Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 07/10/17

Page 1

8 | Caderno3

DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 7 E 8 DE OUTUBRO DE 2017

CONTRAPLANO ESTREIA

DOCUMENTÁRIO

Afeto em tempos de descarte

Marcas dispersas pelo mundo

Com “Na Praia à Noite Sozinha”, o cineasta sul-coreano Hong Sang-soo realiza seu filme mais íntimo DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema

H

ong Sang-soo tem um fascínio por aquilo que parece banal. Suas histórias nascem de propostas simples, que se desdobram de maneira espontânea em novas visões sobre as relações afetivas. Seus personagens, sempre atingidos por sentimentos difíceis de conduzir, são verborrágicos, mas ainda permitem que a imagem contemplativa fale por si. Em “Na Praia à Noite Sozinha”, seu mais recente trabalho lançado nos cinemas brasileiros, o cineasta invade sua própria intimidade ao contar a história de fuga de Young-hee, vivida pela atriz Kim Min-hee. Após se envolver com um diretor de cinema casado, ela busca retomar sua estabilidade emocional, embora existam coisas não resolvidas. O banal, na verdade, transforma-se em assunto escorregadio, já que o próprio Sanghoo foi notícia nos jornais coreanos por ter tido um relacionamento extraconjugal com a própria Min-hee. Sang-hoo, então, leva para a ficção sua versão dos fatos em uma obra dividida em dois momentos. O primeiro mostra a protagonista em rota de fuga pela Alemanha, que conversa com uma amiga sobre assuntos comuns, como relacionamentos, desejos e futuro. Não sabemos direito o que aconteceu entre ela e o tal diretor de cinema, mas a busca da personagem por um recomeço é evidente. A segunda parte mostra Young-hee de volta à Coreia, convivendo com pessoas comuns de seu cotidiano, sabatinada pelas circunstâncias decorrentes da exposição do caso amoroso. Entre saquês e cervejas, Young-hee encontra força paras externalizar suas frustrações sentimentais. “Amor sufocante também deve ser descartável”, fala em determinada cena. Ao contrário da artificialidade com que o cinema americano trata

A atriz Kim Min-hee, premiada no Festival de Berlim com o Urso de Prata, estrela filme de Hong Sang-soo com traços autobiográficos do relacionamento que viveu com o diretor em questão

O roteiro parte da fragmentação emocional da protagonista e dos personagens que a cercam para falar sobre o afeto temas semelhantes, neste filme a relação entre os dois transita entre o desejo e a culpa, entre o erro e o acerto, entre o antes e o agora. A divisão em segmentos brinca com a percepção do público acerca de uma mesma história, coisa que Sang-hoo aplicou com maestria no excelente “Certo Agora, Errado Antes” (2015).

Sentimentos O roteiro parte da fragmentação emocional da protagonista e dos personagens periféricos que a cercam para falar sobre o afeto, sobre o início das coisas. Sem tomar partido do adultério ou da santidade de seus personagens, o longa aborda os encontros sentimentais que acontecem, muitas vezes em contextos inesperados. A ruptura de uma relação

gera marcas, mas também faz com que as pessoas amadureçam. O futuro é algo constantemente questionado pela protagonista e a externalização de seus sentimentos é o catalisador de uma série de questionamentos propostos pela trama. Como sugere o próprio título, “Na Praia à Noite Sozinha” também fala sobre solidão e isolamento, processos naturais de quem ainda está tentando superar um término. O grande acerto de Sang-soo é de não romantizar demais a dor da perda e dar aos personagens a chance de falar por eles mesmos. O roteiro ainda dignifica o papel das mulheres no filme, sujeitas a erros e que querem ser amadas, como qualquer pessoa, independente de gênero. A interpretação de Kim Minhee é fundamental para esse mergulho na persona complexa de Young-hee, tanto que a atriz foi reconhecida com o cobiçado Leão de Prata do Festival de Berlim. É prazeroso ver o confronto entre sensibilidade estética e ferocidade verbal se assentar na tela. As paisagens pelas quais os personagens passam, outra marca do cineasta, são

essenciais na construção da história e nada está ali por acaso. Até mesmo seus incômodos zooms sublinham gestos ou elementos importantes para a apreensão das cenas, como quando Young-hee se ajoelha para fazer uma oração à beira de uma ponte. O poder das imagens de Song-hoo é forte e suas narrativas não acabam quando sobem os créditos finais. Com produção incansável, Sang-hoo encontrou uma forma pura de contar histórias aparentemente simples, mas que evidenciam a psicologia de seus personagens com beleza e honestidade. É fundamental conhecer suas obras anteriores para entender o que o estimula a fazer cinema, bem como seus modos de produção, que costumam agradar apreciadores do bom cinema contemporâneo. Mesmo que “Na Praia à Noite Sozinha” funcione bem como obra única, ele também está inserido na filmografia de um diretor, que tem presenteado o público com experiências muito particulares, sendo sempre delicioso acompanhar as provocações que ele mesmo se faz entre uma obra e outra.

E

xistem vários andamentos que um diretor experiente pode escolher para um documentário. Produtor do ótimo “Lixo Extraordinário” (2010), Hank Levine faz de “Êxodus – De Onde Eu Vim Não Existe Mais” uma experiência extremamente humana ao acompanhar diversos refugiados ao redor do mundo que ainda sentem as dores de não pertencerem mais ao lugar onde nasceram. Ainda que inclua informações essenciais sobre a situação política entre as nações que o filme explora, Levine não demonstra muito interesse em aprofundar contextos históricos e, principalmente, rebatê-los com outros pontos de vista. Tais informações aparecem resumidíssimas em letreiros didáticos que servem de ambientação superficial de tais cenários. A ele parece interessar apenas o estudo dos personagens, todos mais ou menos abalados pelas guerras que enfrentaram, parados em um tempo que nunca passa. Com isso, o filme evita imagens de arquivos e especialistas discutindo a temática, deixando apenas na boca dos personagens a experiência vivida por eles, transformadas pelos isolamentos geográficos e psicológicos. Em alguns momentos, ouvimos um poema lido pelo ator Wagner Moura, que quebra a imersão do diálogo e reitera os sentimentos ali expostos. Escolhendo essa linha narrativa, onde a voz dos refugiados é mais importante, Levine se entrega à paixão por aquelas pessoas, muitas vezes as retratandoas com certa ficcionalização do discurso. Essa construção da imagem com romantismo preju-

dica alguns discursos, cuja naturalidade termina perdida em meio aos procedimentos narrativos da obra. Mas isso não acontece no documentário inteiro, já que nem todo entrevistado cai na armadilha – como quando conhecemos uma senhora do Saara que fugiu a pé dos territórios ocupados pelos marroquinos, deixando sua família para trás e eternamente à espera de uma determinação de que ela possa voltar à sua terra. Vivendo em um campo de refugiados literalmente no meio do nada, ela abre suas dores para a câmera e não teme, em certo momento, andar meio a bombas escondidas na areia. Ao contrário dos personagens mais jovens, que buscam asilo no Brasil e em Cuba, por exemplo, essa senhora vive em uma prisão a céu aberto e ainda busca forças para lutar pelo que é seu de direito. Levine também elabora planos esteticamente arrojados, com direção de fotografia caprichada que explora as dimensões das prisões onde os personagens vivem – ainda que o faça de maneira muito grandiosa, na contramão da simplicidade que caracteriza o registro documental mais convencional. Mesmo sem aprofundar as relações políticas entre as nações, “Êxodus – De Onde Eu Vim Não Existe Mais” acerta principalmente ao aproximar o público da realidade dos refugiados. É um filme contemplativo sobre essas histórias que se espalham por um mundo ideologicamente apartado, onde a busca pelo acolhimento e pela segurança ainda é arriscada e não há previsão de acertos. (DB)

Filme de Hank Levine dá voz aos refugiados ao abrir a rotina de fuga de seus entrevistados em diversas partes do mundo

MOSTRA

A dramaturgia dos sonhos

O

cineasta mineiro Marcos Pimentel entende que o poder da imagem de trazer sensações e revelar conflitos é algo muito rico a ser explorado em uma obra audiovisual. É por meio de seus planos delicadamente orquestrados que conhecemos a vida de seus personagens, permitindo também que o público viva, ao lado de cada um, suas próprias histórias. Representante de uma produção mineira inquieta e preocupada com os modos de fazer cinema no Brasil, Pimentel é um cineasta que constrói pequenas pérolas que dignificam a alma de quem as assiste. Essa sensibilidade é marca recorrente em seus trabalhos, como no curta-metragem premiado “Sanã” (2014), onde acompanhamos a vida de um menino albino no meio das areias desérticas de um Brasil silencioso.

Já no longa-metragem “A Parte do Mundo que nos Pertence”, Pimentel pede licença para entrar nas casas de nove personagens a fim de registrar um cotidiano banal. O que amarra todas as histórias é um argumento simples: conhecer os sonhos de cada um. A obra, que integra a programação da Mostra Cinema e Resistência, no Cinema do Dragão, parte da simplicidade da observação e do respeito com cada personagem. Pimentel se abre às possibilidades de encenação a partir daquelas rotinas. Um senhor espera a passagem dos dias para se encontrar com seus pares de dança; uma jovem com síndrome de down sonha em ser bailarina; uma mulher se prepara para entrar no vestido de noiva. São personagens anônimos com vidas triviais, mas cujos sonhos são o combustível para suas existên-

Cinema do Dragão exibe longa-metragem documental do cineasta mineiro Marcos Pimentel, na programação da Mostra Cinema e Resistência

cias. Pimentel também faz um jogo interessante com os personagens. Ao mesmo tempo em que mantém a distância do olhar e deixa que eles ocupem os espaços onde a câmera pode ir, o cineasta também estimula cada um a obter as imagens que deseja. E isso sem cair na artificialidade da rotina. Tudo ali é plausível e ordinário, entrelaçado de maneira quase cirúrgica pelo olhar sensível de Pimentel. A montagem não deixa de ser essencial para a imersão nessas histórias, e não se priva de reconhecer que uns personagens são mais importantes que outros, o que implica no tempo de cena de cada um. “A Parte do Mundo que nos Pertence” é um filme para ser sentido e que pede o envolvimento da plateia com aquelas histórias. Afinal, elas estão ali por algum motivo especial. Nada é tão banal assim nas rotinas mostradas, em cada gesto e no que está velado pelo silêncio. Às vezes parece que somos capazes de ler o que se passa na cabeça dos personagens, a par-

tir dos contextos em que estão inseridos. Sem querer passar uma imagem romântica demais da busca pelos sonhos, o filme também questiona o que nos move como plateia. O documentário será exibido ao lado do curta ficcional “Os Cuidados que se Tem com o Cuidado que os Outros Devem Ter Consigo Mesmos”, do sempre competente Gustavo Vinagre – que, de certa forma, também fala sobre o futuro de um grupo de amigos, em um apartamento, tentando compreender o que acontece lá fora. Seja no gênero documentário ou na ficção, ainda é bonito ver como o cinema é capaz de nos tocar por meio da representação de histórias tão próximas a nós. (DB)

C Mais informações:

“A Parte do Mundo que nos Pertence”, na Mostra Cinema e Resistência. Terça (10), às 19h30, no Cinema do Dragão (R. Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema). Gratuito. Contato: (85) 3488.8600


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.