Coluna Contraplano | Caderno 3 | Jornal Diário do Nordeste | 30/09/17

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DIÁRIO DO NORDESTE FORTALEZA, CEARÁ - SÁBADO , 30 DE SETEMBRO E DOMINGO, 1 DE OUTUBRO DE 2017

CONTRAPLANO CINEMA INDEPENDENTE

DIÁLOGO

As muitas vidas de António

Boas histórias para contar

Em seu primeiro longa, Leonardo Mouramateus preserva a qualidade de seus curtas e aponta para novos caminhos DIEGO BENEVIDES* Crítico de cinema

V

ivendo em Portugal há cerca de três anos, onde concluiu o curso de mestrado em Arte Multimédia, o cineasta cearense Leonardo Mouramateus realizou em Lisboa o seu primeiro longametragem, “António Um Dois Três”, após se destacar em festivais nacionais e internacionais como curta-metragista. A obra terá sua primeira sessão em Fortaleza dia 7 de outubro, como parte da programação da Mostra Cinema e Resistência, no Cinema do Dragão. Exibido pela primeira vez no Brasil fora da competição do 50º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, semana passada, “António Um Dois Três” foi realizado após intenso processo de criação e colaboração da equipe. Como sugere o título, o roteiro acompanha fragmentos da vida de António, um português em crise familiar, amorosa, profissional e econômica. Aprofundar detalhes sobre como a dinâmica das histórias se desenrola seria, no mínimo, estragar a experiência de quem assiste. Isso porque Mouramateus carrega na bagagem o melhor da dramaturgia de seus curtas-metragens, enquanto se abre não apenas para o novo formato do longa, mas também para um olhar mais profundo sobre o que está ao redor de António. Por mais que outros personagens periféricos da narrativa também exerçam extraordinária importância na trama, aqui Mouramateus aprofunda o protagonismo de António, interpretado pelo ótimo ator Mauro Soares, que representa a vitalidade e inconstância de um jovem adulto em uma fase aparentemente inerte de amadurecimento e de enfrentamento do mundo real.

Olhares De forma certeira, o cineasta desenvolve uma história que

“António Um Dois Três”, do cearense Leonardo Mouramateus, foi realizado em Portugal. Filme será exibido pela primeira vez em Fortaleza na próxima semana, dentro da programação da Mostra Cinema e Resistência, no Cinema do Dragão

evita o olhar estrangeiro ou turístico em relação a Portugal. Tem um tom de cinema europeu inevitável, mas essa ambientação não se torna uma personagem justamente por carregar a preferência por uma abordagem universal daqueles conflitos. Em boa parte de seus curtasmetragens, Mouramateus revela interesse e segurança ao se debruçar em temáticas urgentes sobre os jovens de hoje. Talvez por isso seus filmes sejam sempre carregados de um frescor narrativo que se abre às possibilidades de encenação que podem surgir a partir das contribuições do elenco. Ao levar conflitos banais que surgem de histórias pessoais para as telas, o diretor ressignifica esse mundo dos jovens que estão em constantes tentativas de tentar entender seu lugar no mundo e, principalmente, ser feliz. O esqueleto narrativo de “António Um Dois Três” mantém o interesse de Mouramateus em contar essas histórias, mas se diferencia de tudo que o diretor já fez até hoje por marcar também seu amadurecimento como cineasta inventivo. Assim, esse é o melhor de seus filmes até agora, dentro

de uma filmografia que já nasceu madura. Desde sempre promessa de um cinema cearense ancorado no pensamento da imagem e da força de seus agentes, Mouramateus só melhora como realizador. António está no centro de vários furacões que podem se interligar ou não. O mais interessante da construção da obra é justamente não exigir que o público crie relações óbvias sobre cada segmento vivido por António, sendo possível que tudo ali esteja acontecendo simultaneamente.

Dinâmica A espontaneidade dos personagens que cercam António trazem carisma aos seus conflitos, sendo fácil entrar na jornada de autoconhecimento dele. Mouramateus continua a estudar sobre o deslocamento dos jovens, dessa vez mais especificamente de forma geográfica. António mora em Lisboa e convive com pessoas de diferentes nacionalidades e experiências, como a bela Débora, vivida pela também cineasta Deborah Viegas, brasileira que está indo e vindo da Rússia. O deslocamento também está na forma como a estrutura dramática se apresenta, em es-

pecial na mudança entre segmentos e de perspectiva de olhares. Mouramateus faz de António um rapaz que transita entre muitas vidas, dele e de seus amigos, como possibilidades de mundo. O jogo cênico pede atenção para a história que está sendo contada de maneira fluida e dinâmica por Mouramateus, mas não cria obrigatoriedades de interpretação. O cineasta está mais interessado em aprofundar aqueles espaços e relacionamentos evidenciados. Antes de tudo um filme criativo que dosa bem o drama e o humor de seu protagonista, “António Um Dois Três” é sobre estar em trânsito pelo mundo. É sobre o estado da arte dentro e fora de nós. Também desperta a vontade de ver mais vezes para repensar as entrelinhas do roteiro.

F

ilmar em Portugal não era um objetivo inicial de Mouramateus e “António Um Dois Três” não seria o seu primeiro longa, já que há algum tempo ele se dedica ao desenvolvimento de “A Pista de Dança”, que deve ser rodado no Brasil em breve. “Minha convivência com Portugal vinha de antes. Quando fui para lá, não queria nem trabalhar com cinema lá. Eu pensava que poderia trabalhar com dança e outras coisas, mas o cinema sempre bate à porta. E como qualquer um dos meus projetos, eles nascem de uma urgência muito grande”, detalha Mouramateus. Para a concepção do longa, o diretor se inspirou basicamente em Chaplin ao criar a saga de António, personagem que vive muitas histórias independente do que aconteça entre elas. O trabalho colaborativo da equipe foi essencial para conferir essa identidade à obra. “Depois de editada a primeira parte, a gente pensava em uma continuidade. Seis meses depois fizemos a segunda parte e, seis meses depois, a terceira. Tudo que acontecia na nossa vida era organizado para caber de alguma maneira no filme”, continua. Realizador de premiados curtas-metragens como “Lição de Esqui” (2013), “História de uma Pena” (2015) e, mais recentemente, “Vando Vulgo Vedita” (2017), ao lado de Andréia Pires, Mouramateus tem como uma de suas marcas o mergulho na vida de jovens que discutem suas conexões com a sociedade e os sentimentos por quem está por perto. “Não me interessava pegar simplesmente um registro, mas

tentar trabalhar para que a gente consiga construir algo que existisse no mundo do filme. É difícil de fazer, tanto que tivemos que filmar em três partes para entender o filme. Não me interessa filmar as coisas de maneira natural, mas também não queria que ficasse apartado do real”, explica o cineasta. Durante o curso de mestrado em Portugal, Mouramateus percebeu que os problemas financeiros não aconteciam só com ele, mas com seus amigos. “Como me alimento das histórias que me passam, isso tinha que estar no roteiro. Apesar de ter ótimos filmes sobre a crise na Europa, era falando das experiências dos meus amigos que eu conseguiria falar sobre isso. Me interessa e sempre me interessou falar sobre o que está por perto, com um tom em que essas coisas podem ser ‘denunciadas’ de maneira inesperada”. O cineasta conta que a ideia de “António Um Dois Três” sempre foi fazer com que a história de crise do protagonista não fosse apenas uma questão formal que daria a identidade do filme, mas também que fosse o sabor da experiência de assistí-lo. “Gosto muito de uma estrutura da obra que consegue abrir e fechar portas, gosto muito de Roberto Bolaño, o modo como um trabalho pode ser absorvido pela multiplicidade que é. Eu pego referências que estão no ar e isso, nesse filme, era ainda mais complicado porque é muito fácil você estruturar um roteiro dentro dessas invenções quando tem um roteiro fixo. Nesse filme não, conforme a gente ia filmando, ia fazendo desvios e pegando personagens e colocando falas”, finaliza o diretor. (DB)

* O crítico viajou a Brasília a convite do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

C Mais informações:

Exibição de “António Um Dois Três” na Mostra Cinema e Resistência. Dia 7 de outubro, sábado, às 19h30, no Cinema do Dragão (Rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema). Grátis. (3488.8600)

Após passagem pelo Festival de Roterdã, Leonardo Mouramateus exibiu o filme pela primeira vez no Brasil no 50º Festival de Brasília FOTO: RÔMULO JURACY/DIV.

BALANÇO

Cinema de representação

É

natural que a edição histórica do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro tenha se escorado na tradição política da programação de curtas e longas-metragens, que apresentaram temas sensíveis ao atual cenário sociopolítico pelo qual passa o Brasil, com foco em tramas que discutem basicamente os direitos humanos e a memória histórica dos brasileiros. Questões femininas e raciais se evidenciaram tanto nos filmes quanto nos debates, o que inevitavelmente também repercutiria nos prêmios delegados pelos jurados. Discutir sobre o lugar de fala das minorias foi a principal herança deixada pela edição, ainda que a redundância e os excessos em alguns debates tenham sido inevitáveis. Foram dez dias intensos de programação, onde os curtasmetragens se mostraram mais

interessantes que os longas, tanto em suas abordagens narrativas quanto nas formas de realização. O curta paranaense “Tentei”, de Lais Melo, levou os prêmios de melhor curta e direção de fotografia. A obra se destaca mais por sua importância temática sobre a violência doméstica do que sua concepção fílmica em si. Ainda entre os curtas, o diretor baiano Marcus Curvelo saiu com os Candangos de melhor ator, montagem e prêmio da crítica, no que foi provavelmente o melhor filme exibido na competição do festival. Repleto de humor e ironia, Curvelo sugere uma jornada filosófica de um jovem vivendo em um País que parece estar perdido. Misturando animação e documentário, o ótimo “Torre”, de Nádia Mangolini, se contentou com o troféu de direção de arte. Reunindo depoimentos de qua-

Aristides de Sousa protagoniza “Arábia”, grande vencedor da 50ª edição do Festival de Brasília. A direção é da dupla Affonso Uchôa e João Dumans

tro filhos de Virgílio Gomes da Silva, primeiro desaparecido político da ditadura militar, o curta é uma experiência rara no cinema nacional, cujo potencial foi injustamente ignorado.

Longas Foi no último dia de competição que o mineiro “Arábia”, de Affonso Uchôa e João Dumans, garantiu o favoritismo entre os longas. A difícil jornada de um operário da periferia, filmada com poética visual, tornou esperada a sua vitória. “Arábia” também levou os Candangos de melhor ator para a densa interpretação de Aristides de Sousa, montagem e trilha sonora. Outro destaque foi a dramédia baiana “Café com Canela”, de Ary Rosa e Glenda Nicácio, que saiu com os prêmios de júri popular, melhor atriz para Valdinéia Soriano e roteiro. Mesclando uma narrativa clássica com inventividade estética e de linguagem, a obra propõe um novo cinema popular que merece, antes de tudo,

circular em circuito e chegar ao grande público. Fato que o aguardado longa de Adirley Queirós, principal nome do cinema no Distrito Federal, decepcionou em sua nova jornada futurista. Ambientado mais ou menos em um universo semelhante ao ótimo “Branco Sai, Preto Fica” (2014), também dirigido por Adirley, a obra não tem a mesma potência alegórica. Ainda assim, o júri oficial concedeu os prêmios de direção, fotografia e som. Todos os longas, de alguma forma, discutiam questões quentes da sociedade, mas dois deles ficaram esmagados nos debates sobra representatividade no cinema. “Pendular”, de Júlia Murat, saiu sem prêmios, enquanto o ótimo “Música para Quando as Luzes se Apagam” recebeu uma menção honrosa. O controverso documentário “Por Trás da Linha de Escudos”, do pernambucano Marcelo Pedroso, também não agradou e saiu em silêncio do evento. (DB)


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