8 minute read
TEMPO IV - Liderança e Gestão���������������������������������������������������������������������������������������������
PARTE II TEMPO IV - Liderança e Gestão
Seguindo os conselhos de minha avó, tentei trabalhar em diferentes cenários, ver o máximo de pacientes. Mas aqui vou deixar registrado a minha experiência no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas (HMIPV).
Advertisement
EEm 1993, o Prof. Ellis Busnello me informou que haveria uma seleção para preceptor na residência de Psiquiatria em uma unidade aberta há pouco tempo. No momento, me pareceu uma excelente oportunidade para aprender e desenvolver habilidades didáticas. Mal eu sabia que seria uma das experiências mais ricas nas áreas do ensino e da gestão.
Como atividades no HMIPV, tínhamos que dar aula para graduação da então FFFCMPA (atual Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre-UFCSPA), supervisionar residentes nos três anos do programa, ocupar cargos administrativos e, de preferência, desenvolver projetos de pesquisa e/ ou de desenvolvimento.
Como era um serviço novo, todos nós nos dividíamos nas atividades administrativas. Foram os primeiros cursos que fiz sobre como administrar grupos, utilizar ferramentas para auxiliar na organização de grupos, o que é ser uma liderança e assim por diante. Uma das primeiras funções foi organizar o fluxo do ambulatório do Serviço. E assim percebemos que o nosso maior problema ocorria na ocasião da entrada do paciente na instituição. Parte desse estudo para a reorganização do serviço foi publicada na revista da instituição denominado Avaliação da Demanda do Ambulatório de Triagem Psiquiátrica do HMIPV. Revista Científica Maternidade Infância e Ginecologia, v. 13, p. 16-22, 1993. Foi assim que reorganizamos o fluxo dos ambulatórios e criamos os novos ambulatórios especializados.
52 Memorial Maria Paz Loayza Hidalgo
Nessa época houve uma mudança de equipe. Vários professores que iniciaram o Serviço estavam saindo e precisávamos de reforços. Assim, alguns colegas, como Madeleine Scop (Psiquiatra), Cláudia Godinho (Neurologista) e Carlos Salgado (especialista em álcool e drogas) ingressaram como supervisores da residência e com isto podíamos reorganizar a internação. Chefiei o Serviço de Internação em conjunto com a Cláudia Godinho e novamente organizamos a atenção terciária, revendo indicações de internações, primeiras avaliações, discussões semanais dos casos. Revisamos os indicadores de complexidade dos casos e chegamos, com frequência, à conclusão de que questões classificadas por nós como “sociais” eram as que prolongavam o tempo de internação. Com isso resolvemos que as discussões deveriam incluir todos os profissionais envolvidos no cuidado do paciente durante a internação. A mudança fez com que o tempo de internação diminuísse consideravelmente. Até hoje percebo que ter uma neurologista na discussão de todos os casos, identificar níveis de complexidade dos casos, discutir os problemas “sociais’ nos primeiros dias de internação, ter uma boa avaliação com a Terapia Ocupacional para planejar o tratamento e seguimento fazem a diferença no cuidado prestado aos pacientes durante uma internação aguda.
Com o tempo, percebemos que era necessário ampliar o local para as consultorias. Foi quando acirramos as negociações com a Santa Casa. Assim, enfrentamos os entraves de inovar, trabalhando na intersecção entre um hospital de alta complexidade e a Faculdade de Medicina. A posição de supervisor era muito frágil por não estar no rol dos contratados do hospital; por outro lado, o nosso contrato, apesar de termos horas cedidas para a faculdade, também não era estável. Desde então, considero fundamental para que um Serviço possa ter uma boa infraestrutura de ensino, dispor de um grupo com estabilidade de emprego e com plano de carreira.
Em 2005, devido à experiência nos diferentes níveis de atenção e ao fato de ter ocupado diferentes chefias, fui indicada para coordenadora da saúde mental do município de Porto Alegre. Esse cargo foi fundamental para compreender os nós, as dificuldades e a complexidade da rede de atenção aos pacientes e as limitações das instituições em seus diferentes níveis de complexidade. Conheci regiões que eu não tinha ideia fazerem parte da cidade. Descobri que, em Porto Alegre, existem áreas rurais, descobri que a rede de transporte é fundamental para decidir sobre abertura ou fechamento de Serviços. Ou seja, um dos principais problemas encontrados na rede era o acesso aos Serviços de Atenção: os pacientes não conseguiam manter o tratamento por dificuldade de transporte. Além disso, estávamos com um grave problema devido à redução considerável no número de psiquiatras. A reforma psiquiátrica tinha reorganizado a rede sem contar com a presença dos psiquiatras. Esse foi um dos motivos pelos quais tivemos que incentivar e organizar o programa de matriciamento.
Formamos uma equipe composta pelas Dras. Ana Cristina Tietzmann e Carla Bicca e pela Psicóloga Rosa Maria Rimolo Vilarino. Tivemos que aprender a nos comunicar com o público e com a mídia. Foram vários os cursos, reuniões e orientações que recebíamos para cada entrevista que precisávamos dar para rádio e televisão. Aprendemos a nos colocar frente aos diferentes movimentos, conselhos e ideologias com o intuito de prover aos pacientes o melhor atendimento. Tivemos que compreender
PARTE II TEMPO IV - Liderança e Gestão
as diferenças entre simulação, simulacro, ética e confiar na experiência da rede e nas necessidades relatadas pela Atenção Básica. As discussões sobre ética eram constantes na nossa equipe. Tentávamos compreender os conflitos e focar naquilo que era possível modificar, implementar, organizar, construir. Sabíamos que algumas mudanças somente seriam percebidas e implementadas anos após. Traçamos prioridades.
Uma das prioridades era disponibilizar na rede antidepressivo serotoninérgico e contamos com a experiência da Profa. Valnitta Walmarker junto à Anvisa para definir todo o processo de inclusão de medicamentos na rede. Dentro dessa mudança incluímos os cursos de capacitação permanente para a rede de saúde em diagnóstico e tratamento baseados em evidência, para os quais procuramos estabelecer colaborações e convênios formais com as instituições de ensino. Dentre elas, nossa prioridade era a universidade pública. Outra meta era fortalecer a Atenção à Infância e Adolescência e, assim, todos os profissionais que conseguimos identificar com especialidade nessas faixas etária foram realocados para o HMIPV, que estava sendo municipalizado, a fim de organizar ambulatório e internação especializadas na Atenção da Infância e Adolescência. Ou seja, os recursos humanos já estariam disponíveis. A terceira prioridade era a atenção à dependência química, para o que a experiência da psiquiatra Carla Bicca foi fundamental junto às diferentes comissões, representações da sociedade e na tentativa de construir uma visão diferente em que os clínicos fossem incluídos na atenção a esse agravo. Essa experiência junto à rede, construindo protocolos baseados na melhor evidência disponível, considerando o uso racional de medicamentos e de tecnologias, carrego até os dias de hoje quando penso em translação do que fazemos no Laboratório.
Porém uma das questões que ficava em aberto no meu aprendizado era a relação entre o setor público e o setor privado. Naquela época, a participação de hospitais privados na rede pública era muito temida. Esse conflito somente foi superado na organização e liderança de projetos de pesquisa em que incluímos a participação da indústria como parceira na inovação tecnológica.
Ao ingressar na UFRGS como Professora, descobri como a experiência administrativa me dava condições de antecipar os problemas que o nosso Laboratório enfrentaria para se organizar como tal. A complexidade das instituições é muito parecida. Nisso vejo como é fundamental um plano de carreira para os cientistas. Como é fundamental para a ciência brasileira termos como manter os jovens, a importância de incluir a paridade na decisão da organização dos grupos e nas decisões de prioridades do grupo. Compreendo que um líder não nasce líder. Precisamos estabelecer um ambiente propicio para que possamos formar novas lideranças.
Encontrei vários colegas com dificuldade em compreender a estrutura universitária, o que muitas vezes torna difícil a comunicação com a Reitoria e seus Departamentos. Desde que ingressei na UFRGS, venho ocupando cargos como membro de comissões (Comitê de Ética em Pesquisa – CEP do Hospital de Clínicas de Porto Alegre – HCPA; Comissão de Residência Médica – COREME; Comissão de Graduação – COMGRAD; Comissão de Pós-Graduação da Clínica Médica e da Pós-Graduação em Psiquiatria e
54 Memorial Maria Paz Loayza Hidalgo
Ciências do Comportamento; Colegiado do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal; Comissão de Pesquisa – COMPESQ; Câmara de Pesquisa – CAMPESQ; Comissão Permanente do Pessoal Docente – CPPD).
Como parte das minhas atribuições na atividade de extensão junto à residência coordeno dois ambulatórios, o Psiquiatria Pré-Operatória, cuja função é a consultoria com diferentes especialidades, e o Psiquiatria Sono, onde aplicamos as diferentes técnicas e tecnologias com evidência de eficácia e desenvolvidas pelo Laboratório, além de ter uma equipe na internação de Psiquiatria.
Porém o grande desafio foi formar e coordenar o Laboratório. Aí vejo como uma liderança compartilhada é importante e, por outro lado, como a falta de uma política de carreira pode ser um limitante para a manutenção e crescimento da ciência no Brasil. Nos últimos anos, vários alunos têm migrado para outras instituições no exterior, em um verdadeiro êxodo acadêmico. Manter a energia frente a tais adversidades nos torna criativos.
Na estrutura universitária, a Pós-Graduação e os Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT) ocupam um lugar estratégico na formação de cientistas, na internacionalização e na transferência de conhecimentos, tecnologias e inovações para a sociedade, para o setor produtivo e/ou para o setor público. Porém a base da formação dos INCTs, que era a formação de redes foi perdendo a força. Assim, durante esses anos, o melhor formato de gestão foi o que acabou sendo incentivado por um edital da FAPERGS, em 2021, pelo qual não fomos contemplados que incentivava a formação de redes de trabalho. Apesar de não termos sido contemplados, formamos a Rede Redirecional (Redirecional – Rede de Pesquisa), formato de organização que permite flexibilidade, transdisplinariedade e gestão paritária em idade e sexo.
Todos os nossos novos projetos estão sendo discutidos na reunião da Rede. Estamos organizando um conjunto de capacitações que envolvem segurança de dados, inteligência artificial, uso de fármacos, estudos dos ritmos, análise de séries temporais. Esse conjunto de ferramentas constitui instrumentos para solucionar problemas identificados na rede pública. Nossa primeira meta: depressão.
Na Redirecional, avançamos na discussão sobre a relação com a indústria, que deve ser muito transparente e caracterizada por uma colaboração com o intuito de desenvolvimento de inovação e tecnologias. Parte do modelo se espelha nas instituições europeias em que a participação da indústria é muito mais frequente e bem-vinda.
Ou seja, vimos nesse edital, concretizada uma forma de gestão que já vínhamos praticando no Laboratório e que é o resultado de toda a experiência acumulada em gestão e liderança relatada desde o início deste memorial