AUH 5700 - Metodologia científica aplicada à arquitetura e ao urbanismo Profs. Drs.: Júlio Roberto Katinsky, Luiz Munari e Karina Leitão
Resenha de “As regras do método sociológico” de Émile Durkheim Diogo Augusto Mondini Pereira
São Paulo, maio de 2017
A Criação de Adão (ca. 1512) – Michelange Buonarroti (1475 – 1564) – Afresco na Capela Sistina – Vaticano - Fonte: Wikimedia
Há cerca de 20 mil anos boa parte do globo se encontrava coberta por extensos glaciares. Neste planeta frio a espécie humana, que nele se disseminava, utilizava uma segunda pele para resistir ao clima extremo. A vestimenta era um item de sobrevivência para estes indivíduos, cujo corpo estava em verdade adaptado para as condições de temperatura mais amenas de onde surgira na África. A veste se enraizou culturalmente, a partir de uma necessidade fisiológica (a proteção contra o clima extremo) e disto se tornou um adereço indispensável. Através dela se leem estilos, gostos e classe social, por exemplo1. Existem padrões de vestes adequadas para determinadas circunstâncias, trajes sociais, formais, informais etc. A veste pode cair em desuso pela mudança do gosto coletivo, isto é, da moda, antes mesmo de chegar ao fim de sua vida útil. Ou seja, é uma parte indissociável dos costumes humanos. Mas por que, de fato, a usamos? A que podemos justificar cobrir o corpo num dia tórrido de verão, ou nas áreas tropicais do globo, onde teria surgido o homem? Se nos desvencilharmos de qualquer justificativa prática, isto é, proteger-se do frio, nos depararemos com duas razões básicas para que se utilizem roupas: a primeira seria a implicação legal da não utilização da vestimenta, caracterizada como um crime de atentado ao pudor; a segunda seria o próprio constrangimento de tal situação, da falta de decoro: fomos educados e criados em um mundo onde o natural, apesar da falta de razão fisiológica para tanto, é estar sempre vestido, fazer disto como uma 1
“O traje é o mais evidente de todos os costumes, pois este é o primeiro sinal do indivíduo social. O traje da moda é tratado por autores como Baudelaire e Proust, que veem nele um importante qualificador social, sendo primordial para o conhecimento da origem do sujeito. Pela roupa, é fácil identificar a classe a que pertence alguém, seu ambiente social e, às vezes, até a profissão.” (MUNARI, 2002 p.158)
maneira de exprimir seu ego2. Vestir-se é portanto um ato naturalizado e, antes de qualquer costume, qualquer caráter de adorno ou de distinção de classe, é uma obrigação social. A isto que se desenvolve ora de maneira explícita, amparado por leis e regras escritas e conhecidas, ora de maneira implícita, como um decoro, como uma regra socialmente naturalizada, Émile Durkheim (1858 – 1917) caracterizava como fato social. Todo o fato social poderia ser sentido através da força dispendida para deixálo, eles não eram imutáveis, mas apresentavam algo como uma inércia, uma resiliência ante a tentativa de modificá-los, basta ter em mente toda a mudança de leis ou de costumes para entender. Ao mesmo tempo a leitura inversa também é possível, trata-se de algo tão enraizado que podemos acreditar seguir a liberdade de nosso próprio arbítrio, quando na verdade estamos simplesmente enquadrados dentro de um fato social. Durkheim refuta uma leitura comum à sua época: que a sociedade deveria ser entendida como uma simples somatória de indivíduos. Segundo o autor, a sociedade é composta pelos indivíduos e por coisas, elementos integrantes da sociedade. O fato social era para ele uma coisa, justamente pelo seu caráter científico intrínseco. As coisas são a base da investigação científica, portanto não bastaria a simples apreensão mental, as coisas só poderiam ser compreendidas na sua totalidade mediante análise e experimento, uma observação quase transcendental. Logo tal objeto de estudo para o sociólogo seria o fato social. Em Regras do método sociológico o autor francês procura estabelecer os limites do campo da sociologia e seus fundamentos, organizando metodologicamente o seu pensamento científico. É uma das obras fundamentais e fundadoras das ciências sociais, nela o autor estabelece a consciência coletiva, própria à sociologia, e a distingue da consciência individual, própria à psicologia. Procurando configurar com clareza uma ciência ainda incipiente, o autor emprestou metodologias de outras ciências consagradas da sua época 3 e com isso se esforçou em criar um arcabouço metodológico para fundamentar a pesquisa e análise em sociologia. Para ele, dados estatísticos, por exemplo, eram uma maneira de isolar os fatos sociais, que até então eram entendidos apenas no espectro do indivíduo, e passar a entendê-los e analisá-los. 2
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Exemplo disto são os povos indígenas do Brasil, que andavam nus para o choque da colonização portuguesa, mas que não viam a necessidade fisiológica e tampouco cultural para uma vestimenta completa, ainda que estes povos utilizassem adereços e pinturas corporais como elemento simbólico aproximado à vestimenta. “A nossa regra não implica, portanto, nenhuma concepção metafísica, nenhuma concepção sobre o fundo dos seres. O que ela reclama é que o sociólogo se ponha no estado de espírito em que estão físicos, químicos ou fisiologistas, quando se embrenham numa região ainda inexplorada do seu domínio científico” (DURKHEIM, 2004 p.23)
Se o paralelo com o método galileano for pertinente, há de se notar a similaridade nos esforços empreendidos pelo cientista pisano da virada do século XVII e pelo sociólogo francês da virada do século XX: ambos trabalhavam com o lastro de seus antecessores4 e procuraram qualificar e organizar as próprias ciências, aplicando uma metodologia às suas práticas. Durkheim refuta uma explicação metafísica e absoluta para a sociedade e acredita na evolução constante da ciência e do método. Neste sentido contextua a sua obra como possuidora de um caráter inicial e exploratório ante as possibilidades que se desdobrariam para as ciências sociais.
Referências Bibliográficas
DURKHEIM, Émile – As regras do método sociológico, Lisboa: Editora Presença, 2004 MUNARI, Luiz A. de Souza – O costume da arte, São Paulo: Editora FUPAM, 2002 Imagem: www.wikimedia.org
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Durkheim cita constantemente os esforços de diversos autores precedentes, em especial Auguste Comte (1798 - 1857) e Herbert Spencer (1820 – 1903) “… o nosso método é objectivo. É totalmente dominado pela ideia de que os factos sociais são coisas e devem ser tratados como tais. Este princípio encontra-se, sem dúvida, sob uma forma um pouco diferente, na base das doutrinas de Comte e de Spencer. Mas estes grandes pensadores deram mais a sua fórmula teórica que sua aplicação prática. Para que não continuassem letra-morta, não bastava promulgá-la; era preciso fazer dela a base de toda uma disciplina que dominasse o cientista no próprio momento em que aborda o objecto da sua investigação, e que o acompanhasse, passao a passo, em todas as suas iniciativas.” (idem p.165)