ECOS - #4 - Ela NÃO está pedindo

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E X P E DI E N T E Reportagem

Sarah Rachel Menezes Gustavo Militão Cibelly Melo Nívea Siqueira Projeto Gráfico

Alan Lyra Caio Lira Débora Seabra Colaboração

Geylla Lira Lucas Miranda Thaynna Mendes Raissa Chiarelli Juliana Dias Jonathas Vieira Vinicius Giló Maria Eduarda Fonsêca Leonardo Magalhães Mabson Rodrigues Juliana Araújo Anderson Sena

CAR TA

DOS

E DI TORES

A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Se a estatística lhe parece desconfortável, tenha certeza de que ela não reflete a realidade. O estupro ainda é um crime subnotificado; ou seja, grande parte das vítimas, por diversos motivos, opta por não denunciar seus agressores. Segundo especialistas, provavelmente apenas um décimo das vítimas de estupro se manifesta. O restante permanece em silêncio. Não é de se admirar. O estupro é um crime em que muitas vezes aquele que terá a sua vida minuciosamente investigada será a vítima, e não o estuprador. “Qual era a roupa que ela estava usando? Por que estava sozinha na rua àquela hora? E esses amigos com quem ela se relacionava?” são perguntas que ouvimos com frequência em relação àquela que sofre o estupro e, muito raramente, se questiona o contexto daqueles que o praticam. Tachados simploriamente como monstros ou doentes, os estupradores parecem ser compreendidos como uma classe separada dos seres humanos. Cabe às mulheres se protegerem, enquanto os abusadores permanecem à solta. Seria então responsabilidade das mulheres zelar pela sua integridade física para que não se tornem vítimas, seguindo um exaustivo código de condutas que silenciosamente se instaurou nos nossos costumes sociais ao longo dos séculos. É preciso quebrar este ciclo de silêncio. É preciso falar da Cultura do Estupro. Dos pequenos hábitos que normalizam e naturalizam a violência contra a mulher na sociedade. Dos assédios e abusos sofridos, às vezes diariamente, por mulheres em todo o mundo. Da eterna sensação de insegurança que uma mulher sente ao andar nas ruas, apenas por ser mulher. A repórter Sarah Meneses enfrentou o tema com coragem, apresentando um pouco deste inquietante tema pelo ponto de vista de pesquisadoras e de vítimas. Também nesta edição, outras reportagens e entrevistas perseguem assuntos relacionados à cidade do Recife. Discussões sobre o espaço público, preservação de patrimônio e obras inacabadas estão presentes. Para quem é estudante e se aproxima da época de concluir o curso, a temida sigla TCC é desmitificada em reportagem de Gustavo Militão. Além disso, a cultura e tradição presente no artesanato dos índios Fulni-ô, matéria sobre a popularização dos serviços de streaming, resenhas e crônicas dão o tom de uma edição que não se esquiva de temas espinhosos, mas também apresenta momentos leves e descontraídos. Antes de iniciar seu passeio pelos Ecos registrados neste jornal, lhe convidamos a olhar para o relógio. O tempo de leitura estimado para toda esta edição é de 55 minutos. Até que a leitura seja concluída, portanto, serão cinco novas vítimas de estupro. Incomode-se com essa informação. E que este incômodo seja mais uma força colocada em ação para gerar discussões e tirar este assunto do silêncio. Cecília Almeida, professora do curso de Jornalismo da Faculdade Boa Viagem (FBV/DeVry)

Í N D I CE Edição

Crônica: Mundo isolado de quatro portas ............................................................03

Cecília Almeida

Um horizonte para o Recife ...................................................................................04 “Recife Frio” faz críticas nas entrelinhas ............................................................................08

Coordenação do Curso de Jornalismo

O rebento que não quer nascer ...............................................................................................10 Não é só uma cantada..............................................................................................12 A revolução audiovisual através do streaming .....................................................18 Economia básica para entender os noticiários .....................................................22

Talita Rampazzo

Artesanato como forma de resistência .................................................................26 TCC – A sigla temida .............................................................................................28

ISSN: 2447-763X

A Escrava que Virou Rainha de Audiência ...........................................................32 Ilustração: Mar da Alienação ................................................................................34 Fotografia: Natural ................................................................................................35


CRÔNICA

Mundo isolado de quatro portas Sarah Rachel Meneses

Foto: Kyle May/Creative Commons

Tempo de leitura: 2 minutos Faz pouco tempo que tirei a tão sonhada carteira de motorista e pude finalmente dirigir. Mas, mesmo assim, tinha medo de pegar no carro. Com isso, meu irmão, muito paciente, aconselhou: - Abra essas janelas! Assim, você pode escutar as buzinas e não ter medo. - Mas e os assaltos? - Olha aqui – Bateu no vidro – Não é blindado, então tanto faz. E pode ligar o som, assim você se acalma. Qualquer coisa, aumente o volume e cante. Com esses conselhos, peguei as chaves e fui para minha missão de ir para a faculdade. Até que não era difícil. Na verdade, o caminho é uma reta, com poucas curvas – o que também tento evitar até hoje. Com os sinais vermelhos, comecei a observar o meu arredor e algo me impressionou. No carro ao lado, uma moça estava no celular digitando algo. Do outro lado, estava um rapaz olhando para frente, com uma expressão triste. No de trás, dois homens conversavam sobre algo. E todos estavam de vidros fechados. No meio disso tudo, pude ouvir o som dos pássaros, da escola ao lado, do vendedor e do pedinte. No outro sinal, a mesma situação. Mais pessoas com suas janelas fechadas, em seus mundos isolados, à espera do verde aparecer para seguirem suas viagens e chegarem ao seu destino. Alguns mexem freneticamente no celular, outros olham vidrados para o sinal – talvez rezando para ele abrir –, uma parcela conversa com seus companheiros de viagem e, às vezes, tem um impaciente buzinando para o nada. Ninguém presta atenção no que está fora: no som dos pássaros, nas pessoas atravessando a rua ou nas que vendem algo. Enquanto isso, só uma pessoa está a ouvir tudo, observar tudo e a cantar músicas altas.

Na volta para casa, não tive opção e tive que fechar as janelas. E percebi o efeito que isso traz. Você fica imerso no seus pensamentos, preocupações. Mesmo assim, com o som mais alto, a minha curiosidade não me deixou ficar submersa no meu pequeno mundo de quatro portas. Não havia nada de novo. Uma mulher que roía a unha, um homem que conversava com alguém mais velho e – não podia faltar - uma pessoa no celular. Com isso, fiquei a interpretar as minhas músicas, com expressões e movimentos.


Um horizonte para o Recife Em bate papo com o Ecos, o diretor executivo da Agência Recife para Inovação e Estratégia, Guilherme Cavalcanti, deu sua opinião sobre o que precisa mudar na cidade nos próximos 20 anos Entrevista coletiva Tempo de leitura: 7 minutos, 16 segundos

A cidade do Recife é um dos berços da história do Brasil. Serviu de inspiração para poetas e artistas, por suas belezas naturais e manifestações culturais. Mas o crescimento e urbanização desenfreados da cidade, a partir do século XX, tornaram a vida no Recife bem menos poética. Alguns desafios são comuns aos recifenses e complicam bastante a qualidade de vida e a experiência na cidade. O deslocamento pela cidade é desagradável, os espaços públicos são restritos, o patrimônio histórico se encontra em estado de degradação e as ruas parecem ter sido projetadas muito mais para os carros do que para as pessoas. Como devolver qualidade de vida à população recifense em sua relação com o espaço urbano e com a cidade? Quais as diretrizes que podem transformar a cidade para melhor, no futuro? Este tema sensível e, certamente, complexo é a dor de cabeça preferida de Guilherme Cavalcanti. O administrador de 40 anos é Diretor Executivo da ARIES - Agência Recife para Inovação e Estratégia -, uma iniciativa da sociedade civil organizada em parceria com poder público para planejar o futuro da cidade no horizonte de 20 e 50 anos. Em entrevista coletiva, tivemos a oportunidade de conversar com “Guila” sobre espaço público, patrimônio e mobilidade. Apaixonado por cidades, Cavalcanti é otimista e espera que o Recife possa em breve voltar a ser a cidade inspiradora que já foi. Uma cidade em que poderíamos encontrar o amor de nossas vidas. Ecos - Você está envolvido no planejamento do Recife e o resultado final deve ser entregue à cidade em 2037. Qual é a maior dificuldade em criar soluções inovadoras para um futuro tão distante? Guilherme Cavalcanti- O maior desafio é o fato de estarmos em uma cidade pobre e periférica de um país pobre e periférico, que como tal tem uma agenda atrasada. Por exemplo, para discutir saúde pública, você precisa de um país minimamente organizado, com pelo menos 100% da cidade saneada. Só para ter uma ideia, a gente tem 32%. Então como discutir o futuro num lugar com uma agenda tão carregada de passado? Ecos - Após suas pesquisas com os vários setores da sociedade, qual é o consenso sobre o que fazer para melhorar a cidade? G.C- Uma vez conheci um homem, chamado Marcelo, na comunidade Lemos Torres. Essa comunidade foi erguida em cima de um canal de drenagem onde só devia passar água de chuva e não devia ser construído nada em cima. E os prédios grandes que foram surgindo em torno ligaram a seu sistema de esgoto no canal de drenagem de água de chuva. É um completo absurdo. E aí eu andei com Marcelo e perguntei a

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Foto: Raul Lopes ele qual era o maior problema da cidade e como ele acha que poderia ser resolvido. Eu tinha certeza que ele ia falar do esgoto. Mas ele me disse “olhe, meu filho, a cidade não se resolve de pedacinho não. Ou melhora para todo mundo, ou não melhora”. Isso é de uma sabedoria enorme. Eu convivo com professores de urbanismo há 20 anos e nunca ouvi isso deles.

do espaço público. E isso é no mundo todo. A cidade que a gente gosta é aquela que tem gente na rua. Já li que cidade interessante é aquela em que a gente poderia encontrar o amor das nossas vidas no meio da rua. Se pensarmos no Recife, hoje ele não é mais isso. Dificilmente você vai se apaixonar por uma cidade só porque ela tem, sei lá, estacionamentos de oito andares.

Ecos - Como pensar uma cidade que proporcione uma boa relação entre pessoas e espaço urbano?

Ecos - Quanto tempo você acredita que levaremos para ver alguma evolução nessa questão de retomada do espaço público?

G.C- O nosso desafio principal é justamente a retomada

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Foto: Guilherme Cavalcanti/Acervo Pessoal

A retomada do espaço público é que vai viabilizar, de verdade, as melhorias que precisamos para nossa cidade.

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G.C- Acredito que teremos dois anos [em nível político nacional de estagnação pela frente. Mesmo que você tenha um governo sério, sem uma consistência e sem pessoas que realmente sejam capacitadas para tratar de determinado assunto, a coisa não anda. Acho que só após esses dois anos, teremos uma liderança mais conciliadora, para que o país volte a evoluir. Ecos - Sobre a chegada de aplicativos como Uber, você vê a possibilidade de haver um diálogo conciliatório entre esse novo formato e os taxistas, que têm oferecido muita resistência à novidade? G.C- A possibilidade de coexistência dos dois serviços é real. Mas é complexa. Eu ando muito de táxi e de Uber. Não tenho carro há cinco anos. O que acontece é o seguinte. Tem gente complementando a renda com Uber, outra parte está vivendo exclusivamente do Uber. O impacto que isso gerou no mercado de transporte individual de passageiros é que os taxistas não conseguem mais pagar suas contas através do táxi. Não vou entrar no mérito da qualidade do serviço, da sacanagem que os caras fazem de não atender na hora que você precisa... tudo isso está errado! Mas aí você se coloca no lugar do taxista, de gente que está trabalhando há 30 anos e há seis meses não paga suas contas. O nível de stress é muito grande, não dá pra resolver com conversa. Tem que resolver com ação. Ecos - Quais seriam possíveis soluções para essa “coexistência” entre taxistas e o Uber?


G.C- A flexibilização das regras dos taxistas, o mínimo de regulação e obrigação dos motoristas do Uber... Como usuário, acho que o vai acontecer de verdade é que a gente vai de seis mil taxis atualmente para, provavelmente, mil. E o Uber vai provavelmente passar dos seis mil atualmente para 20 mil. Quando acontecer isso, vai mudar o modelo de negócio. Ecos - Na relação cidade, planejamento urbano e cinema, você vê o futuro da nossa cidade como o do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho? Que em 20 anos, os prédios antigos vão dar lugar a prédios completamente novos e tecnológicos? G.C- O futuro civilizado é conservacionaista.Existe uma tendência a cuidar do patrimônio biológico, ou seja, dos biomas que a gente habita, e cuidar do patrimônio construído. A tendência é a gente preservar mais, é a gente respeitar mais. Existe um debate sobre patrimônio histórico, sobre edificações de interesse de preservação que é um debate complexo, porque as coisas não nascem patrimônios históricos, elas se tornam. E preservação de patrimônio não é só de prédio velho. Às vezes é da paisagem, às vezes é da morfologia da rua. Nesse meio do caminho a gente deve derrubar uma meia dúzia de casas para construir prédios, até que em um momento a turma vai se ligar que não dá para ser assim. Ecos - Na relação cidade, planejamento urbano e cinema, você vê o futuro da nossa cidade como o do filme Aquarius, de Kleber Mendonça Filho? Que em 20 anos, os prédios antigos vão dar lugar a prédios completamente novos e tecnológicos? G.C- Esse debate sobre o que preservar é muito complicado. Principalmente para quem é dono do lugar. A gente tem uma vila de casas na Boa Vista, que é a coisa mais linda do mundo, mas queriam derrubar. É lindo para quem? Para mim, que nunca vou lá? Que não uso? E o dono? E o cara que morava naquela casa e que agora tem três filhos e o único patrimônio dele é aquele? É muito complexo. Nesse ponto, Aquarius é belo. O filme mostra a filha que quer vender, o filho que respeita a mãe, essas nuances. Isso é muito real. Alguns desses prédios, parte do patrimônio, não só o proprietário não entende, como às vezes ele não tem condições de viver mesmo. Então é um debate precisa sair dos extremos. Não pode ser o construtor que quer passar o trator em tudo, nem ficar num preservacionismo extremo. O futuro das relações entre preservação e patrimônio histórico e o crescimento da cidade está na linha de misturar,

A gente deve derrubar uma meia dúzia de casas para construir prédios, até que em um momento a turma vai se ligar que não dá para ser assim.

de conviver. Em alguns momentos, sim, vai ser preciso ser radical para manter o que precisa ser preservado como acervo da história da cidade.

Ecos - Como você pensa que deve evoluir o debate entre preservação de patrimônio e crescimento urbano? G.C- Alguns arquitetos modernistas, alguns dos mais importantes do Brasil, foram daqui de Recife. Delfim Amorim, Augusto Reynaldi, o próprio Borsoi. Os acervos construídos por esses caras são importantes e a gente precisa preservar. A casa onde está a CPRH [Agência Estadual do Meio Ambiente], por exemplo, é um exemplar da arquitetura moderna recifense. Mas se você pegar qualquer pessoa e perguntar se essa casa precisa ser preservada, pode ser que ele responda: “Essa casa horrorosa? Isso aqui? Não, meu irmão, você está doido”. O primeiro prédio onde eu morei tinha azulejos verde-claro, bidê verde-claro, pia verde-clara e bacia sanitária verde-clara. Eu acho um negócio feio, medonho. Mas, como é um exemplar daquele lugar onde eu morei, ele compõe a época. E vale a pena preservar isso. A gente aprecia tanto isso em outros lugares do mundo, que preservam seu patrimônio. Devemos evoluir para esse modelo.

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“Recife Frio” faz críticas nas entrelinhas Filme promove reflexões mordazes sobre urbanismo e tratamento social Geylla Lira Tempo de leitura: 1 minuto, 48 segundos

Imagem retirada do documentário “Recife Frio” O curta-metragem Recife Frio é um mockumentary. Um falso documentário de fácil descoberta, por sua premissa básica não ter fidelidade com o real. Aliás, a obra do cineastra Kleber Mendonça Filho, tem como reflexão uma cidade do Recife fria e cinzenta, com análises críticas que vão do urbanismo recifense ao tratamento social.

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Com baixo orçamento e muita criatividade, a narrativa é traçada a partir de um programa latino chamado El Mundo em Movimiento, que mostra a causa da mudança climática que é relatada ao longo do curta. Recife, a cidade fervorosa e de encantos mil, agora não é mais tropical. Vive há sete meses debaixo de frio. O que soa bastante irônico aos que conhecem a cidade, onde um mês de inverno é


considerado muito tempo. Mendonça não poupa críticas, que, em sua maioria, se encontram nas entrelinhas. Como o francês que teve o marketing de sua pousada na beira-mar, literalmente, levado por água abaixo. Um breve comentário sobre a população local que teme a violência. O retrato das construções desenfreadas de arranha-céus, que torna a vista repleta de ângulos retos, uma “feiúra agressiva do urbanismo”. Uma das grandes sacadas do diretor e roteirista aparece quando ele retrata uma da família de classe alta, residente na famosa Avenida Boa Viagem, e a sua empregada. Como nas senzalas, as moradias das domésticas ficam

sempre nos fundos, virados para o pôr do sol, sendo o local mais quente do apartamento – por, muitas vezes, sem sequer existir uma janela. Quando a onda fria chega, o filho da família passa a dormir no cômodo mais quente, enquanto a empregada ganha a privilegiada vista para o mar mais gelada com que ela provavelmente já sonhou. “Ela não é acostumada com suíte”, diz a dona da casa. O autor foi engenhoso ao articular um roteiro que une o cômico com o reflexivo. Sobre a temática central, “hilário” é uma das palavras que me vem à mente ao pensar como seria estar em uma cidade como Recife, onde “a temperatura caiu de 30º à 10º em uma hora”. Até porque, na ocasião em que assisti ao filme, era um dia de chuvas torrenciais.

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O rebento que não quer nascer Atraso na entrega da Maternidade Maria Rita Barradas, em Jaboatão mostra o desserviço à população de gestantes, que sofrem com a omissão da saúde pública no município Cibelly Melo e Nívea Siqueira Tempo de leitura: 5 minutos

“Minha neta, eu vou morrer, você vai parir e essa maternidade não será inaugurada”. Por ironia do destino – ou descaso da gestão de saúde pública no Estado infelizmente a “profecia” do aposentado Bento Silva se cumpriu. O antigo morador do bairro de Sucupira, Jaboatão dos Guararapes, não viu a Maternidade Maria Rita Barradas “nascer”. Aos 65 anos, morreu no último mês de fevereiro e entrou para as estatísticas de mortes por Febre Chikungunya em Pernambuco. Em seguida, Diana Clécia, neta de Bento, deu à luz o pequeno David, aos 24 anos de idade. Para chegarmos à casa de fachada simples da comerciária foi preciso subir alguns degraus de escadarias. Do alto, pouco mais de 100m separavam a mãe de David do privilégio de parir perto de sua residência. É que as obras da Maternidade Maria Rita Barradas andam a passos lentos. No momento, a única paisagem que se vê são vigas de aço fincadas como base, uma placa evidenciando o atraso das obras e uma equipe reduzida de pedreiros. Se a maternidade estivesse funcionando a pleno vapor, dentro do prazo estimado para entrega à população, gestantes de Jaboatão não teriam que se deslocar do seu município e peregrinar nas grandes maternidades do Recife, com pontuais problemas de estrutura precária e um histórico permanente de superlotação.

Sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016. Mãe de primeira viagem, Diana entra em trabalho de parto e com ele tem início uma peregrinação em duas unidades de saúde. A primeira e clássica afirmação de “Não há vagas” aconteceu no Hospital e Maternidade Memorial Guararapes. A literalmente paciente Diana foi então encaminhada para a Maternidade Professor Bandeira Filho, em Afogados, zona oeste do Recife. Parece até um jogo do empurra, que muitas vezes resulta em óbitos de parturientes. E os números não são irrisórios. De acordo com estudo realizado em 2015 pelo Comitê Estadual de Estudos da Morte Materna em Pernambuco (CEEMM-PE), de cada 100 mil partos realizados no estado, 70 gestantes perdem a vida, na maioria das vezes pela demora no atendimento. Os dígitos são considerados mais do que o dobro do percentual aceitável, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. De negligência em negligência, Diana mais uma vez é avisada da incapacidade da Bandeira Filho em acolhê-la, por falta de leitos disponíveis. “Finquei o pé e disse: daqui não saio de jeito nenhum”, afirma, enquanto embala David no colo. No lado reverso da moeda, entram em cena o medo e a incerteza da dona de casa e também moradora de Sucupira Valdicleide Soares, 30 anos. Em sua terceira gestação, da mesma forma que ainda não sabe sexo do bebê, no sexto

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Foto: Prefeitura Municipal do Jaboatão dos Guararapes

mês de gravidez, também não tem perspectiva do local de nascimento. “Eu adoraria ter meu bebê perto de casa, seria muito mais cômodo para mim. Temo pela superlotação das maternidades. É um martírio,” diz, enquanto percorre as mãos pela barriga o tempo todo. Por enquanto, o desejo de Valdicleide vai ficar no campo das utopias. Jaboatão dos Guararapes fica na região metropolitana do Recife, distante 14km. Atualmente é administrada pelo prefeito Elias Gomes (PSDB) desde 2009, que cumpre seu segundo mandato. A população está estimada em 680 mil habitantes, de acordo com o Censo de 2014. De acordo com o site da prefeitura, em 2012 a taxa de mortalidade infantil (por nascidos vivos) atingiu o patamar de 12,29% e em 2010, o número de mulheres chefes de domicílio era de 44,59%. Segundo dados da Secretaria de Saúde existem no município duas maternidades. Uma é o Hospital e Maternidade Memorial Guararapes, de caráter filantrópico, que atua em parceria com o SUS e com repasses financeiros da prefeitura. A outra unidade de saúde é o Hospital e Maternidade Jaboatão Prazeres, que é mantido pelo governo de Pernambuco. Ainda de acordo com a Secretaria, em 2015, 3.132 mil crianças nasceram na localidade. “Estes números equivalem a uma média de 261 crianças nascidas por mês. Aqui nascem anualmente 31% dos bebês e o percentual restante nasce em outro município”, sublinhou Carol Moura, assessora de imprensa da Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes. Se o prazo de entrega da unidade de saúde tivesse sido cumprido dentro dos acordos preconizados no processo licitatório, a Maternidade Maria Rita Barradas já estaria funcionando desde 2013 e já contabiliza três anos de

atraso. Entretanto, Carol assegura que “75% da construção já está concluída”. Obras inacabadas no Brasil, de tão recorrentes e amparadas por omissa falta de fiscalização, na maioria são uma questão de regra quando deveriam ser o contrário. Os indicativos do Tribunal de Contas do Estado apontam que Pernambuco tem 419 obras paralisadas desde 2014. No ranking de obras inacabadas, Jaboatão só perde para Recife. Ainda de acordo com o TCE, o município teria investido 109 milhões em 19 contratos estáticos. A Maternidade Maria Rita Barradas teve o edital para construção lançado em 2010, com orçamento inicial estimado em 22.943.316,53 e no momento atualizado em 30 milhões. A estrutura contempla 90 leitos, dos quais 60 para a Obstetrícia e 30 para UTI Neonatal. A empresa Trópicos Engenharia e Comércio Ltda, com sede na Imbiribeira, zona sul do Recife, foi a vencedora do processo licitatório. O boletim informativo da agência de notícias ‘Acontece’, da Prefeitura de Jaboatão afirma que a expectativa para inauguração da maternidade é até o final de 2016. Por enquanto, os moradores da região precisam ter paciência de Jó e esperar por mais seis meses. Tentamos obter com a Secretária de Saúde do município, Gessyane Vale Paulino, uma informação simples, de interesse público: Qual efetivamente o prazo para que a população gestante possa utilizar os serviços da primeira maternidade a ser construída em Jaboatão? Tivemos o silêncio como resposta. Talvez demore ainda algumas gestações, o que reforça o ditado jaboatonense dito por Diana Clécia: “Amor verdadeiro é igual à obra da Prefeitura de Jaboatão: não acaba nunca”.

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Não é só uma cantada Costumes enraizados na sociedade fazem parte da Cultura do Estupro, um ambiente no qual a violência sexual contra as mulheres é normalizada na mídia e cultura popular Sarah Rachel Meneses Tempo de leitura: 11 minutos

“Hoje, eu fui vítima de assédio, mas estou bem, o que me fez pensar muito sobre o assunto e resolvi falar para ficarmos atentas”. Esse é o começo de mais um relato sobre assédio no Brasil, entre vários do nosso cotidiano. Mas isso não deveria ser assim. Todos os dias, mulheres saem nas ruas com a cabeça baixa, por medo de alguém lhe fazer uma gracinha. Pegam o transporte público ou privado com receio de serem abordadas por homens. Falam apreensivas com um chefe, por causa de seus eventuais abraços e beijos no rosto. Isso tudo virou rotina para algumas, e outras já incorporaram essas e outras situações como algo natural. Essas situações, entre outras, fazem parte da Cultura do Estupro. Cultura do estupro é um termo utilizado para indicar o comportamento da sociedade de naturalizar todo tipo de violência e abusos contra a mulher, tanto de forma explícita, como o próprio estupro, quanto de forma implícita, como os exemplos citados acima. Também contribui a esse senso comum a objetificação e hipersexualização do corpo da mulher, assim como a valorização da virilidade, força e agressividade do homem. O próprio nome desconstrói o pensamento de instinto humano e salienta a construção, incorporação e o modelamento dos valores e comportamentos machistas ao usar “cultura” no nome. A expressão já está presente na sociedade desde os anos 60, com a chamada Segunda Onda Feminista. Nesse período, as mulheres lutavam contra a descriminalização e a igualdade de gêneros, com a quebra da ideologia de que suas vidas eram somente voltadas para o lar e família. Muitas começaram a ingressar no mercado de trabalho, gerando questionamentos sobre suas capacidades e competências – questões ainda presentes na nossa

Isso não é comportamento de uma mulher

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sociedade. A Segunda Onda Feminista durou até os anos 80, no entanto o tema voltou com tudo em 2016, principalmente no Brasil com o caso do estupro coletivo no Rio de Janeiro. O episódio da adolescente de 16 anos violentada por 33 homens faz parte dos 50 mil casos de estupros denunciados por ano, no Brasil. Se você acha esse número alto, não se assuste com a realidade dos fatos. Acredita-se que esse número representa somente 10% dos episódios existentes no país e, isso deve-se ao fato das mulheres ficarem em silêncio. O medo de serem repreendidas, não serem protegidas adequadamente e a descrença no mecanismo judicial são alguns dos responsáveis pelo silêncio. As mulheres também se intimidam com o invasivo exame médico, somente realizado no IML: a investigação inclui os órgãos sexuais e todo o corpo da mulher é examinado na procura de fibras, pelos, lesões, feridas e de esperma. O processo todo é realizado poucas horas após o crime, quando a vítima ainda está em choque. O silêncio aumenta com o medo de ser julgada como a responsável pela situação. “O estupro é considerado um dos únicos crimes no qual a vítima é julgada junto com o criminoso”, comenta a Professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Soraya Barreto. Esse julgamento pode ser visto até nas leis. Até 2002, os estupradores poderiam evitar ir para a cadeia caso se casassem com as vítimas. “Isso é na verdade um ‘reflexo’ da cultura do estupro. Estuprar, bater, violentar de qualquer forma é um ato de poder, de demonstração de poder”, avalia a professora. Para que haja o aumento de denúncias é necessário que as mulheres se sintam preservadas e protegidas. Na opinião da professora, deve haver eficácia na punição e nas medidas protetivas das mulheres e de seus filhos. Outras providências como criação e manutenção de leis e políticas públicas engajadas com igualdade e direitos das mulheres, ampliação do debate sobre o tema e medidas educativas sobre os tipos de abuso e violência também foram citados pela pesquisadora. Quanto à parte judicial, que é constituída desde a denúncia até o julgamento, Soraya comenta que “o grande problema desse processo não é a efetividade de mudanças, mas a falta de celeridade em proteger a vítima e investigar o crime. Muitas delas morreram após a primeira denúncia, vítima de seus algozes”. Além disso, ela também apontou a necessidade de aumentar o número de Delegacias da Mulher que lidam com crimes, como o estupro. Mesmo

Ilustração: Publicidade da Van Heusen com esse aumento, é preciso que o atendimento às vítimas seja humanizado e com pessoas treinadas. Qual mulher nunca escutou essa frase, independente da situação? Pode ser por causa da sua roupa, a maneira como se comporta em público, suas companhias ou por outras razões. Como se existisse um “código de conduta” do sexo feminino, que todas devem seguir à risca. Caso não cumpram, as mulheres são culpabilizadas pelas consequências. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2014, 35,3% da população concordam que o comportamento da mulher influencia diretamente no número de estupros. Ou seja, é consequência natural da quebra desse “código de conduta”. De acordo com o Instituto Avon, 85% da população não acham aceitável mulheres que ficam bêbadas, 69% reprovam mulheres que saiam com os amigos sem seu companheiro e 46% criticam o uso de roupas justas e decotadas. Para a professora Soraya, os comportamentos das mulheres que são repreendidos são contra a cultura que vivenciamos

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com resquícios do patriarcado e muito machismo. O mais frequente, na sua percepção, é a liberdade da sexualidade feminina. “A sexualidade feminina ainda é um tabu social, e por isso, as mulheres são julgadas e ensinadas a julgarem umas às outras quando sentem-se livres para expor e dialogar sobre seus afetos e sexualidade”, analisa a professora. Existem outros modos em que a Cultura do Estupro está inserida, quase imperceptível em comportamentos cotidianos. Um deles, citados pela militante, é o gaslighting. Esse termo tem origem a partir da peça teatral Gas Light, de 1938. A história girava em torno de um marido que tentava enlouquecer sua mulher para poder procurar as joias de sua tia e roubá-las. Gaslighting é um tipo de abuso psicológico, onde o homem leva a mulher a questiona a sua sanidade e sua memória. O abusador pode distorcer e/ou omitir fatos para que ela e outras pessoas também duvidem de suas faculdade mentais. Outro comportamento também presente no cotidiano é o manterrupting. Isso acontece quando um homem interrompe uma mulher ou não a deixa falar. Um exemplo é o famoso caso do cantor Kayne West no MTV Music Awards de 2009, em que subiu ao palco e interrompeu o discurso de agradecimento de Taylor Swift. Já quando o homem tenta explicar didaticamente algo do senso comum para uma mulher – como o enredo do filme A Lagoa Azul – ou desmerece o conhecimento dela, essa atitude é chamada de mansplaining. Esses só são alguns comportamentos sociais que têm um caráter abusivo. “Mais bumbum e peito” Quando ligamos a televisão, assistimos a propagandas com mulheres de shorts curtos e grandes decotes. Na novela e no cinema, a personagem principal ou de grande destaque sempre possuem o corpo “perfeito” para a população. Podemos ver isso na propaganda da Itaipava com o “Verão”, e no filme Esquadrão Suicida (2016), no qual diminuíram digitalmente o shorts da personagem Arlequina (Margot Robbie). A objetificação e sexualização da mulher colaboram igualmente para a propagação da Cultura do Estupro. “Compreendemos que a mídia possui caráter pedagógico, ou seja, é um elemento que educa e influência, dita tendências muitas vezes”, explica a professora. As consequências disso é a disseminação da ideia de que a mulher é meramente um objeto sexual, sem desejos e emoções. Além disso, faz com a mulher busque o “corpo ideal” para atrair os homens.

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“Hoje foi diferente” Mesmo quando a mulher está usando uma roupa “adequada” segundo o código invisível de condutas femininas, ou se comportarem de acordo com as “normas” da sociedade, elas são assediadas. Independente do local, do horário, do que estão fazendo, as mulheres estão vulneráveis. O começo do relato no início da matéria foi feito pela estudante de jornalismo Letícia do Amaral, de 22 anos. Era uma manhã comum para ela. Saiu do seu prédio, atravessou a rua e foi caminhando até a esquina, para pegar o ônibus para o seu trabalho. Tudo isso às 6:45h. “Um ‘pissiiiu’, uma buzinada e um ‘delícia’ já era rotina na minha vida desde quando eu ‘cresci’, como a maioria de nós, mulheres. Hoje foi diferente”, conta Letícia em seu texto. No caminho até a parada, um carro parou ao seu lado e ela achou que a pessoa precisava de alguma informação. Mas, em vez de perguntar sobre algum caminho, o homem fez outro questionamento: “Deixa que eu te levo para o trabalho”. Letícia não respondeu e continuou a caminhar, mas depois de dois passos, ele retornou a falar algo como “quero te dar um trato”. Letícia conta que estava na frente do seu prédio, com vizinhos na calçada, e mesmo assim, isso não inibiu a atitude da pessoa de invadir sua privacidade. “Outro fato é ele saber onde moro, já que provavelmente ele me viu saindo do prédio. Isso me amedronta”, destaca Letícia. Ao contrário de andar de cabeça baixa ou retraída pelas ruas, a estudante usa de outro artifício. “Quando me sinto ameaçada em qualquer situação, não abaixo a cabeça. Encaro, reclamo e se for o caso de assédio, grito, xingo até que eu consiga me sair daquela situação, ainda que abalada emocionalmente”. Tudo isso nos mostra que é falho pensarmos que o assédio só ocorre durante à noite, em bares e festas. De acordo com o Instituto YouGov, entre as 503 mulheres entrevistadas, 86% sofreram algum tipo de assédio, 44% tiveram seus corpos tocados de forma indesejada ou de natureza sexual e 77% ouviram assobios. “O abusador é chamado de monstro ou louco, no entanto, esses comportamentos estão em todas as camadas sociais e em homens muito senhores de si e de seu equilíbrio mental”, observa a professora Soraya. Para Letícia, esse cenário se perpetua devido à educação diferenciada das crianças. Os meninos são ensinados a serem os “pegadores” e irem para cima. “Como diz aquele ditado, segurem suas cabritas pois meu bode está solto”,


Ilustração: Propaganda “Chase & Sanborn”

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Coloquem seus saltos altos de matar, tênis, sapatilhas ou cadarços nas botas. Representando todas as mulheres, saudações. É assim que nós somos, nós não precisamos de camuflagem. É a nação das mulheres e nós estamos decolando

recorda a estudante. Para ela, isso faz com que as meninas fiquem na defensiva, retraídas e sem reação ainda quando criança, já que se ela for rebater ou revidar, é considerada leviana. Já para a professora, há um conjunto de fatores. “A educação normativa e machista que recebemos em casa – desde as tarefas domésticas até a liberdade dada aos meninos e as bonecas das meninas – , a mídia e o nosso sistema punitivo precário. A impunidade e naturalização desses comportamentos reforçam e propiciam a manutenção da

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Foto: Maria Objetiva

violência”, aponta. É preciso mudar o modo como pensamos, refletimos e agimos nessas situações. Também é preciso mais divulgação sobre o assunto, com páginas, sites e ONGs que abordam o assunto. A Think Olga é uma ONG que luta pelo empoderamento da mulher. Conteúdos informativos são divulgados para as mulheres se informarem melhor sobre temas polêmicos e que ainda são tabus na nossa sociedade. Aborto, assédio e valorização da real beleza feminina são alguns temas


debatidos no site. Também há comunidades feministas no Facebook, onde as mulheres trocam informações, desabafam e pedem conselhos sobre episódios de assédios e refletem e debatem sobre o tema. As mudanças também estão sendo apoiadas pelas celebridades, com músicas sobre empoderamento feminino e estupro indo parar nas paradas de sucesso. A consolidada Beyoncé foi uma das cantoras que retomou o girl power, com os videoclipes de Run The World (Girls) de 2011 e Flawless de 2014, com participação da rapper Nicki

Minaj. Para o público jovem, a missão de disseminar o girl power ficou por conta do grupo musical Little Mix, com o single Salute de 2014, e da cantora Meghan Trainor, com a música NO de 2016, que mostra o poder do não das mulheres. Independente das ações, as transformações precisam serem feitas dentro da sociedade. Tanto nos homens, quanto nas mulheres. Devemos quebrar velhos costumes, enraizados em nós, para podermos seguir em frente e enfrentar novos desafios.

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A revolução audiovisual através do streaming Serviços digitais como a Netflix e Spotify estão cada vez mais presentes no cotidiano do brasileiro, mas enfrentam a ameaça da limitação de banda larga de internet proposta pelas operadoras. Gustavo Militão Tempo de leitura: 6 minutos

Você sabe o que significa streaming? Se não, comece a se acostumar com essa palavra. São as plataformas digitais que oferecem conteúdo audiovisual por meio de transmissão online, que estão revolucionando hábitos de consumo na internet, substituindo pilhas de DVD e pen drives acumulados nas residências, além de provocar polêmica entre outros setores da comunicação, incomodados com a popularização destas ferramentas e até ameaçando restringir o acesso a esses serviços. Nos primeiros anos da internet, para se ter acesso a qualquer conteúdo em áudio ou vídeo, a única opção do usuário era através dos downloads, que eram lentos por conta da internet discada, além de ocuparem espaço nos computadores e não oferecer uma boa qualidade de imagem. Este processo começou a passar por profundas mudanças com a chegada da internet em banda larga, no começo dos anos 2000. Em paralelo, surgiu a profusão da pirataria. Filmes completos e álbuns musicais eram rapidamente baixados de modo ilegal, através milhares de páginas e programas, como o eMule e torrents.

Foto: Didier IIsen

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Em 2005, com o surgimento do YouTube, houve uma revolução na maneira de como passamos a consumir conteúdo audiovisual na Internet. Era dado o pontapé inicial para a arrancada dos serviços streaming e o surgimento de várias empresas no setor, atendendo a diversos públicos. A chegada do streaming foi um duro golpe na pirataria. As pessoas logo diminuíram o acesso aos sites suspeitos e programas com vírus criminosos, passando a assistir filmes e séries favoritas, ler livros e ouvir álbuns musicais completos sem acumular espaço nenhum nos seus computadores. E o melhor: na hora em que desejassem e através de outros dispositivos como Smart TVs, smartphones e tablets. Serviços como o Spotify, Deezer, Netflix, Rdio, dentre outros, rapidamente se popularizaram no mercado, inclusive o brasileiro.

A maior locadora do mundo Desde quando chegou ao mercado brasileiro, em 2011, a Netflix virou mania. Hoje são estimados mais de dois milhões de assinantes no país, dos 81 milhões que a empresa tem espalhados por mais de 190 países ao redor do planeta.

Já não temos uma internet de qualidade e querem limitar? Que país é esse?

Oferecendo produções de conteúdo próprio como um de seus diferenciais, a plataforma traz aos usuários um enorme acervo de filmes e seriados, por um preço competitivo (R$ 19,90 mensais no plano básico). O avanço da Netflix no Brasil é tão significativo, que já vem preocupando até as operadoras de TV por assinatura, que reclamam gradativamente da perda de audiência nos seus canais para este serviço, exigindo elevação dos impostos pagos por ele. Assinante da Netflix desde 2014, após adquirir uma Smart TV, o professor de História Anibal Monteiro, 28 anos, diz que o serviço já faz parte de sua vida. “Assinei o serviço pela praticidade, pela conveniência, pois tem muitos títulos disponíveis e séries que eu gosto por um preço bom”, comenta Aníbal, que elenca House of Cards e Orange is the New Black como as suas séries favoritas, ambas produzidas e distribuídas pela própria Netflix. Já a estudante de Publicidade e Propaganda Tarcyla Guiotto, 20 anos, trocou as mensalidades da TV por assinatura pela Netflix há um ano e não se arrepende. Usuária assídua do serviço, Tarcyla dedica várias horas do dia para assistir suas séries favoritas, tanto no PC quanto no celular, como Sense 8 e How to Get Away With a Murderer. Para ela, o preço do Netflix ainda é barato para o que oferece. “Se custasse 50, 60 reais por mês, eu ainda pagaria”, comenta Guiotto.

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Filmes, séries e documentários são cultura e fazem parte da vida das pessoas. É um direito das pessoas

Uma crítica em comum de Aníbal e Tarcyla ao serviço é a demora da atualização das temporadas das séries, uma queixa também de muitos usuários da Netflix no Brasil.

Música aos milhões Com mais de 30 milhões de assinantes pelo mundo, o serviço de transmissão online de música Spotify oferece a seus usuários um acervo de 30 milhões de músicas. O preço também é bastante atraente para o que o serviço se propõe a oferecer ao assinante (R$ 14,90 o pacote premium). O diferencial do serviço em relação a seus concorrentes diretos se dá na infinidade de playlists indicadas pelo site, atendendo os mais variados gostos musicais. Thyago Carvalho utiliza o Spotify há 1 ano e 2 meses. Thyago aderiu ao serviço por não ter mais tempo de baixar suas músicas favoritas e pela também pela praticidade. Eclético nos gêneros musicais, o contabilista de 27 anos usa o Spotify praticamente durante o dia todo e pode ser considerado um “heavy user” da plataforma. “Uso pela manhã e tarde, estendendo até a hora da academia, durante a noite”, diz Carvalho. Vinícius Salazar, estudante de Engenharia Civíl tem 23 anos e assina o serviço desde 2014, após testar o período

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gratuito de 30 dias. Para ele, o preço praticado pelo serviço é justo para o que oferece. “15 reais não é o preço de um CD físico. Por este preço, tenho uma quantidade ilimitada de músicas. E tenho a consciência de fazer algo legal, que ajuda o artista”, comenta Salazar, que utiliza mais o Spotify através do bluetooth no carro e também aproveita para aprimorar seu inglês, ouvindo áudios de “stand-up comedy” estrangeiros.

Limitação da banda larga no Brasil Indo na contramão do que vem se observando no mundo, o Brasil passou a discutir a limitação do uso da banda larga pelas operadoras de telefonia. A alegação? Os serviços de streaming e os jogos online estão prejudicando a qualidade do serviço no país, pela exigência maior no tráfego dos dados. O Coordenador Adjunto do curso de Ciência da Computação da FBV, Diego Tavares, acredita que a alegação das operadoras se dá na verdade é pelo fator financeiro. “O custo atual para adaptar suas infraestruturas, para atender a essa nova demanda de internet é muito alto. E tal investimento atenderia apenas uma parcela pequena de usuários”, diz o Coordenador.


Um usuário que acessa serviços de streaming e jogos online consome em média 10 vezes mais banda do que um usuário “comum”. Portanto, as operadoras querem limitar esse acesso, através da franquia de dados. Ou seja, a medida que o usuário utilizar a internet pelo plano de dados, esse consumo será contabilizado e descontado do seu pacote mensal de dados. Ao atingir a quantidade estabelecida na franquia, o cliente poderá ter a velocidade de navegação reduzida ou até mesmo o bloqueio do acesso à rede. Haverá um impacto forte para os internautas, sobretudo na qualidade do serviço de streaming. “Esses serviços têm uma inteligência que adapta a qualidade da resolução do vídeo de acordo com a qualidade da conexão com a

internet do usuário. Com a limitação, poderemos ter que assistir vídeos e séries em baixa resolução e, dependendo da taxa de limitação da velocidade, podemos ter ainda paralisações durante a execução”, alerta Tavares. As reações negativas a esta proposta foram imediatas entre os clientes. Várias petições online foram publicadas contra a medida. “Já não temos uma internet de qualidade e querem limitar? Que país é esse?”, comenta o contabilista Thyago. Já Tarcyla questiona os motivos da proposta: “Limitam tanto a vida da gente... por que querem limitar a diversão? Filmes, séries e documentários são cultura e fazem parte da vida das pessoas. É um direito das pessoas”, diz a estudante.

Foto: Esther Vargas.

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Economia básica para entender os noticiários Depois de ler essa matéria, você entenderá as notícias dos telejornais sobre economia Sarah Rachel Meneses

Tempo de leitura: 8 minutos, 43 segundos

Não é pecado não entender a área de economia. A maioria das pessoas só entendem as consequências de uma inflação alta ou do dólar alto. A causa e seus fatores são esquecidos ou não compreendidos por uma boa parcela da população. Afinal, nem todos nós somos formados em economia ou têm uma empresa para precisar entender do assunto, mas precisamos nos informar para administrar as nossas vidas e finanças. O primeiro passo para entender a economia é compreender que tudo a influencia, principalmente as questões políticas dos países influentes. A operação Lava Jato e a crise política do Brasil só são alguns exemplos. Da mesma forma, as situações das grandes empresas também podem interferir, como a fusão da TAM Linhas Aéreas com a LAN Airlines e o pedido de recuperação judicial da Oi. E onde essas ações podem interferir? Uma das opções é a bolsa de valores. Uma empresa vai para a Bolsa quando almeja mais investimentos. Para isso, ela precisa vender algumas de suas ações para pessoas as quais desejam se associar a elas. “Normalmente, quando as empresas vão para a Bolsa, elas querem dinheiro para fazer um plano de expansão a longo prazo”, explicou a consultora de finanças e professora da DeVry/FBV Amanda Aires. Desse modo, quando alguma das partes – a organização ou os investidores – deposita mais dinheiro, todos irão ganhar mais, movimentando ainda mais a Bolsa. Essa ação reflete no mercado também. “Quando a bolsa está aquecida, significa que o mercado está aquecido, portanto as empresas estão operando bem. Se elas estão bem, o mercado está bem”, esclareceu a consultora. Contudo, os telejornais informam como as principais Bolsas fecharam no dia. Ou seja, se houve aumento ou queda das ações. Para entendermos como o cálculo funciona, vamos imaginar que a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) tenha uma queda de 1%. Ou seja, em média, o volume de ações negociadas caiu esse 1% em comparação ao preço do dia anterior. Apesar desse resultado, não significa a queda de todas as empresas presentes na Bovespa. Algumas organizações podem ter crescido neste dia, outras não. Quando as empresas cresceram, a perspectiva de lucro aumenta e resulta em mais pessoas comprando ações. Caso contrário, o número de pessoas à procura de ações diminui, resultando na baixa do valor das ações e afetando diretamente seus investidores. Como a Bolsa reflete no mercado, ela também influencia o dólar. Um exemplo de como isso ocorre foi quando a empresa de telefonia Oi pediu recuperação judicial, em 2016. Os investidores retiraram seus respectivos recursos e depositaram no dólar, causando aumento da moeda e, consequentemente, intervindo na cotação. A cotação é estabelecida pela relação de compra e venda da moeda. “Em economia, a gente chama isso de demanda e oferta.

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Foto: Márcio Cabral de Moura.

Quanto maior a demanda, quanto maior a procura por dólar, maior seu preço. Quanto mais se vende dólar, menor é seu preço”, esclareceu Amanda. A definição do valor da cotação é feita por meio do quanto está sendo comprado e vendido da moeda. Com essa informação, descobre-se um

preço de equilíbrio para o dia. Para exemplificar, na época do escândalo envolvendo a operação Lava Jato, o dólar equilíbrio era de R$ 3,50, diferente do valor de 2014, que era de R$ 2,50.

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Se o dólar está alto ou não, como isso pode interferir na sua vida? Bom, quando o dólar sobe, o valor dos produtos aumentam também. Isso porque ou os produtos são importados – não fabricados aqui, como os celulares – ou tem algum componente, na sua composição, de fora – como o pão francês, que tem o trigo importado. Além disso, algumas mercadorias nossas, como o açúcar, são vendidas em dólar, mesmo tendo a matéria-prima nacional. Amanda citou um exemplo: “a gente produz açúcar aqui no Brasil, mas ele é precificado internacionalmente, ou seja, vendido em dólar. Isso influencia no mercado todo”. A consultora também concluiu que o “sobe e desce” da moeda americana influencia tanto o mercado nacional quanto o internacional. Você pode estar pensando: “Se o dólar alto aumenta tudo, então devemos torcer para ele ficar bem baixo”. Muitos pensam isso, porém estão enganados. A moeda americana desvalorizada também é prejudicial. Quem não se lembra da crise de 2008 passadas pelos Estados Unidos? Neste caso, o dólar chegou a R$1,50. O problema desse valor está nos produtos exportados – ou seja, vendido para outros países – que são precificados na moeda americana. “O exportador se prejudica quando o dólar cai muito rápido, porque ele faz uma programação de venda para uma cotação X . Com isso, ele exporta com preço menor”, relatou Amanda. Com isso esse exportador, vai precisar reduzir sua produtividade, e para isso despencar pessoas. E isso nos atinge diretamente. Além de tudo isso, não podemos nos esquecer de um aspecto importante relacionado ao câmbio – a taxa de troca entre duas moedas –: o poder de compra. Para entender isso, vamos esquecer um pouco o dólar e nos concentrar no peso argentino ($). Em um dia de 2016, um peso argentino comprava somente R$ 0,21 – ou U$ 0,07 –, e não foi muito diferente nos outros dias. Logo, na Argentina tudo é mais barato para nós? Não é bem assim. Precisamos saber o que esses R$ 0,21 compram lá. Caso esse valor equivalesse a R$1,00 para nós, na hora da compra não faria diferença. Neste caso, de acordo com Amanda, só iremos usar mais moeda e, no final, não há interferência no poder de compra. “Uma coisa é a cotação, outra é o poder que aquele dinheiro compra”. No final, a cotação reflete as instabilidades do país. Porém, não é o aumento do dólar que deixa o povo brasileiro apavorado, e sim o aumento de outro fator: a inflação. A inflação é o aumento sistemático e generalizado do nível dos preços. E o motivo pelo qual somos traumatizados é por causa da hiperinflação – quando essa taxa está elevadíssima – dos anos 80 e 90. De acordo com a Fundação Instituto de Pesquisa Econômicas (Fipe), na primeira década, a média da inflação chegou a 233,5%, e na segunda chegou a 499,2%. Isso ocorreu devido ao aumento dos

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gastos públicos durante a Ditadura Militar e das dívidas externa, acentuado pela crise mundial na década de 80. A inflação causa a variação dos preços dos produtos. Assim, o valor de um produto pode aumentar em mais de 80% por mês, como já aconteceu no passado. Desse modo, as pessoas ficam sem o poder de compra. E o que pode ocasionar a uma inflação? A consultora Amanda responde: “São várias causas. Pode ser inflação porque o consumo aumentou, ou porque os custos aumentaram ou ainda porque a economia vem no movimento interno de inflação”. O aumento da inflação de 2016 para fora do teto do sistema de metas (6,5%) e do objetivo central (4,5%) foi de custos. Tudo ficou mais alto, desde a eletricidade aos produtos no supermercado. “Se as pessoas consomem menos, deveria ter uma redução de preços. Porém, o que acontece é o aumento de preços”, analisou Amanda. E com tudo isso, você se pergunta: como posso investir meu dinheiro? Os jornais e sites falam principalmente de três possibilidades: ações na Bolsa, Tesouro Nacional e Poupança. Amanda Aires explicou primeiro que tudo depende do seu objetivo e quanto você tem. “Hoje, Bolsa de Valores, só para especialista. Não recomendo para pequenos investidores, porque está se perdendo muito dinheiro”. Também há questão de ter poucos investidores nacionais e internacionais. Já a poupança é para quem quer investimentos a curto prazo, como se você precisasse daqui a uma semana. O Tesouro é para casos de investimentos a longo prazo. Você abre uma conta no banco ou em uma corretora e compra tesouro direto. Para saber qual comprar, você pode acessar o site do governo (http://www.tesouro. fazenda.gov.br/) e escolher qual título público você deseja. “Dão a você mais rentabilidade do que a poupança e é mais seguro que a bolsa”, comparou a consultora. Além dessas opções, existem outras, contudo é preciso saber a sua necessidade para a escolha do investimento mais adequado. “A diferença é prazo – cada operação tem prazos diferentes, tem uns que você não pode tirar o dinheiro de jeito nenhum, tem outros que você pode tirar o dinheiro mais rápido”, esclareceu Amanda. Uma pessoa que investe no Tesouro é o estudante de economia Marcos Júnior. Contudo, antes, ele somente compreendia o básico sobre oferta e demanda. Ele defendeu a importância de ter mais noção sobre economia para poder administrar melhor suas finanças. “Quando se fala de economia, existem muitos termos técnicos que


tornam difícil o entendimento”, comentou o estudante. Após ter noções do ramo, ele avalia que melhorou seu entendimento de mercado, assim evitando alguns riscos. “As noções de economia mudaram minha perspectiva

em relação aonde é melhor investir a cada momento, e me fez enxergar de outro modo investimentos, como títulos do Tesouro Nacional”, explicou.

A queda nos preços já levou à quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929. Depois da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos exportavam seus produtos para os países afetados pelo conflito. Quando, no final da década, todos estavam reconstruídos, as nações não precisavam mais dos produtos americanos e diminuíram a demanda. Isso resultou no estoque das mercadorias pelas empresas, as quais tinham ações na Bolsa. Com isso, houve desvalorização das ações, e os investidores começaram a vendê-las. Nos dias 24 e 29 de outubro houve uma grande queda na Bolsa, resultando em sua quebra. De fato, a bolsa não quebra, como explicou Amanda Aires. “Na verdade, são as empresas que quebram, porque elas não têm mais valor”, ou seja, o preço de suas ações. Não se preocupe, hoje já existem mecanismos para isso não acontecer. Se O problema da primeira crise nos Estados Unidos foi o grande estoque de mercadorias, o da segunda foi uma combinação de linhas de créditos para pessoas consideradas de risco – ou seja, poderiam não pagar e assim a garantia da dívida eram suas casas – e uma crise no mercado imobiliário. Com o dinheiro dos bancos, os cidadãos americanos começaram a comprar imóveis, resultando na valorização desse mercado. Depois de um tempo, os juros dos imóveis começaram a aumentar, causando aumento do preço e diminuição da procura. O resultado foi a redução da garantia das dívidas e das linhas de crédito.

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Artesanato como forma de resistência Na tribo indígena Fulni-ô, de Águas Belas, artesãos buscam preservar seus costumes e manter viva a tradição de sua cultura artística Gustavo Millitão Tempo estimado de leitura: 3 minutos, 9 segundos

Foto: Gustavo Militão

Dentre as influências culturais trazidas pelos índios a nossa sociedade, uma das que mais se destacou foi e ainda é o artesanato. Resistindo ao tempo e às transformações do cotidiano, a arte é passada de geração a geração ainda em muitas tribos espalhadas pelo Brasil. Em Pernambuco, habitam 11 tribos indígenas, compostas por aproximadamente 26 mil pessoas. São tribos que lutam para preservar suas tradições, apesar da crescente influência da cultura externa em seus lares, hábitos, costumes e, principalmente, na sua identidade. No município de Águas Belas, localizado a 307 km do Recife, está situada a tribo Fulni-ô, também conhecida como Carnijó ou Carijó. Uma tribo que basicamente vive do artesanato e da agricultura de subsistência, mas que ainda conserva traços dos antepassados, como o idioma Yaathê (única língua nativa preservada dentre as tribos nordestinas) e alguns rituais religiosos secretos, como o Ouricuri, que ocorre durante três meses no ano onde não é permitida a entrada de não índios no local reservado, dentro da própria comunidade. São representantes da etnia Fulni-ô personalidades como o exjogador de futebol Mané Garrincha e a tenista pernambucana Teliana Pereira. É através do artesanato que vários Fulni-ô têm se destacado

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Os índios não objetivam altas margens de lucro como prioridade, quase sempre revendem num preço mais baixo do que gastam na produção. “A gente não compra o produto para revender. A gente faz. Se o cliente não tiver condição ou pouco dinheiro, a gente diminui o preço para ele levar, pois é disso que a gente come, se veste e vai vivendo”, explica Fnatxo. Ultimamente, o artesanato indígena tem enfrentado dificuldades, por ser um mercado sazonal, com picos de procura durante o ano. Por exemplo, no mês de Abril, por conta do Dia do Índio, as vendas sempre aumentam. Já no restante do ano, a produção e a procura pelas peças sofrem uma grande queda, mas o legado ainda precisa ser transmitido aos mais novos. Segundo Fnatxo, metade da aldeia, de quase quatro mil índios, está envolvida direta ou indiretamente com o artesanato. Manter a tradição da arte indígena, além de ser uma tradição, é um sentimento de expressão e resistência cultural que os Fulni-ô buscam manter, independente das dificuldades que atravessam. “O artesanato é tudo para mim. Se eu deixar de fazer meu artesanato, com certeza vou perder minha cultura. Fazendo meu artesanato, estou seguindo minha história, que os nossos antepassados deixaram para nós”, resume.

atualmente, seja em exposições ou feiras pelo estado e também em outras cidades no Brasil. O artista plástico, pintor corporal e artesão Jadielson Barbosa, 33 anos, conhecido como “Fnatxo” (que em Yaathê significa pimenta), começou a aprender a arte indígena logo cedo, com seis anos de idade. O aprendizado se deu através de seus pais, já que é tradição da tribo passar os costumes aos mais novos para preservar as raízes culturais da etnia. Fnatxo se especializou na produção de várias peças, principalmente de arco e flecha e machados, que eram o armamento do índio Fulni-ô no passado. Essas peças são produzidas através da extração da madeira de árvores como angico, canela de veado, mororó e quixabeira. Os Fulni-ô também produzem em sua aldeia vários acessórios, como brincos, bolsas (chamadas de bisaco), cocares, colares e tiaras, por serem muito vaidosos. Estas peças são feitas com materiais como Crauá (um tipo de fibra típica da região), penas de pássaros, semente de Açaí, dentre outras matérias primas. Elas são vendidas geralmente em exposições e feiras livres do interior do estado e em outras cidades como Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo. O lucro dessas vendas é que ajuda muitas famílias a se manter e a divulgar a cultura indígena.

Foto: Arquivo Pessoal

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TCC – A sigla temida A produção de um trabalho acadêmico para conclusão do curso superior é um desafio que mexe com a curiosidade e paciência de alunos e orientadores, mas os resultados podem ser compensadores. Gustavo Militão Tempo estimado de leitura: 7 minutos, 39 segundos

Para todos os alunos que estão concluindo uma graduação superior, uma sigla causa um misto de apreensão, estresse e muito trabalho. O ano final em uma faculdade é simbolizado pela produção do Trabalho de Conclusão de Curso, mais conhecido como TCC. No Brasil, este material é utilizado como avaliação final dos estudantes, abrangendo variados aspectos da sua formação educacional nos anos de academia. Dividido em modalidades de acordo com cada curso ou instituição, o TCC é um trabalho acadêmico que envolve pesquisas bibliográficas e/ou empíricas. Seja por meio de uma monografia, um estudo de caso, plano de negócios ou até uma revisão de literatura, existem variadas formas de produção. O aluno geralmente começa partindo da escolha de um tema com o qual se identificou ou teve curiosidade de estudar durante o curso e, a partir desta escolha, produz um material inédito ou uma análise em cima de algum assunto já abordado em outros trabalhos acadêmicos. Sempre prezando por dar uma identidade temática a sua pesquisa. Definido o assunto, o aluno deve partir para a escolha do seu professor orientador. É fundamental que haja, além da disponibilidade do professor, uma relação de afinidade entre ambos, pois trata-se de um trabalho longo. “É preciso também que ele tenha a expertise necessária no tema de interesse que o estudante deseja se aprofundar. Após o aluno propor o tema, o professor pode aceitar ou propor um ajuste para uma área de interesse de ambos”, observa o Coordenador do curso de Engenharia da DeVry/FBV, Diego Cunha.

Assim, sempre direciono a pensarem sobre um tema que lhes instigue na vida cotidiana e tragam

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Foto: CollegeDegrees360/Creative Commons

Uma pesquisa produzida inadequadamente ou puramente copiada pode, além de acarretar problemas judiciais para aluno e orientador, causar a reprovação do estudante, diante da banca examinadora, geralmente composta por três a cinco pessoas. “Sugiro sempre que meus orientandos escolham um assunto que lhes desperte interesse, pois não seria tão produtiva a pesquisa por mais de um ano de algo que não conquiste o pesquisador. Assim, sempre direciono a pensarem sobre um tema que lhes instigue na vida cotidiana e tragam para o campo acadêmico”, comenta a Coordenadora de Operações Acadêmicas do Curso de Direito da DeVry/FBV, Emília

Queiroz. Os alunos passam por várias etapas antes da defesa da monografia em banca pública. Além das disciplinas de orientação monográfica I, II e III, os estudantes também cursam a cadeira de Metodologia de Pesquisa. No curso de Hotelaria, o aluno pode trabalhar tanto na produção de uma monografia, de modo individual, quanto em um projeto em grupo de até três pessoas para elaboração de um negócio ou de um evento. “O aluno já pode definir o tema a partir do 5º período e defender no sexto ou sétimo período, preferencialmente no sétimo”, alerta a Coordenadora Acadêmica Isabela Jarocki. Os ramos de pesquisa no curso para a produção do TCC se dividem

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Quem lê muito, geralmente escreve bem. Quem lê pouco, tem muita dificuldade de escrever

em três linhas: Gastronomia, Hotelaria e Hospitalidade de Turismo. Durante a elaboração do projeto, os orientandos podem ser solicitados a entregar relatórios mensais do andamento do seu trabalho ao professor orientador, para que a versão definitiva possa ser validada. Após a defesa diante da banca, o aluno recebe a nota final. Ou caso seja solicitado revisões, um novo prazo será dado para que o estudante apresente a versão corrigida. Prazos, aliás, é uma premissa básica a se seguir na produção de qualquer projeto. “O aluno deve seguir à risca os prazos. Somos muito rigorosos quanto a isso”, alerta Lívia do Amaral Valença, então Coordenadora do curso de Design.

Rotina produtiva é a chave Para produzir um bom TCC, o aluno precisa seguir uma rotina de produção bastante equilibrada e, de preferência, sem atropelos. Organização é a chave de uma pesquisa bem feita. Desde o fichamento do material teórico pesquisado até a elaboração do trabalho em si. O desenhista Eduardo Cunha é aluno do 10º período de Engenharia de Produção e, no momento em que esta matéria foi escrita, estava produzindo um TCC sobre sustentabilidade no condomínio logístico na cidade do Cabo de Santo Agostinho. Após consultar artigos sobre o tema, ele decidiu realizar

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a pesquisa e procurou um professor orientador. Com boa sintonia entre ambos, Cunha tem se dedicado a elaboração de seu projeto. Apesar de não ter elaborado um cronograma pessoal, o estudante tem administrado bem o tempo disponível para seu projeto, fazendo cada etapa dentro dos prazos e aconselha outros estudantes: “Faça uma boa escolha do orientador, do tema e foco total, pois o tempo passa muito rápido”. Felippe Oliveira, recém-graduado em Publicidade e Propaganda, optou pelo TCC de plano de negócios de produto para um cliente real. Apaixonado por computação gráfica, ele propôs a criação de um mascote em 3D para uma loja de brinquedos, localizada na zona norte do Recife, como forma de diferencial para a empresa diante da concorrência. O estudante recebeu, junto com os outros dois integrantes da equipe, assim que começou seu projeto um cronograma com datas específicas de cada etapa do projeto, através de sua orientadora. Felippe acredita que a brevidade da definição do tema pesquisado, logo no começo da faculdade, pode ser decisiva para aumentar as chances de uma nota 10. “Entrou no curso, já comece a pensar como você vai fazer seu TCC. Publicidade são quatro anos. Então no primeiro ano, é bom você já ir pegando referências e pesquisando sobre o tema que você quer. Com dois anos de curso, já esteja com todas as referências e livros reunidos. E, a partir daí, já começar a produzir seu TCC, não deixando tudo para o último período”, salienta. Porém, realizar um projeto desta importância, exige dedicação e pode significar várias horas de sono perdidas, o que assusta qualquer aluno que esteja neste processo. Para a professora Giselda Vilaça, que trabalha com orientação de TCC há seis anos, os maiores problemas que os alunos encontram na realização do projeto se dão pela falta de leitura. “Quem lê muito, geralmente escreve bem. Quem lê pouco, tem muita dificuldade de escrever”, aponta Vilaça. Outra dificuldade apontada pela professora é a falta de conhecimento das regras de produção e formatação estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT), fundamentais para a elaboração de trabalhos acadêmicos. Consultar diretamente o site da ABNT - www.abnt.org.br – é recomendado para os alunos, evitando o uso de fontes secundárias, para aprender a forma correta de citar nos seus trabalhos todos os textos, documentos, vídeos, dentre outras referências consultadas, evitando a violação de conteúdo autoral, o chamado plágio. O plágio está cada vez mais presente na produção de pesquisas acadêmicas, o que causa grande preocupação para os orientadores, que se veem forçados a atuar também


como investigadores. “O aluno copia e ‘cola’, achando que ninguém vai descobrir que ele fez isso. Outros alunos pegam vários textos diferentes, copiam e dizem que fizeram a pesquisa. Isso é uma colcha de retalhos”, comenta Giselda. As normas da ABNT ensinam ao aluno como citar um texto, caso queira fazer uso dele em seu trabalho. Se apropriar do texto é crime, e pode render, além da invalidação do trabalho, uma pena de três a um ano de prisão, de acordo com o Art. 184 do Código Penal, no capítulo que trata

de violação de direitos autorais, além da perda dos títulos acadêmicos. “Se as pessoas fossem honestas ao ponto de dizer: não sei fazer, como é que faz? O orientador está aí para ensinar. Ele acaba tendo que exercer também o papel de investigador, pois é muito chato chegar em uma banca e o aluno ser acusado de plagiar alguma coisa. O aluno fica com raiva, mas esse é o nosso papel. É crime e ele tem que ser consciente disso”, esclarece a professora.

Escolha um bom tema – É preciso definir um assunto de sua total afinidade, o que se quer pesquisar e qual é o objetivo. Pesquise tudo sobre o assunto – Coletar e catalogar todo o material disponível para a realização de sua pesquisa é primordial.

Verifique a bibliografia – Ao consultar livros para seu TCC, observe tudo. Desde a capa, passando pelos autores, editora, o sumário e as resenhas disponíveis sobre a obra. Ao checar essas informações, o aluno já saberá se o livro é ou não adequado a sua pesquisa.

Capriche na escrita – Evite a redundância no texto e leia bastante. Quanto maior a leitura, melhor será a sua escrita. Quanto menos leitura, mais pobre ficará o seu texto.

Evite plágio – Resista a tentação do “copiar e colar”, pois plágio é crime e o aluno pode pegar de três meses a um ano de prisão, segundo o Código Penal.

Organize suas ideias – Preze por textos com compreensão clara, interligando as ideias do seu texto.

Monte um cronograma de trabalho – Dedique algumas horas do seu dia para cada etapa da sua pesquisa, evitando a correria. A pressa é inimiga da perfeição. Porém, fazer um TCC não significa que você deve se tornar “escravo” do seu trabalho. Administre o tempo livre e reserve também algumas horas para relaxar.

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ESPAÇO

ECOS

CULTURAL

RESENHA

A Escrava que Virou Rainha de Audiência “Quem nasce para ser rei nunca perde a majestade” Lucas Miranda Tempo estimado de leitura: 3 minutos De longe, a novela mais polêmica da década de 90. Erótica e com um forte discurso de crítica social, Xica da Silva foi o retrato de um Brasil cruel e impiedoso. Escrita por Walcyr Carrasco - sob o pseudônimo de Adamo Angel - produzida e exibida pela Rede Manchete entre 17 de setembro de 1996 a 11 de agosto de 1997, contava a história de uma negra atrevida e muito inteligente, que conseguiu a independência ao se casar com o homem mais rico do Brasil Colônia. O cenário era um país riquíssimo, ainda pertencente a Portugal, que vive da extração desmedida de pedras preciosas. Arraial do Tijuco (hoje Diamantina, em Minas Gerais) descobre os diamantes por escravos em garimpos e é o palco por onde Xica da Silva, a escrava que virou rainha, escandaliza a sociedade hipócrita de sua época. A trama conta a saga de Xica, interpretada por Tais Araujo, e sua mãe Maria (Zezé Motta) e a trama passa a dar um papel de vingança para a protagonista após a ainda escrava roubar a arca com os diamantes de seu dono e, mais tarde, compra sua carta de alforria. Mais tarde, Xica começa a se envolver com João Fernandes de Oliveira (Victor Wagner) o novo comandante da extração dos diamantes que chega ao Arraial do Tijuco que assume sua relação com a negra. Sempre desprezada pela sociedade branca do Arraial do Tijuco, Xica desfila pelas ruas do vilarejo com roupas finas, antes dedicadas somente às mulheres brancas, em uma cena antológica para a TV até os dias de hoje. Xica é agredida, sendo alvo para a população branca arremessar urina e pedras. O desenrolar da estória vem a partir daí: a personagem de Xica foge totalmente da mocinha tradicional que os brasileiros estavam acostumados a ver: a que sofre

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em silêncio. Xica é a representação da mulher negra empoderada que, neste caso, se vingou de todas as pessoas que a fizeram mal. Ela é totalmente o oposto das Helenas de Manoel Carlos: ostenta explicitamente sua riqueza e maltrata com vingança. A ela é dada uma humanização ímpar e inédita, uma representação de dubiedade de caráter incomparável até hoje na teledramaturgia. Xica da Silva foi muito mais que uma novela, foi o grito de uma população negra, coadjuvante e à margem até então. Uma superprodução ambientada no século XVIII, reproduzindo - num canal de TV que não era o líder e que viria a falir posteriormente - com riqueza de detalhes, o Brasil da época marcado por brutalidades sociais. Uma trama repleta de romance, intrigas e mistérios. Ao mesmo tempo que o público pode se incomodar com cenas de tortura também conseguia perceber a sensualidade, o realismo, e a força que Walter Avancini, o diretor da novela, imprimiu em sua dinâmica aplicada ao texto. As cenas de violência e eróticas surtiram efeito e a trama se consolidou, marcando média de 18 pontos com picos de 22. Foi uma novela que apresentou a realidade de um Brasil pouco apresentado na TV. É uma obra que merece ser revista e avaliada como objeto de estudo por nós, comunicadores, por apresentar um país atrasado em seus conceitos e com valores que se apresentam dos mesmos vistos nos dias de hoje. O preconceito racial, 200 anos depois da época da trama, ainda persiste e os negros ainda estão à margem das produções audiovisuais, não só no Brasil como pelo mundo inteiro. Por aqui, ganham papéis em novelas de época - quando acontecem em períodos de escravidão - ou como pessoas da periferia, empregados domésticos ou papéis secundários.


Foto: Paula Teixeira

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ESPAÇO

ECOS

CULTURAL

ILUSTRAÇÃO

Mar da Alienação Anderson Sena

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FOTOGRAFIA

Natural Danilo Panfilio

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