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Estética Transcultural NA UNIVERSIDADE LATINO-AMERICANA

1 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Universidade Federal Fluminense REITOR Sidney Luiz de Matos Mello VICE-REITOR Antonio Claudio Lucas da Nóbrega

Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense CONSELHO EDITORIAL Aníbal Francisco Alves Bragança (presidente) Antônio Amaral Serra Carlos Walter Porto-Gonçalves Charles Freitas Pessanha Guilherme Pereira das Neves João Luiz Vieira Laura Cavalcante Padilha Luiz de Gonzaga Gawryszewski Marlice Nazareth Soares de Azevedo Nanci Gonçalves da Nóbrega Roberto Kant de Lima Túlio Batista Franco DIRETOR Aníbal Francisco Alves Bragança

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Estética Transcultural NA UNIVERSIDADE LATINO-AMERICANA

NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

Copyright © 2015 Dinah Guimaraens Copyright © 2016 Eduff – Editora da Universidade Federal Fluminense Coordenação geral do projeto Capes/Cofecub – Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil: Prof. Dinah Guimaraens – Escola de Arquitetura e Urbanismo/Programa de Pós-Graduação em Arquiteura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense

Colaboradores: Guilherme Werlang – Instituto de Artes e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense Zeca Ligiero – Núcleo de Estudos das Performances Afroameríndias, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

Marina Vasconcellos de Carvalho – Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Aquitetura e Urbanismo, Universidade Federal Fluminense

Capa, projeto gráfico e diagramação: Marina Vasconcellos de Carvalho

Apoio:

É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da editora Direitos desta edição cedidos à Eduff - Editora da Universidade Federal Fluminense Rua Miguel de Frias, 9, anexo/sobreloja - Icaraí - Niterói - RJ CEP 24220-008 - Brasil Tel.: +55 21 2629-5287 www.eduff.uff.br

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Impresso no Brasil, 2016 Foi feito o depósito legal.


APRESENTAÇÃO

“A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana” HISTÓRICO DO PROJETO CAPES-Cofecub n.752/12

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s linhas de atuação do projeto CAPES-Cofecub n. 752/12 foram idealizadas de modo a fazer da universidade latino-americana um locus para práticas investigativas transculturais. Visam essas linhas desconstruir o procedimento de bloqueio reflexivo e de primitivização das faculdades humanas posto em prática pela pragmática contemporânea. O principal objetivo do projeto é fomentar o intercâmbio entre o Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo/PPGAU da Escola de Arquitetura e Urbanismo/EAU da UFF, o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas/PPGAC da UNIRIO e a Université Paris 8 – Saint Denis/UNESCO acerca de práticas investigativas transculturais. Atingir tal entendimento, alternativa única à perpetuação das hegemonias culturais, é o objetivo geral de uma análise transcultural que lance mão de múltiplas vozes. A ênfase estética aqui presente coincide com o esforço inicial já feito por uma rede de diferentes universidades latinoamericanas para o estabelecimento de Programas de Pós-Graduação e Institutos Transculturais, sob a inspiração do próprio Poulain, coordenador da equipe francesa deste projeto. Tal proposta vem pois se juntar a projetos inovadores já em curso em países vizinhos ao Brasil, como a Argentina, o Uruguai, o Chile, o Equador, a Venezuela e a Bolívia.

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José Simões de Belmont Pessôa Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense – PPGAU/UFF

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ste livro é resultado da colaboração científica entre o Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo-PPGAU da Universidade Federal Fluminense-UFF, o Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas-PPGAC da UNIRIO e a Universidade Paris 8-Saint Denis. Colaboração esta viabilizada pelo programa de intercâmbio entre o Brasil e a França, CAPES-COFECUB, por meio do projeto “A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana” iniciado em maio de 2012. Coordenado pelo catedrático de Filosofia da Cultura e das Instituições da UNESCO/Universidade Paris 8-Saint Denis, professor Jacques Poulain e pela professora Dinah Guimaraens do PPGAU/UFF, o projeto atua numa abordagem filosófica, estética e cultural, visando desconstruir o procedimento de bloqueio reflexivo das faculdades humanas que tem sido posto em prática pela pragmática universitária contemporânea. No período de desenvolvimento do projeto, entre maio de 2012 e dezembro de 2015, coube aos corpos acadêmicos das instituições envolvidas – representadas, no lado francês pelos professores Bruno Cany, Irma Medoux, Philippe Tancelin e Plínio Prado Jr., e, no lado brasileiro, pelos professores Dinah Guimaraens, Guilherme Werlang, Zeca Ligiéro, Charles Feitosa e Tiago de Oliveira Pinto – lançar mão de uma análise transcultural feita de múltiplas vozes para se opor à perpetuação de hegemonias culturais. O diálogo transcultural proposto pelo projeto nas áreas de artes visuais, arquitetura, artes cênicas/performance e música conduziu a uma interdisciplinaridade decorrente de um espaço dialógico e intercultural, permitindo o afloramento de realidades autônomas que o filósofo Jacques Poulain conceitua como representando “uma estética transcultural das percepções e das concepções de mundo que possa determinar o horizonte cosmopolita das memórias e das expectativas de todos”. A interdisciplinaridade ficou marcada na realização de dois seminários, o primeiro em maio de 2013 no Museu de Arte Contemporânea de Niterói, intitulado “Museus e Transculturalidade: Novas Práticas Pós-Modernas”, que contou com a participação de agentes indígenas urbanos da Aldeia Maracanã, ao lado de índios Kamayurá, Yawalapiti, Aweti, Guarani e Marubo; o segundo em maio de 2015 na UNIRIO, intitulado “Estética Transcultural: Filosofia, Espaço e Performance”; e na construção de uma oca do Alto Xingu no campus da Praia Vermelha/UFF em novembro/dezembro de 2014, integrando a disciplina “Arquitetura Indígena Bioclimática” ministrada pela professora Dinah Guimaraens. É, então, com enorme satisfação que apresento aos leitores este livro, resultado de uma pertinente colaboração entre instituições de ensino superior no Brasil e na França, esperando que outros projetos surjam no meio universitário por ele inspirados!

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO O desafio da antropologia intercultural para uma estética transcultural Jacques Poulain Tradução: Daniel Mendes Fernandes

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Transculturalidade estética: experimentação pragmática da arte e da arquitetura Dinah Guimaraens 18 Educação e cultura na formação da cidadania Carlos Alberto Ribeiro de Xavier 30 Parte I Práticas transculturais

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Partilha da verdade universitária no campus da Praia Vermelha| UFF: a construção da oca xinguana como protótipo bioclimático Dinah Guimaraens e Marina Vasconcellos de Carvalho Escola xamânica: arte e transculturalidade na Amazônia ocidental Guilherme Werlang

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Instituto Tamoio, povos originários e Aldeia Maracanã Carlos Tukano 60 Antes ocas de palha, hoje teias de concreto Carolina Camargo de Jesus

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Parte II Ensaios: poética e estética Antonin Artaud: o homem-teatro vindo do Alhures Bruno Cany Tradução: Guilherme Werlang

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Museu, poesia e patrimônio imaterial em Alphonsus de Guimaraens Lucas Guimaraens 84 De que corpo se trata no niilismo europeu e no niilismo brasileiro? Charles Feitosa

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A exploração da arte africana primitiva sobre a economia neoliberal transcultural 95 Eyene Mba Tradução: Daniel Mendes Fernandes O surrealismo enquanto poética no mundo moderno Augusto de Guimaraens Cavalcanti 100 Perfomando “Dona Mariana, princesa turca, cabocla curandeira, arara cantadeira Zeca Ligiéro 112 Musicologia e transculturação Tiago de Oliveira Pinto 129 A antropologia intercultural para a transculturalidade de gêneros Irma Julienne Angue Medoux 145 Tradução: Daniel Mendes Fernandes

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Parte III Comunicações

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Um caso em transculturalidade: Brasil e a arte-ethos do continente afroatlântico George Nelson Preston 152 Arte pública: educação em escolas públicas de Nova York Liza Renia Papi 157 A transculturalidade como desafio epistêmico Evandro Vieira Ouriques O museu nacional latino do Smithsonian Luis R. Cancel

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O Museu Nacional do Índio Americano e a transculturalidade Rosane Maria Rocha de Carvalho

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Patrimônio imaterial como museografia Jack Lohman

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Preservando o patrimônio imaterial em casa: primeira nação Huu-ay-aht (Nuu-chah-nulth) Angela Wesley

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MAMIWATA: dança em deslocamento Denise Mancebo Zenicola

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Interpretações Ticuna sobre a iconografia das máscaras rituais Priscila Faulhaber 207 Temas transversais e cultura afro-brasileira e indígena Norma Sueli Rosa Lima

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INTRODUÇÃO – Professor Jacques Poulain Université Paris 8 – Saint Denis Cátedra UNESCO de Filosofia da Cultura e das Instituições

O desafio da antropologia intercultural para uma estética transcultural

Jacques Poulain

Tradução: Daniel Mendes Fernandes O desafio de uma antropologia do diálogo: a configuração das figuras da felicidade

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antropologia do diálogo explorou as origens da arte e da cultura retraçando a dinâmica da comunicação, a qual constitui a base de qualquer experiência. Nascido um ano mais cedo e desprovido de correlações hereditárias com o ambiente, o aborto crônico – que é o homem – vive inicialmente um hiato entre seus aparelhos sensoriais e motores. Não consegue ele se agarrar a um estímulo para ativar um programa motor tal como fazem os animais bem formados e nascidos no tempo certo. Dessa forma, o ser humano teve de se prender a uma linguagem, fazendo o mundo falar, para aí encontrar a felicidade ligada à escuta intrauterina da voz da mãe. O movimento de emissão e recepção dos sons permite que se prenda a realidades e goze delas encontrando o que lhe interessa. No entanto, o uso dos olhos, das mãos e de todos os órgãos de seu corpo só foi possível quando projetou, pelo uso dos olhos, esse movimento de emissão e recepção próprio à linguagem, conferindo às suas percepções visuais um valor igualmente gratificante que confere aos sons que recebe e pelos quais se imagina recebendo a fala do próprio mundo. Essa propriedade do uso dialógico da linguagem foi descoberta pelo linguista W. von Humboldt em 1836, e por ele foi chamada de “prosopopeia”. A antropologia filosófica da linguagem de A. Gehlen mostrou, no século XX, que essa prosopopeia não se restringia à linguagem, mas que também se transferia para o uso de todos os aparelhos sensoriais e motores: a visão, o tato, a manipulação das coisas e a locomoção são vividos como projeção e recepção de sensações que são vividas como gratificações tão significativas quanto os sons, e que podem ser registradas pela memória e, portanto, reproduzidas como tais. Distinta das experiências motoras e perceptivas quotidianas, a experiência da arte encontra sua dinâmica específica na busca sistemática de todas as experiências do mundo, de nós mesmos e dos outros que nos falam gratificando com voz de mãe, isto é, nos respondendo de maneira necessariamente favorável. Descobriu-se esta também, inicialmente, na experiência do sagrado. Porque a experiência de escutar o mundo que fazemos falar não é apenas gratificante: esta nos permite acessar a realidade do mundo e as diversas realidades que ele contém como aquelas que nos gratificam em razão de sua Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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realidade. Portanto, a experiência do diálogo com o mundo também é cognitiva: ela nos permite reconhecêlas como tais, tão gratificantes e satisfatórias quanto, sob o ponto de vista hedônico, é a realidade do mundo. Em sua evolução filogenética, o ser humano se apoiou nessa dupla qualidade de resposta gratificante do sagrado e de reconhecimento desse sagrado como realidade última para se orientar e se descobrir, pouco a pouco, em si mesmo, naquela que ele deseja ser e na qual ele pode gozar de si mesmo ao alcançar sua própria realidade, sua própria realização e, por conseguinte, sua própria felicidade. Assim, a própria especificidade da arte surgiu ao se reconhecer como produtora das figuras da felicidade, sem as quais o ser humano não podia viver e sem as quais não poderia encontrar sentido em sua vida. No entanto, a autonomia dessa experiência se impôs com a rejeição do sagrado e dos mitos religiosos operada pelo Iluminismo, pois esta se manifestou durante a Renascença e, em seguida, na Modernidade como lugar de reconhecimento de sua própria verdade, ou como lugar de verdade do que é o ser humano. No Romantismo alemão descobriu-se que a dinâmica dialógica da arte não era somente a da arte, ou seja, ela determinava também a dinâmica da vida mental e social humana, tanto quanto a dinâmica de sua imaginação. A imaginação produtiva permaneceu sendo um mistério, de tal maneira que foi reduzida a uma qualidade visual ou pictórica. Ao descobrirmos que a imaginação humana é comunicacional ou dialógica, não somente percebemos que a renovação da vida mental não era redutível a esse fluxo de serialização sequencial – tal como parece ser para a consciência que tomou consciência disso –, mas também permitimonos compreender que o diálogo consigo mesmo – que para Platão já era a alma – ditava a lei de renovação da consciência e que sua criação das figuras de felicidade guiava a escolha das formas de vida, nas quais o ser humano pode se reconhecer se reconhecendo que é feliz por se deleitar com uma obra de arte. Esse diálogo consigo mesmo não é puro prazer de si mesmo na invenção de suas formas de vida: o ser humano somente alcança seu destino quando julga que este é realmente, ou não, as formas de vida e felicidade das quais goza ao reconhecer que atendem às suas expectativas de felicidade. Deve ele julgar se são realmente, ou não, essas formas de rearmonização verbal e mental consigo mesmo, com o outro e com o mundo que teve de imaginar que o era para conseguir imaginá-las, dar-lhes existência e permitir através delas, sua própria existência. A criatividade do pensamento e da imaginação não mais pode ser pensada com base no modelo do “gênio”, isto é, de uma natureza inconsciente que imprime suas regras à arte, como afirmava Kant. É esta ativada pelo reconhecimento e/ou julgamento da forma em que vivemos, segundo o qual tal forma de vida não mais nos satisfaz, mas reside em uma posição tal que nos coloca distantes da nossa percepção de mundo e de nossas expectativas: esta não acontece de maneira mágica como um evento que bastaria aguardar da mesma forma que Heidegger aguardava o “último deus”. Depende esta desse sentimento de insatisfação que torna insuportáveis para nós uma ou outra forma de vida, um ou outro mundo, uma ou outra conduta de nós mesmos ou do outro. Depende, ainda do julgamento que distingue, no sentimento de infelicidade, o sentimento de sofrimento, o que produz a insatisfação e o sentimento de não mais poder ser essa forma ou nela se reconhecer. A criatividade do imaginário dialógico com nós mesmos e do diálogo artístico com o mundo necessita do reconhecimento de um julgamento negativo de realidade e de verdade sobre a felicidade que, inicialmente no passado, uma ou outra forma de vida nos havia proporcionado. Essa criatividade ativa a busca pela nova forma de vida, pela nova obra ou pelo novo comportamento que atenda realmente às nossas próprias expectativas ou às do outro e que nos permita, a nós mesmos e ao outro, que nos reconheçamos nessa forma de vida como sendo nossa realidade comum. A dinâmica do julgamento que dá vida à criatividade da criação artística, tal como a da nossa vida mental e social, é o que permite que essa busca por figuras de felicidade – própria à arte e à nossa própria vida – alcance algum lugar. Essa dinâmica é o que constitui a cultura, isto é, o conjunto de atitudes, estados de alma, ações e julgamentos, o que nos possibilita fazer da nossa vida uma cultura que chegue ao seu destino e 12


nos permita acessar o nosso próprio destino, dando-nos a oportunidade de, ao mesmo tempo, identificar as expectativas de respostas favoráveis nas quais nós nos reconheçamos e possamos atender a essas expectativas, seja realizando-as, encarnando-as ou encontrando nelas o nosso destino. Porque esse acordo de julgamento e de felicidade com o mundo, com o outro e com nós mesmos é o nosso destino; destino que faz do acordo dialógico, do acordo de julgamento artístico ou do acordo de cultura uma realidade na qual somente gozamos da felicidade que encontramos nesse acordo, quando nele reconhecemos a nossa própria realidade. Longe de ser uma obra do acaso, somente gozamos dela quando a reconhecemos como sendo a realização presente do esforço de toda a nossa vida passada. O espaço dialógico e intercultural e sua neutralização musealizada A busca por figuras da felicidade se expressa hoje no diálogo intercultural, na experiência de procurar gozar das formas de vida culturais estrangeiras, como se elas fossem também as nossas, e conseguir obter sucesso nesse intento. A antropologia do diálogo nos permite que as reconheçamos aprendendo a discernir as formas culturais de vida e de arte, ausentes na nossa própria cultura e que ainda nos impedem de acessar a nossa própria. Conduz-nos a uma concepção da memória das culturas que revoluciona profundamente nossa relação com as “musas”, e com a memória das figuras da felicidade, artísticas ou culturais, que habitualmente denominamos de “museu”. Porque a função deste último é permitir que nos apropriemos de todas as coisas que, nas culturas do mundo, atende às nossas expectativas e possamos relançá-las aos moldes da imaginação dialógica que age em nós. Faz-nos também, participar de uma estética transcultural das percepções e das concepções do mundo que possa determinar o horizonte cosmopolita das memórias e das expectativas de todos. Hoje, o diálogo intercultural é uma necessidade porque este se impõe como a única maneira de poder superar o que se apresenta como a guerra das culturas. A globalização promovida pelo neoliberalismo não consegue nos fazer reconhecer a cultura econômica do nosso comércio como destino cultural, necessário e suficiente da humanidade. Refuta esta igualmente, o imaginário coletivo e sua busca cultural de sentido na memória das tradições como se estas constituíssem os últimos refúgios de sentido e verdade de cada um. Cada cultura imita, nesse refluxo, a caça globalizada aos monopólios que caracteriza o comércio de direitos, de deveres e de bens no capitalismo avançado, num capitalismo que visa à maximização da fruição dos bens respeitando a liberdade autárquica de cada um. Na caça à verdade, cada cultura afirma o valor e a verdade de sua própria cultura como se as outras nada valessem. Nesse contexto, o diálogo intercultural surge como uma necessidade, mas, com bastante frequência, este se contenta em promover uma busca pela compreensão recíproca das culturas e prescrever o respeito pela cultura do outro como se essa cultura fosse uma pessoa jurídica, em que bastaria reconhecer sua própria existência para reconhecê-la como tal. A partir do momento em que a fala cultural do outro é responsável por uma memória de felicidade e de expectativas de um reconhecimento universal das verdades presentes nessa memória, o respeito de sua fala não pode continuar sendo puramente formal, arbitrário e moral. Estamos aqui empenhados em julgar, queiramos ou não, se essas verdades e felicidades, pelas quais a cultura do outro é responsável, criam condição para nós, como para este, de alcance do nosso destino, isto é, nossa própria humanidade. Tanto a compreensão das culturas quanto a obrigação de respeitá-las relativizam as culturas como patrimônios acidentalmente adquiridos por grupos mais ou menos grandes e poderosos. Tal compreensão as considera como bolhas fechadas em si mesmas que vivem apenas de consenso e rituais tribais, suficientes para proteger os indivíduos contra ataques de outras culturas e outros grupos. Na globalização do comércio de mercadorias e no comércio especulativo de ações da bolsa investidas pelos acionistas nas multinacionais, os quais constituem o horizonte Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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dessas bolhas e desses refúgios culturais, as culturas surgem como experimentações de formas de vida que são confirmadas ou anuladas pelo apoio consensual das comunidades que partilham. São estas, portanto, privadas de suas capacidades de expressar, para todos, o destino cultural universal de todos. Além disso, a compreensão recíproca que visa produzir um diálogo intercultural, unicamente preocupado em superar seus antagonismos, obrigando cada um a respeitá-los formalmente, constitui a pior injustiça à qual essas culturas poderiam ser submetidas, uma vez que delas são retiradas, de antemão, a possibilidade de contituirem uma forma de felicidade e de verdade para todos como uma forma de vida universal. Na verdade, são subtraídas delas mesmas o julgamento ao qual seus portadores aderem, reconhecendo a figura de felicidade e de verdade que é a única que lhes permite ser o que eles julgam dever ser. Essa despotencialização radical das culturas é acompanhada de uma despotencialização da arte e do julgamento estético. A partir da modernidade, o julgamento estético parece revelar a maneira como a criatividade artística se torna uma forma de vida. Esse julgamento oferece um modelo de sensibilização e de realização da razão como faculdade de desejo superior. A arte aí, supostamente, demonstra a figuração do desejo e da felicidade que atrai irresistivelmente para si a identificação dos indivíduos que a produzem. Reconhece-se nela a beleza do fato de que essa figuração antecipa a satisfação que não se pode deixar de desejar obter. A recepção dessa figura, tanto, pelo artista quanto pelos outros espectadores, deve se impor sozinha, sem desvio de conceito, simplesmente porque foi recebida e compreendida de forma gratificante, independentemente da sua atuação na realidade ou na ação. A transformação experimental e pragmática dessa cultura artística reside na maneira pela qual buscamos nos apropriar dessa criatividade, experimentando-a seguindo o modelo da experimentação científica. Como essa transformação pragmática da cultura da arte prolonga pura e simplesmente a transformação que foi desenvolvida pelos tempos modernos, sua neutralização exige a remoção dos limites desse modelo, os quais foram herdados de uma filosofia da consciência. É essa própria experiência de produção e de recepção da figuração artística que é vinculada hoje, como objeto de experiência e apropriação direta dos efeitos dessa experiência, às diferentes transformações pragmáticas da arte, como se verifica através da evolução exemplar da pintura contemporânea, do impressionismo e do cubismo até a arte dita abstrata. Tal transformação pode ser lida como uma adaptação do meio de figuração estética que visa ao prazer estético: a obra de arte é bela, se e somente se, permitir gozar da experiência estética pelo simples fato de que nós a programamos como tal, a percebemos como tal, e temos consciência de percebê-la realmente como tal. De igual maneira, a relação com a felicidade reduzida como felicidade comum, na relação de sua visibilização nas relações de justiça se encontra reduzida na arte do belo, quando neutralizamos seu valor cultural colecionando seus diversos resultados visíveis num museu vazio de todas as musas que lhe davam vida. A relação de visibilização das figuras da felicidade e do seu prazer no julgamento estético é frequentemente reduzida, nos museus, à sua pura recepção visual e aos esforços de compreensão hermenêutica do sentido, do qual seriam todos depositários e o qual seria necessário decodificar sem que se tenha as chaves para essa decodificação. A dinâmica cultural da arte, da pesquisa e da apresentação das figuras de felicidade que norteiam o diálogo de descoberta do mundo, do outro e de si mesmo é pura e simplesmente neutralizada. Os patrimônios culturais surgem, assim, como incomensuráveis culturais: são estes respeitados e preservados como monumentos visíveis de incompreensibilidade para seus visitantes e como monumentos imemoriais, descarregados de sua memória viva. Essa neutralização é derivada da redução do prazer estético àquela da percepção visual ou pictórica e da redução do uso da linguagem em seu uso descritivo e científico. Através dela, todo imaginário é pensado sob o modelo do imaginário visual e pictórico. Como o sentimento de deleite do belo natural ou artístico é reduzido ao de uma surpresa reservada pelo mundo ou pela sensibilidade criadora, seus resulta14


dos são supostamente, desde Kant e sua Crítica do Julgamento, universalizáveis para todos, sem que saibamos porquê. Proporcionam estes uma gratificação estética tão misteriosa quanto o mistério da criatividade artística qualificada de especialidade do “gênio”, tão misteriosa quanto a ocorrência do mundo cujo caráter sublime é reconhecido precisamente como o que está além de todas as nossas expectativas e se revela, portanto, incomensurável em sua grandeza, infinidade e reprodução perpétua. E esta é tão misteriosa quanto aquela que atribuímos ao ser humano como sendo a propriedade que o distingue dos outros seres vivos: sua propriedade de ser pensante. É assim que inventamos um mundo estético separado do que aquele que nos motiva a nele viver e percebê-lo; um mundo separado do movimento pelo qual o fazemos falar por meio de percepções auditivas, visuais, locomotoras, táteis e de manipulação. Damos a esse mundo o horizonte de uma espécie de prosopopeia visual em que reunimos as percepções, as obras culturais, as formas de vida institucionais nos museus como se bastasse pendurá-las à altura dos olhos para evitar ter de compreendê-las, nos compreendermos nelas e julgá-las como sendo,, ou não nossa própria realidade. Imitamos, assim, as ciências humanas que nunca, antes, nos apresentaram tantas formas de vida, mas que são incapazes de nos fazer reconhecer as formas de vida nas quais nós possamos nos reconhecer como nós mesmos, apresentando a nossa verdade, a nossa real humanidade. Mas esse mundo não pode mais ser reduzido à simples felicidade do olho senão no mundo em que vivemos, pois ao suprimirmos do “museu” a musa que deu vida à reunião desses resultados suspensos, suprimimos junto dele a nossa capacidade e a do mundo de falar. Novamente, reduzir o museu ao simples ato de pendurar coisas bonitas à altura dos olhos depende da redução da vida do espírito a uma metáfora da visão, a uma teoria descritiva do que produzimos como estética transcultural. O reconhecimento da dinâmica de diálogo interno tanto na percepção como na ação de criação artística não caberia, portanto, visar à construção de um museu intelectual reduzido a esse museu do olho, à pura e simples descrição da existência do mundo transcultural. O mundo-museu enquanto espaço de uma estética transcultural Somente damos vida aos museus quando os inserimos naquilo que o diálogo intercultural produziu como museu universal: o próprio mundo. O mundo, todos os dias, relança a nossa caça às musas, recorre ao reconhecimento da invenção das figuras de felicidade, incluindo a infelicidade que afeta algumas culturas e nos faz sofrer com sua falta. O mundo arranca essas figuras de felicidade do puro e simples deleite do belo, reinserindo-as na percepção e na antecipação imaginativa das figuras da humanidade, nas quais a pressão de uma infelicidade universal nos incita a nos reconhecermos. A emergência da alterglobalização, para a qual tanto contribuíram os encontros de Porto Alegre, é indissociável da crítica ao neoliberalismo feita pelos melhores economistas tal como Joseph Stiglitz, e da formação dos Brics, que reuniram recentemente os países emergentes em Durban: esses fenômenos testemunham o reinvestimento das expectativas de felicidade comum numa justiça social cosmopolita. O mundo, como lugar de interação das figuras de felicidade que este obriga a inventar e realizar, se constrói, assim, como espaço de uma estética transcultural. Não é necessário passar para o campo da geopolítica liberal ou antiliberal para notar a velocidade com que a televisão propaga as infelicidades ligadas ao desprezo às mulheres verificadas em algumas culturas. A dependência das mulheres em relação aos homens nos países mulçumanos, nos países que instituíram uma poligamia que as humilha ou ainda nos países em que se multiplicam os estupros, não somente despertou o apoio daqueles que há séculos lutam pela igualdade cívica e civil das mulheres e dos homens. Incentivou, de fato, que essas mulheres se juntassem em associações multinacionais para a defesa de seus Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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direitos, bem como também as obrigou a reconhecer os fundamentos antropológicos dessa igualdade ao estabelecer a paridade de uso do julgamento confiado aos dois sexos, em razão do uso comum da linguagem, em quaisquer que sejam seus idiomas. O reconhecimento do que inspira essas descobertas é tão importante quanto a que inspira o tratamento dos conflitos civilizacionais entre a Europa e as Américas. A publicação dos 34 volumes da ética que reuniram a colaboração de intelectuais e universitários espanhóis, brasileiros, sul-americanos e mexicanos é, nesse sentido, exemplar, na medida em que rompe as correntes do passado de escravidão dos negros e dos homicídios de índios sem contestar suas consequências ainda em vigor, mas transforma a análise do passado em exigências de justiça e felicidade social, e em motivações de emancipação intelectual para o futuro. Essas exigências de emancipação do julgamento em relação ao passado não nos isenta de promover as exigências impostas pelo tempo presente. Não é menos urgente fazer esquecer, de uma vez por todas, as falsas figuras da felicidade que invadiram o mundo sob a aparência das promessas de salvação populistas, nacional-socialistas ou soviéticas no século XX, ou sob a aparência da economia de mercado liberal ou da especulação gangrenosa do comércio de capitais. Há muito que a opinião pública internacional manifesta recusa categórica em relação à injustiça perpetrada por essas falsas promessas, mas somos forçados a reconhecer que as prescrições morais que acompanham essa recusa revelam-se incapazes de conter os efeitos. A utilização dos museus de estilo clássico foi invocada, por exemplo, em Berlim, no Museu do Holocausto ou em Caen, no Memorial da Segunda Guerra Mundial para superar essas catástrofes, mas há muito tempo esses monumentos de memória revelaram-se insuficientes para impedirem a recaída nos excessos da barbárie que denunciam. A percepção generalizada das infelicidades presentes exige que a antropologia intercultural nos dê acesso a esse esquecimento necessário, retraçando a parasitagem das fontes de comunicação pelos mercados que as fez surgir como únicas vias possíveis do progresso da humanidade rumo ao seu destino. A confiança na equidade inerente ao mercado à qual convidava Adam Smith, vinha, como bem se sabe, da dinâmica da comunicação que exige que os interlocutores respeitem, em suas trocas, as relações de reciprocidade que vivenciam no diálogo em seus acordos e desacordos. A parasitagem dessas relações é concebida de forma muito incompleta quando a alegada justiça inerente ao mercado é feita sob “a mão invisível” do mercado. Deriva esta de um engodo mais profundo. Como fenômeno de secularização da salvação, herda, tal como revelado por Max Weber, as expectativas de retribuição do sagrado, análogas às que inspiravam os candidatos protestantes à predestinação para a salvação. Porém, ainda mais profundamente, esse engodo é depositário das chamadas e respostas de felicidade inerentes ao uso das emissões de sons e suas recepções, na medida em que a emissão-recepção de sons gratifica infalivelmente a si mesma, em si mesma, pois aquele que o emite – a criança que balbucia – não pode distinguir o som ouvido do som emitido quando o projeta para o mundo e o consome num mesmo movimento. É essa a dinâmica de uma chamada de felicidade que gratifica simultânea e infalivelmente a si mesma, que se projeta na relação das trocas do mercado para fazer da experiência uma figura de felicidade que satisfaz, infalivelmente, a si mesma de forma imparcial. É como relação indefectível de encarnação da justiça que essa relação faz gozar a si mesma como relação que somente se incentiva a se tornar mais intensa e garantida ao reinvestir os lucros no capital da empresa. Essa relação de justiça na troca do mercado não é simplesmente análoga à relação de diálogo concebida sob o modelo desta; esta é a relação do próprio diálogo, o qual supostamente se aplica infalivelmente ao comércio de riquezas e, em seguida, ao comércio de ações, à troca das operações do trabalho contra sua retribuição salarial, da mesma maneira pela qual já se aplica ao comércio econômico das riquezas. É como gratificação comunicacional que esta não tem mais a necessidade de passar pelos meandros de um conceito senão o julgamento estético kantiano, quer lembre o deleite estético kantiano, quer inspire também a experimentação contemporânea da arte, tal como inspira a experimentação pragmática do consenso democrático. É como tal que ele próprio 16


se experimenta na especulação financeira sobre as ações das empresas, nas especulações sobre o comércio bancário dos capitais ou bem como nesta instância que aborda as moedas nacionais dos Estados-nações ou naquela que prolifera em ações imobiliárias. Garantida por essa consciência de justificabilidade inerente aessa relação de comunicação dos indivíduos e dos grupos com o mundo social, essa estetização econômica do mundo social está, antes de tudo, acima das leis. Quer seja bem-sucedida ou malsucedida, ela é, antes de tudo, gratificada e feliz, uma vez que é apenas uma prova da liberdade autárquica por si mesma, que se dedica assim a gozar infalivelmente de si mesma. Portanto, não é magicamente que nós nos livramos do “horror econômico”, assim chamado por Viviane Forrester, contentando-se em denunciá-lo ou descrever sua lógica. É preciso, ainda, conseguir introduzir no seu desenvolvimento o que ele exclui de antemão, a intervenção de um julgamento de objetividade. Não tem este, somente, de descrever os fatos do empobrecimento produzido, por exemplo, pelo investimento de capital nos países de terceiro mundo e sua retirada arbitrária em boa hora, seguido de uma cura de estabilização econômica imposta pelo Banco Mundial e pelo FMI com a ajuda da aplicação da receita do Consenso de Washington, com o lema “liberalização da economia, seguida de privatização das empresas públicas, seguida de austeridade imposta para reembolsar as dívidas”. É preciso, também, poder inventar e julgar as intervenções políticas, econômicas e industriais necessárias nos diferentes jogos do mercado para trazê-los de volta à razão, quer dizer, ao exercício de um julgamento objetivo de equidade e a um exercício de julgamento partilhado por todos os parceiros sociais implicados, também analisado por Joseph Stiglitz em seu ensaio Globalização: como dar certo. Apenas se conseguirmos fazer funcionar o julgamento feito por todos sobre a estetização econômica do mundo é que teremos uma chance de mandar o neoliberalismo para o calabouço de um museu capaz de tornar visíveis suas extravagâncias passadas e torná-lo esquecido.

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Transculturalidade estética: experimentação pragmática da arte e da arquitetura

Dinah Guimaraens Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense, Coordenadora CAPES-Cofecub n. 752/12

A

universidade se universaliza necessariamente dentro de um horizonte de experimentação do homem pela comunicação, ao se reconhecer como forma dada de toda comunicação [...] de seu ser teórico através de um processo de experimentação dela mesma que é submetido a este julgamento de verdade. (POULAIN, 1998) Em eventos realizados, entre 2012 e 2015, no bojo do projeto de pesquisa “A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana”, na Universidade de Paris 8-Saint-Denis, na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, integrados pelos professores Dinah Guimaraens, Guilherme Werlang, Charles Feitosa, Zeca Ligiéro e Tiago de Oliveira Pinto, do lado brasileiro, e Jacques Poulain, Bruno Cany, Irma Medoux, Plínio Prado Junior e Phillipe Tancelin, do lado francês, tivemos a oportunidade de discutir questões sobre a reformulação ético-política do pensamento da imagem, passando à experimentação pragmática da arte e da estética expressa em uma filosofia transcultural conceituada por Jacques Poulain. A tese apresentada pelo professor Bruno Cany, durante estes eventos, foi que a modernidade do pensamento-artista é o pensamento visual como crítica à sociedade do espetáculo, totalmente comunicacional e consumista. A imagem poética tem a vantagem de não ser prisioneira da esfera técnica, e o pensamento-artista não reduz o pensamento ao conceito e à lógica, na medida em que este emprega a polissemia, os símbolos e as narrativas para criar a linguagem artística. Enfatiza Cany a relevância da pintura metafísica de Giorgio de Chirico, ao destacar a reversão da música à imagem. A pintura metafísica é, então, contemporânea da pintura pura ao recusar os limites da metáfora musical. O pensamento visual, que vê além da presença do visível, apreende a presença ausente do invisível. E ao articular o ver-tocar-à-distância à palavra-matéria-sonora, a imagem poética literária detém um considerável poder aglomerante de objetivação para criar o “teatro da mente”. A poesia é um universal indeterminado, afirma ainda Bruno Cany. O que é comum tanto para o artista-filósofo clássico (Platão e Nietzsche) quanto para o filósofo-artista moderno (De Chirico e Artaud) é o teatro da mente do pensa18


mento visual através da etnopoética, além dessas criações (De Chirico, Artaud) que se verificam constituir um universal antropológico. Pensar a poesia no nível mundial e no contexto de uma antropologia filosófica comporta, portanto, a criação poética em sua finalidade ético-política. Poética ético-política filosófica em música, literatura e teatro Em sua crítica literária, Charles Feitosa estabelece um diálogo filosófico sobre a transculturalidade da cultura brasileira, tendo como inspiração a música dos Titãs para se referir às supostas formas brasileiras de niilismo. Música e literatura são vasos comunicantes na cultura brasileira niilista, como revelado no poema “Não-Nada”, que foi inspirado pelo “Nonada” inventado pelo escritor Guimarães Rosa. O termo “Nonada”, que abre o Grande Sertão: Veredas (Diadorim, na versão francesa), é de extrema importância para o significado do romance, e se tornou apenas “nada” na tradução inglesa. Curt Meyer Clason, famoso tradutor da edição alemã, considera esse termo intraduzível, um dos “oito mil neologismos de Rosa” e, assim, o transformou em quatro palavras, em uma frase principal composta por quatro sílabas, para tentar manter o impacto: “Hat sich auf nichts”, onde “Nonada” é o que não importa e que, literalmente, não tem nada nele. Feitosa não está sugerindo, em seu texto, que Rosa é um niilista, pelo contrário, emprega a apropriação de um de seus “brasileirismos” como uma espécie de emblema para a pergunta: existe um niilismo à brasileira? Na apresentação do livro de Phillipe Tancelin Quando o Caminho Retorna à Luta Poesia e Filosofia (2005), Jacques Poulain pretende remeter a palavra às suas fontes: uma poética filosófica de resistência ao falar sobre o Centro Internacional de Criação de Espaços Poéticos (CICEP), coordenado pelo próprio Tancelin e que trata do encontro da poesia com as outras artes. Poulain sublinha ali os aforismos poéticos e filosóficos que capturam o espírito intransigente das linhas de resistência desenhadas com ardor, mas com paciência, ao longo de 35 anos de experimentação poética e teatral, engendradas juntamente com Geneviève Clancy. De forma a alcançar uma visão filosófica sobre a única realidade que o homem pode viver no contexto deste mundo – no qual a intolerância, sob a denominação de liberalismo, imposta pela lei da selva no mundo político produz seu oposto: a monopolização e a privatização frenética sob a denominação enganosa de globalização –, Jacques Poulain opõe o hedonismo poético e a alegria do consumo da verdade poética, anexando-os ao exercício do reconhecimento da crítica próprio do julgamento filosófico. O CICEP representa, então, para Poulain, uma utopia política que só expõe a dinâmica do discurso que anima na medida em que anima todo o mundo na dinâmica do diálogo de compartilhamento da verdade. Aos aforismos poéticos de Tancelin junta este reflexões filosóficas sobre as experimentações da pragmática artística através das quais buscou, na verdade, restaurar em cada um a capacidade de perceber esta realidade como realidade insuperável. Para se obter tal resultado, devem-se unir os mais fortes prazeres poéticos numa crítica implacável, removendo o transe autista e substituindo seu próprio transe pelo transe da verdade poética. Jacques Poulain destaca que o transe autista da pragmática artística cria performances de “autismo chamânico” como expressão do fracasso da democracia liberal, o que, portanto, faz com que cada autista possa se dedicar a negar, para si mesmo, o poder criativo e crítico de seu próprio discurso em seu próprio pensamento, não desfrutando de si mesmo a não ser nessa mesma negação. A transculturalidade estética proposta pelo CICEP com a reunião da poesia às outras artes, simboliza uma “estética do coletivo” com a criação coletiva a partir dos anos 1970 que ilustra este “estar junto” que representa o seu fruto. A imagem deve nos fazer refletir, finalmente, sobre os desejos íntimos daquilo que Brecht chamou de Teatro, remetendo a uma nova compreensão e ao desejo de apreensão sensível do significado de “viver junto dos homens”, como sugere Poulain. 19 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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Zeca Ligiéro foi o criador, em 1998, do NEPAA (Núcleo de Estudos das Performances Afroameríndias) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro-UNIRIO, com o objetivo principal de entender por que as mudanças na vida social e cultural na América Latina levaram alguns países a buscar identidades nativas e africanas, embora seus métodos de ensino não houvessem seguido tal tendência nos currículos, mantendo, ao contrário, uma base essencialmente eurocêntrica. O objetivo do NEPAA, nos últimos 15 anos, consiste, portanto, no processo de ensino e aprendizagem do teatro com a análise da história das escolas de teatro no Brasil, tendo como base a Escola de Arte Dramática (Escola de Teatro) da UNIRIO. Como educador, a pergunta feita por Ligiéro é esta: “Por que, apesar do conhecimento brasileiro haver sido estabelecido em torno de três grupos étnicos: índios, europeus e africanos, as escolas (e as universidades) foram criadas simplesmente tomando como base uma dessas três tradições?” Tal conhecimento se adequa a nossa tradição, e muda através da história do Brasil com as lutas de artistas e professores quanto às crescentes exigências do poder público. Ligiéro acredita que um bom exemplo dessas mudanças educativoculturais reside na luta entre os métodos tradicionais do teatro burguês e outros tipos de teatro experimental, em circunstâncias idênticas à significação dos restos de pequenas tradições africanas e indígenas americanas. A lógica eurocêntrica partilhada pelo sistema escolar brasileiro vem sendo, então, criticada pelo NEPAA por representar um modelo das pretensões hegemônicas estatais brasileiras no domínio cultural e educacional. A propósito, três formas de erro escolástico foram destacadas por Bourdieu (1997), os quais criam uma escola autômata como produto da constituição (e do próprio esquecimento) das restrições do meio acadêmico com sua finalidade de conhecimento, em que a ciência estabelece o fim da ética (da lei e da política) e da estética enquanto áreas de atuação a serem incorporadas aos campos de dissociação da filosofia. Discorre Bourdieu, ainda, sobre o etnocentrismo escolástico que anula a especificidade da lógica prática, quando se deve reenviá-la de volta à lógica escolástica na qual a alteridade radical a não existência e o não valor do bárbaro como vulgar – como salientado na noção kantiana de “gosto bárbaro”–, acabam conduzindo a um “bárbaro interior”. A lógica da globalização parece se afirmar opondo-se a um “gosto bárbaro”, a partir de um consenso de igualdade cultural universal. Na realidade, a desigualdade cosmopolita entre as culturas, orquestrada pela globalização, depende da reivindicação hegemônica à verdade. Jacques Poulain destaca a primitivização das diversas culturas, na qual a identificação com o consenso cultural reproduz a identificação dinâmica das sociedades arcaicas à palavra dos deuses. A maior injustiça social gerada pela globalização parece produzir o maior bem, a emancipação intelectual e cultural forçada de povos e indivíduos no que diz respeito às suas condições materiais de existência e sua disposição para o consumo. O resultado deste aparente consenso de igualdade da globalização cultural representa a autofalsificação da antropologia liberal na globalização, simbolizando a incapacidade das democracias, nas chamadas culturas avançadas, de justificar a fundação de seu poder sociopolítico sobre um conhecimento antropológico universalizado (POULAIN, 2001). Lógica da globalização e abordagem transcultural universitária Na sequência da reivindicação ilegítima de consenso cultural sublinhada por Poulain contra os afro-brasileiros e os nativos americanos, Zeca Ligiéro acrescenta críticas à hegemonia europeia nos conteúdos dos currículos da universidade brasileira. Se esta experimentação humana cognitiva no diálogo intercultural pode muito bem acompanhar a experimentação sociopolítica defendida pela generalização do capitalismo, a experiência de consenso cultural não pode magicamente superar a guerra cultural desencadeada pela consciência da injustiça econômica e social (POULAIN, in op. cit. p. 20). Desta forma, a identidade europeia no mercado 20


mundial, as multinacionais e as democracias deliberativas simplesmente reproduzem a postulação republicana de igualdade civil e são, também, incapazes de estabelecer uma igualdade transcultural de julgamento na república cosmopolita do diálogo. Se uma abordagem transcultural universitária opõe ao comparativismo com a cultura europeia a necessidade de uma transdisciplinaridade acadêmica, Tiago de Oliveira Pinto mostra que a audição representou o último dos cinco sentidos, em grau de importância, para os habitantes europeus que queriam experimentar algo do universo sensorial tropical. Quando voltaram para seus países de origem, os viajantes da Europa nos trópicos trouxeram com eles curiosos objetos, imagens e desenhos, – e, mais tarde, fotografias – de regiões distantes, ao lado de relatos de locais fantásticos, cheiros, gostos e até mesmo equipamentos que ofereciam novas experiências táteis, mas nunca seus respectivos sons. Em vez disso, para se concretizar de fato uma invenção tecnológica era necessário preservar elementos do universo “ex-acústico”, como no caso do fonógrafo de Edison, de 1877. A tecnologia europeia foi desenvolvida até o ponto de poder dar conta da gravação contemporânea dos componentes musicais de sons dos índios norte-americanos. A intervenção de Guilherme Werlang fala sobre os indígenas amazônicos Marubo, com um breve relato de Ivãpa (Vicente) sobre o mito-canto Saiti-Mokanawa Wenía, – literalmente “O surgimento dos povos tóxico-amargos”–, revelando que foi este ritual feito sem o contexto de um festival real, mas sim com a intenção deliberada de salvá-lo. O pesquisador sentou-se em uma tapo-cabana perto da shovo-maloca, na comunidade Marubo de Vida Nova, no Alto Rio Ituí, no Vale do Rio Javari, na Amazônia ocidental, em um quente meio-dia de abril de 1998. A conclusão da pesquisa é que o tom e a duração são códigos homólogos que dividem as células musicais em frases e aquelas frases formam lacunas nas melodias e ritmos sucessivos no tempo, estabelecendo espacialmente estruturas concêntricas e diádicas no caso de Mokanawa Wenía. Embora nem todos Saiti sejam estruturas diádicas, essa função de estruturação das características de tonalidade e a duração de todas as canções-mitos, do mesmo modo que as palavras que correspondem a essas notas musicais e aos intervalos nos quais pulsam as frases, são sempre estruturadas em células compostas por versos de linhas verbais em sucessão, através do qual a história mítica é contada poeticamente, com o uso de rimas e estrofes paralelas. Sobre o significado simbólico e filosófico da poesia Saiti, o índio filósofo-artista-sul-americano não é meramente um criador de conceitos, mas, sobretudo o criador da linguagem que traz à tona este pensamento mítico, bem como o criador da forma singular pela qual o pensamento mítico organiza as palavras. Bruno Cany, no prefácio do livro Que Pintura?, de Lyotard (2008), afirma que a literatura constitui o topo desta filosofia da solidão que, desde Kierkegaard e Nietzsche, foi capaz de traçar os trilhos da arte literária. A perspectiva musical, apresentada por Cany na pintura, é transcultural e simboliza “o amor de solilóquio do pensamento e da expressão, este desejo infinito da discussão com outras pessoas que Lyotard nomeou Le Différend (CANY, in op. cit., p. 7) e que aparece no mito-canto Marubo. Como o mito-canto Mokanawa Wenía que é polifônico, o pensamento do artista não se refugia na abstração conceitual, mas sim assume seu fraseado – sua sinuosidade sintática – e seu dispositivo dialógico duplo: os personagens interagem uns com os outros e o próprio leitor pode, então, interagir com o autor. Na arte da polifonia, como na arte da fuga do pensamento, se junta o domínio da polifonia e do contraponto, como salientou Cany. Na polifonia, seja com duas ou mais vozes, os papéis de entrevistador e entrevistado se modificam, deslizam e se invertem tantas vezes quantos sejam necessários para a implantação da composição. Já no contraponto, na medida em que os papéis dialéticos desaparecem, o questionador é menos propulsor que questionador de suas próprias questões, em contraponto aos padrões do respondente (CANY, in op. cit., p. 7). Heidegger considerava a linguagem como casa do ser e o Dasein (ser aí) como um pastor do ser. Pretendia ele estabelecer uma estrutura autocompreensível e pré-compreensível do Dasein, a partir da qual este ser aí se identifica com sua verdade de enunciação e de ser pensante. A comunicação per21 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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mite reconhecer uma realidade comum e uma verdade do sujeito da enunciação que representam também aquelas de seu ouvinte. Essa natureza comum do diálogo que os interlocutores assumem no diálogo com eles mesmos e no diálogo com os outros constitui a própria hermenêutica filosófica. A linguagem responde a uma utilização comunicacional, na medida em que aumenta a verdade como fenomenologia da comunicação e que representa a conversa livre, a qual é a projeção da força transcendental do diálogo no mundo e na vida social. Esta força transcendental é aquela que Kant esperava da demonstração filosófica. A sabedoria pragmática de Richard Rorty instituiu uma antropologia da comunicação como lugar de solidariedade para estabelecer que a verdade que emerge do debate livre representa tanto a solidariedade quanto a norma imanente à prática social da comunicação. A filosofia deve, assim, abandonar o mito da verdade que emerge do confronto de duas esferas do conhecimento – a ordem do discurso e a ordem dos fatos – para alcançar uma concepção interdiscursiva e dialógica (POULAIN e MEDOUX, 2012). Se o personagem dialógico pós-moderno não é solipsista, sua lógica não é a da dialética, mas aquela da multiplicidade, porque a pluralidade pronominalizada do personagem contemporâneo é aquela de um pensamento que dialoga consigo mesmo (CANY, 2008, p. 8). Logrando talvez inspirar uma reflexão crítica sobre o Brasil atual, Medoux (2011) reflete sobre o ressurgimento do pensamento crítico na África pósmoderna, com destaque para as questões de gênero entre homens e mulheres, em que tudo se passa como se os sintomas de falibilidade do modernismo que afetam a África deveriam ser lidos como um abandono da razão. Na verdade, a diferenciação entre as tradições africanas e o fracasso de sua adaptação à modernidade, denominada modernização, foi inspirada pelas ciências humanas neoliberais que pregaram uma paridade civil e cívica de gênero e acabaram por estabelecer um processo de diáspora interna que pode ser lido como uma nova apartheid entre homens e mulheres na África. Os problemas de corrupção de seus líderes, o combate e a proliferação do etnocídio, a fome e a AIDS tribal são paralelos à especulação financeira que a Europa enfrenta, do mesmo modo que a América do Norte e a América do Sul acabam produzindo pobres e excluídos nos chamados países ricos. Esta divisão entre as elites e as massas acompanha os efeitos da globalização econômica, a qual é conduzida como um experimento neoliberal contemporâneo do ser humano (POULAIN, 1998). Como Lyotard sugeriu, o homem pós-moderno deveria ter um novo vocabulário para recontar, em termos históricos, a história do mundo, abandonando uma perspectiva narrativa pragmática que legitimou uma história universal e que acabou por aniquilar as diferenças culturais, promovendo em seu lugar um sujeito moderno cínico. Inspirando-se em Lyotard, pode-se falar de pequenas histórias de afrobrasileiros e americanos nativos no Brasil e refletir sobre a África como um modelo político colonial semelhante e um espelho social contemporâneo. Na África, como no Brasil, os grupos locais são negados pelos modos de legitimação das culturas particulares que pretendem conduzir as comunidades “selvagens” a se transformarem em uma sociedade de cidadãos. O indígena surge, então, como o nãosujeito da era colonial que designa o “autóctone” como qualquer coisa que possa ser aceita na sociedade africana (MBEMBE, 1988). O princípio autoritário impresso hoje pelo Estado em sua empresa de modernização da sociedade africana gera ações e formas de conhecimento, a fim de se fazer representar como titular do monopólio da verdade (FOGOU, 2011). A resposta adequada da África pós-moderna reside em estabelecer um diálogo crítico com as comunidades não africanas compostas por europeus, americanos ou habitantes do Oriente Médio e do Extremo Oriente. É através da experiência da cegueira, da instrumentalização e da manipulação do alegado consenso democrático que os colonos partilham sobre a modernidade que sua própria objetividade será garantida. Neste diálogo crítico, resta aos universitários analisar as comunidades da diáspora na América do Norte e na América do Sul sem cair na impotência e em certa consciência trágica de sua decadência, nem se sentirem incapazes de nada nelas poder alterar. Tanto no Brasil quanto na África pode-se, finalmente,abandonar, em 22


uma perspectiva contemporânea, formas obsoletas de pensar a democracia e o progresso como uma falha do destino (MEDOUX, 2011). Cultura da forma e estéticas de percepção da imagem e do ser A experimentação transcultural se dá através da relação entre a imagem e o ser enquanto estrutura social no espaço-tempo, definindo diferentes práticas artísticas como arquitetura, artes visuais, pintura, escultura, literatura, música, dança e teatro/performance. Dinah Guimaraens trata da especificidade da arquitetura baseada na imagética, devendo-se conceituar suas formulações teóricas (apresentações orais) em termos de suas configurações espaciais (expressões plásticas ou visuais) para pensar o objeto da arquitetura como um todo e sua apreciação na dimensão artística. A concepção do projeto arquitetônico se refere a uma atividade na qual a notação gráfica aparece como um modo de discurso, ou seja, o discurso de um estilo poético que simboliza um dos quatro níveis de precisão propostos por Aristóteles: poética, retórica, dialética e analítica. Caracteriza-se tal discurso poético como sendo parte da imagem em que o gosto de hábitos convencionais se afirma como forma de ser que deve ser aceita como verdadeira temporariamente, ocasionando desta maneira a suspensão da descrença sobre a realidade imagética. A arquitetura de um Museu Vivo implantada como protótipo bioclimático no campus da Praia Vermelha/UFF em novembro/dezembro de 2014 é, então, experimentada em sua dimensão estética e construída em sua dimensão funcional e tecnológica. Vista como um todo, a arquitetura é um ambiente no qual as relações sociais se tornam possíveis e se espacializam e o pensamento visual adota ali conceitos de uma imaginação interativa e de uma concepção figural para reiterar sua rejeição a qualquer dicotomia entre a concepção do projeto e a gravação da imagem figurativa. Em outras palavras, a notação gráfica empregada para desenhar diagramas e croquis é entendida como sendo fundamental para a concepção do projeto (ARNHEIM, 1995). O projeto do Museu Vivo almeja alcançar uma lógica dialógica ao mesclar técnicas construtivas tradicionais artesanais e conceitos projetuais digitais, estabelecendo uma prática colaborativa entre indígenas Guarani, do Alto Xingu (Kamayurá, Aweti e Yawalapiti) e da Aldeia Maracanã/RJ com o corpo docente, técnico e discente da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Da mesma forma, uma maloca em estilo indígena tradicional, contando com as devidas adaptações para o aperfeiçoamento do ensino médio, abriga hoje a Escola Transcultural SHAKO MAI no Alto Javari, Amazonas. Tendo sido construída entre 2013 e 2015, em um local de fácil acesso às treze comunidades Marubo do Rio Ituí, na Aldeia de Vida Nova, que dispõe também de uma pequena pista de pouso, esta escola foi proposta por Guilherme Werlang visando fortalecer o conhecimento cultural indígena, de forma a permitir-lhe vigorar em contextos urbanos. Tendo como intenção capacitar os povos indígenas a representarem a si mesmos, mesmo após deixarem a floresta, o projeto assume que a possibilidade de prosseguir nos estudos e o acesso à universidade representam um apoio eficiente para a autossustentabilidade indígena, pois assim representantes dos seus interesses receberão formação educacional adequada. Presume-se que a transculturalidade estética inclua desde propostas de experimentações universitárias como estas até um diálogo entre os campos artísticos. Jacques Poulain fala sobre a existência de uma cultura da forma nas artes visuais e estéticas de percepção, ao interpretar a famosa frase de Leonardo da Vinci: “Nós não pintamos com a mão, mas com a cabeça” (POULAIN, 2002, p. 7), no prefácio do livro de Adolf Hildebrand. Hildebrand é um teórico de arte e escultor alemão que ilustra a teoria filosófica de Poulain (2001) sobre a dinâmica da comunicação e a harmonização do som, com base na ideia do nascimento da psicologia da forma e do renascimento da antropologia herderiana da linguagem. A antropobiologia de 23 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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A. Gehlen e F. Kainz mostra que a dinâmica da recusa em se deixar falar estabelece as formas denominadas de impressionistas, as quais são criticadas por Hildebrand. Será que tais formas impressionistas poderiam chegar, em caso extremo, a destruir a faculdade estética da percepção e, desta forma, toda faculdade criadora das artes plásticas no século XX, em um “horizonte de neutralização generalizada da psique, como gênese da neutralização da criatividade pictórica e estética”? (POULAIN, 2002, p. 21). A transição do mundo real, nas artes visuais, decorre do papel fundamental desempenhado pela atividade criadora do olho como órgão que estabelece um espaço comum para a arquitetura, a escultura e a pintura artística. O essencial entre as três artes da arquitetura, escultura e pintura encontra-se no elemento que Hildebrand chama de impressões “arquitetônicas” e que representa a confluência da verticalidade, da horizontalidade e da profundidade como lei geral que constitui o espaço de composição. Sobre a percepção visual, logra-se estabelecer uma conexão com o mundo para responder à pergunta: o que é (re)apresentado pela imagem (real ou imaginária)? (CANY, 2008, p. 47-48). A resposta clássica é que o plano da consciência gráfica é que formaliza e a resposta tradicional afirma que é o plano do inconsciente que se materializa (BACHELARD, 1979), enquanto a resposta filosófica diz que é o nível de consciência abstrata que conceitua. A conclusão de Cany é que é a visão que pensa, ou o pensamento que vê e pode, assim, enxergar para além da presença do visível. A imagem poética é a palavra como imagem do assombro invisível (CANY, in op. cit., p. 49). Se o cinema iniciou uma revolução antropológica e civilizacional, a imagem poética tem a vantagem de não estar presa na esfera técnica. Atualmente nos encontramos em uma inevitável encruzilhada, na qual a máquina é tratada como um anátema a uma situação de desumanidade e de ruptura com qualquer tipo de projeto ético. A reação à idade maquínica de maneira a recomeçar novamente, não apenas a partir de uma territorialidade primitiva ou de um modo de pensamento “animista”, somente torna-se posível se consideramos que a interface maquínica não existe enquanto eliminação da alma (anima), humana ou animal, mas sob uma ordem de protossubjetividade que permite que se imprima uma função de coerência na máquina, tanto em relação a ela mesma quanto em uma relação de alteridade com o ser humano (GUATTARI, 1993). Se nosso horizonte ético-político não é outro que a crítica da sociedade do espetáculo, do todo comunicativo e consumista (CANY, 2012) pode-se, então, detectar um viés ético e político na representação do espaço-cinema e das artes visuais, em que as imagens neossequenciais assumem tanto a forma de imagens estáticas como a de imagens em movimento (desenhos, fotografias, stills de filmes, pinturas de pop arte, hiperrealismo de um lado, e imagens em movimento e televisão de outro). A questão aqui é: “há tantos estatutos de imagem quanto proliferam as imagens no mercado?” Daí a dificuldade do discurso crítico se basear apenas em obras-primas da arte, com seus valores universais que podem representar uma espécie de evolucionismo pictórico (SCHNEITER, 1981, p. 3). Arquitetura incomensurável e neoecletismo pós-moderno A arquitetura moderna de Oscar Niemeyer incorpora posturas barrocas ao funcionalismo de Le Corbusier. A presença de uma corrente de influência barroca lusobrasileira na obra de Niemeyer é caracterizada pelo uso de elementos de linhas curvas e de forma livre (UNDERWOOD, 1992), tal como ocorre com a colunata do Palácio da Alvorada (1956-1958), em Brasília. Estas colunas foram inspiradas em redes estendidas, ou em velas de barcos, e se tornaram ícones do poder político federal, tendo seus elementos construtivos caído no gosto popular e sido copiados em fôrmas de gesso, dispostos maciçamente como decoração nas fachadas das casas das classes trabalhadoras em todo o país. 24


Outros elementos absorvidos das obras estéticas e funcionais de Le Corbusier por Niemeyer foram o telhado plano e o telhado “borboleta” (teto em “v”, com uma calha central, onde a água da chuva é drenada), derivadas da estética das máquinas-de-morar modernistas (GUIMARAENS & CAVALCANTI, 2006). O pós-modernismo foi definido como uma continuidade / ruptura com a modernidade (Jameson, 2004). Baudelaire (2010) fala da transitoriedade do mundo moderno com foco no papel de espectador, enquanto Marshall Berman (1986) define o ser moderno como pertencendo a um ambiente de aventura, poder, crescimento, alegria, autotransformação e transformação das coisas ao redor, mas que ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos e tudo o que somos. O arquiteto pós-moderno voltou a viver um novo ecletismo típico do século XIX, com as correntes de retorno ao historicismo que revivem o passado e olham para trás para zombar da alta tecnologia. Este é o esteticismo extremo da desconstrução como tentativa de dar autonomia ao repertório moderno, com a desmaterialização da arquitetura formal. Tal neoecletismo pode ser um prenúncio de um novo discurso que inclui a arquitetura em toda a sua complexidade, liberando seu apego estético e representando, então, outra grande narrativa, como aquela do movimento moderno. Constituiria então o moderno – e, portanto, também o pós-moderno –, uma ruptura com todos os elementos estéticos acima apontados? A consciência contemporânea pode se juntar à grande aventura da nova tradição moderna, apagando as barreiras entre os últimos motivos estéticos e não estéticos. A questão aqui é se a produção artística pode voltar sua transmissão para uma atividade estética desinteressada, ao contrário da vanguarda modernista inventada pelos surrealistas, a qual acarretou tal distância da arte que acabou conduzindo à deterioração artística e manter a política dos intelectuais. Este retorno às concepções clássicas de beleza representa uma volta à estética modernista, tal como foi definido por Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna (2010:1863). A operação crítica aqui descrita representa, então, a separação entre o novo e o presente, indicando o primeiro verdadeiro momento de modernidade para Baudelaire. O poeta-crítico descreve a arte moderna real que combina a realidade fugaz do momento histórico com certo grau de compromisso com o mundo eterno e imutável de forma, assumindo assim o poder de extrair a transição eterna. Com a delineação desta desconexão entre o presente e o novo, se podem demarcar os estágios de decomposição de um modernismo inautêntico, não comprometido com o moderno clássico, enquanto a modernidade de Baudelaire é uma realização de certa presença do antes dentro do mundo e de um futuro que quer reinstalar o valor desacreditado do progresso burguês na estética. Baudelaire (2010) conceitua o pensamento moderno baseado na imagética ao afirmar que é o pensamento abstrato que se desenvolve filosoficamente. Já a metáfora surrealista indica uma maneira diferente de pensar, contendo um retrovisor, um pensamento e uma visão da metáfora como imagem do pensamento abstrato (CANY, 2012). O encontrado (trouvé) na obra do arquiteto contemporâneo surrealista norte-americano Frank O. Gehry revela um novo método de projeto em arquitetura, inspirado no método crítico-paranoico de Salvador Dalí, que pode trazer à tona aspectos irracionais através de um procedimento técnico e criativo razoável. A maioria das obras de Gehry começa com uma escrita automática dos croquis para realizar esboços rápidos e livres, obtidos através da intuição e modelados em modelos formais. Os conceitos formais e espaciais da arquitetura pós-moderna, inspirados pelo surrealismo, pelo high-tech e pelo desconstrutivismo, ilustram uma correspondência expressiva alegórica ou simbólica, deixando-nos com o sabor de uma espécie de nova natureza dessas formas não específicas de caráter antinatural corbuseanas (de Le Corbusier). Os edifícios projetados com essas premissas conduzem, espacial e esteticamente, a uma espécie de metamorfose das categorias do modelo modernista formal, através da incorporação da dualidade do seu interior e do seu exterior. A forma dessa arquitetura “incomensurável”, incorporada ao sentido formal pelo pro25 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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saico de sua forma incomum, nega os grandes projetos de Le Corbusier sobre a relação expressiva da plástica obtida entre as linhas de paredes interiores e exteriores, abandonando sua rigidez e flexibilidade para suportar novas funções que combinam, esteticamente, as realidades do plano aberto a partir do interior dos edifícios. Tal incomensurabilidade ocorre, por exemplo, na Biblioteca da França, em Paris, projetada pelo arquiteto Rem Koolhaus e pelo OMA-Office for Metropolitan Architecture (JAMESON, in op. cit., p. 201-202). Conclusão: paisagens urbanas de Giogio de Chirico As paisagens urbanas foram desenhadas por obras arquitetônicas que representam o teatro desde os tempos antigos. Vitruvius descreve três cenários correspondentes a cenas de teatro urbano: o trágico, o cômico e o satírico. Estes ambientes são modelos paradigmáticos da Renascença, nos quais dramas foram organizados diariamente em áreas urbanas e rurais. Os espaços urbanos projetados por Alberti estabelecem ligações com um teatro imaginário, em que foram realizadas cenas cômicas nas ruas, em curvas sinuosas, enquanto as cenas trágicas foram feitas em cidades nobres de plano normal, contando com a limpeza de ruas pavimentadas com fachadas de altura idêntica e constante (SCHULZ, 2008, p. 79-81). O teatro-enunciação de Beckett e o teatro-absoluto de Artaud, nos quais a história se torna teatro e o mito se torna história (GUATTARI, 2012, p. 183), falam sobre uma nova territorialidade enquanto código de produção final da territorialidade e da vontade de poder, possibilitada pela produção de sinais de efeito de reincidência no sentido linearizado, em que o signo linguístico recuperou o inapropriado. O audiovisual é, assim, a normalização e a consumação do fantasmático. Ao contrário da fantasmática dos meios de comunicação audiovisuais, a pintura metafísica (1909-1919) de Giorgio de Chirico é contemporânea à pintura pura de Paul Klee, pintor-músico que explora os limites da metáfora musical para finalmente recusá-la. De Chirico afirma que a crítica antropológica do estilo musical de pensar é o que desenvolve o seu próprio modelo de visualidade. A pintura metafísica constrói imagens de um ritmo além do visível e uma lógica de vida universal, incorporando um retorno ao classicismo mesclado ao modernismo surrealista. De Chirico lança um novo pensamento crítico ao modelo antropológico visual da modernidade, com a busca de um modelo semiótico no qual ocorre a solução simbólica para o seu imaginário poético e metafísico. Constrói ele esta imagética pela negação da unidade do tempo, superando a velha antinomia da pintura moderna com a pintura de cidades metafísicas da Itália e das arcadas reminiscentes da arquitetura clássica (CHALUMEAU, 2009). Pela revelação da pintura metafísica, de Chirico descobre a essência da arte pura inspirada pelo uso da faculdade transcendental da sensibilidade, onde o exercício do puro poder de sentir é desfrutado a partir desse privilégio da fruição estética, como descreveu Kant (BOURDIEU, 2007, p. 89-90). Tal fruição estética resulta de dois elementos: o primeiro refere-se à autonomia do campo artístico, livre de restrições econômicas e políticas, a qual é guiada pelos padrões da arte pela arte; e o segundo trata da ocupação do espectador no mundo social, no qual as posições em que o fornecimento de disposição pura é capaz de dar livre curso ao puro prazer (ou a estética) são estabelecidas principalmente pela família e pela educação escolástica. Então, para transpor sua percepção metafísica na composição de um espaço visual, o pintor vai tentar combinar o classicismo da arquitetura antiga com a audaciosa modernidade futurista dos primeiros anos do século XX. A ideia da obra de arte como enigma impossível de ser resolvido está presente no projeto de arte metafísica de Chirico. A inquietante luz da noite é propícia para a revelação das paisagens de aspecto metafísico que de repente as coisas podem assumir enquanto os personagens humanos assumem a forma de modelos e de assemblagens cubistas (CHALUMEAU, in op. cit.). Se a vanguarda modernista pode ser representada pela 26


inspiração surrealista e metafísica do pintor de Chirico, que combina elementos clássicos e modernos para criar uma nova estética, pode-se considerar aqui o caso da universidade no seio de um diálogo transcultural. O Rio de Janeiro denomina de escolas de samba suas instituições de carnaval. Assim, será possível que as academias de ensino possam aprender algo de novo com as escolas de samba cariocas? Valorizando sua identidade social e trabalhando com novas audiências, a fim de estabelecer uma compreensão madura entre seus participantes e para se renovar esteticamente, as escolas de samba no Brasil expressam a criatividade que parece estar faltando na educação universitária tradicional (PINTO & SILVA, 1997). O Parangolé (composto por vestidos, tops, banners ou bandeiras) foi criado por Hélio Oiticica para ser usado pelos dançarinos da favela da Mangueira. Constitui, portanto, uma forma de antiarte que visa iniciar uma nova visão de como os seres humanos e a arte podem ser integrados, causando a morte do espectador e o nascimento do participante. No Parangolé, o samba é o motor e a ação da necessidade ontológica, no qual a roupagem está em contraste com o relógio que fala do tempo da máquina e da produção. Como, então, a universidade pode escapar da postura aristocrática de um conhecimento hegemônico e acadêmico e desfrutar de um dialogismo transcultural entre os diferentes níveis socioculturais de funcionários e alunos, e entre diferentes grupos étnicos e de gênero? Em resposta a esta questão, Cany (2012) sugere que se: “Pense a poesia como parte de uma antropologia filosófica e um propósito ético-político”. Se o pensamento poético pode nos permitir superar uma caricatura universal menos ocidentalizada que estrutura o conhecimento escolástico de modelo europeu, a universidade deve estar aberta para a alteridade, abandonando uma ótica civilizacional (Nietzsche) em favor de uma ótica transcultural (Artaud). Assim, a resposta para a universidade, bem como para a arte, é o pensamento visual, através da etnopoesia, enquanto universal antropológico.

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Educação e cultura na formação da cidadania

Carlos Alberto Ribeiro de Xavier Consultor da UNESCO para educação e cultura, assessor de Educação Integral da SEB/MEC

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relação entre educação e cultura é estreita nas ações de formação da cidadania. A partir destas é possível integrar as manifestações intelectuais e artísticas nas práticas pedagógicas de ensino formal e informal. Neste contexto, a correção da fratura entre as formulações e o planejamento das políticas relacionadas às duas áreas deve ser o foco de ações articuladoras das diversas instâncias e esferas da administração pública. O autor pretende oferecer subsídios para o entendimento das condições atuais para o processo de planejamento de ações culturais relacionadas aos programas voltados para a Educação Básica e para a formação de professores nas universidades. Pretende delinear também como pode Brasília ser considerada uma cidade educadora, nos termos da declaração da UNESCO; procura mostrar como Lucio Costa já pensava uma cidade capaz de abrigar a capital da República e ao mesmo tempo educar a nova população composta de cidadãos vindos de todas as regiões do país e do exterior; e ainda inspirar a ocupação ordenada e o desenvolvimento do Norte e do Centro oeste do Brasil, até então com baixa densidade populacional. Antecedentes Para o melhor entendimento de Brasília como cidade educadora, podemos imaginar três itinerários educativos destinados à orientação de turistas, professores e alunos ou outros visitantes. Os programas Mais Educação e de Educação Integral do Ministério da Educação já incluem três desses itinerários educativos para os professores que participam de Seminários que vêm se realizando na Capital Federal, em Brasília, com a colaboração do GDF, da UnB e do Ministério da Cultura, visando à compreensão do Plano de Lúcio Costa, do projeto educacional de Anísio Teixeira e da nova Universidade imaginada por Darcy Ribeiro. São eles: a) Anísio Teixeira e os caminhos da Escola Classe/Escola Parque; b) Lucio Costa: a escala monumental e a escala gregária do Plano Piloto; c) Darcy Ribeiro e o inovador projeto da Universidade de Brasília.

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Antes de falar mais detidamente de Brasília, é preciso, porém, alinhar algumas considerações sobre a educação no Brasil. Nos três primeiros séculos da colonização


não há muito que dizer sobre escola pública, uma vez que tivemos apenas as escolas dos jesuítas destinadas à catequese dos índios e à educação de poucos, especialmente a preparação para a vida religiosa. Claro que é muito importante a pedagogia dos jesuítas, grandes figuras a destacar, especialmente Padre Manoel da Nóbrega, Padre José de Anchieta e Padre Antônio Vieira. Mas não existia a escola pública como já era conhecida em outros países. No período do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, inaugurado com a chegada de D. Maria I, D. João VI, toda a família real e parte da corte portuguesa, que aportaram no Brasil em 1808, começaram as mudanças e as fundações do que o Brasil passaria a ser. No campo educacional, alguma coisa pode ser anotada. Em uma parada na Bahia em fevereiro de 1808, D. João VI criou uma Escola de Medicina, hoje incorporada à UFBA; no Rio criou uma Escola de Cirurgia. Mais tarde, recebeu a Missão Artística Francesa que trouxe nomes importantes no campo das artes; em 1827 foram criadas as faculdades de direito de Olinda, em Pernambuco, e a do Largo de S.Francisco, em São Paulo. Em 1834, surgiu o pioneiro Atheneu Norte-Rio-grandense, em Natal; a 2 de dezembro de 1837, no período da Regência, portanto, em homenagem ao Imperador, na data de seu aniversário surgiu o Colégio Pedro II, permanente referência do ensino. Essas são as principais escolas surgidas no Brasil no período, mas ainda não se podia falar de escola pública em âmbito nacional. Durante o Segundo Reinado, a educação flutuava entre o modelo tradicional e secular do ensino católico e o ensino leigo sob a influência do ecletismo, do liberalismo e, finalmente, do positivismo. Perdeu-se muito tempo que foi mais aplicado na experimentação do que no estabelecimento de um sistema público de ensino. A República surgiu em meio às ideias positivistas e eram muitas as promessas sobre a educação, mas até 1930 este assunto permaneceu no Ministério da Justiça e Negócios Interiores, em um setor denominado Departamento de Instrução Pública, Correios e Telégrafos. Esta situação, por si só, explica como a educação foi relegada durante a República Velha, na qual as oligarquias do acordo café com leite, entre Minas Gerais e São Paulo, se revezavam no poder. Ao povo se oferecia apenas a instrução pública das primeiras letras. Precisamos viver uma revolução, a de 1930, para que o Governo Provisório de Getúlio Vargas pudesse criar nos primeiros dias de sua instalação, finalmente, o Ministério da Educação e da Saúde Pública. Note-se, temos um ministério a cuidar da educação e da saúde pública dos brasileiros há apenas 82 anos. Vários países latino-americanos estavam mais avançados e nestes já funcionavam universidades. O Brasil só veio a criá-las em 1934, em São Paulo, e em 1935, no Rio de Janeiro. Estas primeira universidades reuniram as faculdades preexistentes. Nos primeiros 30 anos de funcionamento do ministério, no Rio de Janeiro, é digno de nota o período de 12 anos de gestão de Gustavo Capanema, aquele que mais tempo permaneceu ministro. Como seu legado deixou um sistema nacional centralizado de ensino de boa qualidade, um plano de vanguarda e liberal para a área da Cultura e, como símbolo de uma época, o Palácio que construiu para a sede do MEC, um marco da arquitetura modernista no mundo. Na verdade, Capanema fez existir a UNESCO antes mesmo de esse organismo ser criado no pós-guerra, pois comandava os programas nacionais da saúde, da educação, da ciência e da cultura em um mesmo ministério, já em 1937. Brasília surge em 1960 como cidade educadora, como a renovação da esperança para os brasileiros, especialmente para a educação e a cultura. A cidade foi construída a partir do Plano Piloto de Lúcio Costa, tombada em nível nacional pelo IPHAN e reconhecida mundialmente pela UNESCO como patrimônio da humanidade. Presidente do INEP, em 1957, Anísio Teixeira convidou Darcy Ribeiro para promover pesquisas sociológicas na educação e criou, a pedido do Ministro Clóvis Salgado, “o planejamento do sistema escola pública de Brasília”, inaugurado em 1960. Era uma evolução do sistema baiano, criado por ele, das Escolas Classe/Escolas Parque. Anisio Teixeira foi influenciado pela nova maneira de morar, das superqua31 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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dras de Lúcio Costa, pela arquitetura de Oscar Niemeyer e pelo paisagismo de Burle Marx, que organizaram a escala residencial e bucólica no Plano de Lúcio, para conceber o sistema educacional, a vida dentro da cidade e as escolas nas superquadras. Esse sistema escolar fez com que a população das unidades de vizinhança (o conjunto de cada quatro superquadras) tivesse à sua disposição um Jardim de Infância e uma Escola Classe em cada quadra e uma Escola Parque em cada unidade do conjunto. Em um mesmo espaço livre, para o ir e vir a pé, das crianças, dos pais e dos professores, que podiam circular à vontade entre as unidades escolares, a Biblioteca Demonstrativa, o Posto de Saúde, o clube de vizinhança, os espaços de lazer e recreação das quadras, e ainda, a Igrejinha de Fátima, também a primeira construída. Esse modelo criado para uma população de cerca de até 20.000 habitantes foi implantado como modelo do Plano Piloto, a ser repetido em cada unidade de vizinhança, o que não ocorreu. Darcy Ribeiro, em um texto que publicou como segunda carta de Pero Vaz de Caminha, em 21 de abril de 1960, disse o seguinte sobre o projeto de Anísio Teixeira: Os burocratas infantes, com menos de sete anos, terão dentro das quadras arremedos de escolinhas para brincar com o tio Augusto Rodrigues. Os mais crescidinhos, a um passo da casa, quatro horas estudarão e mais quatro folgarão, atravessada uma alameda, numa escola-oficina-gandaia inventada por Anísio Teixeira para fabricar gente que melhor suporte e sustente o progresso do Brasil. Aos mais taludos, capazes de atravessar a rua dos loucos, prometem uma escola-escada, pela qual cada um há de subir segundo o peso de seu talento. “Devo dizer, Senhor, que a meu pesar, tudo isto, como o mais, são augúrios de homens de muita fé”, acrescenta Darcy Ribeiro. Para os itinerários educativos de Brasília, inicialmente descrevemos os caminhos da Escola Classe/ Escola Parque de Anísio Teixeira dentro da escala residencial e bucólica; depois, voltamos a comentar a proposta de itinerários educativos de Brasília, desta vez para apresentar outras duas dimensões do Plano Piloto de Lucio Costa: a escala gregária e a escala monumental. Apresentar e compreender o Plano Piloto da capital federal é uma necessidade não só para os professores, alunos, pais e servidores da educação de Brasília, como também um elemento indispensável para todos os brasileiros. Brasília entrou para o imaginário do brasileiro nos anos 1950 e não saiu mais. Portanto, é preciso relembrar Lucio Costa. Relembrar Lucio Costa é também deixar falar duas grandes personalidades que embarcaram no trem da utopia do projeto de JK-Lucio Costa: um entrou em 1957, junto, portanto, com a execução do Plano Piloto; e um outro entrou em 1960, logo depois de inaugurada a cidade. O primeiro foi Anísio Teixeira, convocado em 1957 pelo ministro Clóvis Salgado para desenhar o Plano de Educação e Cultura para a nova capital. Não demorou muito, como presidente do INEP, Anísio pode rever o seu próprio projeto de Salvador e orientar o experimento da Escola Julia Kubitschek, cujos professores foram preparados na Escola Classe-Escola Parque da Bahia para começarem o trabalho em Brasília. A Escola Júlia Kubitschek foi o lugar onde cresceu o embrião da Escola Classe-Escola Parque de Brasília na superquadra 308, o lugar onde se aproveitou o desenho da cidade para rever os conceitos e colocar em prática o Plano Humano de Brasília, projeto utópico de uma sociedade nova, universalista que disporia de uma escola pública de qualidade e de uma universidade que produzisse o novo homem brasileiro. De Anísio Teixeira lembro duas reflexões sobre a educação: 1. O que chamamos de educação é o esforço para compreender o presente. Sem compreendê-lo não podemos viver. Há presentes incendiados de fermento intelectual e presentes inertes. É que nos primeiros 32


o passado está vivo no presente e nos entreabre o futuro. Nos outros, depreciamos o presente e quedamos inertes na adoração do passado. Toda verdadeira crise de compreensão é uma crise de compreensão do presente, neste sentido de ponto de interseção entre o passado vivo e o futuro que vai nascer. Num desses momentos é que nos encontramos. 2. De mim eu só reconheço um crédito aos que me precederam: Eles sofreram mais do que nós e, por isso, tudo lhes deve ser perdoado. O segundo personagem foi Agostinho da Silva, português exilado desde os anos 1950, que já tinha produzido intenso movimento intelectual no Rio, São Paulo, Paraíba e Santa Catarina. Estava naquela altura dirigindo, na Universidade Federal da Bahia, o Centro de Estudos Afroorientais, fundado por ele. Veio ajudar Darcy e Anísio na organização da Universidade de Brasília. Para demonstrar a perfeita sintonia de Agostinho com a utopia de Lucio Costa em Brasília, retiro algumas frases de seu livro Reflexões, Aforismos e Paradoxos: 1. Consiste o progresso no regresso às origens: com a plena memória da viagem. 2. Não há liberdade minha se os outros a não têm. 3. A nossa mente olha o vazio e o faz Espaço. 4. Passo a vida fabricando o real. Muito antes da consagração do conceito de cidade patrimonial modernista pela UNESCO, Brasília já nascia uma cidade educadora. A Escola Parque na superquadra 308 sul em Brasília O conjunto representado pelas superquadras 107/307, 108/308, 109/309, 110/310 (tanto os blocos residenciais quanto os destinados ao comércio local, que Lucio chamou de “varejo de bairro” nas entrequadras) forma uma unidade de vizinhança e cada uma delas conta com um Clube de Vizinhança, neste caso, o de nº. 1 de Brasília. Completa-se o conjunto com o Posto de Saúde, a Biblioteca Demonstrativa de Brasília e a Igrejinha de Fátima. Agregou-se, recentemente, ao conjunto, a Estação do Metrô da 108 Sul. Concebido o plano arquitetônico e urbanístico que poderíamos chamar de hardware, faltava criar o plano humano para Brasília. Como se organizaria o sistema educacional para formar o novo homem brasileiro? Qual o programa, o software? O encarregado de tal plano foi Anísio Teixeira, que coordenou uma comissão para a criação da UnB e para a concepção do sistema educacional na nova capital, da educação básica à universidade. Ele era também o presidente do INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, naquela altura. A comissão que coordenou contava com Darcy Ribeiro, Cyro dos Anjos, Augusto Rodrigues e outras personalidades entre o que havia de melhor entre os pensadores da educação e da cultura no Brasil. Vivia-se um ambiente de liberdade política e desenvolvimento econômico acelerado. O projeto de Escola Classe/Escola Parque de Brasília é uma evolução daquela que Anísio criara em Salvador, nos anos 1940, quando ele foi o seu secretário de Educação da Bahia. Anísio levou professores da pioneira Escola Júlia Kubistcheck, que funcionava na cidade até então, para conhecer a Escola Classe Escola Parque de Salvador, preparando-os para trabalharem na escola do futuro em Brasília. O que podemos ver deste modelo: cada quadra conta com uma Escola Classe, Jardim de Infância e vários espaços de lazer. Os alunos de toda a unidade vizinhança (conjunto de quatro superquadras) frequentam a Escola Classe mais próxima e, caminhando, vão à Escola Parque da 308 em horários alternados. Implantada a escola padrão, era natural que esta se transformasse no principal espaço cultural de Brasília, onde o teatro da Escola Parque e o Cine Cultura tornaram-se por mais de 20 anos, o principal polo cultural Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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da jovem capital. Aí foram montadas as grandes peças de teatro, musicais e outros espetáculos que passaram pela cidade, e aí, também, se realizaram as grandes reuniões e manifestações políticas, como quando a cidade recebeu em reunião de desagravo, o sindicalista Lula que saíra da prisão em 1981; Lele veio de São Paulo acompanhado do jornalista Audáulio Dantas, que também havia sido preso, sendo recebidos a noite, no auditório da Escola Parque, por um grande público. É desse modelo que derivam os CIEP – Centros Integrados de Educação Pública (Brizola/Darcy Ribeiro); os CIAC – Centros Integrados de Atenção à Criança (Collor); os CAIC – Centros de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente (Itamar/Hingel); os CEUs – Centros de Educação Unificada (Marta Suplicy) e, desde abril de 2007, o PDE –Plano de Desenvolvimento da Educação, com o programa Mais Educação, que aliado ao Mais Cultura, Saúde na Escola e vários outros projetos afins, tem por objetivo a universalização gradativa da educação integral. Antecedentes do Programa Mais Educação e Mais Cultura Em agosto de 2006, o grande artista e intelectual brasileiro Augusto Boal compareceu a uma reunião com o ministro da Cultura, Gilberto Gil, e do ministro da Educação, Fernando Haddad, realizada no Rio de Janeiro no Palácio Capanema, quando anunciaram a assinatura de mais um Protocolo de Intenções para cooperação entre os dois ministérios, visando ao desenvolvimento de programas conjuntos de arte e cultura nas escolas. Desde a criação do Ministério da Cultura, em 1985, assistimos a vários eventos semelhantes em que a retórica tentava disfarçar a realidade do ensino público no Brasil, marcada pelo empobrecimento do calendário escolar, desde os anos 1970, com o abandono crescente e cotidiano da disciplina obrigatória de Educação Artística. Na reunião mencionada, Augusto Boal pediu para falar em meio ao tumulto de uma solenidade que enchia de público o Salão Portinari, do majestoso e tradicional edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde Pública, inaugurado nos anos 1940. A plateia do artista, desta vez, era composta de artistas, políticos, funcionários públicos, professores e outros trabalhadores da educação. Anos atrás, existia o MEC, Ministério da Educação e Cultura, que sucedeu ao mais antigo Ministério da Saúde, Cultura e Educação, onde só faltavam Caça e Pesca, Esportes e Turismo, tudo no mesmo saco. Juntos, amalgamados, Educação e Cultura, ao invés de provocarem sinergia, eram comprimidos numa coisa só. Veio a divisão multiplicadora, criaram-se dois Ministérios ao invés de um, mas cada qual trabalhou pelo seu lado, sem olhar ao lado. Hoje, nossos dois Ministros arquitetam um projeto unificador respeitando a diversidade de cada um, e nós nos vemos diante de uma nova concepção da Cultura e da Educação. Por que é nova, e por que é importante essa interatividade? Educar vem do latim Educare, que significa conduzir. Educar significa a transmissão de conhecimentos inquestionáveis ou inquestionados. Significa ensinar o que existe, e que é dado como certo e necessário. Pedagogia vem do grego paidagógós, que era o escravo que caminhava com o aluno e o ajudava a encontrar a escola e o saber. Educação significa a transmissão do saber existente; Pedagogia, a busca de novos saberes. Essas duas palavras não podem ser dissociadas, porque não podemos aceitar um saber paralítico, imóvel, nem descobriremos jamais novos saberes sem conhecer os antigos. Educação e Pedagogia são duas irmãs que são, ao mesmo tempo, mães e filhas da Cultura. Filhas, porque a Cultura existe e se manifesta através do saber que ensina, e do saber que busca. Mães, porque através delas nasce uma nova Cultura, sempre em trânsito. 34


Trânsito para que futuro? Surgem então os conceitos de Ética e Moral. Esta vem do latim mores, que significa costumes. Qualquer costume, mesmo os mais bárbaros e odiosos, podem fazer parte da Moral de um lugar e de uma época. A escravidão já foi Moral no Brasil, e os escravos que lutavam por sua liberdade eram chamados de fujões e rebeldes – hoje, sabemos que foram heróis e eram sábios. Nenhuma Moral social deve ser aceita só porque faz parte dos costumes de um infeliz momento. Não podemos aceitar o latifúndio e a corrupção, nem a fartura vizinha da fome – males da pátria contra os quais temos que lutar. Moral refere-se ao passado que sobrevive no presente. Ética, ao presente que se projeta no futuro: não queremos o Brasil como foi nem como é, mas... como queremos que seja? Qual a ética que nos guia e justifica nossas vidas? Queremos um Brasil em que todos os brasileiros sejam plenos cidadãos, e não se pode ser pleno sem os fundamentos da Educação basilar, sem as audácias da Cultura livre, e sem o diálogo entre as duas. A fala de Augusto Boal vinha ao encontro do que se pretendia com o acordo de cooperação que se anunciava naquele dia, conforme consta da portaria que criou uma Comissão Interministerial encarregada de tratar da indispensável colaboração entre as duas pastas, para o desenvolvimento de programas de arte e cultura nas escolas. Passaram-se dias e meses, sem se ver, pelo menos, reunida tal comissão uma única vez: a preocupação do MinC com sua própria clientela de artistas, intelectuais, escritores, cineastas, animadores culturais, interessados no financiamento de seus próprios projetos e do MEC em ampliar o tempo e os espaços educativos nas escolas, bem como discutir com a sociedade seus novos programas, não permitiu que a cooperação se concretizasse em ações efetivas, apesar das boas e sinceras intenções de ambos os lados. No MinC, surgiram diversas ações, como a implementação dos Pontos de Cultura e outras atividades que buscavam ampliar a cidadania cultural e, no MEC, ampliaram-se os horizontes com o desenvolvimento do programa Mais Educação. Entretanto, ainda não se materializavam as atividades educativas nas escolas, um pouco porque estas não abriam seus portões para a entrada do novo; em parte, também, porque os animadores culturais não estavam acostumados a saírem de seus espaços ou mesmo não estavam preparados para atividades educativas. Entretanto, o principal entrave para a ampliação dos espaços educativos continuava a ser o tempo de permanência dos estudantes nas escolas. Com um turno apenas, de três ou quatro horas diárias, não é mesmo possível exigir muito mais do que era feito. Foi necessário esperar outro momento, o do lançamento do PDE-Plano de Desenvolvimento da Educação para se conseguir avançar. O representante japonês que compareceu à Rio + 20 foi apresentado como o ministro da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia, Meio Ambiente e Esportes, integração que já havia feito o ministro Gustavo Capanema nos seus tempos. Ele praticamente inventou a UNESCO antes de a UNESCO existir, juntando em uma só pasta a Educação, a Ciência e a Cultura, com anos de antecedência; sem nos esquecermos de que o seu ministério incluía também a Saúde. Partiu de um diagnóstico e indicava equações para os grandes, e ainda atuais, problemas nacionais, prioridades nacionais e solução nacional: a Educação e a Saúde Pública. Mais tarde, em um momento feliz: Brasília. Darcy Ribeiro, por um lado, e Anísio Teixeira, por outro, deram ao Presidente JK e seus utópicos Oscar Niemeyer, Lucio Costa e Roberto Burle Marx o que poderíamos chamar de plano humano. Era um plano ambicioso para a educação básica e superior; estavam a inventar o Brasil, como eles mesmos disseram. Brasília: nasce uma cidade educadora As afinidades eletivas de Lucio Costa e de Juscelino Kubitscheck quanto a Brasília ficam evidentes, pois o reconhecido arquiteto urbanista não queria apenas apresentar um projeto para a nova capital, queria 35 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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mesmo era ajudar Juscelino a realizar seu sonho e sua promessa, o projeto utópico de uma nova civilização nascida da Capital da Esperança, a NOVACAP, que influenciou a música, o cinema e a cultura nacional, pois também estava na cabeça de todos os brasileiros. Maria Elisa Costa afirma que seu pai, Lucio, não apresentou o projeto no concurso da nova capital para provar alguma teoria ou demonstrar algum novo aspecto da arquitetura moderna, que ele também inventou no Brasil. Não precisava disto. Ele queria muito mais do que apresentar um projeto: Lúcio era sócio da utopia JK. Há algum tempo, em um seminário sobre o patrimônio histórico, participei de um debate sobre as cidades históricas mineiras, cujas construções estão em permanente ameaça em tempo de chuvas. Ali reforcei o argumento de que todas as cidades são históricas, pois todas têm a própria história para contar. Assim também são as cidades educadoras, qualquer cidade pode tornar-se educadora. Em toda e qualquer cidade, pequena ou média, ou mesmo nos bairros ou periferias das grandes cidades, e mesmo das megalópoles que já temos no Brasil, poderemos reconhecer o território em que se insere a escola ou as escolas de determinada localidade, de forma a aproveitar ao máximo todas as possibilidades educativas sem perda de qualidade. Podemos sempre agir localmente, sem deixar de ter uma consciência global dos problemas da modernidade. As crises da modernidade nos atingem a todos, sejam as questões ecológicas, climáticas, econômicas, sejam as novas problemáticas de mudança da escola e do processo de aprendizagem e ensino. Para mudar a escola, temos de mudar também a maneira como vemos a cidade, a família, a comunidade e a organização social onde aquela se insere. No caso de Brasília, temos um caso exemplar, pois essa é a verdadeira intenção de se chamar o plano urbanístico de Plano Piloto; de se chamar a concepção da primeira superquadra como Superquadra Modelo e de se considerar modelar o Planejamento do Sistema Escolar Público de Brasília escrito por Anísio Teixeira, em 1957, e implantado em 1960, ao mesmo tempo que se concluía a construção das primeiras unidades residenciais do Plano Piloto de Lúcio Costa. Note-se que, ao mesmo tempo que Oscar Niemeyer absorvia em seus projetos arquitetônicos as ideias de Lucio Costa, também Burle Marx e artistas como Volpi e Athos Bulcão colaboravam com o paisagismo e as obras de arte para desenharem as escalas residenciais e bucólicas do mesmo Plano Piloto. Estabelecidos esses parâmetros, Anísio Teixeira tratou de aproveitar a genial concepção dos arquitetos para imaginar o sistema educacional, tomando por base a unidade de vizinhança, ou seja, o conjunto de cada quatro superquadras.

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Parte I Práticas transculturais

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Partilha da verdade universitária no campus da Praia Vermelha|UFF: a construção da oca xinguana como protótipo bioclimático

Dinah Papi Guimaraens Arquiteta e Professora da Universidade Federal Fluminense PPGAU-UFF Marina Vasconcellos de Carvalho Designer e Mestre em Arquitetura e Urbanismo PPGAU-UFF

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aseando-se no conceito de filosofia transcultural da UNESCO sugerido pelo filósofo Jacques Poulain, busca-se aqui discutir formas dialógicas de comunicação informal entre culturas indígenas e o conhecimento formal universitário acadêmico. Pretende-se, para isso, abandonar a imagem antropológica à qual a pragmática contemporânea nos submete — a imagem do homem que quer controlar a si mesmo da mesma forma como quer controlar o mundo — para que possamos dar ensejo, finalmente, ao diálogo transcultural em que vivemos. Ao se colocar em prática, esta comunicação informal permitiria a concepção da partilha do julgamento de verdade enquanto lugar de construção intelectual de culturas, na contramão das limitações da interculturalidade ou da multiculturalidade, bem como a realização de um exercício reflexivo de autoavaliação crítica a partir da investigação transcultural. O projeto educativo sobre arquitetura bioclimática do Espaço Paisagem e Lugar/Museu Vivo estabeleceu práticas dialógicas projetuais e construtivas entre índios da Aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, indígenas Aweti, Yawalapiti e Kamayurá do Alto Xingu, Mato Grosso, professores e estudantes universitários, incluindo um protótipo de arquitetura tradicional implantado, em novembro/dezembro de 2014, na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói. Desta forma, materializou-se no campus da Praia Vermelha, através de um Canteiro Experimental, um protótipo de arquitetura indígena (oca) com estrutura de madeira e bambu; embira, fibras extraídas de casca de árvores utilizadas nas amarrações e sapê como cobertura, para experimentação de saberes tradicionais no Museu Vivo implantado. Contando com apresentações rituais em uma grade de eventos que procurava contemplar as atividades cotidianas da vida indígena, explicitou-se ali como era a vida do índio no seu dia a dia, seus costumes e sua visão de mundo. O objetivo maior do Museu Vivo é fortalecer o patrimônio cultural imaterial indígena através da apresentação de danças, rituais, atividades artístico-artesanais e da cura pelas ervas medicinais, inserindo-se assim, igualmente, no Livro de Registro das Celebrações proposto pelo Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), do Ministério da Cultura (MinC). O caráter inovador do atual projeto reside na atualização de uma visão de dentro, ou seja, dos próprios índios sobre a visão civilizada ocidental sobre eles. Ao 38


Painel Transcultural I pintado por Duda Penteado no seminário Museus e Transculturalidade. MAC-Niterói, RJ, 2013.

Oca Xinguana sendo construída no terreno da UFF, na Praia Vermelha, Niterói, RJ, 2014.

Oca Xinguana e Painel Transcultural II realizado por Duda Penteado no Fórum Arte-Ação Transcultural. MAC-Niterói/ RJ, 2014.

possibilitar uma vivência das formas de construir e habitar dos indígenas brasileiros, assim como ao divulgar e comercializar objetos etnográficos e turísticos de temática nativa, este projeto pretende enriquecer a troca de saberes entre as culturas indígenas tradicionais e as culturas urbanas abrangentes. Ao lado de apresentações rituais de grupos indígenas tradicionais, no Museu Vivo, os índios urbanos residentes no Grande Rio ali realizam um processo de feedback crítico em relação à linguagem complexa da sociedade nacional que, sem nunca haver avistado um único indígena em sua vida cotidiana na corte carioca durante a época colonial, conseguiu reproduzir na obra Primeira Missa no Brasil, do artista acadêmico Vítor Meirelles, os integrantes das tribos Tupinambá, etnia quase inteiramente dizimada pelos portugueses e cujos sambaquis ocupam atualmente a costa litorânea do estado do Rio de Janeiro. Qual é, então, o papel da universidade ante a mundialização que ameaça irrevogavelmente diluir as diferenças regionais na América Latina? A fim de estabelecer um diálogo interdisciplinar e intercultural ao longo da América Latina, a Universidade Federal Fluminense, com a cooperação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO, encontra-se envolvida em uma proposta inovadora de estética transcultural que já envolve outros países latino-americanos. Tal projeto foi apresentado por Jacques Poulain, titular da cadeira UNESCO de Filosofia da Cultura e das Instituições pela Universidade Paris 8-Saint Denis, durante uma visita à Universidade Federal Fluminense. De acordo com o próprio Poulain, a universidade visa permitir o fortalecimento social da cultura no ser humano, favorecendo uma mente crítica que se atualiza através da filosofia, da literatura, das artes plásticas, da arquitetura, da música, da cultura de comunicação e da história. Desta forma, os eixos teóricos a serem desenvolvidos pelo Museu Vivo envolvem diversas práticas culturais e transculturais no Brasil, na América Latina, no México, na Austrália, no Canadá, na África e nos Estados Unidos da América, levando em conta a valorização do patrimônio imaterial da humanidade e os aparelhos museológicos como espaço de perpetuação da memória de um povo e como instrumento de emancipação e reconhecimento de identidades de países e comunidades. Museu vivo: protótipo de arquitetura bioclimática indígena O Museu Vivo se baseia no conceito de arquitetura bioclimática pesquisado, na Amazônia, por Severiano Mário Porto e outros arquitetos brasileiros, cujo modelo se contrapõe arquitetonicamente, em seu 39 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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regionalismo conceitual, à unificação e massificação da globalização por que passam as práticas da arquitetura contemporânea de lógica projetual digital. Os eixos teóricos desenvolvidos no projeto podem ser assim resumidos: a) O patrimônio imaterial da humanidade e os aparelhos museológicos como espaço de perpetuação da memória de um povo e como instrumento de emancipação e reconhecimento de identidades de países e comunidades, destacando, entre estes, os ofícios de construção de ocas indígenas do período colonial aos dias de hoje; b) A filosofia e a antropologia transcultural como arcabouço intelectual para se fazer um bom diagnóstico da realidade pós-moderna da Cultura e do Estado; c) O conceito do Museu das Origens (1978), de Mário Pedrosa, que enfoca como as culturas vivas representadas por nossas artes indígenas, africanas/afrobrasileiras, populares e de imagens do inconsciente desaguaram na arte moderna/contemporânea, conclamando desta forma os povos do terceiro mundo a assumirem seu papel no palco da contemporaneidade. É dentro da ótica contemporânea da transculturalidade estética que o Museu Vivo pretende desvendar algumas pistas sobre as questões filosóficas que perpassam o presente momento histórico, na visão de Mário Pedrosa: “Em países como os nossos, que não chegam esgotados, ainda que oprimidos e subdesenvolvidos, ao nível da história contemporânea, [...] quando se diz que sua arte é primitiva ou popular vale tanto quanto dizer que é futurista.” Esta arte viva, mencionada por Pedrosa para definir a pujança das culturas indígenas, pode ser simbolizada pela tensão estabelecida entre o apolíneo e o dionisíaco como manifestações da arte e da vida, presentes no pensamento de Friedrich Nietzsche e apresentados em sua primeira obra: O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo (Die Geburt der Tragödie oder Griechentum und Pessimismus) (1871). Vilém Flusser, no livro Ficções Filosóficas, de 1998, apropria-se deste conceito nietzschiano para expressar as características de uma arte viva pós-moderna, caracterizada por duas revoluções arrasadoras: a telemática e a biotécnica. Assim, como falar de inovação tecnológica ao tratar das culturas vivas nativas brasileiras na atualidade? No caso da pertinente discussão sobre uma arquitetura bioclimática ou verde, como buscar então inspiração nas ocas indígenas amazônicas, xinguanas e do litoral do país? Arquitetos como Severiano Mário Porto já estiveram lá, pesquisando as técnicas tradicionais populares na habitação do Amazonas para criar novos protótipos de uma arquitetura inteligente e adequada ao clima brasileiro úmido e tórrido, com amplos telhados de cobertura vegetal que permitem a saída do ar quente e o resfriamento térmico do espaço interior. Será que é possível agora, a partir da revolução telemática discutida por Flusser, criar protótipos inovadores de ocas digitais, nos quais a tecnologia de ponta se alia a técnicas construtivas milenares? Esta é uma das indagações levadas a cabo pelo atual projeto. A implantação de um espaço arquitetônico de canteiro experimental de bioarquitetura indígena e a realização das atividades desenvolvidas em um Museu Vivo possibilitaria à universidade cumprir sua missão de docência, pesquisa e extensão universitárias ao permitir o acesso de agentes indígenas à educação digital e sua inserção em novos postos de trabalho, ocasionando a inclusão social dos índios urbanos, ocupantes da Aldeia Maracanã/RJ e, indiretamente, das aldeias Guarani fluminenses, através de: a) Treinamento em Arquitetura Bioclimática e Tecnologia Digital, procurando estabelecer uma visão crítica dos indígenas quanto aos objetos de cultura material por eles criados; b) Oficinas de técnicas artesanais tradicionais indígenas tais como cerâmica, tecelagem, cestaria, esculturas em madeira; contos, lendas e mitos; dança e música de cunho ritual; c) Aplicação de técnicas inovadoras para a reforma das casas tradicionais indígenas (ocas), com isola40


mento em resina de poliuretano, a ser aplicado no pauapique das empenas externas e no sapê das coberturas; d) Incentivo à alimentação tradicional indígena através da discussão de técnicas de replantio de espécies naturais da Mata Atlântica; e) Interligação das comunidades indígenas que habitam o estado do Rio de Janeiro com outras aldeias indígenas em nível nacional e internacional, através da Internet, com o objetivo de divulgar a memória viva e a tradição oral indígena, fazendo uso do instrumental da economia de troca existente nas culturas comunitárias indígenas. Caberia ao IPHAN/MinC, por sua vez, colaborar com a universidade para o mapeamento, a documentação, o apoio e o fomento ao patrimônio cultural imaterial dos grupos indígenas que se encontram dispersos no meio urbano do Grande Rio, ao possibilitar a estruturação de um espaço acadêmico transcultural como de agregador social e cultural das tradições orais, artesanais, rituais e performativas de nossas culturas nativas. O Museu Vivo, ora proposto, representa um projeto técnico-universitário de pesquisa, documentação e tratamento de informação para a melhoria das condições de continuidade e sustentabilidade dos saberes, modos de fazer, formas de expressão, festas, rituais, celebrações, lugares e espaços que abrigam práticas culturais coletivas vinculadas às tradições das comunidades indígenas. Os benefícios culturais a serem auferidos a partir da implantação do Museu Vivo, através de uma ênfase na pesquisa e na documentação digital dos saberes construtivos indígenas (ocas e malocas), têm como público-alvo, ao lado do público em geral, os corpos docente e discente da UFF e da UNIRIO, incluindo representantes da Universidade Paris 8-Saint Denis envolvidos na pesquisa n. 752/12 CAPES-Cofecub, “A Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana”. Permanentemente, este museu apresentaria produtos interativos digitais e objetos indígenas, como a construção de ocas indígenas, cestaria, artesanato de sementes, cerâmica, esculturas de madeira, performances de música/dança e gastronomia tradicional, colaborando para a melhoria das condições de continuidade e sustentabilidade dos saberes, modos de fazer, formas de expressão, festas, rituais, celebrações, lugares e espaços que abrigam práticas culturais coletivas vinculadas às tradições das comunidades indígenas que habitam o estado do Rio de Janeiro, ou seja, dos cerca de 35.000 índios urbanos que ocupam as habitações de baixa renda do Grande Rio. Museu das origens: alegria de viver, alegria de criar (1978) Indignação e lamentos à parte, o sinistro que destruiu o acervo do Museu de Arte Moderna/MAMRio, em 8 de julho de 1978, trouxe à tona um momento privilegiado na cena cultural para se repensar a função estética e histórica da instituição museológica. Após este incêndio, o crítico de arte Mário Pedrosa, de volta do exílio político em Paris, depois do golpe que depôs Allende, no Chile, em 1977, propôs retomar as origens das artes plásticas nacionais, estimulando a matriz indígena a ocupar seu espaço. A exposição “Alegria de Viver, Alegria de Criar”,1 por ele concebida, representa a possibilidade de renovação artístico-cultural, na medida em que constituía, nas palavras do próprio Pedrosa, uma apresentação de valor histórico, artístico e cultural da primeira nação que aqui ocupou territórios e montou suas aldeias e seus artefatos, simbolizando uma comunidade que organizou a vida homogênea de prodigiosa sabedoria no Mário Pedrosa lançou, como renovação estética em 1975, em Paris, juntamente com os críticos Miguel Rojas e Jacques Lassaigne, o livro Arte na América Latina desde a Descoberta, e também o texto de introdução no catálogo de exposição de Alexander Calder na Galeria Maeght (Mário Pedrosa: “A Bienal, hoje, é uma promoção superada”, em depoimento a Sheila Leiner para o jornal O Estado de São Paulo, 31 de agosto de 1975.) 1

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fazer e no conceber, as quais constituem as primeiras manifestações de arte autêntica saídas do nosso território. Enfatizando a delicadeza da arte plumária indígena esta mostra, com curadoria da artista plástica Lygia Pape que não chegou a se concretizar, deveria ocupar três andares do MAM-Rio. A exposição incluía um manto tupinambá do século XVI, peças arqueológicas da era paleolítica, adornos corporais, filmes e instrumentos musicais e, principalmente, a construção de uma oca xinguana Yawalapiti ocupando o pé direito do museu, com o intuito de demonstrar que “arte não é coisa artificial, mas que vem do homem, qualquer que seja a tecnologia em que viva”.2 Para Pedrosa, a tecnologia prepara, mas não cria nada, nem ontem nem hoje. Segundo este crítico de arte, era raro encontrar exemplos parecidos com o da cultura indígena porque “a altíssima civilização sob a qual vivemos e sofremos, não une, mas dispersa os povos espalhados pelo mundo, tendo a propriedade cada vez mais angustiante de confundir progresso com técnica e criação com produção.”3 A incapacidade de criatividade autêntica surge sob a aparência de progresso e conduz a contradições irredutíveis os povos do terceiro mundo, enquanto os índios demonstram que o trabalho não é uma maldição, mas que, dentro de seu meio, é uma permanente fonte de alegria criativa, ao lado das contribuições de ordem artística e cultural que atestam sua irreprimível força criativa. Lançou ele nos pilotis incendiados do MAM, em 1978, entre a ginga dos passistas e ao som dos tambores da Escola de Samba da Mangueira, o Manifesto do Museu das Origens, em que previu o estabelecimento de cinco módulos: Museu do Índio, Museu de Arte Virgem (Museu do Inconsciente), Museu de Arte Moderna, Museu do Negro, Museu de Artes Populares, como alternativa histórica da crise artística vivida pela vanguarda brasileira.4 Em Discurso aos Tupiniquins ou Nambás, Pedrosa (1975)5 questionava a continuidade da arte moderna buscando responder à pergunta: nas sociedades desenvolvidas em que a arte, como luxo estetizante, sucumbe diante da voracidade do mercado capitalista, as vanguardas dos países da periferia, erroneamente, estariam em busca da ultimíssima novidade, em vez de perceber que a história cultural do terceiro mundo não repetirá o desenvolvimento desses países, podendo, no lugar disso, construir sua própria história, tal como ocorre no campo da arte, da arquitetura contemporânea e mesmo na morfologia das favelas: Na fase histórica em que estamos vivendo, o Terceiro Mundo, para não marginalizar-se de todo, para não derrapar na estrada do contemporâneo, tem que construir seu próprio caminho de desenvolvimento, e forçosamente diferente do que tomou e toma o mundo dos ricos do hemisfério norte. [...] Ele tem que expulsar de seu seio a mentalidade “desenvolvimentista” que é a barra em que se apóia o espírito colonialista [...]. Os pobres da América Latina vivem e convivem com os escombros e os cheiros inconfortáveis do passado. Os ultramodernistas e alguns de seus progressos, de molde comumente americano, estão umbilicalmente vinculados às nossas favelas e barriadas. O paradoxo é que estas são as que não mudam, como não mudam a miséria, a fome, a pobreza, choças e ruínas. Mas é por aí que passa o futuro. Aqui está a opção do Terceiro Mundo: um futuro aberto ou a miséria eterna. [...] Entretanto, abaixo da linha do hemisfério saturado de riqueza, de progresso e de cultura, germina a vida. Uma arte nova começa a brotar. (PEDROSA, 1975 apud Arantes, 1995).

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A arte não é fundamental. A profissão do intelectual é ser revolucionário…Entrevista concedida ao Pasquim, 18 de novembro de 1981.

Mário Pedrosa – Repensando uma estética nacional a partir das cinzas do MAM. Entrevista de Mário Pedrosa a Maria Angélica Carvalho para o jornal O Globo, 14 de julho de 1978. 3

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Pedrosa, M. (1995). O novo MAM terá cinco museus. É a proposta de Pedrosa. In ARANTES (1195, p. 309-312). Mario Pedrosa. Discurso aos Tupiniquins ou Nambás. Redigido em Paris, 1975. In ARANTES (1995).


Espaço Paisagem/Museu Vivo: agir comunicativo e Aldeia Maracanã Ocorre uma analogia entre a construção, no campus da Prais Vermelha da UFF, ao lado do posterior desmonte, em abril de 2015, cinco meses depois, de uma oca xinguana, a qual foi erigida tendo como inspiração a proposta original de Mário Pedrosa para o MAM-Rio, posterior ao seu trágico incêndio. Como protótipo do curso de “Arquitetura Bioclimática Indígena” ministrado na Escola de Arquitetura e Urbanismo, tal evento revela, na forma como ocorreram os fatos, vicissitudes comuns com aquele sinistro que teve lugar no referido museu quanto ao descaso das instituições educativo-culturais relativo ao patrimônio histórico-cultural material e imaterial. Tal evento aconteceu de fato, no mesmo momento em que locais da cidade do Rio de Janeiro e de Niterói se afirmaram como Patrimônio Mundial da Humanidade como paisagem cultural urbana. O Espaço Paisagem/Museu Vivo representava um protótipo de arquitetura bioclimática transcultural baseado em métodos construtivos tradicionais indígenas, com a previsão de um espaço multiuso para abrigar um Laboratório Transcultural da Paisagem e do Lugar, TRANSPALU e, o funcionamento de um observatório da paisagem que permitiria a apreciação científica dos bens naturais e ambientais registrados pela UNESCO, visando à requalificação arquitetônico-paisagística e urbanística da Baía de Guanabara pela equipe técnica da Escola de Arquitetura e Urbanismo/EAU. Contou tal projeto com a inspiração do registro pela UNESCO (2012) do Rio de Janeiro/Niterói, como o primeiro caso de paisagem cultural urbana. Segundo o IPHAN/MINC, os locais da cidade valorizados com o título da UNESCO são alvos de ações integradas voltadas à preservação da paisagem cultural, nas quais se incluem o Forte e o Morro do Leme, o Forte de Copacabana e o Arpoador, o Parque do Flamengo e a Enseada de Botafogo, a entrada da Baía de Guanabara e Fortaleza de Santa Cruz, arredores do campus da Praia Vermelha da UFF. No dia 1º de julho de 2012, a cidade do Rio de Janeiro foi contemplada como o primeiro centro urbano a receber o título da UNESCO de Patrimônio Mundial como paisagem cultural urbana. A candidatura, apresentada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) foi aprovada durante a 36ª Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial que esteve reunida em São Petersburgo, na Rússia, a partir de 25 de junho daquele ano. Um dos principais objetivos do projeto transcultural consiste em revelar como a universidade pode imprimir inovações pedagógicas em educação no contexto multicultural brasileiro. Tal conceito se encaixa nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Indígena, segundo a Lei nº 11.645 de 10/3/2008. De acordo com o decreto nº 3.551 de 04/8/2000 do Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o protótipo do Museu Vivo baseia-se na natureza intangível dos bens que constituem o patrimônio cultural brasileiro (GUIMARAENS, 2003), no que diz respeito às formas de construção de habitações tradicionais indígenas do Xingu, da Amazônia e das comunidades costeiras. A comunicação transcultural do deste projeto se centra, portanto, em um espaço dialógico, o qual se baseia, por sua vez, na avaliação antropológica, arquitetônica e territorial das culturas indígenas envolvidas. Vários grupos étnicos, em todo o país, estão criando museus vivos, revelando, assim, como as populações indígenas estão ansiosas para integrar e participar como cidadãos comuns na sociedade brasileira. O museu pode ser percebido como um espaço fragmentário, em que as representações culturais e políticas das relações estabelecidas entre diferentes grupos e categorias sociais são encenadas. A contribuição da antropologia para o campo da museologia reside na elaboração de autoconhecimento no que diz respeito à articulação cultural a ser aplicada dentro dos museus, decodificando hierarquias sociais existentes em tais instituições. Os 43 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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objetos museológicos constituem parte de um sistema de comunicação através do qual indivíduos, grupos e categorias sociais podem trocar informações relativas ao seu status e suas posições sociais. Estes objetos demarcam posições precisas e identidades, podendo realmente produzir uma forma inovadora através da qual indígenas e outros grupos sociais logram experimentar novos sistemas identitários. O diálogo transcultural deriva, portanto, da capacidade de cada cultura de se propor como aquela forma de vida que todos podem partilhar em um espaço dialógico de amplo alcance. O Museu Vivo deriva, ainda, de uma postura participativa que permite aos índios se tornarem seus membros, seja como curadores, docentes e até mesmo como construtores. Pretende-se, com este projeto, responder às seguintes questões que exploram vínculos entre o patrimônio cultural imaterial indígena, o meio ambiente — inerente a uma arquitetura bioclimática — e à indústria criativa da cultura: 1) Como pode a reconstrução coletiva do passado indígena, no presente, representar um movimento para se imaginar um futuro mais justo cultural e socialmente na América Latina? 2) Como é que o passado das populações urbanas indígenas pode afetar questões de sustentabilidade social (ou sustainismo, termo que se opõe a já esgotada “sustentabilidade”), incluindo a capacidade de adaptação, coesão e identidade das comunidades nativas? 3) Como a aplicação do conhecimento do passado nos desafios sociais contemporâneos e futuros, especificamente no que se refere ao bem-estar das sociedades indígenas brasileiras, pode ser encarada como uma questão crítica na atualidade? Nas megacidades brasileiras do Rio de Janeiro e de São Paulo, a separação problemática entre natureza e cultura apresentada pelas ontologias ocidentais é reproduzida na oposição de elementos naturais e culturais nas paisagens, resultando na separação problemática dos recursos naturais e culturais nas questões de planejamento e desenvolvimento. A participação popular em relação à arquitetura e ao urbanismo e as representações de cidadania centram-se na ação comunicativa (HABERMAS, 2003), o que pressupõe certo grau de autonomia individual e coletiva através da reflexão crítica sobre a liberdade. Este conceito refere-se à tradição iluminista que permite a criação de políticas repressivas temporais no ambiente urbano. Para Kant, no âmbito da prática, a razão logra se capturar a si mesma, na medida em que é constitutiva para o agir moral. O agir comunicativo assinala interações sociais para as quais o emprego da linguagem, orientado pelo entendimento, assume o papel de coordenador da ação. A teoria da linguagem, especialmente a semântica que desvenda o sentido das exteriorizações linguísticas através da compreensão da linguagem, representa o lugar no qual uma pragmática formal, de procedência kantiana, pode se encontrar com pesquisas do campo analítico (HABERMAS, 2007, p. 65). À guisa de reflexão conclusiva, surge aqui a discussão de Jacques Poulain (1992, p. 74-75) sobre o diagnóstico heideggeriano da modernidade como pensamento da vontade de poder e como subordinação da razão teórica a uma razão prática cega sobre si mesma, que não tem outra função a não ser reprimir o que fala em cada palavra, ou aquele que pensa em cada pensamento: o ato de julgar. Segundo Poulain, a renúncia ao julgamento que se exige, fazendo com que todos pensem seu pensamento, conduz a uma atitude de agnosia típica do autista que se tranquiliza ao não perceber mais do que um mundo visual indiferenciado ao seu redor. Ocorre, então, uma perda objetiva do julgamento ético e o abandono da ação à ritualização e à pragmatização técnica, ao mesmo tempo que o indivíduo se livra de ter de julgar a si mesmo sobre seu presente ético-político. Tal perda de julgamento ético, típica de uma pragmática autista tecnocrática, pode talvez justificar, em parte, o comportamento burocratizado da Reitoria da Universidade Federal Fluminense, que impediu a permanência da oca xinguana no campus da Praia Vermelha, alegando que este protótipo de arquitetura bioclimática tradicional não se adequava ao Plano Diretor universitário, por estar situada em um local onde 44


estava, anteriormente, previsto um estacionamento da Agência de Inovação da Pró-Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação/PROPPI. Opondo-se a um abandono da ação à ritualização e à pragmatização técnica típica do autismo neoliberal no capitalismo tardio, que parece imperar na universidade brasileira em um campo prático-teórico do agir comunicativo, o Museu Vivo, com sua proposta universitária transcultural, pretende contribuir para uma reflexão crítica do espaço urbano que também se define pela participação de uma nova classe média articulada por redes virtuais. A partir de junho de 2013, entraram em erupção forças coletivas disseminadas através das redes sociais indicando que, como foi sugerido por Lévy (1996), o espaço virtual é um espaço real. Reivindicações da juventude, que se posicionou contra a expulsão dos indígenas da Aldeia Maracanã, em março de 2013, finalmente fluíram para a manifestação pública de Black Blocs e desaguaram nos rolezinhos que invadiram os shoppings centers brasileiros. Pretende-se, assim, ampliar o alcance do conhecimento universitário a fim de encontrar soluções viáveis para o impasse técnico-governamental atual em áreas urbanas de transporte e de habitação. Tal fato se junta às reivindicações indígenas para a preservação e a restauração do prédio histórico da Aldeia Maracanã, que foi ocupado por índios urbanos como uma espécie de bandeira nacional, o que possibilitou o surgimento de novas identidades culturais e políticas no Rio de Janeiro, ao buscar uma resposta instigante a esta questão: como o patrimônio imaterial indígena se encontra vivo em centros urbanos do Brasil atual? Projeto do Museu Vivo A partir do Canteiro Experimental, o projeto de arquitetura, seu detalhamento e o projeto paisagístico do Museu Vivo foram representados aplicando-se conceitos de arquitetura bioclimática junto à estética digital arquitetônica. Em busca do diálogo transcultural com as culturas nativas envolvidas no processo projetual da arquitetura, a metodologia de pesquisa lançou mão do método comparativo da antropologia social no sentido de investigar e documentar os processos construtivos indígenas, interligando-os às técnicas digitais da arquitetura contemporânea, objetivando, assim, alcançar um produto híbrido colaborativo para a criação do Museu Vivo. Cada etapa do trabalho contava com uma equipe diversificada composta por indígenas, alunos e professores da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense. Sua implantação decorreu de um programa arquitetônico traçado na cadeira de projeto de arquitetura, como o protótipo da aluna Liza Ferreira de Souza. O objetivo do projeto partiu de um diálogo transcultural baseado na estrutura mítica do universo Guarani, inspirando-se na arquitetura de Severiano Mario Porto. Este projeto segue um pensamento que se refere à escala humana e à harmonização da edificação com o meio ambiente. Como estratégia de ação para o Museu Vivo, foi projetado o estabelecimento de oficinas e exposições vivas, temporárias e permanentes, contando com um palco de apresentação musical e coral; espaços para a exibição de filmes etnográficos, contos, mitos, lendas e informações sobre ervas medicinais, além de um restaurante com gastronomia indígena na parte interna da edificação. Na parte externa foi pensado uma área própria para construção de uma oca temporária para exposições e produção de artesanato indígena e um auditório para palestras, debates, seminários e aulas ao ar livre que teria uma cobertura em quatro águas, inspirado nas quatro estações. No paisagismo, se pretendia utilizar espécies de vegetação típica indígena com o emprego da palmeira Juçara, entre outras plantas da rica flora brasileira nativa, dispondo de uma área destinada ao plantio de espécies vegetais de grande significado cultural indígena, sobretudo para os Guarani, como a mandioca, o milho, a batata doce, a banana e a melancia. Cabe lembrar que os índios participaram de todas as ações do projeto apresentado. 45 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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Projeto Museu Vivo | TFG Trabalho final de graduação. Aluna: Liza Ferreira de Souza, 2011.

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Projeto de TFG - 1, 2, 3, 4 e 5

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Simulação do Museu Vivo no campus da Praia Vermelhada UFF - 6

Referências ARANTES, Otília. Política das artes. Mário Pedrosa. Textos escolhidos I. São Paulo; Edusp, 1995. FLUSSER, Vilém. Ficções filosóficas. São Paulo, EDUSP, 1998. GUIMARAENS, Dinah. Museu de arte e origens: mapa das culturas vivas guaranis. Rio de Janeiro; FAPERJ/ Contracapa, 2003. HABERMAS, Jurgen. Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; 2007. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro; 2003. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo; Editora 34, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo; Editora Schwarcz Ltda., 1992 (1871). PORTOCARRERO, José Afonso. Tecnologia indígena em Mato Grosso. Cuiabá; Entrelinhas, 2010. POULAIN, Jacques. De L’Homme: éléments d’anthropobiologie philosophique du language. Paris; CERF, 2001. POULAIN, Jacques & SCHIRMACHER, Wolfgang. Penser apres Heidegger. Paris; L´Harmattan, 1992. SOUZA LIMA, Mirian Aiko e OLIVEIRA, Beatriz. Por um regionalismo coeficiente: a obra de Severiano Mário Porto no Amazonas. São Paulo; Martins Fontes, 1985.

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Escola xamânica: arte e transculturalidade na Amazônia ocidental

Guilherme Werlang Professor do Departamento de Artes do Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS-UFF)

1 Do um sem o múltiplo 1.1 O dualismo ameríndio: a falência do Estado

E

m um artigo publicado em fins dos anos de 1990, ([17]), sobre a cosmologia de índios falantes de uma língua tupi, Tânia Stolze Lima, etnóloga brasileira, faz referência a uma assertiva xamânica já famosa entre os Guarani, povos da mesma raiz linguística tupi, conforme Pierre Clastres: “Les choses en leur totalité sont une; et pour nous qui n’avons pas désiré cela, elles sont mauvaises.” ([3]:170) Essa assertiva tem uma significação cosmológica, na medida em que esses povos sustentam que sua existência é irremediavelmente incompleta, trágica, até. Os Guarani desejam ser seres perfeitos sobre uma Terra imperfeita: sua existência seria um devir constante, uma jornada constantemente incompleta rumo a um estado inalcançável, ao longo de suas vidas, de completude, de universalidade mesmo. Esse estado seria a imperfeição, na vida; mas poderia significar, outrossim, a perfeição, na morte. O universo dos viventes seria um mundo unívoco, por oposição à ambivalência da morte. E a univocidade, segundo os Guarani, é má: “[…] que dit la pensée Guarani? Elle dit que l’Un, c’est le Mal.” ([3]:171) Clastres, entrementes, chama nossa atenção para os perigos do estruturalismo: as inversões automáticas das dicotomias comparativas poderiam nos induzir a pensar que o pensamento ameríndio rejeita o que o ocidental buscou. Para os Guarani, “a totalidade”, “a completude” e “a universalidade” não são o contrário da multiplicidade, como entre os pré-socráticos. De resto, elas não evocariam a reunião de todas as coisas apenas, um “todo” maior do que a soma de suas partes; mas, ao invés, evocariam seu próprio contrário: sua efemeridade, o sinal de sua imperfeição incompleta, corruptível, de sua finitude. O mundo do Um, entre os Guarani, segundo Clastres, é o universo da designação verbal unívoca. A alternativa, contrariamente às conclusões do pensamento ocidental, não seria a esfera do Múltiplo; mas, ao contrário, a do Dois. A dualidade seria a marca da potência, pois abre as possibilidades da ambiguidade, da coexistência do humano e do nãohumano na mesma existência. O Um que a filosofia social ameríndia rejeita, em suma, é o Estado, a Justiça, a 48


Igreja, segundo a interpretação bem conhecida de Clastres, seguindo um velho julgamento dos missionários jesuítas nas terras baixas da América do Sul: que as línguas tupi não tivessem o “r”, o “l”, o “f” era gramaticalmente coerente com a noção de que seus falantes não tinham um “Rei”, uma “Lei”, uma “Fé”. 1.2 A tradicional loucura animista e os bloqueios interculturais Os Marubo, povos falantes de uma língua pano, na Amazônia ocidental, sustentam que a realidade é, de certo, dual: para cada planta venenosa, há uma planta curativa; para cada agenciamento social, natural ou sobrenatural, há um negativo e um positivo; para cada metade má, há uma boa. Custou-me muitos anos entre eles, no âmbito de minha pesquisa etnológica, para compreender as implicações de seu dualismo, a um só tempo anímico e fisiológico, sobre suas relações com o Estado brasileiro. A prosopopeia ocidental, que atribui subjetividade às instituições governamentais, substantivando, abstratamente, as posições de poder nas hierarquias dos organogramas burocráticos, é antitética a essa prosopopeia anatômica indígena. Nós, brasileiros, fetichizamos uma espécie de poder bem personalista à guisa de funções administrativas: o coordenador é “a coordenação”, o diretor é “a direção”, assim como, quando se trata de obter um reconhecimento oficial da chefia indígena pelas agências governamentais, deve-se chamar o líder de “liderança”. Os Marubo, ao invés, projetam suas afecções e suas funções cognitivas sobre certas partes do corpo, projetando sua cognição e suas capacidades afetivas sobre o meio ambiente. O que resulta, nos encontros entre as representações indígenas e as do Estado, é a mais pura oposição entre uma subjetividade naturalista e sobrenaturalista, a dos indígenas, e uma objetividade culturalista, a das instituições do Estado brasileiro. Esse resultado pode ser descrito, também, como a oposição da universalidade impessoal à personificação do ambiente circunstancial. A projeção da autoridade do mundo dos Brancos em uma esfera inacessível aos Índios serve para manter as abordagens indígenas aos agenciamentos sociais a uma distância que os reduz à efemeridade: para o mundo ocidental, a ausência do universal quer dizer, a contrario sensu, a presença exclusiva do efêmero. É inadmissível, ao que parece, na estatização dos territórios indígenas, qualquer forma de dualidade que não seja essa, a reduzir a fugacidade das culturas autóctones aos vestígios do passado pré-colombiano, por oposição à homogeneização institucional à qual elas são submetidas. O que resulta é um isolamento em torno das terras indígenas, como se elas fossem os últimos refúgios para populações sem qualquer contato com os Estados-nação. É certo que elas o são; mas se é verdade que o Vale do Javari, o mais ocidental dos territórios indígenas no Brasil, abriga a maior concentração de grupos humanos efetivamente isolados das sociedades industriais em todo o mundo, os povos que lá habitam e já têm contato com o Ocidente há mais de 150 anos têm a responsabilidade de estreitar as distâncias culturais, para sanar o mal-estar criado pelos desencontros nas relações indígenas com o Estado. Eu proponho aos leitores deste artigo uma reflexão sobre essas relações no nível das trocas interculturais, da assistência médica e sanitária e, sobretudo, da educação que o governo brasileiro oferece aos índios da Amazônia Ocidental. Eu gostaria de explorar as implicações de seu dualismo anímicofisiológico — como uma espécie de loucura animista tradicional, na prática e na performance dos saiti e dos shõti, nos “cantos-mito” e nos “cantos de cura”— sobre a nova escola xamânica do Vale do Javari, que está em vias de construção entre os Marubo do Alto Rio Ituí. 1.3 O dualismo marubo: a efemeridade incessante Os Marubo sustentam que seu corpo carnal, yora, divide-se em duas metades. São, ambas, não apenas dois hemisféricos físicos, mas, ao invés, dois vaká - viz. duas “almas”: a alma do lado direito (mekirí vaká), a alma do lado esquerdo (mechmirí vaká). Essas duas categorias mantêm uma relação analógica com Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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as duas entidades mais inclusivas de seu mundo sobre-humano, quer dizer, o espiritual e o animal: os “espíritos” yové e as “sombras” yochiñ. As muitas outras ditas “almas” desses corpos são redutíveis a essas duas categorias, sejam às almas “esquerdas”: a alma de suas sombras, dita por eles “nossa alma” (noke yochiñ); a alma “dos olhos” (verõ yochiñ); as almas das excretas (“dos excrementos”, poiñ yochiñ, “da urina”, isõ yochiñ), sejam as almas “direitas”: além da alma do lado direito propriamente, a alma do coração “do pensamento e do sopro”, chinã nato: alma direita (merikí vaká)

=>

alma esquerda (mechmirí vaká) =>

{

“pensamentos-sopros”(chinã nato) “nossa alma” (noke yochiñ) alma “dos olhos”(verõ yochiñ) alma “dos excrementos” (poiñ yochiñ) alma “da urina”(isõ yochiñ)

=> “espíritos” yové

=> “sombras” yochiñ

Essas duas categorias anímicas regulam, por exemplo, a lógica do infanticídio entre os Marubo: que os gêmeos não sejam tolerados entre eles; que o segundo irmão gêmeo ou a segunda irmã gêmea sejam mortos é sinal de que ele ou ela deve sempre ser “da sombra”, “animal” ou, consequentemente, um agente ligado às doenças — um yochiñ —, o que quer dizer que um gêmeo, de cada dois gêmeos que nascem, deveria morrer, ao fim das contas. Essa dualidade, entrementes, não consiste em uma dicotomia de valor moral, mas em um equilíbrio dinâmico, efêmero, mesmo: a exegese nativa sustenta que a vida não é possível sem ela. 1.4 A temporalidade dos dualismos: círculos e linhas De fato, caso se admita que essas duas categorias anímicas, com suas contrapartidas cósmicas, são referenciáveis ao dualismo musical dos mitos marubo — ou, vice versa, que os cantos-mitos têm significação cosmológica -, elas correspondem a duas moções temporais: a linearidade e a circularidade, a efemeridade e a reiteração, o transitório e a repetição, como veremos. Adiante, após alguma informação preliminar, apresento um exemplo concreto: o canto-mito mokanawa wenia, viz. a “emergência dos povos amargos”, também dito “dos povos selvagens ou venenosos”. Os mitos marubo, ditos saiti, são cantados, normalmente, por um xamã, em uma festa que porta esse mesmo nome, os saiti. Os participantes mais jovens da festa repetem cada verso do saiti, entoado por um xamã, ao som de uma célula musical, empregando uma forma de responsório vocal que é seu método de educação coletiva mais tradicional. É o modelo de escola que esses povos querem seguir, quando pensam sobre os modos de inserção indígena no sistema governamental do Brasil. É certo que o governo não oferece— mesmo em seus programas de educação oficiais, bilíngues, oferecidos aos índios— sessões xamânicas durante a noite, com música, com dança, com pinturas corporais e com substâncias alucinógenas. É ausente, sobretudo, o uso de modos de transmissão do conhecimento que possam dar conta de suas qualidades dinâmicas, de suas moções temporais, irredutíveis à ausência do tempo que caracteriza a eternidade na qual o Ocidente projetou sua verdade mais universal. É essa dinâmica temporal, não obstante, a situação normal em que esses mitos são cantados. É o caso, acima de tudo e normalmente, de mitos de origem, como todos os mitos cantados entre os Marubo: aqui, um “canto-mito”, um saiti que narra a emergência original dos povos que habitam a floresta mais profunda, que sabem utilizar os perigos potenciais dos venenos selvagens— sejam eles vegetais, sejam animais—, o “amargor” do ambiente, em seu favor: 50


Figura 1: canto-mito mokanawa wenia, o saiti da “emergência dos povos amargos”

O dualismo do canto fala por si só: cada uma das duas metades dessa célula sonora, repetida algumas centenas de vezes ao longo do canto-mito, corresponde a um verso intercambiável com a outra metade; cada metade, por sua vez, é divisível em duas metades menores, cuja correlação define a natureza — seja reiterativa e circular, seja sucessiva e linear — de cada metade maior. Esse dualismo, concreto assim — mas, também, semelhante às abstrações cosmológicas dos Marubo —, é o traço mais original de minha etnografia sobre esses índios. A identidade — a ambiguidade mesmo, diria Clastres, desde os Guarani -, entre os cantores e as entidades cantadas é um traço dos mais presentes na etnografia amazônica (e.g. [16], [1]). Seria bem fácil, pois, confundir toda performance musical indígena desses mitos com a “loucura animista” descrita pelos antropólogos, desde Edward Tylor e James Frazer ([18], [5]) até Lévi-Strauss e os pós-estruturalistas ([8], [4], [19]). É certo que, por conta de seu monismo epistemológico, esses povos foram discriminados, no princípio, depois louvados ([2]); como a cosmologia xamânica em geral, entretanto, esse monismo foi um obstáculo nas interações interculturais amazônicas entre os indígenas e o Estado, sobretudo no campo da educação. 1.5 A prosopopeia musical marubo É certo que, na Amazônia ocidental, o mito e a música fazem falar o mundo: o mundo falado (o mito) é o mundo escutado (a música). A identificação original entre humanos, animais, plantas e outros objetos da natureza, entre os Marubo, resulta da capacidade de identificação do canto-mito entre os cantores e os ouvintes, inclusas, entre ambos, as entidades nãohumanas. Sua eficácia é mensurável como capacidade terapêutica dos cantos de cura, as versões individualizadas e funcionais dos cantos-mito. Os cantos de cura operam através de um discurso verbal e musical que descreve as doenças particulares, sem que as etiologias façam referência a categorias patológicas universais: a doença é sempre “de alguém”, como costuma ocorrer entre nós; mas esse “alguém”, entre eles, não é o nome de um cientista que a descobriu, mas o próprio doente. Daí que esses discursos musicais de cura sejam sempre individuais; mas são funcionais, também, porque são julgados com respeito a sua eficácia, não a sua coerência como assertiva ontológica. Ou, melhor dizendo, são construídos a partir da sintaxe das assertivas ontológicas feitas nos cantos-mitos, cuja veracidade é apreensível com respeito à percepção xamânica da realidade; mas seu valor semântico é pragmático: como a retórica antiga, eles “têm sucesso” ou “falham” em curar ([14]:8). Essa interpretação estaria correta se as relações entre os cantos de cura e os cantos-mitos fossem 51 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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puramente formais; se a cura fosse, tão somente, psicológica; se a estrutura anímica ameríndia fosse, em suma, destacável dos corpos indígenas. De fato, assim como o Um ameríndio que Clastres descobriu se opõe ao Dois, não ao Múltiplo, as almas ameríndias, a se julgar desde o seio da cosmologia marubo, são potencialmente divisíveis em dois, durante os estados normais de saúde, ao longo da vida, em geral; mas se dividem, em ato, em dois, apenas nos casos de doença e na morte. Da mesma forma, se o eterno e o impessoal anímico se opõem ao tempo unilinear, unidirecional e irreversível entre nós, a música marubo realiza essa estrutura dual como moções temporais, alternativamente lineares ou circulares. Dessa forma, a cura mítico-musical indígena é tão pragmática como, por seus fundamentos, tem valor de verdade. As moções temporais dos cantos identificam os estados humanos de saúde ou de doença com as duas categorias cosmológicas mais importantes do universo marubo, os yochiñ e os yové. O equilíbrio entre esses dois tipos de entidades nesse universo é decisivo para a saúde humana; mas trata-se de um equilíbrio dinâmico, porquanto musical. 2 O dois e seus múltiplos 2.1 A compulsão epistemológica dos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro, em seu artigo sobre o que ele chama de “perspectivismo ameríndio” ([20]), chama a atenção de seus leitores para a compulsão epistemológica dos estudos antropológicos: seja na caracterização do animismo por Tylor, seja na comparação entre magia e religião por Frazer, seja no conceito sobre o pensamento selvagem descrito por Lévi-Strauss, todos tentaram, sempre, descrever formas culturalmente distintas de compreender a realidade, naturalmente, objetiva do mundo. O etnólogo brasileiro propõe examinar as cosmologias indígenas no âmbito de uma espécie de relativismo ontológico, quer dizer, de um ponto-de-vista “perspectivista”: como se o indígena figurasse que o ocidental via o mundo como um ser humano, de certo, mas o via de um modo totalmente diferente — como se ele visse o mundo como realidade objetiva! É certo que a perspectiva indígena sobre a visão objetivista do mundo ocidental não seria subjetiva, tão simplesmente; mas, tal como a do antropólogo, ela há de ser perspectivista: a condição do conhecimento do mundo, universalmente humano, seria a perspectiva — inclusive a dos animais, dos espíritos, etc. Em compensação, a realidade objetiva em si seria universalmente relativa, de acordo com o corpo da entidade, humana ou não, de onde se toma a perspectiva humana, viz. a cognição universal. 2.2 O perspectivismo e a etnologia ameríndia Daí que, segundo Viveiros de Castro, os humanos, os animais e os espíritos amazônicos são, sempre, cognitivamente, humanos. Da mesma forma, poder-se-ia dizer que as pessoas amazônicas são sempre antropólogos. É uma forma bem criativa de se ser etnocêntrico, certamente, malgrado seja suspeita de um vício de origem: o relativismo ontológico! 2.3 O neoanimismo e os dualismos ocidentais

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Que os dualismos ocidentais, o um versus o múltiplo, consequentemente o objeto versus o sujeito, a natureza versus a cultura, sejam tributários do dualismo cartesiano, o corpo versus o espírito, tudo isso já é suficiente para que se suspeite de sua subsunção a uma oposição ainda mais cosmológica na história do pensamento ocidental,


em um sentido mais literal, pitagórico, mesmo: a oposição teológica entre o hiperurânio eterno e o sublunar fugaz. 2.4 A hipótese antropobiológica e a performance indígena Arnold Gehlen e sua hipótese antropobiológica, segundo Jacques Poulain ([14]:14), seriam as guias para a superação do dualismo cartesiano que sustenta os jogos de linguagem e seus estudos, na era industrial e pós-industrial. Gehlen propôs uma teoria da ação como tautologia entre a intenção e o ato: “[…] nel concetto di azione è compreso tanto il pensare, il conoscere e il volere dell’uomo, quanto la sua fisicità, ma in modo tale che entrambi gli aspetti vengano pensati uno actu come reciprocamente presupponentisi e inclusi l’uno nell’altro.” ([7]:14) Gehlen desenvolve, em seguida, sua crítica ao racionalismo como crítica ao dualismo epistemológico ocidental, tão válido, no mínimo, quanto a indistinção entre o natural e o sobrenatural no mundo pré-científico: “[…la] reale efficacia a distanza delle opinione fa parte […] dei reperti magici di una cultura di intellettuali, tanto quanto la credenza che si possa dare stabilità al comportamento umano a partire dalla coscienza.” ([7]:51; em itálico, no original) É impossível, entrementes, que se suspeite de um “relativismo ontológico” no âmbito dessa antropologia filosófica. Gehlen encontrou, especulativamente, a origem das representações figurativas da arte paleolítica nos ritos de imitação: a estilização dos atos vividos na performance ritual pôde preencher, com os recursos de sua própria codificação, o hiato entre o desejo e a satisfação, criando uma “satisfação de fundo”, de onde a “estabilização do mundo exterior”, sua durabilidade pré-conceitual ([7]:62–4). Essa ritualização performativa, nas origens da arte humana, formaria os antecedentes do desenvolvimento da linguagem verbal — que, por sua vez, transformaria os ritos cósmicos em performances com fins singulares ([7]:67). A ciência não estaria jamais longe demais do mesmo método: isolar a experimentação vis-à-vis a realidade para construir modelos que explicarão essa mesma realidade. Gehlen poderia descrever o efeito da canção dos mitos marubo como um resquício da função simbólica original que os espíritos yové, essas entidades correlatas ao pensamento e à respiração, dão, ao cantar, à objetividade visual — considerada enganosa por eles, os Marubo — , dos yochiñ, os “duplos” dos corpos: da sombra, dos olhos, dos excrementos: “[…] l’agire entra in rapporto con se stesso ed esprime questo rapporto in se stesso : nella semplice scansione ritmica e nell’ipersignificatività si conquista per questa via la capacità simbolica.” ([7]:156; em itálico, no original) A repetição circular do canto serve para dar significação imitativa, a figuração do mito, como resposta dos cantores a sua performance musical ([7]:157). As entidades às quais os cantos-mitos dão forma temporal — a respiração-pensamento dos yové, a imagem dos yochiñ — são tentativas para se compreender relações de causa e efeito entre fenômenos distantes no espaço: a etiologia das doenças. As relações analógicas dessas entidades com as almas humanas — a da esquerda, mechmirí vaká, a da direita, mekirí vaká — provêm da aplicação da mesma lógica ao processo de vida e de morte, de saúde e de doença. 2.5 O autismo pragmático A explicação acima é dita “antropobiológica” porque seu modelo de experimentação é o desenvolvimento do bebê humano. O circuito que isola a explicação do mundo do mundo que ela explica, posto em movimento na arte, em sua origem performativa, está na origem, também, das capacidades linguísticas de todos os humanos ao longo de seus primeiros anos de vida. O fechamento desse circuito permite, no 53 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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princípio, a invenção da linguagem pela criança, a partir de seu balbuciar infantil. Depois, há duas alternativas: esse circuito pode ou bem se abrir em direção aos outros, como sói ocorrer, para integrar os circuitos maiores da comunicação, ou então se fechar mais ainda em si mesmo, resultando na repetição eterna do que o desencadeou: a repetição da repetição, o método primitivo da simbolização. Essa segunda alternativa, menos frequente, é o autismo. O autismo pragmático, segundo Jacques Poulain, é a abstração de todo julgamento de verdade da linguagem, rumo à redução de toda comunicação à realidade psicológica, subjetiva, relativa, socialmente convencional que ela designa ostensivamente como se fora ela a própria realidade real, universal. É, em suma, o Um religioso que se torna instituição: o Estado, a Justiça, a Igreja. É essa a doença genérica do homem na era industrial, conforme Gehlen: […] la primitivisation des relations sociales et intersubjectives, réduites aux circuits de consommation, de sexualité et d’agressivité, dans la perte du sens de la réalité — solidaire de l’expérimentation de toute réalité dans l’imaginaire — et enfin […] le refuge cherché par chacun dans des attitudes hyper-rigides pour maîtriser malgré tout, par la programmation logico-mathématique ou par la planification sociale, les processus de pensée accompagnant ces explosions affectives, cognitives et motrices. ([14]:14) A incapacidade de bem compreender a natureza individual, artificial da conexão entre os sons emitidos e os sons ouvidos está na origem de todas as formas de autismo, inclusive as formas coletivas, como a da pragmática contemporânea. A natureza psicológica, subjetiva, relativa, socialmente convencional da própria linguagem, como criadora de realidades percebidas, se torna a Mãe Natureza, de quem o homem é a criatura. 3 Sapientia universalis
 3.1 A pragmática da totalização do mundo Poulain sustenta, a partir de Gehlen, que a consciência é a objetificação do prazer de antecipar a consumação da resposta ao estímulo que a desencadeia através da palavra. Quando essa consciência adquire a capacidade de se subtrair da experimentação do mundo, torna-se ela obsedada pela repetição do estímulo inicial, voltando a fechar continuamente um circuito de autogozo que procura fugir do fracasso. Quando essa consciência, já autista, ao se tornar coletiva, tem pretensões totalizantes, ela arrisca, ou mesmo quer, exaurir o mundo de toda possibilidade de subversão, exceto pela doença e pela morte. A totalização do mundo é o resultado de uma tentativa de eleger uma pragmática comum como a única alternativa para explicar a diversidade humana. A tentativa — já autista, por si só — realiza-se em detrimento do diálogo transcultural. Essa pragmática, na Amazônia, constitui-se no desafio que as cosmologias ameríndias rejeitaram desde as primeiras tentativas de consolidar as instituições governamentais entre os povos indígenas. 3.2 A natureza tautológica das questões da realidade ameríndia Os xamãs marubo, na Amazônia ocidental, estão sempre prontos a afirmar que o conhecimento das etiologias de cada caso patológico é a condição necessária e suficiente para aceder à cura. Os liames entre seus cantos-mito (saiti) e os cantos de cura (shõti) são formais, em dois sentidos, pelo menos: na forma musical e na forma mítica dos saiti e dos shõti, de ambas as categorias, as mais importantes da performance xamânica. Os cantos marubo são sempre celulares, quer dizer: constituídos por células sonoras que sempre 54


se repetem. Cada célula, como a que vimos acima, é cantada reiteradamente como forma de escanção dos versos do mito. Há uma célula diferente — o que se chama mané, entre os marubo — , com um motivo musical particular, para cada canto-mito, assim como cada um desses mané corresponde à identidade musical de cada xamã-curador. Outrossim, tal como os versos narram um mito para cada motivo musical, para cada mané particular — nas formas paralelas que reafirmam, em um outro nível poético, a circularidade da repetição musical —, cada canto de cura, em seu conteúdo verbal, corresponde a um caso de doença, não a uma categoria patológica. O que a medicina científica considera como sintomas de doenças é tratado pelos xamãs como diversas entidades, porquanto a lógica da afecção dessas entidades segue a construção mítica particular feita sob a medida do doente. 3.3 As representações científicas É certo que os médicos também estariam sempre prestes a entrar em acordo com os xamãs, ao dizer que seu conhecimento etiológico é a condição prévia, a longo prazo, para a cura de todas as doenças; entretanto a medicina científica, como toda pragmática baseada na ciência, procura liames causais entre fenômenos mutuamente distantes no espaço através de cadeias de causalidade material entre eles. A medicina revela-se eficaz através da formulação de questões que demandam respostas quantitativas, mas às quais somente o “sim” e o “não” são respostas válidas. Ela ocupa-se, em suma, da tradução de perguntas analógicas, metafóricas mesmo, em respostas digitais, às quais responderia a realidade pitagórica, última das coisas. A experimentação científica produz resultados na medida de seus aparatos de mensuração, que requerem condições artificiais, numéricas, para se aproximar dessa realidade. Os xamãs, por sua vez, não utilizam modelos universais para classificar, nem para curar as doenças: ele criam mitos para cada indivíduo, como se a cura de todas as doenças fosse a de casos psicológicos. Os liames causais, se os encontra entre personagens míticos criados ad hoc, quer dizer, os sintomas personificados e as moções afetivas que os curam: força para a fraqueza, tranquilidade para a tremedeira, frio para a febre. E ainda assim, embora o xamã não possa figurar que seus personagens surrealistas sejam criaturas mensuráveis, redutíveis a números, ele e o médico são, ambos, criadores de linguagens das quais a medicina ocidental não pode se beneficiar sem esforço. 3.4 O consenso cego O problema da redução de toda causação médica a relações materiais é que ela segue uma formulação não somente materialista, mas também objetivista do conhecimento, que imagina que as interações linguísticas sejam indicações ostensivas de relações que são independentes da consciência dos parceiros que interagem. Seu corolário é, de um lado, a universalização dessa realidade; de outro, a relativização das trocas linguísticas. É evidente que o objetivismo da Natureza-Mãe e o subjetivismo da diversidade cultural são duas faces de uma mesma moeda. 4 A estética da produção 4.1 A ética social ameríndia Em diversos artigos, a antropóloga Joanna Overing defendeu a visão de uma filosofia social da convivialidade amazônica (e.g. [12]). Sob o influxo de seus estudos de campo entre os índios das Guianas Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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(Amazônia Setentrional), Overing elabora a noção de “endogamização da afinidade”, quer dizer: a transformação da diferença cultural em identidade consanguínea. Os meios dos quais os ameríndios se utilizam para fazê-lo são muitos: desde a manipulação de termos de parentesco ([9]) até as elaborações cosmológicas sobre os perigos da violência antissocial sobre o equilíbrio do mundo ([10], [11]). 4.2 A estética como condição de possibilidade do saber xamânico Overing estabeleceu, também, em um volume publicado com seus alunos e seus associados ([13]), uma relação entre a ética social e uma estética da convivialidade na Amazônia. Em mais do que uma moral platônica das sensações, os Marubo e outros povos de sua família linguística, por exemplo, consideram o “belo” (rao), além de “bom”, também “brilhante”. Os Marubo, além dos cantos que evocam os espíritos e outras afecções emocionais, utilizam desenhos geométricos em pinturas corporais e em objetos sagrado, folhas e cascas de árvores odoríferas, enquanto bailam por toda a noite para tornar propícias as sessões xamânicas. 5 Mathesis universalis
 5.1 A cosmologia: Pitágoras na Amazônia O meio mais seguro de acesso ao mundo dos espíritos, entre os Marubo, malgrado a sinestesia que se costuma registrar nas culturas xamânicas dessa região ([6]), é através dos sons dos saiti (“cantos-mitos”), dos shõti (“cantos de cura”) e de outras formas de música vocal menos comuns (viz. os initi, os cantos dos xamãs stricto sensu: os romeya). Os cantos operam uma dialética entre a linearidade musical (inclusa na circularidade das células cantadas, cf. supra) e a circularidade das fórmulas poéticas (inclusa, como paralelismo, na linearidade da narrativa mítica). 5.2 A música, de novo e sempre: o homem é som

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Os sons humanos, segundo a hipótese antropobiológica adotada por Poulain, é a mônada que antecede os dualismos representacionais do corpo e do espírito humanos, que constituiriam, por sua vez, os fundamentos da epistemologia ocidental ([14]:24). A capacidade de coordenar o som emitido ao som ouvido é função da antecipação da consumação do desejo permitida pelas capacidades linguísticas: a palavra já é o gozo do desejo que ela mesma exprime, pelo próprio fato da expressão verbal do que se deseja. Do mesmo modo, a linguagem permite a antecipação do gozo do que se deseja ver, assim como de todas as expectativas sensoriais expressas pela palavra. Os cantos de cura marubo não são cantados somente para os doentes. Canta-se, o mais das vezes, sobre os corpos dos pacientes, normalmente deitados sobre uma rede, mas, como entre outros povos amazônicos ([16]:85), o paciente sobre o qual se aplica a cura não está consciente do que se passa entre os agentes desta. Os xamãs, com frequência, cantam juntos, cada qual com um motivo vocal (mané) diferente, tornando a compreensão do conjunto muito difícil para quem quer que seja. O xamã, além disso, pode cantar sobre alimentos medicinais, como sobre um prosaico mingau de banana, longe demais daquele a quem o alimento cantado é destinado. O canto, em suma, não se destina à consciência do doente, mas a seu corpo. Ele perfaz um circuito desde a boca do xamã, através do corpo do paciente, até, de volta, o ouvido do curador. Dentro desse cir-


cuito, compreende-se todo o ambiente, do qual a eficácia da descrição musical—através de sons musicais, viz. de modo algum por designação ostensiva—resulta na saúde e na vida da comunidade indígena. 6 O xamã como curador universal 6.1 A transculturalidade ameríndia Em junho de 2011, um professor bilíngue e um xamã, Benedito e Robson Marubo, visitaram a Europa, no âmbito de minha estadia como professor visitante no Instituto de Musicologia Weimar-Jena e com o apoio da instituição sem fins lucrativos Ourchild. De suas apresentações sobre sua cultura xamânica e sobre os conflitos resultantes das relações interculturais no Vale do Javari, seu local de origem na Amazônia Ocidental, surgiram projetos sobre a troca dos saberes indígenas e da educação nacional, sobre oficinas de saúde e de educação e sobre uma escola transcultural, na qual o conhecimento xamânico poderia se combinar, de maneira complementar, com os estudos preparatórios para a universidade. 6.2 A saúde transcultural Os projetos que têm por objeto a saúde visam a uma combinação de abordagens indígenas e acadêmicas à saúde e à educação nas comunidades autóctones do Vale do Javari. Seu território de ação é a partilha transcultural entre o conhecimento xamânico e o científico, no contexto das ações médicas sobre as doenças infecciosas e endêmicas locais — como a malária, a tuberculose e, sobretudo, as hepatites virais — assim como sobre os currículos oficiais que conduzem à universidade. Esse objetivo geral exige a combinação de práticas rituais de cura e de educação com a medicação alopática e com os métodos didáticos ocidentais. Esses projetos realizarão suas metas no âmbito da assistência médica convencional e da educação formal. Esses contextos permitirão um bom resultado no treinamento de especialistas indígenas em educação para a saúde e em educação em geral — seja para estabelecer um paradigma de comensurabilidade entre os xamãs, os médicos e os cientistas, seja para desenvolver uma linguagem adequada para exprimi-lo em termos comensuráveis. A metodologia dos projetos inclui, ao lado da assistência médica e da educação formais, oficinas entre os portadores do saber tradicional indígena, com a participação do pessoal de saúde que se ocupa das populações locais, em busca da interface entre a ciência e a medicina ocidentais e as concepções xamânicas. As posições do xamã, do médico e do cientista, do sujeito e do objeto de transmissão do conhecimento se tornarão intercambiáveis. 6.3 A educação transcultural: uma escola xamânica marubo Conforme vimos, na Amazônia ocidental, a educação indígena tradicional ocorre em rituais com música e dança, ao longo de toda a noite. O Estado brasileiro recomenda e oferece, ainda que precariamente, a educação bilíngue em algumas aldeias ao longo do dia. Como em outras escolas indígenas no resto do país, os programas oficiais também atendem ao direito do ensino na língua materna. Sobre conformarem-se pouco à cultura autóctone, as escolas bilíngues nas aldeias indígenas são insuficientes para preparar os estudantes para os exames de admissão à universidade. A Terra Indígena do Vale do Javari é maior do que a soma dos territórios de diversos países europeus. A educação básica nas aldeias é fraca, o que significa que os alunos devem percorrer um longo caminho, desde uma idade precoce, de suas Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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casas até as escolas da sede municipal brasileira mais próxima. Outrossim, os professores precisam redobrar seus esforços para atender seja ao ensino tradicional indígena, seja ao trabalho nas escolas bilíngues. Os Marubo, um dos principais povos indígenas no Vale do Javari, confrontam essa situação difícil em suas vidas cotidianas. A construção de uma escola transcultural, atualmente em curso, em um local acessível para o conjunto das 13 aldeias dos Marubo do Alto Rio Ituí, é uma resposta ao estado atual das coisas. Ela oferecerá, aos alunos que frequentam as escolas financiadas pelo governo brasileiro, durante suas férias escolares, os conhecimentos indígenas de maneira mais tradicional. Os professores, assim, poderão combinar os ensinamentos tradicionais e oficiais mais à vontade. A escola serviria como um internato para os estudantes que estão prontos a obter a qualificação da escola secundária conducente à universidade, enquanto lhes permite manter e aprofundar seus laços com suas raízes culturais, xamânicas. A educação é, certamente, uma etapa importante rumo à emancipação dos povos autóctones da Amazônia. As partes interessadas são sempre os melhores defensores de seus próprios interesses. A sociedade brasileira já oferece as condições necessárias a esse fim: a integração dos alunos indígenas a estruturas escolares preexistentes, todavia, só ia trazer consigo a perda da identidade e das raízes culturais. A escola em questão, com apoio tanto internacional (a organização alemã Ourchild) quanto do governo brasileiro (Secretaria de Educação do Estado do Amazonas), reforçará a cultura indígena na medida em que permitirá o êxito em contextos urbanos. Ela permitirá que os povos indígenas, assim, se representem autenticamente, mesmo depois de haver deixado a floresta. A escola pressupõe que a oferta de condições para se seguir nos estudos e ter acesso à universidade equivale a um apoio eficaz em direção à autonomia indígena, uma vez que ela se traduzirá na formação de representantes dos próprios interesses indígenas.

Figura 2: escola xamânica dos Marubo do Vale do Javari, em junho de 2014. 58

Figura 3: a escola xamânica, com Benedito Marubo e seu filho Shane Pei, em fevereiro de 2015.


Referências [1] BASTOS, Rafael José de Menezes. A Festa da Jaguatirica: uma partitura crítico-interpretativa. Florianópolis; Editora UFSC, 2013. [2] BIRD-DAVID, Nurit. “Animism Revisited: personhood, environment, and relational epistemology”. Current Anthropology 40 (Supplement), p. 67–91, 1999 
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 [15] POULAIN, Jacques. De l’Homme: éléments d’anthropobiologie philosophique du langage. Paris; Les Éditions du Cerf, 2001.
 [16] SEEGER, Anthony. Why Suyá Sing: a musical anthropology of an Amazonian people. Cambridge: Cambridge University Press, 1987. 
 [17] STOLZE LIMA, Tânia. “The Two and Its Many: reflections on perspectivism in a Tupi cosmology”. In Ethnos 64(1), 1999, p. 107–131. [18] TYLOR, Edward Burnett. Primitive Culture: researches into the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. New York; Harper & Row, 1958[1871]. [19] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 1986. [20] VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Cosmological Deixis and Amerindian Perspectivism”. In Journal of the Royal Anthropological Institute 4(3), 1998, p. 469–488.

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Instituto Tamoio, povos originários e Aldeia Maracanã

Carlos Tukano Professor e Presidente da AIAM-Associação Indígena Aldeia Maracanã

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asce o primeiro movimento indígena multiétnico do século XXI, na era contemporânea, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de outubro de 2006, com o intuito de lutar e buscar nossos direitos que estão escritos na Constituição de 1988, no que diz respeito à educação, saúde, demarcação de nossas terras, entre outros, e que, muitas vezes, não são cumpridos pelos estados e pela União e lutamos para desconstruir a imagem estereotipada do índio brasileiro. O marechal Cândido Mariano Rondon criou o SPI (Serviço de Proteção ao Índio) em 1910, tendo funcionado em diferentes formatos até 1967, quando se tornou a FUNAI (Fundação Nacional do Índio). O professor e antropólogo Darcy Ribeiro criou o Museu do Índio em 1953, com o objetivo de defender os povos indígenas brasileiros, bem como seus saberes e patrimônios. Com a chegada dos europeus em 1500, os povos indígenas que aqui habitavam vivenciaram uma realidade de extinção e etnocídio, levando grandes nações indígenas de diversas etnias, neste continente, a desaparecerem para sempre. Com o intuito de resgatar e melhorar culturalmente a imagem dos povos originários, buscamos o caminho do diálogo em espaços de negociação com os governos federal, estadual e municipal e com ONG que tratam de questões indígenas. Ironicamente, o europeu quando aqui chegou denominou os povos locais, de índios, associando-os a povos selvagens, atrasados, um obstáculo ao progresso. Há outros esteriótipos e termos utilizados para fazer referência ao índio brasileiro, por exemplo, o uso dos termos “programa de índio” e “ índio quer apito”. Até os dias atuais, os povos indígenas carregam estes estereótipos sobre suas culturas e modos de vida. O Instituto Tamoio dos povos originários deu origem à Aldeia Maracanã, que foi criada para debater e propor avanços sobre as diversas questões que afetam os povos indígenas. Deste encontro produziu-se uma série de debates e reflexões sobre os fatos que acontecem nas diversas aldeias de todo o Brasil, sobretudo os temas relacionados aos recursos naturais, conhecimentos tradicionais e patrimônio material e imaterial pertecentes aos povos indígenas brasileiros. A demarcação das terras indígenas foi a todo momento problematizada pelo grupo da Aldeia Maracanã, assim como a exclusão do índio nas estruturas e instituições do estado e da sociedade nacional. Quando as comunidades indígenas se relacionam com os não indígenas, estes percebem que o índio não é muito ativo, não tem voz nas discussões. Por isso a pauta 60


do movimento indígena Aldeia Maracanã foi no sentido de questionar a atuação social fora do âmbito das aldeias, provocando a mudança dessa imagem. O indígena, hoje, quer saber quais são os seus direitos e deveres, isto é, está reivindicando o direito de ser um cidadão brasileiro. Quando ocupamos o antigo prédio do Museu do Índio, em 20 de outubro de 2006, estava ele abandonado pela União há três décadas, desde 1977, quando houve a mudança do museu para o bairro de Botafogo. Permanecemos no antigo prédio do Museu do Índio até 22 de março de 2013, quando fomos retirados pelo governo do estado do Rio de Janeiro através da força policial. Durante o período que ali estivemos foi possível divulgar nossos rituais, cantos, danças, grafismos, fazer palestras sobre nossas culturas, com convivências e exposição de nosso artesanato. E, deste modo, conseguimos falar de nós, sem intermediários. Revelar o que somos, e não ser lembrados somente no calendário escolar, no dia 19 de abril, “O Dia do Índio”. Tivemos boas parcerias, como as universidades UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), UFF (Universidade Federal Fluminense), UFRJ (Universiade Federal do Rio de Janeiro), FAETEC (Faculdade de Ensino Tecnológico), Fundição Progresso, Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação— SEPE-RJ, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação—CNTE, Fundação Darcy Ribeiro— FUNDAR, Defensoria Pública da União—DPU, e muitos outros. Visávamos mostrar a realidade dos povos originários, neste século XXI, a face escondida do verdadeiro índio brasileiro que durante cinco séculos vem vivendo como refém de sua própria história, um simples personagem e não um ator principal, vivendo sob a discriminação e os preconceitos impostos pela “sociedade civilizada”. Indígenas que deixaram suas aldeias e origens pelas mais diversas razões e que vivem nas cidades são considerados índios urbanos, caracterizados sem sua própria identidade e sujeitos, como qualquer cidadão urbano, às sanções penais. Ao longo do tempo, tem se discutido sobre a questão indígena em conferências, congressos, eventos e até agora não se chegou a um denominador comum para soluções práticas. A pergunta surge: atualmente, quem fala em nome do índio ? Até hoje sofremos agressões em todos os sentidos, principalmente no plano moral e físico como, por exemplo, no estupro de mulheres e em invasões de nossas terras, e não temos defesa de estrutura jurídica própria, não temos poderes jurídicos. Índio que vive em áreas urbanas tem de ser reconhecido pela sua própria identidade. Este é o papel do governo federal através de seus órgãos, como o Ministério da Justiça e Direitos Humanos. No Brasil, atualmente, a população indígena é de aproximadamente 896.000 habitantes entre as reservas e áreas urbanas, segundo a estatística de 2010 do IBGE , que por sinal é um número muito reduzido em um país tão grande. Há mais de 30 anos que venho defendendo que é significativa a presença indígena em áreas urbanas. Na minha reserva indígena, de Pari Cachoeira, Yauaretê, Taracuã e a sede do município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, fomos doutrinados pela Igreja Católica, pela Ordem dos Missionários Religiosos Salesianos. Este número de habitantes apontado pelo IBGE representa metade da população indígena vivendo nas cidades. Chego a tal conclusão pela análise do “internato indígena”, implementado no passado pelos religiosos salesianos e jesuítas. O internato possuia, sem dúvida, os seus méritos, que aqui não enumero. Todavia por representar uma diminuição da distância estrutural que separa o mundo tribal da sociedade nacional, atuou como fator de estímulo, quando não na própria expulsão indígena, no processo de migração para a cidade. A organização semiurbana dos núcleos educacionais já permitia aos índios participarem das pautas culturais mais significativas da vida na cidade. Eis aqui agora uma nova realidade indígena descrita por alguns observadores e estudiosos, que me leva a acreditar que o índio urbano poderá ser elemento determinante na solução dos problemas indígenas, 61 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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vistos em sua totalidade. O exemplo do índio Juruna, embora de forma um tanto reduzida, ensinou que é possível um percurso com prevalência política, que gere uma consciência cultural e tribal própria, uma consciência étnica para si. É a razão crítica de uma “nova” perspectiva interétnica que desejo ver. Também houve um consenso social com relação às agressões sofridas pelos povos indígenas das Américas. Permanece, no entanto, a pergunta: como estão os índios, hoje em dia, em particular os do Brasil? Darcy Ribeiro conclamava satisfeito que os índios do Brasil iriam sobreviver. Recordo-me da Conferência dos Índios, na Aldeia Karioca, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, por ocasião do evento ECO92, em maio de 1992, na qual a percepção foi de otimismo quanto ao percurso indígena no Brasil. Ficou estabelecido que um comitê intertribal cuidaria diretamente dos interesses das nações indígenas. Infelizmente, a proposta não vingou e não saiu do papel. Culpa dos índios, omissão do governo e dos grupos de apoio à causa indígena, sem falar dos interesses econômicos e de quem quer tirar o índio das aldeias. Enfim, criou-se uma situação grave de abandono que faz com que os índios ainda sejam tratados de forma caritativa e assistencial, longe da tão sonhada autonomia indígena. Não se ouve o termo depreciativo “índio quer apito” mas, por sua vez, o Brasil não pode se dar ao luxo de esquecê-lo, sob pena de perder a sua identidade em todos os sentidos, seja político, religioso e até de perspectivas futuras. Então, o melhor pedido de perdão é uma ação sinergética para valer, isto é, devolver ao índio a possibilidade de criar condições de ter suas opiniões próprias. Com esta minha visão política indígena, ingressei na jornada de luta da Aldeia Maracanã e continuarei lutando para que os governos nos ouçam mais. Os povos indígenas não podem se calar. De outubro de 2006 até março de 2013, um coletivo de várias etnias indígenas veio a formar a chamada Aldeia Maracanã, ocupando e animando com vida o antigo Museu do Índio no Maracanã, a fim de que neste espaço fosse criado um Centro Cultural Indígena com o apoio do poder público. O processo oficial de criação do futuro Centro Cultural Indígena do Maracanã deu grandes passos entre 2013 e 2014, em parceria com a Secretaria Estadual de Cultura do Rio de Janeiro. Em julho de 2012, o governo do estado do Rio de Janeiro comprou a propriedade da União e declarou sua intenção de demolir o prédio para permitir a reconfiguração do entorno do Maracanã, em função da Copa do Mundo de 2014. No final de 2012, vozes se manifestaram contra a demolição do antigo prédio do Museu do Índio, que há um século e meio carrega a memória dos povos indígenas do Brasil. O local foi palco de movimentos sociais jamais vistos na questão indígena na cidade do Rio, mobilizando todas as classes sociais, independentemente de cor e raça, crença e religião. O Brasil e o mundo assistiram a tudo através da imprensa nacional e internacional. No dia 22 de março de 2013, fomos expulsos à força após várias reuniões, diálogos e propostas que foram em vão. O governo foi irredutível, e o tempo tinha se esgotado. A Defensoria Pública da União ( DPU) acompanhou todas as negociações e até mesmo no último momento da expulsão. No final de julho de 2013, pressionado pelas manifestações populares que tomaram as ruas de todo o país em junho de 2013, o governador do estado do Rio de Janeiro recuou em sua intenção de demolir o prédio e reabriu o diálogo com o coletivo Aldeia Maracanã. Através da secretária estadual de Cultura, Adriana Rattes, criou uma mesa de negociação que resultou em medidas positivas de diálogo com os indígenas e os apoiadores da causa, tendo em vista a instalação do Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas no antigo prédio, que seria restaurado. Em setembro de 2013, o INEPAC—Instituto Estadual do Patrimônio Cultural anunciou o tombamento do prédio, fato que foi publicado no Diário Oficial. Na mesma época, a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro anunciou o tombamento do prédio pelo próprio Instituto Rio Patrimônio da Humanidade. Em dezembro do mesmo ano, foi publicado no Diário Oficial o decreto de afetação já tombado pelo INEPAC, para a futura criação de um Centro de Referência 62


da Cultura dos Povos Indígenas (universidades indígenas). Em março de 2014, foi criada a Associação Indígena Aldeia Maracanã (AIAM) e o Centro de Referência da Cultura dos Povos Indígenas, com estatuto e eleição de sua diretoria, podendo representar legalmente as questões indígenas no estado e no país. Vale lembrar que a “ocupação” indígena teve seu início no dia 20 de outubro de 2006, com 35 representantes de 13 etnias indígenas: Pataxó, Krahô, Guajajara, Krikati, Tukano, Apurinã, Xavante, Tikuna, Mayuruna, Tabajara, Karajá, Guarani e Potiguara, que ocuparam o casarão que outrora abrigou a sede do Museu do Índio. A ideia da ocupação surgiu no I Encontro dos Tamoios, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), uma reunião de representantes de várias etnias com o objetivo de discutir as questões a elas relacionadas. Muitos índios já divulgaram suas culturas em escolas, palestras e em feiras de artesanato. O fato de o antigo prédio do Museu do Índio ficar ao lado do Estádio do Maracanã, tendo em vista os grandes eventos internacionais na cidade do Rio de Janeiro como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, podese imaginar o tamanho do problema institucional, até hoje não solucionado totalmente e gerando conflitos no decorrer do tempo. Atualmente, os indígenas continuam reivindicando o restauro e a revitalização do espaço e que o governo do estado tome as devidas providências, como prometeu. Até agora, o restauro do prédio não foi iniciado. Muitos movimentos aderiram à causa da Aldeia Maracanã e compactuam na luta das causas indígenas no país.

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Antes ocas de palha, hoje teias de concreto

Carolina Camargo de Jesus Professora graduada em História pela Universidade Federal Fluminense/UFF

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ouro admirado nos afrescos das inúmeras igrejas existentes na América Portuguesa foi encontrado em terras nativas. Portugueses cobiçosos, ou peris, como eram chamados pelos índios, adentraram o litoral baiano e extraíram o precioso minério brasileiro. Ao retornar para a Europa, a Coroa Portuguesa logo encomenda aos artistas e artesãos da corte que transformem este ouro em beleza e requinte na arquitetura das igrejas, palácios e utensílios domésticos. Na arquitetura colonial observamos a convivência entre o português e o índigena, o cristão e o pagão, o concreto e o sapê, o ouro e a madeira, os azulejos e os sopapos. Dois mundos, duas culturas, duas formas, que no aprendizado da colonização ergueram as inúmeras construções brasileiras. Neste trabalho, queremos compreender como convive este bocadinho de Tupi com o outro bocadinho de São Sebastião. Quando vejo a cidade do Rio cheia de contornos cosmopolitas com elevados, portos, pontes, viadutos, preenchida de sentidos urbanos e civilizatórios, encontro uma cidade que, como tantas outras, simplesmente cresceu à beira de um rio. Estamos iniciando o encontro com a história da cidade do Rio de Janeiro pela perspectiva do século XVI, a partir das fontes oriundas dos relatos dos viajantes, cronistas e missionários que por aqui passaram e deixaram muitas contribuições para a historiografia criar as imagens do momento da chegada ao litoral da América colonial. No meio das teias de concreto, encontrei um rio de ocas de palhas e descobri que esse passado colonial está soterrado pelos silêncios e endurecido pelo rigoroso concreto. São duas cenas que surgem, a que pertence ao campo do primitivo/indígena e a que pertence ao universo contemporâneo do mestiço/urbano. Foi massacrada a memória dos ancestrais originários desta terra, vivendo apenas como imagem de um passado colonial ou ganhando atuação histórica como peça de acervo dos museus nacionais. Ora, as duas imagens do Rio colonial e do Rio contemporâneo convivem na memória da apoteótica cidade cheias de encantos mil. Elas se opõem, dialogam entre si, disputam os lugares da memória oficial e da memória real, uma imagem distorce a outra. São questões que brotam nas entrelinhas deste tecido orgânico urbano que está aí montado para todos desfrutarem, cheio de destroços e ossos que ajudam a dar vida ao movimento que fazemos em busca da cidade do amanhã. Essas imagens que aqui estamos apresentando são desafiadas a conviverem lado 64


a lado, e nos fazem pensar que isso é possível sim. É só pensarmos no desejo harmônico do ensejo do Carnaval traduzido nas mãos de um povo que “antropofagiza” suas dores e as transforma em alegorias de Carnaval. É fugaz olhar para o Rio e não conhecer as bases que assentam esta cidade que cresce, vive, luta e morre sobre a memória dos ancestrais originários desta terra. Dar as costas a esta parte de nossa memória significa ter a mesma postura dos autores do descobrimento. Apresentar a história da cidade somente através da perspectiva colonizadora é ter os olhos voltados para um mesmo ponto durante um longo período de nossas memórias. Para darmos passos rumo ao novo e ampliarmos nossos horizontes, precisamos reconhecer e respeitar as bases — mesmo que estejam submersas — de nossa memória carioca. Quando as populações indígenas que que aqui residem encontraram o antigo prédio do Museu do Índio, em 2006, o mesmo estava em ruínas. Descobrimos, através de documentação oficial, que este local, que já abrigou a antiga sede do SPI —Serviço de Proteção aos Índios, também abrigou o Marechal Rondon, precisamente na época em que o indigenismo estava surgindo sob novos olhares — oriundos das novas produções da antropologia francesa. No período entre as décadas de 1960 e 1970, o Museu do Índio, com a participação de populações trazidas das aldeias para se incorporarem às pesquisas científicas semeadas pelas ideias de Darcy Ribeiro e Marechal Rondon buscou ser um laboratório de estudos indígenas, e como seria um museu de caráter indígena dentro do contexto da sociedade moderna e industrial. Darcy Ribeiro, assim, abriu inúmeros horizontes para os povos indígenas brasileiros, sendo um deles o espaço físico, que ficou denominado então como o Museu do Índio. Um dos objetivos, como podemos perceber no texto a seguir foi dar ao índio o direito de ocupar o espaço urbano, posicionando a cultura indígena junto da civilização urbana. A década em que este espaço foi pensado é marcada pela Comissão Rondon, quando grandes intelectuais, como o próprio Ribeiro, lutaram ao lado dos índios pela demarcação de seus territórios. O Museu do Índio, mantendo a orientação que lhe foi originalmente traçada, de desmascarar os preconceitos mais correntes sobre os índios, pela contraposição de fatos que patenteiem sua falsidade, prestará um serviço educativo de valor inestimável. Tanto mais porque este resultado é obtido sem qualquer deformação, até ao contrário, dando maior realce àquilo que é realmente característico na vida diária dos índios, na luta pela subsistência, no convívio de família, nas atitudes para com as crianças, na sua alegria de viver e na vontade de beleza que exprimem em todas as suas obras (RIBEIRO, 1962, p.170). Atualmente, vivenciamos esta luta dentro do espaço físico do que hoje é o antigo Museu do Índio, local idealizado por Darcy Ribeiro e movimento dos povos originários. Lutamos a cada dia para que seja oficialmente dos povos indígenas. A característica marcante do local, atualmente, é que ele existe como espaço de resistência e preservação da cultura indígena na cidade do Rio de Janeiro e é fruto do encontro de diversas etnias que habitam o litoral brasileiro e que têm como propósito defender, preservar, educar, cuidar, viver e ressignificar a memória indígena dentro de um espaço urbano. Povos da “Pindorama” orientam-se pelo princípio da ancestralidade, e este princípio é transmitido nos rituais sagrados que buscam o retorno às origens (ELIADE, 1969). A epistemologia cosmogônica presente na cultura indígena nos ensina que o ato de retorno à terra dá sentido à luta pela defesa dos territórios tradicionais. Buscar um espaço dentro da cidade do Rio de Janeiro para apresentar a cultura e a educação indígena sob a orientação político-pedagógica das próprias populações de índios é manifestar novos saberes e práticas históricas dentro do contexto urbano. As populações indígenas orientadas pela força ancestral das populações atingidas pelo grande massacre no período da conquista dos territórios da Guanabara, no ano de 2006, se uniram e se dispuseram a 65 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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recuperar junto às autoridades o prédio do museu na sua arquitetura original. Ao lado da edificação os indígenas fincaram suas toras e palhas para também recriar suas próprias edificações. Assim identificamos que o retorno dos indígenas aos territórios tradicionais trouxe novos questionamentos e abriu um leque de novas produções que buscam dar respostas aos novos anseios que estão ressurgindo neste século XXI, a partir das vozes oriundas do movimento dos povos originários no âmbito nacional. Reflexões que foram surgindo durante a escrita deste trabalho: por que só temos a versão eurocêntrica da fundação da cidade do Rio de Janeiro? Onde se encontram as vozes dos sujeitos que são os filhos de Uruçu-mirim? Os indígenas que hoje habitam o local produziram um material para registrar este momento, para eles com um grande significado histórico. O antigo Museu do Índio foi ocupado no dia 20 de outubro de 2006 por 35 indígenas de 13 etnias diferentes como forma de resgate dos Direitos dos Povos Originários do Brasil. O prédio, de propriedade do Ministério da Agricultura, estava abandonado e em ruínas, a intenção era reformá-lo e transformá-lo num centro de convergência educacional, de preservação e difusão da cultura indígena. (Texto produzido pelo 1º Seminário Índios em Contexto Urbano, em 2009). Identidades pessoais e identidades coletivas

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O ato de ocupação de um determinado território não é realizado de forma aleatória, isolada ou desprovidade significados e sentidos para a organização cultural indígena. Acompanhamos a ocupação do prédio do museu desde os primeiros passos, como a entrada, a limpeza do terreno (que estava completamente abandonado pelos autoridades responsáveis), os rituais com pedido de proteção, a reunião oficial de legitimação do ato, as festas de reinauguração do espaço até a construção de novas edificações típicas das etnias presentes na ocupação. Todo este caminho representou, para as etnias participantes, uma recriação da cultura indígena inserida na dinâmica moderna, industrial e capitalista na qual se vivencia uma outra temporalidade. As populações indígenas chegaram neste novo espaço com o propósito de estabelecer diálogos e laços com a população não indígena, com a sociedade que se urbanizou. Esta sociedade pode aprender com as comunidades indígenas uma forma de resgatar um modo de viver mais simples e se despir de alguns preconceitos, problematizações e distanciamentos que marcaram a identidade brasileira durante séculos, nos quais o índio foi, e talvez ainda seja, concebido como o bárbaro — aquele desprovido de humanidade e que, portanto, deve estar longe da civilização. No entanto o índio conseguiu progredir e eliminar as formas e as estruturas do atraso, inclusive como modo de preservação de sua cultura. Este caminho poderia ser avaliado como um diálogo entre formas diferentes de viver através das diferenças culturais. A partir de alguns relatos indígenas que habitam o local, este seria um mecanismo para romper com esta prénoção. É um desafio que para as populações indígenas que buscaram o contato com os sujeitos urbanos: estes têm em seu inconsciente coletivo a presença indígena adormecida ou deformada pela educação, a qual lhes ensinou a olhar o índio como um estranho e, em alguns casos, como inimigo do progresso. Um embate surge quando estas populações negam o papel de submissos, tutelados, selvagens, desprovidos de fé, isolados do espaço da cidade e enfrentam os preconceitos forjados pela cultura dos ditos civilizados. É uma forma de reencontrar e preservar as suas tradições. Por isso, conhecer a maneira como as populações indígenas, que foram citadas na nossa parte introdutória, caminham e se organizam no tempo e no espaço, mesmo que na dinâmica do caos urbano, é fundamental para o crescimento do brasileiro urbano na crise do século XXI. Através da comunicação vivenciada junto das populações indígenas, podemos perceber como o seu caminho é pensado, planejado e realizado coletivamente e, desta maneira, podemos concluir que


são etnias que se pensam enquanto nação, como um todo, como um organismo único, no qual as individualidades nascem para compor um tecido coletivo, coeso e com uma organicidade capaz de estabelecer uma comunicação saudável, em que as diferenças são postas em segundo plano quando a ordem é lutar pela terra. Os indígenas pertencentes às diversas etnias de todo o Brasil buscam, no espaço do Maracanã, resgatar aquele elemento comum deixado pelos ancestrais do território da Guanabara, em um movimento de ir até o passado para viver o presente. Isto é comum para as populações que se baseiam no princípio da ancestralidade, princípio norteador dos povos originários brasileiros. Deste modo, o indígena é livre para recriar o seu valor, sua moral, sua ética, sua concepção de mundo, sua educação e sua cultura, sem ter de recorrer aos trajes da civilização que os doutrinou nestes anos todos. Percebemos que a presença indígena no contexto urbano provoca, junto à sociedade moderna e industrial, um grande debate, considerando-se as diversas opiniões acerca do índio: muitos pensavam que os índios já foram extintos, outros acreditam que o índio só deve ocupar os espaços afastados da civilização, outros, que os índios são incapazes de viver na cidade, já que não acessam os códigos e leis que regem a vida citadina. Como vemos, o índio é tido como incapaz, infantil, coitado, selvagem, fortalecendo a ideia de que ele é submisso aos “civilizados”. São problematizações e preconceitos que provocam um distanciamento entre o urbano e o indígena, no momento em que este livremente busca o espaço da cidade para nele criar novos significados. Um espaço que suscita nas identidades pessoais e nas identidades coletivas novos questionamentos e significados, na medida em que se buscam os territórios originários. Aí são encontradas as próprias identidades, memórias e principalmente as histórias que nos são fontes vivas de um passado que tem 500 anos de luta e que forja os espaços de memória dentro da cidade do Rio de Janeiro. Índios, também personagens da história dessa cidade, que buscam reinaugurar espaços, linguagens e caminhos que possibilitem seu encontro com o homem urbano. E que este possa ter um encontro consigo mesmo e com sua história, sem os rótulos preconceituosos que impediram o conhecimento de sua própria história pessoal e coletiva. O sonho de reconstruir o universo indígena, dado como morto, silenciado e desaparecido com a vitória dos portugueses no processo de posse do território batizado por Rio de Janeiro, ressurge do vale das cinzas, das ruínas, dos destroços e se ergue com justiça e braços fortes dos Pataxó, Xavante, Guajajara, Tukano, Karajá, Potiguara, Apurinã, Puri e outras etnias que, reunidas, realizaram a construção das edificações indígenas no espaço do Maracanã — local sagrado para a etnia Tupinambá, onde cada tora de árvore, cada pedaço de palha foi sendo tecido e erguido por guerreiros e guerreiras no ato de retomada dos territórios tradicionais, assim chamados pelos populações indígenas participantes deste momento. O índio na linha do tempo histórico Acreditamos ser importante o debate sobre os espaços originários, tema que provoca um diálogo com a noção que temos sobre o tempo, já que as noções de espaço e tempo compreendem os fundamentos básicos do saber-fazer História. Inserir a temática indígena dentro dos espaços que ritualizam a dinâmica da oficialidade significa trazer oss índio para a esfera da nação brasileira, e não simplesmente tratá-los como estranhos e alheios que devem ser tutelados, por serem diferentes do que se apresenta como “civilizado”. Quando mostramos nossa linha do tempo histórico em sala de aula, temos como principais fatos históricos: presidentes que inauguraram as chamadas eras, guerras do velho mundo, revoluções e regimes ditatoriais, porém, não incluímos em nossa linha do tempo a história das lutas dos indígenas brasileiros. Como dizia Varnhagen, de tais povos na infância não há História; há só etnografia (VARNHAGEN, 1978, p. 30). Esta afirmação paralisou as análises sobre as populações indígenas, impedindo-nos de tirar o índio do pasEstética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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sado colonial como sujeito bárbaro e suprimido com o processo de conquista e colonização. Tal visão, de fato, estagnou as pesquisas no âmbito da história. Quando não consideramos suas lutas como fatos históricos, estamos na realidade tratando-os como sujeitos desprovidos de história e, portanto, de memória. Por isso, se faz necessária uma intervenção constitucional que nos “obrigue”, enquanto educadores, a incluir em nosso planejamento pedagógico os atores que tiveram suas memórias enterradas para que, desenterrando-as, possamos preencher as verdadeiras lacunas na linha do tempo que apresenta a história do povo brasileiro. Quando introduzimos em nossa linha do tempo os fatos históricos que apresentam as lutas dos povos indígenas, não estamos dando as costas ao nosso próprio espelho e sim, estamos demonstrando a importância de se apresentar os sujeitos que tiveram suas vozes silenciadas por quem escrevia a “verdadeira” história dentro do processo de luta. Outro aspecto que pensamos ser de suma importância para o que será abordado na temática indígena em sala de aula: devemos enfocar produções acadêmicas ou as produções do movimento indígena nacional ou simplesmente o diálogo estabelecido entre ambos. Assim, cabe a pergunta: como os educadores selecionam as fontes que serão abordadas em sala de aula, espaço formador e produtor de conhecimento? Abordar a temática indígena em sala de aula permite criar novos diálogos com a história colonial produzida até os dias atuais e que está, a todo momento, em diálogo com os anseios, questionamentos e novas problematizações que produzirão, num futuro próximo, novos parâmetros curriculares. A produção da memória oficial pela História tradicional seleciona como sujeitos da história os atores dominantes que provocaram um etnocídio na literatura produzida com o ato de conquista, e este fato fez com que os índios não fossem incorporados à memória oficial como sujeitos da História. Chegaram à baía de Guanabara em janeiro de 1565 e no istmo da península de São João, ao pé do morro depois chamado Pão de Açúcar, Estácio de Sá construiu o seu arraial. Em 1º de março levantou-se a cerca que constituiu o núcleo da cidade e foi chamada São Sebastião, em lembrança do Rei de Portugal. Estácio de Sá tomou as medidas administrativas necessárias à fundação da cidade mas o núcleo não passava de um pequeno arraial que por longo tempo, sobreviveu bravamente aos ataques cotidianos de Tamoio e franceses dos arredores. Em 1567, chegou a armada de Mem de Sá e Cristóvão de Barros para auxiliar o pequeno núcleo e em 20 de janeiro ocorreu o violento combate que deu aos portugueses a vitória e a conquista do forte de Uruçumirim, importante reduto dos inimigos. (SILVA, R.M., 1996, p.8-30). Percebemos que a descrição do ato de chegada até o ato de conquista de Uruçumirim revela como este fato contribuiu para o nosso mito de fundação, e como tal evento produziu um discurso e arquitetou nossa memória e nossa retórica sobre a história de fundação da cidade do Rio de Janeiro. Porém, em nossa análise não basta apenas acreditar que a História desta cidade só pode ser contada e lida a partir dos relatos que mostram a vitória dos portugueses sobre o Tamoio, ou seja, apresentar na sala de aula uma única visão sobre os fatos. Se apresentamos a linha do tempo que traça o horizonte do período do descobrimento apenas desse ponto de vista, não permitindo que outras versões e sejam reveladas, cremos estar cometendo, com esta omissão, um equívoco metodológico sobre os fatos que envolvem a fundação da cidade do Rio de Janeiro. Compreendemos que cabe ao educador buscar, nas fontes, as vozes dos guerreiros e guerreiras que lutaram também por esta cidade. Na busca pelas vozes dos ancestrais da etnia Tupinambá, que habitavam o solo da Guanabara até a metade do século XVI, encontramo-nas nos registros deixados pelo viajante e também membro da tripulação de Villegagnon, Jean de Léry (1972), que buscou empreender o projeto da França Antártica no território próximo à baía de Guanabara. Como fonte histórica, Jean de Léry nos deixou um diálogo que estabeleceu com a população Tu68


pinambá. Em seu livro Viagem à terra do Brasil, ele descreve os hábitos e costumes destes índios. Vamos aqui apresentar um trecho deste diálogo, precisamente o momento em que Léry pede ao Tupinambá que descreva o local onde está situada a sua aldeia: Francês - Mamópe nde reta? Onde está é a tua moradia? (Aqui ele se refere à residência.) Tupinambá – Kariók, Uyrá-uasú–oé, Josy-yrasík ou Joeyrasík, Pirakã-iopã, Eirajá, Itanã, Tarakuirapã, Sarapoy. Keriý, Akaraý, Kurumuré, Itaók, Joararuã. Takuarusutýba, Okarantín, Sapopéma, Nurukuy, Arasatyva, Ysypotýva. (Estas são as aldeias ao longo da praia, entrando no rio de Geneure (Janeiro), à esquerda, indicadas por seus próprios nomes; não sei de tradução ou sentido que possam ter). (Estas são as aldeias sitas à margem direita do referido rio). (Estas são as maiores aldeias, dentro da terra, tanto de um como de outro lado do rio). Há várias outras das quais poder-se-á ter amplo conhecimento por intermédio dos naturais, bem como os chefes, reis presumíveis, que nelas moram, e, conhecendo-os, julgá-los. (LÉRY, Jean de, 1972, p.227). Neste trecho, o Tupinambá apresenta ao francês todos os nomes que referenciam o lugar onde a residência está situada. No trecho abaixo, indicará ele onde fica a sua residência: F – Mamópe setã? (Onde é sua moradia?) T– Kariók–pe. Em Carioca. ( Este nome é o de um pequeno rio próximo, que assim se interpreta: casa de Kariós; composto desta palavra Kariós e de ók, que significa casa. Tirando o s e adicionando ók, dará Kariók. O pe (be) é partícula de ablativo que indica o lugar pelo qual se perguntou ou aonde se deseja ir) (LÉRY, Jean de, 1972, p. 227-228). Com o diálogo apresentado acima, podemos imaginar a cordialidade estabelecida entre Jean de Léry e o Tupinambá. Léry “conhece” a cidade do Rio de Janeiro através do olhar do indígena quando este revela o local que abrigava a sua aldeia. Pensar o passado colonial brasileiro é um mergulho que fazemos nas raízes que nos mantêm vivos. O que foi cristalizado sobre a memória colonial brasileira, acerca da temática indígena, apresenta o índio como um tema que está encerrado no passado colonial, e lutar contra este ponto final posto sobre o falso descobrimento do Brasil é uma batalha travada contra a força dos autores do descobrimento. Na trilha dos museus Ao longo da pesquisa, fomos até as urnas funerárias do acervo do Museu Nacional na cidade do Rio de Janeiro. Conhecemos o pouco que restou de patrimônio material do povo Tupinambá — materiais estes encontrados em Araruama, município da região dos Lagos no estado do Rio de Janeiro, lugar sagrado para os povos que habitavam a região. O material arqueológico guarda uma pequena parte da memória das populações que habitavam o território da Guanabara no ano de 1552, período anterior ao grande massacre de 1580, fato este que exterminou grande parte da população Tupinambá. Iniciamos nossa pesquisa de campo pelos materiais arqueológicos, com o intuito de conhecer e sentir o que existe de memória sobre as populações do território da Guanabara do século XVI. A partir de então, surgiram algumas inquietações sobre o que temos de registro histórico destas populações, e ficamos atentos a este fato. Ao tomar notas durante o trabalho de campo fomos interpretando simbolicamente aqueles registros históricos encontrados no momento da escrita deste trabalho. Em seguida, fomos até o Museu Histórico Nacional, localizado na praça XV, a fim de encontramos o acervo lusitano do período da colonização do Brasil, ou seja, fomos em busca do que é exposto aos olhos do público sobre a memória de quem nos colonizou, e encontramos as armas usadas na guerra aos “povos sem história”. Espadas cravejadas de pedras preciosas, fuzis, canhões e todo um arsenal bélico à disposição do visitante 69 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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do lugar que queira conhecer o passado colonial, saber quem foi o vencedor, logo, quem foi o vencido. Os símbolos narram a história e ficam no nosso inconsciente como a imagem daquilo que devemos guardar na nossa memória, isto é, o que fomos encontrando neste caminho percorrido pelos museus alimentou bastante o imaginário de um visitante desapercebido que forjou em seu pensamento as imagens da luta pela fundação desta cidade maravilhosa, e concluímos, então, que é desta maneira que se forma a memória oficial. Podemos então notar que é nos museus cariocas que estão guardadas as diretrizes que selecionarão os símbolos históricos da nossa pátria mãe gentil. Acompanhar o descobrimento do Brasil pelo olhar e pela interpretação dos missionários, cronistas e agentes do governo colonial é testemunhar o nascimento de uma nação sem poder conhecer a mãe. Apenas uma raiz é apresentada na memória oficial, e a outra é deixada no espaço do silêncio. Um testemunho que nos leva a refletir sobre a seguinte questão: qual a contribuição dos registros do século XVI para a nossa história? Sabemos que houve um etnocídio em nossa trajetória histórica, e remexer nesta ferida provoca dor, espanto e uma forte necessidade de superarmos estas marcas históricas. Cremos ser um dos papéis da historiografia, que se ocupa desta temática, refletir sobre tal questão, a fim de superarmos algumas injustiças deixadas pelas lacunas das fontes produzidas no calor dos acontecimentos do século XVI. Quem traz uma enorme contribuição para o campo da etnografia histórica é Cristina Pompa, que manifestou, em sua recente tese de doutorado, a necessidade de remexer e revisar a história da América colonial: Lançando mão de fontes inéditas e de uma releitura cuidadosa de documentos já conhecidos, pesquisas recentes estão procurando reescrever a história colonial da América indígena, mostrando, ao contrário, um mundo de rápidas mudanças, de adaptações, de negociações, de construções permanentes de identidades no interior do quadro político extremamente instável. (POMPA, 2003, p.22). Nesse trecho, apresentamos a necessidade da autora de buscar novos horizontes e novas abordagens na temática da América indígena. Ela aprofunda o debate apresentando novos autores como Neil Whitehead (1993), Gerald Sider (1994), Steven Stern (1992) e Jonathan Hill (1996), que apontam para um novo paradigma da leitura sobre a conquista da América indígena. O furacão de questionamentos, revisões e novos olhares acerca dos atos de conquista e colonização da América indígena têm como centro, para interpretação dos fatos, as vozes do movimento indígena das Américas, já que para nós são estas vozes que fazem nascer o que aqui estamos chamando de “furacão”. São as necessidades e questionamentos oriundos do movimento social indígena que nos movem a produzir este trabalho e, no caminho, ocorreu o benéfico encontro com as análises propostas por Cristina Pompa, que as elaborou dentro do olho do furacão que surge neste início do século XXI, junto do anseio ancestral de luta pelos territórios indígenas. Está presente, em nosso tempo cíclico, os sentidos da História que tecemos a cada dia. Na cosmovisão dos povos indígenas, o tempo tece os seus ciclos, e podemos compreender que o movimento é em busca dos ancestrais que vivenciaram a batalha que originou a fundação da cidade do Rio de Janeiro. É necessário para que possamos compreender a história fundamentada nas duas visões dos fatos. Acreditamos ser fundamental a interpretação do indígena sobre o passado colonial brasileiro, como bem atentaram Viveiros de Castro e Carneiro da Cunha (1993), quando abordaram a forma indígena de construir a história, através da sua cosmovisão e da sua temporalidade cíclica. São os povos indígenas que sentem, a cada dia, o preconceito, a discriminação e as injustiças presentes na memória oficial.

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O índio como bárbaro A noção de bárbaro encontrada nas descrições dos missionários, viajantes e cronistas marca a imagem do índio brasileiro na perspectiva eurocêntrica que predominou na historiografia, mesmo após o fim da colonização. A literatura encontrada no século XVI, principalmente nas obras de Jean de Léry e André Thevet, nos ensinou a olhar o índio como o bárbaro ou selvagem, e este fato gerou um grande distanciamento entre índios e não índios. E, assim, o encontro entre “civilizados” e “bárbaros” inaugurou um mundo novo, o novo mundo que conhecemos até hoje, com imagens que ainda não podemos enxergar no espelho, sem passar pelos filtros dos nossos colonizadores. Vejamos como os povos indígenas são descritos e revelados ao mundo, no período do século XVI: É essa região, na parte mais bem conhecida e explorada (cerca do trópico brumal, ou mesmo mais além), habitada por povos maravilhosamente estranhos e selvagens, sem fé, lei, religião e civilização alguma [...]. Os selvagens vivem à maneira dos bichos, tais como os fez a natureza, alimentando-se de raízes e andando sempre nus, tanto homens como mulheres, pelo menos até que, ao contato dos europeus, se venham despojando, aos poucos, dessa brutalidade e vestindo-se de um modo mais conveniente (THEVET, André, 1944, p.175). Os selvagens também comem serpentes grossas como um braço de homem e longas de uma vara; mas vi-os, entretanto trazerem serpentes rajadas de preto e vermelho para casa [...] (DE LÉRY, Jean, 1972, p.100). No século XVIII, encontramos na literatura francesa de Montaigne, uma abordagem diferenciada sobre a questão indígena, e esta perspectiva permitiu enxergar o indío não apenas como o bárbaro ou selvagem, ou seja buscou conhecer a alteridade sob outro olhar. Mas voltando ao assunto, não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. (MONTAIGNE, M. 1980, p.101). No século XXI, percebemos uma busca por uma releitura da história colonial, desfazendo mitos, rompendo com determinadas perspectivas teóricas, trabalhando com a temática indígena para além do período colonial. Buscam-se por novas fontes que revelem com sinceridade e respeito a presença do índio na construção da história do povo brasileiro. Neste novo horizonte encontramos o trabalho de Cristina Pompa, que faz uma análise dos relatos dos missionários, cronistas e viajantes, buscando uma releitura destas vozes. Um segundo risco, mais sutil, é o de esquecer que os relatos refletem um processo de “tradução” em andamento; em outros termos, o “outro” descrito pelas fontes já está, na maioria das vezes há muito tempo, num processo de relacionamento com o “eu” ocidental, que é seu próprio “outro”. O que ele é e o que ele faz, ou seja, sua auto-representação, depende também do interlocutor, para quem a informação é dirigida e que, possivelmente, a solicitou (POMPA, 2003, p.27). Na introdução de seu trabalho, Cristina Pompa analisa, de maneira distanciada, as fontes produzidas nos relatos de viajantes, cronistas, missionários e agentes coloniais, não as inserindo em seu trabalho como verdades facilmente incorporadas nas análises histórico-antropológicas do processo de chegada dos homens 71 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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do velho mundo em territórios “bárbaros”. Perceber como as imagens que foram produzidas nas leituras e interpretações sobre a alteridade do ultramar foi fundamental para pintarmos, em nossa memória, o passado colonial e, principalmente, como o índio participou ou foi omitido dos fatos que forjaram a construção desta nação. Há nesses relatos inúmeras deformidades, silêncios, lacunas, interpretações preenchidas de preconceitos. Deste modo, faz-se necessário incluirmos as vozes dos sujeitos que foram impedidos de participar da construção do passado colonial brasileiro: Esta operação historiográfica, porém, deve ser conduzida à consciência das dificuldades inscritas no campo semântico (os textos missionários) apresentando uma dupla irredutibilidade: a temporal expressa na dicotomia antigo/moderno, e a expressiva, marcada pela oposição entre oralidade e escrita. Em outros termos, põe-se a questão da possibilidade e dos limites do uso das fontes escritas, produzidas pela cultura que se autopercebia como única legítima produtora de valores de civilização, na reconstituição da história das culturas orais, cuja voz foi silenciada e justamente pelo discurso do civilizador (POMPA. 2003, p.25-26). Portanto, aceitar o que foi construído como verdade acerca de como foi erguida esta nação, partindo apenas do discurso do civilizador é, em nosso entendimento, um pouco limitado para o campo históricometodológico que, neste novo século, busca ir além das memórias do ultramar e olhar bem para onde nossos próprios pés pisam e, com isso, possibilitar que encontremos as raízes que foram soterradas pelo silêncio. A ideologia brasileira quer o índio – e também o negro como um futuro “branco” dissolvido pela amalgamação racial e pela assimilação, na comunidade nacional. Entre os desejos, a ideologia e os fatos, medeiam, contudo, grandes distâncias, tão grandes que à propalada ideologia assimilacionista brasileira, com respeito aos índios, não corresponde uma atitude assimilativa (RIBEIRO, 1962, p.141). Conhecer e apresentar o passado colonial que mostra o índio despido de interpretações que sempre partiram do olhar do outro não é um movimento que fazemos em busca das originalidades, mas sim um respeito que admitimos para nós, futuros historiadores e educadores, devemos ter em relação à nossa cultura e principalmente às raízes. Deste modo, acreditamos ser fundamental a construção de um Museu Vivo de culturas vivas, como bem escreveu Mário Pedrosa, no qual as formas de apresentação da arte e dos elementos oriundos da cultura indígena estejam falando do índio vivo e sua realidade. É um desafio para as populações indígenas erguer e gerir um equipamento cultural, como um museu, pois não faz parte da dinâmica cultural destas populações a ideia de museu, pertencente ao mundo europeu. No entanto, por um processo de diálogo com a cultura e a arte do mundo europeu, as comunidades indígenas acreditaram ser importante de preservação da arte, seja a pintura, a dança, a música e a literatura, considerando que as manifestações próprias da arte indígena podem ser traduzidas dentro das linguagens próprias da cultura e da arte europeia.

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indígena. São Paulo, FAPESP, 1993, p. 9 -15. CHAUÍ, Marilena. Com fé e orgulho. In: CHAUÍ, Marilena. Brasil – mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo, Perseu Abramo, 2000, cap. 1. CUNHA, Manuela Carneiro da (org). História dos Índios no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, FAPESP, 2006, p.11. ELIADE, Mircea. O Mito do eterno retorno – arquétipos e repetição. Lisboa, Edições 70, 1969, p. 32-42. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo, Editora UNESP, 2000. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, Paz e Terra, 1996. HOLANDA, Sérgio Buarque de. O Descobrimento do Brasil. In HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.) História geral da civilização brasileira. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1960. vol. I, Tomo I, p. 36-37. LEHER, Roberto e SETÚBAL, Mariana (org.). O pensamento crítico e movimentos sociais: diálogos para uma nova práxis. São Paulo, Cortez, 2005. LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1972, p.100. LÉVI–STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70, 1993, p. 72-80. MONTAIGNE, Michel de. “Dos Canibais.” In: MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo, Abril Cultural, 1980, cap. XXXI, p.101. POMPA, Cristina. Religião como tradução – missionários, Tupi e Tapuia no Brasil colonial. Bauru, EDUSC, 2003, p. 21-31. RIBEIRO, Darcy. A política Indigenista brasileira. Rio de Janeiro. Serviço de Informação Agrícola, 1962, p. 169 -170. SILVA, Aracy Lopes da e GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A temática indígena na escola – novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília, MEC/MARI/UNESCO, 1995. THEVET, André. Singularidades da França Antárctica. São Paulo. Cia. Ed. Nacional – Brasiliana, 1944, p. 164 – 175. SHINER, Larry. La Invención del Arte –Una historia Cultural. Barcelona, Paidós, 2004 (2001).

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Parte II Ensaios: poética e estética

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Antonin Artaud: o homem-teatro vindo do Alhures

Bruno Cany Universidade Paris-8 Saint-Denis Trad.: Guilherme Werlang

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rtaud, que sobrevive a uma crise radical de desapropriação de si, revolucionou o teatro e subverteu o pensamento — não apenas o do teatro. Ele engajou o teatro e a poesia em uma revolução filosófica: o teatro não deve mais ser psicológico e sociológico, mas deve ser total e metafísico. Artaud se inscreve na filiação ao renascimento do artista-filósofo, iniciada por Kierkegaard e Nietzsche, no século XIX. Mas rompe com esses grandes antecessores, que continuavam a pensar o pensamento-artista sob o modo da música (herança pitagórico-platônica), e faz com que o teatro e o pensamento entrem na revolução visual da modernidade. Para ele, o teatro, que é a arte do pensamento visual, oferece à imagem uma concretude que as outras artes ignoram. O pensamento teatral elabora, assim, o homem dual, um misto de alma e de corpo, pensamento a partir do corpo; o homem hieróglifo, que se comunica com todo seu corpo (e não apenas com sua boca), e que é a interface entre o visível e o invisível humanos, divinos e cósmicos. A partir do Duplo, que corresponde, na cena, à carne, e que é a massa indistinta da alma e do corpo, base orgânica do teatro, e a partir da Crueldade, que corresponde, na cena, à linguagem, e que é a força que anima o Duplo e o faz produzir signos, Artaud elabora uma singular antropologia poético-metafísica. Quando os lugares do espetáculo não se apresentam mais a ele, o homemteatro se redobra sobre si mesmo, fazendo, de seu corpo, seu espaço teatral próprio. Ele descobre, então, que o corpo do homem-teatro é um corpo sem órgãos, um corpo livre das funções vitais que constringem o corpo fisiológico e poluem nossas vidas cotidianas. Mas, logo, sob a pressão de reiterados fracassos, a teatralidade nômade se desloca mais ainda, passando do homem-teatro ao teatro-poesia, cuja cena é a página de seus cadernos de estudante, onde o pensamento se “grafitiza”… Ora, esse pensamento fulgurante — e fulgurante através dos tempos ! —, que cresce de maneira exponencial, nutre-se de diálogos filosóficos transculturais: Esse pensamento experimental, em ruptura radical com a cultura ocidental, nutre-se de diálogos com os Alhures. De início, o antropológico, no caso da loucura, que o permite colocar em questão seu dualismo dialético; em seguida, os culturais, com a Antiguidade greco-romana, que lhe permite desdobrar sua concepção da cru75 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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eldade; com o Teatro balinês, que lhe revela a presença física da metafísica; e com as terras dos taraumaras, que o mergulha na eficácia performativa da magia… Palestra Antonin Artaud revolucionou o teatro e o pensamento: o teatro em sua prática e em sua teoria; o pensamento do teatro e, ademais, o pensamento da cultura. Por isso, praticou a pluridisciplinaridade — sua obra reúne poemas, peças de teatro, escritos críticos e teóricos sobre o teatro e o cinema, traduções, adaptações romanescas etc.— e participou da transcultura nascente: ele reinveste os trágicos gregos, descobre o teatro balinês e parte para o México, ao encontro dos taraumaras… Entre tudo isso, o “homem-teatro” não só desempenha todas as funções (cenógrafo, dramaturgo, comediante, decorador, estilista de roupas, teórico, redator de manifestos, crítico…), mas ainda, e sobretudo, vive o que pratica: Jean-Louis Barrault narra como, em um dia de 1933, quanto o encontrou na Coupole, o homem que tinha diante de si se identificava como Heliogábalo. Artista-filósofo, como antes dele o fora Xenófanes, ele não separa mais a arte da filosofia (poesia e pensamento, teatro e pensamento) do que separa a arte da vida e a filosofia da vida. O ponto de partida do trajeto fabuloso do pensamento de Antonin Artaud é que a loucura está em primeiro lugar em sua vida. Ela impõe-lhe que não espere reconciliação com o logos, o pensamento pacientemente elaborado pelo Ocidente, depois da Grécia antiga. E ela o leva a pensar, e a encontrar alhures, sua lógica própria, necessariamente paradoxal: será a da crueldade. Eu não quero abordar, aqui, essa questão essencial; mas é impossível não notar que a loucura é seu alhures original, lá de onde ele vem, antes que se dirija para outros alhures: o Oriente, o México… A revolução teatral que ele inicia se desenvolve na trajetória circular de seu pensamento: parte da escrita e retorna a ela, conforme uma evolução-revolução em três tempos. O primeiro momento, 1920-1927, concentra-se em torno do Teatro Alfred Jarry, fundado em 1926. Seu ponto forte é o teatro prático. Trabalhando, aliás, ao lado de Lugné-Poe, Jouvet, Pitoëff e Dullin, Artaud participa da renovação do teatro francês; mas tenta radicalizá-lo. O Teatro Alfred Jarry monta quatro espetáculos, que não totalizam mais do que oito apresentações. O segundo momento, 1932-1935, concentra-se em Le Théatre et son double (O Teatro e seu Duplo), publicado em 1938, em seu retorno do México. Seu ponto criativo é ser um teatro teórico (fundamento de todo o teatro experimental vindouro): Artaud tenta elaborar “conceitualmente” qual poderia ser esse teatro, realmente inovador. Sua finalidade permanece, todavia, prática. Ele monta Les Cenci — uma ilustração de seu teatro da crueldade —, que não terá mais do que 17 apresentações. O terceiro momento, 1947-1948, é duplo. De um lado, concentra-se em torno do fracasso de sua conferência no Teatro do Vieux-Colombier, em janeiro de 1947, e da interdição de sua emissão radiofônica intitulada “Para terminar com o julgamento de Deus”, em fevereiro de 1948. De outro lado, transborda-se, tal como a enchente de um rio, em dezenas de cadernos escolares, e, em particular, nos Cadernos de Ivry (fevereiro de 1947— março de 1948). É um teatro poético-filosófico. A teatralidade nômade, que passava de um teatro a outro, de um apartamento a uma fábrica abandonada (possibilidade vislumbrada no Teatro Alfred Jarry, mas que permanece eventual), naufraga em seus últimos lugares e, simultaneamente, descobrese “fora de lugar”, nas páginas de seus cadernos.

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1) O teatro Alfred Jarry Antonin Artaud se posiciona, aparentemente, no teatro, com os membros do cartel que ele monta, na poesia, com os surrealistas: ele quer participar ativamente dessas duas “revoluções” artísticas, mas descobre que elas não vão longe o suficiente e quer radicalizá-las; porque, ao menos no que nos concerne, aqui: Em primeiro lugar, o teatro não é um divertimento: ele engaja o homem por inteiro sobre as questões fundamentais. Arte e filosofia são modos diferentes de um mesmo questionamento. Em segundo lugar, o teatro não é mais anedótico: ele apresenta uma visão do homem no mundo. Ele rejeita a empresa textual e afirma o corpo hieróglifo. O pensamento de Artaud é profundamente dual. A dualidade estética maior, que se irradia através de toda a sua obra, é a da interdependência do teatro e da poesia. Mas essa dualidade enraíza-se na dualidade antropológica de alma/de espírito e do corpo. Essa dupla dualidade estético-antropológica está presente desde o início, em L’Ombilic des limbes (O Umbigo do Limbo, 1925) e nos textos surrealistas (do mesmo período). O que há de poético no teatro de Artaud assim como o que há de teatral em sua poesia encontram-se em dois textos-poemas particularmente exemplares: Le jet de sang (port. O jato de sangue, janeiro de 1925) e Paul des Oiseaux ou la Place de l’Amour (Paulo dos Pássaros ou a Praça do Amor, abril de 1924fevereiro de 1925). Em O jato de sangue, que é uma paródia de uma peça de Armand Salacrou, o teatro oferece ao poema um espaço (embora mental, i.é virtual): o da cena teatral. Espaço que ignora, ordinariamente, a poesia e que a poesia, o mais das vezes, ignora também. Essa cena oferece o arcabouço de uma imagem física ao poema. Em Paulo dos Pássaros..., de que nós conhecemos três versões, a matéria é a mesma que em Correspondance avec Jacques Rivière (Correspondência com Jacques Rivière, 1923-1924). É a do drama da reflexividade da consciência, mas, aqui, teatralizada. No verso de uma das folhas da segunda edição, Artaud anotara: “essa dissolução do pensamento e da alma, essa arborescência de ideias, de sentimentos, de gestos, que se esvanecem perpetuamente ao meu redor”. Para esse pensamento, que não consegue ser dono de si mesmo, a novidade (em relação à Correspondência...) reside na articulação de ideias, de sentimentos e de gestos. Pois é por essa articulação que ele pode teatralizar o paradoxo do pensamento. Em outras palavras, o teatro lhe permite repensar o teatro do pensamento. Em Correspondência com Jacques Rivière, Artaud afirmara, em primeiro lugar, a desapropriação de si. Sua “assustadora doença do espírito” abre-se para uma crise do espírito (que remete, é claro, a Hegel), que resulta, em consequência, em uma crise da arte. Aqui, trata-se da poesia que não pode mais manter o formalismo da individuação apolínea. Nessa ocasião, ele refuta a proeminência da alma e afirma o corpo, carnal e vitalista, no seio de um novo pensamento sobre a dualidade corpo/alma. Ao mesmo tempo que a problemática do espírito coloca um problema poético, a problemática da alma apresenta um problema metafísico. Ora, a crise poética do espírito é, distintamente, um problema físico, fisiológico até (assim os problemas psíquicos encontram sua objetivação em uma forma literária), enquanto a crise metafísica da alma é, distintamente, um problema ontológico (ôntico). Em consequência: a arte (a poesia) deve se assumir como informe na composição e como impura em seus componentes. O teatro poético lhe permite, então, se reapropriar, novamente, da velha metafísica do teatro do pensamento. Ora, o teatro filosófico — “teatro da verdade”, em A República —, é definitivamente elaborado em contraposição sistemática ao teatro trágico (ator maior, com a sofística do nascimento da democracia ateniense). Mas, no que nos diz respeito, Platão faz o pensamento passar de uma teatralidade trágica a uma teatralidade teórica, ao mesmo tempo que nos faz passar do pensamento visual, fisiológico (pensar é ver—como 77 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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um testemunho ocular—o divino antropomórfico) ao pensamento teórico (pensar é ver— mas com o olho do espírito— as formas abstratas). O teatro, como cenário, é o operador metafórico que vai permitir que o pensamento se pense pensamento e não mais visão. Que faça, portanto, um passo decisivo rumo à abstração. O olho (metafórico), ao se desengajar do corpo físico, oferece a condição necessária para a reflexividade vindoura… Na outra extremidade do arco da filosofia clássica, Nietzsche retorna ao teatro trágico. Mas, para ele, o teatro trágico é um teatro de palavras. Um teatro de filólogo. Sabe-se que Nietzsche não desistia de querer percorrer o caminho inverso do que o fizeram Sócrates e Platão: remontar, do pensamento socrático-platônico, ao pensamento heraclitiano, via Sófocles. Sua ambição é a de tornar possível o retorno ao pensamento trágico. E, ao mesmo tempo, paradoxalmente, não cessará de pensar o pensamento conforme os termos propostos por Platão, da apreensão musical do teatro da abstração. Ocultando a narrativa contextualizante, bem como a narrativa mítica (que são um dos segredos mais bem guardados da filosofia platônica), Nietzsche redescobre a força da metáfora no pensamento alegórico, que se opõe à impotência da analogia no pensamento teórico, e desenvolve uma concepção original da metáfora como ferramenta preconceitual e musical, em seu diálogo contínuo com a tragédia grega. 2) O teatro antigo Antonin Artaud, igualmente, retorna ao mundo trágico, o da tragédia grega e romana, de Heliogábalo. É o lugar de seu primeiro diálogo transcultural com o Alhures. É assim que, ali onde Nietzsche já reintroduzira o corpo (isto é, o corpo das sensações, que não é uma abstração), Artaud introduz o teatro não metafórico: com ele, o teatro do pensamento não é mais uma imagem virtual. É o do corpo que pensa e do pensamento que sofre. Em Manifeste pour un théatre avorté (Manifesto para um teatro abortado,T. II, 1927, p.28–33), Artaud nos confia que ele encontra no teatro antigo uma fonte de inspiração e que sua ambição é a de remontar às fontes humanas e inumanas do teatro e as ressuscitar totalmente. Esse é o ponto, tão revolucionário (em ruptura total com o teatro de sua época) quanto arqueológico (retornando ao que havia de vivo e de dinâmico no teatro antigo: a pragmática mágico-religiosa). O desafio moderno, entretanto, não repousa sobre os deuses, mas sobre os humanos. Seu projeto, também, é o de tornar visível o invisível humano: “Se fazemos teatro não é para representar peças, mas para conseguir que tudo o que há de obscuro no espírito, de enterrado, de não revelado se manifeste em uma espécie de projeção material real”. Para tornar aparente esse invisível aos olhos dos espectadores, é preciso não procurar provocar “a ilusão do que não é, mas, ao contrário, tornar aparente aos olhares um certo número de quadros de imagens indestrutíveis, inegáveis, que falarão diretamente ao espírito”. Ora, o que fala “diretamente ao espírito” (ideia recorrente, em Artaud) é o “invisível humano feito visível”. Os objetos, os acessórios, as decorações mesmo devem ser entendidos em um “sentido imediato”, sem transposição (algo como a tautegoria schellinguiana): “deve-se tomá-los não pelo que representam, mas pelo que, na realidade, são”. É impossível dizer melhor que o teatro é imagem concreta, e que a imagem é produção do pensamento. Três coisas aparecem, aqui: a) que no seio da revolução total, o pensamento-artista parou de se pensar música (apreendendo as sensações evanescentes) para se pensar imagem; b) que essa imagem pela qual o pensamento pensa é uma imagem concreta (apreendendo a própria matéria metafísica); c) que a imagem concreta, porquanto produção do pensamento, escapa ao incômodo do maquinismo, que ela é emancipação das máquinas e da tecnologia: que é o homem o Mestre das Imagens, não as imagens os Mestres do Homem! 78


O teatro não é a finalidade [do entretenimento], mas um “meio” (p. 34) para fazer advir a realidade inquietante e metafísica, isto é, para fazer advir uma imagem concreta do corpo invisível. Mas para poder conferir sua concretude ao teatro no pensamento, é necessário que o teatro (do pensamento) seja uma imagem. Ora, quem pensou a imagem do teatro do pensamento foi Giorgio de Chirico, em sua pintura metafísica. Foi ele o primeiro que levou o pensamento artista a abandonar a imagem metafórica do pensamento (quando se pensa), tal como ele é pensado, de Platão a Nietzsche, passando por Rousseau, depois Kierkegaard e Schopenhauer, em benefício da imagem concreta do pensamento. É a Chirico, pois, e não ao autor de Ecce Homo, que cabe a honra de remeter o platonismo a esse ponto essencial. Todavia, em sua Pintura Metafísica, como no teatro-poema de Artaud, o corpo, que perdeu sua abstração conceitual, permanece privado da substância, em virtude do fato de que a imagem figurativa das artes visuais permanece virtual. Assim, se o teatro poético permitiu que Artaud apreendesse concretamente o pensamento, resta a ele aceder a um teatro que oferece a seu corpo a substancialidade. Para isso, será necessário que ele desengaje o teatro, arte da imagem concreta, animada, das artes visuais, para integrar aquilo que, hoje, chamamos de artes vivas. 3) A descoberta do teatro balinês É em 1931 que Artaud encontra, concretamente, o teatro oriental: ele assiste a um espetáculo balinês na Exposição Colonial. É um espectador assíduo, assim como Henri Michaud. Em sua revolução total, empresa realizada a partir da elaboração de uma arte total em que o teatro e a poesia, a arte e a filosofia são indissociáveis, o encontro com o teatro antigo resultara insatisfatório, pelo fato de se tratar de uma arte do passado, uma arte não viva. Ora, se a arte permitiu ao pensamento redescobrir o pensamento-visão, e se o teatro ofereceu uma concretude a essa imagem, o pensamento novo deve, ainda, encontrar, simultaneamente, sua substancialidade, sua expressão metafísica. Em resposta à crise inicial do espírito (que engendrou uma crise da poesia e uma crise do espiritualismo), a tentativa de fundação do corporeísmo que dela resulta (“Eu cultuo não o eu, mas a carne, no sentido sensível da palavra carne”—Fragments d’un journal d’Enfer— Fragmentos de um Jornal do Inferno, T.I, 1926, p. 139) não se abriu para um materialismo que rejeitasse toda espiritualidade, mas para uma metafísica: “Colocar-me em face da metafísica que fiz para mim, em função do nada que trago comigo”. (ibid., p.136). De que metafísica se trata? É ali que está um dos eixos sobre os quais o pensamento de Artaud trabalhará até seu último sopro. E como praticar essa metafísica a partir de um pensamento que pensa por imagens concretas e substanciais ? É ali que o teatro balinês é, para ele, uma verdadeira revelação. É possível condensar assim os aportes do teatro balinês ao pensamento de Artaud. Em primeiro lugar, é um teatro do cenógrafo (e não do dramaturgo); é a realização da ideia do “teatro puro, onde tudo, concepção e realização, não vale, não existe senão por sua objetivação em cena” (T. IV, p.65). Em seguida, é um espetáculo total, onde em que a dança, o canto, a pantomima, a música concorrem para a realização de uma obra que não deixa nenhuma porção do espaço sem uso, e que coloca em ação “uma nova linguagem física, à base de signos e não mais de palavras”, e cujos atores são hieróglifos animados (ibid.). Enfim, é a confirmação de uma de suas velhas intuições, a saber, que o teatro metafísico é possível e que é mesmo a solução para sair do teatro psicológico e sociológico. É o choque dessa verdadeira subversão de valores que dá toda profundidade filosófica à luta contra o teatro dos dramaturgos: porque o espaço teatral oriental é um território do concreto, prenhe de signos. Ora, esses signos nos trazem aos olhos uma física para além da 79 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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vida cotidiana, uma física dos estados profundos do pensamento: uma física do invisível feito visível. 4) O teatro e seu duplo Em Le Théatre et son double (O Teatro e seu duplo), Antonin Artaud propõe duas imagens para repensar o teatro: a alquimia e a peste, a partir das quais ele redescobre o simbólico. A alquimia oferece ao teatro a eficácia não efetiva do simbólico que se abre ao pensamento, pois o teatro procura o ouro metafísico como a alquimia procura o ouro físico. Como a magia e o ritual, a alquimia permite que a imaginação seja tocada pelo real metafísico, enquanto os símbolos nomeiam “os estados filosóficos da matéria”. A peste oferece ao teatro um modelo de imagem paradoxal que, por sua associação inabitual, inesperada, subverte o espírito do homem e, ao subvertê-lo, o coloca em movimento. A peste é uma alegoria que retoma uma imagem concreta (factual e diversa — por onde se opõe ao conceito) sobre o plano simbólico. A alegoria permite a obtenção do abstrato a partir do concreto — sendo os símbolos as formas dessas transferências. O Teatro e seu Duplo procura tirar as lições dos achados que o teatro balinês oferece. Nesse livro, no qual Antonin Artaud elenca suas ferramentas, o teatro prova ser filosófico porquanto é o lugar da reunificação dialética das duas substâncias humanas. O Duplo, em cena, corresponde à carne, na vida. É um complexo indefinido de matéria e de espírito que o ator modela sobre a cena; o comediante não representa um personagem (representação de uma coisa em sua ausência), mas ele se oferece, tornado o invisível em visível: a carne de seu corpo. Essa carne, invisível na vida. Essa carne que, nos textos surrealistas, já era, para quem fora desapropriado de seu próprio pensamento, o lugar da reconquista de si. Essa carne que, desde essa época, abre-se a uma metafísica do ser e ao conhecimento da Vida, pois ele é a dupla-face espírito/sensibilidade. É o lugar do princípio. O Duplo é, então, essa massa indistinta de alma e de corpo que é a base orgânica do teatro. É a substancialidade que lhe fazia falta até aqui. O homem “carnal” opõe-se, então, ao homem “psíquico”: ele não é o outro termo da dualidade, exclusivo, por sua vez, como o fora, antes dele, o homem “psíquico”. Não; o homem “carnal” é o homem dual (esse misto de alma e de corpo) pensado a partir do corpo. Pensar incluindo o corpo na representação do pensamento. O corpo do homem carnal não é, pois, privado de psyché, ele não pode sê-lo. Senão, seria privado de humanidade. Reduzido a uma animalidade da qual nada o distinguiria. Se o homem ocidental pode ter um complexo de superioridade (uma alma transcendente), não pode ter um complexo de inferioridade (um corpo dominante, hegemônico). Ele não passará, então, por aventuras inversas às do homem cartesiano, que, tendo encontrado sua alma, faz esforços desesperados para a articular a seu corpo, que jaz do outro lado da vidraça. Ele parte, pois, da ideia de que aquela dualidade é estúpida, inoperante (vide Descartes) e que a ausência de síntese não se deve à doença, à loucura, e sim à não pertinência da própria dualidade. Ele parte, pois, de uma noção que não separa as substâncias alma-corpo: essa noção é o Duplo, matéria indefinida de duas substâncias, e ele volta ao teatro, à cena, e ao pensamento para nos oferecer esse Duplo, a dualidade reunificada (mas não não unificada, como em Heráclito) e amorfa que se trata de articular: o Duplo é uma massa indistinta de carne e de alma, um pré-corpo não individuado, base orgânica do teatro. Essa base orgânica é a massa a partir da qual Artaud quer produzir os signos, diretamente no espaço: gestos, jogos de luz, ruídos, cores, objetos. 80


Ora, uma força é necessária para articular a massa inorgânica aos signos extralinguísticos; é ela que move a base orgânica, e que ele nomeia crueldade. A crueldade é um nexo paradoxal que une a harmonia e a dissonância: é a “discórdia harmoniosa” dos corpos desarticulados dos atores balineses traçando no espaço as explosões sonoras e visuais do que poderíamos chamar de seus discorps (“discorpos”): entre corpo e discurso, dissonâncias e ressonâncias (GROSSMAN, E.). A crueldade é o correspondente teatral da linguagem: ela é o que faz o signo, o que move a massa orgânica e amorfa em um signo. Carne – Duplo Linguagem – Crueldade O teatro estabelece uma comunicação (signo), mas extralinguística (a linguagem não é mais do que um elemento físico (acústico): o signo não é figuração (representação), mas inserção (apresentação) no visível, e o homem torna-se, integralmente, um ser comunicacional. Ele torna-se um hieróglifo de uma comunicação que lhe ultrapassa. Pois “metafísico” quer dizer acesso a uma realidade cosmoteológica. Ela engloba tanto o ritual do espaço teológico quanto a magia do espaço profano. 5) A viagem ao México Os dois encontros precedentes, que são o Alhures greco-romano e o Alhures balinês, permitiram que Antonin Artaud compreendesse que a crise do teatro e da poesia com a qual ele se confrontava se inscreve, na realidade, em um crise da cultura europeia. Essa crise da cultura ocidental reside em sua falta de envergadura intelectual e seu fechamento em seu materialismo e seu racionalismo. Artaud compreende que o que propõe — de um lado, uma metafísica poética que recoloca em seu centro o homem, porquanto o que pensa para além do mundo físico, é aquele mesmo que tem os pés na terra; de outro lado, que esse homem, recolocado no centro da ontologia, não é um ser limitado pela individualidade psicológica— tem poucas chances de ser ouvido e acredita que o México, em virtude do estado de sua cultura, responderá melhor a suas expectativas. Quando de sua primeira conferência proferida no México, conclui assim, sem ambiguidade: “a cultura racionalista da Europa faliu e eu vim às terras mexicanas procurar as bases de uma cultura mágica” (T. VIII, p. 183). Segundo ele, a revolução mexicana reatou o espiritualismo com a matéria e com a autoalienação, ou seja, a inscrição do indivíduo no Todo da Sociedade, da Natureza, do Cosmos. Quanto ao pensamento mágico, é o pensamento pragmático da eficácia sobre os outros e sobre as coisas, da revelação do espaço metafísico. Ele tem razão, sem dúvida. O ocidente atravessa uma crise dupla do sujeito, com a despersonalização e a autoalienação: A despersonalização, que é um problema de identidade, a resposta à “quem sou eu?” não consegue se fixar. Henri Michaux (com Qui je fus ? - Quem fui eu ?, 1927, e as grandes obras sobre as drogas) e Fernando Pessoa (com seus heterônimos) são os dois grandes criadores contemporâneos da despersonalização. O problema é o do corpo exterior: o invólucro corporal (o corpo físico) não consegue mais aparecer como lugar da síntese orgânica da alma e do corpo. O corpo não é mais continente. A autoalienação, que é um problema de essência, a resposta à questão “que é o que eu penso ?” não consegue mais fixar. Não há qualquer problema de identidade, aqui. Artaud não tem nenhuma dúvida sobre a capacidade de seu corpo oferecer o que ele é. Sua dúvida jaz em sua capacidade de aceder ao que ele é. É um problema do corpo interior: o invólucro (o corpo físico) consegue, sem dificuldade, assegurar a presença de “quem eu sou”; em Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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compensação, não há segurança de que essa (a minha) presença consiga assegurar a do invisível que está em mim. A despersonalização é, sobretudo, um problema do escritor: este vive mil vidas, graças à empatia. De repente, ele percebe (pode ser que perceba) que não sabe mais se seu corpo, como síntese orgânica, tem meios para assegurar sua identidade, ao passo que a autoalienação, ao menos a que Artaud vive, parece, antes, um problema do comediante. A identidade é assumida pela síntese orgânica. Em compensação, não se diz que essa identidade consegue se reintegrar, isto é, tornar visível o invisível que assegura sua coerência e sua conexão à cosmoteogonia. Quanto à terra dos taraumaras, ela lhe oferece “um pouco de[ssa] realidade” que ele busca desde seu ingresso na arte. Sua viagem é a travessia de “um mundo de signos sagrados, de poesia e de teatro em estado puro”, na qual o que lhe interessa, em primeiro lugar, é o encontro com o que ele já escrevia em Héliogabale (Heliogábalo), a saber, o encontro com a força ritual da nominação. Essa eficácia performática, que ele encontra, portanto, nos ritos verbais, é exatamente o que procura ressuscitar na cena do teatro, e da qual falara em Lettres sur le language ( Cartas sobre a linguagem), de O Teatro e seu duplo. Para Artaud, a escritura poética funda-se no fato de emprestar às palavras sua energia material, sua força de projeção no espaço, sua possibilidade de perturbação física. Voltar às fontes plásticas e ativas da linguagem é, então, reencontrar a potência da eficácia simbólica que os feiticeiros taraumaras conferem a seus fetiches ou a seus talismãs (GROSSMAN, E.). O teatro será, então, mais e mais poético, e a linguagem, que permanecerá presa à comunicação extraverbal, mais e mais central em sua concepção teatral. 6) O teatro poético-metafísico

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Esse terceiro e último momento de elaboração teatral, conforme dissemos, articula-se em torno de dois conjuntos: o de um teatro poético para além do teatro. Seu ponto forte é o teatro metafísico do corpo sem órgãos. Ele oferece textos prontos e remete a uma teatralidade nômade. Antonin Artaud, o homemteatro, permanece aquele ator cujo corpo medeia o pensamento entre nós. O fato de que, desde sempre, Artaud arrisca sua vida na vida e dramatiza ao extremo a articulação do teatro à vida. Entretanto, a teatralidade nômade vislumbrada por ele desde a origem não é jamais um impasse total conducente ao abandono de todo o projeto teatral. Já após o fracasso do Teatro Alfred Jarry, ele respondeu com o “homem-teatro”: a realização do teatro nele, esse ser da união entre o homem e o ator que se torna fusão do homem-ator e do espetáculo em seu conjunto. E é ainda o caso, na conferência proferida no Vieux-Colombier. É certo que ele é absolutamente subversivo, porquanto perde seus meios: gagueja, deixa cair seus scripts... absolutamente patético ! E no entanto, é também para ele a ocasião única de expor sua arte teatral nova. A despeito do fracasso, André Gide notou bem que é seu personagem que Artaud oferecia ao público: a um só tempo, de um histrionismo sem-vergonha e de uma total autenticidade. A oferecer um “espetáculo” relevante do Teatro da Crueldade, tal como ele estava a revisitar e para o qual iria logo compor um novo “manifesto”. Muitos anos antes, Anaïs Nin anotara em seu diário, a propósito da conferência que Artaud proferira na Sorbonne sobre O Teatro e a Peste, que, de maneira imperceptível, ele abandonava o fio de seu discurso e se punha a representar alguém morrendo de peste. Para ilustrar sua conferência, representava a agonia. Ninguém percebeu quando tal começara, nem como, mas as pessoas prenderam a respiração. Depois, pouco à vontade, começaram a rir… Então, Antonin Artaud representa no teatro, mas também em sua vida e durante suas conferências. Ele representa seu teatro da crueldade: sua vida projetada na cena. A vida metafísica, em que é apreendido o


princípio que coloca em movimento a massa orgânica amorfa dos signos. O movimento não é simplesmente um dinamismo físico; é, também, vida da linguagem do corpo do homem hieróglifo, metafísico ! Através do pré-corpo que é o Duplo, esses dois planos se articulam um ao outro. Ora, essa articulação dinamita nossos conceitos de “alma”/“espírito” e de “corpo /“matéria”. Pois ela dinamita a própria noção de corpo, que se torna corpo metafísico, o discorpo produzido pela crueldade: é assim que ele se despedaça (corpo fragmentado), depois perde o que não é essencial: seus órgãos (corpo sem órgãos). Eis o que mostra aos olhos o teatro da crueldade: uma reconceituação “etantista” e dolorosa do homem, verdadeira metafísica existencial. Ora, se depois do fracasso dos Cenci, Artaud interiorizou o teatro, tornou-se ele mesmo, definitivamente, seu próprio espaço teatral, o fracasso último do Vieux-Colombier conduziu o homem-teatro a deslocar ainda mais para diante o lugar de sua teatralidade nômade. Ou, mais exatamente, essa teatralidade nômade, sempre pressionada para mais longe, é reconduzida para o limiar da loucura, de onde emergira sua poesia, 25 anos antes. O segundo conjunto, que é o dos famosos cadernos escolares, e particularmente os últimos de todos, os Cadernos d’Ivry, é o de um teatro poético para além da loucura. A teatralidade não é mais, simplesmente, a do “corpo sem órgãos”, do corpo que rejeitou sua organicidade, mas a da palavra: a página que se torna a cena do pensamento. Ora, a escritura é, para o pensamento, o que o corpo é para o ator. Nessa página de caderno, a escritura se confunde com o desenho como gráfico. A escritura linear explodiu, e essa explosão liberou a potência teatral: “Reproduções muito numerosas de páginas dos cadernos, diz E. Grossman (sua editora), mostram aos olhos e à leitura, ao mesmo tempo, essa cenografia dos signos sobre a página (desenho, escritura) que caracteriza a colocação no espaço teatral, gráfico e ritmado, dos últimos textos de Artaud.” Os desenhos fazem ver a matéria referencial da escritura sob uma outra luz: em sua dimensão gráfica. A matéria da palavra não é mais o sentido, mas a grafia, a qual remete ao som (é imagem do som, no sentido de tornar visível o invisível). A palavra perde seu sentido, e, ao perdê-lo, ganha o de seu desenho. Sons e sentidos / traços e letras. O som faz ouvir o sentido, enquanto o traço faz ver a letra. Pode-se pensar que os últimos fracassos (a conferência do Vieux-Colombier, a emissão de rádio) conduziram ao colapso definitivo: que se o corpo não consegue mais se exprimir, então é o silêncio, o fim. Porém, pode-se, igualmente, escolher a lembrança de que já certos textos de O Umbigo do Limbo (O Jato de Sangue, Paulo dos Pássaros) são textos nos quais o teatro habita o território da poesia. Quero dizer, a escritura. Assim, o teatro do homem do teatro, isto é, um teatro não metafórico, o do corpo orgânico plural, deve, por sua vez, ser apreendido pelo pensamento (mas não pelo pensamento que oculta o corpo, dessa vez): o corpo perdeu seus órgãos vitais; mas que importa ? Ele conserva sua concretude plural inapreensível pelo conceito clássico. Ele conserva, ao seio do pensamento, uma substancialidade que o pensamento filosófico não conheceu depois que a ontologia filosófica veio substituir a velha ôntica dos pré-socráticos, esses pensadores visuais da substancialidade da physis. Assim, o teatro do homem-teatro é, in fine, o teatro da palavra (poética) de seu corpo sem órgãos. Palavra escrita, pois o teatro não metafórico do corpo orgânico plural foi apreendido pelo pensamento, por um pensamento hieroglífico, grafitizado sobre a página, radicalmente não idealista. E quando esse corpo perdeu seus órgãos (tornando aparente que ele não era o corpo orgânico), conservou sua concretude plural na cena da escritura poética.

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Museu, poesia e patrimônio imaterial em Alphonsus de Guimaraens

Lucas Guimaraens Doutorando em Filosofia pela Universidade Paris 8 – Saint Denis e Universidade Federal do Paraná; Superintendente de Bibliotecas Públicas e do Suplemento Literário da Secretaria Municipal de Cultura de Minas Gerais

A

literatura e a memória social

Como disse Michel Foucault: [...] j’aurais voulu pouvoir me glisser subrepticement. Plutôt que de prendre la parole, j’aurais voulu être enveloppé par elle, et porté bien au-delà de tout commencement possible. J’aurais aimé m’apercevoir qu’au moment de parler une voix sans nom me précédait depuis longtemps (…)1. A assertiva foucaultiana trata, todos sabemos, de premissas do estruturalismo vigente e daquilo que Foucault chamou de épistémé, i.e. regras de formação e condições de possibilidade de um dado discurso em uma determinada época. O pensador francês mostrava, poeticamente, a impossível fuga das leis estruturais da linguagem, daquilo que, em si, já pertencia a qualquer prática social. Não deixando isso de lado, gostaria, no entanto, de entender estas palavras também como a percepção arqueológica do filósofo de que a criação das práticas discursivas e extradiscursivas de um povo e a perpetuação de sua identidade passam, inexoravelmente, pelo som, pela música e pelas palavras. A literatura e, mais precisamente, a poesia, nesse contexto, é vista como som articulado inicial, origem da comunicação, das palavras e das coisas. Assim, seja pelos poetas ditos do status-quo como Walt Whitman e Homero, até chegarmos a Garcia Lorca, Pablo Neruda, Mario de Andrade, Drummond, Allen Ginsberg e outros, a poesia tem como papel perenizar e moldar o sustento de um povo e de sua identidade. A poesia, ao contrário da ideia defendida por certos críticos de que esta residiria em torres de marfim inalcançáveis, está mais presente em nosso cotidiano do que imaginamos. Dai a assertiva de Manuel Said Ali, filólogo brasileiro, considerado como um dos maiores sintaxistas da língua portuguesa, de que, mesmo sem nos apercebermos, produzimos versos todo o tempo: decassílabos, dísticos etc. FOUCAULT, Michel ; L’ordre du discours, Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970. Tradução para o português : “Gostaria de me insinuar sub-repticiamente no discurso [...]. Em vez de tomar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo começo possível. Gostaria de perceber que no momento de falar uma voz sem nome me precedia há muito tempo [...].  1

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Assim, nos ensinamentos de Ezra Pound,2 a melopeia, compreendida esta como a produção de correlações emocionais por intermédio do som e do ritmo da fala, e a fanopeia, que é a projeção, através das palavras, de um objeto na imaginação visual, seriam dois artifícios das palavras que, ainda que inconscientemente, configuram-se como dois pilares da arte das palavras e da identidade cultural de um povo e de uma língua. A partir do ano de 1989, a UNESCO, em sua Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional Popular, já colocava em evidência suas preocupações quanto ao perigoso desaparecimento de culturas e usos sociais que, não sendo tangíveis, representam as verdadeiras riquezas de uma comunidade. Nesta mesma recomendação e, a partir dela, em vários outros textos internacionais, línguas, música, danças, jogos, mitologias, rituais, costumes, artesanato e literatura foram e são motivos de proteção e, em determinados casos, fazem parte da Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Como a própria Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO dita, existe uma “profunda interdependência entre o patrimônio cultural imaterial e o patrimônio material cultural”, 3 o segundo servindo de invólucro protetor e instrumento de memorização destas imaterialidades culturais. O Museu como espaço crítico de produção identitária Neste sentido, o Museu teria exatamente este papel: o de perpetuar práticas culturais com vistas a permitir o desenvolvimento das identidades nacionais e mundiais. Ou, nas palavras do urbanista-filósofo Leonardo Barci Castriota: “O fim da conservação não vai ser a manutenção dos bens materiais por si mesmos, mas muito mais a manutenção (e a promoção) dos valores incorporados pelo patrimônio.” Jean Louis Déotte, professor da Universidade Paris 8, demonstra em seu livro L’Epoque des Appareils que a ideia de Arte como conhecemos hoje somente se tornou possível a partir do surgimento da Instituição Museal. Sejamos claros: o museu não inventou a arte, porém ele inaugurou o que chamamos de “regime estético da arte”. O aparelho museológico, isolando o “material”, colocando “em suspense”, entre parênteses, a destinação cultural das obras de arte, ou seja, emancipando a obra de arte de seu passado, permitiu pela primeira vez na história da humanidade que estas sejam contempladas por elas mesmas. Este fato possibilitou ao homem a atividade kantiana de julgamento estético inevitavelmente contemplativo e desinteressado, baseada na relação entre imaginação e entendimento, gerando uma revolução diante do que chamamos de sensibilidade comum. Essa revolução se deve ao fato de o museu ter aberto caminho rumo ao reconhecimento da igualdade de nossa faculdade de julgar a obra de arte, na medida em que esta instituição permite a todos compartilhar da mesma experiência contemplativa artística e julgar o acervo museológico de forma igualitária, sem distinção de raça, cor ou origem social. Além disso, sendo a temporalidade do museu retroativa, as obras de arte contemporâneas são por ele absorvidas na medida em que elas detêm certa capacidade de “salvar” o passado. Neste ponto, falamos da instituição museal como uma espécie de “escudo” temporal, no qual o que está em jogo é o estabelecimento da “verdade histórica”. Desta forma, não seria leviano afirmar que a criação do museu é intrínseca ao desenvolvimento do julgamento estético e político, de forma livre e igual no mundo ocidental. Assim, podemos constatar que o museu exerce dois importantes papéis na sociedade contemporânea: ele configura a sensibilidade comum de um povo ao mesmo tempo que inventa e estabelece a noção de igualdade social. Historicamente, o museu do Louvre, por exemplo, pode ser analisado sob esses dois aspectos em que, emancipando as obras de arte da obscuridade de colecionadores pertencentes à nobreza 2 3

POUND, Ezra; ABC of Reading. CASTRIOTA, p. 211.

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francesa e fazendo com que elas possam ser vistas e apreciadas de forma igualitária, trouxe à tona a experiência sensível de apreciação da obra de arte, experiência sem a qual o autorreconhecimento, do povo francês, em uma identidade cultural comum, e a consolidação da unidade política francesa seriam improváveis. IPHAN e patrimônio imaterial da humanidade No Brasil, de acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (e seguindo determinações da UNESCO) a criação, pelo Decreto nº 3.551/2000, dos diferentes Livros de Registro sugere a percepção de distintos domínios na composição da dimensão imaterial do patrimônio cultural. Senão, vejamos: os bens culturais de natureza imaterial estariam incluídos ou contextualizados nas seguintes categorias que constituem os distintos Livros do Registro: 1) Saberes: (a) conhecimentos e (b) modos de fazer (c) enraizados no cotidiano das comunidades;
 2) Formas de expressão: (a) manifestações literárias, (b) musicais, plásticas, (c) cênicas e (d) lúdicas;
 3) Celebrações: (a) rituais e (b) festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social;
 4) Lugares: mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e se reproduzem práticas culturais coletivas. Isto posto, a literatura (e particularmente a poesia de Alphonsus de Guimaraens, como veremos a seguir) não faria parte de um Saber (1), ligado a um Conhecimento (1a) enraizado na tradição literária brasileira (2a e seguintes) e também no cotidiano de uma comunidade específica, i.e. cidades barrocas mineiras (1c)? No Brasil, a literatura de cordel é o marco da sensibilidade artística de um povo. Fugindo integralmente dos arcanos acadêmicos, a história é passada por rimas e ritmos que não são outros serão a memória sonora de um povo. O Museu Casa Alphonsus de Guimaraens

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Em Minas Gerais, no final do século XIX, surge Alphonsus de Guimaraens. Tendo já obtido o bacharelado em Direito e recém-formado em Ciências Sociais em São Paulo, volta para as Minas Gerais, tornando-se, de imediato, Promotor de Justiça. Cedo já se encontra produzindo seus versos. Sua obra inclui ainda um livro inteiro em francês, Pauvre Lyre, e uma tradução de Heine, Nova Primavera. Dado à arte decadentista e simbolista de sua época, o que mais nos impressiona é sua influência na vida cotidiana de grandes comunidades e, mais precisamente, na vida dos moradores de Mariana e Ouro Preto. Morre no ano de 1921 na cidade de Mariana, onde passou seus últimos 15 anos de vida como juiz municipal. Tendo sido laureado por ilustres intelectuais brasileiros e internacionais (p. ex. Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Juscelino Kubitschek— ex-presidente do Brasil— Jacques Poulain e Elfie Poulain), são as mãos e vozes dos cidadãos que revivem, constantemente, o legado do poeta. Assim, chegamos à justificativa do aparecimento do Museu Casa Alphonsus de Guimaraens: a criação de um museu em Mariana que reunisse o acervo do poeta Alphonsus de Guimaraens surgiu como proposta em 1971. A ideia se concretizou quando, em 1975, o governo do estado de Minas Gerais adquiriu a casa do poeta para abrigar o museu. A casa foi restaurada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA-MG), entre 1976 e 1979. O Museu Casa Alphonsus de Guimaraens foi inaugurado em 1986 na casa em que Alphonsus de


Guimaraens viveu entre 1913 a 1921, e foi conceituado como uma instituição cultural voltada para o estudo, exposição e divulgação da vida e obra de Alphonsus de Guimaraens, fixando-se como um centro de pesquisas sobre a literatura mineira. Construída em fins do século XVIII, a edificação de dois pavimentos, residência típica de setores mais abastados da sociedade colonial, situa-se no centro histórico de Mariana, integrando conjunto arquitetônico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/IPHAN. O acervo do museu é fruto de doações (a maioria feita pela família do próprio Alphonsus de Guimaraens quando da criação da instituição); é composto também pela biblioteca particular de Alphonsus, na qual se inserem obras raras; por conjunto de fotografias; por objetos referentes à vida privada do poeta e à carreira de juiz e sobretudo à atividade literária; também por documentos textuais entre os quais se destacam artigos (já publicados), originais de manuscritos de textos, poemas e correspondências. Além de sua exposição de longa duração, o museu oferece também exposições temporárias, oficinas culturais voltadas em sua maioria para o público escolar, e uma agenda de eventos como saraus e ciclo de conferências. No entanto, a conservação do museu não é das melhores: ele se encontra fechado. Motivo: uma parte das paredes está rachada, tornando perigosa a recepção do público. Ora, se é verdade que o museu foi criado pela iniciativa das autoridades políticas da época, não é falso dizer que esta instituição foi e é alimentada pela vontade das comunidades locais. Aliás, o museu e a obra do poeta são tão importantes que em 2009 o Projeto Cantando Alphonsus comemorou 25 anos de existência, dando provas de seu vigor: um público crescente de estudantes de escolas públicas, particulares, moradores de Mariana e cidades vizinhas, além de turistas do Circuito dos Inconfidentes que se deleitam com a poesia de Alphonsus de Guimaraens em saraus e outros eventos poéticos pelas ruas da cidade colonial. Cantando Alphonsus tem o propósito de incentivar os estudos sobre a obra de Alphonsus de Guimaraens e, ao mesmo tempo, aproximar o público da sua poesia simbolista. Em 2001, passou a integrar os trabalhos da Universidade Federal de Ouro Preto e, em seguida, efetivou parceria com o Museu Casa Alphonsus de Guimaraens sob a coordenação da Superintendência de Museus/Secretaria de Estado de Cultura e com a Academia Marianense Infanto Juvenil de Letras, Ciências e Artes. Cantando Alphonsus faz o caminho desejável para qualquer museu que pretenda se constituir em uma ponte entre a obra e o público. A cada ano, num ritual coletivo, ultrapassando as fronteiras do sobrado que serviu de residência ao poeta e sua família, o museu se lança em muitas direções, ganha as ruas de Mariana, e a poesia de Alphonsus se eterniza no movimento vivo de uma comunidade que o canta. Percebemos, pois, que o processo de desenvolvimento do aparelho museológico tende a se autotransformar em ações dinâmicas e não somente como estagnação de quadros na parede. Voltando ao Decreto nº 3.551/2000, este evento não seria também a transmutação do conhecimento originário (a poesia) em música (2b) e demais artes (2c e d)? Finalmente, tudo isso não seria exatamente o que podemos determinar de festa que marca a vivência coletiva do entretenimento e de outras práticas da vida social (3b)? No entanto, em 2010 o museu fechou temporariamente suas portas, e o projeto Cantando Alphonsus desde então não pôde ser realizado em suas instalações. As comunicações com o governo são sempre morosas. Todos os projetos (hidráulicos, elétricos etc) foram realizados e aguardamos agora sua restauração. Pelos reflexos das obras de Alphonsus de Guimaraens nas academias e nas ruas das cidades brasileiras barrocas não temos motivos de preocupações. No entanto, quando analisamos a difícil perspectiva de renovar seu Museu Casa tão somente com os recursos governamentais, percebemos uma real necessidade de transformar esta situação em luta incansável pela memória apenas de um poeta, mas de uma cultura que possui suas raízes primárias numa pretérita literatura de Bernardo Guimarães (tio-avô de Alphonsus) e suas personagens romântico-crítico-libertadores, como a escrava Isaura e a índia Jupyra, e que perpetua sua seiva através da aclamação popular de sua obra e a de seus descendentes, notadamente os inigualáveis Alphonsus 87 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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de Guimaraens Filho, Afonso Henriques Neto, Luiz Alphonsus e Dinah Guimaraens. Da nova geração— onde me incluo— há também Augusto de Guimaraens Cavalcanti e Domingos Guimaraens. Vale sempre lembrar dos versos de nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade: ... Algum estudante, sim, espero vê-lo debruçado sobre a Pastoral aos Crentes do Amor e da Morte, penetrando o cerne dociamargo de um verso alphonsino cem por cento. Algum velho da minha geração, uns poucos doidos mansos, e quem mais? Onde o poeta assiste, não há cocks autógrafos, badalos, gravações. está cerrado em si mesmo (tel qu’en lui-même enfin l’ éternité le change...) e descobri-lo é quase um nascimento do verbo: cada palavra antiga surge nova intemporal, sem desgaste vanguardista, lua nova, na página lunar (Luar para Alphonsus, Lucas Guimaraens)

Referências ALI, Manuel Said. Versificação Portuguesa, São Paulo; Edusp, 2006. CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo; Annablume, 2009. CUNHA, Manuela Carneiro da Cunha. Cultura com aspas. São Paulo; Cosac Naify, 2009. DÉOTTE, Jean. L’ époque des appareils. Paris, Ed. Léo Scheer, 2004. FOUCAULT, Michel. Dits et Ecrits. Paris; Gallimard. Vols. 1 e 2, 2001. L’ordre du discours. Leçon inaugurale au Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Paris; Gallimard, 1971. GUIMARAENS, Alphonsus de. Poesia Completa. Rio de Janeiro. Nova Aguilar, 2001. POUND, Ezra. ABC of Reading. England, Faber & Faber Ltd, 1951. SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Lisboa; Cortez, 2007.

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De que corpo se trata no niilismo europeu e no niilismo brasileiro?

Charles Feitosa Professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas PPGAC-UNIRIO

Filosofia pop

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omo uma forma de resistência tanto ao eruditismo como à excessiva simplificação em filosofia, estou envolvido, desde 2004, com o projeto de uma “filosofia pop”: pensar o mundo em uma linguagem bem-humorada e acessível, sem contudo perder a densidade inerente aos conceitos. Não inventei o termo “filosofia pop”; roubei o conceito de Deleuze, que muito rapidamente menciona a expressão, sem maiores aprofundamentos, no contexto da necessidade de novas formas de ler e de escrever na filosofia. Minha apropriação do termo se orienta por experimentar com aspectos que talvez o próprio Deleuze não tenha previsto mas que teria, imagino, aprovado. A primeira ressalva é que o uso do termo “pop” nada tem a ver com a acepção corrente, presente em títulos de programas televisivos do tipo “Super-Pop” e que se aplica ao entretenimento de cárater raso, fácil e meramente comercial. A ideia, ao contrário, é resgatar o projeto presente no movimento da “art pop” dos anos 1950, em que o conceito de “pop” era visto como algo imaginativo, rebelde, original, irreverente, crítico e alegre. Através de técnicas de duplicação, reprodução, incorporação, reciclagem, superposição e colagem de elementos díspares nas telas, os integrantes do movimento ajudaram a consolidar uma nova estética, uma outra sensibilidade, enfim, uma linha de fuga de dentro do sistema. O principal aspecto da “filosofia pop” é a atitude consciente de descompromisso com a distinção entre “alto” e “baixo” em termos de cultura. Assim como nas telas de Andy Warhol compareciam simultaneamente referências do mundo erudito, como da cultura de massa, a filosofia pop também defende a interseção constante dos conceitos fundamentais da filosofia com os aspectos considerados normalmente os mais banais da existência. A filosofia pop busca resgatar a riqueza e a inteligência da vida cotidiana, desprezada tradicionalmente como o famoso obscurantismo do “senso comum”. Uma das consequências desse descompromisso com a dicotomia “alta” x “baixa cultura” é a expansão tanto dos autores quanto das questões supostamente clássicas e incontornáveis. A ideia é que a filosofia não precisa se restringir a pensar apenas a questão da liberdade ou da verdade em Descartes ou Kant, mas pode e deve também se debruçar sobre as questões de poder no uso do controle remoto nas diferentes constelações familiares ou ainda sobre os desdobramentos éticos-políticos das ideias presentes em uma história em quadrinhos, um videogame ou uma letra de funk. Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Vale ressaltar que de nada adianta integrar os temas das artes e da vida cotidiana na filosofia se ela continuar a manter uma certa atitude prévia de superioridade. Há alguns anos tive uma experiência ainda mais inquietante em um evento sobre Filosofia e Literatura. Uma professora de literatura apresentou uma inédita leitura e interpretação de letras de funk carioca. Naquela época, a cidade ainda discutia a legitimidade do funk, ameaçada de censura em nome de uma injusta associação que a classe média e a mídia faziam entre essa manifestação artística, política e cultural e o tráfico de drogas. Nesse sentido era uma ação altamente afirmativa trazer para a universidade um debate em torno do que estava sendo produzido na periferia e não apenas nos famosos “centros de excelência”. Entretanto, ao fim da comunicação, ao ser perguntada se gostava de ouvir funk, a professora respondeu que detestava, que aquilo não era música, muito menos poesia. Ela só estava abordando o tema porque estava na moda!! Parece que o funk só poderia ser incluído na pauta na condição de “literatura inferior”. Na minha opinião, esse tipo de integração à força das artes de rua pela academia só reforça a dicotomia entre alto e baixo na cultura. A filosofia pop não é diferente apenas pelos seus temas, mas também pela sua abordagem. O modo como se pensa é tão importante como “o quê” é pensado. Um outro aspecto importante de uma filosofia pop é a proposição de uma outra relação entre conceitos e imagens ou, de forma mais abrangente, entre filosofia e arte. Tradicionalmente a filosofia tem duas atitudes em relação à arte: ou levanta suspeitas sobre sua capacidade de contribuir para uma ampliação da compreensão humana do mundo, ou então instrumentaliza as imagens e as obras de arte como se fossem meras ilustrações e atestações de argumentos conceituais, empobrecendo assim a riqueza de possibilidades que elas poderiam ainda nos oferecer. A filosofia pop entende que as imagens não são inferiores aos conceitos quando a tarefa é pensar o mundo, ao contrário, as imagens exigem outros tipos de pensamento e abrem perspectivas inacessíveis ao raciocínio lógico convencional. Por isso mesmo, meu livro se chama Explicando a Filosofia com Arte e não através da Arte. A filosofia pop busca parcerias com as artes, deixando-se levar por elas, permitindo-se processos de hibridização, mesmo correndo o risco de se tornar outra coisa, uma mutação, quase uma monstruosidade. Cada uma das características mencionadas da filosofia pop até aqui mereceria uma abordagem mais profunda e detalhada. Para mim, o aspecto mais fundamental de mudança de paradigmas: a tradição da filosofia é historicicista, disciplinar e eurocêntrica, a filosofia pop é temática e geograficizada. Por temática entenda-se que ela privilegia as questões e os conceitos sem desprezar sua evolução e transformações, mas colocando-os em segundo plano. Bem ao contrário da concepção pedagógica bastante em voga no Brasil, que compreende filosofia em primeira instância como a aprendizagem de sua história, em detrimento dos problemas e dos temas. Além disso, a filosofia pop é uma “geofilosofia”, quer dizer, busca sempre conectar o local com o universal, no nosso caso, na tarefa de abordar filosoficamente as ambiguidades e paradoxos da nossa própria cultura. É nesse contexto de uma geofilosofia pop que se instauram as seguintes reflexões sobre a questão do corpo, tanto no niilismo europeu, como no brasileiro. O niilismo europeu segundo Nietzsche O que é estar aí “no-nada” europeiamente? A expressão niilismo europeu vem de Nietzsche, mais especificamente das anotações de 1886-1887, reunidas na compilação intitulada Vontade de Poder . A primeira observação importante a se fazer sobre o título vem de Heidegger, no seu comentário sobre a Vontade de Poder como Arte (1936), segundo o qual o nome “europeu” refere-se a todo o mundo “ocidental”, e não apenas ao assim chamado “velho mundo”. Se Heidegger tiver razão, então já tenho aí uma importante objeção à minha hipótese. Caso “europeu” seja sinônimo de “ocidental”, então o niilismo do qual fala Nietzsche também nos 90


abarca. Ou não? Será um absurdo sugerir que a cultura brasileira extrapola de muitas maneiras a categoria do “ocidental”? Parto então dessa desconfiança, a de que o Brasil não ocupa um lugar homogêneo no ocidente, mas que é uma cultura na fronteira, de fronteira, que talvez esteja por toda a parte, ou em lugar nenhum, como o sertão de Guimarães Rosa. Isso me faz insistir na questão: existem formas brasileiras de niilismo? No prefácio de Vontade de Poder, Nietzsche diz que o que vai ser contada é a história dos próximos dois séculos. As imagens giram em torno de um futuro inexorável, Nietzsche fala de necessidade, destino, catástrofe, corrente, como se o niilismo fosse uma onda tão gigantesca quanto inevitável. Em uma já famosa formulação, ele menciona o niilismo como o unheimlichste aller Gäste, ou seja, o mais estranho de todos os hóspedes. O niilismo tem o sentido de alguém que não pertence à casa e que talvez seja até considerado uma visita indesejada, mas que já consentida. É um invasor, que não apenas é estranho como também nos faz ficar estranhos de nós mesmos. Para falar do niilismo Nietzsche diz que tem a perspectiva privilegiada de filósofo e de Einsiedler por instinto. Ensiedler é uma palavra dúbia que pode significar tanto “eremita”, alguém que se retirou do seu lugar habitual, como também “imigrante”, alguém que veio de outro lugar. Em ambos os casos está enfatizada a ambiguidade de estar simultaneamente dentro e fora. Segundo Nietzsche, o filósofo tem a vantagem de ser alguém acostumado à experimentação, alguém que já se perdeu nos labirintos do futuro e que vê o que vai acontecer como alguém que olha para trás; já o eremita-imigrante tem a vantagem de ver a partir de uma perspectiva exterior, como alguém que passou através e para além do niilismo. Por isso Nietzsche se autodenomina “o primeiro niilista completo (perfeito) da Europa” (ibid.). E o que esse pensador imigrante diz sobre o niilismo? O niilismo é definido de muitas maneiras, mas sua principal característica é a recusa radical de valores e de verdades. A existência é vista como uma pena, os valores superiores se deterioram, falta um sentido para as coisas, faltam respostas para as perguntas: “alles hat keinen Sinn!” [nada tem significado ou só o nada tem significado!]. As categorias de meta (Zweck), unidade (Einheit), todo (Ganze) e ser (Sein), nas quais colocávamos um valor, nos são tomadas, o mundo parece esmaecido, sem densidade. A causa principal do niilismo pode ser atribuída a uma longa história frustrada de vontade de verdade, de fé na racionalidade, de expectativa não realizada de um mundo controlável e previsível. Os principais sintomas são as sensações de desorientação, de insegurança, de angústia, de tédio. Os efeitos colaterais são o desprezo e o ressentimento por tudo que estiver associado ao mutável e ao sensível, tal como o corpo, suas paixões e afetos. Existe uma certa ambiguidade no texto de Nietzsche, pois embora o niilismo seja inevitável, ele pode e dever ser combatido. Trata-se da tarefa do pensador eremita diagnosticar a crise e preparar as mudanças que permitam sua superação. O niilismo pode ser considerado uma consequência lógica de mais de 2000 anos de dominação moral cristã. O Brasil, evidentemente, também faz parte dessa história, mas de que maneira? Não seria, por exemplo, a tendência predominante da cultura nacional de supervalorizar o corpo, a aparência e os prazeres imediatos em detrimento dos valores éticos ou das atividades intelectuais um sinal de que o niilismo ganha uma outra roupagem nos trópicos? Formas do niilismo Não existe apenas uma forma de niilismo, o próprio Nietzsche fala de niilismo radical, completo e artístico (no caso de Wagner). A principal nuança se refere ao niilismo ativo (“enquanto sinal de um poder elevado”) e ao niilismo passivo (“recuo e decadência das forças”). O niilismo ativo talvez pudesse ser representado na figura de um skinhead destruindo os telefones públicos de seu bairro, enquanto o niilismo 91 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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passivo talvez pudesse ser representado pela atitude de indiferença dos vizinhos, observando a cena como se não fosse com eles. Nietzsche refere-se a si mesmo como o “niilista completo”, alguém capaz de levar às últimas consequências a crescente desvalorização dos valores absolutos de “bem”, de “verdade” e de “beleza”, e preparando o terreno para a criação de novos e diferentes valores. O niilismo completo se realiza através de uma filosofia a marteladas, dirigida contra os ídolos da cultura, mas também pela filosofia com diapasão (Stimmgabel), capaz de captar sutilezas nos discursos inaudíveis ao ouvido humano desavisado. Existe, ainda, uma forma de “niilismo incompleto” que Nietzsche também chama de reativo: “O niilismo incompleto e suas formas: vivemos no meio dele. A tentativa de escapar do niilismo, sem efetuar uma transvaloração de todos os valores: produzem o contrário, tornam o problema ainda mais difícil” (Vontade de Poder, §28). Isso quer dizer que tanto a desvalorização generalizada do corpo e dos valores terrenos quanto sua forma contrária, a supervalorização reativa do prazer imediato sobre qualquer forma de esforço, são ambas indicadoras do niilismo europeu. Que corpo é desprezado no niilismo europeu? Antes de examinar os principais aspectos do “niilismo incompleto” na cultura brasileira contemporânea, será necessário relembrar alguns momentos significativos de suspeita contra o corpo na tradição idealista europeia. O episódio mais conhecido encontra-se no Fédon, também conhecido como Sobre a Alma, um dos quatro diálogos de Platão dedicados a descrever os momentos finais de Sócrates. A cena é simples: Sócrates vai morrer em breve, condenado a beber cicuta pelas acusações de descrença nos deuses e corrupção da juventude. Platão não esteve presente na situação, mas descreve Sócrates nem desesperado nem triste com a morte iminente, mas tomado de profunda indiferença, encontrando tempo para argumentar e discutir nuanças de suas doutrinas. Esse gesto de desprezo pela morte baseia-se na crença de que o corpo é uma prisão para a alma imortal que o anima. Morrer é o fim das imperfeições do corpo, mas é o começo da libertação da alma de sua prisão na dimensão do sensível. Toda a vida de um filósofo é a contínua preparação para esse momento: — Sócrates: Crês que seja próprio de um filósofo dedicar-se avidamente aos pretensos prazeres tais como o de comer e de beber? — Símias: Tão pouco quanto possível, Sócrates — Sócrates: E aos prazeres do amor? — Símias: Também não! — E quanto aos demais cuidados do corpo, pensas que possam ter valor para tal homem? [...]Símias: Acho que não lhes dará importância, se verdadeiramente for filósofo. [...]— Sócrates: E agora, dize-me: quando se trata de adquirir verdadeiramente a sabedoria, é ou não o corpo um entrave se na investigação lhe pedimos auxílio? (FÉDON, 64d/e). A morte é o ritual de purificação da alma contra a infecção advinda do corpo. É por isso que, enquanto sua mulher, Xantipa, se debatia e gritava de revolta (um comportamento “típico das mulheres”, segundo Platão, cf. Fédon, 60a), Sócrates celebrava seu destino como se fosse uma nova aventura, e não uma despedida da existência. Outro momento emblemático encontra-se na noção extremamente problemática, mas ainda persistente na contemporaneidade, da separabilidade de corpo (a coisa que sente) e mente (a coisa que pensa) a partir de Descartes. Baseado nessa doutrina dualista, Descartes é capaz de duvidar não apenas da capacidade dos sentidos de obter conhecimento, mas da própria realidade corporal, enfim, da própria carne. Na famosa passagem da IIa. Meditação de Descartes a propósito do pedaço de cera, realiza-se um gesto semelhante ao de Platão na busca de purificação contra o corpo. Ao aproximar a cera do fogo, Descartes constata a perda de 92


suas características sensíveis: “isso que resta de seu sabor se vai, o odor se esvanece, sua cor muda, sua figura se perde, ela cresce, se torna líquida e quente, só com dificuldade pode-se tocá-la, e se alguém bate nela, não produz nenhum som” (II, p. 89 ). Descartes interpreta tal experimento como o processo de purificação do objeto de seus aspectos singulares e acidentais. O que permanece da cera após a “prova de fogo” é que constitui a sua verdade, algo que só pode ser apreendido corretamente através de uma inspeção do espírito. O sensível é instável, transitório, finito e é tarefa do entendimento corrigi-lo e aperfeiçoá-lo. Problemático na experiência cartesiana é justamente o fato de que a cera, enquanto um mero agregado ou composto de propriedades sensíveis isoladas e indepedentes entre si, seja apenas a cera do clínico, do físico, do cientista, e não da percepção. Em outras palavras, após o processo de purificação não sobra nada da cera, a não ser um esquema lógico construído pelo entendimento. Se os sentidos podem ser desligados, ainda que provisoriamente, então isso já é uma indicação do lugar que eles têm na determinação da essência humana: o sujeito cartesiano é um Eu, que mesmo sem mãos, olhos, carne, sangue e sentidos, pode existir. O terceiro momento paradigmático na história de interpretações niilistas do corpo é apontada por Nietzsche na sua Genealogia da Moral (1877), como sendo isso que ele denomina o “caminho rumo ao anjo” [Auf dem Wege zum “Engel”]. O olhar asséptico para a vida, marcado por cansaço e pessimismo, enauseado com a própria existência, enfim, o olhar niilista materializa-se no catálogo de repulsas ao corpo, atribuído ao Papa Inocencio III (1161-1211): “procriação impura, nutrição repugnante no corpo da mãe, inferioridade da matéria a partir do qual o homem se desenvolve, fedores abomináveis, secreção de saliva, urina e excrementos” (Genealogia da Moral, II.7). Aqui vale uma observação, parece que a função corporal de produzir excrementos seria uma das maiores objeções à natureza divina do homem. Já Hegel apontava diversas vezes em sua obra para o desafio de explicar, em termos conceituais, como era possível que pelo mesmos canais passassem as produções mais elevadas (o esperma) e as mais inferiores (a urina) do corpo humano. O filósofo italiano Giorgio Agamben, em um ensaio de 2009 dedicado ao “Corpo Glorioso”, retoma essa questão a partir de aspectos polêmicos na teologia cristã. O problema do “corpo glorioso” é o de determinar a exata natureza do corpo dos ressurretos no paraíso. Trata-se de um problema escatológico, nos dois sentidos da palavra, algo que diz respeito aos tempos extremos da humanidade, mas também à condição humana nos seus extremos, a saber, em relação a seus excrementos. A questão é: Como será o corpo ressurreto? Em que medida o corpo glorioso compartilha características com o corpo terreno? Agamben lista várias polêmicas teológicas a esse respeito, por exemplo, qual idade terão os corpos daqueles que ressurgirem? A idade em que tinham quando morreram ou uma idade perfeita, nem muito jovens nem muito velhos? Outras questões a respeito do “corpo glorioso” tratam do gênero (afinal, os corpos dos ressurretos vão manter as diferenças sexuais ou serão todos perfeitos, quer dizer, masculinos? !); e à integridade (pessoas que tiveram partes do corpo amputadas em vida, recuperarão seus membros?). Finalmente a questão se coloca sobre os genitais e os órgãos de excreção. Quanto ao sexo, os órgãos reprodutores estarão lá, apenas não serão operantes. Estarão lá apenas para expor sua potencialidade, serão órgão “sagrados”, quer dizer, separados do uso cotidiano: “nada mais enigmático do que um pênis glorioso, nada mais espectral do que uma vagina puramente doxológica” afirma Agamben, não sem uma certa ironia (in op. cit, p. 99). Finalmente, se os órgãos reprodutores estarão lá, mas inoperantes, também não haverá secreção de esperma, suor, saliva, leite materno, urina ou fezes. O corpo glorioso é um corpo meramente ostensivo, que não poderá ser usado. Aqui surge a questão: haverá alguma semelhança entre o corpo glorioso ressurreto e o corpo glorificado na cultura brasileira contemporânea?

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Qual corpo é cultuado na cultura brasileira contemporânea? A imagem do “corpo glorioso” da tradição cristã se assemelha à imagem do corpo cultuado na cultura contemporânea brasileira, na medida em que ambas são produzidas através de um processo de idealização. Idealização aqui não quer dizer apenas a construção de um modelo perfeito, mas também a seleção e a supervalorização de alguns aspectos em detrimento violento de outros. Um diagnóstico rápido, sem pretensão de esgotar a questão, aponta para pelos menos três aspectos principais que caracterizam o tipo de corpo a ser buscado na contemporaneidade. Em primeiro lugar, trata-se de um corpo superestetizado (A) pela propaganda e pela cultura de massa. A publicidade coloniza tanto nosso imaginário que quase ficamos surpresos de encontrar tantos corpos imperfeitos na rua. A nova forma de suspeita contra a materialidade do corpo se traduz em “lipofobia”. O ideal de 0% de gordura traduz a imagem de um novo corpo, um corpo sem carne, quase etéreo ou desvanecente. Além da ditadura da magreza nota-se uma celebração da beleza para esconder o desgosto com as dimensões tidas como cruas e imediatas do corpo (vide, por exemplo, o horror aos pelos corporais, revelando-se na obrigação quase moral de depilação). Em segundo lugar, trata-se de um corpo supertonificado (B), cuja força é moldada pelo padrão dos esportes, incluindo sua expressão mais radical, o fisiculturismo. É interessante observar que os corpos fortalecidos pelo esporte não necessariamente inspiram desejos eróticos, mas parecem comportar também uma vontade de se libertar de um corpo pesado e portanto mau, doente, imperfeito. Paradoxalmente, quanto mais artificialmente fortalecidos são os corpos pelo esporte, mais parecem desarmônicos, vide, por exemplo, a dificuldade com que a maioria dos fisiculturistas têm de realizar um gesto simples como o de caminhar. Por fim, trata-se de um corpo supermedicalizado (C), submetido a um ideal de saúde associado à hiperatividade, ou seja, a prolongar ao máximo, seja através de drogas ou aparelhos, a manutenção das atividades corporais até o completo colapso do sistema. A supermedicalização dos corpos contemporâneos, visando sua hiperexcitação, evoca de alguma maneira a recente fascinação pelos zumbis no cinema de massa. Tratam-se aí também de corpos que continuam se movimentando, mas não vivem, não sentem, não pensam mais. Enfim, o vasto projeto contemporâneo de melhoramento do corpo pressupõe a acusação de que ele continua não sendo suficientemente belo, forte ou saudável. Conclusão provisória De uma certa maneira, a glorificação do corpo na cultura contemporânea (provavelmente não apenas no Brasil) chega ao mesmo resultado da filosofia idealista ocidental que despreza o corpo, pois trata-se aí de processo análogo de sacralização que desrealiza o corpo possível. Em ambos os casos, tudo se passa como se o corpo fosse reduzido a uma aparência volátil; nas duas situações revela-se uma aversão subterrânea contra a materialidade corporal, na sua transitoriedade e vulnerabilidade. Para enfrentar os aspectos dessas novas formas de niilismo, talvez seja preciso repensar nossos valores de beleza, força e saúde, em prol de outros e melhores tipos de atletismos. Talvez seja necessário reabilitar o corpo cotidiano nas suas fragilidades e ambiguidades para que se invente, a partir dele mesmo, e não de um corpo aperfeiçoado ou idealizado, outras formas possíveis de “glória”. Uma tarefa para a dança e as artes da performance em parceria com a filosofia pop.

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A exploração da arte africana primitiva sobre a economia neoliberal transcultural

Eyene Mba Universidade Omar Bongo (Libreville-Gabão) Tradução: Daniel Mendes Fernandes

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odem as comunidades e os artistas africanos tirar partido do mercado da arte? Este texto quer responder a essa questão, por um lado, revisitando a maneira pela qual as produções dos antigos na África conseguiram se fazer distinguir como obras de arte com valor estético intrínseco; e, por outro lado, examinando os modos de exploração aos quais está submetida a arte primitiva africana na economia transcultural mundial. I

A arte negra e o diálogo transcultural

Antes de serem qualificadas como “obras de arte”, as máscaras e estátuas da África negra foram primeiramente consideradas como objetos ritualísticos e sagrados. Diferentemente das obras de arte dos artistas europeus, frequentemente expostas em museus e galerias de arte, as produções artísticas africanas eram inacessíveis ou proibidas ao grande público. Devido ao fato de que essas produções eram escondidas, longe dos olhos dos estrangeiros, das mulheres e dos profanos, e também porque a exposição dessa arte somente ganhava lugar durante grandes cerimônias, tais como funerais e iniciações dos jovens, os europeus dos séculos passados acreditaram que essas representações escultóricas e pictóricas eram fetiches, ídolos ou amuletos, isto é, depositários do espírito dos ancestrais. 1 O discurso colonialista, que enxergava os africanos como primitivos, sustentará formalmente que a arte negra não existe. Nesse contexto, as produções africanas serão apresentadas nos museus ao lado de ferramentas dos homens pré-históricos, interessando ao público somente porque elas representam uma etapa da humanidade. E, no entanto, no início do século XX essas produções, há muito consideradas como “arte sem o sublime”, serão vistas como o que Kant chama de “produções do gênio”,2 isto é, modelos, obras exemplares. Porque está claramente estabelecido que é graças à redescoberta das máscaras e estátuas africanas que as produções da África adquirem o status de Cf. Carl Einstein. La sculpture nègre [A escultura negra]. Tradução de Liliane Meffre. Paris, L’Harmattan, Coll. “L’Art en Bref”, 1998. 1

Emmanuel Kant, Critique de la faculté de juger [Crítica da faculdade do juízo], § 46, in Œuvres complètes, II, sous le direction de Ferdinand Alquié, Paris, Editions Gallimard/ “Bibliothèque de la Pléiade”, 1985, p. 1089-1090. 2

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obras de arte, a tal ponto que pintores modernos como Henri Matisse, Maurice Vlaminck, Pablo Picasso, Georges Braque buscarão nelas uma nova inspiração. Assim, ao visitar o Museu do Homem [Musée de l’Homme] em Paris, em 1905, Pablo Picasso sai transformado, encontrando na arte negra as bases de uma nova estética: o cubismo. A obra As donzelas de Avignon [Les demoiselles d’Avignon] é a ilustração perfeita da influência positiva da arte negra em produções cubistas de Picasso: das cinco mulheres nuas representadas, três são pintadas com rostos que, na época, causaram escândalo, pois se assemelham a máscaras africanas. A força criadora e a originalidade vistas por Picasso na arte negra baseavam-se na riqueza, na variedade das figuras e dos motivos geométricos, bem como na vitalidade que dela se irradia. Ao ponto de todos os seus amigos pintores, como Braque e Matisse, acabarem por enxergar as produções africanas como obras de arte e comprá-las de etnólogos e viajantes que as traziam da África. Alguns artistas as oferecerão a seus amigos; assim, o pintor Vlaminck presenteará Derain com uma estatueta. Os poetas Guillaume Apollinaire e André Breton também começarão a se envolver e terão importantes coleções de objetos africanos que lançarão a moda da arte negra no mundo inteiro. Hoje, a arte negra existe de fato. Certamente, a arrogância do discurso colonialista, que artistas europeus como Paul Gauguin outrora desafiaram, mostrando que a civilização europeia não é superior à civilização primitiva, continua a ser retransmitida pelos teóricos da arte contemporânea. Por exemplo, em seu livro, sob o título sugestivo Arts premiers: l’ évolution d’un regard [Arte primitiva: a evolução de um olhar] (2005), Lionel Richard desenterra velhos preconceitos mantidos sobre a arte dita “primitiva”, entre outras, a arte africana. Parte ele da ideia e que o museu do Quai Branly nasceu da vontade de “impor” o discurso segundo o qual a produção de “objetos fabricados longe do Ocidente e seus hábitos de pensamento, tinham seu lugar na história universal da arte, tanto quanto as esculturas da Grécia clássica e os quadros da Renascença”. 3 Lionel Richard acredita que as artes primitivas suscitam problemas tanto em relação à sua natureza quanto em relação à sua origem. Percebe ele que essas produções não são iguais às belas artes dos artistas ocidentais, cuja cultura e cujas percepções artísticas estariam nos antípodas das produções dos povos das artes tradicionais. Dessa forma, Lionel Richard insere a arte numa abordagem unidimensional e imóvel, na medida em que entende que a arte se expressa numa linguagem “uniforme, para o mundo inteiro e por toda a eternidade”. 4 O mal-entendido de Lionel Richard é comum a todos os especialistas que tendem a ler a arte pelo prisma de uma linguagem universal. Tudo se passa como se eles fingissem omitir as particularidades culturais e as diferenças de estilo de representação pictórica e escultórica que distinguem um povo de outro. Quando Hegel argumenta que a arte é a manifestação sensível do espírito de um povo, quer ele imprimir uma ênfase filosófica sobre o particularismo cultural que caracteriza a obra de arte. Trata-se de estabelecer que na arte— mas não exclusivamente — cada povo deposita suas mais altas concepções do espírito de sua comunidade ou do universal, tal como concebido numa determinada sociedade. Consequentemente, mesmo que se admita que, além das diferenças de estilo, a arte é acima de tudo universal, no sentido de que ela designa uma forma de reflexividade inerente a toda consciência humana, não se pode excluir o princípio de contextualização da universalidade em curso na arte. Porque, se a arte é universal, se é uma atividade reflexiva da consciência de si como conceito do espírito, entende-se que a reflexão tendo por fundamento atávico a época do artista, a obra de arte só pode exprimir a maneira pela qual o homem representa o que ele é pela translação direta no estado da história global de sua comunidade histórica efetiva. No meu entender, os teóricos que negam à arte negra a força criadora que a faz ser obra de arte repetem o mesmo erro de Platão: querer ler a arte de um único ponto de vista. Para Platão, o único ponto 3 4

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Lionel Richard, “Ces arts dits ‘premiers’”[Essas artes ditas “primitivas”], Arts Sacrés, N°3, janvier-février, 2010, 44. Ibid., p. 46.


de vista era a ontologia; para os comentaristas da arte negra, é a cultura ocidental. Platão pensava realmente que o pintor é incapaz de virtude intelectual que reside na parte mais alta da alma humana, que ele é um ignorante que dá a luz a “fantasmagorias e não a seres humanos reais”. Segundo ele, a criatividade artística está longe de exprimir a vida real, a vida autêntica, a da Ideia e do conjunto de arquétipos do mundo sensível. A criação do artista lhe surgia como um simulacro porque o artista conheceria “somente o que envolve a aparência”: 5 “a arte da imitação está, portanto, bem longe da verdade e é, aparentemente, por essa razão que pode esta dar forma a qualquer coisa: para cada uma, na verdade, atinge apenas uma pequena parte e essa parte é, ela própria, somente um simulacro”. 6 Concebendo assim a criação artística, Platão não indaga concretamente sobre a própria essência da arte. Pelo contrário, sua acusação contra os artistas se cristaliza em torno da definição de um objeto que não é o objetivo epistemológico da arte, na medida em que é a busca da verdade. Em outras palavras, ao submeter a arte à prova dessa verdade de que o filósofo, por si só, pode dar conta, Platão criticou a arte a partir do que não é seu objetivo último. Desse modo, ele parece não entender que não se pode exigir que a obra de arte produza a verdade segundo os mesmos procedimentos e a mesma forma que o discurso filosófico. É esse mesmo erro que reproduzem todos os teóricos que comentam sobre a arte negra, em particular, e as artes primitivas, em geral, de acordo com os cânones dos artistas europeus. O argumento frequentemente evocado segundo o qual as máscaras e as estatuetas africanas não têm qualquer valor estético em si e por si mesmas7 não convence ninguém hoje. Na realidade o entusiasmo pela arte negra nos “felizes anos 20” na França, por exemplo, decorreu em grande parte, do seu valor estético. Na década de 1920, a maioria dos franceses, sobretudo os parisienses, que sobreviveram aos horrores da Grande Guerra de 1914-1918, tinham vontade de se evadir. Eles saíam para festejar e dançar nos Bailes Negros nais quais se tocava jazz. E, através dessa música, herança dos antigos escravos africanos que têm raízes nos Estados Unidos, se apaixonaram pela arte negra. Era o tempo dos jazzmen como Louis Armstrong, da cantora negra de music-hall Joséphine Baker, e dos vestidos do grande costureiro Paul Poiret que se inspirava na arte africana. II

Do reconhecimento à exploração liberal das obras de arte africanas

O entusiasmo pela arte negra, na década de 1920, traduziu o reconhecimento pelos ocidentais da originalidade das obras de arte africanas. O que os artistas e os contempladores das obras de arte descobriram na arte negra foi uma filosofia de vida e um tom mais místico e expressivo. As máscaras e estatuetas da África provam que as obras de arte valem pela profundidade de sua expressão e sua linguagem estética. Como ninguém fica indiferente com a exposição desses objetos, eles têm tanta presença quanto um ser humano. Aliás, as satisfações estéticas geradas por esses objetos foram e são tão notáveis que os grandes colecionadores de obras de arte terminaram por armazená-las. Assim, o suíço Josef Mueller começa, por exemplo, a constituir, durante suas viagens para a África negra, uma fabulosa coleção de arte africana cujos objetos serão posteriormente reunidos no futuro Museu Barbier-Mueller, em Genebra. A atração exercida pela arte negra foi tão forte que alguns artistas europeus, como Maurice Vlaminck, chegam a denunciar a pilhagem das produções artísticas africanas. As consequências dessa pilhagem são visíveis na África: as sociedades africanas hoje estão privadas 5 6 7

Platão, A República, livro X, 601c.

Platão, A República, livro X, 598b.

André Malraux, Le musée imaginaire [O museu imaginário], Paris, Gallimard, 1965.

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das obras de arte produzidas por seus ancestrais. As hecatombes orquestradas pelos missionários, destruindo as estatuetas e máscaras para fins religiosos, deram lugar a outras hecatombes: a pilhagem das obras de arte na África tradicional do final do século XIX, no término da colonização francesa. Despojadas, despossuídas de seu patrimônio cultural, as sociedades africanas estão vazias. Hoje, centenas de exposições de arte africana são organizadas a cada ano no mundo. Museus, galerias de arte e colecionadores particulares – em Paris, Nova Iorque ou Tóquio – arrebatam as estátuas de ancestral dogon, as maternidades baulê, as máscaras fang que nos grandes leilões internacionais alcançam preços recordes de vários milhões de dólares. Assim, em maio de 2011, a Sotheby’s vendeu uma estatueta feminina Iorubá por 1,65 milhões de dólares. Os objetos primitivos e misteriosos da África negra seduzem os ricos. Da mesma forma, uma máscara fang da coleção de Pierre Berès foi vendida por 385 mil euros. A questão é saber quem se beneficia com a troca desses objetos? Os efeitos negativos do mercado transcultural neoliberal parecem, portanto, óbvios, assim como os resultados negativos da globalização econômica. A consolidação da assimetria, da desigualdade e da dependência entre artistas primitivos e artistas modernos, a miséria causada aos primeiros por não se beneficiarem de seu direito de propriedade intelectual e por verem usurpados seus direitos de posse pelos colecionadores e negociantes de artes primitivas, a exploração pelos negociantes que passam de país em país, de aldeia em aldeia, para arrebatar das comunidades objetos cujo valor artístico é excepcional, aparecem como catástrofes tão mortais quanto os terremotos e as calamidades naturais. Essas obras não são datadas nem assinadas, enquanto sua venda pode beneficiar somente os colecionadores e não as pessoas que as produziram. A dificuldade para os africanos de reivindicarem as divisas oriundas do comércio dessas obras é evidente. No direito francês, a característica fundamental das obras de arte, como estatuetas e esculturas, é que elas devem existir como propriedade intelectual do artista, isto é, executadas por suas próprias mãos. No entanto, no caso da arte primitiva africana, estamos lidando com obras anônimas ou comunitárias. Certamente, pode-se alegar que, como patrimônio cultural dos povos africanos, essas obras de arte pertencem às comunidades nas quais tinham funções religiosas e que, em virtude desse princípio, as comunidades teriam o direito de reivindicar sua reapropriação. Essa é a tarefa que foi assumida pela Fundação Zinsou em Cotonou (Benin): recuperar a memória do país berço do vodu, num contexto em que um leão Fon, vendido por 1 milhão de euros em dezembro de 2011 na Christie’s, pertenceria a Behanzin, o rei do antigo reino de Dahomey, atual Benim. Mas essa abordagem é confrontada com a fraqueza institucional, na medida em que as comunidades e os estados africanos ainda não tomaram consciência da importância da luta pela reapropriação de bens culturais coletados pelos ocidentais. A África se vê, portanto, privada de oportunidades oferecidas pelo mercado das obras de arte que eram de sua propriedade. A impossibilidade atual de não transferir o valor de mercado das produções artísticas tradicionais a seus produtores, no plano estritamente jurídico, impede que as comunidades tirem proveito das vantagens de um comércio que constitui ainda uma alternativa ao desenvolvimento endógeno. Assim, perpetuam-se as velhas receitas da exploração liberal. À pilhagem das riqueza econômicas, outrora denunciada pelos pensadores neomarxistas, 8 a partir do conceito de comércio desigual, associou-se a pilhagem dos bens culturais. Como consequência, surge um relatório de exploração, tanto econômico quanto cultural, que implica o reconhecimento da desigualdade entre os estados e as comunidades. O mercado transcultural neoliberal conduz, dessa forma, à depreciação tanto cultural quanto econômica das necessidades das comunidades africanas e de todas aquelas que viram seus bens culturais 8

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Carlos Roméo, Sur les classes sociales en Amérique latine, Paris, François Maspero, 1968, p. 30.


pilhados por colecionadores e negociantes europeus. Ele reproduz a opressão cultural e econômica associando as artes ditas primitivas à satisfação dos desejos narcisistas dos negociantes europeus. A mercantilização dos bens culturais bem como a especulação financeira, que dão origem ao objeto comercial, impõem às comunidades formas de vida contestáveis. Para pôr fim aos efeitos culturais e econômicos nefastos dessa mercantilização neoliberal dos produtos culturais primitivos, a África se vê forçada a restabelecer suas instituições políticas, jurídicas, econômicas e culturais. Ela deve, em particular, reinvestir no campo do diálogo intercultural. Esse reinvestimento deveria levá-la a tomar consciência da falência atual de suas instituições culturais reconhecendo, por exemplo, que várias de suas comunidades não estão preparadas – ou que elas devem se preparar – para se encarregar da responsabilidade de manter seguras e confiáveis as obras de arte antigas, atualmente na posse de colecionadores e negociantes ocidentais. Mas o diálogo cultural considerado aqui pode existir concretamente como regra de vida incondicional somente na medida em que venha a se aliar filosoficamente à diversidade cultural. Concordamos com Jacques Poulain que a diversidade cultural, seja ela cultural, social ou educacional, deve permitir a cada povo e a cada indivíduo o direito de dispor de si próprio e de julgar suas condições reais de existência, ao reconhecer seu direito próprio de julgamento sobre sua “natureza humana” e ao permitir que o juízo sobre outrem ou sobre si mesmo possa satisfazer suas próprias expectativas, independente do fato de tal julgamento ser considerado positivo ou negativo. Além disso, essa diversidade, ou melhor, essas diversidades culturais devem permitir que os indivíduos e os povos se autodeterminem em função da objetividade consensual, criando um mundo em que as diferenças se constituam e estabeleçam uma relação, a fim de curar a privatização do juízo que se apropria, como um saber quase divino, do que o outro deve ser e fazer. Consequentemente, essas diversidades culturais devem se tornar um projeto, e um projeto decididamente cosmopolita, no qual o reconhecimento público do direito que cada um tem de exercer um julgamento crítico em termos culturais, políticos e econômicos deveria caminhar lado a lado com o reconhecimento da democracia como condição objetiva da vida humana.

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O surrealismo enquanto poética no mundo moderno

Augusto de Guimaraens Cavalcanti Poeta e doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio

S

egundo Nicolas Bourriaud (2009), a arte moderna nasce no momento da invenção da fotografia e do cinema. 1 A arte moderna lida com uma visão aberta do presente. À procura do desconhecido, a dilatação do instante é transformada em uma atualidade sempre em curso de transformação. Mais do que um estilo novo, a modernidade é um novo espírito do tempo. 2 Neste contexto moderno, as “errâncias surrealistas” são comentadas por Bourriaud como práticas críticas de deriva urbana que valorizam o gesto, a dilapidação de energia e o conflito produtivo. Trata-se, no caso do surrealismo, de uma escrita em que o autor coloca em jogo sua própria existência e concretiza uma relação com o mundo em sua obra, propondo sua vida como modelo artístico pronto a ser adaptado segundo as escritas do acaso. É porque a modernidade nasce de hiatos, de fraturas do pensamento, que a montagem e a colagem serão procedimentos característicos da arte do século XX, por lidarem com a realidade heterogênea que se apresenta. 3 Em 1919, Max Ernst concebe a colagemartifício diferente dos papéis colados que até então haviam feito alguns artistas como Braque — em cima de uma concepção de alquimia visual, isto é, da “exploração do encontro casual de realidades distantes sobre um plano não conveniente”. 4 Tal exaltação da imaginação (imagem em Segundo Nicolas Bourriaud, um novo espaço mental se abre com o cinema. A primeira obra de arte que dialoga com as consequências da invenção do cinema é a Roda de bicicleta de Marcel Duchamp, de 1913. O ready-made representa a primeira obra cinematográfica em seu princípio em série. Sem imitar a forma fílmica, Duchamp utiliza a possibilidade cinematográfica de significar através da própria realidade, não precisando do auxílio de um signo ou do intermediário de uma representação. O ready-made marca a passagem do espaço simbólico para o tempo real do objeto. A figura do cineasta passa a procurar no artista um modelo de prática do presente suficientemente aberta para influenciar profundamente seus modos de produção. (BOURRIAUD, 2009, p. 34-35). 1

No mundo social do trabalho racional a arte será separada das outras atividades manuais. Como produto da civilização industrial, certo tipo de arte moderna se recusa a considerar a separação entre o produto da obra e a existência do artista. São estas formas artísticas refratárias à especialização e que criam pontos de passagem, perambulam pelos tempos mortos do rendimento máximo das forças produtivas. (Cf. BOURRIAUD, 2009). 2

3

BOURRIAUD, 2009, p. 31.

Em seu laboratório de possibilidades, Max Ernst começa a desenvolver métodos que lhe permitem ir para além da pintura em práticas fundadas sobre a irritabilidade das faculdades mentais em que a fricção, depois da colagem que tinha já fortemente atraído a atenção dos poetas, desempenha um papel preponderante. No entanto, o termo colagem é impróprio, já que a maior parte das colagens de Ernst foram feitas sem cola, mas oficializada pelo seu uso. (DUROZOI, p.248). 4

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ação) é gerada pela ferocidade de um tipo noturno de humor que materializasse o seu imaginário. Como aponta Max Ernst: “Se é são as plumas que fazem a plumagem, não é a cola que faz a colagem”. 5Para Ernst, a colagem seria um “instrumento hipersensível e rigorosamente exato, semelhante ao sismógrafo, capaz de registrar a quantidade exata das possibilidades de felicidade humana em qualquer época”. 6 A sucessão de imagens aspirada pelos surrealistas é tão intensa que os poetas a realizam com um fluxo verbal cuja associação de objetos visa adquirir uma eletricidade própria. Para Max Ernst, na colagem, a intensificação súbita das faculdades visionárias se desenvolveria numa “sucessão alucinante de imagens contraditórias, superpondo-se umas às outras, com a persistência e a rapidez que são próprias das lembranças amorosas”. 7 O mecanismo de funcionamento da colagem evoca o equivalente plástico da imagem poética; Max Ernst descreve: Um dia no ano de 1919 fiquei impressionado com a obsessão que exerciam sobre o meu olhar as páginas de um catálogo ilustrado em que figuravam objetos para a demonstração antropológica, microscópica, psicológica, mineralógica e paleontológica. Eu encontrava ali reunidos elementos da figuração tão distantes que a absurdidade mesma de sua reunião provocou em mim uma súbita intensificação das faculdades visionárias e fez nascer uma sucessão alucinante de imagens contraditórias.8 Desta forma Pierre Reverdy delineia a imagem poética: “Ela não pode nascer de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades mais ou menos distanciadas. Quanto mais relações entre as duas realidades aproximadas forem distantes e exatas, mais a imagem será forte – maior será a sua potência emotiva e a sua realidade poética”. 9 Por sua vez, Louis Aragon escreve para o catálogo de La Peinture au délfi (1930), um texto em que aponta a colagem como a única saída para o divertimento anódino da qual teria se transformado a pintura em suas preocupações temáticas, materiais e decorativas.10 Enquanto a intenção da colagem cubista é realista e referencial (o objeto de uso colado sobre a tela é o ponto de partida da organização do quadro e da sua sintaxe), na colagem de Max Ernst, os diferentes elementos utilizados são tomados para representar aquilo que já haviam representado, ou então para, mediante uma espécie de metáfora absolutamente nova, representar algo absolutamente diferente. A colagem surrealista parte de uma generalização dos procedimentos metafóricos até chegar em um plano em que a metáfora seja criadora de sentido. Por isso, a função da colagem surrealista é semântica e o seu funcionamento metafórico. 11 Vejamos como Jacqueline Chénieux-Gendron (1992) comenta a diferença entre a colagem do tipo cubista e a colagem do tipo surrealista: Quando Michel Leiris insere em Aurora a narrativa de sonhos realmente sonhados e anotados antes mesmo do projeto de escrever o texto, e declara depois que tais colagens parecem caucionar de algum modo a narrativa cuja perspectiva era autobiográfica (entendida esta palavra no sentido amplo), está praticando a colagem cubista. Quando Breton copia uma notícia de jornal, em que desloca apenas um nome de pessoa, substituindo-o pelo de Guillaume Apollinaire (Une maison peu solide, 1919, em Mont de piété), está fabricando aquilo que Mar5 6 7 8 9

Alexandrien, p. 65-66. Alexandrien, p. 97.

Cf. Ernst, Max . Au-delà de la peinture, Cahiers d’Art, n.6-7, 1936, retomado em Ecritures, p. 242. Ernst, Max. Au-delà de al peinture, 1936. Ecritures. Gallimard, 1970. Nord-Sud, março de 1919, Reverdy apud Chénieux-Gendron, p. 72.

Para que se compreenda a novidade da invenção de Max Ernst, Louis Aragon a distingue da colagem cubista de “papéis colados” em Braque e Picasso. Segundo Aragon, a colagem substituiu uma arte aviltada por um modo de expressão de uma força e de um alcance desconhecidos. Restitui um “verdadeiro sentido à velha atitude pictórica, impedindo o pintor de se entregar ao narcisismo, à arte pela arte, fazendo-o regressar às práticas mágicas que são a origem e a justificação das representações plásticas, proibidas por várias religiões”. (Cf. Alexandrien, p. 95.) 10

11

Cf. Aragon. Max Ernst, peintre des illusions, Les collages. Hermann, 1965.

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cel Duchamp teria chamado de ready-made perturbado, e a relação do texto copiado com a intrusão do nome de Apollinaire cria um efeito de colagem metafórica. (...) Para Breton, Aragon, senão para Éluard, a metáfora é criadora de sentido. Não se limita a revelar formas ainda desconhecidas por nós mas preexistentes – como garantia a teoria das correspondências baudelairianas. Se cria um real que depende dela e se inscreve no curso da história, é pelo efeito de sentido, pela intermediação da linguagem. (CHÉNIEUX-GENDRON, p. 81). A poesia será valorizada pelos surrealistas como atividade fundamental devido à sua capacidade de escapar dos limites impostos pela razão, visto ter o pensamento primitivo como fonte. Para explorar a capacidade poética na existência cotidiana, os surrealistas rejeitam o fantástico pitoresco e buscam ultrapassar a ficção para atingirem um estado de “alta ficção” (DUROZOI, p. 19), em que os contrários entrem em uma relação mítica de embate de símbolos. Nesse sentido, a arte primitiva influencia os surrealistas por ser uma diferente forma de arte que confere ao real um sentido irracional. Neste sentido, o pintor Paul Gauguin é valorizado pelo seu desejo bárbaro de opor a vida selvagem à vida civilizada quando vai para o Taiti no fim do século XIX. 12 No entanto, o que os surrealistas desejam mesmo é inventar sua própria mitologia no cotidiano urbano, em vez de recorrer a temas inspirados em outras mitologias clássicas; querem procurar por fontes inexploradas. 13 Para os surrealistas, viver segundo um mito é encarar a ação mais cotidiana como permeável, no limite, ao conhecimento. O mito é um discurso – sequência de enunciações ou frases portadoras de sentido – que se baseia em uma rede de imagens que joga com a polissemia da linguagem; “exige uma leitura poética que, longe de escolher a imagem e separá-la da isotopia do discurso, concede a todas as dimensões de significação igual pertinência”. 14 Por se situar no campo da experiência psíquica da contradição, os mitos não se baseiam em temas unívocos, concebem que toda concepção de verdade é também um efeito de significação. O poeta surrealista busca construir comparações sugeridas por atrações fulgurantes de comparações que não devem permanecer estagnadas, mas sempre em estado de rotação: “desviando cada objeto de seu sentido a fim de despertá-lo para uma realidade nova”. 15 Do encontro de relações inesperadas entre as palavras e as coisas é que surge a evocação do maravilhoso cotidiano. Nesse sentido, os surrealistas valorizam a imaginação e a infância como mananciais de uma “verdadeira vida” guiada pelo sentido do jogo e pela poesia de associações imprevistas. Nessa via transgressora do previsto, o surrealismo combate conceitos formais da antiguidade como harmonia e equilíbrio, criticando o fato de a estética rejeitar tudo o que não lhe corresponde. Por isso, os surrealistas buscam grupos sociais que escampem às determinações (morais, ideológicas, religiosas) do Ocidente, buscando nestes grupos certa virtude mágica da arte por oposição ao seu valor decorativo ou puramente de fruição estética. 16 Também o conceito de belo é ampliado como concepção selvagem ou algo que pode não estar submetido à visão “civilizada” de mundo. Como ressalta Sarane Alexandrian (1976), para além da mera curiosidade, os surrealistas levam ao extremo o interesse pela criação de povos longínquos, mas rejeitam a solução plástica realista das máscaras africanas; preferem se comunicar como o espírito que dita estas formas. Assim, os surrealistas opõem a arte oceânica à arte africana justamente 12

Cf. Alexandrien, p. 22.

Do ponto de vista surrealista, uma arte primitiva como a oceânica não poderia ser vista à margem da produção oficial, muito menos como algo a ser analisado a título de curiosidade ou de desvio da norma estética ocidental. No entanto, recopiar os seus processos formais não seria senão instituir um novo academicismo. O que interessa aos surrealistas é em abordar a fecundidade de um onirismo e de um pensamento mítico ocultados pela história oficial. Tal arte oceânica contrastaria com a monotonia de uma pintura oficial domesticada. 13

14 15

CHÉNIEUX-GENDRON, p. 70-76.

Por exemplo, a revista surrealista VVV persistirá em mostrar a importância das bonecas Katchimas esculpidas pelos índios do Arizona à imagem dos seus deuses e que constituem, segundo Breton, “a justificação mais brilhante da visão surrealista”. (DUROZOI, p.229). 16

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CHÉNIEUX-GENDRON, p. 121.


pelo poder de interpretação poética do mundo em oposição a uma arte baseada em critérios realistas. 17 Da profusão de uma variedade de estilos, os surrealistas valorizam na arte melanésia o fato de nela a representação conceitual prevalecer sobre a representação perceptiva. 18 O surrealismo explora zonas da arte que haviam sido até então relegadas à etnografia, como a arte bruta. O convite surrealista ao primitivismo traz uma solicitação ao despojamento de si e também uma lembrança das virtudes das civilizações não ocidentais que lhes interessam. Entre o abstracionismo e o realismo, o surrealismo defende a existência de um figurativismo mágico cuja possibilidade foi mostrada pelas artes ditas “selvagens”. Assim, os surrealistas buscam indefinidamente novas narrativas primitivas e míticas como espécies de racionalidade superior que nunca se deixa cicatrizar pelos acervos do conhecimento. No entanto, o surrealismo combate mitos do tipo religioso por considerá-los opressivos. Para criar novos mitos os artistas surrealistas lutam contra os mitos mumificados pela religião ou adulterados para uso das massas. Para Benjamin Péret, as religiões trabalham com o empobrecimento da poesia mítica e terminam por ossificar a poesia em narrativas quase estanques. 19 Tal é o mito buscado pelo surrealismo: “não conteúdo de crenças, imposto pelo exterior a uma consciência humana (leitura narrativa de uma proposição paradigmática), mas desejo de estranhamento sensível, cujo conteúdo deve ser inventado” e constantemente reinventado por cada poeta. 20 Diferentemente dos primeiros apreciadores dos fetiches bárbaros do princípio do século XX, os surrealistas selecionam os seus objetos de predileção, agindo de uma forma parecida com etnógrafos. O que, na mentalidade mítica, parece primordial aos surrealistas é que ela precede a separação dos poderes do homem, esses poderes que o projeto surrealista tem precisamente como fim reunificar: anteriormente à instauração de uma distinção entre poesia, filosofia e ciência, como afirma Benjamin Péret: É preciso admitir que um denominador comum, que não pode deixar de ser a magia, une o feiticeiro, o poeta e o louco. Ela é a carne e sangue da poesia. Melhor, na época em que a magia resumia toda a ciência humana, a poesia ainda não se distinguia dela. [...] o homem dos tempos antigos apenas sabe pensar segundo o modo poético e, apesar da sua ignorância, penetra talvez intuitivamente mais longe nele próprio e na natureza, da qual mal está diferenciado, do que o pensador racionalista ao dissecá-la a partir de um conhecimento completamente livresco. [...] não se trata aqui de fazer a apologia da poesia à custa do pensamento racionalista, mas de protestar contra o desprezo da poesia por parte dos detentores da lógica e da razão. [...] O homem primitivo ainda não se conhece, procura-se. O homem atual perdeu-se. O de amanhã deverá reencontrar-se primeiramente, reconhecer-se, tomar contraditoriamente consciência de si mesmo. 21 Segundo André Breton a escultura oceânica, tanto pela escolha de seus temas como pela sua técnica, se opõe à estatuária africana por não corresponder a uma visão excessivamente realista das coisas. A estatuária africana havia sido reabilitada pelos cubistas de um ponto de vista técnico que concernia a seus modos possíveis de figuração, e não coincidiam com o ambiente de revelação que caracteriza a abordagem surrealista da arte primitiva. No começo a aventura surrealista é, para Breton, inseparável da fascinação exercida pelas obras oceânicas. Tais obras oceânicas são consideradas como um maravilhoso ao alcance do homem, uma arte que, exprimindo mitologias sempre vivas, possui uma densidade poética própria em que a preocupação do belo é secundária à sua intenção expressiva. (Durozoi, p. 231-236). 17

Desde 1948, os surrealistas marcam a oposição entre a África e a Oceania a partir do confronto entre a abstração e o espírito mágico, entre a redução (metonímica) de qualidades exteriores e a síntese metafórica. O que os cubistas interrogam na arte africana são as questões técnicas, os planos e os arranjos, as combinações de volumes, a estrutura de suas formas. Já os surrealistas interrogam a arte oceânica em sua função mesma. Os surrealistas irão valorizar na própria Europa a arte celta e sua desproporção como um contrapeso à influência maciça da arte grega na arte ocidental e sua visão antropomórfica de mundo que estagnaria o movimento e cristalizaria a emoção ocidental. (Cf. CHÉNIEUX-GENDRON, p.25 & ALEXANDRIEN, p. 27). 18

Em contraposição, Georges Bataille, ao ser chamado para escrever para o Surréalisme em 1947, defende que a ausência do mito é o mito moderno por excelência. Esta posição passa a ser incompatível com o grupo bretoniano. 19

20 21

CHÉNIEUX-GENDRON, p. 125-127.

Péret, Benjamin. La Parole est à Péret. In. Déshonneur des Poètes, J.J.Pauvert, col. Libertés, 1945, p. 51. Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Para os surrealistas, a imagem poética é a vida de todo conhecimento22. Trata-se, para cada surrealista, de definir seu método de investigação nesta “floresta de indícios” que é a cidade. O inconsciente dos poetas engendra-se diretamente no núcleo misterioso das cidades, e isto mais especialmente nos lugares em que o maravilhoso cotidiano gosta de se revelar: as ruas, as praças públicas, os teatros e os cinemas populares, as feiras e os cafés. Os poetas são viajantes atentos a procurar por palavras condutoras e objetos que possam ser deslocados de modo a fazer-lhes ocupar posições insólitas uns em relação aos outros. São estas combinações bruscas e deslumbrantes que visam reinventar os meios de conhecimento que os primitivos e as crianças utilizam naturalmente. Para os surrealistas o real ainda é desconhecido, seria ainda preciso reintegrar o homem ao real através da imaginação poética; seu principio motor seria o desejo para o qual a imaginação cria e gera o real. 23 As frequentes incursões dos surrealistas ao Marché aux Puces (Mercado das Pulgas) – principalmente no tempo de Nadja (1928) –tinham como fim a procura de objetos fora de moda, cuja necessidade prática não fosse evidente e que pudessem ser descobertos dentro da categoria do insólito com a atração do nunca antes visto de objetos encontrados; estes objetos encontrados se multiplicariam anonimamente. Nesta busca pelo insólito no cotidiano, Breton costumava dar especial valor para as pedras, já que via no reino mineral o “domínio dos índices e sinais”. Organizava grupos para procurar pedras nas margens do rio Sena e considerava que, quando se interpreta uma pedra que se descobre, cultiva-se um sentido poético que no homem precisa ser educado. As pedras seriam ready-mades cuja função alquímica seria a de “tornar espiritual tudo o que há de mais material”. Segundo Sarane Alexandrian, Breton afirmava que “uma pedra insólita encontrada ao acaso possuía mais valor do que a que foi procurada e desejada com todas as forças: As pedras – as pedras duras por excelência – continuam a falar àqueles que querem ouvi-las. Dirigem, a cada um, uma linguagem à sua medida”. 24 Quando interroga os objetos e escuta a língua das pedras, Breton age: ele ouve-se, ao ouvir o mundo. Seu poder de fabulação recria o mundo à imagem de seu delírio. O poeta surrealista busca uma matéria bruta do pensamento, livre das determinações acumuladas por sua biografia. Como propõe Paul Éluard, “é a poesia que deve fazer o poeta, não o inverso”. Também Rimbaud afirma: “É falso dizer: Penso. Dever-se-ia dizer: Pensam-me”. 25 O poeta Éluard o explica em uma breve fórmula: “o poeta é muito mais aquele que inspira do que aquele que é inspirado”; “ver, é receber, refletir, é dar a ver”. 26 Longe de pretender ser o primeiro movimento a enveredar pelos caminhos que trilhavam, os surrealistas pensavam “levar ao paroxismo um estado de espírito que outrora animara alguns criadores isolados, mas que estes não tinham ainda desenvolvido até uma total emancipação da arte”. 27 Diferentemente dos futuristas, os surrealistas não queriam destruir as bibliotecas e os museus, mas construir outro tipo de tradição a ser valorizada ao invés das glórias, dos lauréis e dos corolários já consagrados. Guillaume Para além das figuras dos discursos, o conceito de imagem, para os surrealistas, abrange as imagens mentais e textuais em uma relação que não é direta, mas que se fundamenta na riqueza das imagens geradas a partir desta relação. A consciência imaginante é valorizada como produtora de devaneios em uma relação na qual consciência perceptiva e consciência imagética se interconectem em uma espécie de explosão de analogias imprevistas a justapor duas ou mais realidades distantes. Pela imagem poética se pode vislumbrar uma interdependência geral dos objetos do mundo, sendo tudo comparável a tudo. A imagem do poema faz desvanecer qualquer preocupação com um sentido prático direto; ela cria seu próprio sentido e redefine a noção de insólito. Para os surrealistas, a invenção da metáfora depende da simultaneidade da aproximação aleatória de significantes a gerar efeitos de sentido pela efusão de novos significados que surjam de significantes que tenham a liberdade de se entrecruzarem numa espécie de alquimia das letras a valorizar o poder relacional da linguagem. 22

23 24 25 26 27

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DUROZOI, p. 50-164.

ALEXANDRIEN, p.147-149. DUROZOI, p. 116-182. DUROZOI, p. 295.

ALEXANDRIEN, p. 11.


Apollinaire revelou aos surrealistas que o poeta deve buscar uma cumplicidade com o pintor, e que este deveria ser um aliado na busca do desconhecido. Não à toa que tantos pintores participam do grupo surrealista: no surrealismo, pintores são vistos como poetas e vice-versa, pois o processo pictural e o poético são potencialmente idênticos para a arte mental surrealista. Para os surrealistas, tanto a pintura quanto a poesia – para serem realmente significativas – devem alargar o campo de conhecimento humano. Segundo Breton: “O surrealismo assinala à imaginação pictural um fim que é o da poesia: que se levante a cortina sobre o espaço em que o homem, liberto das opressões da realidade exterior, triunfa dos seus fantasmas e muda a vida”. 28 O termo “surrealismo” utilizado por Guillaume Apollinaire como “fantasia lírica” na peça Les Mamelles de Tirésias (1917) adquire um significado muito mais experimental com o grupo de André Breton. Antes de ser uma concepção de beleza que se propagou em todas as artes plásticas, o surrealismo foi uma revolta contra a estética, revolta esta que substitui a estética pelo gosto do acaso. Através do surrealismo as noções tradicionais de quadro e de escultura são trocadas por jogos de palavras e de coisas. O surrealismo valoriza sobremaneira a possibilidade de transformar um objeto comum em raro pela intervenção pessoal do artista criador. 29 Inicialmente, no primeiro período de sua criação, o surrealismo teve uma intenção satírica de contestar a utilidade dos objetos domésticos e opor objetos de sua fantasia a objetos de arte. Como mostra Sarane Alexandrian (1976), só em um segundo momento os surrealistas renovaram a psicologia dos objetos e aprofundaram o seu significado e sua ação na vida humana. O que impede de conceber o surrealismo como um movimento puramente de negação ou antirracionalista é o fato de ele possuir preocupações opostas a toda a concepção que mutile a razão – “o surrealismo não gosta de perder a razão: gosta de tudo o que a razão nos faz perder”, segundo Breton. Ainda André Breton descreve que, por excelência, o ponto móbil que move a atividade surrealista é a esperança de encontrar um certo ponto em que “a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo” possam deixar de serem percebidos contraditoriamente. 30 O elemento surreal ou o suprarreal não é contrário ao real, mas sim a reintrodução naquilo que habitualmente é considerado como real daquilo que era mantido à sua margem. 31 Para os surrealistas, o sonho traz vestígios de organização e pode ser aplicado às questões fundamentais da vida. Dois estados aparentemente contraditórios como o sonho e o real formariam uma espécie de realidade integral pelo produto de suas tensões para formar uma dimensão suprareal. Em conformidade com as contradições da vida, este “suprarreal” seria formado pela permanente comunicação entre o sonho e o mundo real, sem que este diálogo gerasse uma confusão entre a distração e sua prática. Desse modo, a “suprarrealidade” é definida por Louis Aragon como a relação em que as dimensões opostas se avizinham; relação em que o espírito engloba o “horizonte comum das religiões, da magia, da poesia, do sonho, da loucura, das embriaguezes e da frágil vida, essa trêmula madressilva que acreditais bastar para povoar o céu”32. Nesse sentido, todas as opções surrealistas estão marcadas por uma tentativa geral de reconciliar opostos em uma reconciliação que nunca 28 29 30

DUROZOI, p. 250.

Cf. ALEXANDRIEN, p. 30.

BRETON apud DUROZOi, p.108.

O suprarreal ou surreal não é o sobrenatural ou um principio religioso transcendente. Trata-se antes de um princípio imanente que “não se deixa reduzir ao irreal”. Distingue-se contudo daquilo que comumente é chamado real, porque “o mostra sob um aspecto completamente novo. Une nele, com efeito, todas as formas do real. Integra mesmo o que se chama com demasiada facilidade o irreal, porque o irreal é pelo menos um elemento do imaginário, e o imaginário uma forma de existência humana”. O suprarreal é uma noção que “foge como o horizonte diante do caminhante”, porque é depois de ultrapassar os dois conceitos (real e irreal) que o supra-real “imagina uma relação mais geral, em que estas duas relações se avizinham”. (Cf. DUROZOI, p. 45). 31

32

Aragon, Louis. Traité du style, Gallimard, 1928 e 1980, pg,187. (Aragon apud Chénieux-Gendron).

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se complete, nunca coloque fim ao seu movimento: mantendo no máximo ponto de tensão as duas atitudes simultâneas. Afirma André Breton em Vases comunicantes (1932) que: “comparar dois objetos tão afastados quanto possível um do outro, ou utilizando outro método, reuni-los de uma forma brusca e impressionante, continua a ser a tarefa mais elevada a que a poesia pode aspirar”. 33 Este poeta cuja atividade é comandada por uma ação capaz de ultrapassar a antinomia do sentido racional e intuitivo do conhecimento possui critérios que são também sensoriais. Longe de se comprazer num devaneio sem eficácia, este poeta busca interconectar conhecimento e prática humana em um processo de permanente transgressão das separações habituais da lógica cartesiana. 34 Ao contestar a separação irreparável entre ação e sonho, o poeta reinventa uma palavra poética que, numa espécie de tensão demiúrgica, busca conceder à linguagem uma preponderância imagética de leitura e um instinto de surpresa. Este instinto de surpresa perturbadora agiria contra os perigos do esteticismo. Assim, os poemas surrealistas são construídos sob uma ideia de choque –confronto entre a palavra e a coisa – em que certa beleza convulsiva é buscada em um conflito agudo em permanente estado de tensão. Um caso exemplar de tal poética parece ser René Magritte. Seja aproximando objetos semelhantes para lhes fazer sobressair as diferenças, ou colocando um objeto em contradição com a palavra que o designa, Magritte dedica-se à tarefa de tencionar sua observação ativa da realidade. Mesmo se apoiando solidamente no objeto que o inspirou, Magritte pode mudar o seu sentido pelo seu poder de perpétuo estranhamento. Sua pintura não é uma prospecção do invisível: trabalha com a exclusão de símbolos e mitos, transmite fielmente o real e mesmo assim muda o seu sentido. Cada quadro seu é um ato de reflexão poética sobre o mundo que busca mais levantar novos problemas que ponham de novo em questão as soluções adquiridas do que encontrar novas soluções para velhos problemas. Sua técnica é serva de suas ideias. 35 O acabado da obra tem menos importância do que a intenção que nela transparece. As preocupações linguísticas estão no centro do surrealismo, já que não há pensamento fora das palavras, todo o surrealismo sustenta esta proposição. A poesia surrealista não descreve uma visão anterior e por isso não é mística: é a partir da poesia que se pode buscar uma iluminação. A vidência poética não pode ser assimilada por um poder visionário. O desregramento dos sentidos deve ser também compreendido como um desregramento dos significantes. 36 Em uma espécie de tensão demiúrgica o poeta acredita ser possível recriar uma palavra efetiva que seja a figura de uma ideia que corroa a ideia de casualidade através do pensamento mítico. Os mitos dos primitivos são considerados como narrativas de legítima exaltação poética. Para artistas surrealistas como André Breton e Louis Aragon, não há progresso possível sem mito, não há nenhuma possibilidade de “superação suprarreal sem intenção mítica, sem explosão dos desejos num mito exaltante”. O estado anárquico organizador das coisas seria mantido pela poesia e pelo mito. No Préface à une mythologie moderne, Aragon denuncia a ilusão dos filósofos, seja a qual for sua obediência, de pretenderem que a evidência conduza à verdade, que a certeza signifique a realidade. Com efeito, a quem se engana, o erro parece tão evidente como a verdade: “O erro é acompanhado de certeza. O erro impõe-se pela evidência”. Mitos novos nascem sob cada um dos passos errantes do poeta; uma mitologia ata-se e desata-se por uma poética do acaso e seus erros produtivos e fecundos. “A qualquer erro dos sentidos correspondem estranhas flores da razão”. 37 Em primeiro lugar, o surrealismo se situa no plano da linguagem sem estar submetido à dupla 33 34 35 36

106

37

BRETON apud ALEXANDRIEN, p. 127. DUROZOI, p. 138-143.

Cf. ALEXANDRIEN, p. 128-129. DUROZOI, p. 133.

DUROZOI, p. 190-193.


sujeição da lógica e da comunicação imediata, já que se verifica que a palavra, em si própria, se beneficia de certa independência em relação ao sentido que vulgarmente se lhe reconhece. O que mais importa ao surrealismo é a exploração do caráter plurissemântico da palavra poética. À palavra poética seria dado o poder de explorar a constante interpenetração do físico no mental para triunfar sobre o dualismo da percepção e da representação. Neste sentido, Breton define uma nova concepção de escrita por oposição ao escritor que pretende dominar e domar seu discurso. A linguagem é vista por Breton como algo diverso de um meio de comunicação de mediação inerte entre locutores. Para os surrealistas, a linguagem tem a sua vida própria, o seu modo particular de existência, independentemente da utilização que dela se pode fazer. Haveria um além do sentido ilimitado da linguagem para a qual uma palavra poética não submetida aos referentes coletivos poderia conquistar sua autonomia relativa a todas as ideologias. Do ato de negar a função imediata de comunicação da linguagem é que o surrealismo constrói sua atividade criadora de um mundo que almeja ultrapassar os empregos corriqueiros da língua para se entregar a uma irrupção de imagens que faça transgredir os limites cotidianos em uma combinação que faça ir além do concebível e do dizível. 38 Nesse sentido, André Breton considera as inspirações verbais como infinitamente mais ricas de sentido visual e muito mais resistentes ao olhar do que as imagens visuais propriamente ditas. Por isso, o surrealismo gira em torno da imagem verbal e suas implicações na escrita e seu número de combinações possíveis. A palavra desembaraçada de seus referentes pela sua inclusão num contexto fora do habitual concede a um eventual acompanhamento visual uma margem de indeterminação muito mais extensa do que a imagem entrevista por relações mais estreitas com o real. 39 Os surrealistas acreditam ser possível deixar falar em si a linguagem, que ela tenha vida própria em um texto que revele a imaginação pessoal do escritor e seus sonhos reais; para os surrealistas esta imaginação pessoal é muito mais selvagem e potente do que os racionalistas o fariam pensar. O ponto supremo buscado pelos surrealistas não é transcendente, mas somente se atinge em um estado momentâneo de indistinção entre um animal, uma chama ou uma pedra. Tal sentimento imagético do real se atinge pela consubstanciação com um pensamento selvagem que pensa o mundo sentindo-o; tal como nos primitivos, percepção e representação não se separam, mas formam uma faculdade única de percepção. 40 Assim como se nega a ser uma metafísica da poesia, o surrealismo também não deve ser lido como uma poética do fantástico em si, já que busca uma forma de realidade em que todas as contradições da vida sejam equacionadas em estado de fratura de modo que se possa extrair o caráter fantástico do real mais cotidiano. Não se trata de opor um universo fantástico à realidade, mas de conciliar esta com o processo lógico dos estados delirantes ou oníricos, para formar uma sobrerrealidade. 41 Dessa forma, mesmo que a poética surrealista se baseie no culto ao estranho e na exaltação do imaginário, quase nenhum antepassado da arte fantástica, barroca ou maneirista é por ela valorizado, já que o surrealismo exclui o maravilhoso elaborado sem necessidade interior, sem a completude do desejo e do sonho na descrição do impossível. Aquilo que Louis Aragon sublinha como uma “metafísica do concreto” – definindo a atividade surrealista – não se trata de uma “magia do além”, mas de uma “magia do aquém”. Para Aragon, no caso do surrealismo, também o concreto é igualmente um objeto de interesse metafísico, ambos são vasos comunicantes, sendo possível pensar em uma metafísica do concreto. 42 Para diminuir a antinomia entre a razão e a desrazão, os surrealistas não escolhem a loucura contra a 38 39 40 41 42

DUROZOI, p. 113-115. DUROZOI, p. 133. DUROZOI,p. 200.

ALEXANDRIEN, p. 52.

DUROZOI, p.173-174. Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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razão – sendo essa escolha tão exclusiva e injustificável quanto a escolha inversa que é da ordem social – mas, pelo contrário, “trata-se de fazer admitir que não poderiam existir razões sérias para afastar “a priori” certas possibilidades do espírito da dita razão normativa da existência”. Desprezar a loucura seria criar uma separação entre o normal e o patológico e mutilar o mental, quando o que o surrealismo busca é explorar todas as possibilidades do espírito sem dar preferência a nenhuma delas. O que está em jogo é o poder metafórico da linguagem como combinatória sempre a descobrir imagens poéticas novas. A atividade do jogo pode ser um grande motor do universo surrealista. Tomar o jogo a sério é, para os surrealistas, além de tomar a atividade lúdica como reinvindicação de liberdade, “mostrar que a verdadeira seriedade não está de modo nenhum onde habitualmente se situa”. 43 Para os surrealistas toda atividade criativa é mítica, inclusive o jogo: na medida em que ela nega as antinomias entre as realidades exteriores e arma a imaginação para o outro lado das coisas. À arte é permitido reencontrar a infância pelo prazer do jogo e por certo caráter primitivo que faz tábula rasa das convenções morais mais utilitárias. 44 Em vez de reforçar uma subjetividade fechada sobre si própria, o artista surrealista deve procurar atingir uma intersubjetividade no interior da qual as diferenças pessoais, sem se abolirem, vêm enriquecerse reciprocamente e alongar o campo mental de cada uma.45 Ao mostrar o que o mundo tem de irracional, a imagem poética surrealista constrói seu estremecimento pela fusão das coisas entre si e pela fusão do ser nas coisas. Trata-se de uma espécie de razão ardente de alquimia da linguagem. Contrariamente aos místicos ocultistas que procuram um aniquilamento na visão, o surrealista recorre a uma supraconsciência que seja consciente daquilo que se passa nas camadas mentais mais densas. O surrealismo é, antes de tudo, uma prática da linguagem ligada a uma leitura da vida. Para Breton, a literatura não é um fim, mas um meio. 46 Nesse sentido, toda obra surrealista quer criar uma espécie de “realismo aberto”, um “realismo sem margens”.47 Não se trata, absolutamente, de falta de rigor. Como afirma Louis Aragon: “Que não se creia que o surrealismo seja um refúgio contra o estilo. No surrealismo tudo é rigor. Rigor inevitável”.48 Segundo André Breton, um poema não deve ser julgado pelas representações sucessivas que provoca, mas antes pelo poder de encarnação de uma ideia, a que as representações, libertas de toda a necessidade de encadeamento racional, apenas servem de ponto de apoio. O alcance e a significação do poema são outra coisa que “a soma de tudo o que a análise dos elementos definidos que ele utiliza permitiria aí descobrir”.49 Tal capacidade ilimitada de assimilações possíveis da imagem poética remonta à fonte dos ritos mitológicos. Tal ponto de vista “bretoniano” trabalha a imagem poética como uma ponte entre uma imagem e outra para apostar na capacidade imagética de recompor uma cadeia de analogias. Deste modo declara André Breton: “Nunca experimentei o prazer intelectual a não ser no plano analógico”. 50 O homem não vê sobre a terra senão uma “explosão de aspectos da realidade que certamente mantêm relações em profundidade, mas que o raciocínio lógico nunca penetrará. Estas antinomias aparentes não serão resolvidas senão pela força da analogia, pela intuição poética”. 51 Tal intuição poética sobre o mundo deve ser capaz de gerar aquilo que 43 44 45 46 47 48 49 50 51

108

DUROZOI, p. 154-158. DUROZOI, p. 206. DUROZOI, p. 254.

DUROZOI, p. 303-305. DUROZOI, p. 295.

ARAGON, Traité du style. (ARAGON apud DUROZOI p. 312). Cf. DUROZOI, p.65.

BRETON apud DUROZOI, p.205. DUROZOI, p. 199.


Apollinaire definiu como uma “razão ardente”, para opor à razão fria dos racionalistas. 52 O projeto surrealista recoloca no circuito comportamentos e práticas antes marginalizadas pelo exercício da poesia. Os surrealistas encontram seus antepassados em uma linha que vai de Nerval a Novalis, passa por Gauguin Lautréamont e Rimbaud, e tende a “fazer voltar o homem ao sentimento primordial que teve de si mesmo e que o racionalismo positivista corrompeu”. 53 Para os surrealistas os jogos de linguagem não são gratuitos, mas perturbam o funcionamento dos hábitos mentais e a própria concepção de realidade. 54 Os poetas jogam, escreve Paul Éluard, “mas pela primeira vez desde a origem do mundo, tome muito cuidado, eles estão jogando como homens”. 55 Na medida em que o surrealismo se apresenta não como um saber, mas como uma prática num domínio poético e plástico, as associações livres propostas pelos surrealistas são de utilidade prática, propõem uma trama relacional da equivalência de contrários. A maior busca surrealista é reconstruir as pontes entre o sonho e o real, entre o sujeito e o objeto. Como expõe Paul Éluard, não há dualismo entre a imaginação e a realidade: “tudo que o espírito do homem pode conceber e criar provém do mesmo veio, é da mesma matéria que a sua carne, que o seu sangue e o mundo que o cerca”. 56 De modo a pôr em prática uma relação dialética entre o escrever e o viver – que mutuamente se fecundam – os surrealistas buscam mesclar na escrita escritor e objeto até que estes já não mais se diferenciam como blocos fundidos que escapem da estética e até da própria noção de literatura. Para diminuir a distância entre vida e sonho, os surrealistas se utilizam dos acontecimentos biográficos e das rêveries nascidas de leituras como dados que sirvam para condensar a escrita em um plano em que imaginário e vivido não cessem de remeter um para o outro em seu processo de descoberta. Neste contexto de descobrimentos e achados, o surrealismo representa, primeiramente, uma atitude perante o mundo, fundada pelo desejo de restabelecer a continuidade do eu ao objeto. Tal continuidade almejada determina um comportamento lírico que pintores e poetas adotam ao interrogarem os mistérios dos objetos de modo a ouvir a voz de tais objetos em um instante em que ocorre um achado. É por isso que, para o surrealismo, se torna necessário vaguear ao encontro de tudo. “Esperar é o ato poético por excelência”. 57 A imaginação não é tomada como um jogo gratuito, mas sim como um jogo de riscos proveniente da aproximação de duas ou mais realidades afastadas. Através de um primado da imaginação, no surrealismo, a vida já não mais aparecerá como um fato, mas sim será “um fato primitivo e uma energia indecomponível”. 58 Os surrealistas apostam nos poderes da palavra poética regida por uma espécie de pensamento mítico pelo qual “o valor poético se descobre no mesmo momento em que é transgredido”. 59 Como escreve Francis Picabia, os surrealistas sonham tocar “o princípio da matéria” das palavras. 60 A invenção poética é definida por Louis Aragon como um “realismo sem beiras”. 61 52 53

Cf. DUROZOI, p.2 02.

BRETON, André, Entretiens, 1950, reed. 1969, p. 285.

Para Paul Éluard, as palavras são signos enganosos, são mais as frases do que as palavras que constituem a matéria prima do pensamento: um conjunto de sentidos que se faz e se desfaz a cada instante por mil trocas. Uma nova linguagem deve ser buscada liberada da obrigação de significar. Seria esta uma linguagem que permaneceria aberta a todas as virtualidades do sentido e que constituiria um “análogo sensível”. Somente a linguagem liberta daquela “que basta aos tagarelas” pode se tornar poética. (Cf. ÉLUARD, prefácio à coletânea Les animaux et leurs hommes, 1920, apud CHÉNIEUX-GENDRON, p.78) 54

55 56 57 58 59 60 61

ÉLUARD, Paul. Conduite intérieure, La vie moderne, 4-11 de março de 1923. L’evidence poétique, Pléiade, I, p. 516. DUROZOI, pp.335.

CHÉNIEUX-GENDRON, p.3. CHÉNIEUX-GENDRON, p.8.

CHÉNIEUX-GENDRON, p.41.

CHÉNIEUX-GENDRON, p.181. Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Segundo a utiliza muitas vezes André Breton, em francês, a palavra tradition (tradição) rima como bâillon (mordaça) 62. O senso de provocação surrealista começa a partir da nomeação por antífrase da revista Littérature (em 1919) que remete à legenda da art poétique de Verlaine: “E todo o resto é literatura”63. A radicalização da dúvida cartesiana é trabalhada pelos surrealistas como um método de invenção em que toda a civilização é questionada, todas as ideias em uso são contestadas, todas as convenções são repensadas em função de uma maior adequação às paixões. Mesmo assim, o surrealismo não rejeita a paciência nem a erudição, que respondem a outro desejo, o de compreender e de analisar. 64 Para os surrealistas, a poesia deve escapar aos especialistas. Trata-se de inverter a hierarquia de valores tradicionais e recusar o caráter positivista da arte conceitual. De modo a corroer os corolários nacionalistas, Breton defende o plano da poesia como um conceito de revolução permanente. O surrealismo se afasta de uma tradição majoritária para se apoiar em filosofias e artes não racionalistas, não normativas, não etnocentristas. André Breton desloca a ideia de “belo” da ideia de gosto e de prazer estético. Em divergência com uma estética clássica, os surrealistas são alheios à preocupação com a figuração e com a obediência às regras (às vezes quase transcendentes) que permitiam atingir o belo. A ideia de projeto estético em seu sentido racional é abandonada: “a escrita e a arte surrealistas não se definem nem por um estilo, nem por uma feitura”. 65 Realizando a alusão metafórica em nome de um “racionalismo aberto”, o imaginário surrealista trabalha com o “reabastecimento de toda atividade poética (entendida no sentido mais amplo, sem preocupação com modo de expressão nem gênero)”. 66 Para estes, a linguagem é o termo de uma sensação, como se lhe sentissem o “poder germinativo”. 67 Para os surrealistas, a poesia já é ação: “escrita em ato e não na busca conceitual de verdade”. 68 O que os surrealistas descobriram a partir do inconsciente foi menos um lugar de volta às fontes do que o imaginário como função central do sujeito, a partir da qual se reordenam conhecimento e ação. Para os surrealistas, a imaginação seria muito mais do que mero poder de distanciamento. Ela seria participante ativa em toda ação, como ressalta André Breton: “A imaginação não é dom, mas por excelência objeto de conquista”. 69 A partir de uma desconfiança de que o erro e a verdade não podem ter traços diferentes (que ambas dependem de seu oposto para se impor por evidência), Louis Aragon busca extrapolar a noção de mito e inverter a proposição segundo a qual os mitos de hoje seriam os resíduos da atividade consciente do homem. O homem moderno estaria impregnado de uma atividade mítica e a poesia chegaria a tocar o símbolo (não mais tocado pelo intelecto) através da presença de múltiplas condensações70. A fim de que se desaprendam os dualismos, os surrealistas irão valorizar o mundo pré-lógico da infância, dos primitivos e

62 63 64 65 66 67 68

Cf: CHÉNIEUX-GENDRON, p.29. CHÉNIEUX-GENDRON, p.36.

Cf. CHÉNIEUX-GENDRON, p. 211-212. CHÉNIEUX-GENDRON, p. 188.

CHÉNIEUX-GENDRON, p. 212. CHÉNIEUX-GENDRON, p. 197. CHÉNIEUX-GENDRON, p. 124.

Assim prossegue Breton : “Digo que a imaginação, onde quer que tome os seus empréstimos – para mim, isto fica por demonstrar – se de fato toma empréstimos, não tem de se humilhar diante da vida. Haverá sempre, particularmente, entre as ideias ditas recebidas e as ideias...quem sabe, por receber, uma diferença capaz de tornar a imaginação senhora da situação do espírito”. (BRETON, André. Il y aura une fois, Le surréalisme. ASDLR, nº1, julho de 1930. 69

70

110

CHÉNIEUX-GENDRON, p. 122-123.


dos loucos. 71 O prazer de transgredir certas leis da linguagem está presente no surrealismo como modo de interrogar as interdições que separam o homem de seu próprio pensamento, questionando o divórcio irreparável entre a ação e o sonho, interrogando a oposição do ato à palavra, do sonho à realidade, do presente ao passado e ao futuro. 72 O imaginário, para os surrealistas, está no centro das faculdades do homem. Para os surrealistas, o plano da imagem poética está no plano da ação e não da construção lógica de pretensão racional. Embora ela tenha uma lógica própria, a imagética surrealista busca devolver nos pensamentos que se haviam tornado inoperantes na vida em sociedade uma eficácia primitiva baseada na produção de analogias. Como descreve Louis Aragon, pela imaginação surrealista a vida pode ter restituída a sua “cor trágica”. 73 Assim, os devaneios e os sonhos noturnos são valorizados pelos surrealistas como fontes de revelação da capacidade humana de ampliação de consciência. Mergulhar sem rigor na vida seria ser infiel ao imaginário de acontecimentos possíveis. Diante da realidade dos lógicos impera o princípio da não contradição que separa o pensamento e a linguagem. Já para os surrealistas, pela prática do “pensamento falado” se busca reivindicar um erro produtivo dos sentidos; a partir desta errância é que pensamento e linguagem se relacionam. O pensamento poético é um condutor de eletricidade mental, um “inimigo da página” que levanta o problema da transformação de energia. 74 Por defenderem que a fantasia é do domínio do parecer e não do ser, os surrealistas se colocam em desacordo com a teoria dos estoicos sobre a imaginação. 75 Para Platão, seria preciso escolher entre mythos e logos, entre os mitos de Hesíodo ou de Homero, entre “a palavra que serve para criar a ilusão, benfazeja ou malfazeja, e o discurso regrado para conquistar a Verdade”. 76 O surrealismo escolheu a primeira.

A inocência buscada pelos surrealistas é esquadrinhada pela poesia como testemunho de uma inocência primeira, não no sentido de um movimento regressivo rumo a uma temporalidade da ausência de tempo, mas no sentido ético de uma liberdade desprovida de culpabilidade. Inocência que se atribui ao pensamento selvagem. O surrealismo foi buscar no romantismo alemão a noção de Marchen: “produto imediato, necessário, ideal e profético da imaginação entregue a si mesma”. (Cf . CHÉNIEUX-GENDRON, p. 140) 71

72 73 74 75 76

CHÉNIEUX-GENDRON, p. 164-173.

ARAGON, Louis, Le paysan de Paris, p. 164. BRETON, André. Arcane 17, p. 8.

Cf. CHÉNIEUX-GENDRON, p.137-140. CHÉNIEUX-GENDRON, p. 119-120.

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Performando “Dona Mariana, princesa turca, cabocla curandeira, arara cantadeira”

Zeca Ligiéro Coordenador do NEPAA – Núcleo de Estudos das Performances Afro-Ameríndias e Professor do PPGAC – UNIRIO

E

u já havia incluído, no fechamento do meu livro Corpo a Corpo: estudos das performances brasileiras, o artigo “Dona Mariana, princesa turca, cabocla curandeira, arara cantadeira” falando da figura que havia me encantado por ocasião da minha primeira visita ao Pará, durante o projeto intitulado Muiraquitã, com o qual havia recebido o prêmio Interações Estéticas pela Funarte (2010). Entretanto, o material que eu encontrara, embora abundante, não me parecia ainda satisfatório como pesquisa, devido à complexidade do assunto e por ainda contar com um reduzido número de referências bibliográficas, entre as quais podemos destacar: Prandi (2001), Ferretti (2007), Santos (2009). Além disso, eu também não havia respondido à questão principal: como os turcos foram parar no ritual do tambor de mina? Afeito à pesquisa histórica, procurava justificar a presença dos turcos no Brasil por meio da presença dos sírios-libaneses, expulsos pelos otomanos (turcos) e que migraram para o Brasil, especialmente para diversas cidades do norte do país, durante o ciclo de riqueza da região, ou seja, no boom da borracha do começo do século XX. É possível que outras etnias de muitos outros países dominados pelos turcos tenham chegado fugidas ao Brasil, passando a ser designadas “turcos”. Mas os dados eram insuficientes para uma abordagem mais “científica”. Numa nova visita ocasional a Belém, tive a chance de presenciar, filmar e fotografar um ritual na casa da Mãe Isabel. Novas questões dali surgiram. Tive a chance, ainda, de conversar com duas sacerdotisas de Rio Branco, Acre, que recebiam respectivamente a Cabocla Mariana e sua irmã Erundina, as quais me passaram outras histórias sobre as entidades turcas. Portanto, se a minha pesquisa histórica ficou estagnada, a outra foi caminhando ao sabor das minhas andanças e conversas com o povo de santo. Dessa forma, pude perceber o enredo da família turca encantada que chegou ao Brasil, inicialmente na praia do Lençóis, como contam algumas cantigas, ou pela Ilha de Marajó, como afirmam sacerdotes como Pai Taiandô, de Belém, depois migrou rio acima, como os peixes, em direção a Manaus, onde atualmente pode-se encontrar, em muitos sites e blogs, fotos de rituais dessas entidades em diversos terreiros, daí tendo se espalhado pelos afluentes do rio Amazonas, indo até lugares distantes como a fronteira da Bolívia e do Peru. Tambor de mina, encantaria ou mesmo umbanda, não importa o porto onde a cabocla Mariana atraca com sua família de encantados turcos. 112


Se me falhavam os dados históricos para comprovar a genealogia turca e/ou sírio-libanesa e suas posteriores migrações, os materiais orais foram se multiplicando e os temas se repetindo com pequenas variações locais, enquanto as irmãs foram tomando forma na minha imaginação. Comecei a pedir aos meus amigos de Belém ou aos visitantes que me trouxessem imagens de gesso de Mariana e do marinheiro Fernando, assim uma iconografia do imaginário popular foi ocupando, com destaque, o panteão caboclo de um altar interativo da sala do Núcleo de Estudos e Performances Afroameríndias – NEPAA, que coordeno na UNIRIO. A participação no Encontro do grupo de trabalho do Desenvolvimento de Identidade Cultural (CIDC), junto ao Instituto Internacional de Teatro (ITI), realizado em Baku, capital do Azerbaijão, em 2012, país vizinho da Turquia, levou-me a planejar, no retorno para casa, uma visita de curta duração àquele país. E assim o fiz. Quando estava em Baku, em uma das reuniões de trabalho do CIDC, fui presenteado pelo colega italiano Fabio Tolledi com um livro por ele editado em inglês Stories of Stars and Acrobats: forms of theatre between Turkey and Europe. O livro me trouxe muitas surpresas agradáveis sobre as formas tradicionais de teatro de sombra turcas, bem como sobre a importância da relação do xamanismo com o teatro turco tradicional que, mesmo em crise, como demonstra o livro, tem uma incrível história. Vi aí nascer uma conexão interessante do xamanismo turco, tradicionalmente vindo da Ásia Central (os turcos migram da Ásia Central para a região da Anatólia somente no século XI, trazendo muitas influências culturais do Tibet e da China, conforme aprendi com o artigo de Quarta (2012)) . Novamente, me via entre conexões poéticas e filosóficas, mas ainda muito longe de qualquer pesquisa “científica” mais consistente. Obviamente, neste momento, eu não pretendia fazer nenhuma pesquisa séria mas me aproximar do universo turco que eu desconhecia por completo. Seria mesmo uma viagem turística, levado pela curiosidade em conhecer mais de perto os palácios, as lendas, os museus, a dança dos dervixes... E foi o que fiz. Os dias em Istambul foram repletos de visitas a museus, à tradicional Mesquita Azul, à margem asiática do Bósforo e outros passeios memoráveis. Pude também assistir, por duas noites consecutivas, apresentações do ritual Sani dos dervixes discípulos dos antigos Sufis em forma de espetáculo da dança, as quais registrei em filme. Registrei este particular ritual de performers com suas túnicas brancas, dançando em círculo e girando sobre seu próprio eixo. Como qualquer outro turista adquiri objetos locais, tirei fotos, e comprei alguns livros e CDs sobre as tradições turcas. A criação de um texto sobre a princesa turca que vira cabocla amazônica Ao voltar para casa, durante um prolongado fim de semana, comecei a ouvir as músicas clássicas do antigo reino otomano. Resolvi anotar algumas observações, visando uma possível montagem teatral com o pessoal do NEPAA. Incialmente, havia pensado em um espetáculo com três mulheres que pudessem tocar, cantar e dançar enquanto contavam a história de Mariana e suas irmãs Erundina e Jarina. Claro, incluindo a linguagem do teatro de sombras, que eu também desconhecia e que era parte do legado turco do império otomano, cuja origem remonta ao antigo Oriente. Tudo me parecia mágico em torno de uma história fabulosa de migração, lutas, transgressões e profundas metamorfoses. Principalmente a história de transformação do feminino, de uma mulher saída de um mundo dominado pelo Islamismo que adota um outro universo absolutamente diferente, uma radical experiência transcultural, quando literalmente incorpora o universo afroameríndio da Encantaria do Pará e do Maranhão. Do patriarcado muçulmano turco, fiquei impressionado, sobretudo, com o palácio de Topkapi (em turco: Topkapı Saray) que significa “porta do canhão” e foi construído, em 1453, pelo sultão Mehmet II, logo após a conquista da cidade, conhecida na época como Constantinopla. Topkapi foi a residência dos sultões por três séculos, com sua arquitetura suntuosa e um anexo especial para o harém, com habitações para uma centena de mulheres fortemente esEstética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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coltadas pelos escravos eunucos negros, residentes na entrada do prédio. Chamou-me também a atenção as relíquias conservadas pelo poder do Império Otomano, objetos que jamais pensaria encontrar em minha vida, como o cajado de Moisés, um pedaço do crânio de João Batista, um pote onde Abraão costumava comer, além de vidrinhos com tampa de ouro com cabelos do profeta Maomé. (Lembrei-me até da expressão “pelas barbas do profeta!” que pela primeira vez na vida fez sentido. Segundo a tradição muçulmana, antes de morrer o profeta se depilou e doou os cabelos aos mais fervorosos adeptos). As relíquias de outros profetas provavelmente foram saqueadas pelos otomanos de outros reinos mais antigos, de origem comum judaico-cristã. Geralmente, estudamos o Islamismo como sendo oposto ao pensamento judaico-cristão, mas ali percebi que o primeiro era uma continuidade dos outros, não constituindo bem uma ruptura. Em seu livro De l’ homme. Eléments d’anthropobiologie philosophiques du langage, Jacques Poulain desenvolve uma teoria muito interessante sobre o desenvolvimento da prosopopeia judaico-cristã que, esta sim, aparece como ruptura com a instituição totêmica baseada no culto à natureza, ou ainda com os cultos politeístas, propondo uma única força transcendente, superior a todas elas, monoteísta e única, e portanto excludente das outras forças. Este princípio único se baseia na força da Palavra. Pois Deus teria ele mesmo nascido assim da prosopopeia verbal: Le vivant monothéiste s’ identifie ainsi à l’unique être dont la vie est Parole et dont la parole est vie puisque c’est en lui qu’ il se vit, dans la projection de cette prosopopée de la parole au sein de sa propre prosopopée verbale, de sa reconnaissance de l’Unique. O monoteísta vivo se identifica, assim, com o único ser no qual a vida é palavra e a palavra é vida, na medida em que é nele que se vive na projeção dessa prosopopeia da palavra no interior de sua própria prosopopeia verbal, de seu reconhecimento único. Assim, revi as relíquias como uma coleção de troféus, de lembranças que reafirmavam uma certeza, um pensamento que começa com o judaísmo, depois desenvolvido pelo cristianismo e por último, neste caso, aprofundando de forma mais radical ainda a “palavra ouvida”de Deus pelos profetas, diretamente da voz de Deus e, então, transcrita e transformada em leis para reger os comportamentos humanos dentro da ideia da Palavra e do monoteísmo. Na tranquilidade de Santa Teresa, separei os livros e as fotos, e comecei a manuseá-los em busca de desenvolver algumas anotações, visando conceber um espetáculo futuro. Queria aproveitar que estava ainda impregnado de vivências e produzir algo. Coloquei o CD de música otomana que, imediatamente, me transportou. Em vez de esquetes, ou mesmo diálogos, ou ainda uma descrição de cenas, me veio uma poesia, uma contação de história em versos soltos. O sultão teve três filhas cada uma de uma concubina nova escolhida no seu harém: uma raptada na África outra prisioneira de guerra de um reino da Ásia e ainda uma outra vinda do outro lado do estreito de Bósforo comprada de um mercador amigo de um continente que mais tarde ficou conhecido como Europa. 114

Minha primeira dúvida: intrigava-me a ideia da turca loura. As imagens da princesa em gesso de


Belém eram todas louras. Pensava que, talvez, por causa da moda de muitas brasileiras de se oxigenarem, isto poderia ter constituído uma interferência, seria uma visão brasileira a criação de uma princesa turca como uma loura. Mas, verifiquei que entre muitas gravuras e pinturas tradicionais de mulheres do harém como louras, havia também as morenas, e naturalmente as negras. Até o momento, tudo leva a crer que nenhum ocidental entrou nestes haréns, sendo então impossível realmente saber como eram estas mulheres. Mas, em toda a história da região da Anatólia até a região da cidade de Istambul, antes e depois da chegada dos turcos, houve muitas invasões, ocupações de exércitos, cruzadas, escravidão e portanto, processos de miscigenação. Bizâncio, Constantinopla e depois Istambul, postada de um lado na Ásia e de outro na Europa era em si um ponto de passagem e também foi um dos maiores centros comerciais do mundo durante mais de mil anos, por onde passavam caravanas de comerciantes, rota das especiarias da Índia e da seda da China, e do tráfico árabe de cativos negros da região da Etiópia e Sudão, no norte da África, para servir grande parte da Ásia. Imaginar louras, morenas e negras é bem possível nesse lugar. Um outro ponto estranho e inexplicável na história é por que o sultão era derrotado pelos cruzados cristãos. Isto parece estar mais ligado aos confrontos entre mouros (árabes) e cristãos do que com os turcos, cujo império otomano se expande justamente com o declínio dos árabes e muitos anos depois da última cruzada. Mas aí segue a tradição oral, que não deixa mentir jamais: Mas o sultão que era fiel ao profeta Maomé travou uma batalha para provar que era turco e não mouro. Derrotado o sultão fugiu com as três filhas e sua esquadra seguiu pelo mediterrâneo em fuga pelo mar Egeu e chegou às longínquas terras do norte da África, chamadas pelos gregos e romanos de Mauritânia, último bastião dos domínios árabes A versão da história que mais me encantou, descreve o momento em que a esquadra do sultão e as três filhas permanecem ancoradas em um porto no norte da África, para armar a resistência e retomar o seu reinado na Turquia. O papel das irmãs princesas surgia a reboque dos acontecimentos em torno de Mariana, embora em muitos rituais a que assisti, as duas irmãs, quando incorporadas, mostravam-se até mais ativas que ela, e mesmo em alguns casos protagonizando os rituais, mais agressivas no tom do canto e mais enérgicas em suas danças. A história de Mariana é a única que sobreviveu: Mas quis o destino que num dia de passeio um marinheiro que contava lorota jogando dados na calçada no dia de folga a encontrasse envolta em tanta seda e pedraria apenas seu rosto na janela da roupa os olhos também cheios de maresia 115 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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e prontos para navegar mas ainda sem rumo e sem nau. Somente um desejo extremamente forte para burlar ordens dadas há tantos séculos pelo profeta que começou a guerra santa com três espadas uma reta, uma curva e outra em ziguezague por designação do próprio Alá. Como era possível abandonar o reino turco familiar ainda que ancorado em terras que não lhe pertenciam? Abandonar o pai e as irmãs cortar os laços com o passado e correr para os braços de um marinheiro sem terra e sem pátria de nome Fernando? Na visita ao palácio de Topkapi, me impressionei com as três espadas do profeta. Na minha santa inocência não havia imaginado Maomé como um guerreiro, proprietário de três tipos de espadas que provocavam três tipos de perfurações e de destruições simultâneas. A história foi sendo criada, grande parte escrita no mesmo dia. À noite, li a história para Carla, minha namorada, e ela ficou fazendo perguntas sobre o que tinha acontecido com a Mariana, com as irmãs. Quando não tinha resposta, recorria às toadas que eu havia recolhido em vários lugares e que forneciam dados sobre a personalidade de Dona Mariana, e voltava a folhear os livros sobre os reinos, voltando depois para as várias entrevistas. Quem era Fernando? Era um Fernando moreno e febril que joga dados e manda recados numa caligrafia que parecia amarrar todas as palavras de amor em laços e cordas para transformar em flor traços e rabiscos avulsos significados ocultos em frases nunca lidas e jamais ouvidas por Mariana até aquele momento. Aí, conta-se apenas que ela, apaixonada, resolveu fugir com ele disfarçada de marinheiro, uma frase curta para uma complexa decisão. Este parecia-me ser um ponto importante: demonstrar a mudança entre o corpo familiar, de princesa criada para o casamento e sua completa transformação em mulher que vai atrás do seu homem, que se encanta, que se rebela diante do destino traçado: Para onde fugir os dois? Dois estrangeiros em uma terra estrangeira? No fogo da paixão, o casal construiu um plano secreto 116


entre os labirintos de ruelas vozes cruzando portais gelosias sibiladas entre gretas rotulas de fasquias bilhetes trocados amassados dentro de anéis de prata entre os seios suados transportados emissários secretos fugas planejadas em detalhes no vai e vem de uma caligrafia de sonho em negro nanquim no correr da pena tatuada a fogo por um desejo em brasa. Que novo universo é este? O que ele exige? Há um impasse. Como fugir de um universo judaico/ cristão/islamita, fundado em lei inexorável e organizado pela Palavra que ditou leis divinas, definidas como a única possibilidade sob a forma da necessidade ética, isto é, de um comportamento social invariavelmente bom, infalível e adquirido de forma irreversível, inabalável. Somente seria possível através de uma profunda ruptura com o princípio monoteísta da sua tradição, para reencontrar os rituais ancestrais e outras mitologias das incertezas das águas do mar de Mármara, Egeu, da Trácia, da Cilicia, de Creta que compõem o Grande Mar Mediterrâneo em torno da sua Turquia, cujos mistérios míticos haviam sido renegados. Agora, para ir ao encontro do amor de um outro homem, também desconhecido, como seria possível fazer a transição entre o universo da princesa e o do marinheiro plebeu? Num belo dia chegou um uniforme da marinha no colo de Mariana era azul e branco como mar e a espuma e havia ainda um gorro estranho e mais um casaco grande de malha de ferro com um cinto largo e uma espada de prata. E ela pensou que se vestisse tudo isso e mais aquilo ia parecer uma pirata e riu do perigo que ela estava abraçando. E como tanto cabelo louro sobrava para todo lado e não cabia nem no gorro nem no casaco 117 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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ela pegou a tesoura como se fosse faca para cortar o ouro do cabelo como uma herança turca que ia deixar em cachos pelo assoalho da casa que já não era a sua e assim feminina mas com cara de homem entrou na farda como se fosse sua antes teve amarrado os seios com uma mordaça de pano escondendo a mulher que começava a nascer justamente naquele momento Mariana não somente cruza a fronteira da classe social como a do gênero. Ao cortar o cabelo de ouro, abandona sua persona de princesa virgem, mercadoria de troca entre reinos, para ser ela mesma: mulher que segue seu plano, sua viagem, seu desejo. Assume ser dona do seu destino, com todo o risco que possa representar para a sua vida e a de seu companheiro. E assim vestida em uniforme a princesa largou a família sentando praça na marinha deixou o nome a aparência em terra para se juntar ao seu amor em cima d’ água o marinheiro tatuado no casco do barco com uma sereia num braço e um coração flechado no outro de nome apenas Fernando. A história de amor poderia ter um final feliz, da princesa que foge do seu destino traçado para encontrar a felicidade para sempre em um outro país, desconhecido. Mas não é esta história que é contada, não é um conto de fada. Não se sabe como mas o fato é que tal amor um dia foi ouvido 118


visto ou ouvido falar percebido quando a nave perdida no meio do oceano não ousava jamais pensar em amor ou coisa parecida tomou conhecimento de tal ousadia o amor entre dois marinheiros maculando a honra de homens orgulhosos da virilidade. Sabedores ou não de se tratar de uma mulher disfarçada em princesa doida de amor ou homem afeminado em momento de amor secreto foi dada uma resposta sem julgamento a punição maior: o abandono no mar aberto para a morte líquida e certa. Não se sabe se foram jogados juntos ou separados para ser maior a solidão dos corpos em desespero na hora fatal. Pois a culpa do amor exercido os dois tinham igual sem importar o gênero ou patente na farda. Um trágico final. A história de tantos que, para realizarem o amor que sentem, acabam em uma situação em que suas vidas são ceifadas. Perguntava-me: como esta história ficou conhecida? Ninguém pode ainda adivinhar se havia algum africano naquele barco, um cozinheiro, um copeiro ou um da estiva que fazia patuá e mandinga, e que tenha escapado com vida para contar a história. O fato é que a Princesa foi encontrada num ritual do Tambor da Mina na Ilha de Marajó ela cantava e dançava e adivinhava coisas sobre destinos passados e futuros. 119 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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Nos corpos de negras, mestiças, caboclas, indígenas Mariana se apresentava ora princesa, ora cabocla e não pude saber como esta gente fazendo um ritual antigo de pajelança misturado com coisa da Costa da Mina trazia a princesa de terras tão distantes da Ásia. De que etnia seriam estes negros que restauraram o comportamento turco em seus rituais, nos estados que passaram a ser beneficiados com a criação da Companhia Geral de Comércio do Gran Pará e Maranhão em 1775, que com a proibição da escravidão indígena, passou a trazer africanos cativos para suas lavouras cujo ingresso até aquela data era relativamente pequeno, cerca de apenas três mil. Entre 1755 e 1777, esse número saltou para 12 mil. Difícil saber quais as procedências destes escravos: angolanos, congos, ashanti, fanti, gê, fon, jeje? E por que foram os negros os guardadores desta história? No Maranhão, são fundadas as primeiras casas de tambor de mina pelos escravos da antiga Costa da Mina. Sabemos também da presença de sírios, libaneses e árabes no Maranhão, em Belém e na Amazônia, atraídos pelo ciclo da borracha. Teria esta realidade alguma relação com o aparecimento da família turca neste ritual? Mundicarmo Ferretti, uma das mais importantes pesquisadora no assunto, é categórica ao refutar qualquer influência da chegada dos sírio-libaneses ao norte do país no culto estudado. A entidade espiritual conhecida por Rei da Turquia, embora tenha entrado na (tambor de) mina após a abertura de vários terreiros em São Luís, foi recebida por negros antes da entrada no Maranhão dos primeiros imigrantes sírio-libaneses (frequentemente chamados turcos no Brasil), mais tarde miscigenados às populações locais. Tendo como fonte a tradição oral, a história da princesa não naufragou em alto mar. E a história aqui segue contada e recontada por sacerdotes, caboclos em toadas e versos soltos que vão colorindo Mariana com suas cores e sotaques pois, se o corpo padece de doença, a alma imortal se reinventa na fé. Em viagens ao Acre, encontrei pelo menos duas sacerdotisas que incorporavam as princesas turcas. Embaixo de um pé de jurema, ouvi também histórias delas contadas por uma outra entidade, que mesmo não sendo da banda delas, me dizia em tom categórico que não se furtaria em dar algumas informações para o doutor, como me dizia Zé Pelintra. E soube ainda pela pesquisa de Reginaldo Prandi (2001), que a família turca e os encantados também já estão em São Paulo e em outras bandas do sul maravilha. Do vídeo protagonizado por Pai Taiandô de Belém, “A descoberta da Amazônia pelos turcos encantados”, me deixei levar pela linda versão do encontro da turca com o universo indígena: Na praia ela encontra uma índia tapuia chorando chora porque perdeu seus filhos. Espanhóis que passaram a caçar índios como se fossem feras transformados guerreiros em escravos e levados para além mar. Suas lágrimas irrigam a praia singrando a areia até o mar 120


de tão abundantes e constantes formam o fenômeno da pororoca. Aqui penso em uma mitologia brasileira sendo criada, não apenas como algo folclórico, decorrente da ideia quase estereotipada da união perfeita das três “raças”, mas mostrando como a mistura das “raças” decorre muitas vezes de processos violentos, e as alianças entre indivíduos de lados opostos acontecem como forma de sobrevivência, não sendo somente por mera atração ou simpatia. Ela agora leva a crença na dança que ela cria quando dança. Onde será que Mariana aprendeu a dançar? Se com as mulheres do harém quando criança? Ou com alguma negra mucama no norte da África? Ou com as índias das aldeias ribeirinhas? Ou com todas elas? Ou já nasceu em seu corpo assim essa dança? Ou não terá aprendido a dança com algum deus da mudança protetor das identidades migrantes? A xamã indígena recebe Mariana e a inicia nos seus segredos da floresta. Mas todo conhecimento é passado com a dança. Embora a dança de Mariana pareça mais dança de negra pelo uso tridimensional do movimento e as contorções do torso, ela passa a pertencer à falange dos caboclos do mato. Os caboclos de pena da região norte trazem consigo o contexto da floresta amazônica, e com eles vêm as mitologias locais e suas relações com os animais, as plantas, a natureza. Mariana aprende a voar para outro mundo para trazer os segredos da cura e no ritual aparece como uma arara vermelha e azul. No livro Los Chamanes de la prehistória, logo no primeiro capítulo os autores descrevem características comuns dos xamãs de diversas regiões do planeta, nos aproximando do universo das pinturas rupestres pelo prisma de que elas se relacionam com os xamãs de diferentes culturas, já que o estado alterado da consciência que as gerou é um ponto comum tanto nas cavernas da África como nas da Europa. Segundo os autores, as investigações neuropsicológicas realizadas em laboratórios detectaram três estágios de consciência alterada, como um processo contínuo, chamado também de “transe” ou “estado alucinatório extremo”. Estas três etapas não necessariamente ocorrem progressivamente: no primeiro estágio são vislumbradas formas geométricas voadoras, em ziguezague, paralelas que se alargam, contraem e se expandem, se movem, se dissolvem em cores vivas que se constelam em torno da pessoa. Muitos grupos interpretam estas formas dando-lhes atributos da natureza como movimento de astros, encaixando-os em uma cosmogonia prévia. Numa segunda etapa, os xamãs se esforçam para perceber nestas formas objetos do dia a dia, carregados de simbolismo religioso ou emocional. Já o terceiro estágio é alcançado por meio de um torvelinho, o indivíduo entra por um túnel de imagens circulares em movimentos de redemoinho. No meio deste processo, o xamã 121 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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então observa suas primeiras alucinações em forma de pessoas, animais e outros elementos. Quando sai, ao final deste túnel, se descobre no estranho mundo do transe: os monstros, os humanos e o entorno são extremamente reais. As imagens geométricas estão sempre ali, sobretudo na periferia das figuras humanas. Estas imagens são como projeções em uma tela na parede ou no teto, como quadros tridimensionais que se transformam, por sua vez, em formas vivas. Neste estado, o indivíduo sente que pode voar e se transforma em um pássaro ou em outro animal. Curandeira como arara parteira como cabocla guerreira como princesa Entre o mar e a selva subindo e descendo o rio encontrou a sua moradia definitiva onde tem a floresta nativa. O xamanismo de Mariana pode estar associado com os mais antigos xamãs da China ou da Sibéria que eram mulheres parteiras. A pesquisadora Karen Vogel toca em um ponto muito interessante, a relação das xamãs antigas com a parteira, o que nos leva a melhor compreender a ligação da cabocla Mariana, xamã indígena, que vai se ocupar do parto de mulheres com risco de vida. Primeiramente, ela chama a atenção que a necessidade de parteira aumentou com a evolução dos humanos, cujas cabeças aumentadas pelo crescimento do cérebro levou a um equilíbrio mais difícil durante a gestação com o fato de os bebês nascerem “imaturos” e precisarem de mais cuidados se comparados com os animais. Coloca tal ocorrência, todos os tipos de demandas sobre a estrutura social das mães que amamentam, devendo também aumentar as exigências sobre as parteiras. As parteiras têm a experiência de pegar os bebês e, geralmente, em algum momento de suas vidas, também engravidam e dão à luz. Esta dupla experiência, ao longo de milhões de anos, dá às parteiras um vasto campo de conhecimento sobre a gravidez, nascimento e criação dos filhos. Este conjunto de conhecimentos inclui a sabedoria sobre o que fazer se algo der errado, ou alguém fica doente ou ferido. A importância da evolução humana da tradição de parteira me parece ser a raiz lógica do xamanismo feminino. Buscando uma definição para o xamanismo, a autora mostra-se um tanto ou quanto indecisa devido às dificuldades da atividade, e assim completa o seu raciocínio: o xamanismo é um conceito que tem muitos significados ligados a ele. Quanto mais eu estudo o xamanismo, mais eu amplio o uso do termo. Acho que engloba uma visão de mundo tão profunda e, ainda, muito diferente das outras religiões do mundo. Acho também que há muitas maneiras de ser um xamã e usar a energia xamânica. Todos nós temos momentos xamânicos, como no nascimento e na morte. Maria Lucia Nepomuceno, sacerdotisa do candomblé e da umbanda, trabalhando na periferia de Rio Branco, Acre, relata como foi o seu primeiro transe, no qual a cabocla Mariana se manifestou diante do perigo iminente da morte durante o nascimento de uma criança: – Com uns treze pra quatorze anos que surgiu a cabocla Mariana na minha vida. Tinha uma senhora, uma vizinha, ela estava ganhando neném, ela estava parindo mesmo em pé na porta, e ela chamou. Eu peguei uma fralda e coloquei na cabeça e saí, e quando eu cheguei na porta a mulher estava em pé, segurando assim (levanta os braços como se a mulher estivesse segurando na parte superior da porta) dizendo assim: “Espere, que o neném está nascendo!” E ai eu não vi mais nada. E foi quando eu recebi pela primeira vez a cabocla Mariana. Ela veio, mandou a mulher deitar, ela fez o parto. Um parto perigoso, porque era época de friagem, ela mandou a mulher deitar, e ficou do lado de fora e a mulher pelo lado de dentro, deitada. E ela fez o parto, limpou tudo direitinho, cortou o umbigo, e depois ela foi embora. Então, a minha iniciação foi 122


assim, sempre em horas que tinha alguém correndo risco, ou algum perigo, eu incorporava. Portanto, a associação entre xamanismo e o papel da parteira é trabalho do “curandeirismo” da cabocla Mariana, momento bem que se sente convocada e aparece, sempre onde há “riscos ou perigos”, como confirma sua sacerdotisa no Acre, porque ela se sente responsável pelo que ocorre nos momentos extremos da vida: o nascimento e a morte, como pensa a pesquisadora Karen Vogel. Revendo a importância da mulher xamã turca, torna-se interessante perceber, também, a sua ligação com as antigas sociedades orientais. Na China, por exemplo, a mulher xamã era associada com a parteira; o antigo ideograma chinês Wu que significa “xamã” é apresentado por duas mãos (femininas) como se estivessem prontas para segurar algo. Elas estão dispostas espelhadas em torno do caractere “I” que significa trabalho. Trabalho de parto? Ideograma chinês Wu, xamã. Outro aspecto que me chamou a atenção na história é o processo de transformação de Mariana e consecutivamente, do seu enredo. O romantismo que a levou à ruptura com os modelos judaicos-cristãosislamitas, o encontro com o príncipe encantado, a conduza um outro patamar (não se repete aqui a história que marcou a minha infância e que assisti no circo em Laje do Muriaé, cujo título conta o desfecho da história: O Céu uniu dois corações). Da mesma maneira como Fernando surge, ele desparece da história. O personagem Marinheiro Fernando aparece obviamente no tambor de mina e na umbanda, mas vem com outros marinheiros, não mais diretamente associado ao romance vivido com a princesa, agora uma cabocla “individualizada”. E, como reza a lenda, suas irmãs também fixam residência na floresta amazônica, reafirmando que a sua busca de amadurecimento como uma entidade feminina muda todo o quadro familiar. Ela, que aparentemente não tinha nem “mãe” e parecia ter sido gerada entre as diversas “mulheres anônimas do harém” e ela que nunca teve filho, também vai ser parteira e curandeira. Sendo parteira, abre simbolicamente o caminho para suas irmãs também encontrarem suas identidades afroameríndias, promovendo a cura do espírito e do corpo, dentro de um processo de amadurecimento como ser humano que transcende a necessidade de se completar no seu oposto masculino, ao encontrar o seu verdadeiro self. Ao final da história, Erundina, a irmã mais velha, e por último, Jarina, a irmã caçula, se juntam a ela. Jarina passou muitos anos na praia acreditando que o pai, o Rei da Turquia, um dia viria buscá-la. Até que um dia, sem nenhuma explicação, ele veio encontrar as filhas. Ora, aqui o Pai abandona também o dogma do Deus único, judaico/cristão/muçulmano para se juntar às filhas que abraçaram os ritos afroameríndios. Em vez da volta à sua terra natal, das conquistas e guerras e coisas de homem, ele se volta para o feminino e, inversamente, se submete à proteção das xamãs que, em vez de manusearem suas espadas como o faziam quando estavam em sua companhia, trabalham com as ervas para curar aqueles que padecem dos males do corpo e do espírito. A explicação que me ocorre é que a única maneira de continuar vivo seria ele também se transformar, uma vez que pela palavra de Deus transmitida e consagrada pela cultura judaico-cristã-islamita ele estaria no céu ou no inferno, não mais existiria um self para desfrutar de danças e festas em companhia de sua família turca/indígena/negra/brasileira. A última parte do texto, pontuo com a linda toada cantada pela Mãe Rita do Centro de Umbanda (T.EU.C.Y.): O seu pai é rei a sua mãe ela é rainha o seu castelo é de cristal a sua barquinha é de sapê e a estrela que alumia os oceanos é ela a cabocla Mariana. 123 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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A toada, sintetizada de maneira bela, embora pertencente originariamente a uma nobre turca, proprietária de castelo de cristal (seria uma alusão aos azulejos brilhantes que imitam vidro e as fontes espelhadas dos seus castelos?) revela que ela opta pela itinerância do barco que vagueia de uma margem a outra sem rumo certo porque, generosa, aguarda o momento da ação de misericórdia aos humanos necessitados. Como andarilha sobre as águas ou voando sobre as matas como arara, prefere o teto indígena de caboclo, das folhas de sapê; trocando a estirpe de uma fidalguia congelada no tempo pela volatilidade daqueles que, depois de rumarem pelos desertos e montanhas derramando o sangue alheio em nome de um credo único e salvador, encontram a imortalidade definitiva entre a floresta e o rio, ou junto à areia do mar. Por isso ela é uma estrela capaz de iluminar o além mar. A criação de uma performance por um diretor? Compor esta história, reunindo os vários materiais, foi algo que me tomou completamente. Uma vez concluída, eu queria contá-la imediatamente. A cada amigo que encontrava, eu começava a lê-la. E depois, não contente, comecei eu mesmo a operar uma sonoplastia, criando o clima que julgava adequado para cada cena. Pedi a outras pessoas para lerem, enfim queria produzir este material como peça de teatro. A esta altura já tinha um longo título: A História de Dona Mariana, Princesa Turca, Cabocla Curandeira, Arara Cantadeira, uma radionovela em ondas curtas e longas. Por fim, tomei coragem e me inscrevi no VIII Encontro de Performance e Política das Américas de 2012. A construção da performance me trouxe alguns desafios e muitas descobertas. A única experiência com performance solo acontecera há dois anos. Em 2010, eu havia sido convidado para fazer uma performance no Colóquio internacional de arte contemporânea e museus: Transversalidades Poéticas e Políticas em Porto Alegre, em agosto de 2010. Depois de hesitar eu concordei. Mas só consegui saber o que faria, quando recebi a correspondência com a programação do evento e o meu nome fazia parte mesmo de uma sessão de performances intitulada Fala do Artista . A proposta da performance escrita soou-me como a questão da palavra do artista e a tomei no sentido literal. Levou-me ela a uma grande reflexão desde que aprendi a falar, e como fui me identificando com a arte e os “eus” que começaram a falar dentro de mim como expressões artísticas: o poeta, o pintor, o cartunista, o dramaturgo, o diretor, o ator. Fiz uma apresentação em power-point a partir das grandes transformações sofridas em minha vida, culminando com a iniciação às culturas africanas, das quais estive próximo desde os tempos de menino. Eu me sentia à vontade deste jeito, ser didático a respeito da minha própria vida. Mas eu já havia entrado em contato com o que Michael Kirby chamou de autoperformance ou selfperformance . Naquele ano, havia visto, também, a performance Leitura de um Guru, de Lúcio Agra, no ENAP – Encontro Nacional de Antropologia e Performance em São Paulo, que também apresentava seus materiais pessoais de forma coloquial para contar suas próprias histórias, inventadas ou não. O fato de usar imagens diretamente retiradas do meu trabalho de desenho da adolescência ou mesmo dos filmes 8mm da minha época de estudante universitário, que recuperei e digitalizei para a performance junto com outros documentos resgatados de minhas distintas fases de encontro com as artes, tornava a performance extremamente pessoal, como a informalidade das minhas aulas, ou ainda como uma contação de história entremeada com momentos de franqueza de uma conversa com um analista: eu me expunha. No processo de criação para a minha segunda performance, cheguei por momentos a me perguntar se a performance que eu estava querendo criar com Mariana teria algo a ver comigo no sentido pessoal, uma espécie de aventura do meu eu, meu lado feminino, estas indagações contemporâneas sobre o criador 124


e sua obra, como um prolongamento de questões subjetivas. Mas, vi que não seria por aí o meu foco. Meu ponto de partida era outro, e num certo sentido este novo trabalho me remetia ao universo do contador de histórias, e o sentido da especulação biográfica foi abandonado por completo. Entretanto, alguns aspectos formais da outra performance haviam me incitado: a projeção de vídeo e a utilização dos meus próprios desenhos conjugados com minha narrativa, a utilização do microfone era algo de que também havia gostado. Confrontei-me com algumas questões para conceber esta nova performance que se aproximava mais da linguagem do teatro do que propriamente da conferência ou da sala de aula, como a anterior. 1) Qual é a história? E como apresentá-la? O texto foi concebido como uma poesia. Ao pensar em fazer esta performance, entretanto, eu não me via lendo o texto, durante quase meia hora e, também, não queria recitar o texto como uma contação de história tradicional, enclausurando uma narrativa que era mais poética do que naturalista em uma espécie de monólogo. Não queria transformar esta história em algo propositadamente teatral, com pausas dramáticas e entonações enfáticas. Uma narrativa mais cool também não seria o caso, uma vez que eu estava totalmente envolvido com as peripécias do enredo e, principalmente, com as transformações do seu personagem principal. Optei, então, por criar uma espécie de novela radiofônica, em que a história chegasse ao ouvido do público de forma clara, objetiva, e que me desse liberdade para manipular outros elementos durante a narrativa. Procurava um tipo de apresentação durante a qual eu pudesse criar uma sequência de ações com objetos do culto de Mariana, trabalhando uma espécie de narrativa paralela com meu corpo e a manipulação dos objetos em consonância com a história, não uma simples ilustração da gravação, que foi feita num estúdio profissional. Colegas acharam que mudei pouco de tom da voz na gravação, que fui pouco dramático. Talvez pudesse dar mais ênfase a determinadas passagens, mas fiquei feliz com o resultado pois queria algo mais contado, conversado, às vezes levemente dramatizado, com uma discreta ironia em algumas passagens, seguindo um pouco o que aprendi com Dona Zefa e sua narrativa minimalista, antiteatral, despretensiosa, de forma a não induzir o envolvimento emocional a priori, mas informar e deixar que a plateia possa, por ela própria, formular conceitos e sentimentos sobre a história. Buscava, sempre, uma narrativa épica. 2) Qual é o espaço conveniente para o que quero fazer? Uma performance solo, criada na solidão de nossas considerações, sofre mudanças consideráveis na medida em que a encenamos. Portanto, imaginei algo como um espaço de arena semicircular, com uma cortina onde seriam apresentados vídeos e fotos, enquanto eu iria manipular os objetos, levando-os para atrás da cortina para criar a sombra. No primeiro ensaio aberto, percebi que estava trancado nos quatro cantos do palco. Não via a plateia, atuava para mim mesmo, segurava os objetos, mas eles não tinham vida. Quantas coisas! A simples ação de pegar um objeto denota, conota. Como pode também ser branca, como a de uma arrumadeira transferindo uma coisa de um lugar para o outro para tirar o pó. Depois de alguns ensaios, percebi que o espaço deveria ser circular. O espaço circular acabou sendo limitado por pequenas velas e os objetos a serem usados na ação. Mesmo com uma cortina branca tangenciando o círculo mais para o fundo, eu não saí mais de cena mesmo quando ia manipular os bonecos (as estatuetas de Mariana, Fernando e da cabocla Erundina) e demais objetos. Uma amiga me contou que em Java, uma das possíveis origens do teatro de sombra, o público pode escolher ou ficar na frente para ver a sombra ou ficar atrás para ver o manipulador e os atores fazerem os diálogos da cena, cuja sombra é projetada na tela. Não havia chegado a este requinte pois meus espectadores ficaram sempre na frente da tela, inclusive porque havia projeções com letreiros no começo e no final do espetáculo. Ou seja, como performer abandonei o palco italiano, mas como diretor de cena, não. 3) Qual era a iluminação precisa? A iluminação do ambiente foi outra escolha crucial. Para criar a sombra, precisaria de uma iluminação que me permitisse ter luz e projeção das figuras. Inicialmente, pensava em desaparecer completamente para que os objetos pudessem ganhar forma, como no teatro clássico 125 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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da sombra. Decidi experimentar a iluminação com a vela, com a lamparina e com a lanterna de pilhas. Optei por usar todas elas para, em cada momento, criar um clima distinto. Ao escurecer a sala, os objetos ganharam destaque quando iluminados. Pensei, por um momento, que apenas os objetos iriam contar a história. Mas não funcionou; depois percebi que tudo era importante, não somente quando os bonecos criavam vida, mas no espaço entre uma cena e outra. Apenas na cena final havia um refletor sobre mim, demarcando o final da performance com o blackout do mesmo. Cada apresentação teve uma iluminação diferente e creio que, pelo fato de o teatro de sombra ser uma técnica pouco conhecida, quando apresentava a peça em teatro ou em espaços alternativos sempre aparecia um iluminador que também criava comigo, e, no final, compreendi que para o solo performance funcionar eu dependia de uma equipe bem antenada com a proposta. Pois eu, também, improvisava bastante. E, a cada performance, ia descobrindo novas coisas embora mantivesse uma sequência de ações em sincronia com a minha própria narração gravada. 4) Que objetos usar? Os objetos estariam visíveis ou apareceriam magicamente? Sempre no meu teatro gostei de revelar o truque, então a ideia de os objetos estarem escondidos também me levaria para fora de cena para ir buscar o objeto, o que não me parecia interessante. A opção de colocá-los no chão me pareceu ideal, pois remetiam à realidade do altar do chão e permitia à plateia observar desde a passividade do objeto à intenção épica do performer em dar vida e mesmo interagir com a estatueta de gesso, transformando-a em boneco vivo. 5) Que roupa vestir? Para o começo da performance pensei em me vestir como um dervixe, um casaco comprido preto, aberto, uma saia rodada branca e uma camisa também branca. Incialmente me vesti com manga curta, depois passei a usar uma camisa de manga comprida e achei que compunha melhor. Eu mesmo criei um chapéu no formato de cone, só que, em vez do original em lã, fiz de bucha, desta que se usa para se ensaboar. E segui o modelo de dervixe ao tirar o manto preto, quando ficava com a roupa toda branca que facilmente era associada com a mãe de santo quando colocava o cordão de contas. Logo, era um único figurino sendo transformado; a saia, por sua vez, era colocada em determinado momento e em um único movimento virava as asas brancas de uma arara. Por baixo, havia uma calça branca, desta que no candomblé é chamada de roupa de ração. 6) Devo dançar como Dona Mariana? Como vão ser as danças? Que música vou usar? No meu trabalho sempre submeto todas as ideias, por mais brilhantes que pareçam, ao exercício da prática para ver se funcionam. Não quis usar as músicas dos dervixes, pois acho que ficaria ridículo querer imitar uma performance deles e poderia parecer uma cena de pastelão, cômica. Tudo veio naturalmente ao ouvir o CD Music of the Ottoman Empire: Turkish Classical Music concebido e executado pelo maestro turco Erkan Dedeoglu com uma orquestra de instrumentos do Oriente Médio, norte da África e de algumas partes da Ásia. Comecei, então, a dançar em um processo de treinamento para me aproximar da história, do espírito turco, justamente as músicas que me haviam inspirado para compor o longo poema narrativo. O treinamento de dança tendo sido incorporado na performance, fui aos poucos experimentando aqueles movimentos que vinham de minha memória, não importando se eram dos dervixes, dos caboclos, das mães de santo da umbanda, do candomblé ou do tambor de mina, e foi nascendo, assim, uma espécie de sequência de danças sem, contudo, terem sido necessariamente organizadas como coreografia ou mesmo uma partitura cênica. 7) Que outros aparatos técnicos devo usar? Queria usar também a tela das sombras para projetar o documentário que havia feito na minha pesquisa, e assim o fiz, com uma breve introdução incluindo também os desenhos executados a partir das imagens de livros e fotografias. Seria uma forma de introduzir ao público a pesquisa, a história, o processo saído da realidade mas, ainda, muito próximo do imaginário. Ao final da história, voltava ao documentário quando pela primeira fui chamado pela Dona Mariana, incorpo126


rada por um pai de santo em Soure, na Ilha de Marajó, que adivinhou muitas coisas a meu respeito e eu lhe pedi, então, permissão para contar sua história. Ainda me é difícil avaliar o resultado das apresentações. Sei que cada dia conto melhor a história, e cada dia vejo o quanto tenho ainda para aprender. Às vezes me pergunto, onde quero chegar fazendo esta performance? Afinal, eu não me preparei nem fisicamente nem psicologicamente para atuar assim. O fato é que a performance me despertou para o fato da importância da dança para o meu próprio corpo. Em um diário que as vezes faço, anotei sobre o treinamento para me manter atento e sem dor no corpo, que agora me acompanha independentemente da performance. Ontem, depois de três dias no solo africano, pela primeira vez consegui dançar. Na realidade danço apenas duas músicas, sempre as mesmas. A primeira, um pouco mais curta, dura cerca de 5 minutos e a segunda, uns 8 minutos. Elas aparecem seguidas no CD. Na primeira, uso 3 minutos no meu solo de Mariana com alguns movimentos de giro, tipo dervixe, que faço. Na segunda não tenho coreografia alguma e a música apresenta pelo menos quatro andamentos distintos, com ritmos próprios. É como se não fossem a mesma música, como se fossem uma grande colagem mas que, de alguma forma, uma força estranha as interligasse, e algumas sequências se desdobram em outras em surpreendentes ritmos. Não consigo memorizar a sequência, nem acertar alguns movimentos para encaixar. Por isso mesmo, me deixo levar pela pura experiência corporal ao procurar me relacionar com a música. Ora são meus pés e pernas que guiam o meu movimento, ora parecem ser os braços, ora o torso. A verdade é que cada dia me sinto mais confortável em dançar a música, apesar de não ter me preparado para ela. Mas é como se fosse rompendo, a cada dia, a fronteira do meu “corpo que transporta a cabeça” para um corpo mais solto, descompromissado com ideias de movimentos e propício para uma experiência mais intensa com o que sou naquele momento, e que ainda pouco conheço sobre onde posso chegar no espaço. À medida que me solto, sem pensar, consigo realmente me sentir no espaço no exato momento e tenho sensações novas de uma estranha alegria ao cruzar a fronteira do que sei e entrar num território sobre o qual não sei quase nada sem a sensação do erro, do errado. Na performance de Mariana, com todas as dúvidas que ainda aparecem quando entro em cena e começo a performance, parece que é a coisa mais sensata que faço em toda a minha vida ao acompanhar a minha voz contando esta história que tanto me fascina, indo além do que meu corpo pode ir em expansão e contração do movimento; em ritmo, ora acelerado, ora suave, no giro, e, na concentração para sentir e ser preciso em cada parte da cena, não sendo automático, manter a plena atenção, mas ter clara a sequência de cenas. Um exercício, uma meditação, uma oração.

Referências FERRETTI, Mundicarmo. “Origens portuguesas nos folguedos brasileiros: das danças mouriscas ao tambor de mina”. Revista Letras da Universidade de Aveiro (PO), v. 25, 2007, p.5. CAMPOS, Luiz Arnaldo. Direção do filme: A descoberta da Amazônia pelos turcos encantados. Production Co.: DOCTV, Log On Editora Multimídia, 2005. CLOTTES, Jean e LEWIS-WILLIAMS, David. Los Chamanes de la Prehistoria. Espanha, Ariel Historia. Planeta Editorial, 2010. LIGIÉRO, Zeca. Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras. Rio de Janeiro, Garamond, 2011. LIGIÉRO, Zeca. Muiraquitã, direção. Produção NEPAA-UNIRIO, 2010, resultado do Prêmio Interações Estéticas pela FUNARTE (2010) disponível na biblioteca virtual do Instituto Hemisférico de Performance e Política das Américas – NYU http://hidvl.nyu.edu/video/003674828.html Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Musicologia e transculturação

Tiago de Oliveira Pinto Titular da cátedra de Estudos Transculturais da Música das Universidades Franz Lizst de Weimar e Friedrich Schiller de Jena, Alemanha, e professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social – USP

“Não somos mais prisioneiros da nossa história.” Barack Obama 1

A

transformação de ruídos/sons em sonoridades/música é um processo cultural. A produção de sonoridades faz parte das atividades humanas desde o início da evolução da humanidade. De que forma o som deixa de ser ruído para se tornar sonoridade? E quando é música? Como podemos entender o procedimento complexo com que sonoridades são construídas e acrescidas de significados a partir da noção de transculturação? Estas são as questões que norteiam as propostas teóricas apresentadas neste ensaio. A crise da musicologia Dos fenômenos sonoros produzidos pelo homem, a música está entre os mais complexos e diferenciados2, tanto em relação à sua diversidade cultural – não há povo nem sociedade desprovidos de música -, quanto ao desenvolvimento das muitas histórias da música em todo o mundo. Como objeto de pesquisa a música é o assunto principal da musicologia histórica, da etnomusicologia, da musicologia sistemática e dos estudos de música popular.3 Destas abordagens, a musicologia histórica é a precursora e protagonista principal da moderna ciência acadêmica da música desde meados do século XIX.

Uma das traduções livres, publicadas pelas mídias no Brasil e alhures das palavras Today America choses to cut loose the shackles of the past (Hoje a América escolhe soltar os grilhões do passado), pronunciadas durante o encontro com o presidente de Cuba, Raul Castro, na Cidade do Panamá, em 10 de abril, 2015. 1

A música é uma das inúmeras manifestações sonoras do ser humano. O compositor e pesquisador de sons canadense Murray Schafer faz um levantamento geral daquilo que chama de Soundscape (Paisagem Sonora) para designar a ambientação sonora do homem. Apresenta um levantamento sistemático de todas as manifestações sonoras que representam o meio ambiente sonoro do mundo, causado pela natureza e pelo próprio homem (SCHAFER, 1997). 2

Para uma introdução aos diferentes ramos da musicologia acadêmica, ver os verbetes correspondentes em The New Grove Dictionary of Music (Londres, 1998-2005). Um balanço da etnomusicologia no Brasil é feito, entre outros, no “Dossiê Etnomusicologia“, São Paulo, Revista USP, nº. 77, 2008. 3

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A partir daí e durante pelo menos um século, a musicologia histórica definia a história da música (escrita e “erudita”) como parte de uma história oficial da arte do mundo ocidental, portanto representada por obras específicas cujo conjunto se integra ao patrimônio cultural de uma nação e suas instituições. Até mesmo Mário de Andrade, em sua Pequena História da Música (1936), obedece ao padrão da historiografia musical do seu tempo, conectando o desenvolvimento das técnicas musicais a percursos históricos, essencialmente europeus, e seus desdobramentos, inclusive no Brasil. Desde que estabelecida nas universidades com cadeiras próprias, fica evidente que inúmeros estilos e práticas musicais existentes no mundo não se encontram representados no campo de estudo da musicologia histórica. Fundamentalmente filológica na sua metodologia e regida por concepções estéticas peculiares, a musicologia histórica só podia se ocupar de um recorte muito limitado da produção musical do mundo: a escrita e “da arte”. Com que métodos, porém, tratar da música popular que não depende de um sistema regrado musical e nem dos cânones estabelecidos? De que maneira lidar com tradições orais transmitidas de uma geração a outra sem o apoio de uma escrita musical, ou seja, independente do que em inglês é denominado de sheet music para a musicologia histórica? Ou então, como avaliar a música intimamente ligada a práticas que não permitem apreciar e analisar o fenômeno musical unicamente enquanto sonoridade? O que fazer com as músicas orientais, africanas etc, que funcionam de acordo com normas que não são compatíveis com as orientações da musicologia histórica? Desta impossibilidade de a musicologia histórica pesquisar música não europeia surgiu, no início do século XX, a etnomusicologia, inicialmente com o nome de musicologia comparada (ou comparativa). Apesar de subdisciplina musicológica, a vertente comparada dependia do amparo metodológico da etnologia. O antagonismo entre história e etnologia, presente nos discursos acadêmicos daquele período, alicerçou estas duas subdisciplinas da musicologia. No entanto, a partir de meados do século XX, a crescente “cumplicidade” de história e antropologia foi aos poucos esvaziando a dupla orientação da musicologia entre história da música (ocidental) e as tradições orais (não ocidentais). Não um afastamento, portanto, mas a vinculação transdisciplinar entre história e antropologia levou à controvérsia epistemológica da musicologia e, desta forma, à sua mais recente crise: 1. A história da música entendida como “universal”, quando somente voltada à música ocidental, ou “geral”, quando preocupada exclusivamente com a música de concerto ou chamada erudita, deixando de lado a música popular, o rock etc, necessariamente não cumpre com o que se propõe no seu título. Este é um dos motivos pelos quais programas de música no Brasil optaram por chamar os seus cursos de história da música de “Música, Cultura e Sociedade” ou semelhante. 4 2. A etnomusicologia, viés da musicologia focado nos elementos “específicos” dentro do relativismo dos diferentes contextos culturais, ignora que o fenômeno musical estudado representa, muitas vezes, fatos de grandeza maior, portanto de relevância antropológica mais abrangente, ao mesmo tempo que se exime de participar de uma discussão contemporânea sobre música, quando leva o seu título à risca, voltando-se à procura de etnicidades nas tradições musicais, dando mais ênfase aos que a produzem, e não necessariamente ao fenômeno musical mais específico. 5 Recentemente Paulo Castanha criticou o paradoxo dos cursos de musicologia histórica no Brasil, em especial quando se referem ao curso de História da Música, por se tratar de um curso cujo título e conceito se encontram “em declínio” (CASTANHA, 2015). 4

É consenso coloquial entre antropólogos que “etnografias da música” realizadas por etnomusicólogos muitas vezes não dispõem de instrumentos teóricos de primeira mão para tal. Assim, como verificado por Castanha (2015), que aponta para a deficiência em teoria historiográfica na formação e na pesquisa dos historiadores da música no Brasil, também a etnomusicologia sempre ficou muito aquém da produção teórica na antropologia, à qual se vincula utilizando-a, na melhor das opções, com defasagem de tempo e portanto não à altura da teoria e dos conceitos antropológicos mais atuais. 5

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O contínuo demarcado pelas duas vertentes da pesquisa musical, a “história geral da música” (musicologia histórica) e os “estudos etnográficos da música” (etnomusicologia), se reflete na caracterização destas formas distintas de estudar a música nos seus respectivos contextos históricos e culturais. Musicologias História geral da música -> eurocentrismo <- -> história escrita <- -> etnocentrismo <- ->

<- Estudos etnográficos da música post colonial studies história oral relativismo cultural

Após um século e meio de estudo de diferentes períodos da história da música, de biografias de compositores e de suas obras, a musicologia fatalmente se esvaziaria, se estivesse definitivamente atada a um esquema antagônico rígido como o delineado no quadro acima. Não resta dúvida de que a atual crise musicológica decorre principalmente desta camisa de força conceitual. Ela fica especialmente clara na dicotomia entre etnocentrismo 6 e relativismo cultural. Transculturación É considerando este quadro geral da crise das duas principais vertentes epistemológicas da musicologia (a histórica e a antropológica), que um estudo transcultural da música ganha real importância. Cunhado pelo antropólogo, folclorista e musicólogo cubano Fernando Ortiz (1881-1969) em 1940, o termo “transculturação” surgiu com base no contexto histórico de Cuba, cuja economia se funda, a partir do período colonial, nas monoculturas do açúcar e do tabaco, mantidas graças à mão de obra escrava proveniente do continente africano. 7 Além de buscar um termo antropológico, que melhor traduzisse a dinâmica cultural do seu país, Ortiz pretendia uma oposição conceitual ao termo “aculturação”, como desenvolvido e adotado nos estudos afroamericanos a partir dos anos 1930 por Melville Herskovits (1895-1963) e seus seguidores. Ortiz critica o termo “aculturação” por fazer subentender que determinada cultura, quando dominada, se rende ao ditado da cultura dominante, assumindo suas práticas e internalizando seus significados. Diferentemente dessa visão, transculturação denota que o processo de embates socioculturais não se dá de maneira tão unilinear, tão subjugado a relações de poder. A dinâmica do entrelaçamento de elementos culturais, de mentalidades e de técnicas de saber é muito mais complexa, independendo de ordens regidas por grupos dominantes ou por Entendo etnocentrismo dentro de uma definição psicológica, conforme adotada nas ciências sociais e políticas. Caracteriza uma postura pautada por convicções pre-concebidas em que a escala de valores reflete conceitos culturais próprios, obedecendo unicamente a uma visão de mundo individualista. Ver ambém James G. Kellas: The Politics of Nationalism and Ethnicity, MacMillan, London, 1998, p. 6: “Ethnocentrism is basically a psychological term, although it is also used generally in the study of society and politics [...]. It is essentially concerned with an individual’s psychological biases towards his/her ethnic group, and against other ethnic groups” (Etnocentrismo é basicamente um termo psicológico, embora seja também geralmente empregado no estudo da sociedade e da política [...]. Está ele essencialmente afeito às parcialidades psicológicas de um indivíduo relativas ao seu próprio grupo étnico e aos preconceitos contra outros grupos étnicos). 6

Há, no Brasil, uma região que se assemelha às condições históricas cubanas: o Recôncavo Baiano. Além do açúcar, a região também é responsável pelo melhor tabaco que se produz no hemisfério sul desde o século XIX. A cultura local do Recôncavo, com suas práticas religiosas, suas festas e música, pode também ser interpretada a partir dos conceitos teóricos de Ortiz. Para as tradições musicais no Recôncavo Baiano ver, entre outros, Oliveira Pinto (1991), Marques (2006) e Graeff (2013). 7

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mecanismos de adaptação do fraco ao forte. Está aí a força motora da sua subversão, da sua resistência e do seu embate transformador, que atinge a realidade sóciocultural como um todo. A história de Cuba retrata estes movimentos transculturais que atravessaram todas as camadas sociais, corromperam os dogmas vigentes, sejam políticos ou religiosos, fazendo surgir uma cultura que constantemente reordenou os seus elementos formadores, recriando e assim também renovando ordens e conceitos estéticos. Em “transculturação” Ortiz encontrou um termo que compreende a processualidade dos fenômenos socioculturais e que por isso também inclui a profundidade histórica dos fatos, dos saberes implícitos e dos artefatos culturais. A concepção teórica de cultura, que se ajusta ao conceito “transculturação”, pertence assim tanto à antropologia quanto à historia. 8 Hemos escogido el vocablo transculturación para expresar los variadísimos fenómenos que se originan en Cuba por las complejísimas transmutaciones de culturas que aquí se verifican, sin conocer las cuales es imposible entender la evolución del pueblo cubano, así en lo económico como en lo institucional, jurídico, ético, religioso, artístico, lingüístico, psicológico, sexual y en los demás aspectos de su vida. La verdadera historia de Cuba es la historia de sus intrincadísimas transculturaciones (ORTIZ, (1940) 1983). 9 O título da obra em que Ortiz discorre, pela primeira vez, com mais detalhes sobre transculturação é Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar (Contraponto cubano do tabaco e do açúcar ), (ORTIZ, 1940). Chama a atenção que enquanto o subtítulo original da obra Advertencia de sus contrastes agrarios, económicos, históricos y sociales, su etnografía y su transculturación (Advertências de seus contrastes agrários, econômicos, históricos e sociais, sua etnografia e sua transculturação) menciona, por último, o conceito teórico central do livro, o início do título principal, contrapunteo, assinala um momento que também pode ser entendido como musical (contraponto). Na música polifônica, “contraponto” é uma técnica de composição que designa o movimento contrário de diferentes vozes ou partes instrumentais. Como exemplo, pode-se tomar a obra musical de Johann Sebastian Bach, que apresenta momentos magistrais da técnica do contraponto musical barroco. Parece que Ortiz, ao escolher Contrapunteo para o título da sua obra, termo ainda inexistente na terminologia sociológica, se fez guiar por esta polifonia construída por movimentos contrários das diferentes partes, mas que mesmo assim, resultam em algo coerente e de audição aprazível. Transculturação, portanto, já vem vinculada, desde o início do seu emprego, a metáforas e elementos musicais. Em Contrapunteo Cubano há, de fato, duas vozes principais que entram em constantes contrapontos. Ligadas ao açúcar e ao tabaco, não poderiam se apresentar de forma mais contrária: o primeiro branco e doce, o outro escuro e amargo. A primeira edição cubana de Contapunteo Cubano foi prefaciada pelo antropólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942), que já mantinha correspondência regular com Ortiz e que o encorajou a submeter o novo termo à discussão antropológica: Todo cambio de cultura, o como diremos desde ahora en lo adelante, toda transculturación, es un proceso en el cual siempre se da algo a cambio de lo que se recibe; es una “toma y da ca”, como dicen los castellanos. Es un proceso en el cual ambas partes de la ecuación resultan modificadas. Un proceso en el cual emerge una nueva

A partir dos anos 1980 a dimensão filosófica do termo é discutida em trabalhos que dão preferência a ”transculturalidade“ (transculturalité/ Transkulturalität) e não a “transculturação” enquanto conceito. Ver os trabalhos de Jacques Poulain, Sorbonne, Paris, ou de Wolfgang Welsch, filósofo da Universidade Friedrich Schiller de Jena, Alemanha. 8

Escolhemos o vocábulo transculturação para expressar os variadíssimos fenômenos que se originam em Cuba das complexas transmutações de culturas que aqui se verificam, pois sem conhecê-los torna-se impossível entender a evolução do povo cubano, tanto no aspecto econômico quanto naqueles institucionais, jurídicos, éticos, religiosos, artísticos, linguísticos, psicológicos, sexuais e nos demais aspectos de sua vida. A verdaddeira história de Cuba é a história de suas intrincadíssimas transculturações. (ORTIZ, (1940) 1983). 9

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realidad, compuesta y compleja; una realidad que no es un aglomeración mecánica de caracteres, ni siquiera un mosaico, sino un fenómeno nuevo, original y independiente (MALINOWSKI, (1940) 1983).10 Na década de 1960, a musicologia fora de Cuba se apropria, pela primeira vez, do conceito transculturação conforme definido por Fernando Ortiz. Provocado pelas circunstâncias geopolíticas, o embargo a Cuba e a existência da cortina de ferro, desenvolveu-se um intercâmbio regular entre Havana e Berlim Oriental, que mobilizou pesquisadores e musicólogos entre 1960 e o final dos anos 1980. O então doutorando de musicologia alemão Axel Hesse realizou pesquisas de campo em Cuba, onde, inclusive, entrevistou “Don Fernando”, forma carinhosa com que Ortiz era tratado pelos seus conterrâneos. De forma até então inédita, a dissertação de Axel Hesse, Transmissions-Singen im kubanischen Spiritismus (HESSE, 1971), aplica os conceitos teóricos de Ortiz em uma análise diferenciada do repertório religioso afro-cubano. Neste trabalho o rigor analítico da musicologia alemã alia-se à hermenêutica da antropologia transcultural de Ortiz. Axel Hesse é quem, pela primeira vez, busca uma definição de transculturação musical (Musikalische Transkulturation), distanciando-se, à maneira de Ortiz, dos conceitos de aculturação da escola de Melville Herskovits. Relevando um ou outro jargão cientificista do materialismo marxista pós-muro, o texto é bem preciso na sua arguição. A seguir, uma síntese da definição de “transculturação musical” que apresenta: Transculturação musical é um processo coletivo na cultura ou da prática musical [...] que acontece através de uma seleção crítica [...], induzindo o surgimento de uma nova cultura musical, cuja marca de reconhecimento passa a ser a não-identidade com determinados elementos ou com a soma das culturas de origem (HESSE, 1971). É notável esta definição de transculturação musical de Axel Hesse, baseada na antropologia de Fernando Ortiz, não só porque abre mão da ideia segundo a qual membros de uma cultura dominada necessariamente ficam submetidos à cultura daqueles que os domina (aculturação), mas também por ignorar um certo historicismo romântico das “raízes” da presença negra no continente americano, já em voga e reproduzido pouco depois, com grande sucesso, no romance de Alex Haley Roots: The Saga of an American Family (1976). Finalmente, ao sublinhar a “não identidade” da cultura contemporânea com elementos anteriores e supostamente formadores no seu processo de transculturação, a definição de Hesse propõe uma abordagem realmente nova e definitivamente distante dos conceitos antropológicos comuns daquele período. A partir deste e dos estudos cubanos, como os de Argeliers Leon (1959), Maria Elena Vinueza (1986) ou Olavo Alen Rodrigues (1994), entre outros, e além do trabalho monumental do próprio Fernando Ortiz sobre os instrumentos musicais afro-cubanos (Ortiz, 1954), a musicologia passou a contribuir enormemente com os estudos culturais, ao mesmo tempo que a música confirmava ser um campo privilegiado para os estudos transculturais. Os resultados do trabalho de pesquisa de Axel Hesse passaram largamente despercebidos pela musicologia alemã, que até 1989 se encontrava atrelada a uma disputa ideológica interna de um país dividido entre dois sistemas mundiais. Junta-se a este fato também a primazia norte-americana no campo da etno11 musicologia na segunda metade do século XX . A ausência total do reconhecimento conceitual de uma transculturação musical se estende, assim também, à musicologia internacional. “Toda mudança de cultura ou toda transculturação é um processo no qual sempre se dá algo à mudança daquilo que se recebe; é um toma lá da cá, como dizem os castelhanos. É um processo no qual ambas as partes da equação resultam modificadas. Um processo do qual emerge uma nova realidade, composta e complexa; uma realidade que não é uma aglomeração mecânica de caracteres, nem sequer um mosaico, mas sim um fenômeno novo, original e independente.” (Malinowski, (1940) 1983) 10

A primazia conceitual norte-americana na etnomusicologia, que também é, em grande parte, internalizada no Brasil, fica evidente nos trabalhos sobre a história desta (sub)-disciplina. Trabalhos recentes (de autores americanos) sacramentam o vínculo preponderante da etnomusicologia com a academia anglo-americana, quando a história retratada e os trabalhos comentados pertencem unicamente a este domínio (ver, por exemplo, RICE, 2014). 11

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Música O principal desafio que se dá para a musicologia, através de uma abordagem transcultural, é a ampliação do seu leque epistemológico e metodológico. Os dois parâmetros, acústica e cultura, ou seja, som e sonoridades, respectivamente, estão presentes na busca de uma definição de música ao longo da história da musicologia enquanto disciplina acadêmica (OLIVEIRA PINTO, 2001). Entre as várias definições, as mais citadas na musicologia são a histórica tönend bewegte formen (formas musicais em movimento), (HANSLICK, 1854), ou a antropológica humanly organized sound (sons emitidos pelo ser humano), (BLACKING, 1971). Há, além destas, tentativas de encontrar um denominador comum para as diferentes atribuições utilizadas na definição de música, apesar da dificuldade que existe em muitos idiomas de se traduzir o termo de forma equiparável. No verbete Musik do célebre Riemann Musik Lexikon (Dicionário de Música Riemann), seu autor, o musicólogo Hans Heinrich Eggebrecht, adverte que dentro do rigor semântico com que é tratado, o termo “música” se aplica apenas à tradição musical da cultura ocidental (EGGEBRECHT, 1967). Eggebrecht parte, para esta sua afirmação, do conceito de música composta, portanto “feita”, um opus perfectum et absolutum, conforme a ideia que surgiu a partir do século XVI, quando, na música ocidental, cada vez mais o compositor fixava sua obra através da escrita. A definição de Eggebrecht, que restringe o significado do termo música à tradição de arte ocidental, coincide com o uso que o antropólogo Claude Lévi-Strauss faz da música em alguns dos seus textos mais importantes. Lévi-Strauss sugere que a exegese de mitos indígenas seja feita como a leitura de uma partitura de uma sinfonia ou de uma ópera. Sempre que se refere à música, esta música é da tradição ocidental e erudita. As obras dos compositores Bach, Wagner ou Ravel são muito importantes para Lévi-Strauss, porque acredita, que ao abrir mão do mito como gênero cultural, o Ocidente encontrou na música dos grandes mestres, composta e anotada, a melhor maneira de preencher o vácuo deixado pelo mito. Capítulos e subtítulos da sua obra monumental em quatro volumes, a Mythologiques (LÉVI-STRAUSS, 1964-1972), são termos da música ocidental: Ouverture, Tema e variações, Allegro etc. Lévi-Strauss reconhece na natureza uma gama infinita de ruídos, da qual o homem faz uma seleção para produzir sua música. A passagem, portanto, de ruídos à música, seria uma representação viva da transição da natureza à cultura. Já para o filósofo e economista Jacques Attali, ruídos são essenciais para entender o desenvolvimento histórico e social do homem. Semelhante a Lévi-Strauss, Attali não analisa a música diretamente, mas constrói suas análises sociais e econômicas a partir e através dela. A música daria estrutura aos ruídos, assim como a sociedade dá sentido à vida do homem e se desenvolve paralelamente à sociedade, sendo disposta conforme esta, e muda quando há transformação das condições sociais (ATTALI, 1977). Também fora do campo mais imediato da academia, deparamos com definições de música. Uma delas, interessante, se encontra na fala do protagonista principal do romance Doktor Faustus de Thomas Mann (1955), o compositor Adrian Leverkühn. Para Leverkühn, é tarefa do ouvinte, ao longo da sua escuta, “com12 preender toda sonoridade de modo a organizá-la” mentalmente. Leverkühn entende música enquanto configuração sonora, fundamentalmente “organizada”. Difere esta da maioria das definições de música porque o protagonista do romance de Mann não se prende, com esta definição, à obra e ao fenômeno musical em si mesmo, em primeiro plano. Busca entender a música a partir daquele que percebe e que aprecia a respectiva sonoridade. Portanto, a música se faz notar fenomenologicamente, ao mesmo tempo que suscita a construção de determinadas ideias sobre ela. Em última instância, o ouvinte é o principal responsável pelo surgimento (ou não) da música na sua mente: para quem não entende, ou não quer entender, até mesmo músicos ou 12

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No original: Alles Klingende organisierend erfassen.


conjuntos profissionais – exemplos aleatórios: a London Symphony Orchestra, a dupla Milionário e José Rico, a polifonia vocal das mulheres do povo Uagogo da Tanzânia etc –, não produzem nada além de ruídos. Já a sonoridade emitida a partir de uma garrafa de plástico manipulada, percutida e amassada por Hermeto Paschoal, significa, segundo este, música na sua acepção mais pura. Em suma, decide o que é música quem a percebe, criando um conceito a seu respeito ao organizar mentalmente a respectiva sonoridade. Um possível denominador comum para toda a prática musical, mesmo não necessariamente designada como tal, se encontra representado em alguma forma de sonoridade. Fica evidente, por exemplo, na definição que os Kamayurá do Alto Xingu atribuem à origem da música (maraka). Segundo os especialistas deste povo indígena, maraka se insere na corrente sonora ihu, o que no plano mais geral significa “todos os sons” (MENEZES BASTOS, 1978). Aqui, portanto, o substrato da produção musical está expressamente vinculado ao fenômeno puramente sonoro. Mas será que um possível predomínio da sonoridade, como no caso da concepção Kamayurá, pode, em última instância, levar à “autonomia do som” na música? Esta é a pergunta explorada na recente filosofia da música do filósofo Gunnar Hindrichs (2014). Hindrichs chega à conclusão de que som ou sonoridade, utilizado para qualquer tipo de produção musical, já é som previamente trabalhado, material extraído e destacado dos ruídos (e da natureza, conforme nos explicaria Lévi-Strauss), portanto feito e aprontado para se tornar música e não para assegurar autonomia enquanto material sonoro. É este material sonoro, já cultural, que serviria para a criação musical de toda espécie, ritual, artística etc. Em geral, a transculturação musical desconhece a autonomia total e absoluta do som, inclusive porque, em sendo música, sonoridades sempre fazem parte de um acontecimento performático maior. A importância da mimesis – padrões de movimento como técnicas motoras (do músico) ou mecânicas (ao instrumento musical) – é intrínseca a toda manifestação musical. Uma excelente descrição disso se encontra novamente na literatura. Desta vez, é Machado de Assis que ilustra o elemento mimético do ato musical. Música é sonoridade e performance, conforme mostra no seu conto O machete, de 1888. Nele, descreve uma apresentação instrumental, de machete, uma viola de pequeno porte do músico Barbosa. Convidados presentes no sarau da casa do violoncelista Inácio testemunham e se entusiasmam com a sensibilidade e com a virtuosidade do tocador do pequeno machete. Machado de Assis enfatiza que a música que apresenta é “obra de ocasião”, não obra de mestre (de Weber ou de Mozart): Barbosa tocou-a, não dizer com alma, mas com nervos. Todo ele acompanhava a gradação e a variação das notas; inclinava-se sobre o instrumento, retesava o corpo, pendia a cabeça ora para um lado, ora para o outro, alçava a perna, sorria, derretia os olhos ou fechava-os nos lugares que lhe pareciam patéticos. Ouvi-lo tocar era o menos; vêlo era o mais. Quem somente o ouvisse não poderia compreendê-lo (MACHADO DE ASSIS, 1888). Ao mesmo tempo que a perspectiva transcultural diversifica os conceitos voltados aos fenômenos sonoros, fazendo aumentar substancialmente seu leque tipológico, ela também dá importância ao ensejo e, portanto, ao fenômeno vivo, à performance e seu contexto, ambos igualmente dentro de uma perspectiva dinâmica e processual do acontecimento cultural. Sonoridades organizadas Sonoridades organizadas fazem parte de um evento, de uma performance ou de um ritual maior. Ou acontecem de forma isolada. Torcidas organizadas, por exemplo, constroem o pano de fundo sonoro de um jogo de futebol, o que nem sempre é percebido como música, mesmo que organizado em grupo. 135 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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Ao mesmo tempo sabemos de escolas de samba, hoje perfeitamente estabelecidas, que nasceram de um grupo de torcida organizada de futebol. A discussão sobre sons ruidosos ou sonoridades musicais também diz respeito à utilização e à performance de instrumentos sonoros ou musicais. Há instrumentos musicais que emitem sons tanto dentro de um contexto musical na acepção mais pura, quanto sons de alerta, não musical ou de identificação de determinado grupo. Sinos, campânulas e gongos funcionam dentro desta dupla função, em todo o mundo. É o caso dos chamados “surrões” dos caboclos de lança dos grupos de maracatu rural da Zona da Mata de Pernambuco. Guerreiros paramentados, os caboclos de lança carregam nas suas costas três a quatro grande sinos (o surrão), que repicam a cada pulo ou passo de dança. Esta sonoridade que se junta ao pequeno terno (conjunto) de músicos e aos cantores do grupo é própria desta agremiação do carnaval de Pernambuco. No estudo sobre os maracatus rurais, que realizei nos anos 1990, já chamava a atenção em especial a sua produção sonora, vinculada a uma simbologia ininteligível para os observadores de fora: The soundscape produced by the performance of the maracatus rurais is certainly the most dramatic sound element to be found among all the carnival associations in Pernambuco. One needs to understand that the maracatu rural sound is intentionaly produced within a much wider framework than merely that defined by the music and dance dichotomy alone. The powerful sound is mainly produced by the caboclo de lança warriors, who in the overall drama¬turgical concept of the group’s performance, act by moving ahead in fast and almost leaping steps from one corner of the square to the other, always in a single or double row line. While running, the bells on the back of these dancers produce an almost ear-shattering noise. But, in the same way the inner order of their mysteriously coordinated running in lines emerges, the overall noise seems to bear an intrinsic logic, which, however, is completely unintelligible for outsiders (Oliveira Pinto, 1996). 13 Uma sonoridade urbana semelhante, mas de gênese completamente diferente daquela dos surrões dos caboclos de lança, surgiu no início de 2015 no Brasil, gerada pela percussão de inúmeras panelas de metal. O “panelaço”, movimento popular de protesto, basicamente composto de som, é uma ação concertada 14 de um segmento social que acusa o governo de corrupção e de clientelismo. Em evidência especial em cidades como São Paulo, o “panelaço” consiste na percussão de panelas de metal, efetuada simultaneamente por milhares de pessoas das janelas dos seus apartamentos. Esta ação remete, de fato, para quem a conhece, à sonoridade das pancadas metálicas dos surrões dos maracatus rurais da Zona da Mata. Sem querer, com esta comparação, sugerir alguma relação factual e, muito menos, diminuir a importância – em especial também a complexidade sonora – dos maracatus rurais, ambas as ações se pautam em uma resultante sonora de impacto inequívoco. As duas sonoridades coletivas causam espanto e, em Pernambuco, até medo. Ambos os universos sonoros – as panelas batidas de São Paulo e os surrões percutidos do interior de Pernambuco – ganham especial força na “calada” da noite. O que nos assinala um olhar transcultural sobre fenômenos tão díspares? Os efeitos sonoros de ambos são, do ponto de vista fenomenológico, muito parecidos, e possibilitam assim um aprofundamento analítico. A questão antropológica se estabelece a partir do fato sonoro em si que, produzido por grupos de “A paisagem sonora produzida pela performance dos maracatus rurais é, certamente, o elemento sonoro mais dramáticao a ser destacado dentre todas as associações de carnaval de Pernanbuco. É necessário perceber que o som rural do maracatu é produzido intencionalmente, no interior de um escopo muito mais amplo do que aquele meramente definido pela dicotomia música e dança. O poderoso som é produzido,principalmente, pelos guerreiros do caboclo de lança que, na concepção dramatúrgica mais ampla de performance grupal, atuam se movendo, de forma rápida, em passos quase saltados, de um canto da praça para outro, sempre em linha simples ou dupla. Enquanto tocam, os sinos nas costas dos dançarinos produzem um ruído quase ensurdecedor. Porém, da mesma maneira que a ordem interna de sua misteriosa correria coordenada em linhas emerge, o barulho enorme parece construir uma ordem intrínseca a qual, contudo, é completamente ininteligível para não iniciados”. 13

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A ação concertada refere-se a uma ação na qual se atua dentro de um grupo coeso, como se fosse um só corpo.


pessoas, evidencia, nos dois casos, uma intencionalidade coletiva comum e compartilhada. O antropólogo Michael Tomasello, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, em Leipzig, defende a tese de que a evolução da cultura humana se deu a partir de atividades comuns e efetuadas de forma intencional. Fala, 15 a este respeito, de uma shared intentionality (TOMASELLO, 2005, 2014). Uma evidente intencionalidade compartilhada se mostra nas práticas musicais de um grupo que, através de uma “temporalidade compartilhada”, ainda vem aumentar a intenção do grupo na coordenação dessas ações coletivas. Ao longo da sua evolução, o ser humano sempre teve a necessidade de buscar a ação coletiva para atingir objetivos ansiados por todo o grupo. De certa forma, podemos constatar que as duas ações de intenção compartilhada, “panelaço” e surrões percutidos, buscam afugentar o que aflige e prejudica um grupo de pessoas: corrupção de um lado, maus agouros do outro. É sintomático que, ao compararmos os dois fenômenos sob uma ótica social, os combatentes sempre se assemelham à fisionomia dos combatidos: (1) uma suposta “elite” paulistana investe o panelaço contra a elite política do momento que, esta em parte, é até derivada da anterior e (2) com suas danças ruidosas, os caboclos de lança intimidam espíritos e seres transcendentes, entidades igualmente caboclas da Zona da Mata. Nota-se que mesmo a ambientação, que nos dois casos se opõe entre o urbano e o rural, é mantida enquanto sistema fechado: combatentes e combatidos dividem o mesmo espaço social e conceitual. Para os de fora, há uma irracionalidade nessas ações sonoras de intenção compartilhada, porque, em última instância, o resultado almejado não se concretiza. Se, no olhar do pesquisador, o panelaço oferece um exemplo paradigmático de como nascem rituais, ele somente se justifica naquilo que o fez deflagrar, ou seja, na atual “conjuntura” política do país. 16 Muito provavelmente, o panelaço já surge com os seus dias contados 17 porque aqui a intenção compartilhada ainda não significa uma ação de real “temporalidade compartilhada”, o que seria essencial para, em algum momento, se tornar musical (tal qual ocorreu com as torcidas organizadas de futebol). O tempo histórico do panelaço é compartilhado, não existindo aqui, porém, uma “subtemporalidade” que é musical, para ser compartilhada também: milhares de pessoas participam da mesma ação concertada sem, no entanto, sincronizar a sua percussão, sem lhe dar uma temporalidade estruturada e comum. Já a sonoridade centenária dos surrões pernambucanos se pauta na temporalidade compartilhada do movimento cíclico da repetição musical e mítica. Além disso, não perde a sua razão de ser, uma vez que os espíritos da Zona da Mata não desaparecem, encantam. Somente assim, o folguedo ritual dos maracatus rurais se renova a cada ano, essencialmente através do universo sonoro – compartilhado e estruturado – que produz.

Shared intentionality (Intencionalidade compartilhada) é definida como “the ability to participate with others in collaborative activities with shared goals and intentions“ (A habilidade de participar com outros em atividades colaborativas, com intenções e objetivos compartilhados); (TOMASELLO et al. 2005: 675). Requer de especially powerful forms of intention reading and cultural learning, but also a unique motivation to share psychological states with others and unique forms of cognitive representation for doing so (Requer formas especialmente podereosas de leitura intencional e aprendizado cultural, mas também uma motivação única para partilhar estados psicológicos com outros e forma única de representação cognitiva para fazê-lo.), ( (TOMASELLO et al. 2005: 675). 15

De acordo com o pronunciamento feito pela presidente Dilma Rousseff (8-3-2015) e que serviu de ensejo para o panelaço em São Paulo, e também em outras capitais, a crise na qual se encontra o pais seria de ordem “conjuntural”. 16

Saliento que a análise do panelaço decorrente da comparação com a performance dos surrões pernambucanos se refere unicamente à sonoridade do “panelaço”, ocorrido no dia 8 de março de 2015. A menção se refere a um fato presente. O seu desdobramento, ainda desconhecido, levará a modelos de interpretação mais complexos, e certamente divergentes do aqui proposto. Já o maracatu rural se constrói sobre uma profundidade histórica, que nos permite hoje uma compreensão mais ampla deste fenômeno, exemplo do quanto a antropologia necessita do quadro referencial histórico, e vice-versa (OLIVEIRA PINTO, 1996). 17

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Patrimônio cultural intangível (ou imaterial) Sonoridades geradas em determinados contextos ritualizados são marcadas por significados, o que também ocorre com a música que, por isso, pertence ao domínio de cultura imaterial. Buscar uma definição e entender como funciona a cultura imaterial aponta para outra pista que pode levar a um discernimento transcultural da música e de sonoridades. A questão básica desta abordagem é não partir, necessariamente, de obras concluídas, passíveis de repetição ou replicáveis. Para entender o que são obras no contexto da história e das culturas musicais, podemos buscar sua avaliação tomando como modelo de comparação o domínio do patrimônio imóvel, os monumentos artístico-culturais. O conceito de patrimônio intangível, ligado às artes cênicas (performing arts), aos rituais, à musica etc., ganhou importância a partir da convenção da UNESCO de 2003,18 vinculando-se, inicialmente, à ideia de que existiria algo como uma obra mestre de cultura imaterial. É precisamente a designação masterpiece of intangible cultural heritage, com a qual a UNESCO rotulou manifestações culturais selecionadas para comporem a lista dos patrimônios intangíveis da humanidade. Poucos anos mais tarde, porém, abriu-se mão do termo masterpiece para as manifestações de cultura imaterial pois, além de unitário, o termo evoca uma conexão involuntária com a obra singular – obra mestra, ou de mestre – concluída e de autor. Ficou patente que o foco geral da pesquisa musical não pode mais ficar restrito a aspectos locais ou a outros critérios limitadores. Incentivou-se dentro da alternância do local, do nacional e do global, uma percepção que privilegia a relação que não se dá de maneira sucessiva, ou excludente, mas simultânea. Transculturação insere-se aqui no não isolamento e também na onipresença destes três níveis, independentemente do local geográfico e de um tempo definido. Termos como “originalidade” ou “autenticidade” perdem a sua significação normativa, chegando a tornar obsoletas as dicotomias entre original e cópia, ou entre original e derivados. A morfologia dos artefatos de cultura retrata formas diversas e criativas de lidar com elementos de teor histórico variado, provindos ou não de processos migratórios. A translação (do latim translatio) como processo cultural, ganha relevância na recolocação mental e local destes processos, sejam eles políticos ou culturais. A ideia de tradução pode ser entendida como transgressão de fronteiras, momento em que valores e padrões de pensamento se deslocam quando na busca de uma reconfiguração contextual. Na musicologia, este processo se mostra exemplarmente no recurso metodológico da transcrição, quando o pesquisador “traduz” o fenômeno sonoro da gravação para a mídia visual da partitura. Assim a passagem de um script para o transcript é, na análise musicológica, a transferência do artefato cultural em si para um (novo) dado a ser analisado. Perceber este processo também serve para investigarmos a transferência e a “transculturação” de elementos culturais, em que scripts são constantemente abandonados ou reelaborados através de um transcript. A transcrição musical foi o ponto de partida epistemológico e a base prática para a análise das sonoridades de outros continentes durante um século de história da etnomusicologia. 19 Este processo de tradução (translatio), a transcrição, dependia de um elo que fazia parte da gravação sonora, essencial para a confecção das partituras: uma nota Lá, sonoridade sempre presente nos primeiros fonogramas, os chamados wax cylinders do fonógrafo de Edison. Após fazer funcionar o fonógrafo de Edison, esta nota Lá era gerada pelo próprio antropólogo com um diapasão de sopro, poucos segundos antes do início propriamente da gravação, o registro de cânticos, de música instrumental etc. A nota Lá gravada possibilitava a aproximação do musicólogo transcritor ao fato sonoro conservado pela gravação. O som do diapasão 18 19

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Convenção do Patrimônio Imaterial, www.unesco.org

Sobre transcrição, ver ELLINGSON (1992) e OLIVEIRA PINTO (2001).


que antecedia a música gravada assumia papel de referencial sonoro-tonal para que a transcrição pudesse ficar fiel ao âmbito da frequência original da música gravada em relação ao sistema sonoro (Tonsystem) do musicólogo. A sonoridade do diapasão gravado passaria assim a servir de ponte entre Ocidente e Oriente, ou seja, era um elo sonoro entre o mundo dos músicos registrados pela gravação e o universo daqueles que acionavam o gravador: antropólogos, missionários, folcloristas, musicólogos. Através dos diferentes processos de translatio (cultural, midiático, tecnológico, performático, político etc.) que lhe são próprios, o Patrimônio Musical assume dimensões mais amplas e, portanto, diferentes daquelas do chamado patrimônio histórico e arquitetônico. A sua avaliação transcultural infringe e ultrapassa as fronteiras conceituais impostas pelas obras mestras da história da música ocidental. A abordagem transcultural libera a musicologia histórica das amarras estéticas canônicas de determinado repertório (o clássico) e desobriga a etnomusicologia de se submeter à restrição do contexto definido e específico. Finalmente, não se impõem mais fronteiras a priori de acesso à música. O que dá rumo à investigação musicológica, como um todo, é o uso e os sentidos da música, não mais tipos ou gêneros definidos de antemão, como a música de arte dos diversos séculos de historia ocidental, ou sonoridades vinculadas a contextos culturais predefinidos e fechados. Cultura enquanto patrimônio A discussão de patrimônio e transculturação se mostra especialmente atual nos estudos de arquitetura, quando o interesse vai além de objetos de pesquisa no contexto cultural da tradição ocidental para trazer à tona, por exemplo, a situação atual das edificações históricas em países asiáticos. As políticas de conservação e o tombamento de patrimônio material histórico passa por grandes transformações conceituais a partir das diretrizes de identificação e de proteção formuladas pela UNESCO. Um dos principais articuladores desta discussão, o historiador de arte e arquitetura Michael Falser, explana em seus estudos sobre o patrimônio arqueológico do Camboja e de Laos, o quanto o passado colonial destes países asiáticos e a atual pesquisa arqueológica entram em choque com os atuais discursos políticos e de identidade nacional (Falser 2012, 2013). Falser propõe um conceito de cultura diferenciado, sempre que a intenção é entender processos de patrimonialização e a fabricação dos símbolos de identidade que daí resultam. A teoria formulada pelo autor prevê seis características principais que servem de alicerce ao arcabouço conceitual de uma teoria cultural patrimonial. Trata-se dos elementos: (1) local, (2) substância, (3) espaço/ambiente, (4) situação/condição, (5) tempo e (6) identidade. 20 Argumenta que estes tópicos sempre estão presentes na discussão e análise de edificações históricas, sua arqueologia, recuperação, manutenção e proteção. Mas a pesquisa e o levantamento de dados não se encerram aí, porque o patrimônio em si está inserido em conceituações mais abrangentes, locais e mesmo globais. Dando continuidade à proposta de Falser, quero sugerir que ela se aplica também ao domínio intangível da cultura, especialmente porque prevê uma dupla exegese dos termos negociados nesta teoria de patrimônio histórico-cultural: (1) uma avaliação museológica, corrente no pensamento ocidental, e (2) um corte transversal que acresce cada um dos seis termos com uma aplicação transcultural.

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No original, os termos utilizados são: Ort, Substanz, Raum, Zustand, Zeit, Identität, (FALSER, 2013, p. 25). Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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A tabela expõe as seis características do Patrimônio Cultural, colocando-as entre as duas vias de percepção das mesmas. Acima, está o enfoque museológico de acordo com as convenções ocidentais da história da arte e da ciência e, abaixo, a perspectiva ampliada, segundo uma orientação transcultural de pesquisa que vai além daquela proposta por Falser (2013). A partir das características definidas para o Patrimônio Cultural, que possibilitam uma leitura diferenciada dos mesmos termos conceituais – materiais e intangíveis, convencionais e transculturais etc – conforme o exposto, segue o esboço de uma metodologia transcultural para o discernimento de Patrimônio Musical. Patrimônio musical e sonoro A preocupação em dar à musicologia dimensões diferenciadas, de modo a aplicar a pesquisa musical a toda espécie de música, depende tanto da abordagem metodológica, quanto da origem da respectiva manifestação sonora. As seis características transculturais, apresentadas na tabela acima, não estão presas às categorizações histórica ou etnográfica que até então distinguiam as duas vertentes mais correntes da musicologia. Percebe-se, então, que o enfoque transcultural transfere o fenômeno musical e sonoro para um patamar de relevância global. Preocupado com uma musicologia mais universalista e menos segmentada entre histórica ou antropológica, o musicólogo norte-americano Charles Seeger propôs, ainda na primeira metade do século XX, um plano, ou sumário (conspectus), que oferece uma orientação para toda e qualquer inquirição musicológica (SEEGER, 1955). Seeger entende o seu conspectus como um tipo de mapa, pelo qual o pesquisador navega de acordo com o seu interesse para melhor resolver as questões da sua pesquisa musicológica. Pode “trafegar” pelos campos da biologia, da acústica, da história e da antropologia, 21 orientando-se de acordo com o seu interesse e para alcançar a sua meta, percurso este que sempre será individual e de acordo com o tema da pesquisa. Neste sentido Seeger considera que seu mapa suscita abordagens mais funcionais do que estruturais: For me, after I have completed presentation of the functional aspect of the case, that is, how best to drive the Um comentário sobre o projeto de Charles Seeger encontra-se no texto de Anthony Seeger In. Ethnography of Music (SEEGER, 1992). Uma tradução deste último trabalho foi publicada em Cadernos de Campo, vol. 17, nº. 17, USP, 2008. 21

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principal roads on the map that is my conspectus, it may be very close to what is final. (...) I would expect that each person who would accept it might modify it to suit his particular world view (SEEGER, 1977, p. 127). 22 Chama a atenção a forma aberta desta ferramenta metodológica que Seeger oferece e que, segundo ele, com alguns reparos e acréscimos, se aplica também aos estudos da dança, das artes plásticas ou da arquitetura (SEEGER, 1977, p. 127). A simulação de um percurso (road map), como estratégia metodológica, pode nos servir de ponto de partida para dar à presente teoria do Patrimônio Musical uma dinâmica “performática”. O que importa é que este esquema, aberto para a formulação e resolução de questões musicológicas, funciona para a pesquisa de toda e qualquer espécie de música, independentemente de contexto ou de origem histórica ou cultural, ou seja, serve como instrumento de orientação para a busca de fenômenos sonoroculturais de uma forma geral. Um road-map através dos conceitos de cultura As seis características do modelo de análise cultural que foi proposto para o estudo do Patrimônio Musical e, segundo uma perspectiva transcultural, podem ser visualizadas através da sua disposição em um “hexágono cultural” do Patrimônio Musical:

Um mapa que possibilita o “tráfego” pelos seis conceitos para a construção de um plano de pesquisa e de inquirição para a musicologia surge no momento em que vários hexágonos se juntam, à maneira de favos de mel, formando um hexágono maior, composto por sete ou mais hexágonos culturais.

Para mim, depois que completei a apresentação dos aspectos funcionais do caso, quais sejam, como melhor trilhar as estradas principais no mapa que é o meu conspectus, se deve estar bem perto do resultado final [...] Eu poderia esperar que cada pessoa que aceitasse isso poderá modificá-lo de forma a adequar à sua visão de mundo particular. (SEEGER, 1977, p. 127). 22

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Dentro deste esquema, multiplicado em outros hexágonos semelhantes, mas com a organização dos conceitos modificada, a passagem de um termo conceitual ao outro pode decorrer de hexágono a hexágono, com a possibilidade tanto de retorno quanto de um maior distanciamento do ponto de entrada no sistema. A pesquisa musical tem à sua disposição opções semânticas diferenciadas do respectivo termo que encontra ao longo do percurso, uma convencional e a outra transcultural. Compõe-se assim, enquanto agrupamento de “hexágonos culturais”, um mapa para a análise cultural do Patrimônio Musical e dos fenômenos sonoros. Um exemplo: interessa montar um itinerário para a análise cultural da sonoridade dos surrões dos caboclos de lança dos maracatus rurais de Pernambuco. O trajeto pelos termos pode seguir uma ordem, que representa uma das propostas do mapa dos hexágonos: 1 (local), 5 (tempo), 3 (espaço), 1 (local), 2 (substância) e 6 (identidade). A repetição de local (1) significa que, inicialmente, temos a localidade geográfica precisa, para, em seguida, optarmos pelo conceito de “zona de contato” para o respectivo termo (local). Há inúmeras outras maneiras de se escolher o itinerário para a pesquisa. O que decide a ordem e o emprego dos conceitos é o questionamento inicial da pesquisa e o interesse que a conduz.

Comparado ao road map do esquema de Charles Seeger (o conspectus), o presente modelo é simples e reduzido, menos ilustrativo do que o anterior. A sugestão para a análise é que a abordagem dos termos básicos do modelo teórico de Patrimônio Musical ocorra tanto de forma aberta, aleatória, quanto também predefinida e dirigida. Sugere finalmente que, assim como a fluidez e a fugacidade dos fenômenos sonoro e musical, a análise teórica que se aplica pode funcionar muito bem com um approach que, em si mesmo, também encerra a “fluidez” do seu objeto de pesquisa. 142


Para uma estética objetiva sonora e musical A preocupação com uma pesquisa acadêmica voltada à musica e a sonoridades produzidas nas mais diferentes partes do globo já fez as musicologias, mesmo que ainda segmentadas, darem um destaque mais universalista à pesquisa musical, aproximando uma vertente epistemológica a outra. No Brasil isso fica patente na recente criação de cursos e de áreas/posições acadêmicas que se denominam “Música, Cultura e Sociedade”, e que representam o encontro institucional da história da música com a etnomusicologia, dentro de uma perspectiva que, melhor do que até então, condiz à situação específica no país. Hoje, o interesse na estética objetiva se manifesta de várias maneiras e já não é tão recente. Entre os estudiosos de música e performers asiáticos, há elaborações estéticas de aspiração universalista bem mais antigas do que os respectivos movimentos no mundo acadêmico ocidental (HOWARD, 2006). Foi esta conscientização em relação à importância simbólica das performing arts que levou ao reconhecimento global – manifesto pela UNESCO em 2003 – do domínio intangível das heranças culturais, não menos significativo do que no caso das edificações histórico-culturais do patrimônio cultural da humanidade. Uma estética objetiva musical que, independentemente, de relativismos culturais, de categorias como erudito e popular, ou de períodos históricos, pauta-se fundamentalmente no reconhecimento de três elementos: (1) na noção de que há configurações sonoras específicas presentes em toda parte no mundo, (2) nos estudos recentes do cérebro, com a avaliação diferenciada dos aspectos psicológicos da experiência musical e, finalmente, (3) na universalidade inerente à música, através da sonoridade, e que lhe dá autonomia para oferecer momentos de profunda satisfação estética a quem a percebe e presencia. 23 Conclui-se que há, nisso tudo, uma sapientia universalis intrínseca à música, uma sabedoria universal que ela transmite através da intersubjetividade sonora da performance musical. Com ela o humanly organized sound se apresenta na sua significação máxima, portanto, independente das limitações de geografia, de mentalidades ou de períodos históricos. A orientação transcultural faz crer que o reconhecimento desta sabedoria universal ajuda a lidar com as especificidades sonoras – os saberes locais – com mais pertinência. Afinal, é a transculturação musical que nos possibilita transitar com mais desenvoltura entre o material e o intangível, entre ruídos e sons, ir e vir de script a transcript, para finalmente abraçarmos aquilo do qual percebemos também ser uma parte: o grande universo das sonoridades musicais.

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A antropologia intercultural para a transculturalidade de gêneros

Irma Julienne Angue Medoux

Tradução: Daniel Mendes Fernandes Professora de Filosofia da Universidade Omar Bongo, Libreville, Gabão

O

diagnóstico de pós-modernidade, por mais que tenha sido atacado por alguns pós-colonialistas africanos como um discurso decadente, até mesmo como uma das expressões ideológicas do capitalismo avançado, não deixa de ser menos uma ferramenta de análise importante para quem desejar comparar as diversas culturas e tradições estéticas africanas distribuídas ao redor do mundo. Todas elas enfrentam uma coabitação entre aspirações modernas ligadas à vontade de reconhecimento das produções plásticas das comunidades e um retorno a hábitos tradicionais que se opõem, ou não, nesta marcha rumo à democracia. Tal clivagem talvez seja menos visível na diáspora afroamericana da América do Norte, na qual a luta contra o racismo e o desejo de afirmação da arte dita “primitiva” tiveram de mobilizar seus líderes, bem como os que buscaram se integrar às elites da comunidade multicultural norte-americana. Eles tiveram de encontrar maneiras de se adaptar às experiências neoliberais dos bens culturais que fazem a riqueza das sociedades liberais norte-americanas. Mas essa clivagem é objeto de todas as atenções, por exemplo, do governo brasileiro, quando ele quer privar seus ex-escravos de terem acesso à educação, do primário ao ensino superior, a partir de seus programas ditos “de interiorização”. Essa clivagem é então considerada como uma falta de acesso à educação, uma falta que deve ser tratada através da instauração e do desenvolvimento do acesso de toda a população da diáspora africana. A comunidade africana, de fato, é confrontada atualmente com a clivagem cotidiana entre suas tradições e o fracasso de sua “adaptação” aos desafios experimentais colocados pela experimentação neoliberal da arte e também pelas ciências que refletem seus resultados: as ciências humanas. Os problemas de integração das produções plásticas tão tradicionais quanto modernas nos museus da África revelam o quanto os países africanos são levados a negar à arte e aos artistas africanos o poder e a verdade estéticos que deslegitimavam o discurso colonialista dos séculos passados. Esses problemas de integração são tão perigosos quanto as lutas tribais e a proliferação dos etnocídios. A repercussão de todos esses efeitos sobre os problemas de transculturalidade de gêneros, sobre as relações entre homens e mulheres, acontece em todos os países do mundo, sobrecarregando as pessoas do sexo que parece ter disposição a ser dominado,as mulheres, sem que a ideologia modernista de paridade entre homens e mulheres que Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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caracteriza o modernismo contemporâneo da revolta feminista possa constituir um disfarce eficaz. Tudo se passa como se esses sintomas da falibilidade do modernismo que afetam a África devessem ser lidos como um abandono da razão. Esses sintomas acompanham, em todo caso, esse fenômeno da diáspora interna que poderia ser lido como um novo apartheid entre homens e mulheres, que acontece dessa vez dentro da comunidade presente no continente africano. De forma mais geral, essa clivagem entre elites e populações, entre “dirigentes” ou “decisores” de um lado, e as “massas”, do outro lado, retomando as categorias questionáveis dos sociólogos, acompanha os efeitos da globalização cultural conduzida como experimentação neoliberal contemporânea das artes. Isso acontece no horizonte do destino experimental ao qual os próprios artistas contemporâneos se entregam como se experimentassem o mundo. O acordo experimental com os objetos estéticos, buscado pelos negociantes da arte experimentando a verdade de suas hipóteses, não é garantido de antemão. O acordo com o próximo, experimentado como consenso pelas sociedades contemporâneas ditas “multiculturais”, também não é garantido de antemão. A modernização buscada pelos tempos modernos, através da autonomização das instituições culturais comparada às religiões, parece ter sido uma inútil paixão coletiva: seu fracasso programado parece dar razão a todos aqueles que a rejeitaram como um ideal puramente ocidental propagado pela colonização europeia do resto do mundo e, depois, travestido sob diversas máscaras e retransmitido pelas diversas instâncias do capitalismo avançado. Da mesma forma, tal clivagem se manifesta como oposição entre tradição e modernidade. Abandonados por seus governos na condução cotidiana de suas vidas, os indivíduos e grupos que são vítimas desse abandono não conseguem encontrar o sentido de suas vidas na globalização econômica nem na cosmopolítica que tenta contê-lo. Buscam estes novamente esse sentido em suas raízes, em suas “tradições”, que parecem ser capazes de curar tanto sua saúde física quanto sua saúde social. É assim que enfrentam crises culturais semelhantes às crises das sociedades ditas modernas que os havia colonizado, mas suas próprias crises são reforçadas pela consciência de não ter os meios para superá-las. Tomadas por um ideal de modernização desenfreada, as diversas crises que abalaram as sociedades do mundo inteiro foram descritas pelas ciências humanas e sociais como crises de racionalidade, de legitimação e de motivação, ou, ainda, como neutralização das instituições e do psiquismo. Ligadas a uma perda do senso de realidade, obnubiladas pela vontade de dominar econômica, moral, psicológica e politicamente, e até mesmo pelos sistemas lógico-matemáticos, as catástrofes políticas, totalitárias e/ou racistas, como também as catástrofes provocadas por uma especulação gananciosa e cega, provocaram todas as experimentações científicas, sociais, institucionais ou psíquicas (possíveis) para estabelecer tanto um diálogo racional com o mundo externo quanto um diálogo com a natureza do próprio ser humano. A ausência de credibilidade das metanarrativas de emancipação, diagnosticada por Lyotard em sua obra intitulada A condição pós-moderna, somente põe em dúvida a capacidade do artista de se apropriar, de uma vez por todas, das propriedades quase divinas do autodomínio e da autonomia absoluta às quais essa liberdade suspostamente lhe daria abertura através dos sistemas legais, morais e políticos. Reconhecido como ser de linguagem no século XX, revelou-se, de fato, que nenhum domínio da linguagem, das instituições e do psiquismo humano era acessível magicamente, pelo puro e simples uso desta linguagem ou somente porque o artita pensava. Nesse contexto, a importação dessas crises para a África provocou uma recaída na velha confiança na natureza, numa natureza que somente pode responder favoravelmente a esse desejo de conhecimento e de domínio do homem: recolocando-o magicamente em contato com o ser, com o mundo, com o próximo e consigo mesmo. 146


Os próprios filósofos europeus tiveram essa recaída entre 1920 e 1950. A tentação heideggeriana de garantir autenticidade à vida humana, colocando cada um em contato com o ser, pôde assim exercer sua sedução e dominância sobre os homens e as sociedades que não fizeram mais do que resistir às sirenes dos tempos modernos. Complementada pela tentação wittgensteiniana de re-harmonizar nossos contemporâneos doentes com espasmos psicológicos e filosóficos, a experimentação da linguagem pareceu poder encontrar em si mesma sua própria terapia: deixando nossos contemporâneos se ajustarem aos êxitos e fracassos que encontraram enquanto experimentavam todas as formas de vida possíveis se curvando às leis de seu êxito. O recuo dos indivíduos e grupos para as tradições africanas ocorreu no horizonte dessa confiança inocente no diálogo com a natureza, seja a natureza externa do mundo ou a natureza interna do ser humano. Foi essa recaída que os “novos iluministas” franceses– Lyotard, Foucault, Derrida e Deleuze – queriam impedir. O diagnóstico pós-moderno, aplicado sobre todos nós por Lyotard, se insere na tradição do Iluminismo dos Tempos Modernos e sua rejeição ao diálogo religioso com o mundo. Ele tem relação com a liberdade absoluta de rejeição e repulsa que o Iluminismo havia exercido ao negar a verdade de qualquer fé. A retomada do diálogo com a natureza externa do mundo e com a natureza interna do homem, entretanto, tem sido feita na comunidade africana sem aderir a essa rejeição do diálogo religioso com o mundo. A especificidade da África pós-moderna reside precisamente nessa retomada que, além disso, se harmoniza mais com a pós-modernidade experimentalista de Rorty do que com a dos europeus. Nesse contexto, o neopragmatismo de um autor como Richard Rorty parece com efeito exprimir a consciência da autorregulação inerente a essa experimentação. Tal consciência parece ser capaz de curar a consciência do fracasso e da angústia secretada pelo diagnóstico pós-modernista, tipicamente europeu, sobre o estado atual da humanidade. Assim, ele também parece exprimir as expectativas de uma transculturalidade pragmática. Essas expectativas parecem estar ao alcance das nossas mãos: acessíveis ao diálogo entre tradição e modernidade, que parece caracterizar qualquer comunidade contemporânea. Tal consciência experimental está desobrigada de ter de considerar o descrédito dado às narrativas de emancipação como um fatídico fracasso. Esse descrédito faz da consciência pós-moderna europeia uma consciência infeliz, uma consciência que está certa sobre seu fatídico fracasso, que tem a certeza de que não pode mudar nada. A África pós-moderna parece desobrigada de avançar sobre essa consciência trágica. Porém, por mais que ela procure esse diálogo transcultural a qual conduz ao sabor dessa experimentação consigo mesma– não se encontra menos problemas reais, análogos aos que a consciência pós-moderna deve enfrentar sobre a consciência europeia infeliz, porque suas elites, sejam elas políticas, econômicas ou intelectuais, exibem claramente sua afinidade com os ideais de emancipação da modernidade, mas a forma como elas pretendem realizar esses ideais permanece prisioneira de uma vontade de poder já diagnosticada por Nietzsche, Heidegger, Gadamer e Rorty, presente nos ideais jurídicos, morais e políticos da modernidade. Continuam estas elites dependentes da vontade de autocertificação coletiva e consensual dos objetivos que elas se propõem. Esses objetivos são bons e validados de antemão se eles estiverem a prióri em conformidade com os ideais democráticos, estejam eles de acordo ou não com a resolução dos problemas econômicos, políticos, sociais ou antropológicos reais enfrentados. Como pode a comunidade africana, tão multicultural quanto as outras comunidades do mundo, restaurar uma unidade em si que lhe permita ser “a comunidade” que deseja ser? Como pode superar essa clivagem que não é somente dela, mas que compartilha com todas as comunidades do mundo? Seria pela dedicação à magia consensual que acompanha a experimentação neoliberal do ser humano? Seria pela partilha com filósofos pós-modernos europeus de seus sentidos de tragédia e de sua consciência de não poder escapar ao fracasso da civilização, fracasso este inerente a qualquer modernidade? Na minha opinião, nem um outro caso aqui se aplica. A África pós-moderna somente conseguirá enfrentar seu destino quando se tornar crítica, somente 147 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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quando criticar os resultados da globalização transcultural sobre si mesma, somente quando criticar a mentalidade que gera esses resultados, e isso sob a égide de uma reflexão acadêmica e filosófica prevenida. É assim que pode esta participar eficazmente de um diálogo transcultural, tanto com sua diáspora norte-americana ou sul-americana quanto consigo mesma e com as diferentes culturas nas quais vivem os indivíduos e os grupos que as formam. Essa é a única forma pela qual a África conseguirá entrar também em diálogo crítico com as comunidades não africanas, sejam elas europeias, americanas, médio-orientais ou extremo-orientais. Porque a forma pela qual ela assimilou as concepções que seus colonos tinham da modernidade lhe parecia boa pelo simples fato de que confiava ao consenso democrático o cuidado de assegurar a todos as condições de vida e liberdade validáveis por todos. Porém, ela experimentou a cegueira, a instrumentalização e a manipulação desse consenso e experimentou igualmente o fato de que o consenso não constitui de modo algum uma autoridade que possa ser um substituto dos deuses das religiões arcaicas ou do Deus judaico-cristão. Deve a África portanto, julgar os resultados do diálogo que ocorre entre suas tradições culturais e suas elites, não para eleger esses resultados, mas para julgar a existência e a validade objetiva das formas de vida humanas que estes conseguem ou não concretizar. Nesse diálogo, o objetivo da comunidade africana pós-moderna é analisar as diversas formas pelas quais ela mesma, as comunidades de sua diáspora e também as outras comunidades ao redor do mundo procedem a essa crítica esclarecida das nossas sociedades pós-modernas, sem no entanto cair no sentimento de impotência. Assim como a comunidade africana, outras comunidades somente vão superar suas clivagens quando passarem a fazer uso de seu julgamento crítico sobre seu próprio desenvolvimento: é assim que elas se apropriam de sua modernidade e sua capacidade de se reconhecerem e serem reconhecidas como comunidades. Como essas “comunidades” ajustam seus conhecimentos contemporâneos trazidos pelas ciências epistemológicas e lógicas ao conhecimento do mundo em que vivem se refletem em suas vidas? Como ajustam sua proximidade “moderna”, constitucional, aos direitos humanos na prática judiciária dos juízes que atuam em seus Estados-nações? Como participam da instauração de democracias fundamentadas em consensos contingentes, mas nem por isso menos prudentes? Como tomam parte nos vereditos dados pela opinião pública internacional sobre a hecatombe produzida pelos excessos mortais do capitalismo, tanto em países pobres como em países ricos? São estas capazes de remobilizar a história de suas culturas, fazendo dela uma ferramenta fundamental e inspiradora de “sabedoria” mínima? Qual é a ação empreendida nesses diferentes contextos para tratar o problema das relações dos homens e mulheres no respeito mútuo da faculdade de julgar, sabendo que ambos participam de um uso comum da linguagem e da reflexão crítica? As relações de submissão das mulheres em face dos homens, que algumas sociedades africanas mantêm na pretensão de respeitar suas tradições, são radicalmente diferentes daquelas que algumas sociedades muçulmanas tradicionalistas continuam, ainda hoje, a exigir que sejam respeitadas? Sabe-se que Jean-François Lyotard depositou o intelectual na tumba, pois acreditava que nenhum problema de civilização não mais podia ser considerado universal o bastante para justificar a existência do intelectual como tal e que ele havia, portanto, perdido sua função ao perder sua força de convicção. O destino das mulheres africanas nos parece, entretanto, refletir uma crise de civilização e de cultura que requer que tomemos consciência sobre a radicalidade dessa crise e que possamos perceber, nesta tomada de consciência intelectual, um ponto de Arquimedes capaz de elevar um continente inteiro à altura de suas aspirações. Só os intelectuais podem, portanto, levantar a questão, situando adequadamente o destino dessa mulheres na economia cultural do mundo, na medida em que eles devem procurar, em suas críticas, esclarecer as condições de emancipação que devem ser oferecidas a cada indivíduo, pelo simples fato de que esse um é igual a todos os outros como ser de linguagem, como enunciador que deve participar na transformação 148


de suas condições de vida quando esta se revela incontornável. Portanto, os intelectuais não têm de aceitar serem depositados na tumba só porque seu problema de justiça e equidade não parecia universal o bastante para que pudesse despertar o pensamento. Esse problema de justiça e equidade das mulheres, eufemisticamente chamado de “a questão dos gêneros”, revela-se na verdade universal, desde a socialização dos homens e das mulheres. Mas é por almejar chegar à consciência de todos, quando todos os outros problemas são proclamados resolvidos, que se requer uma emergência para que os intelectuais retirem todas as mulheres dessa tumba na qual, desde sempre, têm sido mantidas encarceradas pelo que chamamos de “civilização” e na qual as mulheres africanas ainda hoje sucumbem ao seu destino. Tal problema surge como questão de emancipação social, porém, somente será resolvido se “escutarmos” as mulheres que lá vivem e que reconheçamos seu poder de julgar. Escutemos o que dizem efetivamente os intelectuais quando se empenharem na tarefa de resolver seu próprio destino e o destino dessas mulheres do seu continente. Porque dando uma solução para esse problema poderão organizar uma solidariedade de consciência que lhes permita tratar os outros problemas de civilização e cultura. O destino das mulheres africanas não reside, somente, no peso das tradições que exigem sua submissão. Ele também é condicionado pela loucura que está no cerne da vontade de poder que move a experimentação capitalista do ser humano. As mais arbitrárias relações de dominação impostas pelo neoliberalismo e o desaparecimento do monopólio dos Estados-nações no campo da política, fizeram com que os cidadãos do mundo, cidadãos cosmopolitas, experimentassem uma real ausência de liberdade. A fraqueza dos Estados-nações, em relação aos ataques da especulação bancária contra sua moeda, fez deles os últimos baluartes da liberdade dos indivíduos, mas esses últimos baluartes são naturalmente muito fracos para impor sua moral bancária aos bancos do mundo inteiro que continuam suas intrigas sem se preocupar com seus regulamentos. Nesse contexto globalizado, as únicas instituições poderosas o suficiente para contrariar essa debandada econômica generalizada são aquelas que carregam a própria razão, aquelas que propagaram as narrativas de emancipação inventadas pelos Tempos Modernos: são as instituições da crítica acadêmica, na medida em que a emancipação social, defendida por Karl Marx e Max Weber, não mais parece suficiente para conter a loucura e o desenfreio da especulação sobre os valores financeiros. Não basta mais discernir as condições que permitiriam respeitar uma justiça social com base na redistribuição dos lucros e dos bens. O que se trata de produzir é uma verdadeira emancipação intelectual que coloca cada um ao abrigo da loucura propagada pelo desenfreio da especulação financeira, tanto quanto pelas recaídas tradicionalistas a que esta induz. Mas, essa especulação financeira é baseada numa vontade de poder. Essa vontade de poder apenas mudou de lugar – submeteu a política econômica à economia e se estabeleceu nas próprias relações econômicas, da maneira mais arbitrária e mais abstrata. A alienação denunciada por Marx e Weber passava ainda pelas relações de produção e pela alienação da mão de obra dos trabalhadores. A vontade de poder que move a especulação bancária não tem qualquer interesse por esse desvio que passa pela mãodeobra dos trabalhadores. Quer esta produzir diretamente um aumento de capital que passa pelo investimento das apostas feitas sobre as ações das empresas. Esse aumento seria diretamente fiador do bem social dos especuladores e justificaria sua consciência de dominação. Nossa convicção é que o machismo que reside na base dessa vontade de poder econômico, que também residia na crença das capacidades dos Estados-nações de assegurar um dia a justiça na terra, impede hoje que as instituições acadêmicas de cumpram seu papel de emancipação intelectual. Essa emancipação não é somente para ser descrita e analisada nas suas condições mais vitais, mas é para ser, de fato, instaurada. 149 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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Podemos combater esse machismo pelas armas intelectuais somente se nos encontrarmos presos em relações de dominação que tornam a vida dos dominados insuportável. Nos condenam, em condições globais, a uma pobreza continuada, apesar e através de todos os projetos de desenvolvimento “durável”. Os que enfrentam essa situação de “dominação durável” são os que têm sido dominados desde a construção das instituições ditas arcaicas e mais tarde nas instituições modernas do direito, da moral e da política e, finalmente hoje, na privatização do mundo pelos dominantes. Portanto, os únicos dominados duráveis que podem se tornar eles mesmos, conscientes do dever de se emancipar, são hoje as mulheres. Sozinhas, são obrigadas e capazes de detectar na emancipação intelectual a emancipação necessária em relação à sua condição de dominada. A verdadeira paridade entre homens e mulheres não tem de ser conquistada segundo o modelo de que gozam os homens; nem tem esta de renunciar a si mesma humilhada pelas tradições que escravizam umas em detrimento de outras. Ela é inscrita na forma que todo ser humano supera seu status de prematuro crônico que Louis Bolk havia descoberto, e na ausência das coordenações hereditárias instintivas em relação a tudo o que é estranho à sua espécie somente quando se entrega à emissão-recepção de sons e inventa a fala. Essa descoberta do século XX não exige, simplesmente, que deixemos falar todas aquelas que foram silenciadas, reduzindo-as ao seu papel de ouvintes das verdades que lhes são comunicadas e de executoras das ordens que lhes são dadas. Acima de tudo, exige esta, assim como insisto em meu texto, que levemos em conta de forma responsável os julgamentos que fazem sobre sua situação, porque teremos concedido a elas uma educação e uma formação que as terá tornado capazes de formar esses julgamentos independentes. Portanto, para escapar ao seu destino, as mulheres africanas não têm de aguardar nosso acordo para que lhes concedamos uma paridade cívica com os homens, ou uma paridade civil na direção das empresas; têm de formar um julgamento que esteja à altura das expectativas de autonomia que têm em companhia das intelectuais as quais estão preocupadas com o destino de todas enquanto cuidam do seu próprio destino. E, por isso, os acadêmicos africanos e as acadêmicas africanas são responsáveis em primeira e última estância. Eles somente podem produzir sua própria emancipação com reconhecimento da opinião pública internacional e do diálogo internacional se produzirem nos “dominados duráveis” do continente africano a emancipação intelectual que pode, por si só, evitar sua alienação social atual.

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Parte III Comunicações

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Um caso em transculturalidade: Brasil e a arte-ethos do continente afro-atlântico

George Nelson Preston Diretor Fundador do Museu de Arte e Origens – MOAO, Nova York

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título deste trabalho foi alterado de seu original “A estética negra americana em comparação a lógicas contraditórias, identidades e agendas curatoriais do movimento ‘pós-negro’, o qual foi apresentado no Primeiro encontro afro-atlântico no Museu Afro Brasil, São Paulo, em 26 de maio de 2010. Desde meados de 1990, nos Estados Unidos, diretores de museus e curadores têm tentado dar conta de uma lógica contraditória sobre identidades e agendas curatoriais, com a intenção de reparar o apagamento da memória dos artistas e de temas afro-descendentes. Tal interesse decorre de uma constatação sobre o papel que os museus desempenham ao influenciar a divulgação de identidades racioculturais negativas. Porém, o surgimento dos conceitos de um Atlântico negro e de uma identidade “Pós-Negra”, nos anos 90, parece contradizer e desafiar a razão de ser da chamada abordagem curatorial corretiva. O que é o “pós-negro”?

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Duas considerações importantes no âmago do ‘pós-negro’ referem-se ao surgimento de uma consciência atlântica negra e à crença em uma nova identidade pósnegra livre de concepções tradicionais e de equívocos relativos à arte, aos temas e aos artistas negros. Mas se o ‘pós-negro’ pretende derrubar as noções obsoletas de arte negra, então isso não significa que, de fato, não seria mais desejável promover especificamente artistas negros, especialmente se fosse constatado que eles não estariam mais sofrendo qualquer forma de discriminação. O planejamento do Primeiro encontro afro-atlântico no Museu Afro-Brasil já vinha sendo pensado há longo tempo. Tanto seu diretor Emanoel Araújo, quanto o colecionador de fotografias do século XIX, Haskell Hoffenberg, e eu já vínhamos discutindo a ideia repetidamente, desde 1987, como parte de nossa discussão sobre “A mão afro-brasileira”, referente à exposição e às publicações comemorativas do Centenário da Abolição da Escravatura, ocorridas em 1988. No atual trabalho, levo em consideração questões museológicas elaboradas para a mostra “A mão afro-brasileira”, além do texto original concebido para o En-


contro afro-atlântico e algumas questões suscitadas pela consciência ‘pós-negro’. Emprego aqui o termo “negro-atlântico”, “afro-atlântico” e “atlântico” como qualificadores pares de uma consciência estética, uma arte/etos compartilhada. “negros atlânticos” não constituem uma “raça”, uma nacionalidade ou mesmo uma diáspora, no sentido normalmente usado por acadêmicos afro-descendentes norte-americanos há mais de duas décadas. Em 1993, Paul Gilroy publicou The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness (Os Negroatlânticos: modernidade e dupla consciência). A proposição histórico-cultural desse inglês afrodescendente moldou o termo “negro atlântico”, uma metáfora do Oceano Atlântico como “um continente em negativo”, em relação à história da cultura e em contraposição ao essencialismo racial ou ao nacionalismo cultural de alguns estudos da diáspora africana. Ocorreu, em seguida, um deslocamento do peso dos estudos africanos de uma ênfase em questões sobre a herança cultural da África para um dinâmico e constante intercâmbio complementar entre a África como representando o Novo Mundo e a Europa. Gostaria de inserir minha própria definição – a de continente aquático – de forma a lograr compará-la com aquela de “continente em negativo”. A articulação de fenômenos culturais por acadêmicos frequentemente deixa a desejar sobre a vida do fenômeno, porque o autor se sente menos obrigado a expressar suas ideias devido à precisão das notas de rodapé. O escritor fica, assim, satisfeito em definir generalidades, e seus personagens podem funcionar como jogadores em micro-histórias. O entendimento da bacia atlântica como um continente aquoso tem sido definido muito antes de nós acadêmicos termos rotulado o fenômeno negroatlântico ou afro-atlântico. É claro que nós reconhecemos que o Brasil tem sido historicamente um fulcro e uma alavanca, uma argamassa e um pilão da estética afro-atlântica desde a chegada dos escravos africanos. Certamente, uma das mais profundas expressões literárias do Negroatlântico é a última trilogia de Antonio Olinto Marques da Rocha, O rei do Keto, Trono de vidro e A aasa d’ água, escritos entre 1984 e 1987, e que se inserem entre as exposições literárias da consciência afro-atlântica mais acessíveis intelectualmente. Alguns personagens de A casa d’ água, como é o caso de mestre Didi dos Santos, que aparece descrito no livro como menino de coro, continuam vivos. Antonio Olinto menciona, ainda, uma máscara geledé nagô/yorubá, esculpida em Daomé a pedido do terreiro Ile Asipa, tendo sido a mesma enviada por navio a Salvador em 1900. Um fragmento dessa máscara se encontra na cidade de Nova York, enquanto o terreiro lIe Asipa de Daomé está atualmente ativo. Uma pintura famosa de Gerbrandt van den Eeckhout talvez seja o mais antigo documento do afro-atlântico quotidiano e “material”. Eeckhout foi comissionado pelo Duque de Nassau, uma das primeiras vozes do enciclopedismo europeu. O duque foi governador do então chamado Brasil holandês, que corresponde agora a partes das Guianas e do nordeste brasileiro. Van Dantzig, no livro Ghana Notes and Queries (Notas e questões de Gana), pode ser considerado como o primeiro acadêmico que discutiu essa pintura como uma expressão do intocado continente atlântico. Ela representara um homem afrodescendente portando uma akan afena (espada real), original da Costa do Ouro, com lanças tupi-guarani em suas mãos. Ele veste um kilt de lã português denominado “pano da costa”, constituído de um tipo de tecido de madras. Uma presa de elefante aparece à direita, em primeiro plano. Ao fundo, à distância, vemos uma torre de vigia de pescadores da África Ocidental. Uma mulher foi retratada junto a essa representação do africano com cestas do Congo, frutas brasileiras e importadas, um cachimbo holandês e uma rede de arrastão em uma torre de vigia de pesca da Costa do Ouro. As exposições e interpretações contraditórias relativas à diáspora e à arte de afro-descendentes resultaram em um deslocamento, na agenda curatorial da diáspora africana de temas ligados à comunidade 153 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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atlântica, para a arte ‘pós-negra’ de artistas afro-descendentes. Um exemplo de tal afirmativa foi a exibição Freestyle exhibition (Exposição modo de vida livre) no Studio Museum, no Harlem, em 2001. Free Style foi dedicada a uma apresentação ‘pós-negra’, com a intenção de questionar as agendas curatoriais prévias das chamadas “exposições corretivas”. Seguem algumas citações da mesa-redonda na qual o crítico Huey Copeland entrevista Thelma Goldin, curadora-chefe do Studio Museum, no Harlem, e o artista conceitual Glenn Ligon. Thelma Goldin: Eu havia sido doutrinada pelo multiculturalismo… Percebi então o quão provinciana era aquela doutrinação, porque eu somente via a experiência americana como se a experiência de outros artistas afro-descendentes tivessem acontecido no passado. Huey Copeland: O conceito “negro atlântico” oferece uma narrativa anti-hegemônica da modernidade que tem profundas ramificações para o nosso entendimento do presente... Como a formulação de Gilroy que lhe permitiu novas formas de interrogar criticamente momentos históricos anteriores, assim o mundo da arte contemporânea é tão frequentemente rotulado como global e disperso... O conceito “negro atlântico” não só nos permite negar um globalismo reconhecidamente amorfo, mas também permite tornar mais precisa a nossa história. Thelma Goldin: A história é importante, especialmente nas práticas sobre as quais estamos falando, porque ela marca o ponto de referência que define identidade e lugar, na medida em que os artistas a reivindicam e a reproduzem em seus trabalhos. O ‘pós-negro’ na exibição Freestyle nomeou uma nova geração de artistas afro-americanos que era inflexível em relação ao fato de não serem artistas “negros”, mesmo se suas obras estivessem impregnadas de negritude e estivessem, de fato, extremamente interessados em redefinir noções complexas de negritude. Glenn Ligon: Há uma geração de artistas mais jovem do que eu que estabeleceu uma relação diferente com imagens de negritude. A história da minha geração ou da geração anterior à minha afirma que Thelma e eu estávamos comprometidos com a era do alto multiculturalismo, a qual enfatizou a questão das imagens negativas e positivas de negritude. De fato, essas eram questões com as quais não nos sentíamos à vontade. Thelma Goldin: Eu aprendi em um contexto internacional, no qual as práticas podem se desdobrar individualmente e ainda assim se constituir como parte de um diálogo mais amplo, mas que não devem estar necessariamente atreladas a uma linha de pensamento... Essa foi nossa missão no Museu no início dos anos 2000... A missão precedente era: “O SMIH coleciona, apresenta, preserva, e interpreta trabalhos de artistas afro-americanos e artefatos da diáspora africana”, o que era válido naquela época para uma instituição que havia sido fundada no Harlem, em 1968. Aquela missão representava a posição de artistas afro-americanos em um momento histórico em que o universo artístico ainda era altamente excludente, logo, o museu era concebido como um centro corretivo da situação daqueles excluídos. Reivindicando a história da África como ferramenta da identidade negra, o que isto significou sobre a missão do museu é a constatação de que havia uma divisão entre os artistas afroamericanos vivos e os artefatos da diáspora africana... A missão atual afirma que o museu estabelece um nexo com os artistas negros 154


locais, nacionais e internacionais, com seu trabalho inspirado na cultura negra, representando um local de intercâmbio dinâmico de ideias sobre arte e sociedade. Em face do racismo institucionalizado, Emiliano Di Cavalcanti cria uma alternativa para o ícone cultural dominante de negritude. A natureza morta representa um gênero europeu estabelecido, no qual os objetos do quotidiano são colocados sobre a mesa e dispostos como um exercício formalista. Em Macumba, Di Cavalcanti faz referência a essa tradição europeia usando ideias composicionais e ilusionistas emprestadas das pinturas barrocas holandesas de interiores e natureza morta. Mas Emiliano substitui os emblemas de status material europeus do século XVII por objetos autênticos de macumba brasileira. Colocando parafernálias de macumba como tema de arte europeia de gênero histórico, Di Cavalcanti preconiza sua igualdade com os objetos da natureza morta europeia. A paisagem (como parte da coleção permanente do Museu Afro Brasil) nos revela uma paisagem contemporânea como figuras nos retratos de Eckhout. Aqui, nenhum objeto de cultura material é retratado. A paisagem e sua flora são os ícones do Brasil, em sintonia com suas raízes. Nas primeiras décadas do século XX, o Brasil embarcou em um programa de europeização. Milhares de europeus foram trazidos para o país e os afro-descendentes tornaram-se párias sociais. Um sinal curioso desses tempos foi a pletora ridícula de cópias baratas de esculturas clássicas gregas, que ficavam dispostas nos jardins dos ricos. Embora tais cópias banais do Lussipus tenham feito com que este se levantasse de sua tumba em um estado de ira, brasileiros de descendência europeia consideravam, todavia, essas monstruosidades superiores à arte indígena ameríndia e afro-brasileira. O confronto estabelecido na pintura de Leon Ferrari entre o Espírito Santo e a pombagira nos faz lembrar o papel que a religião desempenhou no patrocínio de uma hierarquia de identidade cultural. Conclusão Por último, eu gostaria de considerar o ‘pós-negro’, em relação ao negro atlântico, como uma agenda curatorial que pode expressar a ideia dessa integração. Como se pode ver a partir da diversidade de temas e iconografias da Comunidade Atlântica, há uma nova identidade a ser proposta ao público. A definição dessa arte como sendo produzida somente por “afro-descendentes” é polêmica. A Comunidade Atlântica não é de uma raça. Ela é uma consciência, uma cultura, o ethos compartilhado em um continente aquoso.

Rosana Paulino - Dorso Negro com Leite Branco Ama de Leite I e II. Wet Nurse I & II

Leon Ferrari L. Alegoria do Brasil. O Espírito Santo e a Pomba Gira 155

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Duda Penteado Brasil Under My Skin (Brasil Sob a Minha Pele), 2010

Emiliano Di Cavalcanti – Macumba (1958) O.C.

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Arte pública: educação em escolas públicas de Nova York

Liza Renia Papi Professora adjunta associada do Departamento de Artes, Saint John’s College Queens, Nova York

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estátua de George Washington foi realmente a primeira obra de arte pública em Nova York?, perguntou Ouynga, um aluno da oitava série de uma escola pública do Leste do Bronx. Este retrato impressionante de George Washington, na Union Square Park, foi elaborado por Henry Kirke Brown, em 1865. Foi a primeira escultura pública em Nova York e, ainda hoje, é uma das obras de arte mais veneradas ao ar livre. Tem esta inspirado muitas outras esculturas ao ar livre, há quase 150 anos, de arte nos parques públicos. Mesmo com o alto poder aquisitivo de Nova York, os subsídios para as artes estão abaixo do orçamento há cerca de 20 anos. Todos os anos a cidade é brindada com murais públicos, esculturas, performances e instalações. O meio artístico está produzindo cada vez mais artistas profissionais, frutos de uma nova geração de estudantes oriundos das escolas públicas dos cinco distritos de Nova York. O que é a arte pública hoje? A arte pública está em toda parte, podendo ser permanente ou temporária. Vivenciamos tal arte em nossa rotina diária e, às vezes, não a percebemos. Essas expressões públicas incentivam-nos a repensar nosso ambiente físico e cultural e nosso lugar dentro desta paisagem urbana complexa. A arte pública é apresentada em diversos lugares, como parques, corredores de edifícios, dentro e fora das escolas, metrôs e outros espaços públicos, como aponta o crítico de arte Jonathan Kuhn. Afirma este autor que a arte pública temporária continua a desempenhar um forte papel de vanguarda em uma cidade de competição visual virtualmente ilimitada e que, em seu melhor aspecto, detém o poder de surpreender, debater, agitar e causar escândalos ocasionais. Hoje, independentemente do desempenho econômico novaiorquino, muitas organizações surgiram para apoiar artistas ao ar livre. Doris C. Freedman representa um campeão de arte pública e é considerado um defensor incansável da lei “Percent for Art” em Nova York desde o final dos anos 1960. Foi nessa época que artistas independentes se reuniram para criar e executar obras de arte conceitual para galerias, museus e espaços abertos. Enquanto muitos artistas conceituais protestaram contra a guerra do Vietnã, ainda hoje, a arte pública demonstra uma preocupação social e ambiental, com artistas como Christo que “limpou” o rio Arkansas para ali erigir uma escultura que simbolizava os fundamentos estéticos e econômicos do Reino dos Emirados Árabes Unidos. Na primavera de 2013, o Jardim Botânico de Nova York recebeu uma atraente 157 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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instalação de Philip Haas, The Four Seasons (As quatro estações). O trabalho de Haas foi inspirado no pintor renascentista italiano Giuseppe Arcimbold, do século XVI, que pintou retratos compostos de frutas, legumes e flores. Cada escultura de Haas representava uma das estações do ano, medindo cerca de 15 metros cada. Eram retratos abstratos que indicavam as quatro estações do ano em uma incrível façanha plástica que misturava duas pinturas clássicas, bidimensionais e tridimensionais, resultando em uma escultura contemporânea de arte pública orgânica. Sons da primavera eram diferenciados de um inverno turbulento frio, ao ouvirmos coloridos cavalos dançarinos que afluíam à cidade. Eram estes do Maranhão, onde o cavalo-marinho ou o bumba-meu-boi simbolizam uma das principais tradições do folclore. Representam tais cavalos os sons da obra Heard NY (Ouça New York) do artista e designer Nick Cave, contando com quinze tons de som equino, dispostos em uma instalação situada no Terminal Grand Central do edifício Vanderbilt Hall. Durante uma semana, em março de 2013, tal espetáculo foi realizado duas vezes por dia, às 11.00 e às 14.00 horas, no espaço do MTA Arts for Transit. Este salão geralmente funciona como uma sala de espera para os viajantes que se dirigem para fora da cidade, tendo sido transformado em um palco público para abrigar movimentos de dança. Os quinze cavalos esculturais e seus corpos de ráfia, coloridos de maneira brilhante, destacaram-se no salão ao rodar e balançar suas peles felpudas que vestiam os estudantes de dança da escola Ailey, os quais giravam no ar. Pisando forte e balançando o chão, corpos cobertos por listras rosas, azuis, verdes, amarelas, marrons e tons de dourado coloriam o moderno espaço da Grand Central, tudo isto animado pelo ritmo de tambores e instrumentos tocados ao vivo. A organização denominada Artes, no Chelsea, contratou a artista Carol Bove para apresentar seu trabalho Sete esculturas de grandes dimensões, no Yards Rail, terceira e última parte do High Line. O High Line tornou-se uma inspiração para os artistas novaiorquinos e internacionais refletirem sobre formas criativas de se envolver com a singularidade histórica da arquitetura local e trabalhar com design avançado, promovendo um diálogo com a vizinhança e a paisagem urbana, criando um centro dinâmico de arte pública. A arte pública pode, então, satisfazer uma necessidade humana básica para a descoberta? O High Line é o perfeito exemplo de espaço privado, reciclado e transformado em um espaço-arte. Outros locais, como o Madison Square Park e o Parque Sócrates, cumprem dois ideais públicos: revelar a criatividade dos artistas e permitir o lazer nos parques públicos. A partir da criação destes espaços de arte pública passou a haver maior interação entre artistas consagrados e estudantes, que representam uma nova geração com uma perspectiva emergente, brilhante e incomum. Vermelho, amarelo e azul foi uma instalação criada por Orly Genger, exposta no Madison Square Park. A interessante escolha de material natural, com corda atada à mão pintada de vermelho, permitiu a implantação de um projeto de onda em torno do centro do parque. Esta obra consistia de 1,4 milhão de metros de corda e 3.000 galões de tinta pesando cerca de 45.000 quilos. Genger comentou que ficou mais surpresa com o peso do material do que com a solidez que deu à peça. Seu trabalho evoluiu em 2004, quando ela construiu sua primeira peça ao ar livre para o Parque de Esculturas Sócrates em Long Island City, Queens. Sendo forçada a encontrar um material que seria mais resistente às intempéries do que a lã, descobriu ela uma corda usada para alpinismo. Vermelho, amarelo e azul esteve em exibição de maio a setembro de 2013. O Madison Square Arts encomendou mais de uma centena de obras a diferentes artistas desde sua fundação em 2000. Em suas galerias Verde e Ao Ar Livre do Madison Square Park ,frequentemente, vêm sendo exibidas obras desafiadoras de artistas emergentes. Para assinalar o quinto ano do Madison Square Arts, o Madison Square Park Conservancy exibiu obras de um artista no auge de sua carreira: o renomado escultor internacional Mark di Suvero. As esculturas exibidas demonstraram uma gama expressiva de épicas construções em feixes de aço deste escultor, incluindo do duplo tetraedro vertical até formas em conversa de fábulas de Esopo, culmi158


nando com o encontro de uma forma orgânica da terra, na obra Beyond. A obra de Sol LeWitt também foi celebrada no parque com o seu trabalho Círculo com torres, que posteriormente seguiu para a inauguração de uma exposição na Universidade do Texas em Austin, em março de 2013. Arte pública em Nova York – uma breve perspectiva sobre a educação escolar O Parque Sócrates de Esculturas, em Long Island City, é o único local na área metropolitana de Nova York dedicado especificamente a oportunidades para artistas criarem e exporem esculturas públicas em larga escala e instalações multimídia em um ambiente único, ao ar livre, incentivando a interação entre artistas, obras de arte e o público. A existência do parque é baseada na revitalização urbana e na expressão criativa de processos essenciais para a sobrevivência da humanidade e da melhoria do meio ambiente. Constituiu este inicialmente uma ribeira, um aterro urbano abandonado e um lixão ilegal até 1986, quando uma coalizão de artistas e membros da comunidade, sob a liderança do artista Mark di Suvero, transformou-o em um estúdio aberto para estudantes e um espaço para exposições de artistas e moradores locais. O parque fica a um quarteirão do Museu Noguchi. Seu programa de residência artística serve como inclusão vital para espaços de arte pública e é apoiado pelo Departamento de Parques e de Recreação de Nova York, oferecendo uma ampla variedade de serviços públicos gratuitos, como sessões de cinema à noite e oficinas de escultura. A arte pública inspirou professores a trazer de volta as teorias do velho Piaget, ao afirmar que “brincar” é a melhor maneira de entender um assunto. O professor de arquitetura Haresh Lalvani, do Pratt Institute, incentiva os alunos a ver de forma diferente a arte. Lalvani, criador do Seed54, acrescentou nova vida a um canto suave da rua 54 com a 6ª avenida. Este artista também finalizou uma peça como colaborador de Milgo/Bufkin, consistindo sua obra em uma arquitetura baseada na fabricação de metais e no Greenpoint, empresa que estabeleceu com Donald Judd e Sol LeWitt. Afirma Lavani que: “Não é o meu papel pensar sobre o que os outros dizem dela”. “Se eles acham que é feio, tudo bem. Se eles acham que é bonito, muito bem. [Minha] arte não serve para educar o público. Vou lá para expô-la a novas ideias e experiências.” A escultura de metal de Lalvani Ovo com buracos foi criada pela associação de formas e sequências numéricas. O aço foi disposto na horizontal, com um corte a laser para fazer uma dobra, sendo esta obra então montada sob uma forma oblonga para que transeuntes pudessem vê-la. Henry Fountain pergunta se a partir de agora, quando Nova York estiver coberta de poeira, os arqueólogos vão poder escavar através das muitas camadas de seu futuro para descobrir a escultura de aço inoxidável que atualmente se encontra no canto sudeste da rua 54 e da Avenida das Américas. O que Lalvani acharia disto? Em 2007, Alexandra Leff, vice-diretora do Programa de Arte Pública Leap, buscou estabelecer um programa único novaiorquino de arte pública destinado a estudantes. Hoje, em seu sexto ano, este Programa de Arte Pública apresenta obras com temáticas sociais, compostas por estudantes de Nova York, contando com mesas-refeitório pintadas e instaladas nos principais parques da cidade, mostrando obras de arte em exposição a cada verão, de junho a agosto. O programa é baseado em currículos tirados de ensino médio da disciplina Estudos Sociais. Os alunos exploram questões da comunidade local em contato direto com as pessoas e, às vezes, indiretamente se relacionam com questões nacionais e globais, incluindo o meio ambiente, a poluição, responsabilidades cívicas e jurídicas nacionais, diversidade cultural e até mesmo injustiças sociais. Os alunos escolhem os temas que julgam relevantes. Em 2013, os alunos escolheram temas que abordavam violência armada, abusos contra crianças, gravidez na adolescência, apoio ao furacão Sandy e outras questões ambientais. Os alunos têm a opor159 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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tunidade de serem entrevistados pela televisão e jornais e podem, ainda, se encontrar com artistas ilustres convidados e com criadores de arte pública para discutir seu trabalho e seu processo de criação. Participaram do movimento artistas como Christo, Julian Schnabel, Chuck Close, Mark di Suvero, Milton Glaser, Kenny Scharf, Dennis Oppenheim, Tom Otterness, Alice Aycock, Mel Kendrick, Lorna Simpson et al. O programa finaliza com uma exposição de estudantes em toda a cidade, realizada em dez parques em cooperação com o Departamento de Parques e de Recreação de Nova York. Como afirma Alexandra Leff : “Ao explorar esses temas importantes, os alunos aprendem que a arte pública pode ser usada para promover suas ideias e estabelecer uma voz ativa em suas comunidades. Nós apresentamos, a cada ano, a maior exposição de alunos na história dos parques de Nova Iorque e a primeira exposição de estudantes dos cinco bairros da cidade”. “Não é uma questão de paciência, mas uma questão de paixão”, alegou a esposa de Christo, e também artista Jeanne-Claude, em um de seus últimos discursos proferidos no Programa de Arte Pública da Leap, incentivando o trabalho do extenso grupo de alunos participantes. Arte pública e artistas e o apoio à educação através do Programa de Arte Pública Leap

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A história da arte pública é frequentemente proferida com ênfase, especificamente na palavra arte, mas com bem pouca consideração no contexto do “público”, como discute Tom Finkelpearl em seus “Diálogos” e em seu livro Arte Pública. O autor estabelece uma conectividade pedagógica ao entrevistar arquitetos, artistas, assistentes sociais e o filósofo Paulo Freire, que fala sobre “a escultura do diálogo e do uso da arte para promover a consciência crítica”. O encorajamento que os artistas consagrados imprimem aos estudantes e a outros artistas emergentes no Programa de Arte Pública Leap sem dúvida resultará em uma tradição em arte pública que se estenderá até as gerações futuras. Os nomes mencionados são apenas um punhado de artistas profissionais generosos e inspiradores que já participaram do Arte Pública Leap e que apoiam a educação através de um programa de artes avançado. Alice Aycock é outra figura importante que contribui para o sucesso do Leap e atualmente é membro do corpo docente da Escola de Artes Visuais em Nova York. Ela produz obras inspiradoras, como Star Sifter, uma grande escultura arquitetônica que está em exposição na rotunda do novo terminal do Aeroporto Internacional JFK. Seu mais novo projeto é o Park Avenue Paper Chase, inaugurado em 2014. Christo é bem conhecido em Nova York por seu trabalho no Central Park, The Gates”de 2005, em colaboração com sua falecida esposa Jeanne-Claude. Ele está trabalhando na MSU Denver Center, Rio Arkansas, Colorado, em um projeto chamado Sobre o Rio, obra também planejada com Jeanne-Claude. Christo é idealizador de três obras principais: a Mastaba, uma escultura permanente nos Emirados Árabes Unidos; Pacote Big Air, constando de um barril inflado de 295 metros que foi exposto em 2013 na Alemanha, e Sobre o Rio que está atualmente parado aguardando uma resolução de um litígio pendente entre grupos de cidadãos e órgãos estaduais e federais que aprovaram o projeto. Jeanne-Claude estava colaborando com o Programa de Arte Pública Leap há muitos anos, e o carisma de Christo para atrair os estudantes os fez entender a importância da reciclagem na criação da arte como reflexo da vida. Chuck Close, em um recente artigo de Patricia Cohen, afirmou aos alunos que a arte salvou sua vida. Close, que criou uma tapeçaria com imagens de Obama com o objetivo de contribuir para a vitória do presidente, quando visita a Leap em sua cadeira de rodas é sempre bem-vindo pelos alunos, que o saúdam calorosamente. Fechar é outro artista bem conhecido pelos seus grandes retratos blowup, feitos na década de 1970. Foi este artista escalado para instalar uma obra gigante de mosaicos, com uma série de retratos para a campanha da cidade, na estação de metrô da rua 86 leste Straphangers, que tem como proposta aliviar a superlotação do metrô de Nova York. Tal obra custa cerca de um milhão de dólares e Fechar afirma que o


que o inspira são as fotografias de artistas que ele tem recolhido durante todos estes anos. Dennis Oppenheim (1933-2011), artista conceitual do meio ambiente, recebeu atenção internacional por um corpo de arte conceitual que inclui performance, escultura e fotografia. No início de 1970, Oppenheim atuava na vanguarda de artistas que utilizavam filmes e vídeos como um meio de investigar temas relacionados com a body art, arte conceitual e performance. Em uma série de trabalhos produzidos entre 1970 e 1974, Oppenheim usou seu próprio corpo como lugar de desafio: explorou os limites do risco pessoal, da transformação e da comunicação através da performance ritual de ações e interações. Oppenheim ainda inspira os estudantes do Programa de Arte Pública Leap a aprender como encontrar uma nova perspectiva sobre as suas obras favoritas: Dispositivo para erradicar o mal, de 1997, e de 2009. Julian Schnabel (1951, Nova Iorque) tornou-se famoso em Nova York por criar retratos quebrados em pratos de mosaico na década de 1970 e por dirigir um filme sobre o neoexpressionista grafiteiro JeanMichel Basquiat, de 1996. Schnabel declarou aos alunos da Leap que nunca pensou em se tornar um diretor de filmes até que um amigo o chamou para ajudar a dirigir um filme. Conta ele com outro sucesso através de uma história de drama, em um filme sobre uma menina palestina órfã crescendo durante a guerra árabe israelense. Schnabel alcançou o sucesso, também, com seu trabalho de artes visuais quando vendeu uma pintura, Notre Dame, na Sotheby´s, por 93.500 dólares. Seu mural Espanha, atraente colagem de placas quebradas, cerâmica e pintura a óleo, está em exibição permanente no Museu Guggenheim de Bilbao. Schnabel vive em um castelo cor-de-rosa, no West Village, o Palazzo Chup. Durante nossa visita com alunos de uma escola do Bronx, aconselhou-os a nunca jogar fora seus maus esboços, pois, para ele: “Continuem a fazer isso, criar, pois tudo é arte.” Kenny Scharft pintou seu último mural em Nova York, entre Houston e Bowery, em 2010. Scharft inaugurou em 2013 uma exposição na Pauls Kasmin Gallery, Soho, NYC, mostrando pinturas e esculturas que influenciaram muitos artistas e estudantes com sua famosa obra Graffiti. Em 2012, Scharft criou um mural no Lower East Side, entre as ruas Staton e Rivington, que causou muito espanto e mudou a ambiência do bairro. Seu estilo de mesclar histórias em quadrinhos com personagens coloridos é bem-humorado. Os alunos adoram seu trabalho, bem como o trabalho de seu falecido amigo Keith Haring, com quem os alunos aprenderam a criar murais em quadrinhos usando símbolos ou imagens semióticas. Mark di Suvero é um escultor expressionista-abstrato que vive em Nova York e tem um estúdio em Long Island City e East River, perto do Parque Sócrates que ele ajudou a criar. Publicou, recentemente, um livro intitulado Dreambook, uma compilação de imagens de esculturas, poemas e ideias. Sua escultura é convidativa e suas obras constituem conjuntos monumentais, incorporando aço e madeira. Suvero emergiu como uma estrela nos anos 1960. Representou o primeiro artista vivo a mostrar sua escultura no Jardim das Tulherias, em Paris, e o primeiro homenageado com três grandes exposições no Storm King Art Center. Suvero apresentou uma grande exposição ao ar livre, de maio 2013 a maio de 2014, no Museu de São Francisco de Arte Moderna (SFMOMA), em parceria com o Serviço Nacional de Parques (NPS) e o Golden Gate Parks Conservancy Nacional. Suvero recebeu o Lifetime Achievement Award em Escultura Contemporânea do Centro Internacional de Escultura, em 2005. Tom Otterness criou um estilo que caiu no gosto do público e dos estudantes, graças às suas linhas redondas magistrais de personagens humorísticos bonitos e profundos, com representações críticas da história. No Nelson A. Rockefeller Park, situado no final da Chambers Street e do rio Hudson, há uma exposição permanente de suas figuras mais intrigantes. Nomeou-a de Mundo Real, constando de uma série de figuras folclóricas antropomorfas que representam os sete pecados capitais. Otterness parece viver uma vida subterrânea com obras de arte pública aparecendo por toda a cidade, assim como em outra série permanente de trabalhos expostos nas linhas A, C e E e na rua 14, na estação do metrô. Seu mais recente trabalho será 161 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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exibido no Muni Metrô em São Francisco, na Califórnia, o qual será aberto ao público em 2019. A melhoria da comunidade pela arte pública Laurie Anderson é uma artista performática e é pioneira da música contemporânea. Em sua apresentação Going to Nowhere coloca ela esta questão: “Como podemos melhorar nossa comunidade?” Através de uma obra de arte que representa “viver em um quadro de avisos, porque a cidade tornou-se demasiadamente cheia de informações”, fala sobre lugares, escalas e pessoas. Pepón Osorio cria instalações que envolvem reciprocamente lugares na comunidade e seu povo. Pepón afirma que não se encaixa na descrição “artista”. Seu trabalho lida com uma série de contradições, coexistindo com a raiva que contradiz emoções progressistas do corpo humano. A obra Nenhum Grito Admitido na Barbearia revela questões étnicas e representa um rito de passagem para se tornar um homem. “Ser artista é um desafio, não é uma opção”, diz Pepón. “Alguns dos meus trabalhos fazem as pessoas se sentirem desconfortáveis, mas mostram a comunidade de onde viemos”, reitera Pepón. No trabalho Na Cena do Crime, ocupou ele parte do sul do Bronx até a Park Avenue. John Waters é um cineasta que dirigiu o famoso filme urderground – Pink Flamingos, uma comédia divina introduzindo a drag queen Flamboyant. Águas coletadas, obra de arte produzida em massa, revela que o artista, em seguida, descobriu maravilhas no poder de agressão na arte contemporânea. Ele não só visitou escolas e universidades mas também prisões, ali estabelecendo um diálogo entre famílias e vítimas de crime. Sua arte contribuiu, assim, para a criação de vídeos de arte pública falando sobre assassinos em série ou questões degradantes, insultuosas ou tentadoras e outras ideias que, dentro de uma comunidade, podem parecer tabu. A artista Maria Dominguez é uma das primeiras muralistas de Nova York. Muitos de seus murais não existem mais atualmente. Começou a pintar na década de 1980, e hoje apenas uma de suas obras, Nuestro Barrio, ainda está disposta entre a rua 104 e a Lexington Avenue, na parte espanhola do Harlem. Recentemente, exibiu seu trabalho na Biblioteca da Faculdade Hunter, projetando 10 minutos de seu vídeo Art. 22 Public. Esta artista foi diretamente influenciada por projetos de arte pública no início dos anos 1960 e 1970, de artistas como Claes Oldenburg. A Arte Povora, da década de 1960, parece estar retornando com os trabalhos de Dominguez, George Baselitz e Julian Schnabel e suas obras de arte pública. Alejandro Guzman apresentou recentemente Happening e sua neoexpressionista dança-escultura El Vejigante. Em 2012, criou uma série de esculturas e performances intituladas Intelectual Abandonado: The Meltdown. Guzman fica dentro da escultura para ajudar a movê-la, segurando um pássaro em uma mão enquanto com a outra joga um chifre que emite sons de dinossauros, à medida que atira moedas para o público alienado. A arte de Guzman é influenciada por artistas como Oldenburg, Oppenheim e Schnabel que, na década de 1960 e 1970, realizaram obras de Arte Povora ou Happenings. Guzman é conhecido como sendo o criador de obras cheias de energia, calor, crítica equilibrada e humor, as quais criam um novo neoexpressionismo. Organizações de apoio à arte pública No final da década de 1970, comentou-se muito sobre Louise Nevelson, que perambulava a esmo em seu bairro, no centro do Soho, para procurar pedaços de madeira nas ruas de forma a poder completar sua última escultura. Então, a associação de desenvolvimento do Downtown Brooklyn começou, 162


com a construção de um jardim de esculturas, um programa de ação no bairro Washington Heights, patrocinando a exibição de arte pública em Manhattan. Muitos outros artistas foram apoiados por criar esculturas a partir de materiais do meio ambiente, especialmente em um evento organizado por Doris Freedman. Foram fundadas as instituições The City Arts, City Walls e Creative Times dentro do programa sem fins lucrativos de arte pública para patrocinar experimentações artísticas. A OIA–Organização para Artistas Independentes – foi fundada por um grupo de treze artistas, em Battery Park, em 1981. O Conselho Cultural de Manhattan patrocinou, em 1984, seu primeiro parque baseado no Projeto de Arte Pública e Movimento Molecular concebido por Lisa Hoke. Muitos centros culturais de apoio à arte ao ar livre também foram fundados, como o Centro Cultural Snug Harbor, em Staten Island. Hoje em dia, a arte pública está recebendo grande apoio de fontes governamentais, associações privadas e doadores. A organização de pesquisa mais recente e eficiente na arte ao ar livre é o museu sem paredes, como o Le Musée Imaginaire, e um aplicativo para smartphone, que viabilizaram uma nova maneira de conectar os estudantes ao público artístico. Penny B. Bach, diretor e produtor, incentiva os alunos a se candidatarem a programas para criar arte pública. A galeria Arsenal é um sonho que recentemente se tornou realidade para os artistas. A Arsenal é apoiada pelo Departamento de Parques e de Recreação de Nova York, e oferece muitas oportunidades de bolsas para artistas e uma variedade de oficinas. A arte pública cumpriu, então, sua missão? O futuro é agora, e contém novas possibilidades progressistas, incentivando o público em geral, jovens e idosos a pensar e agir de maneira criativa. Com os esforços contínuos da Arte Pública Leap, de organizações de apoio à arte pública, e de artistas, estudantes e artistas emergentes podem ter a possibilidade de trabalhar seus talentos, ajudar suas comunidades e fazer das cidades um museu de vanguarda sem paredes.

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A transculturalidade como desafio epistêmico

Evandro Vieira Ouriques Coordenador do NETCCON – Centro de Estudos Transdisciplinares de Psicopolítica e Consciência da Escola de Comunicação – UFRJ; supervisor de pós-doutorado do PACC – Programa Avançado de Cultura Contemporânea da Faculdade de Letras – UFRJ; professor de pós-graduação do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza – UFRJ

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omo George Preston, diretor do Museu de Arte e Origens, Nova York, sublinha ao dizer que diante de um “gancho de direita na sua direção” você tem de se esquivar, e por isso ele entende que o acadêmico precisa aprender esporte para poder dar conta da realidade, o que muitas vezes não acontece, trago aqui alguns “ganchos de direita”-mas também “de esquerda”–para contextualizar empiricamente a situação premente que configura o argumento da transculturalidade como desafio epistêmico. Vejamos, em primeiro lugar, (fig.1) o estado real da concentração do que se convenciona designar de “riqueza mundial”: em 1992, 20% da população mundial concentrava 82,7%. Oito anos após (fig. 2), portanto em 2010, 0,5% da população mundial adulta, a que ganhou mais, e muito mais, de 1 milhão de dólares líquidos naquele ano, concentrou 35,6% da denominada “riqueza” mundial. Acrescido do grupo de 7,5% intimamente ligado a estes 0,5%, e que ganharam entre 100 mil e 1 milhão de dólares –portanto o total de 8% da população mundial adulta – controlou 79,5% da denominada “riqueza” mundial. E estes dois segmentos, acrescidos dos 23,6% que ganharam entre 10 mil e 100 mil, controlaram 95,8%..., restando então 4,2% da “riqueza” mundial para os 68,4% da população mundial adulta que ganhou, em 2010, abaixo de 10 mil dólares anuais líquidos. Vejamos, agora, porque muito se fala, mas quase nunca se vê a realidade do fato, a concentração de renda específica nos Estados Unidos. E o façamos sob a perspectiva de um 2013 em que a “mulher mais rica do mundo manda pobres trabalhar”, a “parar de beber” e de ter “inveja”, e o Fundo Monetário Internacional-FMI apresenta aos espanhóis (no que obtém o apoio até do vice-presidente da Comissão Europeia) a redução dos salários para combater o desemprego . Divididamos então a população norte-americana em seus quatro grandes grupos de renda com a mudança que tiveram, entre 1979 e 2009 (Fig.3-out/nov, 2012), justamente as três sinistras décadas que sincronizam a totalização pela verdade absoluta dos rendimentos e os princípios absolutos da pós-modernidade. Impressionante, não é verdade? Enquanto os cidadãos continuam pensando apenas que sua autonomia resume-se ao “direito”de morar em cidades (e os campos são completamente dominados pelo agronegócio, produção energética e commodities) e consumir, nas cidades norte-americanas existem 22 residências vazias para cada morador de rua, e 50% das cadeiras daquele Congresso são ocupadas por milionários, enquanto 164


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apenas 1% da população norte-americana é milionária. Por que as pessoas obedecem? Por que as forças de transformação social não conseguem historicamente unidade na diversidade? Por que há problemas epistêmicos graves na Teoria Social? Aguardemos, por gentileza, mais um pouco, enquanto examinamos outras provas empíricas de que a transculturalidade precisa ser compreendida como o desafio epistêmico central de nossos tempos, marcado pela fragmentação oriunda da fragmentação primeira entre Cultura e Natureza, fragmentação que sintomaticamente só desaparece de maneira simulada na totalização pelos rendimentos. Vejamos, então, os resultados concretos de tal ausência de transrelação entre Cultura e Natureza. Se tivéssemos abandonado, em 2007 (Fig. 4), o estado mental de “crescimento ilimitado”, slogan do “desenvolvimentismo”, filho da sequência conceitual civilização-primitivo, progresso-atraso, modernidadetradição, levaríamos 43 anos, ou seja, até 2050, para gastarmos um planeta de recursos naturais para manter o padrão de produção e consumo. Como não fizemos isso, e a Rio+20 está aí como prova irrefutável, naquele mesmo ano de 2050 gastaremos dois planetas e 1/3 de recursos naturais... Imagine se o orçamento de sua casa fosse administrado dessa maneira... Certamente você seria chamado de “louco e irresponsável”. Em termos psicopolíticos explicamos que o que está acontecendo é o estado de perversão, isto é, a adição, pelo sujeito, a um objeto do real ou imaginado; no caso o consumismo e a concentração de renda e poder que o move, que o sujeito supõe dar conta do sentido. E agora temos (Fig. 5) as curvas de 1750, 1880, 1850, 1900, 1950 e 2000 dos índices de Temperatura Média do Hemisfério Norte, População, Concentração de CO2, PIB, Perda de Florestas Tropicais e Bosques, Extinção de Espécies, Veículos a Motor, Uso de Água, Consumo de Papel, Exploração de Pescados, Perda de Ozônio e Investimento Estrangeiro. Trata-se da própria imagem aqui centenária do esforço de ereção monumental da mentalidade dualista, patriarcal, machista. E aqui (Fig. 6), os dados de como foi a corrida consumista dos anos 1960 até 2008, e as projeções até o mesmo ano de 2050, referenciado na Figura 4. O cinza mostra a exploração e o consumo de carvão. É o carvão, por exemplo, um dos principais impactos que recai sobre os quatro povos indígenas da Sierra Nevada de Santa Marta, Colômbia: os Arhuacos, Kankuamos, os Wiwas e os Koguis. Completando este fundamento empírico do argumento deste artigo, vejamos agora a relação entre a Pegada Ecológica e a Biocapacidade (Figs. 7, 8, 9, 10, 11, e 12) de alguns países centrais, por serem considerados “desenvolvidos” ou “em desenvolvimento acelerado” e, portanto, “exemplos” que deveriam ser seguidos sem discussão, como o Brasil vem fazendo. Como se pode ver (Fig.7), os Estados Unidos mantêm seu padrão de produção e consumo obtendo biocapacidade para isso retirando-a de outros países, na esteira do que fizeram antes e continuam a fazer países “desenvolvidos” em sincronia com a transferência de renda. À medida que a China se “desenvolve”, mais e mais recursos naturais são retirados de outros países. A França consome acima de suas reservas de recursos naturais desde antes dos anos 60... É a história imperial: o saque sistemático de recursos dos países não imperiais para a elaboração de uma estética– um “museu interno”– que passa a ser admirada e oferecida como “a desejável” para todos, inclusive, sintomaticamente, para aqueles dos quais os recursos foram e são retirados pela força física e/ou simbólica. E a Dinamarca! Observe a tentativa de reverter o processo a partir do início dos anos 1990. E esta é a situação real da Alemanha, que também e tanto idealiza-se como um país-referência, quando, de fato, empiricamente, não existem recursos naturais suficientes para produzir para todas as pessoas do mundo os bens e serviços que se consideram “desenvolvidos”, “bons e necessários para todos”. E quando, ainda por cima, tais bens e serviços eliminam os bens e serviços que caracterizam a multiplicidade de culturas e suas diversidades econômicas que queremos respeitar e vivenciar com a estética transcultural da universidade; do museu; da arte, e, digo eu, da Teoria Social? 166


E esta é a situação do Brasil... O resultado do fundamentalismo de mercado, do “desenvolvimentismo” que captura (e equaliza) à “direita” e à “esquerda”. Se a linha verde fossem as “entradas” de seu orçamento pessoal e a linha vermelha a das suas “despesas”, você continuaria a manter o mesmo planejamento estratégico? É por isso que a transculturalidade é um desafio epistêmico.

Fig. 8

A transculturalidade como desafio epistêmico O Museu é lugar emblemático da possibilidade do encontro entre culturas. E a Universidade, o lugar da criação das condições do conhecer necessário, portanto das condições filosóficas, epistêmicas para este encontro. Por isso, a filosofia que move o Museu, e move os que fazem os museus, é o sintoma do estado em que se encontra o diálogo entre as civilizações (OURIQUES, 2001). Tal diálogo entre as culturas é exigido para a superação dos chamados “conflitos interculturais” (ROJAS, 2002), por exemplo no contexto das migrações na Europa e Estados Unidos, das demandas de autonomia intraeuropeia, por exemplo, da Galiza, País Basco e Catalunha e das reivindicações dos povos originários e culturas rurais na América Latina, África, Ásia e, de maneira geral, em todo o mundo. Como analisa Johan Galtung: We now enter a fascinating, multi-polar, period in world history. Six civilizations amount to six development models; scattered on eight poles in an octagonal world: USA and EU, both West-liberal; Russia searching (educated guess: for an improved version of West-Marxist); India, huge, but at a loss with its Hinduism; China as China (with Japan in a painful search for stability between USA and China); the Muslim world, OIC-Organization of Islamic Cooperation, searching for an ummah in the OIC region, with the sunni-shia conflict resolved; Africa searching for an eclecticism based on West-secular, Islam and something of its own; Latin America right now steeped in a creative intra-West dialogue. Let it be,

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let it happen. Our future depends on these dialogues. (GALTUNG, 2013, p. 3) 1 Neste sentido, o Museu é possibilidade-chave da experimentação total da transculturalidade defendida por Jacques Poulain. Apenas a transculturalidade é capaz de promover o referido encontro, de que precisamos, na medida em que a interculturalidade é visão ainda dualista, com cada identidade cultural encapsulada em si mesma, em uma posição de inútil “tolerância”, conceito que reveste quase sempre intenções de catequese e, portanto, de eliminação do outro, entendido como uma exterioridade absoluta a ser reduzida a mais do mesmo. Neste artigo compartilho como entendo e vivencio tal questão a partir da perspectiva psicopolítica da Teoria Social (OURIQUES, 2002, 2006, 2007, 2009a, 2009b, 2010a, 2010b, 2011, 2012a, 2012b, 2012c, 2012d) à qual venho me dedicando, bem como à sua metodologia operacional de mudança de cultura, a Gestão da Mente. Para mim, transdisciplinar desde 1984 e não dualista desde 2002, o Museu ao qual dediquei diretamente 21 anos de minha vida é a possibilidade de construir um pedagógico e emancipador lugar transcultural, no qual somos, a um só tempo, iguais e diferentes; e, portanto, lugar onde efetivamente nos encontramos, nos re-unimos. Ou seja, como demonstrado por Marcio Tavares d’Amaral, vivenciamos a experiência da cultura de comunicação, distinta da atual cultura de informação, que objetiva apenas o convencimento do outro: a referida catequese, por exemplo, a do “desenvolvimentismo”, que elimina qualquer outra maneira econômica de viver. O sentido da transculturalidade é o da instauração deliberada através da força de vontade (no sentido de Spinoza), do lugar onde os migrantes encontram o que lhes é comum, a matriz, esta que é a origem de todas as matrizes, a única referência capaz de conectar-los com o sentido, como compreendido por Cornelius Castoriadis: o lugar onde a diferença, como as dos povos originários e populares, é de fato respeitada, uma vez que o respeito só é possível quando epistemicamente se constrói a possibilidade do encontro, o lugar onde vigora a experiência da unidade original, no qual se formou a mônada psíquica. Como diz um milenar provérbio hindu – que ele seja, aqui e agora nesta reflexão sobre o Museu, quem sabe, nossa Musa inspiradora: “quando eu não sei quem eu sou eu sirvo a você (seja pela vitimização, seja dominando você, pois dominar é também uma forma de servidão); e quando eu sei quem eu sou, eu sou você”. Este estado de fusão é conhecido no Ocidente apenas na tradição monista. Por isto, antes de prosseguir, torna-se necessário esclarecer que estou falando de uma perspectiva distinta da dualista, que coloca a filosofia no buscar a alegria na harmonia ou na dissonância e, portanto, assumir um caráter trágico, fundado na inexistência de uma natureza no sentido clássico, à qual só restaria adequar-se religiosamente. Sem dúvida, esta recusa às filosofias que pretendem interpretar o real para impor-lhe um sentido é muito saudável até certo ponto, pois trouxe emancipação em face da opressão metafísica, mas sua opção por perceber a realidade como in-significante, sem unidade, sem natureza, sem ser objeto adequado ao pensamento, e assim constituída ontologicamente como artifício através do singular e do acaso, não impediu a permanência de um fundo metafísico na pós-modernidade, composto pelo menos por três eixos identificáveis empiricamente (e expostos em parte no início deste artigo), bem como na dramaturgia da mimesis que tem marcado as artes: Entramos, agora, em um fascinante e multipolarizado período na história mundial. Seis civilizações conduziram a seis diferentes modelos de desenvolvimento, os quais se encontram espalhados em oito polos, em um mundo octogonal: os Estados Unidos e a União Europeia, ambos ocidentais-liberais; a busca da Rússia, com o presságio de uma versão melhorada do marxismo ocidental; a Índia, embora enorme, mas sofrendo também a perda de seu hinduísmo; a China como China, com o Japão em uma dolorosa procura por estabelecer sua estabilidade entre os Estados Unidos e a China; o mundo islâmico, com a Organização de Cooperação Islâmica-OIC buscando estabelecer uma nação ou comunidade (ummah) na região, através da resolução do conflito entre sunitas e xiitas; a África, procurando alcançar um ecletismo baseado no Ocidente secular e em algo de sua identidade própria; a América Latina imbuída, no momento atual, de um diálogo criativo com o Ocidente. Que assim seja, deixemos as coisas acontecerem. Nosso futuro depende desses diálogos (GALTUNG, 2013, p. 3). 1

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(1) o da totalização pelos rendimentos e de sua crescente concentração, proporcional à devastação da biocapacidade que sustenta objetivamente a vida humana; (2) o do fundamentalismo tecnológico que captura grande parte dos movimentos de mudança social, como o da cultura digital, que supunha como verdade absoluta o rizomático, em detrimento do arbóreo, e que bastaria estar conectado para ser colaborativo, democrático e desmonetarizado; (3) e a insistência em afirmar um espírito cujo fundo seria delírio, acaso e indiferença, o que acabou por expulsar da Igreja o fornecimento do sentido mas o tem visto ressurgir, com imensa eficácia na publicidade e no marketing, tanto os do consumismo quanto os do fundamentalismo religioso e de todas as políticas conservadoras em alta neste século XXI que segue em passagem. É assim que a pós-modernidade, com seu trágico horizonte de fracasso e angústia corajosamente assinalado por Irma Medoux, tem sido acanhada, como bem disse Terry Eagleton: com respeito à moralidade e à metafísica, embaraçada quando se trata de amor, biologia, religião e a revolução, grandemente silenciosa sobre o mal, reticente a respeito da morte e do sofrimento, dogmática sobre essenciais, universais e fundamentos, e superficial a respeito da verdade, objetividade e ação desinteressada. (EAGLETON, 2005, p. 144). Sem dúvida, incentivar a sociedade a não agir por princípios ontoteológicos, e a criar consensos e seguir a ética da solidariedade, da “discussão sem coação” é fundamental. Mas tentar eliminar a possibilidade do universalismo de valores, supondo que a humanidade poderia organizar-se apenas pela adaptação às contingências da história não poderia resultar em outra coisa senão defrontar-se com a esfinge do fundamentalismo de mercado e a morte em grande parte da arte e dos museus. Defender que cada povo fala sua própria linguagem do bem e do mal, e que cada um deles inventou a língua de seus costumes e de seus direitos, impede a experiência da transculturalidade, tornando os povos reféns de um relativismo incapaz de dar conta de questões objetivas, prementes e universais como Sustentabilidade, Responsabilidade Social, Direitos Humanos e Direitos da Terra, por exemplo, que dependem obrigatoriamente de valores universalisáveis, vale dizer, transponíveis à escala universal como o da solidariedade, gratidão, generosidade e celebração da dádiva da Vida. Como já mostrou Jesús Martín Barbero, a questão de fundo do “desenvolvimento” é justamente o ataque epistemicida, como aponta Boaventura de Souza Santos, que tal fundamentalismo ocidental faz de maneira universal contra o vigor das identidades culturais. O que os movimentos étnicos, raciais, regionais e de gênero reivindicam é o direito universal à própria memória e ao exercício de sua maneira de viver e estar no mundo; ou seja, de seus territórios mentais (OURIQUES, 2009), vale dizer, do fluxo de seus pensamentos, afetos e percepções. Um exemplo concreto de respeito a tal direito universal é assim: [...] garantizar los procesos de producción simbólica. Por ello, es más peligrosa la construcción de una carretera sobre un cementerio indígena que el etnoturismo o la venta masiva de artesanía. En la primera actuación, se despoja a la comunidad de referentes simbólicos que aseguran la construcción permanente del sujeto-y/en-la-comunidad; en tanto que en la segunda actuación, se agregan valores que podrán coexistir si existe las garantías de construcción simbólica. (ROJAS Y MORENO, 2004) 2 É desta maneira que se constrói a transculturalidade, a garantia para as culturas do vigor universal dos valores societais, uma vez que apenas ela permite que nos envolvamos com o outro até deixá-lo de ver (...) garantir os processos de produção simbólica. Por isso, é mais perigosa a construção de uma estrada sobre um cemitério indígena do que o etnoturismo ou a venda maciça de artesanato. Na primeira hipótese, se despoja a comunidade de referências simbólicas que asseguram sua permanente construção do sujeito-e/na-comunidade enquanto, na segunda hipótese, se agregam valores que poderiam existir caso existissem as garantias de construção simbólica (ROJAS Y MORENO, 2004). 2

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como exterioridade (ou apenas como exterioridade), pois, como mostrou Heisenberg, a observação de um fenômeno do exterior não apenas o modifica, mas também geralmente o faz desaparecer... A experiência da observação nãodualista das pessoas, das culturas, do mundo e da Vida na multiplicidade de suas diferenças é observar a verdadeira riqueza, a dádiva, esta: a alternativa à dialética do senhor e do escravo. Não se trata de dominar o outro, nem de ser dominado; nem de domar a Natureza, nem de ser esmagado por ela; mas de pertencer a um conjunto mais amplo, de restabelecer a relação, de tornarse membro. Por medo (...) de se deixar enganar, o moderno não consegue mais abandonar-se à corrente cósmica, “prender-se”. Ele reduz todo o universo a objetos aparentemente não ameaçadores porque não prendem [um objeto e um animal doméstico prendem menos que uma pessoa], não comprometem, objetos dos quais ele pode desligar-se instantaneamente [pela obsolescência programada e consumismo]. E ele gera a poluição, sufoca naquilo que ele rejeita e que acaba por rejeitá-lo. (GODBOUT, 199,p. 252). O que é exatamente o contrário do que a experiência da transculturalidade nos oferece, como nos mostram os Wiwas, povo originário da referida Serra Nevada de Santa Marta: En la origem de las cosas y en el establecimiento de su funcción en el Universo se sustentan las normas para el comportamiento de las personas y de la sociedad en la relación entre los seres humanos y de estos con todos los elementos del Universo. Para nosotros las normas no están en los códigos legales o en mandatos morales, sino en el origen del ser de las cosas de la Naturaleza y la llamamos “Ley de Origem”. [...] Unidos hay paz, unidos hay inteligencia, unidos hay poder, unidos viene la sabiduría, unidos se hace la fuerza (ESTEPA, 2011, p. 49). 3 A superação do “museu interno” Mas como construir e vivenciar este estado mental, se a lógica epistêmica do Ocidente moderno e pós-moderno e, portanto, da Academia, é, como referido, o dualismo, segundo o qual estamos presos entre a “unidade”, que seria sempre autoritária, e a “lógica multicultural da alteridade e diversidade”, cujas “políticas de reconhecimento” não logram transformar direitos sociais e políticos em direitos econômicos diante, como bem diz Jacques Poulain, dos “autistas pragmáticos” da financerização da Vida e de seus seguidores, por exemplo os da pontuação acadêmica que dão continuidade na Universidade ao epistemícidio que queremos superar com a transculturalidade. Trata-se, portanto, como disse em outro lugar (OURIQUES, 2012), do sujeito desencapsular-se “da não objetividade da perversão, pois objetividade é uma abertura solidária para as necessidades de outros, algo que está muito perto do amor. É o oposto do egoísmo, não de interesses e convicções pessoais” (EAGLETON, 2005, p.180); é da ordem de um conceito alvo do escárnio da esquerda: o da referida ação desinteressada (OURIQUES, 2004)e, portanto, em sua origem, o conceito político radical, portanto psicopolítico, que precisamos para fazer vigorar a transculturalidade, uma vez que o amor é: Essa espécie de simpatia imaginativa [...] [que] se compraz com o bem-estar dos outros com um gosto quase sensual. O desinteresse -que, para a teoria pós-moderna, é a última palavra em matéria de ilusão - é um tapa no individualismo egoísta [...]. (EAGLETON, 2005, p. 183-184).

Na origem das coisas e no estabelecimento de sua função no Universo, se sustentam as normas para o comportamento das pessoas e da sociedade na relação entre os seres humanos e, destes, com todos os elementos do universo. Para nós, as normas não estão nos códigos legais ou nos mandatos morais, senão na origem do ser e das coisas da Natureza que denominamos de “Lei de Origem”. [...] Unidos há paz, unidos vem a sabedoria, unidos se faz a força (ESTEPA, 2011, p. 49). 3

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Esta possibilidade de encontro transpessoal, e assim transcultural, é construída, sob minha perspec-


tiva, quando cada cultura, e cada indivíduo que a compõe e sustenta, assume psicopoliticamente a revisão crítica e redescrição pragmática de seu museu interno, de sua arquitetura, de sua museografia; do que chamo território mental: no qual ocorre o fluxo de pensamentos, afetos e percepções que compõe a mente, entendida como o organismo inteiro; este museu interno com seu fluxo de obras expostas que usamos como modelos de verdade, de modelos de felicidade, quando eles estão expostos por uma curadoria, uma museografia e um design de montagem que expressam sinistramente apenas um julgamento excludente, baseado, como diz George Preston, na produção de “ismos”. Estamos, portanto, diante de um desafio tremendo, imenso, sistêmico, complexo, em rede, de superar a mentalidade da pilhagem do que se entende como “primitivo” (da arte, sobretudo a partir do século XIX, e dos recursos naturais e commodities desde o século XVI) e a continuidade da construção, na Europa e nos Estados Unidos, de ambientes e leilões com os resultados desta pilhagem sistemática que nos são apresentados como se fossem desejáveis e, portanto, como modelos de suposto “desenvolvimento” a serem perseguidos. El concepto de desarrollo como hoy lo entendemos tiene su origen en una relación incestuosa entre la ciencia y el poder. Las ciencias naturales primero pretendieron explicar el origen de la vida por medio de la razón y el método. De dichas búsquedas proviene el concepto de evolución como una ley de la vida que produce cambios en los organismos y los lleva a transformarse de organismos simples a otros más complejos. La evolución, en un sentido amplio, ha sido entendida como un proceso que ha determinado la historia de la naturaleza y como una ley que rige el destino de la vida. Desde la ciencia suponemos que la evolución es progreso y bienestar. (ESLAVA, 2007, p. 203).4 Como diz o grande sociólogo indiano Ashis Nandy, no conjunto dos pensadores compromissados, em todo o mundo, com a reunião e aprofundamento dos acadêmicos do Leste, do Sul, do Oeste e do Norte compromissados com a descolonização mental: as forças antigas da ganância humana e da violência, reconhece-se, conseguiram apenas encontrar uma nova legitimidade nas doutrinas antropocêntricas da salvação secular, nas ideologias de progresso, normalidade e hiper-masculinidade, e nas teorias de crescimento cumulativo da ciência e da tecnologia. (NANDY, 2011:X) Trata-se de enfrentar o desafio epistêmico de superar psicopoliticamente, através do aprendizado e exercício do Amor, da Beleza, da Compaixão, da Alegria e da Celebração, a presença, no museu interno de cada um de nós, dos estados mentais da ignorância, do ódio e da ganância, estes pilares centrais da arquitetura mental que produz a obssessiva pilhagem do fanatismo do mercado, a estetização econômica, o fundamentalismo sob todas as suas obscuras faces. Esta arquitetura mental é o próprio museu epistêmico, epistemológico e metodológico no qual nascemos e o qual esquecemos, supondo que os museus são apenas os prédios como este em que estamos, e, esquecidos do próprio museu interno ficamos, então, inconscientemente a carregá-los: (1) temendo-os e (2) reverenciando-os, pois temer e reverenciar é o que aprendemos em relação ao Museu, como lembrado por Jack Lohman, diretor do Royal British Columbia Museum e, assim, temendo-os e reverenciando-os (3) os reproduzindo em nossas ações no mundo, inclusive em nossos museus físicos, externos. É apenas através desta consciência psicopolítica que, entendo, podemos superar o silêncio episO conceito de desenvolvimento, como hoje o entendemos, tem sua origem em uma relação incestuosa entre a ciência e o poder. As ciências naturais, inicialmente, pretenderam explicar a origem da vida através da razão e do método. Destas pesquisas provém o conceito de evolução como uma lei da vida que induz a mudanças nos organismos e nos conduz à transformação de organismos simples em outros mais complexos. A evolução, em um sentido mais amplo, tem sido entendida como um processo que tem determinado a história da natureza e como uma lei que rege o destino da vida. Desde a ciência, supomos que a evolução é progresso e bem-estar (ESLAVA, 2007, p. 203). 4

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temicida e fazer vigorar a unidade na diversidade; quando cada Cultura radicaliza a Comunicação– a base antropológica, psíquica e biológica de toda experiência–, e, assim, escapa – através da presopopeia amplificada na contemporaneidade – de ser capturada pelos mesmos e citados valores da ignorância, ódio e ganância que diz querer superar no plano que chama “social” e “político”. Esta tarefa demanda uma nova Teoria Social que permita o vigor da transculturalidade, da indissociabilidade entre a Natureza e a Cultura, as grandes parceiras, pois a suposição de que seríamos independentes dela, ou de que ela seria o lugar da captura, está no cerne de nosso desafio e torna-se uma imensa oportunidade. Da interculturalidade à transculturalidade O desafio para a pós-modernidade, insisto, é que a comunicação transcultural, o museu transcultural, a estética transcultural falam necessariamente de uma ética transcultural. Da capacidade de entender a simultaneidade em que ocorre unidade e singular, liberdade e disciplina, Lei e Acolhimento.Portanto, de um conjunto de valores estáveis e consensuados de maneira positiva, capaz de fazer frente ao consenso destrutivo da redução da complexidade da Vida e do Mundo aos rendimentos, à maximização do uso da Natureza e da Sociedade. Pues el conflicto y las reivindicaciones operan, necesaria e inevitablemente (más necesariamente), desde procesos de absolutización identitaria, para, desde dicha polarización extrema, establecer una interlocución. [...] no hay reivindicaciones y conflicto sin un juego dicotómico, sin un espacio binario; pues la utopía reivindicativa se desplaza, necesariamente, a través de referentes binarios”. (ROJAS y MARTÍN, 2009, p. 207-208). 5 Desta maneira, apenas a compreensão epistêmico-experiencial (portanto total renovação da consciência, renovação mental) do nãodualismo, reitero, permite escapar desta captura; permite mudar psicopoliticamente de atitude e, apenas então, praticantes da unidade aberta, encontrar as epistemes originárias referidas, ameríndias, africanas, populares etc., para as quais a Natureza é viva e a Vida pensamento do tecido; pensamento da pele; pensamento respiratório; quando a Mente é o organismo todo, território mental, e o pensamento, integral, portal filogenético, lugar do sagrado; alcançando não os simulacros de prazer dos bens e produtos insustentáveis e excludentes da obsolescência programada mas sim, então, a verdadeira felicidade, a da colaboração positiva entre as culturas e entre a Cultura e a Natureza. É neste sentido que o problema é de fato a transculturalidade, e não a comunicação intercultural ou a interculturalidade, na medida em que estas últimas: desde una perspectiva genealógica, constituyen un discurso y una práctica funcional e instrumentalizada para la “resolución” de determinados conflictos sociopolíticos y económicos, tras los procesos migratorios y reivindicativos. [...] Los fenómenos que configuran el objeto de estudio de la “comunicación intercultural”, constituyen construcciones postraumáticas, en tanto productos de los procesos migratorios y reivindicativos. (id. p. 206-207).6 Em seguida, o conflito e as reivindicações operam, necessária e inevitavelmente (mas necessariamente), em relação aos processos de absolutização identitária para, no nível de tal polarização extrema, estabelecer uma interlocução.[...] não há reivindicações e conflitos sem um jogo dicotômico, sem um espaço binário; pois a utopia reivindicativa se desloca, necessariamente, através de referentes binários. (ROJAS y MARTÍN, p. 207-208). 5

Sob uma perspectiva genealógica, constituem um discurso e uma prática funcional e instrumentalizada para a “resolução” de determinados conflitos sociopolíticos e econômicos, após os processos migratórios e reivindicativos [...] Os fenômenos que configuram o objeto de estudo da “comunicação intercultural” representam construções pós-traumáticas, portanto produtos dos processos migratórios e reivindicativos (id, p. 206-207). 6

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Mas que, como reconheceu Nobleza Asunción-Lande já em 1986, apesar de poder: ayudar a crear una atmósfera que promueva la cooperación y el entendimiento entre las diferentes culturas [aunque] el conocimiento de la comunicación intercultural no se puede considerar por sí mismo como suficiente para resolver los problemas de comunicación [incluso porque] hacen hincapié en el aspecto cultural en vez de hacerlo en el aspecto de comunicación de los contactos interculturales. (apud ROJAS y MARTÍN, 2009, p. 199). 7 Esta é a tarefa hercúlea que nos demanda a transculturalidade, transculturalidade que faz recuar para antes da existência o “outro”, este fenômeno criado epistemicamente pelo dualismo e mantido como exterioridade absoluta através de operações psicológicas com fins políticos; portanto, psicopolíticas; como as da pedagogia da opressão, da concentração da propriedade dos meios de comunicação, do caráter panóptico da internet, do neuromarketing para fins comerciais e políticos e da quarta geração da guerra, a guerra psicológica; operações psicopolíticas que envenenam o museu interno, o território mental. É por isto que, diante do avanço generalizado do retrocesso em todo o mundo, precisamos de uma outra Teoria Social, na qual a transculturalidade como desafio epistêmico é superada no espaço, no território, na política, na cultura, na universidade. Para termos, como defende Jacques Poulain, a estética transcultural na Universidade. E a partir deste lugar, a Universidade, que de tão decisiva está reduzida ao “dissenso consentido”, podemos fazer instaurar a estética transcultural no mundo, que reconhece e apresenta psicopoliticamente em termos de pensamentos integrais, afetos integrais e percepções integrais a realidade que mantém a ordem do espaço, do território, da sociedade, da cultura e de um governo que governa desde o saneamento até a reparação de si mesmo como pessoa. Aproximo-me do final com as palavras do Mamo Zeukukuy Kankwwrwa Manchukua, um Mamo (autoridade espiritual) da Cultura Kogui da Serra Nevada de Santa Marta, Colômbia, onde estive, a convite do Programa de Antropologia da Universidad del Magdalena, em maio de 2013, justamente para tratar de como é possível epistemicamente superar a pós-modernidade e compreender o pensamento dos povos originários e assim poder criar currículos apropriados inclusive para o desenho estratégico de políticas públicas: Nuestro pensamiento es universal [diria talvez Jaques Poulain transcultural] porque abarca cuanto existe, es decir, lo visible y el invisible, los grandes misterios que encierra la Naturaleza y que, hasta ahora, el hombre no sabe, pues todo lleva a la química y a las ciencias, pero ignora que todas las cosas tien su espíritu, inclusive las plantas, las piedras, todo esto conforma un pensamiento que va al universo, unido todo como un respiro, como un aliento. Este es un pensamiento que no lo he inventado yo, sino que tiene miles de años. (ESTEPA, 2011) 8 É por isto que escutar, compreender, aplicar e vivenciar esta perspectiva psicopolítica da Teoria Social de gestão do museu mental, na constituição antropológica de um outro homem e uma outra mulher, é que garante a estética transcultural. A transculturalidade, se me permite Jacques Poulain, é a superação da vaidade humana, deste estado Ajudar a criar uma atmosfera que promove a cooperação e o entendimento entre as diferentes culturas, (embora) o conhecimento da comunicação intercultural não possa ser considerado, por si mesmo, como suficiente para resolver os problemas da comunicação (inclusive porque) o depositaram, insistentemente, no aspecto cultural, em vez de depositá-lo no aspecto da comunicação dos contatos interculturais (apud ROJAS Y MARTÍN, 2009, p. 199). 7

Nosso pensamento é universal (diria, talvez, Jacques Poulain, transcultural) porque abarca tudo o que existe, isto é, o visível e o invisível, os grandes mistérios que encerra a Natureza e que, até agora, o homem não sabe, pois tudo conduz à química e às ciências, mas ignora que todas as coisas têm seu espírito, inclusive as plantas e as pedras, tudo isso conforma um pensamento que leva ao universo, unindo tudo como uma respiração, como um alento. Este é um pensamento que não inventei, mas que tem milhares de anos (ESTEPA, 2011). 8

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mental que faz pensar, afetar e ser afetado, e perceber que se estaria dotado de caraterísticas supremas, superiores a qualquer outro ser vivo; deste estado mental que acaba por se transformar, sobretudo com a ambição da modernidade, no suposto “direito” de tentar controlar e dominar. A construção psicopolítica do estado mental da transculturalidade, que sabemos exigir a superação epistêmica e a experimentação total em nós mesmos, tem sido minha missão como acadêmico, consultor de organizações, terapeuta de pessoas, casais e grupos, e ativista social. O vigor da estética transcultural é o resultado direto da nossa capacidade de eliminar de nossos museus mentais internos, como disse, a ignorância da Unidade Original (a Raiz, o citado Sentido do qual trata toda a Tradição que queremos respeitar), o ódio (a ausência da Unidade Original, da Raiz) e a ganância (a tentativa sempre frustrada e catastrófica de preencher a ausência da Raiz através da superposição de objetos que é a adição ao consumo). O vigor da estética transcultural é assim o resultado de nossa capacidade de construirmos– em rede –a ciência do encontro, a arte do encontro. De capacitarmos, como entendo que George Preston concorde, nossa mente entendida como o organismo todo, a absorver e a controlar o método da emancipação. Este método que se chama aprendizado do Amor; da verdadeira sensibilidade artística, na qual eu e o outro somos nós mesmos, vigor do sagrado, liberação do imaginário– que por seus resultados concretos na experimentação total eu prefiro chamar de território mental, de fluxo de estados mentais; este método psicopolítico– e apreciativo, complexo, sistêmico, transdisciplinar e nãodualista– que permite encontrar o próprio homem. Mesmo que para isso precisemos compreender que este encontro só se dará quando encontrarmos um nome nãopatriarcal para denominar a nossa espécie, então movida transculturalmente pelos valores societais; valores de expressão da potência de julgar-nos epistemicamente; e, neste processo, realizar a nós mesmos.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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O museu nacional latino do Smithsonian

Luis R. Cancel CEO, Entrepreneurial Cultural Consulting e Coordenador de Artes Plásticas, Cidade Criativa, Mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard/Kennedy School of Government (Escola de Governo)

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ste texto irá traçar as longas raízes da rivalidade entre as duas monarquias europeias, Inglaterra e Espanha, cujos desejos de controlar as riquezas e terras do Novo Mundo as colocaram em concorrência direta na América do Norte. As ex-colônias britânicas mantiveram essa rivalidade após estabelecerem suas independências. As diferenças religiosas entre os protestantes anglo-saxões e a Espanha católica e os habitantes do Novo Mundo geraram antipatia e confrontos constantes, incluindo três guerras contra os índios Seminoles, a Guerra do México (1846-1848), concluindo com a Guerra HispanoAmericana (1898). Esses conflitos e conquistas levaram os educadores americanos a ensinar a história dos Estados Unidos a partir da perspectiva anglo-saxã, referindo-se aos primeiros assentamentos dos britânicos e ignorando ou diminuindo a história e a participação de colonos espanhóis. A necessidade de conciliar a história da América de forma a contar, de modo real e inclusivo, a história continental do país é de vital importância, uma vez que a sociedade atual aceita a realidade de que um em cada seis americanos é latino e de que essa representa a parcela mais jovem da população e também a que mais cresce. Foi proposta a expansão da respeitável Smithsonian Institution, em Washington, D.C. com o Museu da Nação, incluindo uma ala dedicada a discutir a história, a arte e a cultura americana sob uma perspectiva latina. A Comissão Nacional, que emitiu o relatório do museu, cita Dana Ste. Claire: Existem partes significativas da história americana que foram deixadas de lado devido ao modo como ela foi escrita ao longo dos anos. É imperativo que a história da América inclua a rica história dos hispânicos, começando com a chegada de Juan Ponce de Leon na Flórida, em 1513, e a fundação de St. Augustine, o mais antigo assentamento europeu continuamente ocupado da nação, em 1565, por Don Pedro Menéndez de Aviles– na verdade, esta representou a primeira América. Os povos hispânicos tiveram um papel fundamental no desenvolvimento cultural e histórico e na fundação da nação norte-americana, simbolicamente, e esta é uma história de suma importância que deve ser contada. O Museu Nacional Latino da Smithsonian Institution ora proposto, está sendo gerado há bastante tempo e, quando finalmente for autorizado pelo Congresso dos Estados Unidos e assinado como lei pelo presidente da República, será o símbolo da 177 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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vontade da nação de se envolver honesta e completamente em uma discussão sobre a sua rica história e seu passado, presente e futuro. Representará um experimento ousado na tentativa de conciliar divisões e ecos de antigas rivalidades que ainda carregam uma energia cinética e será, igualmente, uma instituição projetada com as ferramentas mais modernas de comunicação e diálogo. É através do diálogo honesto e construtivo que devemos ensinar a história e que pessoas de diversos pontos de vista podem, através deste diálogo, encontrar um denominador comum. Pano de fundo

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De forma a revelar a natureza da rivalidade presente no título deste texto, preciso levr seu leitor de volta ao ano de 1776. Nesse ano, Thomas Jefferson está na cidade de Filadélfia, cercado por dezenas de delegados das 13 colônias britânicas para debater o texto da Declaração de Independência, documento que auxiliaria a criar uma nova nação independente no Novo Mundo. Pulando da costa atlântica através do que hoje chamamos de continente norte-americano e cruzando por centenas de tribos indígenas e suas confederações ao longo do caminho, aterramos em um morro bem arborizado, na costa do Pacífico, onde Juan Bautista de Anza decide que será o local ideal para estabelecer El Presidio Real de San Francisco. Ordena ele, então, a José Joaquin Moraga que ali realmente estabeleça o forte em 17 de setembro de 1776 e, com aquele ato, planta a semente do que viria a ser a cidade de São Francisco. Nesse local encontramos, em 1776, com poucos meses de diferença, os temas de dois rivais europeus, Inglaterra e Espanha, em lados opostos do mesmo continente, alegando que a mesma massa de terra no meio era deles. Ambas as monarquias, é claro, trataram os povos indígenas como bens móveis para serem usados para o trabalho barato e para serem convertidos em cristãos ou mortos. Uma rivalidade entre a Inglaterra protestante e a Espanha católica, enraizada no século XVI envolveu mais do que apenas uma luta por terras e riquezas no Novo Mundo, e acabou se transformando em uma rivalidade religiosa, quando a Inglaterra, sob o governo da rainha Elizabeth I, abraçou o protestantismo. A Espanha se tornou, então, a maior defensora do Papado. Paixões religiosas foram, e ainda são, as crenças mais intratáveis, e encontrar um ponto de diálogo comum pode ser o caminho mais difícil de trilhar. Os dois países que haviam sido, outrora, aliados contra seu inimigo comum francês passaram a molestar os navios uns dos outros, saqueando seus tesouros e atacando suas respectivas colônias por centenas de anos. Não é à toa que foi criada uma antipatia profundamente enraizada nas Treze Colônias contra os espanhóis. Tal ponto de vista hostil sobre os espanhóis facilmente foi transferida para a nova nação dos Estados Unidos da América. Podemos mostrar esse viés usando a Flórida espanhola como exemplo. O estado da Geórgia faz fronteira com a Flórida ao norte, onde os colonos da Geórgia invadiram e atacaram aldeias indígenas Seminole da Flórida, as quais responderam aos ataques. Estes conflitos ocorreram em 1817-1818 na Primeira Guerra Seminole, quando o general Andrew Jackson conduziu o exército dos Estados Unidos contra os Seminoles e, após um ano inteiro de conflitos, efetivamente controlou o leste da Flórida. O Tratado de Adams-Onis assinado com a Espanha, em 1819, cedeu a Flórida espanhola para os Estados Unidos em troca de cinco milhões de dólares e a renúncia de quaisquer reclamações dos Estados Unidos sobre o Texas, como resultado da compra da Louisiana. Como estudante de terceiro grau, quando comecei a aprender a história americana, os livros didáticos e o currículo apresentavam Jamestown (1607), na Virgínia, como o mais antigo assentamento europeu bem-sucedido e aprendi, então, sobre o capitão John Smith e suas façanhas heroicas. Nada foi dito sobre San Agustín, que foi fundado em setembro de 1565 pelo almirante espanhol Pedro Menéndez de Avilés. St. Augustine, na Flórida, é agora reconhecido como o mais antigo assentamento europeu continuamente ocu-


pado nos Estados Unidos continental e, posteriormente, tornou-se a capital da Flórida espanhola por duzentos anos, mas a história americana na minha geração, nos ensinou a nunca mencionar Álvar Núñez Cabeza de Vaca, o primeiro europeu a passar oito anos vivendo com os povos indígenas do sudoeste, caminhando através do que é hoje o Texas, Novo México e norte do México. Entre 1528 e 1536, Cabeza de Vaca passou de segundo comandante de uma expedição espanhola de cerca de 600 homens que desembarcaram no Texas para um escravo seminu de várias tribos nativas americanas. Para sobreviver, aprendeu a ser comerciante, cirurgião e etnógrafo, registrando detalhes dos costumes dos povos nativos com quem viveu. Mas tais figuras históricas e suas façanhas são em grande parte desconhecidas da grande maioria da população dos Estados Unidos. Atualmente, se alguém pesquisar a hstória dos Estados Unidos na Wikipedia, um artigo ali reproduzido se resume em discutir o Período Colonial referindo-se ao fato de que os primeiros assentamentos foram estabelecidos em 1607. Essa é uma clara referência a Jamestown e não a St. Augustine. A história americana, como até hoje continua a ser ensinada nas escolas americanas, reflete os valores culturais etnocêntricos da maioria da população que vê os hispano-americanos como os “outros”. Esse distanciamento torna difícil encontrar um terreno comum para tecer uma narrativa histórica que respeite as histórias e as contribuições de ambos os segmentos da sociedade americana. Criação de uma comissão Em maio de 2008, o presidente George W. Bush assinou a Lei Pública n. 110-229 (s. 2739) que estabeleceu uma comissão bipartidária de 23 membros nomeados pelo presidente da República e pelas lideranças de ambos os partidos no Congresso. Esses comissários foram escolhidos com base em suas qualificações em administração de museus, perícia na captação de recursos, experiência no serviço público e compromisso demonstrado com a pesquisa, o estudo ou a promoção da arte latino-americana, sua história e cultura. Sua missão foi a de “formular um plano para uma instituição sustentável de caráter mundial, cuja missão seria a de iluminar a história americana para o benefício de todos”. Foram dados dois anos a esta Comissão para realizar seus estudos e encontrar o melhor caminho para a criação de um museu que usaria ferramentas contemporâneas de interpretação para conseguir uma penetração nos mais amplos segmentos possíveis da sociedade norte-americana. A Comissão foi organizada em seis comitês centrais com a finalidade de aprofundar diversos aspectos técnicos da questão: O Comitê das Comunicações Públicas; O Comitê da Obtenção de Verbas; O Comitê de Visão, Missão e Programas; O Comitê de Seleção dos Edifícios e do Terreno; O Comitê de Governança; O Comitê de Aquisições. Cada comitê trabalhou integrado com uma equipe de consultores contratados pela Comissão para assisti-los em seu trabalho. Foram nomeados dois vice-presidentes dos comissários que nortearam o trabalho de sua comissão e os consultores. Fui designado como vice-presidente, juntamente com Sandy Colón-Peltyn, do Comitê de Seleção dos Edifícios e do Terreno. Logo de início, a Comissão optou por não realizar uma única grande conferência em Washington, D.C., mas sim levar o trabalho da Comissão para as principais cidades com grandes concentrações de latinos, tornando assim mais fácil para toda a comunidade participar do processo de investigação. Ocorreram oito audiências públicas em todo o país, realizadas em Chicago, Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Albuquerque, Austin, Miami, St. Paul, Los Angeles, New York City e San Juan, em Puerto Rico. Em cada uma dessas cidades, a Comissão se preocupou em colocar várias questões-chave para a comunidade latina, incluindo as seguintes: - Como um Museu Nacional pode impactar suas organizações culturais locais latinas? - Deveria o museu ser parte da Smithsonian? - Onde é que este Museu Nacional deveria estar localizado? - Você apoiaria financeiramente um Museu Nacional Latino? As respostas a essas perguntas, ao longo de 14 meses de audiências, foram notavelmente consistentes. O público esmagadoramente afirmou, cidade após cidade, que um Museu Nacional como este deveria ser estabelecido; que deveria representar parte da Smithsonian; que deveria estar localizado em Washington, D.C.; que os latinos iriam apoiar o museu financeiramente e que cuidariam do Museu Nacional, ajudando, apoiando e trabalhando em colaboração com suas organizações locais culturais latinas. Sobre a questão onde se localizaria o museu, em Washington, caso se pudesse construí-lo mais rapidamente, a Comissão perguntou se em um local distante do conjunto de museus da Smithsonian ou, caso fosse demorar muitos anos a mais para fazê-lo, na Smithsonian, o que eles preferiam? A maioria votou inequivocamente na construção do museu na Smithsonian Institution. O benefício alcançado pela Comissão ao ter pesquisado a opinião do povo americano de forma tão abrangente foi que seus membros puderam apresentar um relatório ao Congresso e ao presidente da República que representava, com autoridade, as vozes e opiniões de seus cidadãos. A questão sobre o museu fazer parte ou não da Smithsonian foi bastante surpreendente. Não muitos anos antes, uma coalizão de líderes culturais latinos havia emitido um relatório duro contra esta instituição, acusando-a de negligência intencional. Este relatório consistiu numa acusação ao complexo dos museus mais famosos do país sobre a ausência de programação e de operacionalização referentes à comunidade latina. O relatório havia solicitado audiências no Congresso e obteve uma quantidade considerável de críticas negativas na imprensa, mas pelo lado positivo, a Smithsonian abraçou uma autocrítica e tomou medidas concretas para melhorar sua atuação junto à população hispânica do país. O Congresso destinou um financiamento adicional especificamente para uma iniciativa latina que incentivasse vários museus da Smithsonian para prever a contratação de pessoal especializado em desenvolver programas que destacassem a história latina em termos de arte e cultura. A Smithsonian estabeleceu, então, seu Centro Latino para desenvolver exposições e programas públicos baseados em temas e objetos latinos e da América Latina, mas não um museu com equipe proporcional, orçamento e coleções. Em maio de 2011, a Comissão apresentou um relatório ao presidente Obama e às diversas Comissões do Senado e da Câmara dos Deputados que teriam competência para estabelecer o museu. Em essência, o relatório indicou 17 recomendações e conclusões que podem ser baixados da Internet no link http://www. americanlatinomuseum.gov/pdf/NMAL%20FINAL-Report.pdf Em resumo, o relatório afirma que: “A Comissão determinou que há necessidade de um novo museu nacional em Washington, D.C. que se dedique à preservação, à apresentação e à interpretação da arte americana latina, suas expressões culturais e suas experiências; um museu que ilumine a história americana para o benefício de todos.” Ao recomendar que o país avance nesse objetivo de estabelecer um novo museu nacional, a Comissão reconhece que precisa equilibrar duas prioridades vitais: não contribuir para qualquer nova despesa federal em curto prazo, ao mesmo tempo que pretende avançar no sentido da criação de um museu nacional que integre a experiência latina na narrativa norte-americana”. 180


Estabelecendo o museu Embora o relatório tenha sido amplamente visto e discutido e sua página no Facebook conte com milhares de seguidores, apenas o Congresso pode aprovar uma lei para estabelecer o museu. Tenho o prazer de informar que a legislação autorizando que a Smithsonian Institution pode estabelecer o museu e designando o Edifício de Artes e Indústria, no National Mall, para abrigá-lo foi lançada em março de 2012, tanto no Senado (S.568) quanto na Câmara dos Representantes (H.R.1217). A legislação foi copatrocinada por representantes republicanos e democratas e agora está aguardando audiências para sua aprovação. Como considero no título original deste artigo, pode um museu lograr terminar com uma rivalidade cultural profunda? A resposta parece estar vinculada a uma perspectiva filosófica de longo prazo: a cura de uma ferida só pode começar quando ocorre sua aceitação. Se o corpo legislativo supremo de uma nação e seu presidente concordam em estabelecer o Museu Latino-Americano, parece-me que há, então, um consenso para avançar em um caminho que renderia uma visão transcultural da história americana. Seria ele um sinal de mudança ao se distanciar de uma visão única e dominante de como a nação veio a ser constituída e ao aceitar um diálogo entre vários partidos que sempre foram visíveis uns para os outros, mas não reconhecidos como tal? A partir do momento em que o museu for estabelecido pela via legislativa, um longo processo de cicatrização da ruptura entre o Inglês e o Espanhol começará. Então, sim, um museu poderá curar uma rivalidade, já que tal museu será dedicado a “iluminar a história americana para o benefício de todos”. Será que a cura ocorre durante a noite? Não, este vai constituir um processo geracional que só irá acontecer à medida que mais elementos dentro da sociedade mais ampla (artistas e educadores, jornalistas, universidades e meios de comunicação social) possam se envolver em uma conversa sobre o significado de ser um cidadão americano. Este esforço vai exigir a aceitação e a integração de 11 milhões de almas que atualmente se encontram marginalizadas, como os trabalhadores não documentados da sociedade norte-americana, pois, embora nem todos sejam latino-americanos, a grande maioria realmente o é. E a nação tem de abraçar a geração de jovens que foram criados e educados como norte-americanos, mas não possuem cidadania, os sonhadores, como eles se tornaram conhecidos. Construir um museu no National Mall representa um longo processo, na medida em que o Museu Nacional da História e da Cultura Africana-Americana levou 12 anos para ser construído, abrindo suas portas em 2015. O Museu Nacional Latino da Smithsonian Institution – SALM pode começar a se programar mais cedo, mas sua construção vai levar um longo tempo. Eu, pelo menos, mal posso esperar para que isso aconteça.

181 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

O Museu Nacional do Índio Americano e a transculturalidade

Rosane Maria Rocha de Carvalho Museóloga e relações públicas, doutora em Ciência da Informação e presidente da Associação dos Amigos do Museu Antonio Parreiras, Niterói, RJ

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objetivo deste trabalho é tentar problematizar se há evidência da transculturalidade em torno dos projetos e do processo de construção do National Museum of the American Indian, do Smithsonian Institution, criado em 1989 e inaugurado em 2004, em Washington D.C. Para realizar esta análise pretendo desenvolver uma reflexão a partir de artigos científicos sobre transculturalidade e sobre museu vivo, identificando, na gênese da instituição, na missão do processo da arquitetura, na gestão das coleções, na visão do diretor e do curador para a América Latina e na de um antropólogo cujos estudos têm este museu como foco, possíveis desdobramentos políticos na sociedade americana contemporânea implicados com a abertura desta instituição, assim como suas relações com a história americana evocada nos depoimentos dos envolvidos para justificar a existência do NMAI. Portanto, pretendo, na proposta formulada para justificar a elaboração deste museu, também indicar as diferenças de um museu nacional e um museu vivo, destacando, na rede de relações dos diversos personagens envolvidos, a formulação de uma indigenidade a ser representada e apontada, especialmente dentro dos limites dos textos e dos autores escolhidos. A partir da proposta que a coordenadora do seminário “Museus e Transculturalidade, Novas Práticas Pós-Modernas”, a professora dra. Dinah Guimaraens, nos propõe em seu texto a respeito do papel do Museu e o impacto das Artes no diálogo transcultural (2012), venho trazer algumas ideias a respeito da forma como se articula o Museu Nacional do Índio Americano (National Museum of the American Indian) nos Estados Unidos. Pretendemos discutir aqui como se relacionam a coleção museológica em um Museu Nacional e a proposta de profunda conexão com as nações indígenas num modelo de museu “diferente”, apontando para um diálogo cultural conforme enunciado por Dinah Guimaraens: Neste mundo multicultural, as diferentes culturas parecem neutralizadas. Elas são fadadas a restaurar rituais dogmáticos para resistir às tentativas de fazer delas bens de consumo como quaisquer outros. A única saída que se oferece como alternativa parece ser a vontade de construir uma capacidade comum de transformar estas culturas a partir da instauração de relações mútuas e de um diálogo intercultural. 182


O axioma intelectual emitido com extrema propriedade pelo ex-secretário Roberto McCormick Adams, da Smithsonian Institution, foi, na época, uma recomendação visionária e fundamental que permaneceu como fundamento para o NMAI: Este é um museu nacional que leva em conta a permanência, a autenticidade, a vitalidade e autodeterminação das vozes dos índios americanos [...] como a realidade fundamental que deve representar. [Nós] nos movemos decisivamente da antiga imagem de museu como templo, com seu clero superior e autogovernante para um fórum comprometido não com a difusão do saber recebido, mas com o encorajamento de um diálogo multicultural. Para o diretor fundador do museu, Richard West Jr., na conferência proferida em maio de 2009 na Semana Nacional de Museus, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio, realizado no Museu de Astronomia e Ciências Afins, Rio de Janeiro, foi difícil compreender a imensa relação e interconexão das duas partes do construtor intelectual do secretário Adams – por um lado, o Museu Nacional como lugar de permanência da autorrepresentação e autodeterminação cultural e, por outro, a ampla proposição museológica do museu como fórum e as implicações conceituais e cívicas desse conceito. Dentro do contexto do diálogo intercultural, a proposta seminal do Museu Nacional do Índio Americano expressa a transculturalidade das culturas ameríndias, abrigando uma das maiores e mais diversificadas coleções do mundo de seu tipo. A grandiosa arquitetura curvilínea do museu, seu paisagismo indígena e suas exposições, tudo projetado em colaboração com as tribos e comunidades de todo o hemisfério, se combinam para dar aos visitantes de todo o mundo o sentido e o espírito da América Nativa. Trata-se de um Museu Vivo perpetuador da cultura tradicional através do desenvolvimento de práticas de resistência cultural e de inovação artística conscientes. Tanto o acervo material quanto o acervo imaterial são trabalhados de forma a permitir a compreensão da formação cultural de diferentes etnias indígenas e o seu estágio atual. O projeto deste museu nasceu comprometido com os grupos indígenas de todas as Américas. Na época em que o Congresso americano autorizou a sua criação, além de uma grande adição de coleções do patrimônio cultural dos nativos americanos ao conjunto de museus da Smithsonian Instution, o Congresso indicou ainda que a América nativa dever ter um papel participativo e colaborativo no Museu Nacional do Índio Americano (WEST, 2009). Seu processo de criação a cargo da Smithsonian Institution se iniciou em 1989. Desde a aprovação da legislação que permitiu sua criação, o NMAI tem estado firmemente empenhado em trazer vozes nativas para que o museu apresente e escreva, seja no local de um dos três prédios do NMAI, seja através das publicações ou da Internet. O NMAI também se dedica a atuar como um recurso para as comunidades indígenas do hemisfério e serve ao grande público como um canal honesto e profundo para as culturas nativas – presente e passado, em toda a sua riqueza, profundidade e diversidade. O museu trabalha para apoiar a continuidade da cultura, valores tradicionais e as transições na vida do nativo contemporâneo. Oferece, tanto no seu prédio em Washington quanto no de Nova York, galerias de exposições e espaços para apresentações, palestras e simpósios, pesquisas e educação. O Centro de Recursos Culturais (CRC), em Suitland, abriga coleções do museu, bem como a conservação, repatriação, programas de imagem digital e centros de pesquisa. Os esforços de divulgação do CRC, fora dos três edifícios do NMAI o qual muitas vezes denominado de “quarto museu”– incluem sites, exposições e programas comunitários. É importante notar que desde a concepção do projeto arquitetônico, assim como no desenvolvimento das coleções do NMAI, foram feitas parcerias com os americanos nativos em todas as instâncias do museu.

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Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

O processo da arquitetura Começando no início de 1990, o Museu Nacional do Índio Americano (NMAI) abriu diálogos com as comunidades indígenas e indivíduos em todo o hemisfério ocidental. Essas reuniões iniciais resultaram em um documento marco do museu, The Way of the People (1993), que foi além dos requisitos básicos do edifício para incorporar sensibilidades nativas em todo o edifício do museu. Uma série de temas emergiu dos diálogos. Um deles envolveu a natureza intuitiva do edifício: é necessário ser um museu vivo, nem formal, nem calmo, localizado em estreita proximidade com a natureza. Outro tema foi que o projeto do edifício devia, claramente, fazer referências celestes, com uma entrada principal virada para o leste e uma cúpula que se abre para o céu. Muitos comentários expressaram o desejo de trazer histórias indígenas até a atualidade através da representação e interpretação das culturas indígenas como fenômenos que vivem em todo o hemisfério. Alguns parâmetros básicos para a estrutura do edifício foram ditados pelo terreno com 4,25 hectares em forma trapezoidal, com as restrições de construção para o National Mall por causa de um riacho que fluía abaixo do terreno. Estes desafios foram abordados inicialmente pela equipe de design da GBQC e Douglas Cardinal, Ltd., que incluiu os consultores descendentes das tribos, como Douglas Cardinal (Blackfoot), Johnpaul Jones (Cherokee/Choctaw), Donna House (Diné/Oneida) e Ramona Sakiestewa (Hopi). Duane Blue Spruce, outro arquiteto envolvido no projeto, nos fala ainda das estratégias conceituais visando uma transculturalidade e a ideia de um território único, através de um design coeso como aspectos comuns das culturas nativas. Para isso, círculos que representariam um nativo universal, em contínua transformação, e um espaço intertribal para cantar, dançar e rezar foram recursos usados pela equipe do NMAI na formulação de um “índio genérico” (BERTOLOSSI, 2008). Plantas tradicionais, herbários, espécimes encontradas em reservas, assim como rochedos milenares com significados míticos e ancestrais, foram levados para o entorno do NMAI, de modo a compor uma paisagística nativa (BERTOLOSSI, in op. cit). As coleções

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As coleções atuais do NMAI têm sua base na coleção do antigo Museu do Índio Americano (MAI), Fundação Heye, de New York City, montado em grande parte por George Gustav Heye (1874-1957). Desde a sua primeira aquisição em 1860, a compra de uma camisa Navajo, no Arizona, a coleta de Heye rapidamente se expandiu para material arqueológico. O Museu Nacional do Índio Americano (NMAI) tem hoje uma das mais extensas coleções de artefatos e arte nativa americanas no mundo, cerca de 825.000 itens representando mais de 12.000 anos de história e mais de 1.200 culturas indígenas das Américas, segundo seu site. As coleções do museu incluem também o arquivo fotográfico, com cerca de 324 mil imagens da década de 1860 até o presente, um arquivo de mídias, compreendendo filmes e coleções audiovisuais em suportes tais como cilindros de cera, discos fonográficos, filmes 16 e 35 milímetros, mídia magnética de muitas variedades, além de mídia ótica e digital. O Museu conta ainda com um Arquivo documental (feito em papel), composto por registros que datam da década de 1860 até o presente, e que preservam a história documental do NMAI e de seu antecessor, o Museu do Índio Americano (MAI), fundação Heye, e suas coleções, bem como outros documentos e materiais de arquivo. Essas coleções estão profundamente interligadas, pois cada uma contém itens que se relacionam com as outras: o arquivo fotográfico inclui imagens de objetos em uso nas comunidades indígenas ou os contextos das escavações de objetos arqueológicos, e o arquivo documental inclui notas de campo e documentação para todos os aspectos das coleções combinadas. Através da implementação do seu Plano de Coleções, o NMAI espera expandir o escopo das coleções e continuar seu trabalho historicamente significativo em


documentar vidas e perspectivas indígenas, através de objetos, dos diversos meios de comunicação e outras mídias, enquanto aumenta a integração destas coleções umas com as outras, tornando-as mais significativas e aplicáveis aos programas de museus e acessíveis aos usuários externos. Por último, e mais importante ainda, as coleções do NMAI têm enorme significado para os próprios povos nativos que olham para o museu como um guardião de grande parte de seu patrimônio material e um parceiro responsável no trabalho em curso de torná-lo acessível aos membros da comunidade e ao público na maior extensão possível. As coleções de objetos do NMAI estão alojadas no Centro de Recursos Culturais, em Suitland, Maryland. As coleções estão abertas a pesquisa, principalmente de pesquisadores e de nativos das diferentes etnias que ajudam o pessoal da Gestão de Coleções a identificar os objetos, sua história, seu uso e significado na etnia em que foram produzidos, num processo de ressignificação da coleção do museu, recuperando informações que haviam sido perdidas. O trabalho de catalogação, feito em conjunto com os representantes das diferentes comunidades indígenas, faz com que o museu seja vivido e experimentado como sendo feito pelos nativos, para os nativos e a sociedade. Há cuidados específicos com a natureza dos objetos a serem pesquisados: para acessar coleções culturalmente sensíveis, incluindo objetos sagrados e cerimoniais, objetos do patrimônio cultural (objetos de propriedade comunitária), objetos funerários e restos humanos, pesquisadores devem obter a aprovação prévia (por escrito) do apropriado grupo nativo americano, culturalmente filiado. Em 1989, a transferência do Museu do Índio Americano para a Smithsonian Institution e a criação do Museu Nacional do Índio Americano trouxe mudanças substanciais para todos os aspectos do museu. Além de atualizar a gestão de coleções e outras operações, atitudes em relação às coleções mudaram. Onde a coleção tinha servido à missão de George Heye “a preservação de tudo o que pertence as nossas tribos americanas”, a missão do NMAI, com sua ênfase na parceria com os povos indígenas e suas vidas contemporâneas, tem estimulado diferentes estratégias de desenvolvimento de coleções e esforços programáticos, bem como consultas com representantes da comunidade sobre os padrões apropriados de cuidados, modos de exposição e interpretação e operações gerais do museu. As realizações mais visíveis do NMAI foram a abertura do George Gustav Heye Center em Nova York, em 1994, e a construção do prédio do NMAI no National Mall, em Washington, DC, em 2004; a construção do Centro de Recursos Culturais do NMAI em Suitland, Maryland, em 1999, e a subsequente mudança das coleções da “Filial de Pesquisa”, no Bronx, que deram às coleções a casa que mereciam ter. Para Richard West, os indicadores do Museu Nacional do Índio Americano, como centro comunitário e cultural e como espaço cívico, são abundantes. As exposições permanentes, normalmente um meio muito convencional nos museus, oferecem pistas sobre intenções mais abrangentes e diversas do Museu Nacional do Índio Americano. As exposições contêm objetos, milhares deles, para ser exata, mas estes não determinam ou definem as instalações de modo costumeiro. Ideias e temas amplos, os povos nativos em si mesmos e o papel das comunidades merecem o mesmo destaque, e a chave é a integração de tudo isto na apresentação. O foco nas exposições, assim como nos componentes individuais de cada comunidade nativa, é múltiplo e se dirige a temas variados, como cosmologia nativa, operação de cassinos, questões ligadas à saúde, vida urbana indígena e direitos para a pesca e a caça. Em todas as instâncias do museu, os processos de conservação das coleções, programas de exposições, programas educativos e até as atividades culturais programadas para o museu são trabalhadas em parceria com as comunidades nativas em todas essas áreas programáticas.

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O Dr. Ramiro Matos A proposta conceitual do Museu Nacional do Índio Americano, que expressa a transculturalidade das culturas ameríndias, foi relatada pelo Dr. Ramiro Matos Mendieta, peruano, arqueólogo e curador da America Latina do NMAI, que veio ao Rio de Janeiro em setembro de 2005 para o Seminário Internacional Museografia e Arquitetura de Museus (Arquimuseu). Naquele evento, o curador da América Latina, em sua palestra, não só apresentou o Museu do Índio Americano, mas também suas referências conceituais. Conceitos importantes do NMAI: • Enfase nas ideias mais do que nos objetos, ou seja, o acervo imaterial cultural oferece, historicamente, maior possibilidade de compreensão da formação de um mundo transcultural, formado por diversas nações, etnias, cada uma com seus hábitos, rituais e significados, apoiados em objetos, mas melhor explicados através de narrativas próprias, explicitadas em depoimentos, registrados em filmes, vídeos e performances ao vivo. • A voz de cada etnia indígena deve guiar sua exposição. Desde o início do funcionamento do museu, em 1994, as exposições têm curadoria coletiva, ou seja, na elaboração da exposição, o museu recebe dois representantes de cada grupo indígena a ser abordado na mostra. Estes decidem que o material a ser exibido seja de cultura material ou imaterial, com o suporte da equipe de profissionais e curadores do museu. Para o museu, é importante revelar como estes grupos vivem hoje, quais seus valores, seus problemas e suas tradições. • O trabalho com equipes interdisciplinares, com especialistas de diferentes países, tem como exemplo, em 2009, as reuniões ocorridas com o Dr. Ramiro Matos Mendieta que, junto com sua equipe, trabalhava em uma exposição. Contribuíram para a exposição “O Legado da Estrada Real Inka: Qhapac Nan” a partir da perspectiva indígena na voz quechua contemporânea, a qual foi inaugurada em 2013. • Documentar melhor as coleções, ouvindo as comunidades indígenas. • Quanto às coleções arqueológicas, deve-se ouvir os indígenas contemporânaneos das áreas onde se situam os sítios, na medida em que os índios contemporâneos sabem manusear o calendário inca e maia, tais como, os Mapuche (Chile), Quechua (Peru) e Alta Verapaz (Guatemala). • Participação de curadores indígenas que auxiliam a conservar objetos e a conhecer seu valor espiritual de conectá-los com o divino. • Realização do reconhecimento de peças autênticas das tribos nativas corrigindo a interpretação de arqueólogos. • NMAI é um dos dos únicos museus com um departamento dedicado às crenças indígenas, contando com espaço para cerimônias. Entre outras iniciativas, Dr. Ramiro mencionou o antropólogo Darcy Ribeiro, que almejava fazer no Brasil um museu indígena administrado por indígenas e que ajudou muito a Smithsonian Institution a conhecer grupos indígenas brasileiros. Informou que, no México, há museus nas comunidades indígenas feitos por eles mesmos. Estas comunidades receberam apoio internacional, tendo sido criados 150 museus comunitários desde 1980, naquele país. Para o Dr. Ramiro, o NMAI é um museu vivo, um museum outreach, sem paredes. Segundo ele, no 4º Encontro do NMAI com indígenas da América do Sul no Peru, em 2004, discutiram formas de salvar as comunidades e o meio ambiente. Ao conhecer as conexões profundas e dialógicas do NMAI com os nativos, podemos perceber que toda esta liberação curatorial do espaço físico e intelectual do National Museum of the American Indian permitiu – na verdade, quase compeliu – à instituição estabelecer um território muito mais amplo e mais inovador. As relações colaborativas com os povos e comunidades nativas, intensa, metódica e consistentemente bilater186


ais, desde o conceito, fizeram do museu mais do que apenas a usual “destinação cultural” ao longo da trilha dos museus do National Mall em Washington, D.C. Ele se tornou mais do que um espaço impregnado de belas e significativas coleções apresentadas de modo descritivo, didático e passivo. Mais do que isso, representa ele um lugar e um espaço de muito mais ampla dimensão e interação cívica e social, onde as coleções se tornam não um fim em si mesmas, como afirmou o Dr. Ramiro, mas pontos de partida para ideias e temas que documentam larga, ampla e profundamente a América nativa como país indígena, e a totalidade da experiência nativa das Américas. Em outras palavras, o fórum dialógico se transformou em conceito e em nova forma museológica já antevistos na sabedoria das nações percebidas pelas aspirações de Roberto Adams para o NMAI, que procurou descrevê-lo de outra maneira, quase como um antimuseu. Em sua dissertação de mestrado em Antropologia Social, Leonardo Bertolossi reconhece que, tomando as rédeas de suas próprias histórias, políticas e poéticas, os índios do NMAI se afastam do estatuto de “outros” constitutivos de uma parte da nação. Em sua tradição de inventar uma nova tradição museológica e também uma panindianidade, eles são o “Our” que introduz suas exposições, canibalizando as referências do mundo euro-americano urbano, globalizado e presentista sob uma instituição que é afirmadamente antiantropológica e está em contínua transformação através de sua programação de exposições, eventos, performances e até mesmo na paisagística nativa que a circunda (BERTOLOSSI, 2010). Mais do que um museu do “outro” que enuncia uma identidade atual pela ancestralidade indígena, como é o caso do Museo Nacional de Antropología, no México (CANCLINI, 1997), os índios do NMAI apontam para o passado através de mitos e histórias, mas sobretudo para a contemporaneidade. Evitando um tom denuncista em relação aos genocídios passados, o museu enfatiza a vitalidade e a criatividade contemporânea, incentivando a produção de arte indígena com auxílio financeiro, além de diversos outros programas educativos e sociais. Para Bertolossi (2010), o passado indígena no NMAI, enquanto patrimônio, é chamado de “herança” e é visto ora como o que deve permanecer sob todas as transformações, ora como o que deve ser reinventado e atravessado. Neste museu, simultaneamente “templo” e “fórum”, os índios do NMAI dialogam em mundos singulares, ancestrais e cotidianos através de uma panindianidade autorreflexiva e crítica, por vezes uma pós-indianidade repleta de significados, heranças, culturas, naturezas e espiritualidades, conceitos eternos por eles evocados.

Referências BERTOLOSSI, Leonardo Carvalho. Diferentes, Iguais: A Pan-Indianidade do National Museum of the American Indian e suas Variações. Rio de Janeiro: UFRJ/MN, 2010. 238 p. Orientador: Carlos Fausto. Dissertação de Mestrado em Antropologia Social. Acesso em 09.05.2013. Disponível em: http://teses2.ufrj. GUIMARAENS, Dinah. O papel do Museu e o impacto das Artes no diálogo transcultural. Niterói, Universidade Federal Fluminense, 2012. MATOS, Ramiro. Paletra sobre o Museu Nacional do Índio Americano, apresentada no Arqui Museus 2005 –Seminário Museografia e Arquitetura de Museus, realizado em setembro de 2005, pelo Programa de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ. Anotações da autora deste artigo. NATIONAL MUSEUM OF THE AMERICAN INDIAN. www.nmai.si.edu (site). WEST Jr., Richard. Reflexões sobre os Museus no Século 21. Revista eletrônica Museologia e patrimônio, – v.3 n.1– jan/jun de 2010. Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio / Museu de Astronomia e Ciências Afins. Acesso em 16/02/2013. Disponível em http://revistamuseologi187 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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aepatrimonio.mast.br/index.php/ppgpmus/article/viewFile/105/116br/Teses/PPGAS_M/LeonardoBertolossi.pdf. BERTOLOSSI, Leonardo Carvalho. Da Dívida à Dádiva: O caso National Museum of the American Indian. 26a Reunião Brasileira de Antropologia. Grupo de Trabalho 37 – Coleções, Museus e Patrimônio. junho de 2008, Porto Seguro, Bahia. Acesso em 13.05.2013. Disponível em: http://www.abant.org.br/conteudo/ ANAIS/CD_Virtual_26_RBA/grupos_de_trabalho/trabalhos/GT%2037/leonardo%20carvalho%20bertolossi.pdf.

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Patrimônio imaterial como museografia

Jack Lohman Diretor do Royal British Columbia Museum, Canadá

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m dos romances mais vendidos no Canadá em 2013 foi a maravilhosa obra de Esi Edugyan, Half-Blood Blues (Melancolia Mestiça). Indicado ao Man Booker Prize e ao Governor General’s Award no Canadá, recebeu, em 2011, o Giller Prize na categoria ficção. O livro conta a história de um grupo de músicos negros, antes e depois da Segunda Guerra Mundial– dos clubes em Berlim antes da guerra, passando da Paris ocupada às ruas chuvosas de Baltimore dos nossos dias. O romance não tem muito a ver com o Canadá nem com os museus de patrimônio imaterial. Mas Edugyan - que vive em minha cidade natal, Victoria, no Canadá – se permite uma piada tipicamente canadense. O protagonista Sid, desesperado para fazer com que o motorista do táxi pare de tagarelar, ao ser perguntado onde mora responde: – Não em London Inglaterra, mas sim em London Ontário, no Canadá. O olhar do motorista demonstra seu desinteresse. Aprendi há muito tempo que o Canadá é um tópico que mata imediatamente qualquer conversa. Esse é um truque meu. Bem, não é só o Canadá. Se serve de consolação, museus também têm esse efeito silenciador nas pessoas. Altas abóbadas e estruturas semelhantes à de um templo raramente encorajam uma conversa. Desde o início, o design dos museus parece ter como única intenção impor silêncio e intimidar o visitante. Essa reverência, contudo, em muitos casos, não se refere aos objetos do passado, mas àquelas pessoas tão ricas e admiráveis que os colocam ali. Por essa razão, nós conhecemos o museu The Getty simplesmente como The Getty. O que esse silêncio nos diz é que os espaços dos museus –- e talvez, por extensão, todos os espaços públicos – são mediados. Eles exercitam sua influência antes que alguém tenha visto ou feito qualquer coisa dentro deles. Muitos imaginam o museu como um grande container vazio, algo como uma grande caixa onde se pode guardar os inúmeros objetos culturais que precisam ser preservados. Mais recentemente, o esplendor arquitetural de muitos museus comtemporâneos foi desenhado para interagir com a coleção que hospeda e para transmitir mensagens chaves. Qualquer um pensaria imediatamente no imponente Museu Judaico de Berlim, de Daniel Libeskind, com suas luzes, seus corredores sem saída, suas perspectivas estreitas. O edifício é o conteúdo que pretende mostrar (ou, no caso do Holocausto, marca arquiteturalmente a perda e o terror que o museu não é capaz de mostrar). Mas 189 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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mesmo aqui, antes que possamos entender o significado específico pretendido por Libeskind ou Frank Gehry, o edifício exerce seu poder sobre nós. Nós nos aproximamos, o admiramos, olhamos para cima – e já começamos com uma atitude de veneração silenciosa. Quero começar falando sobre o edifício porque os museus podem revelar um foco um tanto estreito no que diz respeito às suas palavras para explicar as coisas. Porque tanto o modo como as coleções materiais e imateriais são exibidas quanto os edifícios que as hospedam são tão importantes como qualquer legenda ou painel de texto que ali se encontram. É um equívoco que nenhum visitante comete, pois o edifício é o primeiro impacto em sua experiência. Mas nós, os profissionais de museus, nos tornamos tão acostumados ao nosso ambiente que nos esquecemos da influência que a edificação exerce na experiência museológica. É claro que há muitas abordagens que podemos seguir. O Museu Judaico de Libeskind é deliberadamente polêmico: ele grita, ele nos sacode, ele nos causa emoção. E a arquitetura vai nos arrebatando conforme você vai passeando por ela. Algumas pessoas podem não gostar, mas em um aspecto precisamos concordar: esse sentimento de reverência não é em princípio ruim. Quero que as pessoas sintam o drama e o entusiasmo da cultura. Museus são fontes inspiradoras e precisam se sentir assim. Parte do encanto de um museu como o Royal British Columbia Museum está em seu ambiente e sua localização agradáveis. Podemos dizer que o edifício honra o solo em que foi construído, tanto quanto as histórias dentro dele o fazem. O que você aprende no museu é, idealmente, reforçado pelo ambiente no qual você aprende. Os museus dos séculos XVIII e XIX, mesmo os mais desencorajantes, tinham algo a dizer com suas fachadas aterrorizantes. Eles anunciavam que ali havia algo de importante. Um silêncio opressivo pode não ser mais o que se espera deles, mas o silêncio em si não é algo ruim. Como tema para discussões futuras, o silêncio faz do museu um espaço ainda mais fascinante para os visitantes. Há algo a ser dito no abrir espaço para o outro falar. O silêncio é também uma oportunidade. Reconhecer essa tensão pulsante entre insistência e oportunidade no próprio espaço é, eu diria, um modo que os museus têm para se reformular para o visitante contemporâneo. E não são apenas os tijolos e a argamassa que determinam como funcionam os espaços dos museus. Vou lhes dar um exemplo. Uma das novas vozes nos museus no século XXI é a da tecnologia. Os museus têm cada vez mais disponibilizado roteiros digitais em suas galerias - fones de ouvido, pontos de acesso de QR, guias de áudio e vídeo. Essas diretivas digitais são fortemente estabelecidas (uma vez que o museu normalmente ministra seu conteúdo), e ao mesmo tempo muito indeterminadas, visto que o visitante pode reunir quantos e quais roteiros desejar para montar o seu passeio através da coleção. Quanto mais recurso digital disponível, mais visitantes criam seus roteiros, e a tendência é essa. Com cada vez mais fones, em cada vez mais ouvidos, um novo tipo de espaço de museu está surgindo, no qual cada visitante se movimenta por conta própria e como deseja. É um sistema altamente customizável que oferece opções e liberdade de escolha. Talvez agora seja o momento de perguntarmos, antes que a resposta esteja completamente incorporada ao ambiente de nosso visitante: nós queremos que a experiência no museu seja completamente autônoma? Estamos criando uma experiência menos mediada e com mais opções, ou um exercício nada estimulante em autoabsorção? Demasiadas opções significa que você só encontra aquilo que lhe interessa? Isso é seleção, ou shopping? “Encontro” parece ser a palavra-chave. Ao tentarmos ser flexíveis e nos distanciar da voz curatorial dominante, ao tentarmos abrir seus espaços e não determinar em excesso as questões do visitante, os museus estão arriscando perder qualquer possibilidade de diálogo. Estamos tão interessados em não impor significados que estamos arriscando nos retirar no silêncio. Em vez de envolvimento, temos distanciamento. Em vez de comunidade, temos solidão. Este é o risco de uma abordagem descentralizada nos museus, e eu acredito que não seja isso o que as pessoas buscam quando se encontram em um lugar público, como um museu. 190


Minha inquietacão é que nós, guardiães de museus, temendo enquadrar a história, o conhecimento, os arquivos e as colecões que mantemos, não deveríamos imaginar uma situação inocente em que nenhuma mediação seja possível. O pior que poderíamos fazer é nos tornarmos tímidos e passivos. Ao contrário, devemos entender claramente as implicações do que estamos fazendo e garantir que o museu seja parte do nosso potencial expressivo. O edifício, como eu disse, é um corpo que pode estimular e sugerir, desde uma ideia geral de inspiração e escala de importância até temas e significados mais específicos. O andaime intelectual do museu precisa encontrar também um forte ponto de apoio entre o espaço em aberto e o ausente. Não podemos mudar as coleções, sejam imateriais ou materiais, a cada dois minutos, mas podemos revigorar a vida intelectual do museu facilmente com novos tópicos, novas abordagens. Encare as línguas, por exemplo, como uma via de acesso à coleção do museu. Conceitos imateriais e abstratos não são a abordagem habitual dos objetos, e a materialidade de nossas mostras tendem a escapar do imaterial quando nós as explicamos. Continuamos enraizados no passado material. Mas se os objetos dos museus representam pontos de contato com os grupos de pessoas que os criam e aquelas que os descobrem, a língua também, em todas as suas variáveis, é uma representação potencial dessas mesmas comunidades. Mas a língua seria de grande uso como um tópico de museu, aonde as pessoas vêm para olhar para coisas? Quando você entra no The Smithsonian’s National Museum of the American Indian em Washington, uma das primeiras coisas que você vê – e, dificilmente, conseguiria evitá-la – é uma parede com telas de vídeo. Essa parede de boas-vindas saúda os visitantes em não menos que 150 línguas nativo-americanas. Você é banhado pelas línguas indígenas das Américas. É maravilhoso, e imediatamente aponta um aspecto intelectual muito útil: nenhum museu, mesmo um tão influente quanto o Smithsonian, será capaz de apresentar ao público tanta cultura em um único edifício em uma única tarde. Mesmo para compreender as poucas línguas selecionadas com a importância e a impressão justas, você precisa colocá-las em contexto daquelas tantas línguas e culturas deixadas de lado. O muro de boas-vindas é um artifício engenhoso: você começa sua visita ao museu apreendendo de maneira gráfica e rápida o quanto há para conhecer e, a partir daí, você faz sua seleção. E isso é feito não através de objetos, mas com uma ideia mais abstrata, e ainda assim contagiante... a língua. O Royal British Columbia Museum está lançando seu display de línguas das primeiras nações indígenas em Colúmbia Britânica. O projeto é um dos primeiros empreendimentos em parceria entre o Memorandum of Understanding (Memorando de Entendimento) e o museu The First Peoples’ Cultural Council. Esse é o mais recente projeto de uma longa história de colaboração recompensadora entre o museu e as Primeiras Nações da Colúmbia Britânica. Tal colaboração expande a voz do museu para incluir as vozes de outros contribuintes, em especial aqueles com experiência e conhecimento de práticas culturais em primeira mão. Ela completa o silêncio com som e permite uma abordagem mais multidimensional de como mostrar a cultura das primeiras nações aos nossos visitantes. Contudo, essa exibição é ainda mais ambiciosa. Assim como a parede de boas-vindas do Smithsonian, ela visa trazer o incontido para dentro do museu. Para nós, não é simplesmente uma questão de línguas das Primeiras Nações, mas da visão de mundo que elas representam – sobre terra e água, família e estruturas sociais, valores morais e estilos de vida. Paradoxalmente, é a língua que frequentemente nos dá acesso ao “não dito”, como frequentemente ocorre com as Primeiras Nações, acesso ao “não escrito”. Tendo a língua como foco, surgem inúmeras novas questões. Que lugar na história deixamos para o não registrado? Como preservamos o indefinido e o não inscrito? O que poderíamos estar perdendo ao ignorarmos isso? Como o escritor Robert Kroetsch coloca em sua coleção de ensaios intitulada The Lovely Treachery of Words (A adorável traição das palavras), estamos descobrindo (em suas próprias palavras) que o não nomeado permite o nomeado. O orgulho local fala. A tradição oral fala sua natureza tímida, sua liberdade do texto autorizado. Estamos aprendendo que a língua nos dá acesso a informações que objetos exclusivamente (e a 191 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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história em torno deles) podem não transmitir. Um dos objetivos da exposição é mostrar que nem tudo pode ser traduzido em uma outra língua, e talvez seja aqui que nos encontramos no âmago das estimadas crenças. Tais conceitos são os mais difíceis de serem articulados, a origem de cada mito de cada cultura e seus contos originais, seus pensamentos mais genuínos. São a essência do que somos. Como escreveu Northrop Frye em seus estudos sobre o imaginário canadense, nossos “mitos são expressões de interesse, do zelo do homem por seu próprio destino e patrimônio, seu juízo da suprema importância de preservar sua comunidade”. Perdendo-se a língua na qual são expressas tais crenças, perde-se esse laço que mantém unida a comunidade. A preservação dessas línguas é uma das razões por que queremos organizar essa exposição. Eu cito este exemplo como uma circunstância de como uma visão inovadora como a língua pode re-apresentar a coleção e o conhecimento que ela representa. Mude o enfoque e você muda o conteúdo. Ninguém imagina que seja viável ou desejável trocar constantemente as exibições de um museu, seguindo os passos do tempo da moda. Mas o que podemos fazer é reapresentá-las, sugerir novas molduras e perspectivas, novos pontos de partida para refletirmos sobre o que está lá, e o que não está. A língua é uma ideia para recontextualizar a coleção intelectualmente. Mas não há escapatória sobre o fato de que os museus são repletos de coisas. Diferentemente de uma academia, em que o horizonte de conhecimento se amplia até onde as mentes dos estudiosos desejem viajar, o conhecimento em museus está contido em seus objetos. É possível viajar com eles, mas eles são uma bagagem difícil de carregar. A forma das coisas é, obviamente, seu grande poder. O prazer dos museus está no conhecimento incorporado. A história é palpável – pedimos que você não a toque, mas a realidade do passado está ali, diante de seus olhos, em cada pote feito à mão ou peça de jóia de estilo interessante. O que dizemos sobre os objetos e como os apresentamos é de grande relevância. Você pode reescrever e a redesenhar a mesma coleção e se deparar com museus radicalmente diferentes. Mas ainda mais convincente ultimamente, como modo de reestruturar a coleção, são as perspectivas de reunir diferentes coleções – física, intelectual e eletronicamente. Uma das exposições especiais que planejamos no Royal British Columbia Museum é sobre a corrida do ouro. É uma exibição sobre movimento, um olhar sobre uma das atividades base que fizeram da Colúmbia Britânica o que é hoje: atraindo pessoas e influências, transformando essa extensão de terra e água em um cenário de sonhos, riqueza e felicidade. É uma história bem típica da Colúmbia Britânica. Um modo de libertar-se do espírito provinciano do conhecimento do museu é imaginar a mesma exibição organizada em outro lugar. Como seria uma exposição sobre a corrida do ouro na Califórnia ou na Austrália? Por que não abordar esses elementos? Nunca entenderemos o lugar da Colúmbia Britânica no mundo a menos que possamos ver como outras regiões foram afetadas pelas mesmas aventuras. Esperamos que a exibição fizesse isso trazendo coleções de lugares tão distantes quanto a China e a Austrália, a Grã Bretanha e o sul dos Estados Unidos. Meu ponto principal é que coleções podem ser transportadas, física e cada vez mais digitalmente. Elas não são estáticas, e o que já foi dito sobre elas pode ser alterado. Um dos grandes projetos do Royal British Columbia Museum é um atlas da Colúmbia Britânica, como um gigante museu digital que reunirá arquivos e coleções de toda a província, incluindo aquelas de colecionadores particulares. É uma tentativa de recombinar conhecimentos dispersos e disponibilizá-los para todos de graça, onde quer que estejam. Jamais poderíamos reunir fisicamente esse material, mas a digitalização torna possível não só a sua armazenagem, como também surpreendentes novas formas de catalogação inteligente e pesquisa comparativa. É um momento de muito entusiasmo para museus, bibliotecas e arquivos que nos levará de volta às coleções físicas, com novos questionamentos, necessitando de novas representações e buscando novas investigações. O que essa união de coleções físicas requer é se libertar dos limites tradicionais do museu e dos 192


arquivos. Esses limites podem ser disciplinares, ou de comum acordo. Às vezes são limites de cultura profissional, que facilmente são mumificadas como uma elevada, todavia inflexível, série de protocolos. Há poucas coisas mais desencorajantes para um jovem curador cheio de novas ideias que ouvir “é assim que as coisas funcionam por aqui”. A única resposta apropriada me parece ser: “então mude!”. Esses limites também são, em um sentido bem convencional, regionais. Quando juntamos coleções é preciso baixar a guarda. Precisamos expandir o museu se quisermos garantir que aquele conhecimento continue vital, compreensível e relevante. Você não pode continuar em seu lugar, trabalhando quietinho no seu canto. Você precisa viajar; você precisa olhar ao redor; você precisa deixar entrar as influências externas. O Atlas da Colúmbia Britânica que estamos propondo incluirá todos os mais dispersos artefatos que pudermos encontrar, incluindo estrangeiros. A exposição sobre o ouro e a corrida pelo ouro vai passar por tudo, das histórias dos imigrantes chineses às rotas de comércio pela América. Em ambos os casos, para entender a Colúmbia Britânica é necessário envolvimento não só com a província, mas também com todo o mundo. Mesmo um tópico como as línguas na Colúmbia Britânica precisa se libertar da enciclopédia provinciana. Em uma época em que as pessoas estão trocando imagens e música pelo mundo, em que o presidente americano está aprendendo a dançar Gangman (não muito bem, segundo sua esposa), museus precisam ser internacionais e manter essa perspectiva internacional. Deixe-me terminar com um exemplo perfeito de museu de patrimônio imaterial que ilustra todos os pontos que estou expondo. O Museum of the Nisga’s People em Laxgalts’ap (Greenville), um pequeno vilarejo de 400 pessoas a duas horas de voo mais duas horas de carro ao norte de Vancouver. O museu abriu em 2011 com 300 artefatos devolvidos pelo The Royal British Columbia Museum. A arquitetura do museu é transparente, suas janelas refletem a forma de uma casa tradicional (maloca) e seu teto faz lembrar algumas das canoas que você vê no rio das proximidades, o rio Naas. Ele expressa as lendas tribais dos ancestrais que sobreviveram aos raftings no cume de altas montanhas. Ele capta a história do Txeemsim. Seus poderes sobrenaturais moldaram o rio para que mais salmões ali desovassem e ele ensinou seus seguidores sobre o valor sagrado do lugar. Escolher que história contar é, obviamente, algo que todos os museus no mundo têm de se perguntar, e não somente no seu início, mas precisam se perguntar constantemente. Museus são, por definição, containers. Mas talvez seja preciso virá-los do avesso e criar não apenas acesso, mas uma abertura genuína para outras vozes, outros caminhos. Precisamos – e a metáfora deveria ser amplamente aplicada – trazer “para dentro” do museu o que a ele não pertence. O patrimônio historicamente imaterial foi deixado de fora. Qualquer museu moderno que tenha fixado sua história é – para ser completamente honesto – nada mais que aqueles museus empoeirados do passado, com suas prateleiras amontoadas e displays imutáveis. Museus estão associados, por definição, à contenção. Mas talvez seja preciso virá-los do avesso e criar não apenas acesso, mas uma abertura genuína para outras vozes. Este é o convite para todos os diretores de museus e gestores de hoje. Para concluir, cito um pequeno trecho do romance de Audrey Thomas, Intertidal Life (Vida Intertidal). A história se passa na Ilha Galiano, próxima a Vancouver. Alice pegou um livro chamado A Spanish Voyage to Vancouver (Uma Viagem Espanhola para Vancouver): Desde que chegou à ilha, ela estava interessada na exploração na costa noroeste. A ilha tem nome espanhol, assim como várias outras no arquipélago, e ela se divertia imaginando esses capitães espanhóis cruzando através de Polier Pass (Passo de Polier). Todos aqueles homens navegando os oceanos do mundo... suas esposas... se prendiam às suas histórias de índios e cachoeiras, estranhas cerimônias e estranhas paisagens, assim como Desdêmona se prendeu às palavras de Otelo? E se as mulheres fossem as exploradoras?... Imagine um navio de mulheres, treinadas para serem hábeis no uso de todos aqueles instrumentos maravilhosos 193 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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quadrantes, cronômetros, bússola - capazes de se guiar pelas estrelas, sabendo a diferença entre um horizonte artificial e um real... É uma passagem esplêndida. Thomas nos lembra que o patrimônio imaginário da Colúmbia Britânica conecta todo o mundo, desde os primeiros instrumentos de navegação produzidos na China e no Oriente Médio, a Otelo, de Shakespeare. Ler essa autora não me deixa esquecer que nós precisamos, ao tentarmos enquadrar o passado ou o futuro, manter nossa perspectiva bem aberta.

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Preservando o patrimônio imaterial em casa: primeira nação Huu-ay-aht (Nuu-chah-nulth)

Angela Wesley Primeira Nação Huu-ay-aht (Nuu-chah-nulth), British Columbia, Canadá

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uem eu sou e de onde venho? Meu nome tradicional é Shii-shii-xwa-lahp. Meu nome em inglês é Angela Wesley, tenho orgulho de ser uma cidadã Huu-ay-aht, da Nação Nuu-chah-nulth e membro da casa Ahp-winisaht em minha Primeira Nação. Em casa, meu nome tradicional indica ao meu povo quem eu sou, da onde sou e, em muitos casos, minha conexão com outras Primeiras Nações da nossa área. O nome da minha casa Ahp-winisaht indica meu papel na minha nação e quem é o chefe da minha casa, o chefe da minha família. O nome da minha casa significa “a casa do meio”, um local importante em nossa comunidade: o lugar onde reside o chefe. Os territórios da Primeira Nação Huu-ay-aht estão localizados na parte mais ocidental do Canadá, na Ilha de Vancouver, em Colúmbia Britânica, ao redor de uma pequena comunidade chamada Bamfield. Nossa rica história Não sou uma líder política ou mesmo alguém que tenha tido o privilégio de estudar as culturas do mundo. Tenho vivido em minha comunidade, me empenhando para nos ajudar a vencer os desafios na recente história do meu povo e a encontrar caminhos para sobrevivermos e prosperarmos novamente em nossas terras, para restaurarmos e revivermos quem somos como povo. Na história da minha Primeira Nação, assim como na de muitas outras culturas indígenas no mundo, vivemos dentro de uma sociedade complexa, na qual leis rigorosas não foram escritas, mas foram bem compreendidas por todos. Nosso Tyee Ha’wilth (chefe hereditário) recebeu os direitos à terra, aos recursos e às águas dos nossos territórios e tinha como responsabilidade a guarda de tudo o que estava contido nesses territórios. A responsabilidade foi outorgada ao nosso Tyee pelo criador, Naas. Em nossa sociedade, cada indivíduo tem um papel fundamental e foi criado para aprender todos os requisitos para desempenhar esse papel. Nossos guardiões da praia, nossos pescadores, nossos baleeiros, nossos porta-vozes (speakers), nossos guerreiros, nossos artesãos, nossos construtores de canoa, nossos líderes espirituais, nossos curandeiros, nossos caçadores e muitos outros compreenderam que, se não cumprissem com seus papéis, toda a nossa comunidade sofreria com isso. 195 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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Nossas leis e nossas tradições eram rigorosas, e as consequências por quebrá-las, frequentemente severas. Então, sentimos o peso da história das inúmeras gerações antecessoras que habitaram cada polegada dos nossos territórios. Estamos cientes da responsabilidade que carregamos não só em relação ao passado, mas também por nossas crianças de hoje e do futuro. Nossa história colonial O relatório do British Columbia Claims Task Force (Relatório de Reivindicações da Colúmbia Britânica), de 1991, descreve parte da história colonial das Primeiras Nações: • A sociedade colonial foi uma sociedade de imigrantes cujos valores eram muito diferentes daqueles dos aborígenes. • A nova sociedade não aceitava os valores da comunidade, enaltecia o indivíduo empreendedor, favorecia o progresso ante a tradição, e acreditava que a evolução da humanidade encontrava-se não na harmonia com a natureza mas em suas conquistas e transformações. • A sociedade da Colúmbia Britânica se via como sucessora dos exploradores europeus, os quais acreditavam terem “descoberto” o desconhecido, como as terras desocupadas, livres para serem tomadas. • Milhares de anos da presença aborígine foram ignorados. • Às Primeiras Nações não foi concedido espaço na Colúmbia Britânica. • Aos indivíduos aborígenes foram negados reconhecimento, respeito, dignidade, ou qualquer oportunidade implícita na política de assimilação. • Quando a Colúmbia Britânica se juntou ao Canadá em 1871, o povo aborígine, que era a maioria da população dessa província não recebeu nenhum papel importante no processo da tomada de decisão política. • Os termos da União não faziam menção ao termo aborígene, mas garantia a autoridade da província sobre a criação de futuras reservas indígenas. O Canadá assumiu a responsabilidade pelos “Índios e terras reservadas aos índios”. E o governo da Colúmbia Britânica considerava “a questão da terra indígena” resolvida, e, consequentemente, considerava o governo federal responsável pelos assuntos pertinentes aos “povos aborígenes”. Os povos aborígenes da Colúmbia Britânica foram restringidos, por lei, ao uso e ocupação de pequenas partes de seus territórios tradicionais, as Reservas Indígenas, e passaram à tutela do governo federal, regidos por uma única lei federal, The Indian Act (Ato Indígena), a qual existe até hoje e rege literalmente todos os aspectos da vida dos povos aborígenes residentes nas Reservas, desde seu nascimento até sua morte. Se você for um cidadão (ou membro) de uma Primeira Nação, o que pode ser feito com as suas terras e seus recursos, como seu dinheiro pode ser empregado, como educar suas crianças, como a saúde será provida e como sua propriedade será administrada quando você partir desse mundo, tudo isso está sujeito à aprovação do governo do Canadá, através de seu Ministério Federal de Assuntos Indígenas (Federal Minister of Indian Affairs). Essa mesma lei, várias vezes na nossa história recente, baniu práticas como por exemplo o potlatch (nosso festival tradicional que governou nossas economias e consagrou e reafirmou nossas práticas sociais e governamentais), separou crianças de suas famílias sob a imposição de um sistema educacional residencial que proibiu o uso de nossa língua e alienou de nosso povo às nossas terras, recursos e territórios. Em suma, The Indian Act nos fez completamente dependentes dos programas de ajuda do governo federal, o que nos levou a um estado de dependência. 196


O período da colonização teve efeitos devastadores na nossa cultura e na nossa existência. Quanto às nossas línguas tradicionais, por exemplo, a Colúmbia Britânica é o lar de 60% das línguas das Primeiras Nações no Canadá, contando com 34 línguas distintas. Contudo, o número de falantes de todas essas línguas vem sendo reduzido para todas elas, e um relatório de 2010 expôs que todas as línguas das Primeiras Nações da Colúmbia Britânica corriam sério risco ou já estavam em via de extinção. Falantes fluentes somam apenas 5% do total da população das Primeiras Nações da província, sendo a maioria deles idosos. Estatísticas mostram consistentemente que as condições sociais e econômicas dos povos das Primeiras Nações no Canadá estão muito aquém da média nacional, com baixa qualidade de saúde e educação, água potável e moradia, além dos mais altos índices de desemprego, encarceramento e suicídio no país. Hoje, somos apenas uma fração da população que éramos uns anos atrás, em grande parte devido às doenças introduzidas que devastaram a população aborígene em toda a Colúmbia Britânica. Nos tempos modernos, por diversas razões (especialmente por sua localização isolada, falta de empregos, de acesso à educação, aos serviços de saúde e outros), somente uma pequena porcentagem de nossos cidadãos ainda consegue morar “em casa” (at home); somente cem de nossos setecentos cidadãos moram em nossos territórios (home territories). Isso é o que está acontecendo em muitas Primeiras Nações na Colúmbia Britânica e nós compartilhamos o objetivo de vermos nossos povos retornando para suas terras natais, para viver em comunidades sãs, onde tenham acesso à educação e aos serviços de saúde, onde tenham várias oportunidades de emprego e participem de uma economia sólida e em desenvolvimento e onde a prática de nossa cultura e língua façam, mais uma vez, parte de nossas vidas quotidianas. Sobreviventes! Apesar de quase um século e meio de opressão, as Primeiras Nações conseguiram sobreviver. Minha Primeira Nação bem recentemente quebrou os grilhões do The Indian Act através do moderno processo de elaboração de tratados da British Columbia (modern-day British Columbia treaty-making process). Junto com outras quatro Primeiras Nações da Ilha de Vancouver, somos signatários do acordo, O Tratado das Primeiras Nações (Maa-nulth) com o governo do Canadá. Muitas outras nações estão começando a seguir um caminho similar, ou estão aproveitando outras vias que aos poucos se tornam disponíveis para nos livrarmos dessa legislação arcaica. Desde 1º de abril de 2011, minha Primeira Nação se autogoverna novamente sob nosso tratado e nossas próprias leis, definidas para exprimir mais precisamente quem somos e de onde viemos. O tratado nos oferece meios como: posse de terras e recursos, autoridades governantes para assuntos críticos que afetam nossos territórios e nossos recursos, e recursos financeiros adicionais. Com essas ferramentas, nós assumimos novamente o papel de governar nossas próprias vidas. Pretendemos trabalhar duro para gerar mais riquezas, com as quais poderemos reconstruir nossas economias e nossas estruturas sociais tradicionais, a fim de nos possibilitar reviver e agir como somos em nossas terras natais. Ao mesmo tempo, queremos que nossos cidadãos participem completa e igualmente do “novo mundo” no qual vivemos. Apenas começamos esse trabalho e temos objetivos grandiosos e orgulho de estarmos fazendo isso. Passo a passo Ao longo da preparação, e a participação em mais de 15 anos de intensa negociação com os governos do Canadá e da Colúmbia Britânica, do moderno processo de elaboração de tratados (modern-day treaty), aproveitamos a oportunidade e começamos a reconstrução de nossa Primeira Nação, reivindicando e nos reafirmando em nossos territórios. Tiramos proveito de cada oportunidade e aproveitamos cada vitória legal em favor das Primeiras Nações na Colúmbia Britânica e no Canadá. A fim de assegurar nosso direito à Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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ocupação de nossos territórios, precisávamos definir cuidadosamente nosso lugar tradicional, territórios que nunca abandonamos. Esse processo nos ajudou, em muitos casos, a reaprender ou reforçar o entendimento coletivo do nosso relacionamento histórico e íntimo com nossos territórios, os quais estiveram alienados por gerações no período colonial. Entre outras coisas, temos trabalhado com as seguintes iniciativas: • Completamos um estudo detalhado dos costumes no nosso território, identificando perto de mil locais de uso tradicional, topônimos tradicionais, sítios históricos etc; • Estabelecemos novas relações com o governo da Colúmbia Britânica acerca de nossos territórios ricos em florestas, requerendo que companhias florestais nos consultem antes de extrair os recursos dessas áreas e submetemos áreas de extração florestal a um estudo mais intenso em que haja evidências de nosso uso tradicional; • Chegamos a um acordo com o Serviço Nacional de Parques (Parks Canada) para a inclusão da Kiix-in, nossa antiga capital, como sítio histórico nacional, a fim de que todo o Canadá e todo o mundo possa aprender sobre a história de nossos territórios; • Preservamos lugares sagrados através de nosso tratado e outros meios, e restabelecemos os nomes originais de pontos geográficos chaves em nossos territórios; • Trabalhamos com indústrias para começar a recuperação do principal rio dos nossos territórios, onde acontece a desova de salmões, um rio que chamamos de “o coração do povo” (the heart of the people); • Construímos a House of Huu-ay-aht com réplicas das imagens de boas-vindas que historicamente se encontravam em nossa antiga capital Kiix-in; • Construímos um novo edifício para a administração e temos planos de, no futuro, abrigar, empregar e cuidar de nossos povos em nossos territórios; • Estabelecemos uma corporação de desenvolvimento econômico para promover negócios e empreendedorismo entre nossas ações e nossos cidadãos; • Estabelecemos um “ninho de língua” (language nest), para o qual nossas crianças em idade pré-escolar e seus pais possam ir para aprender nossa língua e nossa história diretamente dos anciães de nossa Nação; • Continuamos revivendo e fortalecendo nossos potlatch e festivais (recentemente, minha mãe, a matriarca de sua família, organizou um potlatch no qual quatro gerações de nossa família, incluindo 75 pessoas, receberam nomes tradicionais ou tribais). • Com o tratado, ganhamos reconhecimento em nossa terra natal e desenvolvemos nossa capacidade de preservar nossa língua, nossa cultura e nossa identidade única. Nós, dessa forma: 1) Ganhamos a propriedade, o controle e/ou o acesso aos nossos territórios e recursos; 2) Progredimos na habilidade de desenvolver nossa própria riqueza, com a qual seremos capazes de melhorarmos a vida do nosso povo com empregos, educação, gestão de nossas terras e recursos, cultura e identidade. Escrevendo e aprovando nossa própria constituição e nossas próprias leis, nós podemos: 1) Governar a nós mesmos no futuro, baseados em quem somos e em nossa própria perspectiva do mundo; 2) Restabelecer os papéis governamentais de nossos chefes hereditários Ha’wiih (hereditary chiefs); 3) Apresentar nossos princípios e valores próprios de como nos governar no futuro; tirar o melhor das práticas governamentais tradicionais que funcionaram por milhares de anos e traduzi-las de forma significativa para o contexto atual.

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Essas e outras iniciativas estão nos ajudando a restabelecer uma forte base sobre a qual reconstruir nossa nação. Esses passos podem parecer pequenos na visão macro das coisas, contudo são passos muito


significativos que demonstram nosso desejo de reconstruir nossa nação e nos restabelecermos em nossos territórios, nos esforçando para conservar e reviver nosso rico passado para as crianças de hoje e do futuro. Vencendo os desafios Entre as 203 Primeiras Nações da Colúmbia Britânica há uma vasta gama de costumes e conhecimentos tradicionais de nossa história imaterial. Admiro imensamente as diversas Primeiras Nações da Colúmbia Britânica que compartilham nossa história colonial, mas que mantêm fortes suas línguas, suas culturas e continuam vivendo tradicionalmente. Embora eu tenha falado aqui dos desafios da minha Primeira Nação, na realidade, nós muito provavelmente estamos bem no topo daqueles que conseguem praticar nossa cultura. Muitos costumes tradicionais ainda existem na nossa nação atualmente e, em muitos casos, estão se fortalecendo. Quando nossos homens cantam e nossas mulheres dançam, podemos sentir, lá no fundo, quem somos e de onde viemos, e temos orgulho disso! Estamos dando passos pequenos e persistentes, mas que são necessários para garantir a sobrevivência de nossa cultura em um mundo no qual há muitas distrações externas, especialmente para os mais jovens. O mundo está se transformando rapidamente. Na nossa realidade histórica, nosso mundo e nossas vidas eram cíclicas ou circulares, tendo como base nossa subsistência sazonal e necessidade de sobrevivência. Esse conhecimento vem de como sobrevivemos em nossos territórios e de como governamos nossa comunidade. Não somos mais capazes de depender dos recursos do passado. Uma força maior guia nossos ciclos agora – televisão, computadores, internet – e em progressão linear invade nossos caminhos cíclicos e causa tensões e conflitos tremendos. A competição pelo tempo e pela atenção de nossas crianças é enorme e agora enfrentamos o constante desafio de tentarmos encaixar nossa conexão circular na realidade atual. Precisamos trabalhar duro para encontrarmos e criarmos o equilíbrio que nos permitirá viver nesses dois mundos que são a nossa realidade. Enquanto os museus se perguntam como melhor abrigar, exibir e apoiar a preservação do patrimônio imaterial – nosso conhecimento, ações e habilidades tradicionais; nossa língua, a história oral, técnicas de arte, rituais, lendas e topônimos – como Primeiras Nações, nós lutamos para fazer o mesmo em casa, nas nossas comunidades. Tão importante quanto, ou talvez ainda mais importante, nós, as Primeiras Nações, precisamos cada vez mais encontrar um modo de mostrar e enfatizar a importância de revitalizar nossa cultura para nós mesmos. De minha parte, vou aproveitar a oportunidade de trabalhar com qualquer indivíduo, grupo, museu ou outra cultura que compartilhe o mesmo objetivo. Para nós, nossa nova jornada começou logo após a meia-noite do dia 10 de abril de 2011. Por volta de 23h45min do dia 31 de março, em frente a casa Huu-ay-aht, muitos de nossos cidadãos se reuniram ao redor do fogo e, como em uma cerimônia, queimaram o The Indian Act, página por página. Então, entramos na casa, nosso Tyee Ha’wilth jurou sobre nossa recém-formulada legislação Huu-ay-aht, e eles oficialmente promulgaram um conjunto de leis que nos garantiria uma base sólida para nosso futuro e o futuro das gerações futuras. Assim como no dia efetivo de nosso tratado, começamos a exercer nosso poder em relação à preservação da nossa cultura, a gestão de nossas terras e recursos, a exercer nossos direitos e a administrar nosso próprio governo. Nosso governo agora é dirigido pela nossa própria lei suprema: a Constituição Huu-ay-aht, um documento criado em nossa nação pelos nossos cidadãos, um documento fundamentado em nossa cultura e tradições. Agora é responsabilidade de nossa liderança e de cada um de nossos cidadãos, como indivíduos, trabalharmos juntos para transformarmos as condições econômicas e sociais de nossas famílias e nossa nação. Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS

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Na ocasião em que a legislação da Colúmbia Britânica foi assinada, em 2007, meu tio e conselheiro chefe precedente, Robert Dennis, disse: –Cada um de nós precisa se perguntar: O que eu posso fazer para melhorar meu estilo de vida? Temos muito trabalho a fazer. –Podemos contar com a sua ajuda? –Sim! Como? Vamos falar sobre isso! Nosso tratado é tudo o que o The Indian Act não é. Ao se tornar efetivo, podemos planejar e construir um mundo diferente. Nunca mais seremos constrangidos pelo sistema que nos sufocou e oprimiu por um longo tempo. Hoje voltamos a ser a nação determinada e autogovernante que fôramos um dia. E, assim, estabelecemos altos padrões para nós mesmos, tendo como base os sólidos princípios e valores do passado. Está tudo funcionando perfeitamente para nós? Ainda não. E muito provavelmente não será nunca perfeito, mas que fique claro que está muito melhor que nos tempos do The Indian Act. Vai levar um tempo para pegarmos a prática de governarmos a nós mesmos de novo; vai levar um tempo para gerarmos riquezas e alcançarmos o objetivo que temos para nossa nação e nosso futuro e continuarmos despertando, restabelecendo e revivendo quem somos. Nós nos governávamos no passado, mas agora enfrentamos vários desafios e realidades que não existiam antes. Estou adorando minha nova aventura no mundo dos museus e estou entusiasmada de ter um mentor como o professor Jack Lohman para me ajudar a entender nosso mundo em perspectivas diferentes. Assim como ele, também quero que as pessoas sintam o drama e o entusiasmo da cultura. Disse ele em sua apresentação que aquilo que aprendemos no edifício é, idealmente, reforçado pelo ambiente onde aprendemos. Espero que possamos desfrutar de ambientes que complementem uns aos outros em museus e “em casa”, em nossos territórios.

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Chuu, Klecko... obrigada pela oportunidade de compartilhar minha história.


MAMIWATA: dança em deslocamento

Denise Mancebo Zenicola Professora do Departamento de Artes e Estudos Culturais – RAE, de Rio das Ostras-UFF e Colaboradora do NEPAA-UNIRIO

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ste artigo está inserido em um longo projeto de estudo do mito Mamiwata, apresentado sob a forma de espetáculo de dança contemporânea, no qual o movimento das identidades da cultura afro-brasileira é abordado. Na experiência e prática de montagem cênica de Mamiwata, procuro compreender a dança afro-brasileira como meio estético e instigante campo para reflexões e fusões de técnicas ocidentais e orientais, com base em uma fenomenologia do corpo e sua relação com processos artísticos. Devido a sua errância e à busca da alteridade presentes no mito Mamiwata, aponto caminhos possíveis das relações entre corpo e arte na contemporaneidade. A metáfora da vida como uma “viagem”, bem como de proposta artística, situa um corpo dramático porque deslocado do real, um corpo imbricado de tensões porque potencializado nas cenas. “Porque vivemos em um tempo de perguntas fortes e respostas fracas” (SANTOS, 2008, p. 45). Mito arquetípico O mito de Mamiwata, primariamente uma deusa da água Ewe está presente em diversos países da África, como Togo, Benin, Nigéria, Camarões, Congo, entre outros. Ele tem sua iconografia representada como uma mulher/sereia que carrega em seus braços erguidos, uma cobra. Com mais de dois milênios de existência, renasce com intensidade no período das sucessivas invasões europeias ao continente africano, por volta do século XVI. Sua performance mulher/peixe, mulher/sereia, presente em outras tradições, chega ao Brasil parcialmente representada pelos Orixás Iemanjá, Oxum e Olokun, personificações de princípios supremos no sistema de valores e de explicação da existência nas culturas iorubanas. Mamiwata faz parte do panteão de bens Vodun, com muitos seguidores para o culto da real Dan Python, cultuada pelos povos Mina, Adja, Ewe, Fon, Iorubá e Ibo. (DREWAL, 2008, p. 153) No Benin, Mamiwata está presente em seus ritos específicos, bem como, no carnaval introduzido pelos afro-brasileiros, os Agudás, também chamados retomados, em sua volta à África. Este carnaval, o Buriyan, é um meio de se recriar o microcosmo cultural utilizando os usos e tradições vindas do novo mundo. Neste, é comum Mami201 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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wata apresentar-se como figura mascarada e principal personagem feminina, tendo em sua roupa as cores verde e amarelo em homenagem ao Brasil. Este espetáculo é uma criação artística que funciona como uma marca de coesão cultural identitária e forma de conservar a memória cultural. Segundo Drewal, as palavras Mami e Wata são enraizadas no Egito antigo e Etíope (copta), Galla e língua demótico. Mami é derivada de Ma ou Mama, que significa verdade/sabedoria, e Wata é uma corruptela da palavra egípcia Uati, (ou UAT-ur, significando oceano de água), e os Khosian (Hottentot) Ouata que significa água (2008, p. 385). Dentro do princípio arquetípico Junguiano, esse mito seria um inconsciente coletivo para essas sociedades, com uma organização prévia de comportamentos, em que os conhecimentos estariam guardados. Esses comportamentos, exemplares ou não, seriam processados, através da função simbólica, organizando a consciência coletiva, a que poderíamos chamar de ideias de base (JUNG, 1986, p.69). Para Bachelard (1998, p.25), esse mito funciona como uma recuperação dos anseios e devaneios antigos da humanidade, armazenados no imaginário coletivo. Ambivalência, dualidade, sabedoria, adaptação e encantamento são algumas das características que definem este arquétipo mitológico Vodun em seu ciclo ritual. A cobra que carrega no corpo representa o poder sobrenatural e sua constante mutação associada às trocas da pele de cobra. Mamiwata é também uma capa protetora que envolve os povos e pune os grupos sociais que perderem suas origens e fundamentos. Por associar três mundos, o animal, humano e espiritual, torna-se uma criatura/mito sobrenatural, é deste encontro que vem seu poder e sabedoria. Seu ritual tem um claro sentido interno inscrito na cosmologia e na forma de pensar desses povos em específico, nos quais sua presença é marcante, como pode ainda relacionar-se a outros contextos, como os provocados nas relações diaspóricas, agregando alguns elementos do mundo novo num quadro mais dilatado e que articula esferas mais ampliadas de inter-relações culturais. Deslocamento e trânsito

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O mito se revela em “seu trânsito e fortalece um locus para representação de vivências diaspóricas” (HALL, 2003, p.28). No Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, pode-se usar como exempl de um desses caminhos a atual estrada BR 101. A presença de remanescentes de Quilombos na região, entre eles Rasa, Preto Forro, Caveira, Comunidade de Botafogo, indica o intenso trânsito de escravos, ocorrido por mais de 200 anos. Neste percurso, também ocorria intensa fruição de contos e mitos que revelavam performances de constante construção/reconstrução de identidades profano/religiosas que apresentamse, sobretudo, como práticas de comportamentos. O que se observa é que este legado tradicional, pela sua constante fluidez e movência (BAUMAN, 2001, p.87), assume inusitadas formas que serão o esteio para se pensar a construção identitária. As sacralidades africanas, na diáspora, assumem novos contornos dinâmicos e descentrados, entendendo tais contornos não como uma expressão do caótico nem do inútil, mas como resultante do pensamento humano direcionado a uma profunda relação de deslocamento horizontal (geográfico) e vertical que entra em outro tempo, o tempo circular, reatualizando o tempo do mito, o tempo do humano. No vetor criado a partir deste cruzamento, conceitos, fundamentos, nomenclaturas, mitos e ritos dos povos Mina, Adja, Ewe, Fon, Iorubá e Ibo, em seus respectivos universos cosmogônicos e encenados no Brasil, vão sendo retramados. Percebe-sea convivência deste mito inter-religiões, que cruza e entrecruza realidades de interculturação. Através da oralidade, que, longe de ser invenção é uma narrativa que repete ações já vivenciadas, Mamiwata cumpre seu estatuto de mito que apresenta o homem em suas questões, em existências mais profundas e ao mesmo tempo gerais, em suas relações culturais, em suas procuras.


Dramaturgia no corpo Partindo de pesquisas na performance da dramaturgia do corpo e do universo mítico de Mamiwata, utilizamos a coreografia e o trabalho do artista pesquisador/intérprete para desenvolver este passado mítico e ao mesmo tempo real, atual e contemporâneo em seus sucessivos deslocamentos e justaposições. Fluxo e territorialidade são características desse arquétipo que corporalizamos através de um encontro de técnicas do corpo e videodança. Desenvolvemos uma História de fluxos e refluxos como a nossa História; de um povo marcado por profundos movimentos de deslocamentos, da saída forçada ou não de suas terras. Pensando sobre essas Histórias e tantas histórias, sentimos a necessidade de fazer emergir e de nos imergir nessa história de êxodos, procurando criar uma consciência corporal através de corpos e identidades também em constante fluxo. Uma mãe/mulher que para continuar como tal altera e alterna sua identidade sob mil corpos e máscaras, às vezes para disfarçar outras, para encantar outras, para punir os que se esquecem de suas origens, nossa memória ancestral. Na experiência e prática de montagem cênica e dramaturgia que efetuamos no grupo Muanes dançateatro, Mamiwata reafirma-se como um instigante tema para reflexões e propostas artísticas pela sua conotação de feiticeira, mãe, mulher e sereia. Nossa tentativa é estabelecer o que, segundo Richard Schechner, é um “comportamento restaurado”, para poder efetuar aspectos da performance na cena, reatuar em seus aspectos corporais, sonoros e estéticos como uma forma de agenciamento da memória ancestral, na medida em que tradição e memória vão sendo reelaborados no presente (2003, p.38). O princípio de experiência proposta por Turner (1986, p.102) e o movimento que vai do mito ao teatro, em nosso caso à dança, proposto por Schechner (1988, p.39), trazem uma perspectiva interessante, na medida em que nos possibilita criar ciclos rituais (cenas) em dimensões contemporâneas de ações rituais passadas e ainda presentes, por meio de imagens e performances que projetam possibilidades de experiências já vividas. Uma estética para além do Teatro Realista, para além da Dança Contemporânea. Tratamos cantos, danças, imagens projetadas, nomes e objetos como integrantes de um repertório ancestral herdado, presentificado no corpo que dança. A performance Vodun de Mamiwata situa então um corpo dramático porque deslocado do real, um corpo imbricado de tensões porque potencializado nas cenas em ações físicas conflitantes e às vezes contraditórias, que devem ser “reencenadas”, repetidas, pois a cada repetição, a cada ciclo ritual as ações remontam à origem da própria sociedade que a criou. Como um mito vivo, tempo, espaço e narrativa se articulam e ganham sentido de acordo com o ajuste cultural deste mito no contemporâneo. Trata-se de uma discussão que envolve a passagem de um mundo mitológico aos estudos da performance, trazendo uma ampliação do “lugar olhado das coisas”, para utilizar a expressão de Roland Barthes (1990, p.58), ao “lugar sentido das coisas” e nesse mobilizar a produção de cenas para poder efetivar uma abordagem performativa de rituais. Mas Mamiwata é sempre um mito contemporâneo, mesmo ali onde parece desaparecer, discreta, talvez porque protegida pelas máscaras corporais, ou seja, pelos deslocamentos de identidades. Por isso nossa escolha pelo uso em paralelo de imagens virtuais juntamente com algumas cenas, pois estas são imagens, representações contemporâneas das identidades, o mito incorporado pela contemporaneidade do próprio mito. No palco, corpos dançam dialogando com estas imagens virtuais, representações culturais, corporais, individuais e coletivas... É partindo desse movimento, ponto dinâmico onde convergem os âmbitos pessoais, sociais e culturais, que procuramos sensibilizar o público para a importância das construções de identidades, na qual todos nos movimentamos quando nos deslocamos. Assim como não pensar e não refletir acerca desses deslocamentos e “alterações”? Por que não estar presente ou sentir a presença dessa vontade e prazer de colocar e tirar máscaras corporais? Como não se 203 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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sentir tomado por esse rito e por esse mito tão contemporâneo e presente? Assim, justificamos nosso trabalho por ele proporcionar uma série de reflexões críticas no âmbito da cidadania. Nossa proposta é que através do corpo/bailarino/vídeo possamos trazer à luz esses signos não tão presentes na História de nossa cultura e país na atualidade, mito de uma África/Brasil/África. Nosso objetivo principal é levar ao público uma experiência artística e investigativa de movimentos presentes, ora ocultos, ora manifestos na história de nossa formação cultural e por isso também de nossos corpos. A ancoragem no corpo foi decisão importante por permitir fazer a passagem da experiência coletiva para a cena enquanto um processo performático, contribuindo para a efetivação do ciclo ritual. Como performance, a ação cênica encerra uma matéria que não pode ser descuidada: o meio possível para que a comunicação se realize de forma ativa. Diversos são os desafios que a montagem traz como questões relacionadas à performance: usos do corpo, o universo do sensível, o cenográfico, bem como o musical, que colocam questões importantes quando pensadas em um contexto de diálogo intercultural. Com relação a trilha sonora, inicialmente a proposta era criar uma trilha conceitual que desse conta de todo o espetáculo como uma base sonora. Entretanto com o desenvolvimento das composições coreográficas, este princípio caiu por terra. Ficou claro que Mamiwata é descontínua, é multifacetada, é plural, daí optamos por utilizar uma trilha mixada de diversos fragmentos de músicas africanas, selecionadas de regiões onde o mito é presente, músicas brasileiras, ou melhor, afro-americanas em geral. A criação sonora nasce, então, da forma das junções e fricções que estas sonoridades, às vezes aparentemente desconexas, apresentam ao serem mixadas, fundidas, sampleadas. Mamiwata consolida-se então como uma pesquisa corporal prático-teórica para montagem do espetáculo de dança-teatro e que faz parte do projeto de pesquisa Kiriê de Griot, composto de pesquisa etnográfica de danças, montagem e apresentação pública em Dança-teatro e consequente produção, edição e circulação de vídeo documentário em Vídeo Dança, sediado no Polo Universitário de Rio das Ostras, da Universidade Federal Fluminense – UFF. Um projeto multiarte em Dança/teatro/vídeo que visa rememorar a rota ilegal de escravos do Norte Fluminense ao Rio de Janeiro, o século XIX, atual estrada BR 101, rota que possivelmente foi um dos caminhos que trouxe este mito até nós. Do corpo e seus usos

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Neste espetáculo fazemos a hibridização de técnicas de Dança ocidentais e orientais, aproximamos ainda as chamadas danças contemporâneas e as tradicionais; o resultado é Dança Contemporânea, Dança Afro-Brasileira, Dança Butoh e Danças do Benin, que atravessam o mesmo corpo. O corpo enquanto espaço sensório está no centro da nossa ação performática e ainda como foco de deslocamento de pontos de vista para as reelaborações destas experiências e fusões de um passado/presente do tempo mítico, passado e presente de técnicas de dança. Nosso entendimento de fusão, adaptação aos corpos e centralidade do corpo na discussão artística nasce da necessidade de encontrar um corpo que desse conta deste mito e da nossa vontade de transformar a palavra em ossos, tendões e carne; a vontade de canibalizar essas informações culturais apresentadas por meio dessas técnicas. Essa canibalização vai resultar num tipo de criação que não existe nem no Butoh japonês nem nas danças afro-brasileiras ou do Benin. Essa opção inicia sobre o que é ser brasileiro num mundo tão internacionalizado. Instiga-nos manter nosso vínculo cultural, apesar de toda essa mistura e das adaptações e mixagens que nossos corpos farão para receber esses princípios estrangeiros e os familiarizar. Em meio à montagem, criamos e desenvolvemos ações teatrais performáticas em blocos temáticos sob a forma da expressão do corpo, nascidas literalmente na pesquisa do encontro destas linguagens para retomar tradições antigas em técnicas contemporâneas e também ratificar a ideia quase esquecida de que o dançarino


não dança para si, mas para reviver algo muito maior, o seu mito pessoal. Calcamos nosso trabalho nos arrojados elementos do Butoh, uma forma considerada marginal de expressão, e que passou a ser chamada de Ankoku Butoh; dança das trevas, hoje, simplesmente Butoh.Trata-se de uma dança contemporânea, que expressa ao mesmo tempo ideias diversas. Mobilidade e/ou imobilidade das partes do corpo: os braços, as pernas, o tronco, o pescoço e a cabeça levam o performático a mergulhar na viagem corporal e pessoal e conduzem à poesia. Nossas feridas do corpo, eventualmente, fecham e cicatrizam. Mas há sempre feridas escondidas, aquelas do coração, e se você sabe como aceitar e suportá-las, você descobrirá a dor e a alegria que é impossível expressar com palavras. Você conquistará o domínio da poesia que só o corpo pode expressar” define (Kazuo Ohno apud GREINER:1998, p.49). Os dançarinos do Butoh quase não usam vestimentas. Para eles a roupa veste o corpo e o corpo, a alma. E foram desses princípios de justaposição de ideias que nos fez aproximar desta técnica de dança, bem como, do seu envolvimento com os elementos da natureza. O Ma, um princípio oriental que remonta à mitologia japonesa e uma forma de tornar o invisível visível na fusão do espaço com o tempo, profundamente complexo ao entendimento ocidental, tem no Butoh a exploração do espíritos que habitam o Ma. Segundo Baitello Jr., o sistema desse princípio Ma apresenta nove etapas de experiências (apud GREINER, 1998, XII, p.121). Himorogi – representa o lugar sagrado e o lugar da sua criação; Hashi – significa o espaço e o tempo entre duas coisas ou acontecimentos, suas bordas e intervalos; Yami – mundo das trevas e conjuga o mundo da escuridão para o da luz; Suki – a abertura; Utsuroi – processos de mudança; Utsushimi – representa a projeção do físico na realidade, o espaço onde a vida é vivida; Sabi – imagem de um movimento preciso; Susabi – a transgressão das regras, falta de harmonia, caos e desordem de tempos modernos; Michiyuki – pausas e paradas das viagens. Nas danças tradicionais do Benin, procuramos captar suas características da busca do movimento no inconsciente comum a todo homem: a beleza e a decrepitude, a simplicidade e a complexidade, o cômico e o trágico, a profunda concentração, quase um transe, alavancado pela dança. Na prática, os joelhos mais dobrados, curvatura da coluna/escoliose mais pronunciada, o tronco inclinado (quase um plano inclinado, não relaxado e alongado para frente), o diafragma aberto, projetado pela ampliação do plexo, valorização do sapateado no chão, guizos nos tornozelos, a dança mais para si, na qual o performer é quem dança, a dança é um solo individual, criativo e pessoal, é um performer intérprete, grande alongamento para trás dos braços, pela ondulação dos cotovelos. Um dança que não evidencia o rebolado e sim os glúteos elevados para trás. Há nela delicadeza no tocar o chão, pouco salto e, quando ocorrem a ênfase do salto. Ela é para baixo, é envolvimento suave, delicadeza e velocidade baixa, pernas mais unidas e com o maior deslocamento do tronco para a frente, dança num ritmo constante e lento, evoluindo em pequenos passos, como deslizando um moto contínuo em suave sapateado dos pés, dá a sensação do desequilíbrio precário e movimentação circular. Nessa dinâmica, ressaltamos ainda a relação do corpo com os sentidos da natureza, o enraizamento dos pés, a leveza dos movimentos das mãos e braços se ramificando ao tempo presente e ao mesmo tempo apresentando movimentos de conhecimentos ancestrais. Na Dança Afrobrasileira, mais especificamente a executada para palco e praticada no Rio de Janeiro, pesquisamos uma em que o tronco fica mais verticalizado, embora com flexão de joelhos. Ela tem ainda, maior oscilação lateral da coluna, tronco com ondulação céfalo-caudal, espiralar, movimentação 205 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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mais centrada no tronco, que oscila treme e rebola, a valorização do quadril no movimento. Há preferência para a movimentação coreografada, decodificação do movimento padronizado, dança mais para fora com maior espetacularidade, maior exposição do corpo, braços em plano baixo e ou médio, e pouco uso no alto. Quando elevados, há força nas mãos, que geralmente estão contraídas, pés tocam e/ou batem no chão, presença de pulos e saltos com ênfase em cima, maior evidência do rebolado em detrimento do levantamento do sacro, joelhos menos dobrados, pernas mais afastadas, maior base e equilíbrio no chão, o movimento é mais sexual que sensual, forte e veloz, mais energético e saltitante; provocador, vigoroso, duo em grandes rebolados, união de corpos, ombros ondulam com força em movimento que faz os seios balançarem, corpo mais exposto. Corpo que mostra mais, sexualiza mais, corpo que foi escravizado. Se é através da alma, emoções da vivência de cada um, que são criadas as sequências gestualísticas que formam o Butoh, nas danças africanas do Benin e afro-brasileiras, a força e a performance ora vigorosa, ora sutil de gestual minimalista apresentam o vigor do movimento potente e tribal, de grupo como um todo; uma tensão entre a apropriação e a violência, um diálogo entre a performance pessoal e coletiva. Se no Butoh a maquiagem melancólica e o branco sobre o corpo fazem com que os músculos sejam realçados e suas formas expressivas delineadas em movimentos essenciais numa despersonalização neutra e asséptica, os corpos se valorizam pela ausência de pelos e a denotação da força pelo silêncio, já as danças afrobrasileiras viabilizam a recuperação da vitalidade e a força do corpo, de um corpo domesticado ou reagente pelas atividades cotidianas e esmagado pelas regras estabelecidas que pulsam em movimento de força pela presença. Como produto desses sucessivos encontros de culturas e técnicas do corpo, trabalhamos em Mamiwata o desenho de cada gesto simbólico que estimula ideias, associações e emoções, tramando uma visibilidade: as intensidades, os afetos que atravessam os corpos, a música, os movimentos que são expressos através dos gestos, a memória dos atores bailarinos que os motiva na criação das cenas. Realçamos então os fluxos migratórios no corpo, princípios de deslocamento, a análise desses personagens errantes, a viagem como tema coreográfico, as formas de representação do estrangeiro e da pertença. Finalizamos provisoriamente com a afirmação de que tratamos o corpo que se desloca como o veículo de expressão da errância enquanto busca da alteridade, a metáfora da vida como uma “viagem”, e sempre lembrando que a menor distância entre dois pontos é a Dança. Axé! Referências BACHELARD, Gaston A. Poética do espaço. São Paulo; Martins Fontes, 1998. BAUMAN, Zigmund. Modernidade líquida. Rio de Janeiro; Jorge Zahar, 2001. DREWAL, Henry J. Sacred waters. USA; Indiana University Press, 2008. GREINER, Christine. Butô pensamento em evolução. São Paulo; Escrituras, 1998. HALL, Stuart . Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. SANTOS, B. de S. Para além do Pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes, Revista Crítica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro; 78, 3-46, 2008.2. JUNG, Carl. Gustav. O Desenvolvimento da personalidade. Petrópolis; Vozes, 1986. SANTOS, J. R. A inserção do negro e seus dilemas, Parcerias Estratégicas. Rio de Janeiro; 6, 110-154, 1999. SCHECHNER, Richard. O que é performance. In: Revista O percevejo, Programa de Pós Graduação em Teatro, Rio de Janeiro; UNIRIO. Nº11, vol. 12, RJ, 2003. TURNER, Victor. Dramas, fields and metaphors. Ithas, Cornell University, 1974. 206


Interpretações Ticuna sobre a iconografia das máscaras rituais

Priscila Faulhaber Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Amazonas – UFAM e do Programa de Pós-Graduação em Museologia da UNIRIO

O

que os Ticuna dizem de seus artefatos

A presente comunicação visa promover reflexões a partir das interpretações Ticuna geradas quando contemplam seus artefatos rituais. Entende-se aqui tais interpretações como reações polifônicas na interação com artefatos etnográficos. Rompe-se assim com a mera fascinação com a visualidade de tais objetos, procurando-se desvendar o assombro imagético e mostrar que os discursos presentes nos relatos indígenas sobre a iconografia e a materialidade de tais objetos implicam uma busca de conhecimento sobre o pensamento Ticuna. Para além do sentido estético, tais intepretações implicam uma ressonância da cultura Ticuna que enriquece o campo imagético de tais artefatos. Cotejo as interpretações Ticuna sobre os artefatos coletados por Nimuendaju nos anos 1940 com os comentários dos próprios artesãos sobre os artefatos produzidos em pesquisa de campo recente. Os relatos dos índios sobre estes artefatos remetem à “festa da moça nova”, evocando histórias contadas na iniciação da “moça nova” em sua festa de puberdade, na qual a cosmovisão está associada à temática da fronteira. Após a entrada em cena, nesse ritual, de máscaras produzidas pelos próprios Ticuna, é representado o imaginário da relação com as forças da natureza, animais lendários ou ancestrais Ticuna. As máscaras e os relatos são associados com os lugares de proveniência dos Ticuna e dos outros que com eles interagem: os lugares habitáveis, como as colinas (“morros”) e as áreas próximas da floresta, e os confins inacessíveis da floresta e das áreas mais elevadas (“montanhas”) consideradas território dos entes sagrados e das forças desconhecidas. Considerarei um artefato coletado por Nimuendaju nos anos 1940 e dois artefatos produzidos por Ticuna, com quem interagi em Puerto Nariño, cuja iconografia expressa a visão Ticuna sobre as estrelas worecü, relacionadas com o ritual de puberdade feminina que consiste em um da fertilidade da terra e da mulher. Tais estrelas estão relacionadas com outros ícones manifestos tanto na iconografia das indumentárias de dança como nas figuras esculpidas nos bastões cerimoniais e nos trançados (FAULHABER, 2003). Entre as figuras recorrentes associadas ao ritual de puberdade feminina destacam-se entidades como os donos do vento, das chuvas e da tempestade e a cobra grande-arco-íris, que também é um símbolo fronteiriço entre natureza e cultura, na figura do Cobra Norato. 207 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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A cosmovisão dos Ticuna é marcadamente influenciada por processos meteorológicos que interferem na sucessão do tempo meteorológico que determina o tempo seco e o tempo úmido, bem como o ritmo das chuvas. A meteorologia confere sentido à passagem do tempo no calendário e organiza as atividades de subsistência. Estas são organizadas de acordo com o calendário lunar, que interfere na transformação da moça em mulher, na reprodução e no envelhecimento humano. Os filhos da relação incestuosa entre Lua e Sol tornaram-se estrelas móveis que correspondem grosso modo aos astros que conhecemos como planetas na astronomia moderna. A promoção do ritual da moça nova (worecü) é planejado conforme a observação da aproximação destas entidades com a lua e a Queixada de Jacaré (localizada na área do céu onde reconhecemos a constelação de Touro). Os Ticuna as chamam estrelas Worecü ou Pacü, relacionando o ritual de puberdade com a visibilidade destas estrelas. Para eles, elas sempre estão no céu e aparecem de acordo com os eventos cosmogônicos. A menor ou maior visibilidade relaciona-se com processos meteorológicos de acordo com a maior ou menor umidade atmosférica, desaparecendo alguns astros, no entanto, quando estão cobertos pela névoa ou pelas nuvens. Introdução Stephen Greenblatt (1991) usa o termo wonder para caracterizar o poder dos objetos expostos para paralisar o expectador, para veicular um senso de sua unicidade e evocar uma atenção exaltada. Este autor apresenta este termo como um contraponto à ressonância que significa o poder de tal objeto para extrapolar suas fronteiras formais para alcançar um mundo mais amplo, para evocar no expectador as forças culturais dinâmicas e complexas das quais este emergiu e para as quais ele é configurado na visão de mundo de quem o contempla. Quando os índios Ticuna comentam os motivos figurativos dos artefatos rituais da coleção Curt Nimuendaju do Museu Paraense Emílio Goeldi, usam muitos termos em Ticuna relacionados com a fronteira. 1 Segundo afirmam, o termo üyiane significa “divisão das terras de outros” ou “divisa de uma fronteira para outra”. Pode ser entre dois povos” ou “pode ser uma área de alguém dentro de um povo” quando se estabelece “divisão, para fazer cercado”. Existe um termo específico para cerca: po´ye~ü. Nos artefatos Ticuna existe toda uma simbologia da fronteira, relacionada com as guerras primordiais, simbolizada nas relações de oposição entre metades, facções, etnias ou correligionários de organizações rivais. Entre outras armas, a roda türita consiste em uma armadilha para aprisionar e destroçar os inimigos. Esta roda aparece em representações míticas da passagem do “mundo dos vivos” para o “mundo de cima”. Apenas alguns conseguem atravessar a barreira, sendo que a maioria sucumbe no giro da roda türita. Esta simbologia da fronteira perpassa as narrativas míticas e histórias nas quais são apresentadas noções da sua relação com a natureza e com outras etnias. Este imaginário é atravessado por representações socioterritoriais que compõem a visão Ticuna da “cultura de fronteira”. As imagens da fronteira atravessam o próprio ritual de puberdade feminina, a chamada “festa da moça”, um rito de passagem que envolve a transposição de limiares pela moça e por seu grupo de referência. Suas significações abrangem as temáticas da fertilidade da mulher e da natureza, da complementaridade das metades, da passagem do tempo, das obrigações sociais da mulher e da organização dos papéis e lugares na organização social Ticuna. Estão presentes em termos referenciais da constituição da visão de mundo deste Os Ticuna vivem no alto Solimões milenarmente, ocupando atualmente um território na fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru. Deste modo, quando se reconhecendo a si mesmos a partir das diferenças étnicas, ele percebem as diferentes identidades nacionais. As organizações indígenas estimam que atualmente vivem 36.000 Ticunas no Brasil, 10.000 na Colômbia e 6.000 no Peru, constituindo assim a população indígena mais numerosa da Amazônia Além de falar a sua própria língua, também falam português e espanhol, cruzando frequentemente as fronteiras dos três países. 208 1


povo, que é alterada pela repercussão das transformações ambientais em seu dia a dia e em seu calendário das atividades sociais. Os representantes Ticuna que participaram de tal exame, 2 dentro da elaboração de um Banco de Dados sobre o Acervo de Peças Ticuna, 3 o entenderam enquanto uma avaliação do repertório cultural Magüta, o povo pescado no igarapé mítico Eware por seu herói cultural Yoi’ i, do qual afirmam descender os “primeiros homens”. Os Ticuna do Brasil, da Colômbia e do Peru vivem hoje problemas que perpassam as diferentes situações nacionais, independentes do país onde estejam localizados geograficamente. Sua situação geral desperta grande preocupação, sobretudo pelo preconceito difundido pela rede de atores regionais a respeito dos índios que leva a uma atitude generalizada de desrespeito em relação à sua integridade física e cultural. Este preconceito e este desrespeito são a outra face de uma concepção idílica e romantizada da identidade e da cultura indígena, igualmente equivocada. A leitura da bibliografia sobre os Ticuna produzida no Brasil, na Colômbia e no Peru mostra que se trata de um único povo, ainda que se verifiquem diferenças de país para país, dada a sua heterogeneidade, que produz variações de aldeia para aldeia, e mesmo de grupo vicinal para grupo vicinal. Esta heterogeneidade e estas variações são comprováveis por pesquisas de campo nos diferentes países. Os relatos históricos e os relatos míticos coletados nas mesmas são passíveis de comparação antropológica. A despeito do processo em curso de urbanização, observa-se um movimento no sentido de fixar residência em colinas não inundáveis, que constituem lugares de significação étnica em uma aproximação com os valores Ticuna, como Enepü, Otaware ou ao longo do igarapé São Jerônimo. As colinas mais altas são consideradas locais não atingíveis, como o Éware, local sagrado Ticuna, ou a montanha Taivügüne, próxima ao Éware, onde vivem os “imortais”. Verifica-se, no entanto, a continuidade de um movimento já tradicional de busca das facilidades da beira-rio, o que implica um distanciamento dos valores Ticuna e uma aproximação do mundo dos brancos. Existe uma grande diversidade sociocultural entre os Ticuna, desde os que seguem estritamente as prescrições tradicionais aos Ticuna do Médio Solimões, entre os quais a maioria não fala mais a língua. Apesar desta evidência de apagamento da memória, nesta área o imaginário Ticuna é ativo, registrando-se referências a relações subaquáticas por meio de lagos “centrais” “encantados” entre os Ticuna do Alto e Médio Solimões, 1997. Cosmovisão

Na análise da antropologia histórica da iconografia de povos pré-colombianos, Broda (2001, 2004),

Dentro das atividades do inventário das indumentárias e instrumentos rituais da Reserva Técnica de Etnologia “Curt Nimuendaju” do Museu Paraense Emílio Goeldi, levaram-se a campo as descrições e desenhos técnicos, primeiramente em 1999, comentados e contextualizados pelos Ticuna do resguardo colombiano de Nazareth. Em pesquisas do ano 2000 e 2002 levaram-se as mesmas peças para o Enepü (terra indígena Évare II e Bunecü, na terra indígena Evare I). Os comentários dos Ticuna revelaram, em alguns pontos, coincidência e em outros pontos, diferentes interpretações. Ao final, em uma última visita ao resguardo Nazareth alcançou-se um denominador comum, pois os próprios Ticuna de Nazareth afirmaram que as interpretações estabelecidas no Brasil (Enepü e Bunecü) expressavam de maneira mais completa a visão Ticuna. No contexto deste projeto, foram observadas três festas: a primeira na comunidade Barro Vermelho, em setembro de 1997, a segunda na comunidade Ribeiro, em dezembro de 2000, e a terceira na comunidade Enepü, em julho de 2003. No presente trabalho, cotejo as interpretações Ticuna sobre os artefatos coletados por Nimuendaju com os comentários dos próprios artesãos sobre os artefatos produzidos em 2012 pouco antes de minha interação com eles em pesquisa de campo recente. 2

O Banco de Dados com as peças Ticuna da Coleção Nimuendaju do Museu Paraense Emílio Goeldi é disponibilizado no CD-ROM Magüta Arü Inü. Jogo de Memória: Pensamento Magüta. Belém, Museu Goeldi. Prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade na categoria Inventários de Acervos e Pesquisa, Brasília, IPHAN, 2003. 209 3

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examina como a medição do tempo serve como um instrumento de planejamento das atividades produtivas. Exames históricos e arqueológicos acurados de como tais povos observavam a natureza demonstram a orientação das atividades sociais no meio ambiente e a vinculação do calendário considerando a paisagem cultural e lugares significativos para as performances sociais (FAULHABER, 1999,2007) em termos de territorialidade. Tais pesquisas demonstram a observação sistemática como garantia de validação do conhecimento. O conceito de cosmovisão supõe uma determinada coerência na combinação de noções sobre o meio ambiente e o cosmos. A enunciação dos mitos e cantos no discurso ritual prescreve uma ordem socialmente definida que é justificada por meio de uma estrutura ideológica que serve como instrumento de consagração das hierarquias rituais (Broda, 1982). A etnicidade consiste em um veículo de expressão Ticuna tanto em termos das linguagens nacionais quanto internacionais que atravessam as fronteiras indígenas da civilização, uma vez que estes índios vivem em situação de contato interétnico há mais de 300 anos. Deste modo, a antropologia do conhecimento Ticuna depende do entendimento dos sistemas ideológicos que perpassam sua cultura. Entre os comentários dos Ticuna sobre a peça acima apresentada, foi dito que representa o movimento do sol ao longo do dia (meio-dia, manhã, tarde, noite). É interessante que a forma X, usualmente tomada em museologia como “ampulheta”, não tem propriamente este sentido para os Ticuna. Eles dizem que é a forma da “peneira para passar o pajuaru”, ou a forma das costas da moça submetida ao ritual de puberdade Ticuna. Há outro sentido um pouco mais complexo: segundo eles, estes “astros” que aparecem nas figuras são os “filhos da lua”, que são primos e irmãos porque são fruto de uma relação incestuosa entre dois irmãos, lua e sol. No tempo mítico, eles aparecem como os filhos da união incestuosa entre Lua, masculino, e Sol, feminino. Após ser abandonada por Lua, a mãe dos três irmãos foi violada por uma onça feroz e a avó criou os irmãos que depois se transformaram em estrelas. Para evitar o eclipse do sol, gerador de catástrofe, dia e noite foram separados para que Lua e Sol não pudessem mais se encontrar, e não transgredir, assim, a proibição do incesto. Os filhos da Lua são ao mesmo tempo irmãos e primos. No tempo astronômico, correspondem aos planetas Vênus, Júpiter e Saturno. No tempo histórico, os índios Ticuna que vivem em área de fronteira entre Colômbia, Brasil e Peru são explorados pelos comerciantes e intermediários da comercialização da pesca e da extração de madeira. A identificação étnica para os Ticuna passa por uma representação da fronteira étnica entre o “mundo dos brancos” e a cosmovisão dos Ticuna. No desenho feito com caneta hidrográfica em 22 de setembro de 2013 pelo pescador Ticuna Casimiro, que é pesquisador de animais aquáticos (botos, tartarugas) da fundação Natütama e participa de treinamentos geográficos, o autor apresenta as constelações no céu de modo um tanto quanto realista, ainda que tenha invertido a posição das constelações de Baweta (que fica na área do céu da constelação que conhecemos como Plêyades), Coyatchicüra (na área do céu de Touro) e de Wucücha (na área do céu da constelação de Órion). Ele apresentou dois desenhos do céu: Azul escuro, com as estrelas (E´ta), amarelas e outro com a mesma disposição das estrelas em amarelo, só que com o fundo branco. Destaca a estrela Woramacüri, ou Pacü, estrela de seis pontas que, segundo relata, é a estrela da moça nova, que se aproxima da lua. O desenho que representou como azul e negro representa o percurso noturno subterrâneo do sol (Üakü) e o sobre o fundo branco o percurso diurno desse astro. A artesã Ticuna Wentananã Tchoatüna, do clã cascavel, comentou sobre roda celeste que fez a partir do trabalho em entrecasca de árvores com pigmento vegetal natural, dia 16 de agosto de 2012, na maloca denominada Mawatcha (nome de uma das irmãs do herói culturais Yoi´i e Ipi e que saiu, junto com a outra irmã Aicüna, dos joelhos do patriarca Ngutapá). Segundo a artesã, a roda representa o escudo de Mawü, o “dono da chuva”, cuja performance anuncia a chegada da intempérie. Está figurado no centro da 210


roda o tronco Wone transformando-se no grande rio, três estrelas woramacüri estilizadas e em um terceiro espaço vazio. Foi indicada na fala da artesã a lua nova ou a queixada do Jacaré (coyatchicüra). Segundo seu relato, a iconografia expressa o começo do mundo, com a formação do rio amazonas do tronco de Wone, a samaumeira mítica. Esta roda foi feita em tempo de grande estiagem. Enquanto me explicava o significado da iconografia, a artesã iniciou uma “dança da chuva”, em uma performance ritual desempenhada poucas horas antes de começar a chover, um dia depois do equinócio de setembro, quando o sol está próximo ao zênite, data que o sol estava causticante mas que nesta circunstância representou o fim da seca. Em outra ocasião, em 1997, observei um ritual de puberdade feminina também registrado no dia do Equinócio, no qual eclodiu uma briga entre sobrinho e tio, fazendo notar que a festa da moça nova se explica antes pela catarse social que por mecanismos de integração identitária (FAULHABER,1999). No decorrer do seu depoimento, Wentananã começou a cantar, segurou a roda e iniciou a dança, ritualizando a antecipação da chuva que pressentia pela umidade, demonstrando querer negociar com o dono da chuva algum tipo de controle sobre os eventos meteorológicos, climáticos e ambientais que a chuva que antevia iria desencadear. A chuva vinha sendo nos últimos dias anunciada pelo serviço meteorológico. Além disso, a artesã afirmou reconhecer pela névoa forte, que dava um brilho especial às estrelas, que iria chover. No entanto esta performance evidenciou a lógica de participação da artesã como complementar ao raciocínio causal apresentado pelas previsões meteorológicas em padrões científicos causais. Trazendo para a reflexão alguns pontos levantados da análise de S. Tambiah (1995), a partir do debate entre Maurice Leenhardt e Lévy-Bruhl (1949), do ponto de vista forma de ordenamento do mundo, o método científico é predominantemente causal, conforme uma linguagem de distanciamento entre o sujeito cognoscente e o objeto cognoscível, na observação da eficácia casual dos atos técnicos. A construção do conhecimento científico promove a sucessiva fragmentação dos fenômenos, naturalizando a explicação dos eventos. Já na participação, o Eu é um produto do mundo que atua conforme a linguagem da solidariedade, unidade, holismo e continuidade no espaço e no tempo. A ação expressiva se manifesta através de entendimentos intersubjetivos, as narrativas étnicas e a encenação de rituais entendidos como atos comunicativos, com eficácia performativa que abrange a unicidade cósmica, com base em relações de contiguidade e pela lógica das interações. Em seu longo relato, que durou mais de três horas, a artesã relacionou a iconografia da roda à formação do grande rio. Relatou que, de acordo com a cosmogonia Ticuna, o mundo começou quando os seus antepassados – o povo Magüta- viviam na escuridão porque a preguiça gigante segurava o céu, aninhada na árvore mítica Wone (Ceiba pentandra (L.) Gaertn). O herói cultural Yoi´I lançou uma formiga de fogo nos olhos da preguiça que soltou o céu, caindo este sobre a árvore Wone. O peso do céu sobre a árvore liquefez o seu coração, formando o rio Amazonas. Após este evento Yoi´i e seu gêmeo mítico Ipi pescaram os primeiros homens no igarapé mítico Eware, um tributário do igarapé Tonetü (São Gerônimo), que por sua vez desemboca no Solimões, já no Brasil, Yoi´i ensinou esses primeiros homens a trabalhar concedendo-lhe os nomes clânicos, associados em metades anônimas, uma reunindo aves e a outra seres de casca, ou “sem pena”. Com base nesta divisão em metades exogâmicas foi organizada a sociedade Ticuna. Os filhos da relação incestuosa entre Lua e Sol tornaram-se estrelas móveis que correspondem grosso modo aos astros que conhecemos como planetas na astronomia moderna. O ritual da moça nova (worecü) é planejado conforme a observação da aproximação destas entidades com a lua e a Queixada de Jacaré (localizada na área do céu onde reconhecemos a constelação de Touro). Os Ticuna as chamam estrelas Worecü ou Pacü, relacionando o ritual de puberdade com a visibilidade destas estrelas. Para eles elas sempre estão no céu e aparecem de acordo com os eventos cosmogônicos. A menor ou maior visibilidade relaciona-se com processos meteorológicos de acordo com a maior ou menor umidade atmosférica, desaparecendo alguns 211 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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astros, no entanto quando estão cobertos pela nevoa ou pelas nuvens. Se a pessoa está de ponta-cabeça, o observador vê a medula espinhal como o rio Amazonas. O rio é a medula, a desembocadura é o cérebro e a cabeça é o oceano Atlântico. Abaixo de tudo está o mar Primigênio. Na parte inferior estão os pés, (primeiro plano do eixo flexível), o mundo dos sem ânus (o mundo da gente Ngeetüte). O joelho (segundo plano do eixo flexível) é o mundo dos sem olhos (o mundo da gente Ngerüta). A parte dos músculos (terceiro plano do eixo flexível) é o mundo dos anões (mundo da gente Metchita). No Interior do quadril (quarto plano do eixo flexível) está o mundo em que vivem os mortais (“nós”). No tórax (quinto plano do eixo flexível) está o mundo dos condores (a cuia celeste). Na cabeça (sexto plano do eixo flexível), conduz-se o manejo do pensamento, da sabedoria e do conhecimento (céu superior), logo abaixo do teto do Universo. A coluna vertebral e a medula espinhal – o Caminho da Anta –comunicase com as outras partes do corpo, onde está o cerne da cultura Ticuna (SANTOS, 2010). De acordo com Camacho (2003), o “eixo do Universo é um canal transparente que conduz a luz solar a cada um dos mundos, por ele viaja o pensamento dos pajés e dos que estão sendo iniciados para percorrer o caminho por onde circulam as energias vitais. Essas energias se unem na cuia celeste com a Via Láctea , “o caminho da anta” e com a base do mar primigênio”...Este está na base do universo, “onde vive submersa a grande anaconda marinha (Yewae´) ou Cobra Grande que permanece enroscada no eixo dos mundos. Yewae´, para respirar, realiza periodicamente três tipos de movimentos: a) Pequenos giros de rotação no sentido esquerda - direita, que são os que determinam a sucessão dos dias e as noites; b) Um movimento ascendente que determina as fases crescentes da lua; c) Um movimento descendente que marca as fases decrescentes da lua. A conjunção desses três movimentos determina o ciclo de chuvas em cada um dos mundos, assim como as marés”(CAMACHO, 2003). A cosmovisão dos Ticuna é marcadamente influenciada por processos meteorológicos que interferem na sucessão do tempo meteorológico que determina o tempo seco e o tempo úmido, bem como o ritmo das chuvas. A meteorologia confere sentido à passagem do tempo no calendário e organiza as atividades de subsistência. Estas são organizadas de acordo com o calendário lunar, que interfere na transformação da moça em mulher, na reprodução e no envelhecimento humano.

Referências BRODA, Johanna. “Astronomy, cosmovisión, and ideology in Pre-Hispanic Mesoamerica”. Annals of the New York Academy of Sciences, Volume 385, Ethnoastronomy and Archaeoastronomy in the American Tropics p. 81–110, May 1982. “Astronomía y paisaje ritual: el calendario de horizonte de Zacatepetl-Cuicuilco.”In BRODA, Johanna, Stanislaw Iwaniszewski y Arturo Montero (coords.). La montaña en el paisaje ritual (Estudios arqueológicos, etnohistóricos y etnográficos), p. 173-199. ENAH-Instituto de Investigaciones Históricas, UNAM, Universidad Autónoma de Puebla, México, 2001. “La percepción de la latitud geográfica y el estudio del calendário mesoamericano”. In Estudios de Cultura Náhuatl. Vol. 35, 2004, p. 15-43. CAMACHO, Hugo “Cosmovisão Ticuna” In Magüta Arü Inü. Jogo de Memória. Pensamento Magüta (org). Belém, Museu Goeldi, 2003. 212


FAULHABER, Priscila A Festa de To´oena. Performance, relato e etnografia Ticuna. Amazônia em Cadernos. vol.5, 1999, p. 105-120. Magüta Arü Inü. Jogo de Memória. Pensamento Magüta (org). Belém, Museu Goeldi, 2003. “As estrelas eram terrenas”: antropologia do clima, da iconografia e das constelações Ticuna - Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2004, vol. 47 n° 2, p. 379-426. “Iconography, Myths and symbolism inscribed in ritual artifacts: The Ticuna collection in a comparative perspective”. Berlim, Baessler Archiv, 54, 2006, p. 95-118. “O ritual e seus duplos: fronteira, ritual e papel das máscaras na festa da moça nova Ticuna”. Boletín de Antropología, vol. 21, p. 86-103, 2007. “Anthropology of Weather and indigenous cosmology inscribed in ritual artifacts”, Weather, Local Knowledge and Everyday Life. Issues in Integrated Climate Studies (ed: Vladimir Jankovic and Christina Barboza). Rio de Janeiro, Mast, 2009. p. 245-252. GREENBLATT, Stephen. “Resonance and Wonder” in Exhibiting Cultures. The Poetics and Politics of Museum Display. Duhan and London, Duke University Press, 1991. p 42-56. LEENHARDT, Maurice. Les Carnets de Lucien Lévy-Bruhl. Paris, PUFF, 1949. SANTOS, Abel Antonio. “Narración tikuna del origen del territorio y de los humanos”. Mundo amazônico 1, 2010 , p. 303-313. TAMBIAH, Stanley Jeyarara. Magic, Science and the scope of rationality. Harvard, Cambridge University Press, 1995.

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Temas transversais e cultura afro-brasileira e indígena

Norma Sueli Rosa Lima Professora do Departamento de Letras da UERJ

T

endo em vista as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena (Lei nº 11.645 de 10/3/2008, Resolução CNE/CP n 01 de 17/6/2004) que determinam que a temática da História e da Cultura Afrobrasileira e Indígena que sejam incluídas nas disciplinas e atividades curriculares dos Cursos de Graduação das Universidades brasileiras, cabe iniciar o debate com duas indagações: 1. Os cursos de graduação e pós-graduação vêm cumprindo satisfatoriamente com esse papel? 2. Será possível inserir adequadamente as populações indígenas e quilombolas, periféricas, populares e marginais neste universo escolástico, sob a ótica da globalização e da comunicação, tendo em vista as políticas do espaço público, a valorização do patrimônio imaterial pela UNESCO e sua decorrente educação cultural patrimonial? Acreditamos que se faz necessária a reflexão permanente sobre os propósitos, alcances e limites, tanto desta prática docente quanto do sentido de se conhecer, preservar e divulgar, nestas, o patrimônio relativo às comunidades dos indígenas e dos quilombolas. Importa-nos analisar historicamente o sentido da inclusão dessa temática nas salas de aula, em uma sociedade na qual os segmentos economicamente dominantes naturalizam as diferenças entre as classes sociais. Sendo a educação escolar um reflexo, em última instância, das correlações de forças existentes em uma dada sociedade, ela própria reflete os valores dominantes, bem como as suas contradições. É notório que os temas transversais tenham sido contemplados nos Parâmetros Curriculares, no volume dedicado ao da Pluralidade Cultural e Orientação Sexual: entender a complexidade das origens brasileiras como uma confluência de heranças que se preservaram, vencendo políticas explícitas de homogeneização cultural havidas no passado, resistindo, recolocando-se, recriando-se, ativas em diferentes momentos da história. Recuperar as origens dessas influências é valorizar os povos que as trouxeram e seus descendentes, reconhecendo suas lutas pela defesa da dignidade e da liberdade, atuando na construção cotidiana da democracia no Brasil, dando voz a um passado que se faz presente em seres humanos que afirmam e reafirmam sua dignidade na herança cultural que carregam” (PCN, 2000, p. 70). 214


No trajeto da presente Lei 11.645 esta luta está exemplificada, pois a sua origem é o Artigo 26-A, da Lei 9.394/1996, que determinava que o currículo escolar deveria estar aberto à pluralidade e às “contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia”, conforme reza o parágrafo quarto do artigo. O texto não aponta especificidades nessas contribuições, podendo alimentar, deste modo, o tradicional olhar exótico sobre eles que poderia reduzi-los a meros produtores culturais de danças, artesanato, comidas e diferentes “dialetos”. Isto, portanto, justifica a alteração da LDB, por meio da inclusão dos artigos 26-A e 79-B, com a homologação da Lei 10.639/2003. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-brasileira. § 1o- O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o- Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e História Brasileira. O dito na Lei anterior (1996) não obrigava, nem sequer explicitava, a necessidade dos recortes e especificações históricos inerentes à trajetória dos grupos raciais negros, excluídos, nem os efeitos humanísticos, psicológicos e econômicos do processo, o que naturalmente levaria à reflexão crítica sobre a atual situação de desigualdade de acesso aos bens sociais em que se encontram (AMÂNCIO, 2008, p. 34). Cinco anos depois, mais uma reformulação na Lei mudou a redação do Art. 26, acrescentando o indígena: Art. 1o- O art. 26-A da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. § 1o- O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. § 2o- Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras. O fato de possibilitar a profissionais tanto das áreas de formação elencadas na Lei (Educação Artística, Literatura e História) como a de outras no recente e pioneiro curso criado em termos de pós-graduação tanto de Cultura Afrobrasileira e Indígena (desde abril de 2012) e de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa (em vigor a partir de agosto de 2013) pode auxiliar o melhoramento do desempenho dos docentes em práticas pedagógicas, de acordo com a Lei 11.645, como de outros profissionais no dia a dia, sobretudo no âmbito de suas relações interpessoais no qual se insira a cidadania. A motivação para a matrícula dos alunos no nosso curso foi a obrigatoriedade da Lei, conforme objetivo descrito no site da Funcefet: “O Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Cultura Afrobrasileira tem como objetivo aperfeiçoar, atualizar e especializar profissionais da área de Licenciaturas em Letras, Educação Artística, Pedagogia, História e Geografia para conteúdos a serem trabalhados e materiais didáticos produzidos, de acordo com os objetivos da Lei 11.645, a fim de propiciar aos professores estratégias e 215 Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: NOVAS PRÁTICAS CONTEMPORÂNEAS


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metodologias que os auxiliem a aplicá-la.” Cremos que entre as inúmeras razões que possam tê-los motivado a realizar a matrícula no curso, uma em comum seja, em termos dos que são docentes em escolas públicas do município e do estado do Rio de Janeiro, a preocupação com o reconhecimento da multiplicidade de manifestações e identidades presentes no interior da escola, e do desvelamento das condições históricas em que se constituíram as diferenças entre classes e os preconceitos étnico-raciais, as práticas pedagógicas desenvolvidas no contexto escolar ainda permanecem alicerçadas em condutas que ocultam ou desvalorizam as manifestações culturais dos segmentos marginalizados ou minoritários. A Lei 11.645/08, embora necessária, não implica mudança significativa nas práticas educativas no âmbito escolar, uma vez que ela, por si só, não altera as relações de produção socialmente estabelecidas nem como o conflito da definição de uma identidade brasileira híbrida. No seu percurso histórico, a questão identitária surge, em um primeiro momento, idealizada nos moldes da Independência de 1822, com tons ufanistas que elegeram o índio como bom selvagem– na esfera de Rousseau– e preteriram as marcas africana e lusa. Em um segundo momento, já em 1922, esta reflexão retorna com bases críticas, embalada pelo Modernismo Brasileiro, que num amplo movimento abarcando as artes, a política e outras manifestações, situa a cultura brasileira com seus vários matizes identitários. Este hibridismo/pluralismo racial, e, por extensão, cultural, era, àquela época, desconhecido na Europa, que buscou construir uma identidade fechada que precisava ser questionada. A propagação do primitivismo na arte, que teve origem europeia, contribuiu para o despertar de movimentos culturalmente nacionalistas na América Latina, tendo como representantes o índio no México e nos países andinos, e o negro, no Caribe, especialmente em Cuba. No Manifesto Antropófagico, de 1928, Oswald de Andrade recorreu à volta dos valores pré-colombianos, com a metáfora do canibal que precisa devorar a imagem falsa que fizeram de si em função do eurocentrismo e assume no Modernismo e na literatura perspectiva que prevê o fato de o potencial cultural e a originalidade não residirem numa exclusividade (nem somente na tradição ameríndia nem na afro-brasileira), mas sim em uma combinação. A conceituação “transculturalidade”, dentro dessa ótica, não pode ser concebida em contradição ao ponto de vista da “interculturalidade”, mas indica que a discussão deve ser ampliada e diferenciada com o surgimento de culturas híbridas em contextos de múltiplas influências, interconexões e misturas. Apesar de todos esses esforços e iniciativas também dos movimentos de afirmação, identificamos ainda práticas baseadas em estereótipos não vencidos que desvalorizam as manifestações originárias dos segmentos economicamente excluídos, entre eles, os negros e os indígenas. Além do exame da introdução de abordagens plurais, há que se pensar, igualmente, na escola plural, reflexo que é de uma sociedade também plural. As organizações ligadas aos movimentos negro e indígena têm investido em iniciativas voltadas para o campo da educação, em duas linhas principais: acesso ao ensino superior e a formação de educadores. Outra ressalva é a da adoção de políticas de preservação do acervo dessas culturas, no contexto das transculturas e da globalização, o qual revê um conceito antigo de nação fundado sobre o ponto de vista de uma comunidade política autônoma e de território definido que partilha instituições comuns (constituição, governo, sistema judiciário) ou de uma comunidade de indivíduos ligados por identidade de origem, língua, costumes, religião. Atualmente as nações tiveram suas fronteiras rompidas e extrapoladas: culturas, línguas e costumes dialogam constantemente em um processo permanente de diáspora. Reina, portanto, um desejo cosmopolita de estar no mundo, mas sem, no entanto, deixar de estar no local e de preservar as suas tradições. Examinar de que modo o esforço da preservação da herança ancestral dialogará com noções como a de interculturalidade com a de hibridização multicultural, será o próprio exame de um desafio sempre presente, já que a busca do consenso ideológico é uma tentativa de homogeneizar culturalmente os povos, os indivíduos. 216


É óbvio, no entanto, que a homogeneização não ocorre de uma forma absoluta por, principalmente, três razões: a) As estruturas da globalidade não alcançam todos da mesma maneira, o acesso à mídia ou aos bens de consumo cultural é restrito, tanto por questões materiais quanto por interesses diversificados; b) As influências das culturas dominantes frequentemente não são adequadas às circunstâncias locais, sejam elas originadas em contextos políticos, econômicos ou sociais, em heranças históricas ou em condições geográficas em cujas adaptações as expressões culturais de cada região justamente se fundamentam; c) Indivíduos ou grupos formam a sua identidade entre adaptação e diferenciação; guardam, portanto, nesse processo, uma tendência de se revoltar emocionalmente contra tudo aquilo que lhe for imposto, com uma necessidade de libertação referente para delinear, de fato, os seus próprios caminhos. Esta breve explanação, ciente de que o exame da emancipação identitária no contexto dos museus transculturais, em função dos temas transversais por nós aqui propostos em termos do trabalho pioneiro e desenvolvido junto à Funcefet, traz à tona o olhar sobre a formação de identidade cultural com base em uma reflexão sobre identidade pessoal e social, pois o ser humano forma a sua identidade dentro e em relação às molduras externas, molduras essas que compreendem serem qualificadas ou desqualificadas em diversas categorias, como papéis, status e capital social, por meio do momento histórico; da tradição; da religião; das circunstâncias geográficas e condições sociais. Molduras que revelam a perversidade histórica de segmentos marginalizados e que iniciativas como o presente livro colaboram para tirar do limbo e trazer para a cena em que sempre mereceram estar.

Referências AMÂNCIO, Iris Maria da Costa; GOMES, Nilma Lino; JORGE, Míriam Lúcia dos Santos. Literaturas africanas e afro-brasileira na prática pedagógica. Belo Horizonte; Autêntica, 2008. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo; Ática, 1989. BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte; UFMG, 1998. CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo; Cosac naify, 2012. HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Modernidade. 4ª ed., Rio de Janeiro; DP&A, 2000. LIMA, Norma Sueli Rosa. Revisitando Claridade: o encantamento da poesia cabo-verdiana com o Modernismo Brasileiro. Niterói; UFF, 2000. Tese de Doutorado. OESSELMANN, Dirk. & GARCIA, Maria Lúcia Gaspar (Orgs). Encontros transculturais: sua importância para pensar e agir democrático de educadores(as) numa comparação internacional. Belém; Unama, 2010. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS. Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Temas transversais. Secretaria de Educação Fundamental, 2ª ed., Rio de Janeiro; DP&A, 2000. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo; Companhia das Letras, 1995. Orientalismo. São Paulo; Companhia das Letras, 2007.

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Título: Estética Transcultural na Universidade Latino-Americana: novas práticas contemporâneas Organizadora: Dinah Guimaraens

Editor responsável: Aníbal Bragança

Capa, projeto gráfico e diagramação: Marina Vasconcellos de Carvalho

E79 Estética transcultural na Universidade Latino-Americana : novas práticas contemporâneas / Dinah Guimaraens (organizadora). – Niterói : Eduff, 2016. – 217 p. : il. ; 21 cm. – (Série Pesquisas, 2). Inclui bibliografia. ISBN 978-85-228-1195-3 BISAC SOC002010 SOCIAL SCIENCE / Anthropology / Cultural & Social 1.Antropologia e arte. 2. Estudos interdisciplinares. I. Guimaraens, Dinah. II. Série. CDD 370.1

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Formato: 21 x 26 cm Tipologia: Garamond Pro, Garamond, American Typewriter e Avenir Next Condensed Papel: Cuchê Matte 90g/m2 (miolo) Cartão Supremo 250g/m2 (capa) Número de páginas: 217 Tiragem: 500 exemplares


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