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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO E DOMINGO, 19 E 20 DE AGOSTO DE 2017
CONTRAPLANO DRAMA
CLÁSSICO
A casa das sete mulheres
A versão original de Don Siegel
Versão de Sofia Coppola para o romance de Thomas Cullinan mistura suspense e sensualidade DIEGO BENEVIDES Crítico de cinema
A
o voltar no tempo para adaptar o romance de guerra “The Beguiled” (1966, título original), de Thomas Cullinan, a cineasta Sofia Coppola corre alguns riscos com “O Estranho que Nós Amamos”. Não necessariamente pelas comparações com a primeira adaptação para o cinema, feita por Don Siegel em 1971. Coppola melhora e piora a história na mesma proporção, mas ainda consegue um resultado superior e mais instigante do que a obra anterior. Ambientada na Guerra Civil americana, a trama acompanha John McBurney, vivido por Colin Farrell, um cabo ferido que é resgatado por uma das alunas de uma escola para garotas, capitaneada por Martha, papel de Nicole Kidman. Dado inicialmente como inimigo, o homem se transforma em interesse amoroso das garotas que lá vivem, isoladas da guerra e do mundo. Coppola se preocupa em fazer o romance original dialogar com a época em que estamos inseridos, o que não é novidade em sua filmografia. Já em “Maria Antonieta” (2006), a diretora quebrou os paradigmas históricos para mostrar uma versão mais pop dos adolescentes. Aqui, as quebras são mais sutis, mas também funcionam. Ciente das discussões sobre empoderamento feminino que estão em evidência, Coppola transforma as mulheres do filme não em competidoras por um homem e prefere focar na união entre elas para derrotar esse inimigo íntimo, passando uma lição de união e sororidade. Tanto que o roteiro divide melhor a participação das sete mulheres da mansão, e não apenas é focado nas três que “disputam” o amor de um homem como no filme anterior.
Nicole Kidman e Colin Farrell estrelam nova adaptação de “O Estranho que Nós Amamos”. A diretora Sofia Coppola se mostra sensível na composição de imagens e suspensão dos conflitos, justificando o prêmio recebido no Festival de Cannes
A sensibilidade da cineasta é fundamental para a construção das imagens da obra, com a mise-en-scéne perfeitamente bem estabelecida do começo ao fim. As personagens vagam pelos quadros do filme como telas de pintura. Coppola foca no que acontece dentro da mansão, o que potencializa a ideia da opressão vivida pelas personagens em um espaço fechado. Pouco se sabe sobre a guerra e o mundo exterior às vezes aparece como uma incógnita.
Abordagem Por outro lado, se houve a valorização do feminismo dentro de uma história basicamente machista, Coppola exclui a única personagem negra da trama, que trabalha como serva da escola. Segundo o que ela tem dito em algumas entrevistas, a decisão de ocultá-la foi feita para não criar mais um arco narrativo sobre as questões raciais da época em que a história se passa. Ainda em relação ao romance original, Coppola esconde as memórias do passado de Martha e sua relação incestuosa com o irmão. Também fica
mais sutil a índole de John McBurney que, assim como outros soldados de guerra, praticavam estupros e eram tendenciosos à pedofilia. Nesse último caso, chega a ser interessante como a diretora sugestiona e transforma o único personagem masculino. Não é uma obra que escancara seu teor político, mas facilita nas entrelinhas a compreensão em relação às motivações dos conflitos expostos em tela. Coppola elabora um de seus filmes mais complexos ao extrair de um drama histórico um suspense psicológico muito mais denso se comparado ao filme de Siegel. A sensação de insegurança cresce gradativamente enquanto Coppola prepara sua atmosfera de horror, que é essencial para o desenrolar do terceiro ato. Esse flerte é tão certeiro que o filme desperta a curiosidade do que Coppola seria capaz de fazer com um mergulho profundo no cinema de gênero. O suspense atinge o ápice na emblemática cena final do jantar. Corrigindo a fórmula rápida do filme original, a diretora explora a espontaneidade
maquiavélica de seu elenco, em especial de Colin Farrell que, longe de ser um ator excepcional, aqui não faz feio. Nicole Kidman tem mais uma atuação inquestionável, criando nuances para Martha. Kirsten Dunst está mais contida, pronta para estourar apenas quando o roteiro pede. Elle Fanning prova, mais uma vez, que segura personagens complicados e que exigem demais de jovens atrizes. Ainda que não seja extraordinário, “O Estranho que Nós Amamos” evoca questionamentos sobre o espaço da mulher no mundo e no próprio cinema. Também agrada mais do que o filme anterior, por seu estilo rebuscado e composição de imagens poéticas. O compromisso de Sofia Coppola com boas histórias continua, ainda que suas intenções como realizadora não convençam a todos. É uma obra que não deixa de dialogar, em suas devidas proporções, com o excelente “As Virgens Suicidas” (1999), além de ser seu trabalho mais maduro como cineasta desde “Encontros e Desencontros” (2003).
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ever a versão original de “O Estranho que Nós Amamos” (1971), dirigida por Don Siegel, é perceber o quanto os filmes podem sofre no decorrer do tempo. Mesmo sendo considerado um clássico setentista, ele não está na nossa memória cinematográfica e, muito provavelmente, continuaria esquecido se não fosse a revitalização da trama pelas mãos de Sofia Coppola. O longa parece mais uma tentativa de criar uma abordagem do que hoje conhecemos como “feminismo”, mas com limitações que, talvez, a visão da época o inocente de ser realmente transgressor. Isso porque, ao contrário do filme de Coppola, Seigel não consegue quebrar algumas amarras ditas urgentes. O John McBurney de Clint Eastwood pode ser definido logo nos primeiros minutos como um homem cujas tensões sexuais são contestáveis. A partir disso, seu envolvimento com as mulheres da escola que o resgatam logo se transformam em uma relação abusiva. O roteiro escolhe por balancear os conflitos internos entre os personagens e externos com a ambientação do cenário da guerra. Em algumas cenas, vemos, por meio de flashbacks, John McBurney lutando pela pátria. A câmera estática de Seigel intercala com as imagens trêmulas e subjetivas que dão um tom mais dinâmico à narrativa. A Martha de Geraldine Page também esconde em seu passado a paixão pelo irmão. A relação entre eles nunca se aprofunda e também fica restrita às inserções aleatórias de flashbacks, mas que tentam justificar os atos da matriarca. Os emba-
tes das personagens de Page, Elizabeth Hartman e Jo Ann Harris giram em torno do desejo pelo único homem que se aproximou delas. Fica a impressão de que elas só se completam ao lado dele, fato que já se opõe à versão de Coppola. Siegel opta por iniciar com uma história dramática, que dá mais espaço para conhecer os personagens principais e desenvolver a relação entre John McBurney e Edwina, interpretada por Hartman. Enquanto se fortalece, a relação dúbia entre eles se mantém no front da trama, o que provoca a reação das demais. Na obra de Coppola, o casal nasce de forma mais superficial, mais por conveniência. O diretor também reserva tempo para mostrar os arcos paralelos de Martha, apaixonada pelo irmão, e da serva Hallie, papel da ótima atriz Mae Mercer, aparentemente bem-vinda entre suas “donas”, mas que precisa desempenhar com precisão suas funções domésticas dentro de casa e não contrariar a patroa. Aqui, o filme acerta ao mostrar a divisão social e racial proeminente da época, espelhando a relação prisioneira que existe entre a empregada e o soldado ferido. As tensões surgem do segundo para o terceiro ato, exigindo de Seigel a exploração do suspense psicológico. Há uma abordagem ainda machista, também reflexo da época em que foi feito, de como pensar em oportunidades menos opressoras para o embate proposto pelo autor Thomas Cullinan. É bom notar que as percepções de mundo mudaram com o tempo, e que certamente continuarão mudando. (DB)
Geraldine Page e Clint Eastwood estrelaram a primeira versão de “O Estranho que Nós Amamos”, dirigida por Don Siegel e lançada originalmente em 1971
CINEMA CEARENSE
Humor e espiritualidade
A
s filmagens da comédia “Bate Coração”, novo longa-metragem do cineasta cearense Glauber Filho, terminaram antes do previsto. A organização do plano de filmagens e a dedicação do elenco e da equipe técnica foram essenciais para o bom desempenho das gravações. Retornando à temática espírita após “Bezerra de Menezes: O Diário de um Espírito” (2008) e “As Mães de Chico Xavier” (2011), codirigido com Halder Gomes, Glauber entra em um território não explorado em sua filmografia, a comédia. O roteiro de “Bate Coração” está em desenvolvimento há cerca de seis anos, assinado a seis mãos por Glauber, Daniel Dias, e Ronaldo Ciambroni. Foi tempo suficiente para mergulhar nas diversas temáticas que o longa traz, além de estabelecer o tom cômico da obra.
Glauber conta que foi um desafio enveredar pela comédia, gênero tão desgastado no cinema comercial nacional, e que suas inspirações partiram principalmente de realizadores como Woody Allen e Pedro Almodóvar. “A ideia foi trabalhar uma comédia que não denegrisse a imagem do ser humano e que o riso fosse provocado por uma comédia de costumes, uma coisa mais crítica, desse espelhamento dos comportamentos que temos com a realidade do que propriamente entrar em uma comédia mais escrachada, isso seria até contra os meus valores”, conta em entrevista à coluna Contraplano.
Riso A proposta é fazer com que, das situações dramáticas, seja retirada a comicidade mais pura do gênero cinematográfico,
Cineasta Glauber Filho (ao centro) encerra as filmagens de “Bate Coração” e planeja lançamento em circuito comercial para janeiro de 2018
sem apelar para as fórmulas fáceis que caracterizam tantas outras comédias nacionais. “Eu precisava de um elenco com um timing de comédia, mas ao mesmo tempo que compreendesse o drama. Não é um elenco que só faz comédia. Não temos no elenco atores que já estão rotulados no gênero”, continua. Glauber acredita que é preciso levar a sério a produção de uma comédia e não subestimar a recepção do público. Por isso, “Bate Coração” vai se dividir entre a graça e a emoção em relação aos conflitos dos personagens. “Em um momento tem o riso e no outro tem uma coisa que te puxa e tem um peso maior. É um filme cuja trajetória narrativa se trabalha com várias curvas e eu acho que isso pode ser uma fórmula interessante para a comédia que estamos propondo”, diz.
Identidade Ao colocar em evidência uma protagonista transexual, “Bate
Coração” também discute questões relacionadas ao gênero. Glauber pesquisou, dentro da linha espírita, as melhoes formas de discutir a temática. “Acho que, com essa lógica da comedia, não estamos trabalhando o feminino representado na figura trans como objeto do riso, como se fosse algo exótico. Quando isso vem, vem como uma armadilha, uma tomada de consciência de quem por acaso pode rir disso. É interessante ver no filme essa personagem trans fora do rótulo do cenário mais marginal, fora do rótulo das piadas homofóbicas”, conta. Orçado em cerca de R$3 milhões, “Bate Coração” mostra o embate entre o preconceituoso Sandro, papel de André Bankoff, e a trans Isadora, vivida por Aramis Trindade. Após um ataque do coração, Sandro recebe o coração de Isadora, que faleceu na mesma noite. Em espírito, a trans começa a conviver com o jovem. A previsão de estreia é para janeiro de 2018. (DB)