Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 30/12/17

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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO,30 E 31 DE DEZEMBRO DE 2017

CONTRAPLANO RETROSPECTIVA 2017

Histórias inesquecíveis

Após apontar os destaques nacionais, a Contraplano lista os filmes estrangeiros favoritos do ano DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema

C

erca de 300 filmes chegaram aos cinemas cearenses em 2017. Mesmo em um sistema de distribuição irregular, onde ocupam mais salas aqueles com maior apelo popular, é possível identificar uma grande variedade de propostas sendo realizadas por cineastas do mundo inteiro. A dificuldade em destacar apenas 10 de um número tão grande é reflexo da alta qualidade das produções, ainda que a opinião sobre elas não seja unânime. E isso é bom porque faz com que filmes diferentes e, às vezes, improváveis, sejam lembrados. Nenhuma lista é perfeita, mas elas existem para deixar na memória o que de bom aconteceu no ano que passou. Resultado dos valiosos trabalhos de coprodução que o Brasil tem experimentado, “O Ornitólogo”, de João Pedro Rodrigues, encabeça a lista. O diretor conta a história de um observador de animais em uma floresta portuguesa. A jornada do solitário Fernando, interpretado por Paul Hamy, se transforma em um ritual onde se discute religiosidade, sexualidade e comportamento por meio de analogias extremamente inteligentes e inventivas. João Pedro Rodrigues corre todos os riscos na concepção da trama, sem a pretensão de chocar o espectador. As cenas filmadas com precisão em cenários abertos evocam o encontro do homem com a natureza – do mundo e a sua própria. Os questionamentos são tão profundos, a ponto de ser quase impossível apreciá-lo em sua completude com apenas uma sessão. É um filme cujas camadas se revelam durante e após a projeção e que, justamente por sua grandeza, talvez seja melhor compreendido com o passar dos anos. João Pedro Rodrigues elabora uma autêntica obra do cinema contemporâneo. Não deixa de ser um filme estranho, com momentos aparentemente desconexos, mas que refletem a genialidade da criação de uma narrativa pura e original, que parte das questões do mundo em busca de ressignificação.

Orientais Dois representantes do cinema coreano integram a lista. Mais recente filme do diretor Park Chan-wook, “A Criada” é um belo exemplar de uma produção provocadora. Na trama, uma vigarista se aproxima de uma herdeira nipônica. Entre elas surge uma estranha relação que resulta em uma trama improvável. A direção de Chan-wook é um espetáculo à parte, construindo uma atmosfera que transita entre o drama e o mistério. As tentativas de trapacear a percepção do espectador estão lá e, ao contrário do que geralmente acontece, não são meros blefes. Até a última sequência, o cineasta entrega uma trama efetiva e bela. Em constante produção de filmes, o diretor Hong Sang-

soo parece desenvolver certo “universo cinematográfico” onde suas histórias se comunicam e, às vezes, até se repetem, mas causam o mesmo rebuliço. É inesperado o que ele oferece para o público, especialmente ao ter nos pontos de vistas de suas tramas sua principal arma. Em “Na Praia à Noite Sozinha”, o cineasta traz de volta sua verborragia para falar sobre relacionamentos fragmentados. Dessa vez, põe no centro sua própria história de vida: um cineasta que tem um caso com a atriz de seus filmes. Roteirizar em cima de um fato pessoal poderia ser apenas um capricho egocêntrico, mas não é. O resultado é um longa inspirador sobre relações afetivas e construção familiar.

Temáticas Um dos principais méritos de “Uma Mulher Fantástica”, de Sebastián Lelio, é discutir a transexualidade de forma crua e humanista, além de trazer a atriz trans Daniela Vega para interpretar uma mulher trans. A personagem Marina é uma garçonete trabalhadora que vive um romance com um homem mais velho. A inesperada morte do companheiro faz com que a vida da protagonista mude completamente. Os preconceitos que ela enfrenta, especialmente da família do namorado, refletem uma sociedade intolerante e que ainda tem dificuldade em entender questões relacionadas à identidade de gênero. Daniela Vega é uma força da natureza. Elogiada internacionalmente por sua interpretação, a atriz protagoniza uma das cenas mais dolorosas e revoltantes do ano, em um consultório médico. O filme também carrega belas alegorias sociais, sem descambar para o panfletário. Esse ano também tivemos “Afterimage”, trabalho final do cineasta Andrzej Wajda. A trama mergulha na vida do artista vanguardista Wladyslaw Strzeminski, interpretado pelo ótimo Boguslaw Linda, que enfrentou não apenas

Os imperdíveis “Na Praia à Noite Sozinha” (acima), “O Ornitólogo” (meio) e “Toni Erdmann” (abaixo) estão entre os principais destaques estrangeiros que estrearam em circuito comercial no decorrer do ano

SAIBA MAIS PRINCIPAIS DESTAQUES DOCINEMA ESTRANGEIRO LANÇADOS EM2017 1.“O Ornitólogo” (Portugal/França / Brasil),deJoãoPedro Rodrigues 2.“ACriada” (Coreiado Sul), dePark Chan-wook 3.“Toni Erdmann” (Alemanha / Áustria / Suíça / Romênia), de Maren Ade 4.“Na Praia à Noite Sozinha” (Coreia do Sul / Alemanha), de Hong Sang-soo

5.“Eu Não Sou Seu Negro” (Suíça / França / Bélgica / EUA), de Raoul Peck 6.“Uma MulherFantástica”(Chile / Alemanha/ Espanha / EUA),de SebastiánLelio 7.“Bom Comportamento”(EUA), de Bennye JoshSafdie 8.“Manchesterà Beira-mar” (EUA),de KennethLonergan 9.“Moonlight: Sob aLuz doLuar” (EUA),deBarry Jenkins 10.“Afterimage” (Polônia), deAndrzej Wajda

suas limitações físicas, mas também a crueldade das autoridades de seu país. Wajda faz uma obra esteticamente arrojada e fresca, sem demonstrar sinais de cansaço criativo aos 90 anos de idade. O diretor filmou com a experiência de um veterano e um olhar conectado às tendências do cinema. Assim, “Afterimage” respalda uma carreira dedicada a abordar questões entre arte e política, evidenciando a importância da resistência artística. A perseguição e a censura enfrentadas pelo protagonista décadas atrás parecem mais atuais do que nunca, o

que faz com que essa também seja uma obra de resistência. Uma das boas surpresas do ano foi “Bom Comportamento” (EUA), de Benny e Joshua Safdie. Os irmãos elaboram uma aventura eletrizante que remete aos grandes filmes de crime. Eles filmam o submundo de Nova York com criatividade, explorando as possibilidades narrativas da trama, em especial a direção de fotografia, a montagem e a trilha sonora. Destaque para a interpretação de Robert Pattinson, que tem buscado papéis que o desafiem como ator.

Reconhecimento Da temporada do último Oscar, quatro permanecem na lista. O drama familiar se mistura com humor negro em “Toni Erdmann”, de Maren Ade. Ao propor a reaproximação de um pai e uma filha, a cineasta elabora uma trama criativa, divertida e emocionante. As histórias familiares têm alcançado novos contornos nos filmes contemporâneos, sendo “Toni Erdmann” uma jornada que serve de espelho para nossas próprias vivências pessoais. A dureza Ines, papel da excelente Sandra Hüller, e a leveza de Winfried, interpretado por Peter Simonischek, rendem cenas impagáveis, além de dois momentos preciosos: um abraço e uma cantoria. É o retrato das nossas próprias relações, colocados em uma perspectiva deliciosa de assistir. Destaque entre os documentários do último Oscar, “Eu Não Sou Seu Negro”, de Raoul Peck, é um filme obrigatório. A pesquisa sobre a intolerância racial por meio de figuras como Malcolm X, Martin Luther King Junior e Medgar Evers, a partir da percepção do escritor James Baldwin, é um feito histórico para o cinema documental. O discurso político do filme vai muito além do simples registro, confrontando as formas de ver desse nomes considerados mártires da causa. A representatividade negra nunca pareceu tão necessária após esse trabalho irreparável de Raoul Peck, que precisa ser constantemente revisitado. Falando em representatividade, a vitória de “Moonlight: Sob a Luz do Luar”, de Barry Jenkins, no Oscar foi necessária para mostrar uma mudança, mesmo que mínima, no que diz respeito ao protagonismo dos negros na sétima arte. Os três períodos da vida de um jovem periférico discutem sexualidade, existencialismo e violência por meio de uma câmera que explora a construção dos personagens. Além do apuro técnico da obra, o roteiro traz humanidade à trama, que evita fórmulas fáceis. O caos sentimental de “Manchester à Beira-mar”, de Kenneth Lonergan, também permaneceu entre os destaques do ano. O desdobramento das questões familiares surgem sem pressa, onde não há espaço para o melodrama exagerado, por preferir cutucar a estabilidade psicológica de seus personagens. Lonergan elabora um filme preciso tecnicamente, enquanto mostra como as feridas do passado podem ser reabertas. Para além desses dez títulos, outros tantos poderiam integrar a lista. Também fizeram bonito “A Qualquer Custo”, de David Mackenzie; “Personal Shopper”, de Olivier Assayas; “T2 Trainspotting”, de Danny Boyle; “Mulheres do Século 20”, de Mike Mills; “Paterson”, de Jim Jarmusch; “Na Vertical”, de Alain Guiraudie; “Frantz”, de François Ozon; “Lady Macbeth”, de William Oldroyd; “It – A Coisa”, de Andrés Muschietti; “Columbus”, de Kogonada, e “Detroit em Rebelião”, de Kathryn Bigelow. Foi um ano inspirador, o que também esperamos que 2018 seja.


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