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Í N D I C E 06
Colaboradores
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Passagem de uns, abrigo de outros
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Estranho Silêncio da rua
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Ganhar a vida de passagem
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Vendendo arte
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Os Tons do futuro
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Aqueles que enxergam os invisíveis
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Espaços públicos do Recife
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Viver de música
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Resenha - Capitães da areia: A vida na rua e a perda da infância
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CARTA
DOS
EDITORES
Caminhar pelas ruas do Recife é uma atividade que pode inspirar múltiplos sentimentos. Para alguns, poderia ser considerado um esporte de alto risco - devido à sensação de insegurança proporcionada, dentre vários outros fatores, pela desocupação e abandono dos equipamentos públicos. Para outros, caminhar é uma forma de ir aonde se precisa chegar, mantendo um contato vivo e mais íntimo com a cidade. Mas a rua, para quem dela depende, é muito mais do que um local de passagem. Esta edição do Ecos foi preparada a partir de reportagens produzidas na disciplina de Oficina em Jornalismo durante o segundo semestre de 2017, quando o grupo de alunos decidiu coletivamente por discutir variados aspectos da temática “rua”. Trabalhadores ambulantes, artistas que se apresentam nos coletivos, pessoas em situação de rua e projetos sociais voltados para a experiência urbana foram alguns dos temas investigados pelos jovens repórteres. Para complementar a série de reportagens e entrevistas sobre o tema, nesta edição contamos com a colaboração de Martihene Keila, integrante da Verso - Agência de Notícias, que escreveu suas experiências nas ruas do Recife em forma de crônica. Também contribuiu o estudante de Publicidade Jonathan Campos, com resenha crítica sobre Capitães de Areia, obra de Jorge Amado que ainda reverbera nos dias de hoje. Este também é o resultado de um processo de mudanças na diagramação do jornal. O Ecos chega à sétima edição com um projeto gráfico completamente renovado, assinado por Breno Batista, atual diretor de arte da Opa - Agência Experimental de Publicidade e Propaganda da UniFBV | Wyden. Gostamos muito da mudança e esperamos que você também curta. No mais, desejo uma boa leitura - e que as páginas seguintes tragam reflexão sobre o ambiente urbano e sobre nossa relação com a cidade. Cecília Almeida, Professora de Jornalismo da UniFBV-WYDEN
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COLABORADORES
Agência Experimental OPUNIFBV | Wyden @agenciaopa
Projeto Gráfico, Capa e Diagramação.
Breno Batista
@brenobatista_
Esfacelado pelos efeitos colaterais do discurso motivacional. Estudante de Publicidade e Propaganda, pseudointelectual versado em Niilismo e Filosofia Deprê. Estou sempre insatisfeito
Carol Ribeiro fb.com/carolinaribeiro locutora.ribeiro
Radialista desde 1998, atriz e estudante de jornalismo atualmente - ama a comunicação e tudo que envolve o rádio.
Denise Lima
@daiananascimento_
Cacheada, graduanda em jornalismo, e amante de livros.
Filipe Vilar
@denisenlima
fb.com/vilarfillipe
Jornalista em formação, míope, amante de roteiros cinematográficos do gênero romântico e blogueirinha nas horas vagas.
Fernando Castro
@nandocastro_
Egnaldo Júnior @blogdoeg
Jornalista em formação, Produtor de Conteúdo e Marketing Digital. Também é Crítico, redator e editor do iClaquete. Sabe tudo sobre TV.
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Daiana Nascimento
Recifense Graduando em Comunicação Social Hab Jornalismo no Centro Universitário UniFBV Wyden Apaixonado por futebol e escrever Dois dos motivos que o fizeram escolher o jornalismo como profissão.
Estudante do 7º período de Jornalismo. Atualmente é repórter estagiário do JC Online. É um dos fundadores do primeiro cineclube da UniFBV, o CineMáquina. Também participou do podcast Máquina Mistério. Já foi colaborador da Agência Verso em 2015.
Johnny Campos
@hey
19 anos, Estudante do 4º período do curso de publicidade e propaganda na UFPE. Redator e Social Media. Apaixonado por livros, séries e filmes (sou cinéfilo por vocação,rs).
Jorge Rodrigues fb.com/jorge.henrique.7334
Gosto de música, futebol e filmes. Curso jornalismo.
Julia Aguilera fb.com/juaguilerasb
Estudante do 5° período de jornalismo na UniFBV. Adora transformar perguntas aleatórias em pauta e não gosta de café. Atualmente é estagiária do Jornal do Commercio.
Martihene Keila
@martihenekeila
Aluna do 3º período de jornalismo na UniFBV Wyden. É detalhista, adora escrever sobre o dia a dia, e escutar músicas enquanto está lendo ou fazendo qualquer outra coisa. Não gosta de rotinas.
Priscila Sá @sapriscila
Pedro Farias fb.com/ pedrofariasbatistadasilva
21 anos, estudante de jornalismo, Técnico em Rádio e TV, amante da comunicação e da música, Deus no coração e comunicação no sangue.
Amo livros. Amo ler. Amo escrever. Estudo jornalismo, mas trabalho com redes sociais. Sempre em busca de algo novo livros, viagens, lugares.
Sílvio Romero
fb.com/silvio.romero.5
Adoro matemática, música e astronomia Cursei alguns períodos de ciência da computação e resolvi migrar para jornalismo.
Tiago Rodrigues
@tiagrospe
Tiago Rodrigues da Silva, estudante universitário, aluno de Jornalismo do Centro Universitário UniFBV Wyden e servidor público do município da Vitória de Santo Antão. O que me inspira é poder descrever o brilho de um olhar de outros sonhadores.
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crônica
Eu e o
Corre Por Martihene Keila
Eu sou brasileira e admiro muito o meu povo. Não vou falar da elite, vou falar do meu meio. Porque eu não vivo tudo o que os outros pobres vivem, mas convivo. Não falo dos ricos que ficaram pobres, falo mais é dos pobres que não ficam ricos nunca. Que não nasceram em “berços de ouro”. Esse povo tem uma força... e que força! Eu ando de metrô e encontro os ambulantes. Esses matam um leão por dia. É claro que não é legal. A polícia cai em cima. Mas o que se pode fazer, né? - Olha a pipoca! - Olha a água mineral! - E depois... pernas, para que te quero? A cada vagão desse trem, tem de tudo. Tem mulher que não sabe falar direito, mas está lá vendendo do seu jeito. Tem o pai que tem um filho acamado, precisando de remédios. Ele vende umas coisas esquisitas... A gente compra, mas nem vai usar, tá só comovido com a história dele. Tem o músico que tá tentando a vida, canta, toca e a galera vai vibrando. Cada um ajuda como pode. Mas eu fico pensando nas histórias... fico pensando nas histórias! Tô lá e sempre fico especulando. Que gente! Saio do trem e vou para a integração. Ainda tem muito chão para chegar no meu destino. A gente está numa fila enorme e tem um cara bem inteligente na minha frente. Eu acho que tá indo pra faculdade. Largou do trabalho, mas tá levando trabalho, virado no celular, discutindo alguma decisão. Ele ainda é pobre, mas vai ficar rico. Deve estar cansado dessa maratona. Espero que nada interrompa seus sonhos. Fila que anda. Nesse ônibus tem a mãe solteira que deixou o filho em casa. Tem o pai que sente saudade do filho, faz tempo 6 | ECOS
Foto: Blog Sequelado
que ele não vê o menino e o pirralho tá crescendo com a cabeça virada... Ele quer ter de volta o controle, tá levando um celular pro moleque. Tem a dona de casa que finalmente conseguiu comprar um fogão novo, em dez vezes no cartão, e tá louca pra descer no supermercado pra fazer sua feira. A irmã da limpeza está com medo, é ela quem sustenta a casa. O gari tagarela tá aqui do meu lado, ele não tá com um cheiro muito agradável, coitado. A gente sentou no fundo do ônibus, que é mais fácil de não ser assaltado. Vejo soldado e até tanque de guerra ao redor. Então... É hora de guardar o celular e torcer pra sobreviver. - Cobradora, respira fundo aí! - Motorista, vai naquele macete! Boa sorte pra nós, pessoal! Amanhã, outro repete essa história, com personagens diferentes.
PASSAGEM PASSAGEM DE DE UNS, UNS, ABRIGO ABRIGO DE DE OUTROS OUTROS
O perfil da população de rua recifense e as principais políticas públicas direcionadas a essas pessoas
Por Egnaldo Júnior, Denise Lima e Daiana Nascimento.
Foto: pxhere.com
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elas ruas do Recife, debaixo dos viadutos, eles vão se acomodando da maneira como podem, principalmente quando chega a noite. Alguns utilizando cobertores, outros com pedaços de papelão, cada um busca o que tem para se proteger do frio. Quem caminha pela cidade logo repara que, para muitos, a rua não é apenas um local de passagem, mas de permanência.
pela Prefeitura em 2016, existem 1.200 pessoas em situação de rua na capital pernambucana. Pardos (57%) e negros (20%) lideram a lista. A contagem considera os abrigados pelas oito Casas de Acolhida da Secretaria de Desenvolvimento Social, Juventude, Política sobre Drogas e Direitos Humanos da PCR.
Além de conflitos familiares, o consumo abusivo de drogas é o segundo Segundo a Prefeitura do Recife, maior motivo que leva as pessoas à situação conflitos familiares são o principal motivo de rua, ficando à frente do desemprego e da que levam uma pessoa à situação de rua. ausência de moradia. É o caso da comerciante de pipocas A.L. Com as informações, é possível Com apenas 16 anos, a jovem conta que definir um mapa com a localização de maior decidiu morar nas ruas porque sua família concentração dessa população. “Em cada não aceitava seu namorado. “Chamam ele território, sabemos quais são os pontos de de vagabundo. Eu disse que se não fossem concentração das pessoas em situação de aceitar ele eu iria morar na rua, vendendo rua, conforme perfil”, afirma afirma Maria pipoca no metrô e nos ônibus”, disse. ngela, Gerente Geral do Sistema Único da Assistência Social da Prefeitura do Recife. No momento em Ela informa que esses que a entrevistamos, a grupos possuem diferentes Ele não quer que adolescente acreditava estar dinâmicas ao longo do dia, eu venda minhas grávida. Mas a perspectiva ou seja, têm expressões e de ter um filho em situação pipocas, mas eu sei comportamentos distintos de rua não influencia na sua nos diferentes turnos do que ele sozinho não decisão de deixar a moradia dia. A região do Centro da pode me manter dos pais. Ela afirma que faria Cidade concentra mais da tudo novamente, por amor. metade das pessoas em Sobre o ofício escolhido para sobreviver, A.L situação de rua, com maior variedade de nos conta que o namorado não aprova. “Ele pontos de concentração. não quer que eu venda minhas pipocas, mas É possível observar uma grande eu sei que ele sozinho não pode me manter”. diversidade na faixa etária: 4% são jovens Segundo um levantamento realizado entre 7 e 17 anos, 11% têm entre 18 e 24 anos,
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27% são adultos entre 25 a 34 anos, 16% têm Atenção Integrada à População em Situação entre 35 a 39 anos, 21% entre 40 e 49 anos de Rua. e 12% entre 50 e 59 anos. Os dados também indicam Este Comitê reúne-se Muito dono de bar que 9% dessas pessoas mensalmente no décimo não me aceita porque são idosos, com mais de segundo andar da PCR para 60 anos de idade. Seu Luiz discutir, planejar e avaliar as fala que eu fedo é um desses. Aos 69 anos, ações de Saúde, Assistência ele puxa sua carrocinha catando plástico, Social, Educação, Cultura, Habitação, papel, vidro e tudo o que é reciclável. Ao final Trabalho e renda, Segurança Alimentar do dia, ele conta algumas moedas e toma dentre outras. Além de representantes das um quartinho de cana. É a “hora de relaxar”, diversas secretarias municipais, participam como ele diz. Mas ele só bebe em um bar. alguns usuários e trabalhadores dos serviços “Muito dono de bar não me aceita porque que ofertam atendimento à PSR, Pastoral fala que eu fedo”, relata, já conformado com do Povo da Rua e outras entidades não a discriminação que recebe. Maria José, 54, governamentais. “O desenvolvimento dessas dona do bar que ele frequenta afirma que ações geram alternativas de retaguarda não faz distinção de seus clientes: “Ele vem para os serviços e profissionais que estão aqui porque só eu o aceito. Se tem dia que operando na ponta, no atendimento direto ele cheira mal é por conta do trabalho. Por às pessoas em situação de rua, bem como que eu ia recusar o dinheiro que ele ganhou a construção de projetos de vida para além trabalhando honestamente?”. das ruas”, afirmou Fernanda Carvalho, chefe de divisão para População em Situação de Acompanhamento e Ações Sociais Rua da Prefeitura do Recife.
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Maria Ângela afirma que “existe um trabalho para fortalecer o acesso dessas pessoas às políticas públicas”. Nesta
Os Centros POP são unidades públicas e estatais que oferecem atendimento especializado à população adulta em situação de rua. Este serviço é composto por psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais. Eles são responsáveis por produzirem oficinas socieducativas, formativas e de cidadania e um conjunto de articulações que favoreçam possibilidades de saída das ruas, conforme o desejo das pessoas e as ofertas disponibilizadas pelas políticas públicas. Cerca de 200 pessoas são atendidas mensalmente pelos Centros POP,
perspectiva, o prefeito Geraldo Júlio assinou, em 25 novembro de 2014, um termo de adesão à Política Nacional para a População em Situação de Rua, visando a desenvolver um conjunto de ações no âmbito das políticas públicas municipais com foco neste grupo populacional. Nesse sentido, em consonância com a Política Nacional, instituiu um comitê de acompanhamento e monitoramento da Política Municipal para a população em Situação de Rua – Comitê POP Rua - e elaborou um Plano Municipal de
Casos de alta complexidade são atendidos por oito Casas de Acolhida que atendem pessoas em situação de rua, disponibilizando atualmente o total 190 vagas de acolhimentos para essa população. A Prefeitura do Recife afirmou que acompanha a trajetória das pessoas acolhidas pelos três meses seguintes. Segundo Fernanda, “os usuários e usuárias sabem que podem recorrer sempre que necessário aos profissionais com quem estabeleceram vínculo anterior”.
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ESTRANHO
e oferecer abrigo às pessoas em pobreza extrema e em situação de rua. “Temos vários projetos. Através de trabalhos voluntários, estamos expandindo nossas ações e estamos com uma maior arrecadação de alimentos, produtos de higiene pessoal, remédios, lençóis, roupas etc”, conforme afirma Antônio Alves, colaborador e um dos fundadores da Organização. José da Silva, 73, é um dos idosos assistidos pela organização. Enquanto Abandono da família e presença de outros espera seu almoço, ele nos conta que foi conflitos na terceira idade levam idosos à abandonado pelo filho. Descontente com a situação de rua. situação dos abrigos nos quais foi alojado, decidiu morar na rua. “Tem uns cinco anos Por Sílvio Romero e Jorge Henrique. já que meu filho me colocou em um abrigo. Não gostei, saí. Fui para outros e saí de novo. Agora estou aqui”, explica. omingo, início de tarde na rua da O Estatuto do Idoso considera que Aurora, Recife. É aqui que encontramos as pessoas com idade igual ou maior a 60 José, Luiz e Izenilda, todos acima dos 60 anos estão dentro do conjunto da terceira anos, sentados na calçada, aguardando idade. Porém, apenas a partir dos 65 é que o resto de almoço de um restaurante podem desfrutar da maioria das leis que das proximidades. Assim como eles, centenas lhes garantem benefícios, o que contribui de outros idosos vivem em situação de rua, para que mais de dois terços dos idosos em devido a uma miríade de circunstâncias. situação de rua estejam entre os 60 e 65. Cada um tem sua história, mas todos têm um “Quando eles completam 65 anos, recebem objetivo em comum: viver o restante da vida um salário mínimo do governo. Então, os que com algum conforto, dignidade e respeito. estão perto dessa idade são os que mais Dependendo de contribuições sofrem, pois as condições da sociedade e da assistência Eu tinha uma físicas e psicológicas estão do governo, eles precisam superar obstáculos e passar terrinha lá pelo lado no mesmo nível ou piores do que os de acima de 65”, por diversos tipos de do agreste onde explica Alves. provações. A Prefeitura do Recife eu plantava feijão, Esse é o caso de Luiz Costa, 61. Quando mais estima que a população de macaxeira, criava jovem, era agricultor. “Eu rua na cidade seja composta por 1.200 indivíduos, o que umas galinhas. Era tinha uma terrinha lá pelo do agreste onde eu corresponde a cerca de coisa pouca, mas lado plantava feijão, macaxeira, 0,075% da população total dava para viver. criava umas galinhas. Era da capital pernambucana. coisa pouca, mas dava Dos que estão nas ruas, para viver”, conta. Mudou-se para a “cidade 9% são idosos. Esses números diferem do grande” na esperança de encontrar uma vida levantamento feito pela Escola do Quilo melhor, mas encontrou apenas desilusão. chegou a números diferentes. A instituição “Minha mulher me deixou com uma semana estima que 1.300 idosos recifenses estão aqui em Recife, nunca mais a encontrei. Meus em extrema pobreza, sendo que 15% destes filhos começaram a se meter com drogas e estão em situação de rua. coisas erradas, terminaram vendendo nossas A Escola do Quilo é uma organização terras a um malfeitor”. Luiz nos conta que não governamental que existe há mais de recorreu ao álcool como forma de consolo seis anos. Seu objetivo é assistir, alimentar
SILÊNCIO
DA RUA
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quando a esposa o deixou. A partir de então, não conseguiu colocar sua vida de volta nos eixos. Aos 60 anos de idade, Izenilda Guedes, natural de Olinda, recorda com detalhes do seu nascimento. “Nasci num domingo de carnaval, às 4 horas da tarde”. No entanto, não se lembra com precisão porque está em situação de rua. “Eu trabalhava no comércio, mas agora estou assim, desorientada”, diz. Em sua fala, destaca que tem família. Em nossa conversa, ela citou alguns parentes, como o pai, que ela afirma ser agente federal; os dois irmãos; os filhos. No entanto, nenhum destes estava lá junto a ela. As condições adversas que as ruas do Recife proporcionam são numerosas. Antônio Alves explica que “fome, violência, problemas de higiene e saúde, contato com substâncias químicas ilícitas e vício em álcool” são os problemas mais frequentes e que mais despertam as ações das ONGs, associações e do governo. “Intervir e resolver esses aspectos é o primeiro passo para resgatar a cidadania de quem está morando nas ruas”, explica. O medo de sofrer violência é grande. “A 10 | ECOS
gente dorme um perto do outro. Volta e meia a gente fica sabendo de histórias de judiação contra nós, até enquanto dormimos”, conta Izenilda. Ela relata que soube de um caso em que dois estudantes de arquitetura mataram dois homens que dormiam nas ruas. “Eles sofrem demais com a violência e preconceito. Isso parte de todas as classes sociais, seja a polícia, estudantes, empresários ou pessoas marginalizadas. Os indivíduos nessa situação estão sempre mais vulneráveis por não terem muitas vezes quem os apoie ou os preteja”, analisa o Alves. Além da violência, a fome é um fantasma constante. Alguns afirmam passar dias sem ingerir nenhum tipo de alimento. Luiz explica que a situação é muito diferente da que viveu em seu sítio, onde, mesmo em situações de seca, era possível comer o que plantava ou caçava. “Aqui nas ruas, a gente fica dependendo de igrejas, da caridade do povo. Antigamente, era mais difícil, teve vez que passei quase três dias só tomando água. Agora tá melhor, porque a gente já tem a hora certa de receber o comê da Escola do quilo e de alguns restaurantes”. Aliadas à idade avançada, as ruas
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tendem a trazer malefícios ao corpo, como alerta a médica Cynthia Magalhães. Ela explica que, além das doenças mais comuns aos idosos, como hipertensão arterial, diabetes, acidente vascular cerebral, pneumonia e câncer, as pessoas na terceira idade e em situação de rua estão mais vulneráveis a fatores de risco para a saúde. Segundo Cynthia, as principais causas de morbimortalidade dessa população são os acidentes provocados pelo uso de bebidas alcoólicas, desnutrição, tuberculose e outras doenças respiratórias, além do HIV. “Soma-se a estes agravos o fato de que estas condições adversas de sobrevivência podem ainda desencadear problemas mentais orgânicos. É necessário que sejam instituídos programas efetivos de prevenção e promoção de saúde voltados especificamente para este segmento populacional”, diz. Quando completam 65 anos, as pessoas de terceira idade despertam o interesse de asilos, mas nem sempre os abrigos oferecem boas condições. José nos conta que já viveu situações precárias nos asilos por onde passou. “Tinha um que só deixava a gente tomar banho uma vez por semana, outro nos
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Aqui a gente tem mais liberdade. Às vezes eles tratavam a gente feito preso nos asilos
dava comida vencida…” Em alguns casos, os sujeitos preferem retornar à condição de rua. “Aqui a gente tem mais liberdade. Às vezes eles tratavam a gente feito preso nos asilos”, afirma. Abandonados pela família e ignorados pela maior parte da sociedade, José, Izenilda e Luiz têm esperanças de um futuro melhor. “É uma situação delicada. Ao mesmo tempo em que não devemos dar-lhes falsas esperanças, para não se decepcionarem, temos que mantê-los motivados com metas, objetivos para que tenham força e não se afundem nas condições em que vivem”, conclui Alves. “Eu sei que Deus vai me ajudar, porque eu nunca matei, nunca roubei ou fiz coisa errada”, declara Izenilda. Tanto ela como José ainda acreditam que os filhos virão buscálos. “Eu acho que ele estava em uma fase difícil, mas ele vai voltar para me buscar, eu sei que vai”, diz José. Já Luiz nutre o sonho de regressar para suas terras e desfrutar da paz e conforto que os campos podem lhe proporcionar. ECOS | 11
GANHAR A VIDA
Foto: Tiago Rodrigues
DE PASSAGEM
Ambulantes senegaleses tentam a sorte no meio da bagunça do comércio no centro do Recife Por Fillipe Vilar e Tiago Rodrigues
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ndar pela Avenida Conde da Boa Vista, no centro do Recife, é se perder. Hippies, comerciantes, fiteiros, pedestres. As águas dos esgotos saindo pelos buracos nas calçadas. É fim de ano e o corredor, um misto de espinha dorsal do transporte público com mercado de pulgas, está em sua fase mais lotada. O sol do verão castigando as cabeças e nucas. O suor escorrendo pelas peles cansadas. As mãos rápidas dos ambulantes contando dinheiro. Os pedintes observando, alguns deitados, outros passeando pelas paradas de ônibus com as mãos estendidas, oferecendo as vozes ao julgamento de quem espera, impaciente, para seguir para suas casas. Em meio ao caos, quem caminha atento logo percebe os estrangeiros. Chineses em suas lojas e lanchonetes ao longo da avenida, bolivianos vendendo artesanato na esquina com a Rua do Hospício, e alguns camelôs, concentrados principalmente nas proximidades do Atacado dos Presentes - a Babilônia das quinquilharias - e o Shopping Boa Vista, o primo pobre dos empreendimentos JCPM (o Boa Vista não pertence ao grupo). Desses ambulantes, peles pretas destoando da nossa negritude miscigenada, presumese - como toda presunção, um conceito preconcebido - a origem africana. Que se confirma à primeira abordagem. O corredor de camelôs nas imediações do Shopping quase atrapalha quem circula pela calçada que vai dar na Loja Riachuelo. Bruno (nome fictício) oferece relógios da marca Orient. Sorriso no rosto, do português só conhece os preços dos produtos: 30 reais pelo relógio de pulso, de uma cor dourada que ofusca os olhos naquele sol de verão, às
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3h da tarde. “De onde você é?”, Bruno olha, desconfiado. Sorri. “Senegal”, responde. Cidade de Pernambuco A história do Recife e o Senegal, país localizado na costa ocidental do continente africano, está ligada por um detalhe curioso. Em 1895, Cheikh Ahmadou Bamba, líder religioso Sufi, foi preso pelos colonizadores franceses que estavam iniciando o processo de domínio do território do país. Bamba foi mandado para o exílio, no Gabão, em um navio que, de acordo com a historiografia oral senegalesa, se chamava “Cidade de Pernambuco”. A embarcação teria sido um empréstimo da Marinha do Brasil para os franceses. Desde então, Pernambuco permanece no imaginário dos praticantes do sufismo, corrente mística e contemplativa da religião islâmica, daquele país. Separados por um Atlântico de distância, o Recife, a Cidade de Pernambuco, se tornou um dos principais pontos de entrada de imigrantes senegaleses no Brasil. Atraídos pelo crescimento econômico brasileiro, os africanos procuraram se estabelecer por aqui para trabalhar e ganhar em Real, que chegou a ser 240 vezes mais valorizado que o Franco SFA, moeda oficial do país africano, em 2012, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e IBGE - Países. Com a crise na economia brasileira, o fluxo de retorno dos imigrantes senegaleses para suas terras de origem tem aumentado. O Real perdeu valor de câmbio e já não é mais tão vantajoso para os senegaleses permanecerem no país. O caminho de volta, por vias legais, é difícil: é preciso sair do Aeroporto do Recife com destino a Praia,
“Brasil vai e vem” Bruno conversa sobre a venda dos relógios. Ele tem 25 anos, é solteiro. Nasceu em Bakel, pequena cidade no nordeste do Senegal, e veio sozinho para o Recife tentar a sorte. “Brasil vai e vem, vai e vem”, referindose ao seu percurso de constantes idas e voltas. Não domina a nossa língua. Não é tão necessário, afinal não deseja ficar para morar. Quer retornar para o Senegal com a vida feita, apesar de não estar conseguindo muito com a venda de relógios, brincos, pulseiras e colares em sua banquinha localizada em frente ao Shopping Boa Vista. “Pequeno, pequeno”, diz Bruno, ao falar de seus lucros. Inicialmente aberto ao diálogo, se fecha e pede para não ser identificado. “Cuidado que tu vai ser deportado”, diz um colega ambulante, brasileiro, ao ver Bruno conversando com jornalistas. “Somos estudantes, é para uma matéria”. “Vai que é polícia”, responde o comerciante. Não deixa de ter razão. Vai que é? Perguntas demais, dependendo do ambiente, sempre levam a olhares desconfiados. Muitos senegaleses e outros imigrantes africanos se utilizam do recurso do asilo político para permanecer no Brasil. De acordo com a Lei 9.474/1997, podem pedir asilo político os estrangeiros que se encontrem em situação de perseguição política, ideológica, religiosa, social ou racial, sem desejo de retorno ao país de origem enquanto a situação hostil durar. Ou quando há violações aos direitos humanos no país originário, fazendo com que os estrangeiros estejam temporariamente impossibilitados de retornar. Presidido desde 2012 por Macky Sall, o Senegal tem uma economia que tende a se tornar emergente e uma situação política estável. Não há conflitos étnicos e não está em guerra civil. Politicamente, não há motivos
para um pedido de asilo de um imigrante senegalês para permanecer no Brasil, que não tem um histórico de deportações forte como as grandes nações europeias e os Estados Unidos. Mas o receio existe. Bamba Um pouco mais à frente, perto do restaurante Mustang, Bamba vende bonés, eletrônicos, joias, relógios. Homem alto, parece seguro de si. Domina melhor o português que o desconfiado Bruno. “Sou de Thiadiaye”, cidade mais próxima costa senegalesa. Está aqui há cinco anos. “Passei por Espanha e Argentina”. Não gosta do Brasil, “só para ganhar as coisas, não para viver”. Tem esposa e um filho, brasileiros, mas
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Sou imigrante. Vim para tentar a vida, ganhar dinheiro. Mas viver, mesmo, é no Senegal
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capital do Cabo Verde. De lá, à curta distância do arquipélago para a costa, seguir para o Senegal. O preço da passagem aérea para esse percurso, em dezembro de 2017, é de cerca de R$ 5 mil, taxas e encargos inclusos, pela companhia aérea portuguesa TAP.
quer voltar. “Sou imigrante. Vim para tentar a vida, ganhar dinheiro. Mas viver, mesmo, é no Senegal”. O dono da banca de revistas ao lado da barraquinha de Bamba não quis se identificar. “Não quero conversa com essas coisas”. Não quer dizer o porquê da desconfiança. Em geral, o olhar dos comerciantes brasileiros ao perceber a abordagem aos estrangeiros é de hostilidade. Bamba, ao conversar, respondeu apenas o básico e não entrou em detalhes sobre como entrou no Brasil. A tarde vai caindo com algumas nuvens cinzas. Longe de ser chuva. O céu ganha os contornos cor de laranja dos gases de poluição sendo tocados transversalmente pelos raios do sol. O caos, na Conde da Boa Vista, com Bruno, Bamba, o dono da banca, o camelô que meteu medo e os milhares de pedestres, está só começando. Bamba e Bruno estão de passagem. As centenas de pessoas nas paradas de ônibus estão de passagem. Muda a distância, não o horizonte. Todo mundo só quer ganhar a vida.
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VENDENDO
ARTE
Abandono da família e presença de outros conflitos na terceira idade levam idosos à situação de rua.
Por Sílvio Romero e Jorge Henrique. Como viver da arte, tendo como palco o transporte público e as ruas do Recife. Por: Carol Ribeiro e Pedro Farias
O estudante Lucas, 25, e o ex-militar Alexandre 30, encontraram na música uma forma de driblar o desemprego e as dificuldades decorrentes da crise financeira que vem atravessando o país. Juntos, formam a banda Colt Brothers e, atualmente, sobrevivem apenas da música. Os irmãos contam que viver de música no transporte público não é fácil, mas que encaram a situação para ganhar o sustento e divulgar o trabalho da banda. Em Pernambuco, a taxa de desemprego no terceiro trimestre de 2017 foi a maior verificada no País. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de 14 | ECOS
Domicílios Contínua (Pnad), divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o desemprego no estado atingiu 17,9%, o que corresponde a 734 mil pessoas sem ocupação nos meses de julho, agosto e setembro deste ano. No Recife, a taxa de desocupação do terceiro trimestre de 2017 foi de 14,9%. Diante de números altos de desempregados no estado, observa-se o
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m uma tarde de sol escaldante, com muito calor e movimento intenso de pessoas no transporte público do Recife, encontramos no metrô linha sul os irmãos Lucas e Alexandre Colt. Mas, ao contrário da maioria, eles não estão ali porque precisam se deslocar para algum lugar na cidade. Os irmãos são músicos e os trens são o seu local de trabalho, como é o caso de muitos artistas que dependem das ruas ou do transporte público para mostrar sua arte.
São músicas que tocam a gente e trazem sustento para eles. Isso é que vale
aumento de trabalhadores informais no comércio ambulante pelas ruas e transportes públicos do Recife. Nesse movimento de comércio informal, estão os artistas que fazem apresentações, sem autorização prévia e com intuito de arrecadar dinheiro entre os usuários de vários meios de transporte.
Nas ruas Saindo do transporte público e caminhando pelas ruas do Recife, encontramos o malabarista Hugo Leitão, de 43 anos. Hugo faz suas apresentações no cruzamento da Avenida General Mac Arthur com a Avenida Mascarenhas de Morais, no bairro da Imbiribeira. Ele trabalha com a arte circense há 28 anos. Desde que se interessou pelo malabarismo, não parou mais. Hugo já trabalhou em circos na Europa e foi professor de circo em escolas nacionais. Atualmente, no entanto, está desempregado. Ele viu na rua a possibilidade de ganhar algum dinheiro e de mostrar sua arte para as pessoas. “Eu posso dar a oportunidade das pessoas que não têm acesso à cultura aqui no Brasil. Circo é caro e eu vi isso como uma forma de retribuir”, explica.
Sobre a aceitação do público ao seu trabalho, a dupla afirma que é quase sempre positiva. No entanto, Alexandre ressalta que “já tivemos situações desagradáveis aqui no metrô, mas conseguimos contornar”. O passageiro Bruno Pereira, 20, não vê problemas com as apresentações. “São músicas que tocam a gente e trazem sustento para eles. Isso é que vale”, afirma. Já a operadora de telemarketing Caroline Vasconcelos, 33, não simpatiza muito com essas performances. Segundo ela, “existem alguns que são meio chatos e inconvenientes”. De acordo com a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), a atividade de artistas se apresentando dentro dos trens não é permitida, pois pode atrapalhar a operação e a circulação dos passageiros dentro dos trens. O Metrô tem espaços para apresentações nas estações e os artistas podem utilizá-los, desde que com a devida autorização do metrô.
O malabarista nunca pensou em desistir do trabalho, mesmo com todas as dificuldades enfrentadas. Segundo ele, não ter um local apropriado para suas apresentações é um grande problema, mas é preciso continuar. Ele vive de suas apresentações nas ruas e de alguns trabalhos extras que faz como produtor musical. Considera sua rotina cansativa, porém gratificante, por fazer o que ama. Em relação à exposição de sua arte na rua, Hugo destacou que é preciso ter classe, saber entrar e sair, criar intimidade com o público para que eles vejam o trabalho como algo sério. “A forma como você se comunica com as pessoas, a forma como você se apresenta, é capaz de quebrar preconceitos”, aconselha. Sobre a valorização da cultura no estado de Pernambuco, o artista considera que apenas esperar pelo Governo não adianta. “As pessoas esperam esmolas do governo para que as coisas aconteçam”. Segundo ele, o mais importante é que os próprios cidadãos se deem conta de seu papel na promoção da cultura. “Se as pessoas não derem o devido valor à cultura, ela nunca será valorizada”, finaliza. ECOS | 15
OS TONS
DO FUTURO Projeto social Cores do Amanhã oferece oficinas das mais diversas expressões artísticas para crianças de uma comunidade do Recife
Por: Turma de Oficina de Jornalismo de 2017.2
E
m Pernambuco, o projeto social Cores do Amanhã está mudando a realidade de crianças e jovens que moram em comunidades no bairro do Totó, no Recife (PE). O trabalho dos voluntários que integram a Organização Não Governamental (ONG) tem como base a arte de rua e suas manifestações culturais. O movimento, que se intitula como cultural e social, oferece oficinas e atividades para cerca de 350 pessoas. O objetivo inicial do projeto era amparar as crianças da comunidade, mas deu tão certo que hoje o Cores do Amanhã abraça toda a família. Tivemos a oportunidade de conversar com a coordenadora e uma das idealizadoras da ONG, Jouse Barata, que falou sobre o movimento e mostrou um pouco do que é produzido lá. Confira abaixo realizada pelo grupo:
a
entrevista
Como surgiu a ONG?
Jouse: O Cores nasceu há mais de 10 anos. Eu cresci do lado do presídio vendo os meus amigos morrerem por causa do tráfico, então eu comecei o projeto no terraço da minha mãe. Ela já ajudava em creches. Eu me envolvi no movimento hip-hop, fiz faculdade e me formei em turismo, mas sempre tive vontade de ajudar a minha comunidade. Lá 16 | ECOS
Foto: Cores do Amanhã
a pixação era uma muito forte. Eu dava aula nas Funases e os meninos lá só queriam pixar. Então, eu virei grafiteira para poder acompanhar o ritmo deles. Hoje, a gente já faz oficinas nas Funases, já pinta os muros. Isso vai quebrando muitas barreiras, muitos paradigmas... Agora, a gente já é bem aceito, né? Como vocês planejam as diversas atividades e oficinas do Cores? Jouse: Quando a gente escolheu esse nome “Cores do Amanhã”, foi primeiro porque nós trabalhávamos com grafite, mas também porque a gente queria atender um público diverso e colorido. São pessoas diferentes, com culturas diferentes, religiões diferentes, raças diferentes, etnias diferentes, então a gente tenta agregar tudo. Hoje, são mais de 30 oficinas, com mais de 350 atendimentos fixos e esses itinerantes, então cada oficina
também. Então assim, não tem uma idade estipulada, a partir de 5 anos, estando matriculados na escola e frequentando - a gente pede a declaração - eles têm uma fichinha e uma folha de frequência. A gente não tem um público e perfil específico, todo mundo é bem vindo no Cores. Como a comunidade recebe o projeto? Eles têm interesse em participar? Jouse: A gente tenta muito envolver principalmente as mães. Antigamente, as mães não entendiam como era o Cores. Mas a partir do momento em que a gente construiu mais uma salinha, foi crescendo. As mães da comunidade começaram a ter mais confiança no trabalho e a participar. Elas pedem as oficinas. “Ah Jouse, eu queria yoga”, “Jouse, eu queria balé pras minhas filhas”, “quero forró”. Isso é uma forma de aproximar as famílias. A gente tem feito de um jeito que não só a criança vá, mas que seja pra família toda, para que as crianças entendam que aquele é um espaço deles. Um espaço de transformação. que chega para a comunidade é muito bem vinda. Tem pessoas daqui de Recife sendo voluntários e pessoas de fora, como uma francesa, chamada Elsa, que veio para cá, se apaixonou, acabou ficando e dando aula de acordeon e canto. A gente está sempre tentando inovar para eles não desistirem dos seus sonhos. Às vezes tem grafite, mas o jovem quer “break”, então estamos sempre trazendo o máximo de oficinas, das mais variadas culturas, das mais variadas formas, inclusive esportivas. Há algum perfil de jovem que tem maior adesão ao projeto? Jouse: A gente diz que o Cores é uma grande família. É um box bem pequenininho, mas o coração é muito grande. Lá todos são voluntários, a gente tem criança a partir de 5 aninhos até senhoras de idade. No artesanato, as mães acabam se envolvendo
Como vocês arrecadam fundos para o material? Jouse: A gente não tem financiadores. O Cores do Amanhã é um grupo meio autossustentável, a gente vive de grafitagem e das vendas de artesanato, assim como de doação. Quais as maiores para manter o projeto?
dificuldades
Jouse: A principal dificuldade é o financiamento. Vivemos do grafite. Todos nós, fundadores... A gente até hoje ainda trabalha para poder manter a contas. Então, chega um ponto em que você tem 350 alunos, tem muitas oficinas precisando de material, muitas oficinas precisando de estrutura, festas, Dia das crianças, Natal, Carnaval. Então a nossa maior dificuldade é manter o espaço vivo. Não de calor humano, porque nesse sentido ele é muito vivo, mas da questão financeira que ainda pesa. ECOS | 17
AQUELES QUE
ENXERGAM OS
INVISÍVEIS
Jovens que se reuniram para dar assistência e atenção aos que vivem em situação de rua na cidade do Recife.
Por: Priscila Sá
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Foto: Priscila Sá
“Buscamos áreas que não têm a atenção de outras pessoas e focamos nas que têm mais crianças e idosos”, explica Gabriela. Na medida em que novos voluntários se juntam à associação, é possível acrescentar novos lugares ao roteiro.
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Você passa a ver o mundo de outra forma, a se satisfazer com menos
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ilipe Lima, recifense de 29 anos, vive nas ruas há mais de 20. Passa a maior parte do tempo na praça Parque Amorim, na Boa Vista, centro da cidade, onde ele costuma trabalhar como flanelinha de carros para tentar conseguir as primeiras refeições do dia. Quem garante o jantar de Filipe, bem como de outros que convivem com ele no Parque Amorim, são os voluntários da Associação Transformar, que contribui para o reconhecimento da população de rua do Recife. A iniciativa teve início com um grupo de estudantes que viam a situação das pessoas que vivem nas ruas e se sentiam sensibilizados, querendo ajudar. Sem fins lucrativos, a Transformar ajuda mais de 300 pessoas, que vivem nessa rotina, todos os meses. A estudante Gabriela Albuquerque, 19, organizadora da Associação Transformar, explicou que as ações começaram entre amigos e aos poucos o grupo foi mudando. “Já temos alguns pontos fixos, que foram definidos por aqueles que começaram e que hoje não participam mais”, relatou. A Prefeitura do Recife também realiza ações sociais para a população de rua, mas, segundos os próprios moradores, essas ocorrem apenas em determinadas épocas do ano, não sendo algo recorrente. Percebendo essa lacuna, a Transformar define lugares e datas regulares, para criar laços com as pessoas que assistem e para que elas possam contar com o grupo.
A estudante comenta que, antes de se juntar à Transformar, não prestava atenção nas pessoas que viviam nas ruas por onde passava. O contato com uma realidade diferente da sua foi, a princípio, chocante. Ela conta que impressionou-se com a diferença
social e a ausência de itens básicos, como água e frequência de banho. A experiência mudou seu olhar. Passou a reparar mais nas pessoas quando anda pela cidade. Filipe é um dos que mantém laços e espera por alimento, roupas limpas e minutos de atenção. Ele conta que, quando tinha 4 anos de idade, sua mãe faleceu e sua avó começou a levá-lo para os sinais, onde pedia dinheiro. Filipe explica que o convívio com a avó, que chegou a ser presa por tráfico de drogas, era muito desgastante. Eventualmente, ele tomou a decisão de morar na rua. Desde então, luta para sobreviver, contando com o apoio das ações de associações e organizações como a Transformar. “Eles não têm obrigação de nada não, mas eu gosto muito quando eles vêm”, afirmou.
É o momento em que ele pode desfrutar de uma alimentação mais rica em nutrientes. Sempre muito alegre, Filipe cumprimenta todos do grupo, mesmo esquecendo o nome de vários. O esquecimento é decorrente do uso frequente de drogas como crack e maconha, segundo ele. A solução é chamar todos de “tia” ou “tio”. A associação é o único motivo para continuar na praça quando a noite chega, à espera de alimento. O próximo passo da Transformar é formalizar a associação como uma ONG Organização Não Governamental. O trabalho é árduo, mas muda a vida inclusive de quem se voluntaria: “Você passa a ver o mundo de outra forma, a se satisfazer com menos”, confessa. ECOS | 19
ESPAÇOS PÚBLICOS
DO RECIFE:
UM REFÚGIO EM MEIO AO CAOS A ocupação dos equipamentos públicos do Recife como uma forma de lazer e preservação
Por: Fernando Castro e Julia Aguilera
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ão consideradas metrópoles cidades que exercem influência social, econômica, geográfica e cultural sobre os municípios vizinhos. Elas, em sua maioria, são sinônimo de movimento. Seja de carro, de pessoas, informações, ou tudo isso junto, como é o caso do Recife. Segundo dados publicados pelo Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), a capital pernambucana registrou em 2017 o número de 1.633.697 habitantes, o que faz dela a 9º cidade mais populosa do país. Apesar de parecer “legal” estar na nona colocação, esse pode ser um número preocupante, principalmente quando a cidade não foi planejada e não possui infraestrutura para fazer com que esses mais de um milhão e meio de pessoas convivam de forma harmônica e organizada. O rítmo na capital é diferente dos outros lugares. As pessoas sempre estão com pressa, os ônibus lotados, os carros presos em congestionamentos. A cidade se move (ou tenta) em meio ao caos e parece que todo mundo já se acostumou. A qualidade de vida, muitas vezes, parece não combinar com a vida corrida dos dias atuais. Não temos tempo de comer direito, não temos tempo para nos exercitar e vivemos estressados com o deslocamento pela cidade. A forma como a metrópole é estruturada e o tipo de ambiente que ela oferece aos seus habitantes influenciam de forma direta nessas questões. Recife não recebe as melhores críticas em relação à infraestrutura. Ainda falta muito
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Foto: INCITI
para que os problemas da cidade sejam solucionados. Enquanto isso não acontece, as pessoas que desejam ter melhor qualidade de vida se viram como podem. Refúgios do caos No Recife, em contraponto ao trânsito caótico e ao ritmo acelerado dos pedestres, existem ainda lugares que dão a oportunidade de fugir da rotina. Parques e praças são, talvez, os melhores exemplos de locais onde as pessoas conseguem interagir melhor com a cidade. A estudante de administração Natália Falcão, 30, assim como boa parte dos recifenses, possui uma rotina diária bastante corrida. Durante a semana, ela se divide entre as aulas e o estágio. Mas, sempre que arruma um tempo extra, costuma frequentar um dos mais importantes e famosos espaços públicos da cidade do Recife, o Parque da Jaqueira. “Sou frequentadora do parque desde criança, desde a época do parquinho. Hoje, faço uso das pistas para corrida e caminhada”, comenta a jovem. A Jaqueira,
se afastou um pouco dessas atividades por receio do índice de violência na cidade. “Até 2016, eu tinha uma rotina de caminhada mais frequente, mas os relatos de furtos dentro do parque e nas redondezas me fizeram diminuir”. Assim como grande parte da população, Natália não se sente mais segura em sair para se exercitar nesses locais públicos. “Eu chego a me sentir desconfortável por ficar sempre com medo, sempre olhando para os lados”, confessa. como é conhecido o parque, tem uma extensão territorial de cerca de 70 mil m². Diariamente, centenas de pessoas utilizam a área como um local para realizar exercícios físicos e relaxar. Além das caminhadas semanais nas pistas do parque, Natália aproveita, nos dias de domingo, outro espaço público que é a cara do Recife: o Marco Zero. “Eu vou até a Jaqueira e de lá inicio meu trajeto até o Marco Zero de bicicleta. Lá, aproveito para passear e pedalar nas ruas circunvizinhas”. É difícil saber ao certo quantos locais desse tipo existem no Recife. Cada bairro tem suas praças ou parques e nem todos recebem a mesma atenção que a Jaqueira, o Marco Zero ou o Parque Treze de Maio. As informações relacionadas ao contingente numérico de equipamentos públicos voltados ao lazer e ao bem-estar, assim como sua manutenção e administração, foram solicitadas à Secretaria de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente da Prefeitura do Recife, mas até o fechamento da matéria, não obtivemos resposta. Apesar de ainda frequentar, a estudante lembra que já foi mais ativa e que
Projetos que proporcionam interação entre a população e a cidade Segundo dados da Prefeitura do Recife, a capital pernambucana conta com 41,6 km de rede ciclável distribuídos entre ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas. Número baixo comparado aos espaços destinados para os veículos motorizados, tendo em vista que o trânsito é, ou pelo menos deveria ser, um ambiente democrático. Com o objetivo de estimular a mobilidade ativa e uma maior interação entre os cidadãos com as ruas e os espaços públicos da cidade, iniciativas estão promovendo a participação popular nas vias públicas. O projeto Carimbos Urbanos é um exemplo de intervenção que tem como proposta de atividade a demarcação de percursos lúdicos através de pinturas, promovendo mobilizações colaborativas para cidades mais humanas, inteligentes e sustentáveis. Surge como um incentivo à Mobilidade Ativa e de baixo Carbono no Recife. O projeto propõe a criação de caminhos criativos, com ações para gerar a ECOS | 21
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O ritmo da rua é você
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cidade tem a oferecer, comenta. Evandro Henriques também faz parte do Oxe e, para ele, o projeto é uma rede de conectar pessoas que amam o Recife. Segundo o estudante de arquitetura, o projeto parte da frase: “Está aberta a temporada de amor ao Recife”. Com a ajuda das redes sociais, apresenta um viés educativo que visa a ajudar as pessoas a valorizarem a sua cidade. Enquanto esses projetos incentivam os cidadãos a se apropriarem das ruas e dos espaços públicos, a violência enfrentada pela capital pernambucana é um grande fator que desestimula e deixa a população apreensiva. De acordo com Rebecca, a violência e o abandono dos equipamentos públicos afastam as pessoas. “A partir disso a gente pode pensar em uma lógica inversa, o lugar não é vazio porque é perigoso, o lugar é perigoso porque está vazio”, completa. A insegurança é, de fato, um sentimento constante na vida de quem mora na capital pernambucana. É difícil andar despreocupado mesmo quando estamos em momentos que deveriam ser apenas de lazer. Esse sentimento é um dos motivos pelos quais os recifenses trocam as áreas públicas e abertas, por ambientes fechados como Shopping Centers e cinemas. No entanto, os amantes do Recife seguem resistindo, dando um jeito de prestigiar e ocupar os cantinhos cheios de vida da cidade. Nataĺia, que ama a Jaqueira, sabe bem disso. “Por mais que sejam tempos de muita insegurança, acredito que não devamos abandonar e desvalorizar esses locais. Pelo contrário, devemos lutar para resgatar a importância da nossa cidade e exigir do poder público que cumpra seu papel de zelar pelo Recife e por todos os cidadãos”, desabafa a estudante, em tom de esperança.
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Está aberta a temporada de amor ao Recife
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interação e a participação das pessoas na cidade provocando debate sobre mobilidade com intervenções urbanas. Caio Scheidegger, advogado especialista em Direito Ambiental e um dos facilitadores da ação, explica qual o objetivo do projeto. “A ideia do projeto Carimbos Urbanos é fazer com que a população passe a utilizar mais a rua e os espaços públicos da cidade de forma mais lúdica, incentivando o uso da mobilidade ativa”, afirma Caio, coordenador de Ativação Urbana do INCITI/UFPE. Com mensagens de ‘’O ritmo da rua é você’’, ‘’Saia da rotina, vá de pés’’ e ‘’Caminhar é um ato revolucionário’’, a intervenção dos Carimbos Urbanos já foi para as ruas em duas oportunidades. A primeira aconteceu nas ruas que circundam o Parque da Jaqueira, no mês de outubro de 2017, e foi promovida com a participação de diversos voluntários que passavam durante a ação. A segunda atividade foi realizada em novembro do mesmo ano, no entorno da Praça do Arsenal, integrando a programação do Campus de Pensadores Urbanos, iniciativa da Campanha Urbana Mundial da ONU-Habitat. ‘’Oxe, minha cidade é massa!’’, é um projeto formado por um grupo de cinco estudantes de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e tem como objetivo recuperar a relação de pertencimento dos cidadãos recifenses com a própria cidade. O projeto surgiu em maio de 2017 e desde então realiza diversas ações na cidade. Rebecca Dantas, uma das idealizadoras do Oxe, comenta que o projeto surgiu a partir de uma problemática comum às metrópoles: a rua apenas como lugar de passagem. “Cada pessoa vive o seu mundo, cada uma entra no seu carro e liga o som, fecha o vidro ou entra no ônibus e coloca o fone de ouvido. As pessoas estão muito presas na rotina e esquecem de olhar o que tem ao redor, fazem todo dia o mesmo caminho e as vezes nem consegue enxergar uma praça, um parque, tantas coisas maravilhosas que a
VIVER DE
MÚSICA
Em meio às dificuldades, músicos pernambucanos se “desdobram” para consolidar seus trabalhos no mercado Por: Fernando Castro e Julia Aguilera
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música é uma das principais artes do mundo e uma das que mais influencia na sociedade. Desde o movimento Manguebeat, que estourou na década de 90 com sua mistura de ritmos como a música psicodélica, o hip hop e o maracatu, a cena musical pernambucana passou a receber uma atenção diferente. Chico Science, grande idealizador e perpetuador do movimento, conseguiu misturar referências internacionais e regionais de uma forma
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Música para mim é a forma de expressão mais completa que existe.
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que não só conquistou, como abriu caminho para quem, desde então, faz música em Pernambuco. O estado possui uma carga cultural muito forte e isso está refletido de forma direta em seu cenário musical. São tantos estilos, sons e artistas produzindo, que imagina-se que temos aqui o cenário perfeito, entretanto não é bem assim. Trabalhar com a Primeira Arte em Pernambuco não é fácil, os desafios são grandes, principalmente quando se trata de artistas independentes que necessitam unicamente de seu esforço e dedicação para viverem daquilo que tanto
amam: a música. Essas dificuldades podem ser evidenciadas em diferentes aspectos. Com a crise política e econômica que o país enfrenta e a diminuição dos incentivos, músicos independentes precisam reinventar seus trabalhos para conseguir viver de suas músicas e projetos. Além disso, não podemos negar que a localização e o preconceito muitas vezes dificultam uma projeção nacional maior. “Música para mim é a forma de expressão mais completa que existe. É uma coisa atemporal e que vem da alma. Ela é minha vida, é o que eu mais sinto vontade de fazer”. Esse sentimento pela música fez Dido, de 26 anos, deixar para trás tudo o que estava fazendo e se dedicar inteiramente e ela. O baixista pernambucano deixou a faculdade de Tecnologia da Informação em 2015 e desde então tem sua vida pautada no som que produz. “Eu só estava fazendo o que a sociedade cobrava: estudar, crescer, arrumar um emprego e trabalhar nele para me sustentar. Eu fazia isso no automático e não me sentia realizado. Sempre gostei muito de música e não me dedicava a ela por causa do preconceito. Certa hora, eu preferi arriscar e fazer o que eu gostava, não queria ter outra vida. Enquanto eu estou novo e posso, dedico toda a minha energia à música”, afirma. Mesmo com todas as dificuldades, ele diz não se arrepender. Hoje, tocando em oito bandas, a maioria de seus projetos é cover, um mercado considerado forte no Recife. Essa é a realidade de muitas das pessoas que querem viver de música em Pernambuco. Criar a própria música e, consequentemente, construir seu público ainda é uma das maiores dificuldades no ramo musical. “Pra mim cover vale a pena pelo retorno financeiro imediato. Você toca músicas já consolidadas e que as pessoas sabem que gosta. Sempre tem oferta de trabalho e público. Por outro lado, o sonho de qualquer artista é ser reconhecido pelo trabalho que ele fez. A música autoral continua sendo um trabalho muito forte. Seria muito bom se tivesse o mesmo retorno ECOS | 23
Foto: Allefy
Foto: Dido
financeiro e reconhecimento”, comenta Dido. Mas existem casos de artistas independentes que conseguem impulsionar uma carreira devido ao reconhecimento de seus trabalhos autorais. É o caso de Tiné. Nascido em Arcoverde, cursou licenciatura em música pela Universidade Federal de Pernambuco e começou a tocar profissionalmente em 2004. Vocalista da Academia da Berlinda e da Orquestra Contemporânea de Olinda, está lançando seu segundo disco solo. São dois projetos diferentes, mas que carregam em sua composição o peso de serem trabalhos autorais e independentes. Para ele, a persistência e a dedicação são pontos chaves para quem trabalha e acredita na música que faz. Além disso, existem alguns aspectos que, segundo Tiné, fizeram toda a diferença para seus trabalhos. “Quando se fala de música tem vários aspectos que podem ser 24 | ECOS
considerados como diferenciais, um deles é tempo de banda. A gente, por exemplo, tem 13 anos só de Academia. Outra coisa importante é que sempre tocamos nossas próprias músicas. Independe do que fosse, era nossa música. A gente sempre viajou nisso de compor e ser independente, acredito que esse pode ser um diferencial, porque dessa forma você está criando sua obra e apresentando uma coisa sua e única para o público”. Para Allefy, jovem cantor e compositor sertanejo, a música é uma paixão desde a infância. Aos 11 anos ele teve sua primeira banda composta por amigos e primos, desde então não parou mais. “Aos 16 anos eu fiz o meu primeiro show profissional, foi daí que a minha carreira começou de fato”, comenta. Hoje, com 19 anos e três de trabalho, analisa que o estilo escolhido de música pode ser determinante no reconhecimento do trabalho. “Particularmente eu sinto dificuldade em relação ao meu estilo musical.
O sertanejo não faz parte da raiz cultural pernambucana em si. As pessoas aqui têm mais facilidade em abraçar o frevo, o brega e outras manifestações mais regionais”. Já para Tiné, que tem outro tipo de trabalho e outro público, seu estilo musical já é tido como um ponto positivo. Suas canções, que tem no sangue ritmos como o Frevo, Maracatu Rural, Cavalo Marinho, Coco e o Reisado, caíram no gosto do povo e vêm dando o que falar. Ele acredita que existem trabalhos que abriram caminhos, como o movimento Manguebeat, que trouxe os olhos
Foto: Allefy
do mundo para cá e mostrou que aqui tem muita coisa legal. ‘’A galera começou a se interessar ver que aqui tinha uma cultura massa”, afirma. Embora a música seja sua paixão de infância e que persiste até hoje, Allefy, assim como vários jovens de sua idade e que possuem o mesmo sonho, sentiu necessidade de cursar uma graduação totalmente
diferente. Allefy enxerga a nutrição como seu segundo plano. ‘’Optei por não cursar música justamente pela dificuldade do mercado, é um campo muito restrito, com poucas oportunidades e reconhecimento, como sempre gostei também de nutrição, decidi fazer o curso’’, comentou. Foto: Tiné
Mas nem tudo é dificuldade. Não importa se é o rock de Dido, o sertanejo de Allefy ou essa mistura de referências culturais que Tiné apresenta em seus trabalhos, a internet tem lugar para todos e hoje é a principal ferramenta para disseminação dos trabalhos de todos eles. Pensando em seu alcance antes inimaginável, quem usa a internet nos dias atuais está apostando na interação e fidelização do público. “A gente não ganha mais dinheiro com disco, é um valor mínimo. A gente disponibiliza o material online e prefere que as pessoas conheçam o trabalho e queiram ir para o show”, comenta Tiné, que está sempre conectado criando conteúdo para quem curte sua música. ECOS | 25
CAPITÃES DA
AREIA: A vida na rua e a perda da infância Por Jonathan Campos
O
livro Capitães da Areia é um romance escrito por Jorge Amado que retrata a vida de um grupo de meninos em situação de rua na cidade de Salvador, nos anos de 1930. A obra em questão foi considerada como um grande marco na produção literária da década de 30 por mostrar, dentre outras coisas, vários problemas sociais brasileiros. Assuntos como a liberdade de expressar sua fé (uma vez que, nesta época, a religião católica era a única reconhecida pelo governo e a mais predominante), a condição de vida de crianças e jovens que moram nas ruas, a criminalidade brasileira, ideologia, ceticismo
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e ativismo político são alguns dos aspectos apresentados na obra. O autor não mostra apenas a violência da vida dos garotos, mas também os sonhos e os pensamentos ingênuos das crianças. Além disso, a forma como Amado aborda o assunto chama a atenção, pois faz com que, através da leitura, a pessoa coloque-se contra toda e qualquer forma de opressão. Nos apresenta ainda os traços mais importantes da nossa colonização, como, por exemplo, o candomblé e o falar popular. No romance, podemos perceber também um caráter jornalístico dentro da obra. As “Cartas à Redação”, uma sequência de falsas reportagens e depoimentos que ficam no prólogo do livro e aparecem durante a narrativa, nos permitem entender que, na recriação de matérias jornalísticas, o autor tenta dar à história do grupo de meninos um caráter mais sério e verdadeiro e, ao mesmo tempo, demonstrar o que há de ficção nas reportagens publicadas, uma vez que, muitas vezes as notícias que são veiculadas atendem apenas ao interesse das classes sociais mais altas, mais favorecidas e, com isso, algumas notícias podem conter
elementos mentirosos. Tal fato nos mostra que a imprensa, teoricamente um órgão imparcial em benefício do povo, posicionase mais para acusar os meninos do que para defendê-los ou para fazer uma observação sobre o que os levou à marginalidade. Apesar de ter sido publicada em 1930, a obra apresenta algumas características que ainda hoje são presentes no Brasil. No livro, o autor demonstra que nada foi feito para melhorar a educação e a segurança, fato percebido até hoje. Além disso, o desprezo que as autoridades têm com relação à pobreza e o método utilizado para a recuperação de menores marginalizados são outros temas abordados no livro que ainda merecem discussão em nossa sociedade contemporânea. A figura da mulher é muito importante dentro da obra. Dalva, Dora e as mulheres que eram utilizadas como um serviço sexual (uma vez que eles foram expostos à sexualidade desde cedo) são apenas alguns exemplos
da presença feminina dentro da trama. Uma personagem em especial, a Dora, acaba conquistando o respeito dos meninos, que passam a enxergar nela a figura materna havia muito ausente na vida deles. Em 2011, Capitães da Areia estreou nas telas dos cinemas, em filme dirigido por Cecília Amado, neta de Jorge Amado. No longa, um fato que enriquece a experiência da leitura é a presença forte da cidade de Salvador, por meio da trilha sonora de Carlinhos Brown, artista baiano, da fotografia, da escolha do elenco e do figurino. Enfim, o livro Capitães da Areia é uma obra que apresenta uma linguagem bastante acessível e nos faz refletir sobre várias questões que envolvem a cultura brasileira. Nos oferece outro olhar sobre as crianças em situação de rua, reforçando a ideia de que são meninos e meninas que não receberam a devida atenção das famílias e nem do Estado, e não simplesmente marginais que optaram por uma vida de crimes. ECOS | 27
TERRA DE CEGOS
Ilustração
Anderson Sena
28 | ECOS
(IN)VISร VEL
Fotografia
Priscia Sรก
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