biblioteca», diz, com satisfação. A coordenadora e toda a equipa da biblioteca viram-se a braços com um «corrupio de solicitações». Contrariamente ao que aconteceu em muitos espaços similares, a pandemia trouxe um renovado e desusado movimento à biblioteca. . «Aumentámos os utilizadores», confessa Paula Silva. «Temos de planear, conceber os nossos serviços em função do que o nosso utilizador necessita, da satisfação das suas necessidades. Aí está a nossa utilidade e o nosso futuro», diz Paula Silva. Por isso não vê utilidade em questionários de satisfação. «Tenho é que me preocupar com as 10 mil munícipes que não vêm cá e não com aqueles que vêm». E para isso é necessário perceber «que outros serviços podem trazer mais utilizadores», designadamente abrir à noite, um dia por semana, retomar a abertura aos sábados, exemplifica. A bibliotecária alerta para o facto de as necessidades dos utilizadores serem dinâmicas e exemplifica com o Espaço Jovem, criado em 2013, concebido de acordo com o que os jovens queriam, que obteve um financiamento e 30 mil euros da Gulbenkian. «Não é o que eles querem agora», refere.


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90 anos com Penacova Biblioteca

Propostas para os mais novos e para os mais velhos «Quanto mais uma criança ler, mas preparada fica para os conteúdos curriculares com que se vai defrontar ao longo da sua vida», considera. Daí a aposta nos mais novos e na promoção da leitura infantil. Paula Silva destaca o projecto “Ler mais a leitura dá-te mais mundo”, destinado às crianças da creche, 1.º ciclo e pré-escolar, com o município a ser um parceiro de excelência, garantindo a deslocação das crianças. Em pandemia, as visitas não são possíveis. «Mas fazemos através de zoom». Para as escolas onde a rede de internet é mais fraca, é feita uma gravação, que é ali apresentada. Um trabalho importante, «para que não se perca o contacto com a biblioteca», sublinha. Paula Silva refere, igualmente, os “cenários” que rodeiam a leitura, sejam os tapetes ou aventais de leitura, os fantoches. «Não tiramos visibilidade ao livro, mas abrimos mais o apetite», diz. A biblioteca também cria os seus próprios livros, com figuras da história local. «Já fizemos duas edições de livros infantis», explica. Um é centrado na história de Teresa de Portugal, filha de D. Sancho I, que se refugia no Mosteiro de Lorvão e é responsável pela criação da primeira ordem feminina de Cister em Portugal. A segunda figura é António José de Almeida,o destemido lutador republicano. «Temos uma máquina de costura e pano cru… com boa-vontade fazemos as ilustrações», diz. Para os mais velhos, a biblioteca criou o programa “Conversas e Memórias”, que parte de contos tradicionais e permite uma conversa de vivências e de memórias, e também possibilita a recolha desse conhecimento que os mais velhos têm das tradições, usos, costumes, designadamente do ciclo do linho, do trabalho nos fornos de cal parda, na construção de

barcas.«É importante recolher e preservar estas memórias», alerta. «Foi, de resto, a partir desta recolha que «conseguimos inscrever a manufactura dos palitos no Inventário Nacional do Património Cultural», exemplifica. Ainda para os mais velhos, a biblioteca desenvolveu um ciclo de cinema, centrado nos clássicos filmes portugueses de boas memórias e um outro projecto, “Dançar é cuidar dos nossos avós”. Uma tarde diferente, com música e dança, que culminava num lanche de confraternização. Algumas actividades têm continuado on-line e Paula Silva refere o facto de um centro de dia ter enviado um bolo para a biblioteca, convidando os funcionários a saborearem-no depois de contarem a história, pois os seus utentes iriam fazer a mesma coisa. Separados, mas juntos, a lembrarem bons momentos. Bons momentos igualmente vividos nas praias fluviais, onde já se realizaram várias “Hora do Conto”, no Verão, que também permitem dinamizar eventos diferente na Pérgola Raúl Lino, junto ao edifício dos Paços do Concelho. A Feira do Livro é uma delas, mas o “Café com Livros” enche as medidas de quem participa. Trata-se, nada mais nada menos, que uma “Hora do Conto” encenada, com um conto adaptado à realidade local. “O Sapateiro remendão”foi a última história contada pela biblioteca, em 2019. No final há café e filhoses, quentinhas, com mel, acabadas de confeccionar. Uma actividade que começou em 2015. «Chegamos a ter quase 200 pessoas a assistir», recorda Paula Silva. Com satisfação, a bibliotecária refere as observações de muitas pessoas, que falam com saudade desses momentos. «É isso que compensa, que vale a pena», garante. 

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Uma longa história A Biblioteca Municipal funciona desde 23 de Maio nas actuais instalações, no Centro Cultural. Para trás fica uma longa história, que teve origem em 1902, com a criação da primeira biblioteca pública. Uma proposta do então presidente da autarquia, Daniel da Silva, em resposta à preocupação de garantir a “instrução das pessoas”. O antigo edifício dos Paços do Concelho foi a primeira sede. O projecto ganha uma solidez decisiva com a criação, em 1964, de uma biblioteca fixa da Fundação Gulbenkian, instalada na Rua Conselheiro Alberto Leitão. O crescimento de leitores e do espólio, ditou a necessidade de mudança para novo espaço. A Rua da Eirinha afigurou-se o local certo e a biblioteca instala-se no piso superior do edifício do minimercado em 1982. Em Dezembro de 2002 a Fundação Gulbenkian doou à Biblioteca Municipal o espólio da Biblioteca Fixa 106. Em Julho de 2010 foi assinado um acordo de cooperação com a Rede Nacional de Bibliotecas Escolares. Em 23 de Maio de 2011 a Biblioteca transfere-se para o Centro Cultural. 


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Casa das Artes 90 anos com Penacova

CASA DAS ARTES: A SALA DE VISITAS DE PENACOVA

Antigo edifício do Tribunal está em obras para acolher a Casa das Artes

2021 Antigo edifício dos Paços do Concelho, que acolheu o Tribunal, vai ser transformado num espaço dedicado à cultura e homenagear uma figura grande da pintura: Martins da Costa

É

uma casa com história» e que vai continuar a fazer história. Falamos do edifício do antigo Tribunal de Penacova, um espaço inaugurado em 1869, onde funcionaram os Paços do Concelho até à sua transferência para as actuais instalações, localizadas mesmo ao lado. Inactivo desde 2014, muito embora fosse esporadicamente utilizado para acolher alguns eventos de índole cultural, o centenário edifício está a ser alvo de um profunda intervenção. Trata-se de dar forma à Casa das Artes, um projecto que merece um carinho especial do presidente da autarquia, Humberto Oliveira, que vê ali o nascimento da “sala de visitas”de Penacova. Um espaço dedicado à cultura, que pretende, igualmente, fazer uma homenagem ao pintor Martins da Costa. Humberto Oliveira recorda que o projecto de criação deste espaço cultural foi alvo de uma candidatura ao anterior quadro comunitário, que não se revelou viável, pois ainda ali funcionava o Tribunal e «não se

conseguiu encontrar uma solução em tempo útil». Já com a «maturidade suficiente», o projecto foi candidatado ao novo quadro comunitário e integrado no Plano de Acção de Regeneração Urbana (PARU)». «Foi neste contexto, de reabilitação e animação do centro histórico» que o projecto avançou, esclarece o autarca. O objectivo é criar ali, numa zona nobre da vila, junto aos Paços do Concelho e à Pérgola Raul Lino, «a sala de visitas de Penacova», um «espaço especialmente dedicado à cultura», capaz de acolher exposições, conferências, colóquios ou outro tipo de eventos de índole cultural. A Casa das Artes quer representar, igualmente, um marco de agradecimento a Martins da Costa (1921 – 2005) , patrono do espaço. Humberto Oliveira afirma que a autarquia está em negociações com a família do pintor, no sentido de levar para a Casa das Artes uma importante parte do espólio do artista. O autarca recorda que Martins da Costa, sendo natural de Coimbra, era filho de pais penacovenses e escolheu Penacova como terra de adopção, onde se radicou em 1973 e construiu a sua casa-atelier sobre o vale do Mondego. Professor na Escola Secundária, «marcou gerações», destaca, lembrando a notoriedade do artista, que ombreou com nomes grandes das artes plásticas

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nacionais, como Júlio Pomar ou Nadir Afonso. Dar o nome de Martins da Costa à Casa das Artes representa uma homenagem que se junta a outras, já consagradas pelo município, designadamente com a instituição do Prémio Martins da Costa, que pretende incentivar novos talentos no mundo das artes plásticas, particularmente entre os jovens do concelho. A empreitada da Casa das Artes foi adjudicada por 783.674 euros (mais IVA), contando com uma comparticipação de 85% pelo FEDER, Fundo Europeu para o Desenvolvimento Regional, no âmbito do Programa Operacional do Centro, Centro 2020. A empreitada deverá ficar concluída no final do ano.

Tribunal muda de casa A transferência do Tribunal de Penacova para um novo espaço viabilizou o projecto de criação da Casa das Ates. Com efeito, a falta de condições do velho edifício, datado de 1869, para o funcionamento dos serviços de Justiça, deu origem a uma verdadeira “novela”, com episódios que remontam à década de 90 do século passado, altura em que se admitiu a construção de um novo Palácio da Justiça. Todavia, o processo manteve-se sempre em “banho Maria” e, em 2012, perante a intenção clara do Governo em encerrar o tribunal, a autarquia empenhou-se em encontrar soluções. Nada mais nada menos do que avançar (Fevereiro de 2013) com a recuperação e ampliação da Escola Maria Máxima, no largo Dona Amélia, que se encontrava devoluta. Substituindo-se ao Estado, o município investiu 250 mil euros na obra, concluída no final do Verão desse ano. Seguiu-se a aquisição dos equipamento necessário para o funcionamento do Tribunal de Penacova, oficialmente inaugurado em 2014, assinalando de uma forma singular os 40 anos da revolução de Abril. 

Martins da Costa vai ser o patrono da Casa das Artes, uma homenagem do município ao artista que adoptou Penacova como a sua terra


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90 anos com Penacova Moinhos

MOINHOS VOLTAM A GIRAR 1980 Município adquiriu moinho de Arantes de Oliveira e recebeu o de Vitorino Nemésio. Ambos na Portela de Oliveira

Moinhos da Portela de Oliveira. Penacova tem dos maiores núcleos molinológicos do país

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natureza e o homem estão verdadeiramente de braço dado. Ali, no cimo da serra, os moinhos espreguiçam-se, elegantes, senhores da força que o vento lhes traz, e oferecem uma paisagem deslumbrante. Muitos, é certo, já viram melhores dias. A ruína em que se encontram merecia um olhar atento. Outros precisam de alguns retoques, mas também há alguns que “enchem o olho”, quais postais. Agrande maioria dos moinhos da Portela de Oliveira pertence a privados. O município tem dois. Um pertenceu ao escritor Vitorino Nemésio, um apaixonado por moinhos, que chegou a ter três em Penacova. Após a sua morte, os herdeiros doaram o moinho da Portela de Oliveira ao município, que procedeu à sua recuperação, garantindo o seu funcionamento como moinho. Outro moinho, o primeiro que se encontra, era igualmente pertença de uma figura ilustre, o eng. Arantes de Oliveira, ministro das Obras Públicas do antigo regime, que o transformou na sua casa de férias. A autarquia procedeu à sua aquisição, igualmente


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Moinhos 90 anos com Penacova

na década de 80 e avançou com a instalação de um núcleo museológico, ao qual deu o nome do escritor açoriano, um indefectível amante dos moinhos. Um espaço que, em 2015, foi sujeito a uma profunda intervenção de remodelação, obras inauguradas em Fevereiro de 2016. De forma despretensiosa, sobretudo atractiva, o Museu oferece uma verdadeira lição sobre o funcionamento dos moinhos e reserva revelações surpreendentes. Por acaso sabia que existem moinhos de mão? Sim! Um artefacto manual, inteiramente movido pela força de braços. São duas mós, uma fixa e outra móvel, seguindo o figurino da técnica dos moinhos. Mós feitas em pedra, claro está. Dois “cambões” permitem accionar o movimento das mós, garantindo um exercício de musculação único. Há também um “moinho de rebolo”, um artefacto simples, pré-histórico em termos de tecnologia, que não é mais do que uma pedra escavada, onde é colocado o cereal. Outra pedra, ajustada, em termos de tamanho, vai permitir, através de uma fricção contínua, transformar o grão em farinha. Certamente um exercício de paciência. Mara Oliveira é uma das técnicas da Penaparque que assegura as visitas e, além destas raridades, apresenta-nos os dois tipos essenciais de moinhos, de vento e de água – também chamados azenhas – explicando a sua complementaridade. Uns e outros casam na perfeição num território como Penacova, onde as muitas serranias e os diferentes cursos de água permitiram que ali surgisse um dos maiores núcleos molinológicos do país. Com efeito, além da Portela de Oliveira (Sazes de Lorvão), existem moinhos nas serras da Atalhada, Aveleira e Roxo, Gavinhos, Paradela de Lorvão e na localidade de Arroteia. A autarquia estima que, em actividade ou em condições de funcionar estejam 19 moinhos, que se juntam, às 18 azenhas instaladas no rio Alva, nas várias ribeiras de Arcos, Carvalhais, Gondelim,Aveledo, Carvalho,Ameal, Lorvão e Presa, muitas das quais estão a ser recuperadas pelos proprietários.

Uma lição sobre moinhos «Os moinhos de vento funcionam no Verão, os de água no Inverno», explica Mara Oliveira, que aponta as razões: «no Inverno, há demasiado vento», o que significa que os “suportes”, artesanais, «podem não aguentar». Por outro lado, «no Verão, as ri-

beiras levam pouca água», o que representa uma dificuldade acrescida para fazer rodar as mós. Significa que, em diferentes épocas do ano, moinhos de água e de vento se complementam. Juntos, garantem que o grão é moído durante todo o ano. A primeira vitrine apresenta os utensílios utilizados no transporte e chegada dos cereais, que tanto podiam ser levados pelo proprietário ao moinho, como recolhidos pelo moleiro nas aldeias. Depois entra-se no ambiente do moinho, com a joeira, o crivo, a peneira, as pás e vassouras. Chama a atenção o biforcado, em madeira, cuja função é abrir a taleiga, ou seja, o saco onde se irá pôr a farinha. À medida que se avança, cresce a complexidade dos artefactos e instrumentos. Agora sim, é do coração do moinho que se trata. Mara Oliveira chama a atenção para as mós, em granito. «Têm de estar ásperas, se estiverem lisas o cereal não parte. Têm de ser picadas», adianta. Outro reparo importante: «a primeira farinha – que cai na moenga - não era usada para consumo». As razões prendem-se com a possibilidade de «ter alguma areia». Já agora outro reparo: o telhado do moinho chama-se “carapuço” e deste sai um “rabo”. Trata-se de um pau comprido, uma espécie de “leme”, que permite ao moleiro redireccionar as velas quando o vento muda de direcção. Nos moinhos de água ou azenhas, importa referir que é feito um canal, a partir do rio ou ribeira, o que permite gerir o fluxo da água e também evitar resíduos. Aqui o “rodísio”é o motor de todo o sistema, accionado com a força motriz da água, que depois de

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accionar as mós e moer o grão, regressa à ribeira, Além da lição sobre os moinhos e sua forma de funcionamento, completada por um pormenorizado “croqui” explicativo, o Museu Vitorino Nemésio é também um espaço de outras memórias, trazidas por trechos belíssimos de vários autores, ou pela mostra-venda de produtos artesanais da região. O espaço circundante afigura-se como um verdadeiro miradouro, a partir do qual se avistam as serranias em redor. Com o tempo bom, vêem-se as serras da Estrela e do Caramulo, para já não falar no Buçaco, ali mesmo ao lado. Um café-restaurante permite aos visitantes retemperar as forças, depois de uma visita para descobrir os vários moinhos que integram o complexo, ou de cumprir um dos percursos pedestres. Junto ao moinho que pertenceu a Vitorino Nemésio a autarquia instalou uma “sala de estar”, onde não falta um conjunto de floreiras, um “sofá”e uma televisão.As imagens que transmite são em directo e perfeitamente reais. Nada mais nada menos que um perspectiva geral sobre o vale e encostas das serranias. O nascer ou o pôr do sol são, com bom tempo, uma verdadeira bebedeira de beleza. Um “mimo”da autarquia ao qual os visitantes se entregam, rendidos. Os moinhos estendem-se, praticamente em “comboio”. Quando as tradicionais construções circulares terminam, surgem outras. Maiores, onde o aço substitui a pedra e a madeira. São as torres eólicas que desde Março de 2019 enfeitam a serra. É o Parque Eólico, um investimento de 42 milhões.

Museu está instalado no moinho que pertenceu a Arantes de Oliveira


90 anos com Penacova Moinhos

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Autarquia está empenhada em requalificar este núcleo, onde possui 10 moinhos

NOVA VIDA PARA OS MOINHOS DA SERRA DA ATALHADA 2021 Município pretende recuperar e requalificar os moinhos da Serra da Atalhada. Um projecto que representa um investimento próximo do milhão de euros

O

s moinhos são um elemento icónico do concelho», sublinha o presidente da Câmara Municipal, que destaca a existência de quatro núcleos molinológicos – Portela de Oliveira, Serra da Atalhada, Gavinhos e

Aveleira, Roxo e Paradela. «Cada um tem a sua própria identidade», afirma, destacando o desejo do município de «desenvolver um projecto integrado de informação e aproveitamento das características próprias de cada núcleo». «São locais icónicos ao nível da paisagem», refere Humberto Oliveira, destacando o projecto para a Serra da Atalhada, o núcleo onde o município possui o maior número de moinhos. «Dez, num total de 22 ou 23», esclarece. O objectivo é, no âmbito do projecto de valorização do património natural,

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alinhado com a Estratégia Regional de Valorização dos Corredores do Património Natural, criar condições para a «requalificação destes moinhos» e para promover a sua visitação. O investimento, esclarece o autarca, ronda um milhão de euros, mas admite que possa ser feito de uma forma faseada. Todavia, o financiamento é fundamental para viabilizar o arranque do projecto. São várias as rubricas contempladas que, além da recuperação dos moinhos e das suas características, pretendem «melhorar as condições de visitação», de forma a que «as pessoas possam ter uma melhor percepção do território, designadamente em termos geológicos, da fauna e da flora». Uma segunda linha contempla a componente de alojamento turístico. Humberto Oliveira entende, de resto, que este projecto constitui uma oportunidade para os proprietários dos moinhos avançarem com algumas acções, no sentido da valorização deste património. O autarca lembra, a propósito, o facto de um dos moinhos particulares da Portela de Oliveira estar transformado em espaço de alojamento local e não tem dúvidas que a Atalhada tem um «enorme potencial». É, todavia, necessário que «haja interesse», pois «a autarquia não se pode substituir aos privados», adverte. Humberto Oliveira refere o protocolo de colaboração, estabelecido em Abril passado com a Padaria do Largo, através do qual a autarquia garante o funcionamento de dois dos seus moinhos, capazes de moer farinha – na Portela de Oliveira, que pertenceu a Vitorino Nemésio e outro na Serra da Atalhada – como um exemplo destas parcerias que se podem desenvolver com privados, garantindo a «salvaguarda de um património e dos saberes que lhe estão associados». 


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Padaria do Largo 90 anos com Penacova

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DA SEARA À MESA: UM NOVO CONCEITO DE PR 2021 Padaria do Largo quer manter vivas as tradições e os sabores de antanho. Um projecto que passa por semear os cereais, moer o grão e cozer o pão. Protocolo com autarquia, assinado em Abril, garante acesso a dois moinhos

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a moenga estão restos de trigo. Esperam que o vento sopre e as velas accionem a força das mós. «Há uma semana que ando a tentar moer sem conseguir, porque não há vento», diz João Costa. O dono da Padaria do Largo está no moinho que pertenceu a Vitorino Nemésio, que a família doou ao município. É um dos poucos que, na Portela de Oliveira, se mantém operacional, como moinho. Outros, propriedade privada, foram recuperados e transformados em casas de férias e há mesmo um alojamento local. Boa parte carece de uma intervenção e muitos estão mesmo em ruínas. João Costa, ajudado pelo mestre Arménio Santos Pereira, está a iniciar-se nas artes de moleiro, depois de um protocolo, assinado com o município, em Abril passado, para a cedência deste moinho e também de um outro, pertencente ao município, localizado na Serra da Atalhada. O objectivo é moer o grão que usa para cozer o pão. A montante estão os campos, sobretudo de trigo, que tem vindo a semear. Neste momento, conta, já tem 10 mil metros quadrados semeados, na Aveleira e em Casal de Santo Amaro. E quer crescer. «Estamos a fazer parcerias com várias pessoas», explica. O objectivo é «cultivar os terrenos, evitando que fiquem cheios de silvas, ao abandono».

João Costa voltou a moer grão no moinho que pertenceu e Vitorino Nemésio

Representante da quarta geração de padeiros, João Fernando Costa está à procura do grão ideal. «Há trigo mole, duro e rijo», explica. O objectivo é conseguir um trigo “mole”. E como a oferta de mercado é exígua, o empresário resolveu começar a fazer sementeiras, no sentido de obter o grão ideal. Assim, por exemplo, no campo de Casal de Santo Amaro este ano optou por não colocar fertilizantes nem herbicidas, o que trouxe ao campo um colorido de flores amarelas. «Sei que vou ter menos produção», assume, mas quer perceber qual vai ser a textura do cereal. Os testes sucedem-se. No moinho, no campo e também na Padaria do Largo. João Costa pretende confeccionar um pão especial, de Gondelim. «Era um pão que as padeiras dessa terra faziam e vinham vender a Penacova», conta. Um pão de

trigo, mais escuro, macio, que se aguenta perfeitamente mesmo alguns dias depois de cozido. As experiências começaram, recorda, há três anos e a Padaria do Largo já produz Pão de Gondelim. Mas também o pão de água, o pão da avó e a broa de milho. Há ainda um outro pão, grande, rústico, igualmente convidativo. «Queremos manter esta cultura ancestral», sublinha o padeiro, com 55 anos, que assume ser esta uma opção de vida, em nome dos valores da tradição, do saberfazer ancestral, dos sabores de outros tempos. Tudo conta para que isso possa ser possível. A começar pela qualidade do cereal, mas também pela afinação certa da moagem, de forma a obter a farinha ideal para cozer o pão. Em síntese, significa completar todo o ciclo, desde a produção dos cereais, passando pela produção da


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90 anos com Penacova Padaria do Largo

ODUZIR PÃO farinha até à preparação do pão. Ou seja, ir da seara à mesa. Isso não significa, alerta João Costa, que alguma vez seja auto-suficiente. Ou seja, vai ter sempre de comprar cereais ou farinha. Ou mesmo as duas coisas. Aliás, anda actualmente à procura de milho branco, pois praticamente só encontra amarelo. Também gostaria de poder contar com o conselho sábio de especialistas, que o pudessem orientar relativamente à cultura dos cereais. «Um apoio que seria importante», considera.

Investimento de 300 mil euros Relativamente à confecção do pão, João Costa tem pergaminhos. «Aos 5/6 anos já dava uma ajuda» e desde os 14 que trabalha na padaria. A Padaria do Largo, recorda, foi fundada pelo seu bisavô, Abílio Seco, cujo alvará data de 1870. Ao tempo, «não era mais do que um forno e uma masseira». Um passado do qual ficou a cultura de bem-fazer, mas que implicou uma verdadeira revolução. Primeiro em 1962, com a transferência para o actual espaço. Depois, no ano passado, aproveitando o tempo de pandemia. «Fizemos obras de ampliação e remodelação», que incluíram «equipamentos novos», designadamente «máquinas de amassar, silos de farinha e câmaras de conservação e congelação». Um investimento a rondar os 300 mil euros. Todavia, apesar de toda esta revolução, João Costa fez questão de manter, ao nível da padaria, um forno a lenha. «São fornos contínuos», explica, o que significa que a zona da fornalha é independente da zona do forno. «O sabor do pão é melhor», garante. Mas o gasto de combustível – leiase lenha – é mais exigente. Além da lenha

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sants, os lanches ou mesmo as pizzas.

que ele próprio corta, o empresário conta com um fornecedor. «São cerca de quatro metros cúbicos por semana», pois os fornos são acesos às 2h00 e mantêm-se praticamente até às 20h00. Mas na Padaria do Largo há muito mais além do pão de Gondelim, de água e da avó e da broa de milho, sem esquecer os apetitosos folares. Na secção de pastelaria, Carlos Madeira, há mais de 30 anos na empresa, esmera-se na confecção de um bolo de chocolate, enquanto Fátima Rodrigues ultima apetecíveis eclairs. Um bolo folhado, recheado com creme de ovos, está pronto para entrega. Todos os dias há nevadas frescas e pastéis de Lorvão, os doces tradicionais de Penacova. Juntam-se-lhe os pastéis de nata, as bolas de Berlim, os folhados, as tigeladas, as queijadas. Uma imensidão de doces, mas também de biscoitos e bolos secos, sem esquecer os crois-

Faltam incentivos para promover estes nichos de mercado Ao lado de João Costa trabalha toda a família, a começar pela esposa, Paula, pelos filhos, Marília e João e também pelo genro, Rui Salvador, num total de 13 pessoas. Apostado em inovar, em fazer bem e diferente, o empresário nem da pandemia se queixa. Queixa-se, isso sim, dos incentivos que não existem e que poderiam ser muito úteis para «as pessoas mais novas aderirem a este tipo de projectos». «É um nicho de mercado», garante, evocando a «experiência positiva». Mais, entende que «ao nível do turismo, da cultura e da educação» só haverá benefícios com a aposta nos produtos tradicionais e diferenciadores. «Não temos outros recursos, temos que apostar no que temos», sublinha, pragmático. «Isto é uma alternativa», assegura. «Não podemos ir à lua, por isso temos que nos aguentar aqui, na Terra», conclui, com humor..

Fornos a lenha garantem um “toque” especial ao pão


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Preventório 90 anos com Penacova

Diário de Coimbra

PREVENTÓRIO: PROTEGER AS CRIANÇAS DA TUBERCULOSE 1930 Bissaya Barreto foi o mentor de uma obra considerada pioneira e modelar, que integrava o complexo de valências de combate e prevenção da “peste branca”

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este estabelecimento hão-de ser internadas as crianças sem tuberculose pulmonar ou qualquer outra modalidade contagiosa; nele serão recebidas as crianças fracas, indefesas e escrofulosas, insuficientemente desenvolvidas, em estado de miséria fisiológica; ali entrarão os filhos de pais tuberculosos que amanhã seriam outras tantas presas da própria tuberculose. Uma vez internadas, serão submetidas a um regime especial de higiene e de alimentação, serão cercadas de cuidados especiais; a sua educação física e moral e a sua instrução serão convenientemente doseadas pela colaboração dum médico e dum pedagogo». Bissaya Barreto, presidente da Junta Geral, é o autor destas palavras, publicadas pelo Diário de Coimbra no dia 25 de Agosto de 1930. Trata-se de um extracto de uma missiva, dirigida à tutela, onde o médico solicitava «o donativo de 300 contos, a fim de, em pouco meses, ter a funcionar o primeiro Preventório em Portugal. «Verba que pode ser retirada do capítulo “Luta contra a Tuberculose”, aventava. Bissaya Barreto defendia a criação do Preventório de Penacova, baseando-se no sucesso da “Obra de Grancher”, comprovado pelas estatísticas médicas. «As despesas que se fizeram com a obra de protecção à criança contra a tuberculose são generosamente compensadas pelo número de vidas que se salvam, são generosamente compensadas pelas despesas que se evitam com o tratamento daqueles que amanhã serão tuberculosos, se acaso a “Obra de Grancher”os não vier a defender», escrevia o médico. «Perante uma obra de tal valor, é justo que o Estado, à maneira do que sucede em todos os países, venha ao encontro das iniciativas particulares, ajudando-as com um subsídio e dando todas as facilidades à sua execução», defendia. Na mesma edição do Diário de Coimbra, que tinha iniciado em Maio a sua publicação, era feita uma referência ao dr. Daniel da Silva, conservador do Registo Notarial

Preventório foi um projecto pioneiro

e vice-provedor da Misericórdia, apresentado como «um dos mais entusiastas amigos» do Preventório. «Dá-lhe tanta vida, dispensa-lhe tanto carinho, como se fora um filho estremecido», escreve o jornal. Referência, ainda, ao dr. Sales Guedes, a quem «se deve a breve construção do Hospital de Penacova, sendo notável, também, a sua valiosa colaboração prestada a esta obra de grande vulto que é o Preventório». Um assunto que merece, de resto, referências elogiosas e, inclusivamente, a publicação de uma imagem, no dia 28 de Agosto, onde o jornal destaca a importância do Preventório de Penacova, «o primeiro estabelecimento deste género no nosso país». Elogia, ao mesmo tempo, a sua localização, «num dos pontos mais interessantes da linda vila de Penacova», bem como o «magnífico edifício» e a «paisagem encantadora» que o rodeia. No dia 22 de Junho de 1931, o jornal noticiava a inauguração do Preventório de Penacova, integrado na iniciativa “Os Dias da Tuberculose”. Bissaya Barreto, presidente da Junta Geral do Distrito e mentor da obra, apresenta o projecto. «Assombroso.

Único. Em Portugal não há melhor. No estrangeiro não há igual», garantia o director-geral da Assistência, Machado Pinto, elogiando a grande obra. Instalado no Monte da Senhora da Guia, o edifício foi mandado erguer pela Misericórdia, que ali pretendia criar o hospital. Todavia, Bissaya Barreto entendeu que era o local ideal para acolher o Preventório. Entrou, então, em negociações com a Santa Casa, que culminaram num acordo celebrado entre esta instituição e a Junta Geral do Distrito, nos termos do qual a Junta Geral se comprometia a apoiar a construção de um novo edifício para o almejado hospital, nas imediações, o que veio a acontecer. Uma das prerrogativas do contrato era o uso exclusivo daquele espaço como valência de apoio às crianças. O Preventório fazia parte de uma obra mais vasta, promovida por Bissaya Barreto, destinada à protecção das grávidas e das crianças, num verdadeiro registo de profilaxia da tuberculose, que contemplava os Sanatório de Celas e dos Covões, o Dispensário, o Ninho dos Pequenitos, mas também a Escola de Agricultura e o Asilo, em Semide. Em Penacova, nascia o Preventório, uma instituição modelar e pioneira, que entrou em funcionamento em 1934, com as Irmãs Franciscanas Hospitaleiras a tomarem conta das crianças, filhos de tuberculosos, com idades entre os 3 e os 12 anos. Funcionou até aos anos 80 do século passado, de uma forma cada vez mais debilitada, acabando por encerrar definitivamente. 

Diário de Coimbra noticiou de forma reiterada o projecto do Preventório


Diário de Coimbra

90 anos com Penacova Roteiro do Arista

ARISTAS COMPROVAMI QUE PENACOVAI TEM BOM ARI

São oito os locais do Roteiro do Arista, cada um com uma letra da palavra Penacova

2018 Roteiro, inspirado em Raul Lino, criou, em 2018, um circuito pioneiro. Um projecto inédito, que demonstra os bons ares de Penacova e promove o património do concelho. E até inclui um jogo

A

s comemorações do centenário da Pérgola criada por Raul Lino, uma verdadeira varanda sobre o rio, deram o mote para um projecto novo e diferenciador. JoãoAzadinho, vive-presidente da Câmara Municipal e mentor do programa, recorda que o conceituado arquitecto se apaixonou, como muitos outros artistas, por Penacova, particularmente pela beleza da paisagem e pelos seu bons ares. «Era um arista», sintetiza. Um conceito singular que ganhou sentido em Penacova. João Azadinho recorda que, há 100 anos, num tempo em que as doenças

respiratórias, designadamente a tuberculose, representavam um verdadeiro drama, muitos médicos recomendavam aos seus doentes temporadas em Penacova. Era um conceito de medicina natural, que associava o clima à natureza e à saúde. «Penacova ficou conhecida pelos seus bons ares», refere o autarca, que lembra a instalação do Preventório, uma obra de Bissaya Barreto, destinada a evitar o contágio das crianças e jovens filhos de tuberculosos. Mas também as pessoas que, afectadas por doenças respiratórias, se deslocavam para a vila. «Vinha muita gente de Lisboa, que se instalava em Penacova, havia várias pensões», faz notar. A população passou a denominar estes “estrangeiros”, que demandavam os seus bons ares, como “aristas”. O termo ficou e, além de fazer parte da histórica, ganhou, em 2018, uma nova vida, com a autarquia a empenhar-se num projecto de valorização dos seus bons ares e a criar o Roteiro do

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Arista. Um desafio que contempla os bons ares, em sintonia com a descoberta do património cultural e natural. João Azadinho aponta os oito locais que integram esta nota: Mosteiro de Lorvão, Penedo do Castro, Fornos da Cal, Mirante, praias fluviais do Reconquinho e do Vimieiro, Moinhos de Gavinhos e Livraria do Mondego. Mas há ainda uma componente lúdica, um jogo, que, de acordo com o autarca, tem contribuído para o sucesso da proposta, sobretudo junto dos mais novos. Significa que os aristas possuem um passaporte – que podem obter na Câmara ou no Posto de Turismo, em suporte físico ou formato digital – e em cada um dos oito pontos de paragem têm de tirar uma foto, junto ao local onde se encontra a letra que lhe é consagrada.Aaplicação permite, de imediato, a partilha da foto nas redes sociais. No final, completado o circuito e formada a palavra Penacova, os aristas podem apresentar-se no Posto de Turismo, onde recebem uma lembrança (t-shirt). «Tem corrido muito bem», afirma João Azadinho, que faz notar, com especial satisfação, o facto de este roteiro ter sido muito bem acolhido dentro do concelho. «Foi interessante ver as pessoas de Penacova a descobrirem o concelho» e a deslocarem-se, exemplifica, ao Mosteiro de Lorvão, «onde praticamente nunca iam». Depois, o projecto alargou horizontes e os visitantes começaram a descobrir esta nova proposta. João Azadinho admite que o facto de, em 2019, Penacova ter sido finalista do Prémio Município do Ano, também ajudou a divulgar este projecto. A pandemia veio reforçar, um século depois, a importância dos bons ares de Penacova, com a autarquia a aproveitar o confinamento para proceder à renovação das letras e do “layout” do passaporte e a reforçar o convite aos aristas para os bons ares de Penacova. 


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António José de Almeida 90 anos com Penacova

Diário de Coimbra

MANTER VIVA A MEMÓRIA DE ANTÓNIO JOSÉ DE ALMEIDA 1899-1929 Homem de convicções, promoveu uma reforma profunda da sociedade, mas foi o seu espírito conciliador que lhe permitiu cumprir o mandato de Presidente da República

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lória concelhia e nacional”. As palavras figuram no busto de António José de Almeida, erguido pelo município de Penacova, actualmente em frente aos Paços do Concelho. Palavras simples, mas que dizem muito de uma figura particularmente notável. Luís Reis Torgal, professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra diz isso mesmo e, por isso, tem-se empenhado em elevar o nome desta insigne personalidade. «A minha luta tem quase 20 anos», diz, referindo-se à época em que começou a preparar, juntamente com Alexandre Ramirez, o livro “António José de Almeida e a República”. Uma publicação com a chancela do Círculo de Leitores. Outras se seguiram, em parceria com o município de Penacova e com a Presidência da República. «Para mim é a figura mais interventiva da Primeira República», mas também a «mais consensual». Se dúvidas houver, recorda o grande número de ruas com o nome de António José de Almeida existentes em todo o país. Muitas das quais foram decididas pelas respectivas Câmaras Municipais no tempo do Estado Novo, como aconteceu em Coimbra, em Junho de 1931, com a rua de Montes Claros a ganhar o nome de António José de Almeida no ano seguinte. «Foi uma figura muito cordata», destaca. Mas também um homem que, antes de assumir a Presidência da República (1919-1923), como deputado e

António José de Almeida

como ministro do Interior, fez uma obra notável. Luís Reis Torgal lembra, particularmente, a sua acção como ministro do Interior do Governo Provisório da República, presidido por Teófilo Braga. Durante o escasso período de um ano (1910-1911), fez uma verdadeira revolução, gizando um programa diversificado dirigido aos mais diversos sectores da sociedade. O historiador exem-

plifica com «a laicização das instituições, abolindo os juramentos religiosos», a «organização da instrução pública, com a regulamentação e o fomento do ensino primário e infantil, ou com a criação das Universidades de Lisboa e do Porto», mas também ao nível da organização da saúde pública, «com várias medidas no campo médico, farmacêutico e hospitalar», na «área das artes, das letras e das ciências; em medidas de apoio social aos indigentes, em outras relativas as descanso semanal ou concedendo licenças de parto às professoras; na segurança pública, criando a Guarda Nacional Republicana; mas também em discutíveis medidas do foro político e eleitoral...». Também foi António José de Almeida que, como deputado, em Junho de 1912, apresentou um projecto de lei, na Câmara de Deputados para criação da aviação militar, que será concretizada em Abril de 1914. «A aviação militar deve-se à sua intervenção, foi o pai da aviação militar», afirma. O historiador recorda que foi por isso que, em 17 de Julho de 1916, o tenente José Santos Santos Leite – também ele um penacovense ilustre, natural de Telhado, freguesia de Figueira de Lorvão (18841928), o primeiro piloto português a obter o brevet militar, realiza o primeiro voo militar oficial, na pista de Vila Nova da Rainha, precisamente no dia em que António José de Almeida celebrava 50 anos. Luís Reis Torgal enaltece o «espírito cor-


Diário de Coimbra

dato» e consensual» que terá sido decisivo para o cumprimento das suas funções como Presidente da República (5 de Outubro de 1919 a 5 de Outubro de 1923) e que, admite, está intimamente ligado à sua formação como médico. «Foi o único presidente da Primeira República que cumpriu o mandato constitucional de quatro anos», realça. «Isso deveu-se à sua determinação em momentos graves e ao seu carácter conciliador», sublinha. Um facto tanto mais relevante tendo em conta que se vivia um tempo de grandes convulsões sociais, que se juntaram à epidemia de tifo, que grassava no país, e que só em 1919 provocou mais de duas mil vítimas. «As greves eram a palavra de ordem», transversais a todos os sectores. Dos trabalhadores da indústria corticeira, aos ferroviários, correios e telégrafos e tabacos, da Imprensa, da Carris e conservas de peixe e mesmo uma greve geral contra a carestia de vida. Um cenário de crise, que marcou o país entre 1920 e 1923. Um facto a que se juntam «actos de rebeldia revolucionária», como os que aconteceram em 19 de Outubro de 1922, com o final dramático das mortes de António Granjo, chefe do Governo, Machado Santos e Carlos da Maia. E, igualmente, uma grande instabilidade política, com António José de Almeida a dar posse a 16 chefes de Governo. Entre 21 de Janeiro de 1920 e 2 de Março de 1921 foram sete: Domingos Pereira, António Maria Baptista, José Ramos Preto, António Maria da Silva, António Granjo, Álvaro de Castro e Liberato Pinto. Em 1921 investe mais seis: Bernardino Machado, Barros Queirós, António Granjo, Manuel Maria Coelho, Maia Pinto e Cunha Leal. Em 1922 foram três Governos, de António Maria da Silva, «conseguindose uma certa acalmia». Reis Torgal recorda que António José

90 anos com Penacova António José de Almeida

de Almeida foi «o primeiro estadista português a visitar o Brasil», nas comemorações do centenário da independência, e destaca o «momento singular», os «discursos muito intensos», o «momento de aproximação» entre os dois países, com o Presidente da República portuguesa a ser recebido «com grande entusiasmo por brasileiros e pela “colónia portuguesa”. O historiador lembra o discurso que fez ao povo do Brasil e ao povo de Portugal, no Rio de Janeiro, e a intervenção na Academia Nacional de Medicina. «Foi o exercício da minha profissão, foi o contacto com os meus doentes, foi o sentimento fraterno que me ligou sempre a eles, como, de resto, acontece com todos os médicos, que fez com que eu, na política da minha terra, tenha sido animado desse espírito de conciliação que me tem levado a querer concentrar todos os portugueses nos laços da mesma disciplina e, ao mesmo tempo, conservá-los sob o mesmo amor carinhoso e fraterno», disse o chefe de Estado. Na presidência de António José de Almeida, além da deslocação ao Brasil, destaca-se a visita dos reis da Bélgica e do príncipe de Mónaco ao país, a travessia doAtlântico por Gago Coutinho e Sacadura

Retrato oficial António José de Almeida

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Perfil António José de Almeida nasceu a 17 de Julho de 1899 em Vale da Vinha, S. Pedro de Alva. Em 1889, inscreveu-se no curso de Medicina, na Universidade de Coimbra. Fervoroso adepto da República, foi, ainda estudante, condenado por ter escrito o artigo “Bragança, o último”. Participou na revolta de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, e proferiu um fervoroso discurso por ocasião da morte de José Falcão, o primeiro de uma carreira de eloquente orador. Concluído o curso, partiu para Angola (1896), seguindo-se S. Tomé, onde ficou até 1903. Regressado a Lisboa, viajou para França, onde estagiou. Montou consultório em Lisboa, adquirindo a auréola de “médico do pobres”. Foi, todavia, na política que adquiriu notoriedade. Empenhou-se em revigorar um Partido Republicano desmoralizado, mas acabou por fundar o Partido Evolucionista. Candidato às eleições parlamentares em 1905 e 1906, foi eleito em 1906. No ano seguinte filiou-se na Maçonaria. Foi preso em Janeiro de 1908. Após os acontecimentos de 5 de Outubro de 1910, intensificou a actividade política, como ministro do Interior, presidindo, depois (1916) ao Governo da “União Sagrada”. A 6 de Agosto de 1919, ao fim do terceiro escrutínio, foi eleito Presidente da República. Tomou posse no dia 5 de Outubro e deixou o cargo a 5 de Outubro de 1923. Casado com Maria Joana Morais Queiroga, teve uma única, filha, Maria Teresa. Faleceu no dia 31 de Outubro de 1929.


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António José de Almeida 90 anos com Penacova

Cabral, bem como a trasladação dos restos mortais dos soldados portugueses mortos em França e na Flandres. Substituído no cargo por Manuel Teixeira Gomes, em 5 de Outubro de 1923, continuou a sua colaboração com o jornal “República”, que fundou em 1911. Atacado pela gota, passou os últimos anos de vida preso a uma cadeira de rodas. A morte

surpreendeu-o no dia 31 de Outubro de 1929, impedindo-o de tomar posse como grão-mestre da Maçonaria. «Morro cristão. Mas não católico. Morro sem ódios. E perdoo a todos os meus inimigos, porque morro inteiramente em paz com a minha consciência», dizia à esposa, pouco depois de perguntar as horas. Eram «duas e meia, certas». Antes, pediu-lhe «dois cobertores

Terra natal reconhecida

Presidente da República inaugurou exposição evocativa do centenário

Em homenagem aAntónio José deAlmeida, a Assembleia Municipal de Penacova aprovou, por unanimidade, em 28 de Maio de 1976, a data de 17 de Julho, dia do seu nascimento, como feriado municipal. Em sua memória foi erigido um busto, da autoria do escultor Cabral Antunes, de Coimbra, inaugurado no dia 5 de Outubro de 1976. As homenagens estenderam-se a São Pedro de Alva, com a inauguração, no dia 5 de Outubro de 1997, de uma estátua de António José de Almeida. Na terra natal do antigo Presidente da República, em Vale da Vinha, a rua e o largo onde fica a casa que o viu nascer, foram baptizados com o seu nome. A aquisição desta casa foi um propósito que mobilizou o município, concretizado no dia 5 de Outubro de 2014, com mediação da Presidência da República, onde decorreu a cerimónia. Em 2018, nas comemorações do 5 de Outubro, o presidente da Câmara dava conta de um protocolo estabelecido

com o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX, no sentido de transformar a casa de Vale da Vinha em Museu da República. Em 2019, 100 anos após a sua eleição para a Presidência da República , o município empenhou-se em assinalar condignamente a efeméride. Entre os vários momentos, destaca-se a exposição comemorativa, possível graças à colaboração dos museus da Presidência da República e da República e Maçonaria, e de muitos particulares, como Alexandre Ramires, David Almeida, Isabel Tenreiro, Luís Bigotte Chorão e Luís Reis Torgal. A mostra foi inaugurada pelo Presidente da República, no dia 17 de Julho, feriado municipal. Na ocasião, Marcelo Rebelo de Sousa enalteceu «o grande Presidente da República» e a «grande personalidade» de António José de Almeida, «como pessoa, como político e estadista», destacando «o seu contributo para a política e para o

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bem quentes, bem aconchegados na cama. Quero, por fim, dormir em paz uma grande noite, ao cabo de tantas e tantas outras de tortura». O seu funeral constituiu um momento ímpar, em termos de mobilização, refere Luís Reis Torgal, que destaca a presença das mais gradas figuras da nação nas cerimónias, designadamente António Oliveira Salazar e o cardeal Cerejeira. 

país». «Era uma força da natureza, em termos físicos e psíquicos. Um homem de uma coragem ilimitada», o que lhe permitiu, «desde os bancos da escola, assumir uma luta política (…). Foi preso, atacado, perseguido… a tudo resistiu (…) sempre fiel a si próprio». O Presidente da República lembrou as capacidades de escrita e oratória do estadista e o «seu poder de arrastar pelo verbo, de mobilizar, fazer pedagogia em todas as circunstâncias». Foi, também, recordou, um «defensor dos direitos das mulheres, num país que praticava a discriminação», um «municipalista», um homem com «uma grande capacidade de aproximação», «de criar pontes» que «fez da sua vida uma devoção ao ideal republicano». «Olhar para este homem, fazer o retrato da sua vida é tirar lições para o presente e para o futuro», afirmou o chefe de Estado. «É bem justo que a sua terra, o seu município e a sua aldeia lhe prestem esta homenagem de forma duradoura. Estão a fazer história e a prestar um serviço à democracia (…), às novas gerações e a reavivar ideias, como a honestidade, verticalidade, isenção, transparência e tolerância» ao serviço de causas públicas, disse. «Abrir uma Casa-Museu é uma forma de lutar pela Democracia», disse ainda o Presidente da República, sublinhando a importância do Centro de Interpretação para continuar a lembrar a memória e os valores de António José de Almeida. «É destas pequenas coisas que se fazem as grandes coisas», rematou. Com a chancela da Presidência da República, vai ser lançada uma obra com uma selecção de discursos proferidos pelo brilhante orador de Vale da Vinha. Reis Torgal é um dos historiadores que, juntamente com Elsa Alípio e Ana Paula Pires, participa na obra, fazendo uma introdução aos discursos seleccionados. 


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90 anos com Penacova António José de Almeida

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Centro de Interpretação vai avançar O município está empenhado em avançar com a criação de um Centro de Interpretação dedicado a António José de Almeida. «É o patrono do nosso feriado municipal e um activo fundamental do nosso património», afirma o presidente da Câmara. Humberto Oliveira destaca a importância que António José de Almeida teve na História de Portugal, nos inícios do século XX, particularmente no período da Primeira República. Mais, considera que o município de Penacova, berço do estadista, tem «a obrigação de dar a conhecer a sua obra e o que representou para o país». Por isso e apesar de alguns contratempos, assume que o projecto da Casa-Museu – Centro de Interpretação António José de Almeida, a criar na casa onde nasceu o estadista é para avançar. Houve, assume, um compasso de espera, que acabou por condicionar e atrasar o projecto, decorrente da proposta de criação de uma Rede de Centros de Interpretação e Memória Política da Primeira República e do Estado Novo. Um projecto em rede, envolvendo, além de Penacova, Santa Comba Dão (Centro de Interpretação do Estado Novo, na casa de António Salazar), Seia (Centro de Interpretação da Primeira República – Afonso Costa), Carregal do Sal (Centro de Interpretação do Anti-Semitismo e do Holocausto – Casa-Museu Aristides de Sousa Mendes) e Tondela (Centro de Interpretação da Estância Sanatorial do Caramulo). «Acreditamos no trabalho em rede, envolvendo outros municípios e outros períodos da história», diz, sublinhando que a existência destes cinco espaços, integrados numa «rede alargada», representaria claramente um «benefício para a região». Todavia, face ao impasse e eventuais desis-

Casa de Vale da Vinha vai acolher Centro de Interpretação

tências, Penacova está empenhada em regressar à proposta inicial e avançar sem a rede, com o apoio do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX (CEIS 20) da Universidade de Coimbra. «Nós próprios podemos criar uma rede de locais de visitação», considera, tendo em conta os valores do património histórico e cultural do concelho. O edil aponta o Mosteiro de Lorvão, os núcleos molinológicos e o Museu do Moinho Vitorino Nemésio, os Fornos da Cal Parda, o Museu do Palito, que a autarquia pretende instalar na Casa do Monte, em Lorvão, entre outros espaços, além da Casa-Museu/Centro de Interpretação António José de Almeida. Prazos não existem. O próximo passo «é fazer o projecto de arquitectura», explica. Luís Miguel Correia é o responsável pelo trabalho a realizar. «Gostava que até ao final do ano o projecto estivesse pronto, para entrar em obra em 2023. Parece-me alcançável», conclui Humberto Oliveira.

João Paulo Avelãs Nunes, coordenador científico do CEIS20, refere que o objectivo do Centro de Interpretação «é salvaguardar o património, o edifício e a memória de António José de Almeida e família» e, em simultâneo, «fazer a ligação, a ponte, com a sua presença em Lisboa», onde desenvolveu a sua actividade como deputado, membro do Governo, Presidente da República e deixou a marca da sua herança intelectual. O projecto, esclarece, prevê «estabelecer uma relação orgânica e estruturante com o Museu da Presidência da República», no sentido de permitir essa visão mais completa sobre o homem e sobre a obra. Contempla a criação de um núcleo expositivo para informação local, visitas e turismo, centrado na realidade da Primeira República e no processo de transição para a ditadura militar e o Estado Novo». «É um projecto inequívoco», afirma, confiante que vai avançar. 


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Estrela d’ Alva 90 anos com Penacova

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ESTRELA D’ALVA MARCOU GERAÇÕES 1904 – 2015 O sonho do médico Alípio Barbosa de Oliveira Coimbra ergueu uma fábrica que se transformou num ícone da região e do país. A produção de telha parou em 2015.

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em no ADN o sabor do barro, moldado em formato de telhas. Em pequeno, sempre que tinha oportunidade fugia para a fábrica. Era o abraço menino à Estrela d’ Alva. Uma paixão que não ganhou futuro, ali, como previam os sonhos de Manuel Magalhães Cardoso. Manteve a vontade de fazer, alimentou a paixão pela indústria, canalizada, pela força do destino, para a área farmacêutica. No coração, em formato gigante, continua a viver a Cerâmica Estrela d’ Alva. Tem apenas 25 anos, mas vive intensa e apaixonadamente a história da empresa, fundada pelo trisavô, em S. Paio do Mondego. Uma fábrica que durante mais de um século foi o ganha-pão de muitas dezenas de famílias e uma referência na produção de telha. Ainda hoje há quem ligue para a Junta de Freguesia à procura das telhas Estrela d’Alva. Apesar de muito jovem, Manuel Magalhães Cardoso é o guardião das memórias da velha fábrica. Lê avidamente tudo o que foi escrito sobre a Estrela d’Alva e fala apaixonadamente da empresa. Um sonho que o médico Alípio Barbosa de Oliveira Coimbra (1865–1956) concretizou, em 1904. «Era médico, mas sempre teve um gosto especial por “meter as mãos na massa”, por fazer coisas e trabalhar numa área diferente da medicina». A ideia de criar uma empresa de cerâmica começou a ganhar força. «Era a vontade de fazer alguma coisa diferente na zona», esclarece o neto. À época, na região «havia três ou quatro fornos de cerâmica antigos e queria criar uma coisa nova, moderna, mais industrial». Depois de visitar várias empresas, avançou para o terreno. Nascia, assim, em 1904, a Cerâmica Estrela d’Alva – Barbosa Coimbra, S.A. Manuel Magalhães Cardoso socorre-se da obra “100 anos de história – Cerâmica Estrela d’Alva”, de autoria de Paula Cristina Ferreira Silva, lançada no centenário da empresa, para avivar as memórias e as histórias que passaram de geração em geração. Lembra que o projecto das comemorações foi em grande parte inviabilizado pela morte, no ano anterior, do avô, Alípio

veiro (Coimbra), foi o local escolhido, em virtude da maior centralidade e melhores acessibilidades. Manuel Cardoso, recorda o cais ferroviário instalado na empresa, o que contrastava com a falta de acessibilidades de S. Paio do Mondego. Uma dificuldade que obrigou o empresário a comprar, em 1916, uma “Berliet”, «que custou 18 contos». Era, explica a autora da obra comemorativa do centenário, «o terceiro ou quarto» camião existente em Portugal. Nascia a empresa Barbosa Ribeiro, a Fabrica de Cerâmica de Taveiro, filial da Barbosa Coimbra. «Cada um dos irmãos ficou responsável pela gestão de uma empresa», que em 1936 ficaram autónomas.

Alípio Barbosa de Oliveira Coimbra

Ribeiro Barbosa Coimbra. O livro do centenário foi lançado, mas o projecto do museu ficou na gaveta. O trineto do fundador recorda o incêndio que, em Agosto de 1922, destruiu a empresa. Um revés no projecto, provocado por «incúria de um forneiro, que se tinha divertido demais na festa das Ermidas e (…) só acordou quando o fogo chegou às suas vestes», escreve Paula Silva. A esplendorosa Estrela d’ Alva estava reduzida a escombros. Apenas as paredes permaneciam de pé. «Temos de reconstruir imediatamente a fábrica», dizia Alípio Barbosa, feliz por o desastre, apesar de grande, não ter provocado vítimas. «Empenhou-se em construir uma fábrica ainda melhor e maior, mais evoluída e com mais maquinaria», refere o trineto. Depois de um trabalho hercúleo, «um ano após o acidente, em Agosto de 1923, foram de novo prensadas telhas, na fábrica renovada, que nos anos de 1950 e seguintes se tornou uma das melhores da região», diz Paula Silva. Tal Fénix renascida, a Estrela d’ Alva recupera o fulgor. Cresce ainda mais, em resposta às solicitações do mercado. Impõe-se mesmo a criação de uma filial. Ta-

Fénix renascida entra em agonia A Estela d’ Alva começou por fabricar telha, tijolos e abobadilhas. Só mais tarde, em 1999, esclarece o trineto do fundador, deixou os tijolos e apostou na especialização, passando «exclusivamente a fabricar telha e acessórios cerâmicos». Sem esconder que houve altos e baixos, o jovem recorda os tempos de ouro da fábrica e os grandes investimentos em maquinaria e na automação do processo produtivo. Mas sobretudo o tempo em que «os camiões faziam fila à espera da telha acabada de fazer». Uma época em que, apesar da produção ser considerável, «não havia stock», com o mercado rendido aos produtos Estrela d’Alva. Nos últimos tempos, adianta, a capacidade produtiva apontava para «12 milhões de unidades/ano». A empresa chegou a ter «cerca de 200 trabalhadores». Em 1952 recebeu a Comenda de Mérito Agrícola e Industrial. Nos anos de 2009/10, começou a exportação, particularmente para Angola. «Era o grande mercado», refere Manuel Cardoso. Espanha foi outro destino de referência e a empresa chegou a vender para o Dubai e Argélia. A crise que atingiu o país vizinho e a retracção da economia ditou um ponto final no mercado espanhol. Seguiram-se, em catadupa, os problemas em Angola, o que significou a perda do grande mercado. A Fénix Renascida vivia


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dias de agonia. Desta vez sem esperança. «Quando se entendeu que poderíamos fechar sem prejuízo de terceiros - leia-se dívidas - , decidimos fechar», explica o jovem, aluno do curso de Gestão e Engenharia Industrial. A produção terminou em 2015. Na altura o número de trabalhadores rondava as quatro dezenas.

Recuperar e manter vivo um património «A empresa ainda existe, mas a actividade é outra, ligada ao ramo imobiliário», explica Manuel Cardoso, que deixou Coimbra e se radicou em S. Paio do Mondego. Vive numa das casas da família. Mas o lugar tem mais casas, que cresceram junto à fábrica. São 11. Casas que foram sendo construídas para acolher os trabalhadores e famílias, que não tinham um lar. Algumas terão 80/90 anos. «Há pessoas que nasceram e sempre viveram nestas casas», faz notar. Com o encerramento da fábrica, «a família entendeu que devia aproveitar estas casas, requalificá-las», refere, apontando a grande procura de casas na região. «É uma forma de aproveitar este património, torná-lo útil e voltar a trazer vida à Estrela d’ Alva», afirma. O processo de recuperação começou há cinco anos. Neste momento estão duas casas recuperadas. Há algumas que «continuam habitadas – pelos antigos trabalhadores – e habitáveis, embora não estejam como gostaríamos», adianta. Uma das casas ardeu no incêndio de Outubro de 2017. É a próxima a ser reconstruída. As instalações da antiga cerâmica foram arrendadas a uma empresa de produção de carvão, pellets e briquets. «Custou muito à família ceder aquele espaço, ver ali pessoas estranhas. Mas é para um bem maior. Não podemos ficar demasiado agarrados aos bens materiais e não permitir que haja evolução. Custa, mas é importante que se faça», conclui. 

90 anos com Penacova Estrela d’ Alva

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Referência em termos de acção social e cultural

Instalações da fábrica Estrela d’ Alva em 2009

Manuel Magalhães Cardoso já não pode, como fazia em criança, passar a noite na fábrica, perder-se no mundo da produção da telha. Mas recuperou a relação de proximidade que a família desde sempre teve com a terra. «Fico muito feliz quando as pessoas me dizem que a Estrela d’ Alva foi o ganha pão de muita gente, o celeiro de S. Paio do Mondego. É muito bom», afirma, destacando o reconhecimento da comunidade a uma empresa que laborou durante 110 anos. Empresa que chegou a ter cerca de duas centenas de trabalhadores e que teve uma dinâmica social e cultural de grande relevo e com grande impacto na vida de S. Pedro de Alva e S. Paio do Mondego. Além do bairro construído para acolher as famílias mais carenciadas, a empresa promovia colónias balneares na Praia de Mira, para os filhos dos trabalhadores, organizava e financiava passeios turís-

ticos por todo o país para os funcionários. Instalou, também, uma escola, inaugurada em Dezembro de 1952, destinada a reduzir o analfabetismo. «Podia ser frequentada por todos os habitantes de S. Paio que não soubessem ler, escrever e contar», refere o livro do centenário. Criou, ainda, um teatro e uma filarmónica. «A Filarmónica de S. Pedro de Alva teve o seu início na Filarmónica Estrela d’Alva», recorda o jovem. A banda apresentou-se ao público pela primeira vez em Agosto de 1952, aquando da condecoração de Alípio Barbosa pela Presidência da República. Manuel Magalhães Cardoso reside na Estrela d’Alva, é membro da Assembleia de Freguesia e também está ligado à vida associativa, presidindo à Associação de Desporto e Cultura de S. Pedro de Alva. Foi mordomo e presidiu à comissão de festas de Nossa Senhora das Necessidades. 


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Fornos de Cal 90 anos com Penacova

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MEMÓRIAS DOS FORNOS DE CAL PARDA 2000 Há cerca de 20 anos terá sido feito o último carregamento de cal parda no Casal de Santo Amaro. Os fornos testemunham esse passado e mantêm viva a sua memória

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antêm a elegância de outrora, firmes e majestosos. Mas os fornos de cal parda há muito deixaram de funcionar em Casal de Santo Amaro. Repartidos por dois núcleos, continuam de pé, uns mais deteriorados que outros. Mas há seguramente duas décadas que não se faz ali cal. Bem, há sete anos, foi feita uma recriação, com um cineasta brasileiro a recuperar as memórias das gentes da localidade. Memórias vivas que Lino Dias Rodrigues Oliveira recorda connosco. Tem 71 anos e representa a terceira geração de uma família devotada à produção de cal parda. Eram 10 irmãos e todos trabalhavam ali. Lino desistiu depois de cumprir o serviço militar. Optou pela área das telecomunicações. Mas a família manteve o forno operacional, até há cerca de 20 anos. Artur Oliveira, o irmão (já falecido) «foi o último a fazer uma carga de cal parda para venda», refere. Um trabalho duro, exigente, onde todos trabalhavam e cada um tinha a sua função. «Tínhamos 30 mulheres a carregar pedra», explica. Desciam a encosta do monte, «por um carreiro», com as pedras à cabeça. As mulheres e os rapazes eram os responsáveis por trazer a pedra para o forno. Lino Oliveira estreou-se precisamente aí. Teria uns seis anos quando começou a acartar a pedra. Três dias era, por norma, o tempo que demorava a “carregar” o forno, com as mulheres a revezarem-se. Um dia vinham de Figueira de Lorvão, no outro de Carvalhal e no terceiro de Boas Eiras, exemplifica. Este corre-corre com as pedras à cabeça acabou, sublinha, anos mais tarde, quando se fez uma estrada que rasgava o monte até às pedreiras. Passaram, então, a ser os tractores e as camionetas a acartar a pedra. Nas pedreiras mantiveram-se os homens. Uns cinco. Tinham a responsabilidade de partir e retirar a pedra. Eram os cabouqueiros. Mais uma vez um trabalho especialmente duro, mas também perigoso. Num tempo em que o equipamento era rudimentar, a força de braços que comandava as operações. «Usava-se uma masseta

Há mais de duas décadas que se deixou de cozer cal em Casal de Santo Amaro

para bater num pistolo (cunha de pedra) e perfurar a pedra, entre um metro a metro e meio. Depois “carregava-se”com pólvora. Perdiz e Raposa eram as marcas usadas. Punha-se um rastilho e tínhamos que fugir», esclarece. A força da pólvora rebentava a pedra e permitia continuar a recolha. Nunca houve acidentes?, questionamos. A resposta não se faz espera: «O meu irmão mais velho, Júlio (já falecido), ficou sem um pé». Teria, na altura, 21 anos. Lino Oliveira lembra um outro acidente, igualmente provocado pela explosão de pólvora, mas não na pedreira. Terá sido em 1966 e destruiu por completo o forno. Aconteceu no Inverno. Num “buraco” do forno foi colocado um quilo de pólvora «para enxugar». Quando o forno foi acesso, «as faíscas entraram por ali, propagaram-se à lenha que estava debaixo do telheiro e ardeu tudo», A par da recolha e transporte da pedra, um terceiro grupo de trabalhadores andava na mata. O objectivo era recolher lenha, especialmente ramadas de eucalipto e mato para alimentar a fornalha. «Traziam as ramadas para junto da estrada. Depois, a camioneta passava e recolhia a lenha». Para uma fornada de cal eram necessárias «seis a nove camionetas de lenha».

À medida que a pedra chegava ia sendo colocada no forno. Por baixo, explica Lino Oliveira, «ficavam os penedos maiores», eram os chamados “cepos”. Pedra sobre pedra, a pilha ia crescendo em altura, com as pedras a diminuírem de tamanho. «Acabava com cascalho». Uma pira de pedra com 70 a 75 toneladas – que tinha de seguir um conjunto de regras, designadamente deixar livres os «canais, junto à parede do forno, para o fogo “trabalhar», explica o nosso interlocutor. Com a pedra pronta, faltava fechar a porta do forno, construindo uma parede de barro. Livres ficavam, sempre, uns pequenos “buracos”, na parte cimeira, que permitiam ter uma percepção exacta da forma como corria a cozedura. Começava, então, o trabalho na parte inferior do forno, com a fornalha a exigir lenha. À mão permanece uma enxada, uma pá, uma forquilha, uma picareta e um forcado. Este último instrumento tinha uma função essencial, por permitir empurrar a lenha, orientando o fogo para a zona onde a cozedura precisava de mais calor. Durante 30 a 36 horas, explica Lino Oliveira, é necessário estar constantemente a alimentar a fornalha e a vigiar e orientar o fogo. «A pedra faz um zurradouro e fica


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toda vermelha», adianta, sublinhando as temperaturas elevadíssimas que o forno atinge para cozer a pedra. Cumprida esta fase, segue-se o arrefecimento. 24 horas é o tempo médio. «Deita-se a parede abaixo – erguida, em barro, depois de colocado a pedra – para arrefecer mais depressa», recomenda. Com a pedra, ou melhor, a cal parda fria, começa a retirada do forno e o carregamento das camionetas. «A pedra fica reduzida a metade», sublinha Lino Oliveira. Significa que a fornada de 70 toneladas e pedra resulta em «30/35 toneladas de cal parda». Dos fornos de Casal de Santo Amaro as camionetas seguiram, carregadas, rumo a Coimbra. Lino Oliveira lembra a empresa Teixeira Lopes e a construção do bairro da Solum, em Coimbra, como grandes clientes. Depois surgiram clientes em Lisboa e Figueiró dos Vinhos. Mais tarde, na zona de Aveiro, particularmente em São Bernardo, a cal parda começou a ser utilizada como fertilizante, «para correcção» de solos agrícolas. No destino, consoante as necessidades, às pedras de cal juntava-se determinada quantidade de água. A cal mostra que está viva e ferve ao ser mexida. Daí resulta uma argamassa acinzentada (daí a designação “parda”) que durante séculos foi usada na construção civil. «Era muito boa para assentar pedra e tijolo», refere. 

30 a 36 horas era o tempo médio da cozedura da pedra. Antes, o carregamento do forno exigia, pelo menos, três dias de trabalho intenso

90 anos com Penacova Fornos de Cal

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Tradição de família encerrou um ciclo Lino Oliveira está a escrever uma obra que pretende ser um testemunho da sua experiência e do saber acumulado de sucessivas gerações que tiveram nos fornos da cal parda o seu ganha-pão. Uma actividade que terá começado nos finais de 1700, inícios de 1800, considera. O primeiro forno de cal na zona terá surgido perto do Lorvão, na localidade de Pisão. «Iam buscar pedra a Ançã – que permite fazer a cal branca – e também levaram pedra de Santo Amaro». Uma produção de cal que teria como destino as obras efectuadas no Mosteiro de Lorvão, mas também, garante, saiu dali cal para o Mosteiro de Santa Clara, em Coimbra. O forno do Pisão foi classificado, em Maio de 1999, como Imóvel de Interesse Público. Artur Rodrigues de Oliveira, avô de Lino Oliveira, foi o promotor do forno da família. O pai continuou a actividade e Lino e os irmãos sucederam-lhe, se bem que o nosso interlocutor tenha mudado o rumo da sua vida. Os dois irmãos continuaram a cozer cal, com a ajuda das sete irmãs, que assumiam a tarefa de fazer e orientar o transporte da pedra calcária até ao forno. Até há cerca de 20 anos, altura em que Artur Oliveira fez a última carga de cal parda. A crescente utilização do cimento retirou margem de manobra a esta produção, que se manteve num registo bastante artesanal. As “rotinas” do processo não permitiam tão-pouco aumentar grandemente a produção. «Cozia-se praticamente uma fornada de cal de 15 em 15 dias. Todas as semanas era impossível», atesta Lino Oliveira. No Casal de Santo Amaro, junto ao

Lino Oliveira é um dos herdeiros da arte

forno da família de Lino Oliveira, estão mais dois fornos. Segundo o nosso cicerone, um pertence à Câmara Municipal e o outro à família de Alípio Martins. 500 metros a Norte está mais um grupo de três fornos de cal, pertencentes aos familiares de Armando Nogueira Seco, Heliodato da Costa e Daniel Nogueira Seco. Há ainda um forno antigo, sem chaminé, que seria «dos inícios» da exploração de cal parda na localidade. De resto, é no Casal de Santo Amaro que se concentra o maior e melhor conservado conjunto de fornos de cal parda, que também existem nas localidades de Ferradosa, Sernelha, Arroteias-Riba de Cima, Lorvão, Carregal-Friúmes e Galiana. Em 1997, o Centro Recreativo do Casal empenhou-se, como o apoio do município, em recuperar um dos fornos. No telheiro anexo foi criado o Núcleo Museológico dos Cabouqueiros e dos Carpinteiros. 


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Barragem da Aguieira 90 anos com Penacova

AGUIEIRA: UM MAR DE ÁGUA E UMA FONTE DE ENERGIA 1981 Nove anos depois do arranque, ficavam concluídas as obras da Barragem da Aguieira. Um ano depois estava pronta a barragem da Raiva. Seguiu-se a das Fronhas

Barragem da Aguieira começou a ser construída em 1972 e ficou concluída em 1981

É

um verdadeiro “três em um”: produção de energia eléctrica, armazenamento de água para rega e regularização do caudal, procurando impedir as cheias. Um complexo de três barragens que faz parte do Plano Geral de Aproveitamento Hidráulico da Bacia do Mondego. Em causa está o complexo da Aguieira, que inclui três barragens. Duas – Aguieira e Raiva – no rio Mondego. A terceira, das Fronhas, no rio Alva, afluente da margem esquerda do Mondego. O sistema inclui, ainda, o açude-ponte, em Coimbra, fundamental para o controle das cheias. A jusante de Coimbra, com o mesmo objectivo e também para garantir a rega e o enxugo dos campos, foi criado um sistema de canais. Um sistema complexo mas, sobretudo, articulado. A barragem da Aguieira é a “mãe”de todo o processo. As obras, explica a EDP Produção, iniciaram-se em 1972, com a execução da galeria de derivação provisória e da ensecadeira de montante. No ano seguinte, arranca a empreitada principal, abrangendo a barragem, descarregadores de cheias, central e anexos.

Em 1975, foram concluídas as escavações e iniciadas as betonagens da barragem, central e circuito hidráulico. Nesse mesmo ano foi adjudicado o fornecimento dos equipamentos hidromecânicos e electromecânicos. O enchimento da barragem começou em Junho de 1980 e as obras ficaram concluídas no ano seguinte. Localizada a cerca de 1,7 km a jusante da foz do rio Dão, no limite de Travanca do Mondego, com a freguesia de Almaça (Mortágua), a barragem tem 89 metros de altura, acima da fundação, e 400 metros de desenvolvimento no coroamento. A central da Aguieira tem, de acordo com fonte da EDP, uma «potência bruta de 336 MW (megawtt)» e está equipada com três grupos geradores com turbinas. A produtibilidade média anual é de 193 GWh. A obra do “escalão” da Raiva arrancou em 1975, «com a abertura de um canal para desvio provisório do rio e escavações da barragem». Nos dois anos seguintes foram adjudicados, respectivamente, os equipamentos hidromecânicos e electromecânicos», esclarece a EDP, e as obras ficaram concluídas em 1982. A Barragem

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da Raiva, a cerca de 10 km a jusante, no lugar do Coiço, funciona como «contraembalse» criando «condições para a bombagem para a Aguieira, permitindo, também, modular o caudal turbinado na central da Aguieira». A central da Raiva «é construída por dois grupos geradores e tem uma potência bruta total de 24 MW». A produtibilidade média anual é de 46 GWh. A Barragem das Fronhas, na freguesia de Pombeiro da Beira (Arganil) permite regularizar o caudal de cheia do rio Alva e derivar água para a albufeira da Aguieira, através de um túnel com 8,2 km de extensão. A obra arrancou em 1982 e a barragem entrou em funcionamento em 1985. A grande massa de água criada pela albufeira da Aguieira impressiona. São 31 quilómetros de extensão, que se estendem pelos municípios de Penacova, Carregal do Sal, Mortágua, Santa Comba Dão, Tábua e Tondela. É a água do Mondego, Dão e Criz, que inunda «uma área de dois mil hectares ao nível de pleno armazenamento» (cota de 124,7). A capacidade total de armazenamento é de 423 hm3. Debaixo destas águas estão “sepultadas”três aldeias, Foz do Dão, Breda (Mortágua) e Senhora da Ribeira (Santa Comba Dão), bem como a ponte de Salazar, inaugurada em 1940. Com menor impacto, a albufeira da Raiva estende-se pelos municípios de Penacova e de Mortágua ao longo de 10 km e inunda uma área de 230 hectares, ao nível do pleno armazenamento (cota 61,50) e tem capacidade total de 24,4 hm3. A albufeira das Fronhas com uma extensão de 7,5 km, inunda 535 hectares, ao nível do pleno armazenamento (cota de 134,10) e tem capacidade total de 62,1 hm3. Os estudos e projectos da Aguieira, Raiva e Fronhas foram feitos pelo corpo técnico da EDP. A empresa Construções Técnicas foi a principal responsável pela obra da Aguieira e da Raiva, e a SEOP foi a referência nas Fronhas. Os principais equipamentos das centrais da Aguieira e da Raiva foram fornecidos pela Sorefame e pela Neyrpic. Para a construção das barragens da Aguieira e da Raiva foi necessário efectuar cerca de 500 mil metros quadrados de escavações e foram consumidas cerca de 170 mil toneladas de cimento. Estiveram envolvidos na construção destes dois “escalões” milhares de trabalhadores. No período de ponta, de acordo com a empresa, foram cerca de 1.400. 


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90 anos com Penacova Barragem da Aguieira

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Segurança garantida em várias frentes «A gestão do sistema Aguieira/Raiva/Fronhas, «é feita em permanente articulação com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), tendo como prioridade a protecção de pessoas e bens – nos períodos de cheias – e a garantia de reserva de água, no Verão», adianta. Os três “escalões”«são permanentemente observados de acordo com um plano de observação estrutural». Plano que inclui «um conjunto vasto e diversificado de aparelhos e sistemas – tais como fios de prumo, extensómetros de resistência eléctrica, bases de alongâmetro, medidores de movimentos de juntas, termómetros, extensómetros de fundação, drenos e piezómetros – havendo também observações geodésicas periódicas». São igualmente realizadas inspecções visuais de rotina e, periodicamente, são feitas «visitas de inspecção de especialidade», que contam com a participação de técnicos da EDP Produção, APA e consultores do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC). «São, também, elaborados periodicamente relatórios de análise do comportamento estrutural das barragens» remetidos à APA. O sistema é operado de acordo com um conjunto de normas e «é periodicamente verificada a operacionalidade dos órgãos de segurança, garantida por uma manutenção adequada», adianta. A EDP Produção salienta a «recente beneficiação geral dos descarregadores de cheia da Barragem e da Raiva, em 2013/2014, e das comportas das descargas de fundo e de meio fundo da Barragem das Fronhas, em 2017/2019». Actualmente está em fase de aprovação o Plano de Emergência Interno das três barragens, cuja implementação «prevê a instalação de dois postos de observação e

Central da Aguieira tem três grupos de geradores de turbinas e potência de 336 MW

controlo (Aguieira/Raiva e Fronhas) e um sistema de aviso às populações». Os principais equipamentos dos três grupos da central da Aguieira foram sujeitos a «extensos trabalhos de renovação» entre 2010 e 21012. Actualmente estão a decorrer trabalhos similares na Raiva, que arrancaram em 2019 e se estendem até Novembro. «Trata-se de uma renovação muito profunda dos principais equipamentos, após 40 anos de funcionamento», explica a EDP, apontando a intervenção de «uma vasta equipa», constituída por «cerca de 90 pessoas, de diversas áreas de especialidade». Trabalham actualmente nos aproveitamentos da Aguieira, Raiva e Fronhas 11 pessoas em regime de permanência, «apoiadas continuamente por técnicos de diversas áreas técnicas da EDP Produção», refere a empresa. A Barragem da Aguieira desempenha um papel importante na regularização do caudal do Mondego». No Verão, funciona como

«reserva de água e alimenta o consumo humano e o regadio do Baixo Mondego». No Inverno, «tem a capacidade de reduzir as consequências das cheias». Todavia, adverte, «não controla nem elimina todas as cheias», porque se trata de «um reservatório com capacidade limitada». Significa que o seu desempenho «depende da duração e da amplitude da cheia», pois, «a partir de um certo momento, a albufeira não pode encaixar mais água e tem que libertar a mesma quantidade de água que está a fluir». A Aguieira e a Raiva «apenas dominam, conjuntamente, cerca de 56% da área total da bacia do Mondego», faz notar a EDP Produção, apontando o facto de existirem cursos de água, designadamente o rio Ceira e a ribeira de Mortágua que desaguam no Mondego, a jusante da Aguieira e que, «em épocas de grandes afluências podem ter caudais consideráveis e ser um contributo importante para as cheias em Coimbra e no Baixo Mondego». 


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Águas Caldas de Penacova 90 anos com Penacova

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ÁGUA MINERAL NATURALI EM ESTADO PUROI

1999 Nas Caldas de Penacova nasce uma unidade de engarrafamento que conquista o mercado. Nascida na Serra do Buçaco, a água é captada a 60 metros de profundidade. Diariamente mais de um milhão de litros segue para matar a sede aos portugueses e ao mundo

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m média são 40 camiões que, todos os dias saem das Caldas de Penacova. Carregados de água. Mais de um milhão de litros. Água que mata a sede dos portugueses. De Norte a Sul do país. Mas também na vizinha Espanha e noutros países europeus.Amarca Caldas de Penacova tem uma performance de excelência nos Países Africanos de Lín-

guas Oficial Portuguesa e também é apreciada nos países árabes. De Penacova para o mundo. Uma água mineral natural, que nasce na Serra do Buçaco e se afirma pela sua pureza e excelência. Um milagre da natureza que Urbano Marques e Carlos Saraiva descobriram há pouco mais de duas décadas e que tratam como uma verdadeira jóia da coroa. Que é, sem dúvida. Por isso se procuram evitar desperdícios, ao mesmo tempo que se investiu em tecnologia de ponta, pautada pela automatização e robotização. Um circuito perfeito onde a intervenção humana é mínima. Basta dizer que ninguém toca na água, pois são as máquinas que cumprem todo o ciclo. De resto, a zona onde se processa o engarrafamento é um espaço pressurizado, de acesso extremamente li-

mitado. «Em 10 anos, se lá fui três vezes, foi muito, afirma Urbano Marques, administrador da empresa. Um “recato”que garante a preservação da qualidade e pureza da água e que é transversal a todo o processo. Tecnologia e cuidado caminham lado a lado. Desde a fonte à garrafa ou garrafão. As contínuas análises – mais de 20 por dia - efectuadas no laboratório, igualmente instalado na empresa, atestam a qualidade da água engarrafada. Urbano Marques guia-nos nesta viagem de descoberta. A água, explica, é captada a Norte do edifício principal da unidade, instalada nas Caldas de Penacova, «a cerca de 100 metros», precisa o empresário. São furos verticais, três, com cerca de 60 metros de profundidade. Por curiosidade, dois dos furos “debitam” 14 mil litros/hora cada. O


90 anos com Penacova Águas Caldas de Penacova

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2

3  Depósitos onde é recolhida a água, captada na Serra do Buçaco

As pré-formas transformamse nos diferentes tipos de embalagem

A automação rege todo

1 terceiro tem uma capacidade de extracção de 25 mil litros/hora. Em regime de extracção contínua, mas «variável em função das necessidades», de molde a evitar desperdícios. Aágua é encaminhada para 24 reservatórios de inox, na empresa, onde fica armazenada.

o processo, sendo escassa a intervenção humana

A capacidade total destes reservatórios é de um milhão e 600 mil litros. Água está pronta a ser utilizada. Um sistema de bombagem, automático, leva a água dos reservatório para o interior da unidade fabril, mais precisamente para a sala de enchi-

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mento, «absolutamente estanque» cujo acesso está reservado aos operacionais que têm a responsabilidade de controlar o processo. Ao mesmo tempo que a água “caminha”, através de tubagens, dos reservatórios para a sala de enchimento, todo um vasto mecanismo é operacionalizado. Em total sintonia, numa outra ala da empresa, começam a “nascer” as garrafas e os garrafões. Um processo que inicialmente, explica o empresário, chegou a ser completamente feito nas Caldas de Penacova, mas que as exigências, em termos de produtividade, obviaram. Significa que os recipientes hoje já não são ali totalmente produzidos, mas as “pré-formas” é ali que ganham forma. Adquiridas em Portugal, especialmente na zona da Marinha Grande, ou em Espanha, acumulam-se num dos armazéns e quando chega a hora entram no circuito de produção, igualmente com a chancela da equipa Águas das Caldas de Penacova. Um sistema altamente mecanizado, onde a intervenção humana apenas atesta que está tudo em conformidade. As máquinas – são várias, com diferentes capacidades e velocidades – recebem a pré-forma e, através de um sistema que junta o aquecimento e o sopro, ganham a forma final, em escassos segundos. Assim, uma pré-forma, que não é mais do que um pequeno tubo – que já tem, de origem, a forma da rosca, para o arrolhamento – com 66 gramas, entra na máquina e do outro lado sai um garrafão de 5 litros. Noutro equipamento, entram pré-formas de 23,5 gramas e saem garrafas de 1,5 l. Para dar vida às garrafas mais pequenas, de 0,5 e 0,33 l, estão, respectivamente, as pré-formas de 12,2 e de 10 gramas. Um processo eficaz, mas que tem um custo elevado. 53% dos gastos totais de energia da unidade fabril estão concentrados no


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Águas Caldas de Penacova 90 anos com Penacova

sopro das garrafas, esclarece o administrador. A factura mensal de energia ronda os 60 mil euros, adianta. Num circuito todo automatizado, os garrafões seguem a sua rota, o mesmo acontecendo com as garrafas de 1,5 l ou de 0,5 ou de 0,33l. Estas últimas alternam, pois são três as linhas de produção. Funcionam em simultâneo, carreando os diferentes tipos de embalagem para a sala de enchimento. Antes de receber a água, cada vasilhame é devidamente enxaguado, com água mineral natural, também num processo totalmente automatizado. Automatizada, igualmente em sintonia, está a colocação das tampas nas garrafas e garrafões. O circuito continua, com uma cadência vertiginosa, rumo à rotulagem. Segue-se o embalamento, “comandado”pelo automatismo e pela robotização. Os garrafões podem apresentar-se individualmente ou em “pack”de dois. As garrafas de 1,5 l em “pack” de seis ou de 12. Já as mais pequenas são juntas em pacotes de 24. Todos são devidamente envolvidos em invólucros de plástico e colocados em paletes. «Estão prontos para serem expedidos para os armazéns internos. «Aágua tem de ficar 72 horas armazenada», explica Urbano Marques. Trata-se de «uma obrigação imposta pela lei. Uma espécie de quarentena da água», adianta. São três os armazéns da empresa, que foi crescendo na margem do rio Mondego. Um tem capacidade para 12.600 paletes, outro para cerca de 5 mil e o terceiro para 12.800 paletes. Os camiões chegam, carregam e partem, rumo ao IP3, ali, logo acima das instalações da empresa. Cada carga representa cerca de 24 mil litros de água. São, em média, 40 por dia. Mas podem chegar aos 50. Uma cadência de saída que dita, dentro da fábrica, a cadência do engarrafamento. 

São três as linhas de produção instaladas

Diário de Coimbra

Investir todos os anos no crescimento da empresa

Urbano Marques, um dos mentores do projecto, é o administrador da empresa

A empresa Águas Caldas de Penacova começou a laborar em 1999, suportada num investimento que rondou os 600/800 mil contos. Na altura trabalhava oito horas por dia e tinha uma capacidade de produção de cerca de 3 mil garrafões/hora e 18 mil garrafas de 1,5l/hora, com as unidades mais pequenas, de 0,33 ou 0,5l, a atingirem as 22 a 24 mil unidades hora. A empresa arrancou cresceu, consolidou-se e o investimento tem sido uma realidade «Todos os anos temos feito investimentos», afirma Urbano Marques, destacando que, nos últimos quatro anos, a Caldas de Penacova investiu cerca de dois milhões de euros anualmente. «Sempre com dinheiros próprios», sublinha, destacando a aposta que feita na grande automação e robotização, que permite que a unidade funcione com cerca de 80 colaboradores.Actualmente, a capacidade instalada permite a produção de 6 mil garrafões/hora, 22 mil garrafas de 1,5 l/horas e 44 mil de 0,5 ou 0,33l/horas. À medida que o mercado cresceu, na sede de beber Água Caldas de Penacova, a empresa aumentou a sua capacidade produtiva. Hoje são três linhas de enchimento e uma produção de 24 horas/dia, de segunda a sexta-feira. A água da Serra do Buçaco, engarrafada nas Caldas de

Penacova, chega a todo o país, a uma grande parte da Europa, Angola, Cabo Verde, S. Tomé, Guiné, Macau, Estados Unidos da América e países árabes. Capacidade de crescer existe, mas o ritmo vai continuar, como tem acontecido, a ser ditado pelas necessidades do mercado. Certo é que já hoje, no Verão, «não conseguimos engarrafar toda a água que o mercado pede», sublinha o administrador, uma vez que o consumo dispara relativamente às restantes épocas do ano. Daí, também, a necessidade de crescer em termos de capacidade de armazenamento, como tem acontecido. A empresa, líder de mercado, possui uma facturação a rondar os 21 milhões de euros. Em 2020, à semelhança do que tem acontecido nos últimos anos, voltou a conquistar os galardões de PME Líder e PME Excelência.. 

Com margem para crescer, a empresa, líder de mercado, quer continuar esse caminho de forma sustentada, em sintonia com o mercado


Diário de Coimbra

90 anos com Penacova Águas Caldas de Penacova

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O petróleo do século XXI Dois amigos, Urbano Marques e Carlos Saraiva (já falecido), empenharam-se em criar um negócio juntos, tendo a água como matéria-prima. O objectivo foi criar uma unidade de engarrafamento de água e, «após pesquisar uma boa parte do país, verificámos que em Penacova existia um produto de grande qualidade», recorda o administrador da empresa. Estavam lançadas as bases para criar a Águas das Caldas de Penacova. Nem Urbano Marques nem Carlos Saraiva tinham qualquer ligação a Penacova. Urbano é de Vale de Açores, Mortágua. Carlos era de Celorico. «Foi este produto de qualidade que nos atraiu», sublinha, recordando que, «há 40 anos, as mulheres vinham aqui lavar a roupa, porque a água saía a 20º, um sinal de pureza», atesta. Urbano Marques, actualmente com 78 anos virava, em 1999, uma página na sua vida. Empresário, estava ligado ao ramo das madeiras, designadamente na área da

Mais de um milhão de litros de água são engarrafados diariamente nas Caldas de Penacova

carpintaria e móveis, em Lisboa. Trocou a madeira pela água. «Na altura dizia-se que a água seria o petróleo do ano 2000», recorda. Por isso, os dois empresários e amigos – que inicialmente tiveram um terceiro sócio – empenharam-se nesta prospecção. Valeu a pena?, perguntamos. «A água é, realmente, um produto de excelência. Muito barato, mas que exige muito cuidado, muito trabalho e atenção», considera, confessando as «muitas noites» passadas a trabalhar e a «coragem e determinação» que o negócio exige. «Fizemos o nosso caminho e somos líderes de mercado há sete anos consecutivos», diz, com notório orgulho. O mesmo orgulho com que nos diz que 99% da produção da empresa é comercializada com a marca própria, Caldas de Penacova. Significa que só uma parte muito residual – 1% - chega ao mercado através de “marcas brancas”. «É assim desde há três anos», esclarece. 


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Barca Serrana 90 anos com Penacova

embarque/desembarque. A passagem da barca é acompanhada pelo grito “Ó da roda”. Trata-se do alerta para o rápido manuseamento da engrenagem que permite abrir a ponte e deixar passar a barca. A viagem tem um preço de 6 euros por pessoa. 15 se incluir merenda. As reservas podem ser efectuadas pelo facebook ou instagram.

BARCAI SERRANA DEI VOLTA AOI MONDEGOI

Praia do Reconquinho é o cais de embarque e de atracagem da barca

2020 Fábio Nogueira e Sérgio Seco amadureceram o projecto e em Junho de 2020 a barca fez-se ao rio

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ábio Nogueira e Vítor Seco são os homens do leme de um projecto empreendedor, que trouxe a barca serrana ao Mondego. Um projecto que, após quatro anos de maturação, içou a vela e navega a todo o “vapor”. O “Tareco”, a barca da Serranas do Mondego, galga as águas do rio lembrando tempos passados. Ao barqueiro sucederam-se os tripulantes. A mercadoria, que circulava entre o Porto da Raiva e a Figueira da Foz, constituída por sal, peixe, madeira, carvão e hortícolas não cabe a bordo. No seu lugar estão turistas e visitantes, desejosos de conhecer o rio “por dentro”. A vontade de ter um «negócio ligado ao rio» juntou Fábio Nogueira e Vítor Seco. Ambos têm antepassados barqueiros e quiseram fazer uma homenagem a essa vivência e, ao mesmo tempo, «recuperar um meio de transporte esquecido e trazê-lo para os nossos dias», explica Fábio Nogueira. Todavia, foi necessário adaptar e modernizar o “Tareco”. «O barco foi adaptado», o que significa que deixou de ser movido à força de braços e passou a ter um motor eléctrico. Uma opção que pretende assegurar a sustentabilidade do projecto e permitir «que a experiência seja semelhante à de uma barca serrana tradicional, movida à força de braços».

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A viagem de estreia realizou-se em Junho do ano passado, representando o corolário de um projecto que «começou a ser pensado quatro anos antes». Um tempo alargado que se prende, justifica Fábio Nogueira, com complexidade de uma embarcação «completamente inovadora». Os dois sócios – um arquitecto e outro ligado à gestão turística – construíram a embarcação, uma réplica da barca serrana. Coube a Paulo Carpinteiro, da Ferradosa, conhecedor da arte, a construção. Seguiu-se o «moroso processo» para obter as necessárias licenças da Direcção Geral de Recursos Naturais e Serviços Marítimos (DGRM). São cinco os projectos licenciados, três em Penacova – Rebordosa, Reconquinho e Livraria do Mondego – e dois em Coimbra. Estes últimos continuam a ser uma miragem. O projecto foi apresentado ao município há quatro anos «e nunca tivemos uma resposta», lamenta Fábio Nogueira. Trata-se de obter uma autorização, por parte da Câmara, para a instalar um cais. «Não precisamos de mais nada», assegura, fazendo notar que os «custos são inteiramente assumidos» pela Serranas do Mondego. Aliás, este impasse adiou o início da construção de uma segunda embarcação. As viagens começam na Praia do Reconquinho, onde foi instalado o cais de

Sabores e saberes para apreciar A barca, com 12 metros, tem capacidade para transportar dois tripulantes e 20 pessoas, mas as actuais restrições reduzem-na a dois terços. São duas as modalidades, a viagem dita normal, realizada até às 17h00. «A viagem das 18h00», supostamente a última do dia, «tem merenda a bordo». Fábio Nogueira explica que os bancos da barca rodam e permitem a instalação de mesas com produtos endógenos. Uma ementa que inclui enchidos, compotas, broa de milho caseira, vinho do produtor e Queijo da Serra. Este último é a única iguaria que não é produzida em Penacova, refere. Merenda que representa a oportunidade para apurar os sentidos, estendendo o olhar para o rio, sob ângulos e perspectivas diferentes e, simultaneamente, abrir o apetite a novas sensações e sabores. «O feed-back tem sido muito positivo», afirma. Mas há mais para apreciar, neste caso, ouvir, durante a viagem. «O nosso objectivo é ter uma “aula de história”a bordo», explica. O que significa que o arrais vai explicar tudo o que se vê, mas particularmente dar conta do «enquadramento histórico», explicar o porquê da barca serrana, como surgiu e os seus objectivos, além de «contar as histórias da gente ligada ao rio e as epopeias que se viviam até à Figueira da Foz». Uma viagem que demorava uma semana, com os barqueiros a dormirem, a cozinharem, em síntese, a viverem dentro da barca. Um grande meio de comunicação entre o Porto da Raiva e a Figueira da Foz. De Penacova saíam os mais diversos produtos agrícolas, madeira, mas também as telhas e tijolos da Estrela d’Alva. Na viagem de regresso vinha o sal e o peixe. O advento do automóvel foi deixando para trás o uso da barca, com os camiões a garantirem o transporte mais célere e económico.Abarca serrana caiu em desuso e transformou-se numa peça de museu. Vítor Seco e Fábio Nogueira empenharam-se em tirar-lhe as “teias de aranha” e repor a navegação. Ali está, pronta a içar a vela e largar do cais.


90 anos com Penacova Canoas

Diário de Coimbra

Descidas do rio são uma atracção, particularmente durante o período de Verão

DESCOBRIR O RIO A BORDO DE UMA CANOA 1988 Um casal belga descobria as potencialidades do rio e criava a primeira empresa de descidas em canoa

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rofessores de Educação Física e Desporto, Dirk e Kristien Van Vossole estavam em Marrocos, ao serviço do governo belga e foi ali, no Norte de África, que conheceram um português, da zona de Tábua. Grande adepto de viagens, o casal não tardou em visitar a região, a conselho do amigo. Chegaram a Penacova e descobriram os encantos do rio. Resolveram ficar. O filho, Jonas, tinha três ou quatro meses quando saiu da Bélgica rumo a Portugal. Regressou à terra natal para completar a formação académica (licenciatura e mestrado em Relações Internacionais e Economia), mas decidiu voltar a Penacova e dar continuidade ao projecto criado pelos pais, entretanto falecidos. “O Pioneiro do Mondego” foi o nome que Dirk e Kriestien deram à empresa, criada em 1988. «Foi mesmo a primeira

empresa de canoagem no país», sublinha o filho. Jonas recorda que, há 33 anos, não se fazia literalmente nada no rio, mas os pais perceberam as «óptimas condições» que o Mondego oferecia. À época, na Bélgica as descidas de rio em canoa já eram uma prática corrente. E foi essa experiência que quiseram implementar em Penacova. Um caminho que foi sendo feito de uma forma lenta. Inicialmente «teríamos umas 10/15 canoas», o que significava descidas para um máximo de 20 pessoas. Aliás, as antigas canoas eram feitas em fibra de vidro, o que representava um “drama” em termos de estragos. Hoje, volvidos 33 anos, tantos quando Jonas tem de idade, a capacidade aumentou substancialmente, rondando as 250/300 pessoas e o número de canoas cifra-se nas 120/140. Também já se ultrapassou a era da fibra de vidro e agora são kayakes feitos em polietileno. «É mais

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resistente», garante o empresário. Pioneiro nas descidas do rio, O Pioneiro do Mondego conta actualmente com muita “companhia”, pois foram-se sucedendo as empresas de turismo de natureza e aventura, tendo o rio como elemento central. Nada que assuste Jonas. «Pelo nome que temos e pela boa organização, somos responsáveis por 40% das descidas», afirma com satisfação. Um resposta que exige, sobretudo no Verão, altura em que a procura cresce, um grupo alargado, de 10 a 15 monitores. Apesar de a procura ser maior no Verão, O Pioneiro do Mondego garante descidas do rio durante todo o ano. A Primavera é, refere, uma altura excelente. Se algumas intervenções, designadamente represas e açudes podem, em algumas alturas, congestionar o “trânsito” no rio”, Jonas entende que esse é um obstáculo que, com organização entre as empresas, evitando que os grupos saiam todos à mesma hora, se consegue controlar. Diferente é o que não existe, ou seja, «uma divulgação estratégia desta actividade»,, designadamente pelas autarquias. «É uma actividade pioneira de animação turística na Região Centro, mas nenhuma Câmara a promove, convida os turistas a virem para cá», afirma, contrariamente ao que acontece em Espanha ou na Bélgica. Jonas destaca o impacto, em termos de restauração e hotelaria que esta actividade gera e que pode crescer, desde que haja «um pensamento integrado». «Faz falta essa visão global», o que significa que «ainda há um grande potencial de crescimento», considera o timoneiro de O Pioneiro do Mondego. A pandemia não trouxe um impacto negativo de relevo à actividade, diz Jonas, que faz notar, isso sim, a ausência de turistas estrangeiros, que representavam uma fatia significativa, na casa dos 30/40% e que ficou reduzida a zero. Quebra compensada pela afluência de turistas nacionais. 

O Pioneiro do Mondego foi a primeira empresa a apostar no turismo de natureza e aventura em Penacova. Jonas continua a desenvolver o projecto criado pelos pais


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Lampreia 90 anos com Penacova

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BOA LAMPREIA E BOM AMANHO SÃO OS GRANDES SEGREDOS 1991 Restaurante Côta d’ Azenha é uma das mais afamadas casas onde se serve o arroz de lampreia à moda de Penacova. Um sabor diferente, único, que cativa milhares de apreciadores

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á 100 maneiras de fazer lampreia. A nossa é à moda de Penacova. É diferente». Palavras de Jorge Côta, um dos mais afamados especialistas na confecção do arroz de lampreia. Um “ex libris” de Penacova que tem conquistado os mais diversos paladares. Os clientes atestam essa «diferença». «Dizem-nos que podem comer lampreia em muitos locais, mas em Penacova é diferente». «Em qualquer restaurante do concelho», garante o proprietário do Côta d’Azenha. Diferente para melhor. Diferença que está no tratamento dado à lampreia, explica. «Uma boa lampreia e um bom amanho» são, assegura, o factor principal para a tal “diferença”. «A lampreia precisa de estar alguns dias em água doce, percorrer o rio», porque «vem com muita gordura», caso contrário «não é boa». É por essa razão que os restaurantes de Penacova têm tanques, onde as lampreias ficam uns dias, a aguardar. Trata-se de «limpar» a lampreia, torná-la «mais suave». Mas não precisa de cominhos, ervas ou picante. «A lampreia não é peixe nem é carne. É um ciclóstomo, e tem de saber ao que é», faz notar o mestre. Quanto ao «bom amanho», trata-se de «saber o que estamos de fazer», diz. Reconhecendo que se trata de um bicho “esquisito”, Jorge Côta lembra a necessidade de retirar a viscosidade que rodeia o ciclóstomo, uma operação que se consegue escaldando a lampreia ainda viva. «Com água quente, essa viscosidade sai toda. Caso contrário, tem de ser raspada», alerta, o que representa muito mais trabalho. Sobretudo quando se têm de amanhar vários exemplares. Depois há que ter atenção à tripa. Há uma tripa que «vem de cima abaixo», ao longo de todo o corpo. Por isso «leva uns quantos cortes», que permitem retirá-la. Emília Côta, a esposa, é a grande especialista. Pelas suas mãos, ao longo de 40 anos, já passaram milhares de lampreias, conta o marido. Com a lampreia amanhada, segue-se a

Arroz de lampreia de Penacova é “diferente” dos outros. “Para melhor”, sem dúvida

preparação da calda, onde fica a marinar durante 24 horas. O sangue da lampreia e o vinho tinto são os ingredientes fundamentais desta marinada, onde não pode faltar o alho porro. «Não é alho francês», adverte Jorge Côta, alertando para o facto de este legume ser «doce». «É alho porro», enfatiza, cuja função é «absorver o travo do vinho». Esta é a «receita dos antigos», faz notar. No dia seguinte, faz-se um refogado e junta-se-lhe a lampreia e a respectiva marinada. São 30/40 minutos de cozedura. «A calda é que faz o arroz, que lhe dá aquele sabor único», garante. Arroz Carolino do Baixo Mondego, claro está! Arroz que permite uma absorção ímpar dos sabores. Deve ser servido mal acaba de ser cozinhado, com grelos a acompanhar. Um regalo para os apreciadores. Jorge Côta tem o restaurante há 30 anos, mas começou a sua actividade antes, numa tasca do sogro, Henrique Côta, em 1975. Um espaço muito modesto, onde a lampreia era particularmente apreciada, o mesmo acontecendo com os peixes do rio. A tasca é hoje um café e Jorge e Emília ergueram o restaurante, ao lado. Um espaço

que é uma referência no arroz de lampreia e outras especialidades regionais e onde as entradas são obrigatoriamente de peixinhos do rio fritos. Ruivacos, bogas e enguias. «Queijo e enchidos todos podem servir, peixes do rio não», diz. Mara e Andreia, as duas filhas do casal, ajudam no restaurante, juntando-se aos sete funcionários . «Já fomos 11, 12», recorda Jorge Côta. Alguns estão na casa há 30 anos, tantos quantos o restaurante. «Somos uma família», adianta o empresário, com 65 anos.

Take away fez sucesso O Festival da Lampreia, que se realiza há mais de 20 anos e constitui um dos momentos altos para a visita dos apreciadores de lampreia à moda de Penacova, realizou-se este ano em moldes diferentes. Numa parceria entre restaurantes e município, foi preparado um menu “take away, com a lampreia já preparada, faltando apenas juntar o arroz, já devidamente doseado. «Mandei lampreias para todo o país», diz Jorge Côta. «Correu muito bem», afirma, louvando a iniciativa.


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90 anos com Penacova Confraria da Lampreia

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CONFRARIA DEFENDE SABOR ÚNICO DA LAMPREIA 2003 Defender o arroz de lampreia como prato característico de Penacova é o objectivo da Confraria da Lampreia

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efender a tradição associada à confecção do arroz e lampreia à moda de Penacova constitui o objectivo fundamental que levou, em 2003, um grupo de aficionados desta iguaria a juntar-se. Assistia-se ao nascimento da Confraria da Lampreia e erguia-se mais uma voz activa para defender este “sui generis” prato. «Ou se gosta ou não se gosta», afirma Fábio Nogueira, mordomo-mor da Confraria da Lampreia. É um prato, adianta, cujos segredos passam de geração e geração. «Uma confecção que carece de tempo, entre 24 a 48 horas» e cuja preparação constitui quase um ritual. Um prato sazonal, apenas disponível durante quatro meses do ano, que atrai um grande número de aficionados ao concelho de Penacova, onde os restaurantes não têm “mãos a medir” para dar resposta às solicitações. O Fim-de-Semana da Lampreia, uma proposta da autarquia, em parceria com os restaurantes, que permite um preço mais acessível a uma iguaria habitualmente bastante cara, não se pôde realizar por causa da pandemia. Todavia, se “Maomé não vai à montanha, vai a montanha a Maomé”. E foi isso mesmo que aconteceu este ano. O mordomo-mor recorda uma conversa com o vice-presidente da Câmara, João Azadinho, onde se perfilou a ideia. Com acertos aqui e ali, a “box” ganhou forma e a lampreia, pré-confeccionada – aqui estão os segredos e as dificuldades – pôde chegar a casa dos apreciadores. A caixa também continha a medida ajustada do arroz, os grelos prontos a cozer e também os doces tradicionais (nevadas e pastéis de Lorvão) oferecidos pela autarquia. «Correu muito bem», afirma, satisfeito. «Os restaurantes conseguiram vender, sem desvirtuar o prato, que chegou a casa das pessoas com todas as suas características peculiares». Com 70 confrades, a Confraria da Lampreia tem-se afirmado no cada vez mais alargado universo confrádico. Sinal disso foi a presença, no último capítulo (aniver-

Confraria assume-se como uma “embaixadora” de Penacova no mundo confrádico

sário) de 60 confrarias. Um evento que acontece habitualmente em Abril, e que, devido à pandemia, já não é celebrado há dois anos. Esta significativa presença é o resultado, sublinha, «do óptimo trabalho de representação que temos vindo a fazer, promovendo e levando longe o nome de Penacova». Os elementos (confrades) da Confraria da Lampreia destacam-se pelo cunho muito peculiar do respectivo traje. «É inspirado no capote (preto) que era usado pelos barqueiros», explica. No capuz foi aplicada uma rede, «que o torna único». O escapulário é branco e azul e oferece o ingrediente de cor. A medalha apresenta, de um lado a lampreia, a fisga e a bateira e, do outro, o brasão do município. A completar, está um chapéu, também ele usado pelo barqueiro, juntamente com o capote. Explicado o traje, o mordomo-mor apresenta uma «regra muito específica», exclusiva da Confraria da Lampreia: os homens têm de usar fato preto, camisa branca e gravata azul. Já as senhoras têm opção:

usar roupa preta ou branca. «Isto faz com que sejamos muito mais padronizados», refere. Relativamente a projectos, a Confraria vai arrancar com as obras de adaptação da sede, instalada numa antiga escola, cedida pelo município. O objectivo, de acordo com Fábio Nogueira, é instalar uma cozinha e criar condições para a realização de workshops, designadamente de culinária e envolvendo a lampreia. «Queremos criar um espaço activo», salienta. «Já vários chefs se disponibilizaram para participar», adianta. 

Criada em 2003, a Confraria da Lampreia tem hoje 70 confrades. Está a fazer obras numa antiga escola para poder aumentar a actividade


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IP3 90 anos com Penacova

Diário de Coimbra

IP3 ENCURTA DISTÂNCIAS 1991 No dia 12 de Agosto de 1991 assistia-se à abertura do troço entre Trouxemil (Coimbra) e Raiva. Trinta anos depois, concluiu-se a primeira fase de requalificação do itinerário. Faltam as outras duas etapas

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troço do IP3 (Itinerário Principal) entre Trouxemil e Raiva vai abrir ao tráfego na próxima segunda-feira, pelas 15h00. Os trabalhos, iniciados em Março de 1987, encontram-se praticamente concluídos» anunciava o Diário de Coimbra na edição de 10 de Agosto de 1991, reportando-se a uma visita, efectuada na véspera, pelo ministro das Obras Públicas, Ferreira do Amaral. Uma obra com 22 km, incluindo três pontes e diversas passagens superiores, que se insere, esclarecia o jornal, no projecto do IP3, que pretende ligar a Figueira da Foz a Vila Verde da Raia, com passagem por Coimbra, Viseu, Lamego e Vila Real. «No total são cerca de 350 quilómetros que irão atravessar metade do país». De acordo com as informações prestadas pelo governante, o custo do troço Trouxemil-Raiva «deverá rondar os 8 milhões de contos» e o prazo de execução, previsto para três anos, «prolongou-se devido a alterações introduzidas ao projeto inicial – que passou de duas para três vias (…) e incluiu outros nós de acesso além dos previstos, como por exemplo o Nó de Penacova», escreve o jornal. Ferreira do Amaral destacava, ainda, a inovação, com um pavimento em betão, técnica que «permite reduzir os custos de conservação », ao mesmo tempo que «melhora a aderência dos veículos», refere o jornal. Nesta obra, adianta o jornal, referindo dados apontados pelo governante, ao longo de quatro anos «trabalharam entre 300 a 400 operários e a movimentação de terras em escavação ascendeu a 2.700 mil metros cúbicos, correspondentes a 270 mil cargas de camião», esclarecia. «Problemas a nível geotécnico, nomeadamente nas fundações para os «pilares da ponte do Mondego, trouxeram dificuldades acrescidas para uma obra que, em 1987, fora adjudicada por cerca de 5 milhões e que foi concluída com um gasto de mais três milhões» referia, citando declarações de Ferreira do Amaral. No dia 13, o Diário de Coimbra voltava

Separadores centrais, em betão foram a solução em alguns dos “pontos negros” da via

ao assunto, destacando os 22 km do troço e os «15 minutos» necessários para percorrer a distância. Destaca a construção do «futuro acesso a Penacova», que não constava do projecto inicial, «incluído após reivindicação das populações e do entendimento a que chegaram a Câmara e a Junta Autónoma de Estrada». O nó de Penacova «será feito ao quilómetro 18, passando sob a ponte da Ribeira de Selgã». Trabalhos em curso, que se previa estivessem concluídos no final do ano. Significa que, até lá, os residentes em Penacova teriam de entrar ou sair do IP3 no nó da Espinheira. O jornal apontava, ainda, o revestimento em rede, de parte da encosta, para evitar deslizamento de pedras, e alertava os cuidados acrescidos do condutor, numa zona com «muitas curvas e inclinação», onde o «perigo de acidentes» é real. O repórter dava especial atenção à «polémica ponte na Livraria do Mondego», ao km 20, «obra que deu muitas dores de cabeça aos construtores devido a falha geológica no leito do rio, precisamente no sítio onde assenta um dos pilares». Para «obviar os estragos» neste monumento geológico, «a ponte foi construída em cur-

va». O técnico da empresa construtora explicava que a ponte «se assemelha a um “S”, com uma inclinação transversal do tabuleiro continuamente variável da entrada à saída». Dois quilómetros após a ponte, encontrava-se o Nó de Miro, onde terminava o troço do IP3. A Junta Autónoma de Estradas estimava que 15 mil veículos circulassem diariamente no troço entre Trouxemil (Coimbra) e Raiva. Leitão Couto, antigo autarca de Penacova e uma das figuras que mais se havia batido, na última década, para a concretização do IP3, destacava o momento e o seu impacto no desenvolvimento dos concelhos e da Região Centro. «Com a inauguração do troço Trouxemil-Raiva do IP3 a nossa região vai crescer perante a macrocefalia da capital», vaticinava, num artigo de opinião. A construção do IP3 até Viseu desenvolveu-se na década de 1990, embora o troço entre Oliveira do Mondego e Chamadouro estivesse praticamente construído desde os inícios da década de 1980, integrado na Estrada Nacional 2, aquando da construção da Barragem da Aguieira, tendo sido aproveitado para o traçado do IP3.


Diário de Coimbra

Intervenções necessárias No virar do século, o troço entre Coimbra e o Porto da Raiva foi alvo de uma grande transformação. O piso, em betão revelou-se uma inovação que não resultou e foi necessário proceder à sua substituição. Foram, igualmente, colocados separadores centrais, em betão, após uma grande pressão popular, tendo em conta os graves indicadores de sinistralidade rodoviária que transformaram o IP3 na “estrada da morte”. Depois da abertura do Nó de Penacova (em obra aquando da abertura do primeiros troço), assistia-se, já este século, à inauguração de um segundo nó, de Lorvão. A prometida área de serviço acabou por cair definitivamente no esquecimento. Apenas o “Bar 21” se assumiu como espaço de descanso e “abastecimento”para os condutores neste troço do IP3. A partir de 2010, a Junta Autónoma de Estradas, actual Infraestruturas de Portugal, lançou um conjunto de empreitadas, no troço entre Coimbra e Santa Comba Dão, designadamente de intervenção nos pilares das pontes de Foz do Dão, Ribeira de S. João de Areias (2010), Cunhedo Ribeira de Mortágua e sobre o rio Dão (2012). Era o combate ao chamado “cancro do betão” que envolveu mais de 12 milhões de euros e acabaria por ditar, em Agosto de 2012, o arranque da construção de uma nova ponte na foz do rio Dão, face ao avançado estado de deterioração da existente. Uma empreitada adjudicada por 11.574.514 euros, concluída em Maio de 2015. A estabilização e taludes e colocação de barreiras contra a queda de pedras, a reabilitação da ponte sobre a ribeira do Botão, e implantação de barreira acústica foram outras empreitadas levadas a efeito, que também envolveram a substituição de toda a sinalização vertical, efectuada entre 2018 e 2019. 

90 anos com Penacova IP3

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Primeira fase de requalificação Precisamente em Maio de 2019 arrancou a mais recente intervenção, «concluída em Abril deste ano. Foi a obra de reabilitação do IP3 entre o Nó de Penacova e a Ponte sobre o rio Dão. Uma intervenção em 16 km, que representou um investimento cifrado em 11.847 mil euros. Uma obra que a IP reputa de especial importância, uma vez que «assegura uma importante melhoria ao nível da qualidade das condições de circulação e segurança para os milhares de automobilistas que diariamente utilizam o IP 3 nas suas deslocações».Aempreitada, esclarece, incluiu: «beneficiação estrutural e repavimentação integral, implementação de separador central, reposição e reforço da sinalização vertical e horizontal», bem como a «execução dos nós desnivelados de Oliveira do Mondego e Cunhedo». Esta obra constitui a primeira fase do projecto geral de requalificação e duplicação do IP3, apresentada em Junho de 2018 pelo primeiro-ministro, António Costa, e pelo presidente da Infraestruturas de Portugal, António Laranjo. Uma cerimónia realizada em Penacova, com o mote colocado na redução da sinistralidade e na coesão regional», onde o IP3, depois de completamente requalificado foi apresentado como «a primeira infra-estrutura rodoviária inteligente do país». António Laranjo garantia a sua concretização até 2022, escrevia o Diário de Coimbra.António Costa destacava a oportunidade para «ter uma circulação rodoviária mais segura e uma região mais coesa». A empreitada de requalificação entre Penacova e a Lagoa Azul «teve um atraso significativo na sua conclusão», assume a IP. Uma das razões prende-se com «o

Primeira fase da obra está concluída

escorregamento de grandes dimensões de um talude de escavação, em Dezembro de 2019, motivado pelas condições extremas provocadas pela passagem das depressões “Elsa”e “Fabien”». Uma situação que obrigou a contratação de projecto e execução posterior da obra ao km 59,500. Actualmente estão em curso mais duas obras, iniciadas já este ano. A primeira ao km 63,650, orçada em 1.392.454 de euros, inclui a estabilização do talude de escavação e reabilitação da plataforma, com termino previsto para meados de Novembro. A segunda, ao km 48,650, de estabilização de taludes de aterro tem conclusão prevista para Dezembro e representa um investimento de 709.795 euros. Para a requalificação total do IP3 falta avançar com a segunda e terceira etapas, ou seja, a duplicação do traçado entre Souselas e Penacova e entre a Lagoa Azul e Viseu. De acordo com o projecto apresentado, quando a intervenção estiver completa, a ligação entre Coimbra-Viseu está estimada em 43 minutos, contra os actuais 65 minutos. O IP3, numa extensão de 75 km, vai ficar com mais 48 km de via dupla. O investimento total previsto «é de 134 milhões de euros». 


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Nacional 2 90 anos com Penacova

Diário de Coimbra

Rota da Nacional 2 atrai cada vez mais turistas, que em Penacova, além de bem recebidos, são contemplados com brindes

PENACOVA NO CENTRO DA NACIONAL 2 2016 Rota da EN 2 tem-se revelado um argumento de peso na atracção de visitantes. Um verdadeiro “ovo de Colombo”, no entender do autarca de Penacova

É

um projecto diferenciador, com uma identidade muito própria», considera Humberto Oliveira, presidente da Câmara Municipal de Penacova, que assume que a Rota da Nacional 2 «se não é actualmente o principal factos de atracção de turistas ao concelho, é um dos mais relevantes». «São milhares de pessoas», diz Humberto Oliveira que, depois do «ano especial» que se viveu no ano passado, marcado pela pandemia, não esconde as suas expectativas relativamente ao que vai acontecer este ano, particularmente no Verão, tendo em conta o desconfinamento crescente. «São muitas pessoas a circular, sobretudo de moto», refere. Para o autarca, a Rota da Nacional 2 é «um exemplo de intermunicipalidade», que se tem saldado num verdadeiro êxito. «Falta fazer muito», adianta, nomeadamente no que se refere «a «sinalização e sinalética, que queremos seja coerente». Humberto

Oliveira refere alguns “qui pro quo”em Penacova, onde é fácil «as pessoas perderem-se», precisamente devido à insuficiente sinalização. «Se uns gostam, outros não» e, por isso, entende que é importante limar estas arestas e também intervir em «alguns trajectos». Penacova, diz, está em negociações com a Infraestruturas de Portugal, no sentido de poder instalar um “Posto de Turismo”junto à EN2 , e, desta forma, introduzir alguns melhorias no apoio aos viajantes, que têm no km 238 uma referência icónica. «Para quem vem de Faro, estão cumpridos 500 km. Para quem vem de Chaves, faltam cumprir 500 km», refere. Tirando algumas pequenas arestas, o autarca considera a Rota da N2 «um projecto excepcional» e elogia a ideia tão simples quando eficaz do autarca de Santa Marta de Penaguião, onde em Fevereiro de 2106 foi constituída a Associação de Municípios da Rota da Nacional 2. «As coisas mais

óbvias são, muitas vezes, as mais difíceis de ver», faz notar. Penacova empenhou-se particularmente neste projecto. Sinal disso é o “spot” criado junto aos Paços do Concelho, com um curioso pão de forma, muito procurado para a fotografia que atesta a passagem dos viajantes. Quem ali carimbar o respectivo “passaporte” também tem direito a um brinde alusivo ao km 238 da N2, decorado com um “pão de forma”, uma vespa ou uma bicicleta. O brinde inclui informação sobre o Roteiro do Arista, convidando os viajantes a conhecerem alguns dos locais mais emblemáticos do concelho. «São pequenos pormenores que agradam aos visitantes», diz o autarca, elogiando o empenho da equipa liderada pelo vereador responsável pelo pelouro da Cultura neste projecto. O edil destaca, ainda, o impacto que a Rota da Nacional 2 tem em termos económicos, particularmente junto dos estabelecimentos de restauração e faz notar que a maioria dos restaurantes de referência de Penacova «se encontra junto à N2 ou a escassos 100, 200 metros». Significa que a «a N2 vem acrescentar valor ao sector da gastronomia».AEstrada Nacional 2 atravessa longitudinalmente o país, entre Chaves e Faro. Atravessa 11 distritos, 35 concelhos, 11 serras e igual número de rios, num total de 738 quilómetros. 




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