Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 23/12/17

Page 1

8 | Caderno3

DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO,23 E 24 DE DEZEMBRO DE 2017

CONTRAPLANO RETROSPECTIVA 2017

Brasil criativo A Contraplano discute os principais destaques do cinema brasileiro em um ano de importante produtividade DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema

N

ão é novidade que existe certa distância entre o cinema comercial e o autoral. Enquanto as comédias enlatadas preenchem as salas dos shoppings, o outro lado da produção audiovisual ainda se restringe a salas menores. Mesmo sem um esquema justo de distribuição, muitas das obras que alimentam esse circuito limitado também representam a identidade do nosso cinema. São produções marcadas pela experimentação de estilos narrativos e, mais do que nunca, uma leitura política de um País em caos. O ano que passou foi de efervescência para o cinema brasileiro, mesmo com as limitações de financiamento e distribuição. O convencimento junto ao grande público desacostumado ainda é lento. Para alguns realizadores, fazer cinema independente no Brasil é sinônimo de nunca chegar perto do alcance das produções comerciais. É um cinema de resistência, criatividade e com propostas que fogem do banal.

Olhares Eleger os “melhores” é relativo, especialmente em um ano com tantos bons filmes (tanto nacionais quanto internacionais), mas sem unanimidades. E isso é bom porque, acima de tudo, faz com que os filmes sejam colocados em perspectivas diferenciadas. Destacar produções importantes é essencial em um ano de transformações e onde o papel da arte foi constantemente questionado em diversos âmbitos. E isso não se aplica apenas à produção nacio-

nal, mas também ao cinema estrangeiro (não só o americano), que tem desdobrado suas propostas técnicas e temáticas a partir do olhar sobre o que acontece no mundo. Além do exemplo do último Oscar, onde se cobrou e se deu o grito pela representatividade racial na sétima arte, um exemplo mais próximo de nós foi o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em sua edição histórica de 50 anos. Os debates acalorados sobre o lugar de voz (das mulheres, dos negros, da sexualidade e demais “minorias”) na produção contemporânea é um processo de conquista. É possível fazer filme de todo jeito, mas fazer cinema de verdade ainda é uma qualidade de cineastas que pensam para além de suas obras e projetam as rupturas de uma sociedade em crise para que o caráter político de uma trabalho desperte novas e inesperadas discussões. Após Brasília, os desdobramentos sobre a polêmica causada por “Vazante”, de Daniela Thomas, repercutiram em diversos cenários e, para o bem ou para o mal, mostrou que é preciso falar sobre cinema, sociedade e cultura, evidenciando o que se tem hoje na produção brasileira e o que se quer para o futuro. A inquietação do diálogo ricocheteia nos próprios modos de fazer e de olhar, inclusive do público.

Documentários Para fazer um recorte das principais produções nacionais do ano, foram levados em consideração os filmes que estrearam entre janeiro e dezembro, independente do ano de produção, e que tenham passado, pelo menos, uma semana em cartaz, realizados por cineastas brasileiros ou cuja coprodução tenha sido majoritariamente do Brasil. Vale ressaltar também que o lançamento de alguns filmes às vezes não chega ao Nordes-

“Corpo Elétrico” (topo), “Era o Hotel Cambridge” (acima) e “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois” (abaixo) estão entre as melhores produções do ano

te, reflexo das dificuldades de ocupação das salas, restringindo a apreciação das obras em sua totalidade. A diretora Eliane Caffé faz um trabalho extraordinário em “Era o Hotel Cambridge” (2016) ao mesclar atores profissionais e personagens reais que ocupam um edifício no centro de São Paulo. Entre refugiados e sem-tetos, a história discute a relação de classes da sociedade e o abuso de poder das autoridades com aqueles seres humanos marginalizados. Ainda aprofunda os dramas pessoais de alguns personagens, resultando em uma obra que transita entre a observação e o discurso da situação de milhares de brasileiros hoje. Um dos realizadores mais sensíveis, o carioca Allan Ribeiro invade o espaço solitário do artista plástico Darel Valença Lins no documentário “Mais do que Eu Possa me Reconhe-

SAIBA MAIS PRINCIPAIS DESTAQUES DOCINEMA BRASILEIRO LANÇADOS EM2017 1.“Era oHotel Cambridge”,deEliane Caffé 2.“Mais doque eu Possame Reconhecer”,deAllan Ribeiro 3.“Clarisse ouAlguma CoisaSobre NósDois”,dePetrusCariry 4.“Corpo Elétrico”,deMarcelo Caetano 5.“Jonas eoCirco Sem Lona”,de PaulaGomes 6.“Anteso TempoNãoAcabava”, de SergioAndrade eFabio Baldo 7.“As DuasIrenes”, deFabioMeira 8.“Elon NãoAcreditanaMorte”, de RicardoAlvesJr. 9.“Bingo -O ReidasManhãs”,de DanielRezende 10.“Martírio”, deVincent Carelli, em colaboraçãocom Ernesto de CarvalhoeTita

cer” (2014), uma experiência de imersão na vida de um homem que confia a ele os detalhes de sua vida e sua criação. A espontaneidade dos diálogos e o jogo do que é dito e do que está implícito transforma o filme, realizado sem grandes estripulias técnicas, em um longa extremamente efetivo. Da Bahia, o destaque é “Jonas e o Circo Sem Lona” (2015), de Paula Gomes, que também investe na proximidade com seu personagem para vasculhar a resistência da infância e da arte por meio de um garoto que sonha em construir seu próprio circo. A espontaneidade de Jonas e a forma com que a vida adulta tenta dialogar com as expectativas de uma criança em desenvolvimento fazem deste um filme pessoal até mesmo para a própria diretora, que resiste até o fim em interferir no rumo de seu protagonista. Sem ausentar sua parcialidade, “Martírio” (2016) é um marco na pesquisa documental registrada pelo cinema nacional. Vincent Carelli, em colaboração com Ernesto de Carvalho e Tita, analisa a violência histórica dos índios guarani kaiowá da região centro-oeste. A abordagem antropológica e humanista de Carelli, pesquisador indígena e cineasta, fazem de “Martírio” um filme importante, mesmo com seu formato mais clássico e uma duração longa demais de quase três horas de conteúdo.

Cearenses Boa fase também para o cinema cearense. “Clarisse ou Alguma Coisa Sobre Nós Dois” (2015), de Petrus Cariry, foi o principal destaque do ano. Encerrando sua trilogia da morte, precedida de “O Grão” (2007) e “Mãe e Filha” (2012), o cineasta sai da contemplação da morte no sertão e parte para um cenário mais urbano, ainda que isolado das grandes cidades. Como principal característica, a obra flerta com o cinema de gênero, tirando o suspense do drama familiar entre um pai e uma família fragmentados pelo passado. Exibido e premiado em festivais nacionais e internacionais, o longa-metragem é um deleite visual, em especial pela direção de fotografia, assinada pelo próprio Petrus, e pelo desenho sonoro irrepreensível. Sabrina Greve e Everaldo Pontes fazem a decomposição precisa de seus personagens, nas mãos de um cineasta que não abre mão da beleza plástica de seus planos. Outros bons longas-metragens cearenses finalmente chegaram aos cinemas, atrasados se compararmos aos seus anos de produção. Mas o importante é chegar ao público. Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Ricardo Pretti entraram em circuito com “Com os Punhos Cerrados” (2014), trama política e transgressora para os moldes tradicionais do cinema brasileiro; Rosemberg Cariry lançou “Os Pobres Diabos”

(2013), ficção sobre uma trupe circense que resiste às dificuldades no interior do Estado; Daniele Ellery e Márcio Câmara rodaram com o documentário “Do Outro Lado do Atlântico” (2015), retrato sobre a cultura brasileira e os países africanos, e Pedro Rocha lançou o ótimo “Corpo Delito” (2016), estudo de personagem que discute a liberdade e a prisão no mundo de fora.

Fronteiras “Corpo Elétrico” (2017), primeiro longa-metragem de Marcelo Caetano, discute sexualidade e deslocamento geográfico em uma trama fluida sobre a jornada pessoal dos jovens de hoje. É um exemplo do cinema brasileiro engajado politicamente e inventivo em suas alternativas visuais, onde há espaço para a espontaneidade das ações e menos compromisso com uma linha narrativa fechada. Escolhido para representar o Brasil no Oscar 2018, sem sucesso, “Bingo – O Rei das Manhãs” (2017) também é o primeiro filme como diretor de Daniel Rezende. Ao falar sobre a fama e a decadência familiar de Arlindo Barreto, conhecido por ter interpretado o palhaço Bozo, o cineasta entrega uma biografia que dialoga facilmente com o popular enquanto explora as possibilidades técnicas de linguagem. Dirigido por Sérgio Andrade e Fábio Baldo, “Antes o Tempo Não Acabava” (2016) representa o ainda tímido cinema amazonense. A obra acompanha a transição de um índio que se divide entre a cultura tradicional e a descoberta da cidade grande. O longa discute a sexualidade de forma sensível e respeitosa. Temáticas familiares nunca estiveram tão destaque quanto nos últimos anos. Em “As Duas Irenes” (2017), o diretor Fabio Meira discorre sobre duas garotas de famílias diferentes que descobrem que são filhas do mesmo pai. A intimidade que nasce entre elas é ambientada pelas transformações entre a inocência da infância e o início da adolescência. A família também é tema de “Elon Não Acredita na Morte” (2016), do cineasta mineiro Ricardo Alves Jr. O filme surgiu do premiado curta-metragem “Tremor” (2013), que mostra a jornada de um homem em busca do paradeiro da esposa. Para além do roteiro silencioso e sensorial, o diretor mostra domínio total da linguagem cinematográfica ao oferecer uma trama provocante e que desafia a percepção do público. A dificuldade de recortar apenas os dez principais destaques do cinema brasileiro mostra, antes de tudo, que a produção é crescente não apenas em número, mas também em qualidade. Outros tantos filmes poderiam figurar nessa lista por seus méritos de realização, como “Animal Político” (2015), de Tião; “Como Nossos Pais” (2016), de Laís Bodanzky; “Divinas Divas”, de Leandra Leal; “Soundtrack” (2014), da dupla 300ml; “Mulher do Pai”, de Cristiane Oliveira, e “No Intenso Agora”, de João Moreira Salles, para citar alguns. Cabe a nós buscar a particularidade de cada uma dessas obras e desbravar um cinema brasileiro que não tem medo de arriscar.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.