ECOS - #6 - Mulheres Múltiplas

Page 1


EXPEDIENTE

Reportagem

Fillipe Vilar Gustavo Militão Jonathas Vieira Sarah Rachel Meneses Projeto Gráfico

Breno Batista Colaboração

Daiana Nascimento Maria Nívea S. Melo Martihene Keila Imagem de capa

Pxhere.com

CARTA

DOS

EDITORES

O dicionário da editora estadunidense Merriam-Webster’s proclamou “feminismo” como a palavra do ano de 2017. Segundo a editora, o verbete esteve no topo das pesquisas realizadas por usuários este ano. O aumento nas buscas coincide com eventos como a Marcha das Mulheres, o lançamento da premiada série The Handmaid’s Tale e do filme Mulher Maravilha, além da sequência de manifestações de mulheres que denunciaram casos de assédio. Não é à toa, então, que a última edição do Ecos de 2017 discuta, na maioria de seus textos, essa temática. O debate sobre gênero está no ar. Muitas vezes, infelizmente, ainda contaminado pela desinformação e pelo ódio, dificultando as possibilidades de diálogos construtivos. Motivada por esse problema, a repórter Sarah Rachel Meneses procurou explicar o que é feminismo (ou melhor, feminismos) e apresentar o processo de lutas das mulheres numa perspectiva histórica. Na sequência, reportagens que destacam a presença da mulher em áreas tipicamente dominadas por homens - como o mercado da ilustração e o futebol. Movimentos sociais e gênero também são tensionados no texto de Fillipe Vilar, sobre a possibilidade de articulação entre cinema e grupos periféricos. A maior parte das reportagens foram produzidos para a disciplina “Mídia e responsabilidade social”, sob orientação da professora Kywza Fideles. Apesar de não haver um direcionamento específico da disciplina, as questões de gênero se sobressaíram - reflexo das discussões que marcaram o ano. Aqui no Ecos, também estão presentes na potente crônica de Martihene Keila e na resenha de Nívea Siqueira Melo, sobre a canção “Amélia”. Com textos assinados por mulheres e homens, esta edição traz o relato de mulheres fortes, de diferentes origens, que estão fazendo a diferença num cenário ainda tão marcado por desigualdades e violência, sem trilhar pelo caminho da autopiedade. Nos despedimos de 2017 com a insistente esperança de que, num futuro não tão distópico, esses exemplos passem a ser regra, e não mais exceção. Cecília Almeida, professora de Jornalismo da Faculdade Boa Viagem

Edição

Cecília Almeida Coordenação do Curso de Jornalismo

Talita Rampazzo ISSN: 2447-763X

Í N D I C E Crônica - Se eu ligasse

......................................................................... 03

Liberdade, igualdade e equidade ......................................................................... 04 A presença da mulher na arte dos quadrinhos e ilustração ................................ 08 À frente de sua época ........................................................................................... 12 Tem mina na área! .................................................................................................14 Nos bastidores do jogo ......................................................................................... 18 Por um cinema como forma de emancipação social ........................................... 20 Os desafios da requalificação do Cais de Santa Rita .......................................... 24 Os novos (e exóticos) animais de estimação ........................................................ 26

As produções culturais e de gênero opinativo são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do ECOS

Resenha : Quem tem saudades de Amélia? ......................................................... 28 Ilustração: Jerusalém ........................................................................................... 29 Fotografia: Metrô Camaragibe-Recife ................................................................ 30


Crônica

Se eu ligasse Martihene Keila

Tempo de leitura: 1 minutos, 12 segundos

Foto: Essence Magazine Se eu ligasse pra o que os outros pensam... Não teria esse cabelo e alguém reclamaria. Eu tiraria o crespo e alguém me diria que não sou original. Não seria de humanas e alguém criticaria. Eu faria algum curso de exatas e diriam que eu não tenho vocação. Faria tudo o que já fiz e alguém reclamaria, me dizendo que fiz pouco. Aí, faria mais, e outro se levantaria para dizer que quero aparecer. Me calaria muito, mas alguém diria que eu deveria protestar. Protestaria e alguém me mandaria calar-me. Se eu ligasse pra o que os outros pensam, Viveria numa confusão terrível, Numa vida mal resolvida, Num mar de tribulações por causa de tantos padrões. Eu sou nêga boa, só não tô aqui à toa. Em um ano, matei 365 leões... Também já matei gatinhos. Tem gatos que se transformam em leões, aí fiquei com medo, né? E digo que nem sempre gostei de mim, Não gostei! Me reprovei! Mas é assim mesmo, paciência, que tô aprendendo, Se eu ligasse pra o que os outros pensam... Ah! Nem preta eu era.

3


Liberdade, igualdade e equidade Entenda o feminismo na sua conceituação, a diferença entre o movimento feminista e o machismo, a sua história e algumas de suas vertentes.

Sarah Rachel Meneses Tempo de leitura: 13 minutos.

Foto: Mauro Schaefer/Correio do Povo Feminismo. Uma palavra polissílaba, gerada por Charles Fourier, em 1830, e difundida com o sentido dos tempos modernos por Alexandre Dumas, em 1872. Por trás dessa palavra, há uma grande ideologia e diversos significados, como luta, empoderamento e liberdade. Porém, ainda é mal compreendida por uma parte da sociedade. Por dos seus ideais e suas lutas, foi construída uma imagem negativa do movimento feminista. É muito comum a associação da mulher militante com vários estereótipos. O motivo? Para a professora e pesquisadora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, Soraya Barreto, a luta do feminismo vai de encontro a um sistema de hierarquias e políticas de privilégios. Desse modo, é mais fácil deslegitimar o movimento com imagens negativas. Como veremos, isso ocorre desde as primeiras mobilizações. Feminismo na história Os vapores da Revolução Industrial e a ideias iluministas não só trouxeram as máquinas mecanizadas, mas também moveram as mulheres para os primeiros embates com a sociedade. Essa seria a primeira geração do feminismo, considerada a Primeira Onda Feminista. Desde essa época, buscava-se o direito pela educação, pelo trabalho, pela vida sexual e reprodutiva, além de outros que foram conquistados no decorrer do tempo. Porém, esse período tinha como foco a igualdade de direito entre os gêneros, como o direito ao voto e a serem reconhecidas como cidadãs. À época, o papel da mulher dentro da sociedade

4

4


era ser uma dona de casa prendada, mãe exemplar e seguidora da moral e bons costumes. Assim, direitos como a possibilidade de administrar seus bens, ser reconhecida como uma pessoa jurídica e ter independência econômica tiveram de ser conquistados. Mas demorou para que as primeiras lutas tivessem resultado. As donas de casa puderam ir às urnas pela primeira vez em 1893, na Nova Zelândia. As inglesas tiveram sua voz nas eleições 25 anos depois, em 1918. Nesse mesmo ano, a história colocava um ponto final na primeira grande guerra, e foi nesse período sombrio de combates em trincheiras que a mulher se inseriu no mercado de trabalho. Como a maioria dos homens estava nos acampamentos de guerra, foi necessário empregar a população feminina para afazeres tipificados como masculinos. Por causa disso, a imagem da mulher como frágil e de menor competência para alguns trabalhos começou a ser quebrada quebrada.

Não se nasce mulher: torna-se.

Entre a primeira e a chamada segunda onda feminista houve um hiato. Contudo, durante esse tempo, ecoou na França a célebre frase “não se nasce mulher: torna-se”. A autora, Simone de Beauvoir, é considerada um dos mais importantes ícones do movimento feminista,

principalmente pela publicação do livro Le Deuxième Sexe (1949), traduzido para o português como O Segundo Sexo. A obra reflete sobre vários assuntos que foram importantes para a conquista de mais igualdade, como a diferenciação entre os conceitos de sexo biológico e gênero, como também a associação do que é “ser mulher” e “ser homem” pela sociedade. As ideias de Beauvoir vão contra o pensamento de que determinados comportamentos e papéis – mulher dona de casa, homem macho – são biologicamente naturais. Desse modo, na perspectiva de Beauvoir, o ser humano é quem constrói a si mesmo, por meio de escolhas. Para ela, “nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado, que qualificam de feminino”. Somente em meados da década 60, nos considerado anos rebeldes, inicia a Segunda Onda Feminista nos Estados Unidos e na França, durando até os anos 80. O país norte-americano estava passando pelo movimento hippie e protestos contra a Guerra do Vietnam. Além disso, os movimentos sociais surgem para levantar questões sobre classes sociais e trabalho. No país europeu, ocorriam os movimentos estudantis. Ambos tinham causas diferentes. As militantes norteamericanas construíram o feminismo de igualdade, em que se preocupavam com os diversos tipos de opressão sofridas pelas mulheres. Já as francesas construíram o feminismo da diferença, que entende que a existência de

5

5


Foto: Marcos Bizotto/Raw Image/Estadão Conteúdo diferenças entre os sexos não pode justificar o tratamento desigual. Com isso, o feminismo passa a buscar a equidade e não mais a igualdade. “A equidade busca igualdade com justiça social, ajustando-se para todos. É promover uma ideia mais próxima de todos, mesmas condições”, como explica Soraya. Essa segunda geração também é responsável pela revolução sexual, devido ao surgimento do anticoncepcional, como também debate questões do casamento, do divórcio e de padrões socialmente impostos. Na Terceira Onda Feminista, que nasce no meio dos anos 80 e perdura até hoje, são repensadas algumas questões anteriores, como o conceito de gênero e de patriarcalismo – sistema em que há a supremacia do homem na sociedade –, o papel da mulher na sociedade e como ela é representada na mídia. Por causa dessa revisão de conceitos e por segregações passadas, o feminismo deixa de ser um movimento social universal e totalizante, e passa a dar vozes a outras minorias. Não falamos mais em feminismo, mas em “feminismos”. Desse modo, o maior desafio dessa geração é refletir sobre a igualdade entre todos, mas também reconhecendo as diferenças de cada um. O pluralismo feminista

6

6

Como um movimento pluralista, existem correntes que defendem ideologias diferentes, como também possuem lutas diferenciadas. Há muitos feminismos, como o liberal, o radical, o interseccional e o negro. O assunto é complexo, mas vamos tentar explicar um pouquinho de cada uma delas. Também chamada de Libfem, a vertente liberal defende-se a igualdade de gêneros, liberdade política e legal. Mulheres como Mary Wollstonecraft, Olympe de Gouges - ambas da Primeira Onda - e Betty Friedan são

nomes importantes desse movimento. Esta última refletiu sobre o papel da mulher - dona de casa, casada e com filhos para criar - imposto pela sociedade, em seu livro A Mística Feminina (1963). Em contrapartida ao Libfem, o feminismo radical - ou Radfem - defende que a opressão sofrida pelas mulheres ocorre pela existência do patriarcado. Ou seja, enquanto o Libfem busca o reformismo, o Radfem é abolicionista. Isso porque essa vertente acredita que para haver a igualdade entre os gêneros é preciso novas leis e ações que privilegiam as mulheres, pois os homens nascem privilegiados e, por isso, se favorecem de um sistema de opressão. O termo feminismo interseccional foi criado pela professora de Direito norte-americana Kimberlé Crenshaw, que afirma a existência de diversas formas de opressão, tanto no grau como no modo. Mulheres de cores, classes sociais e orientações sexuais diferentes possuem necessidades diferentes em sua luta por direitos e liberdades. São exemplos do feminismo interseccional o feminismo lésbico, o negro e o transfeminismo. Nessa vertente, é mais evidenciada a procura de equidade na sociedade. O feminismo negro começou a aparecer na Segunda Onda Feminista, quando o sistema colonialista ainda presente no continente africano e no Caribe começa a entrar em colapso. É aí que as mulheres negras começam a perceber as diferenças de direitos entre elas e as mulheres brancas, mais privilegiadas. As principais lutas do dessa corrente são contra o racismo, sexismo e classismo. As americanas Angela Davis – autora do livro Woman, race & class e Alice Walter, do romance A Cor Púrpura (1982), se transformaram em ícones do feminismo negro. Feminista desde a época da faculdade, a militante Alyne Nunes, doutoranda em Sociologia na Universidade Federal de Pernambuco, somente conheceu a vertente


negra durante o mestrado. Antes, não se identificava plenamente com as correntes clássicas. Para ela, é possível diminuir as diferenças de direitos entre as mulheres com o reconhecimento dos privilégios. “Que as pessoas brancas se engajem de maneira honesta a luta antiracista. Pensar na praxis cotidiana e perceber que são eles os que garantem a manutenção das desigualdades”, afirma a militante. Machismo às avessas? O machismo pode ser definido como um sistema no qual o homem é colocado como superior. Dessa forma, não podemos considerar o machismo e o feminismo como equivalentes, pois enquanto um obriga a todos a se enquadrarem em um modelo onde um é superior – tanto em direitos, oportunidades e liberdades –, o outro quer a igualdade, a liberdade e a equidade de todos. No machismo, há uma supervalorização das características físicas e culturais do homem. Além disso, “o machismo é opressor com a mulher, mas também passa o pensamento de que o homem não tem sentimentos, que não pode ser cuidadoso, assim, violentando o próprio sentimento e bem-estar do homem como humano”, como explica Soraya.

Ele pode ser pró-feminista, pois ele não tem protagonismo no movimento.

Exemplos são visíveis nas pequenas coisas. Rosa é cor de menina e azul é de menino. A mulher ainda pode adotar o azul como sua cor predileta, mas o homem não

pode usar rosa, porque ainda há a associação ao mundo feminino. A mulher pode chorar por qualquer motivo – filmes, emoção do momento, entre outros –, porém o homem não pode chorar sob quaisquer circunstâncias, pois “homens não choram”. Esses só são alguns exemplos de como o machismo também oprime o homem, condenando características supostamente femininas. Ambos sofrem com o machismo, mas a estrutura de privilégios em torno dos homens ainda perdura. Gera controvérsia dentro dos movimentos a ideia de que os homens podem ser feministas. O feminismo interseccional tende a ser mais receptivo à participação dos homens, enquanto as radfems costumam ser contra. Na opinião de Soraya Barreto, do ponto de vista teórico, um homem feminista não seria possível. “Ele pode ser pró-feminista, pois ele não tem protagonismo no movimento”, destaca. Para Alyne Nunes, o maior malefício do machismo na nossa sociedade é a legitimação de um discurso que naturaliza as violências. “Falo das violências mais sutis, mesmo que ainda não sejam vistas como machistas. A dificuldade do reconhecimento da perversidade que o machismo sustenta produz um mal irreparável. Enquanto nossas vidas não importarem, enquanto formos vistas como menos dignas, esse mal perdurará”, comenta. Para uma sociedade mais igualitária e justa, é preciso reconhecer a necessidade de mudança. As transformações não se limitam à esfera política - na conquista de direitos e na sua preservação -, mas também devem existir no campo comportamental e no cotidiano das sociedades, principalmente no que diz respeito a ampliar a liberdade das mulheres para que possam viver suas próprias escolhas. Fonte: Masculinidades em (RE)Construção: Gênero, Corpo e Publicidade - Soraya Barreto

7

7


A presença da mulher na arte dos quadrinhos e ilustração O cenário do mercado de quadrinhos atual. Jonathas Vieira Tempo de leitura: 11 minutos, 50 segundos

O Brasil é um país com um repertório e histórico incrível na arte da pintura, da colorização e das formas de ilustração em geral, além de roteirização e produções literárias que envolvem o universo dos quadrinhos. Entretanto, toda essa grandeza ainda não se reflete inteiramente no mercado brasileiro, – talvez com exceção apenas da Turma da Mônica, que mesmo assim tem seu lucro largamente concentrado em publicidades e não na venda de gibis. A grande parte das editoras não dá preferências às produções nacionais, por motivos de venda, e os artistas se veem divididos entre trabalhos como freelancer, produções independentes e campanhas de crowdfunding (financiamento coletivo) para atingir um público de nicho. Essa situação se torna ainda mais complicada para as mulheres, pois a discriminação é muito presente nesse meio, não somente por parte dos autores e leitores, mas pelo próprio mercado que, em várias situações, acusa diferenças nas ilustrações. Isso não se limita ao mercado nacional. Se uma artista deseja ingressar no grande mercado internacional, como por exemplo dos superheróis da Marvel Comics e DC Comics, ela precisa ter seu traço semelhante ao dos ilustradores homens, que satisfaçam o suposto gosto dos consumidores desse produto, de maioria masculina. A ilustradora e quadrinista Roberta Cirne conta uma experiência parecida. “Como mulher, já passei por inúmeras situações constrangedoras. Como quadrinista, apenas do ponto de vista do trabalho. Certa vez, tentei entrar no mercado americano, mas meu traço foi considerado fraco para dar a energia que os superheróis precisavam. Pediram que modificasse meu traço e, então, preferi desistir desse mercado”. Ela explica que está disposta a lutar por seu espaço. “Outras mulheres que trabalham neste segmento e com as quais mantenho contato pensam assim também”, acrescenta.

Tenho observado que existem poucas desenhistas e ilustradoras. Não sei o motivo, talvez porque muitas chegam a desistir no meio do caminho.

Greice Silva, também pernambucana, tem 18 anos e já trabalha como freelancer, produzindo ilustrações profissionais. Ela conta que percebe a primazia masculina nesse cenário. “Tenho observado que existem poucas desenhistas e ilustradoras. Não sei o motivo, talvez porque muitas chegam a desistir no meio do caminho, mas acredito que não seja algo relacionado ao machismo”, embora acrescente que existem desenhistas homens que faltam com respeito às mulheres apenas por serem

8

8


A vida e o trabalho de nossas artistas

Ilustração: Roberta Cirne

mulheres. “Como em qualquer outra área”, completa. A pernambucana também fala sobre a pouca visibilidade desse mercado. Ela explica que gosta de trabalhar com ilustração e desenho artístico, mas que é complicado atuar como freelancer, pela instabilidade nas encomendas e demandas. A artista considera ainda que a profissão é pouco reconhecida no país. “Quem escolhe trabalhar com ilustração enfrenta muitas dificuldades no mercado nacional, pelo fato de que as pessoas ainda não levam o nosso trabalho a sério”.

Editora, ilustradora e roteirista da webcomic Sombras do Recife, Roberta Cirne não para. Quando conversamos pela primeira vez, ela enviou áudios pelo celular enquanto almoçava, ao mesmo tempo em que trabalhava e se preparava para uma palestra que daria no mesmo dia. Em meio a uma semana corrida, em preparação para o segundo Norte Geek, evento voltado para a ‘cultura geek’ que ocorreu nos dias 2 e 3 de dezembro, Roberta encontrou tempo para falar de suas experiências e compartilhar um pouco sobre sua vida no mundo dos quadrinhos. Ela conta que adora desenhar desde pequena e, apesar de não ter muitas artistas em sua família, se inspirava em sua tia Alba. “Ela costumava fazer bonequinhas de papel desenhadas para mim. Com o tempo, eu mesma comecei a desenhar minhas próprias bonequinhas, e descobri sozinha, por observação, como projetar em perspectiva, usando distâncias de objetos. Mas foi esta minha tia, que admirei por toda a vida, que me mostrou os primeiros passos nas artes”. Assim que Roberta começou a demonstrar interesse pela arte, seus pais deram apoio e a incentivaram; a presenteavam com materiais de desenho: “As minhas melhores lembranças são as de receber, todo natal, livros, caixas de lápis de 48 cores e papéis para desenho”. Quanto ao contato com os quadrinhos, ela me conta que desde pequena já colecionava. Era fã dos gibis da Luluzinha, do Almanaque da Disney e outros célebres títulos infantis. Foi nesse período que ela começou a desenhar suas próprias histórias: “Lembro que criei aos 7 anos, uma HQ de uma menina que tinha uma boneca que ganhava vida. Fora isso, eu quadrinizei filmes de que gostei, antes dos 10 anos. Tenho até hoje a HQ de Annie e de Peter Pan, que eu mesma fiz”. Quando mais velha, já reparava que a maioria dos títulos eram voltados para o público masculino. Leu os gibis dos X-Men, além das graphic novels mais rebuscadas da Marvel Comics, de grandes autores e ilustradores, como Chris Claremont e Alex Ross. “Os quadrinhos no Brasil, antes da internet, eram bastante setorizados. Havia quadrinhos para meninas até certa idade, depois apenas super-heróis, que focavam no público adolescente masculino”. Roberta lembra que, já nos anos 90, ainda não havia no Brasil nenhuma publicação de HQ feminina, ou com temática feminina. Ela menciona que no Japão já existiam

9

9


Ilustração: Roberta Cirne

10

10

as Mangaká (termo usado para mulheres quadrinistas japonesas), e, na Europa, quadrinistas mulheres faziam parte do cenário franco-belga. “Mas nada chegava de forma distribuída aqui. A falta de quadrinhos ‘para garotas’ de mais idade fez com que a maioria das meninas não cultivasse o hábito de ler quadrinhos. Então demorou bastante para que as poucas leitoras de heróis começassem a produzir suas próprias HQs”. Quando questionada sobre a vida de quadrinista profissional, Roberta relata que já chegou a repensar a profissão por motivos financeiros várias vezes. “Desenhar era ‘bonitinho’ quando criança, mas se tornava um hobby pouco rentável, segundo meus pais, para se ter quando adulta”. Ela chegou a tentar seguir o caminho da advocacia, mas abandonou o curso de Direito na Universidade Federal de Pernambuco pelo de Artes Plásticas. “Meu pai quase teve um treco (risos)”. Sobre seu início de carreira, ela explica que, no início, não tinha lucro. “Fazia vários bicos e estágios na faculdade, principalmente porque casei e engravidei em seguida. Nosso núcleo familiar se formou nesse redemoinho”. Para conseguir maior estabilidade financeira, a ilustradora formou-se como educadora de arte e também passou a dar aulas. Junto a outros autores, Cirne foi vencedora do HQ MIX de 2007, prêmio nacional de maior prestígio no ramo, pelo trabalho Passos Perdidos História Desenhada, de 2006. Além disso, produziu trabalhos para o Ministério da Cultura e Fundarpe. O equilíbrio financeiro chegou, mas, do ponto de vista criativo, Roberta não estava satisfeita: “Nenhum desses trabalhos foi roteirizado por mim. Tinha certa liberdade em criar as artes, mas queria mais. Todo o conjunto das coisas não era o que eu queria fazer, na verdade. Queria ser dona de meu próprio projeto. Queria algo que me representasse mais”. Passou um período afastada das HQs, entre 2010 e 2015, quando cuidou dos pais em seus últimos dias de vida. Quando retornou, lançou o Sombras do Recife, com base em pesquisas históricas sobre Pernambuco realizadas desde 1998. Hoje, se dedica 100% ao projeto. “São os meus quadrinhos, feitos exatamente do jeito que sempre quis. A internet teve este poder em minha carreira. Ainda não vivo de quadrinhos, mas o mercado está crescendo”. Roberta nota um grande aumento na produção de quadrinhos nacionais. Outra grande artista é a jovem Greice Silva, que ama o que faz e compartilhou sua história. Ela convive com a deficiência Mielomeningocele, uma condição em que a medula espinhal não se desenvolve corretamente, e


Amo o que faço.

precisa se locomover com o auxílio de muletas. No entanto, vive normalmente. Os desenhos foram uma paixão cultivada desde a infância, vivida principalmente entre a escola e os médicos. “Amo o que faço. Comecei indo aos médicos, levando comigo meu portfólio de desenho. Não para mostrar, nem nada. Ainda estava aprendendo. Mas porque às vezes não tinha muito tempo”. No ano de 2014, ela recebeu, através de uma professora, sua primeira encomenda para uma arte. “Comecei a divulgar e aprender com isso. A demanda foi aumentando e eu sempre melhorando a cada trabalho, aprendendo e conhecendo artistas que me ajudaram muito, e até hoje me ajudam”. Ela afirma que o apoio desses artistas e de sua família a motiva a continuar. Greice é dedicada àquilo que gosta, estuda e observa ilustrações de outros desenhistas e arte finalistas. Apesar de jovem, já demonstra profissionalismo. Atualmente está desenvolvendo uma arte para uma exposição no Rio de Janeiro, que ocorrerá em março de 2018, em homenagem à caricaturista Nair de Teffé (vide imagem cedida pela artista). Dados da pesquisa do site especializado Guia dos Quadrinhos de 2015 demonstram que a produção nacional saltou de 20 títulos independentes para 97 entre 2010 e 2011, chegando a 181 em 2015. Mas a produção de projetos nacionais ainda custa caro para as editoras, que preferem traduzir quadrinhos estrangeiros, forçando os artistas a procurarem o mercado autoral. Nesse meio, a internet e o modelo de webcomic surgem como um grande auxílio, não somente para o alcance e visibilidade dos quadrinhos, mas principalmente se pensarmos no potencial de representatividade de produtos feitos por artistas mulheres.

Aproveite para contribuir com o trabalho das artistas que colaboraram com esta reportagem: Webcomic Sombras do Recife http://sombrasdorecife.com.br/ e facebook.com/ sombrasdorecife Greice Silva - facebook.com/greicesilvaart instagram.com/greicesilva_art

e

11

11


À frente de sua época Um resumo sobre a obra e a vida de Nair de Teffé, a primeira caricaturista brasileira.

Jonathas Vieira Tempo de leitura: 3 minutos.

Foto: Retirada da internet Nascida em 1886, em Petrópolis (RJ), filha do Barão de Teffé, Nair de Teffé foi um ícone do século XX não somente para a ilustração, mas para a representatividade da mulher brasileira. Se ainda hoje, no universo da arte, principalmente de quadrinhos e ilustrações, apenas uma pequena parcela das produções é feita por e para mulheres, há 100 anos, na República Velha, isso era quase inexistente. Mas Nair estava à frente de sua época: como se não bastasse a ilustração, seu talento se expandia para a música (era pianista e cantora), para a pintura e teatro, não esquecendo, claro, que também foi a primeira-dama do Brasil, entre 1910 e 1914. Iniciou sua carreira em 1907 e seu primeiro trabalho foi para a revista Fon-Fon!, que inaugurava naquele mesmo ano, lançando suas primeiras edições no ano seguinte. Foi uma revista idealizada por grandes artistas, entre eles o escritor Gonzaga Duque. Para seus primeiros trabalhos, Nair assumiu o pseudônimo Rian (seu nome invertido). Era comum entre artistas mulheres, principalmente escritoras, adotar pseudônimos para que seus trabalhos fossem aceitos pelas editoras e periódicos. Só em 1910, aos 24 anos, Nair ganhou popularidade na imprensa. Seus trabalhos foram publicados em várias revistas, como a Gazeta de Notícias, Careta, O Malho, Gazeta de Petrópolis, Vida Doméstica, Le Rire, Fantasio e Excelsio. Todas originalmente do Rio de Janeiro, com exceção das três últimas, que eram francesas. A modernidade de Nair era transferida de seu modo de ser para sua arte, com traços esguios, ágeis e contínuos, diversas vezes retratando a elegância e independência da mulher. Sua presença no cenário artístico não era recepcionada de forma completamente natural, de acordo com um depoimento da própria artista, ela era recebida com desconfiança por homens e até com

12

12


medo pelas mulheres que “se escondiam atrás dos finos leques”. Mas Nair era irreverente e não se incomodava com isso. Curiosamente, seu trabalho recebeu tanta atenção do público, nesse período, devido à sua condição de primeira-dama, que ela própria se tornou alvo de caricaturas. Dentre elas, a de Fritz ganha destaque, por ironizar a ‘pequenez’ do então presidente Hermes da Fonseca ante sua esposa. Nair faleceu em 1981, no Rio de Janeiro, e se estabeleceu como um ícone poderoso para o feminismo e uma inspiração para os ilustradores e, principalmente, ilustradas do Brasil. Ela é considerada a primeira caricaturista não apenas do país, como possivelmente do mundo.

Ilustração: Retirada da internet

Ilustração: Retirada da internet

Ilustração: Retirada da internet

13

13


Tem mina na área! O desafio diário da inclusão feminina no mundo do futebol, dentro dos campos e na torcida.

Gustavo Militão Tempo de leitura: 17 minutos, 30 segundos

14

14

O Brasil é visto como um importante centro do futebol feminino no mundo. Tem jogadoras de nível mundial, como Andressinha, Andressa Alves, Cristiane, Formiga e a mundialmente conhecida Marta (cinco vezes eleita a melhor do mundo pela FIFA). A seleção brasileira já tem duas medalhas de prata olímpicas e ocupa atualmente a nona posição do ranking mundial. Apesar disso, é enorme a situação de amadorismo que vive a maioria dos clubes femininos e dos campeonatos no Brasil, realidade bem diferente de países como Alemanha, EUA, Suécia e até seleções que são pouco tradicionais no futebol masculino, como o Japão e o Canadá. Para tentar diminuir este “abismo” técnico e estrutural, medidas vêm sendo impostas. A começar pela criação do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino neste ano, com mais partidas e duas divisões de clubes. Outra ação veio por intermédio da Confederação Sul Americana de Futebol (Conmebol), que obrigará os clubes que desejem participar de seus torneios masculinos em 2019, tais como a Libertadores ou a Copa Sul-Americana, a contar com departamentos ativos de futebol feminino. Tais medidas, todavia, não parecem ainda ser suficientes para derrubar as várias barreiras impostas à presença feminina no esporte. Dentre elas, o preconceito, o machismo, a falta de investimentos adequados nos clubes, o desprezo da mídia na cobertura dos torneios e até mesmo a homofobia. Dificilmente uma garota vai ter oportunidade de crescer financeiramente apenas jogando bola, ao contrário de um atleta masculino, que pode ficar milionário até antes mesmo de chegar a um time profissional. Para efeito de comparação, o time campeão brasileiro feminino desta temporada (Santos-SP) recebeu como prêmio pela conquista a quantia de R$ 120 mil da CBF. Já o campeão masculino desta temporada (Corinthians) vai receber nos seus cofres mais de R$ 18 milhões pagos pela mesma entidade. Muitos jogadores reservas de clubes da primeira divisão recebem até mais do que a folha salarial de muitos clubes femininos. Também é raro encontrar equipes que registram os salários em carteira as suas atletas no futebol brasileiro, o que torna a prática de investir no futebol feminino quase que um ato filantrópico. Equivocadamente, muitos ainda insistem em comparar o nível de um jogo de futebol masculino com o do feminino como arma de depreciação. Entretanto, inúmeras vozes nos meios acadêmicos estão contestando duramente esses argumentos. “É um esporte com regras, que pode ser praticado por todas as pessoas, apenas de uma forma diferente”. É o que analisa a Professora Adjunta da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Soraya Barreto, que também é e Coordenadora do OBMÍDIA Observatório de Mídia: Gênero, Democracia e Direitos Humanos da instituição. “A forma de jogar de um jogador profissional pernambucano é completamente diferente da de um jogador europeu. Ambas podem ser corretas, apenas diferentes em seus esquemas táticos e técnicos”, complementa a professora. Porém, apesar dessas e outras dificuldades, o futebol feminino discretamente começa a ocupar um terreno que jamais foi imaginado décadas atrás. É cada vez maior a presença da mulher nos estádios do Brasil. Seja


Foto: Arquivo Pessoal trabalhando, dentro ou fora das quatro linhas, ou apenas torcendo por seus times. “Os clubes locais têm que ter uma preocupação maior com o público feminino, porque essa parcela é cada vez maior e o clube que tem um público consumidor não pode desprezar praticamente metade deste grupo no mercado atual”, observa o jornalista esportivo Cássio Zirpoli. Dentro de campo Ver uma menina nascer com talento para o futebol e decidir jogar profissionalmente antigamente era motivo para um estopim de crise familiar. Logo iriam surgir fortes questionamentos sobre a sua educação, orientação sexual e outros fatores que funcionavam como impedidores para que ela se tornasse atleta. Aos poucos, isso vem mudando e a mulher começa a conquistar o seu espaço no mundo do futebol. Ainda mais depois do “fenômeno Marta”, que impulsionou centenas de garotas no Brasil a driblar o preconceito e correr atrás do seu sonho, com o apoio das famílias A goleira do

Santos-SP Thaís Ribeiro Picarte é um exemplo de como o incentivo familiar pode ajudar no empoderamento dessas garotas. Thaís é natural de Santo André (SP) e tem 26 anos. Já defendeu a Seleção Brasileira e vários clubes pelo Brasil e Europa. Os últimos foram o Centro Olímpico, São José-SP e o Sporting Club de Huelva, da Espanha. Ela sempre recebeu muito suporte da família para jogar futebol, de modo que foi uma decisão natural decidir ser profissional. “Fui sendo chamada para jogar, fazer testes e foi acontecendo. Eu era apaixonada por futebol e simplesmente me deixei levar e virei atleta profissional”, conta. Nos tempos de escola, Thaís sofreu algumas dificuldades no relacionamento com os amigos por gostar do esporte. Mas seguiu em frente, lidando com o preconceito e até ouvindo questionamentos sobre sua orientação sexual durante os jogos. “Isso acaba vindo de homens, muitas vezes que sequer acompanham a modalidade e vão assistir aos jogos. Acabam sempre querendo ofender de alguma maneira e usam esse artifício”, diz. Segundo a goleira, a falta de visibilidade no futebol

15

15


e nas outras modalidades femininas vem muito da visão da sociedade de que o corpo da mulher não é feito para o esporte. Ela sinaliza também o papel das empresas de comunicação. “A mídia atua apenas em momentos pontuais e não busca divulgar e apoiar de alguma maneira. As pessoas sem informação do que acontece não têm como apoiar a modalidade”. A atleta ainda observa hoje as mulheres com mais admiração por outras mulheres que jogam futebol, percebendo que existe mais ativismo em prol da igualdade de gênero. Mas seriam os espaços conquistados hoje seriam suficientes para incentivar uma amiga ou uma filha para seguir carreira como jogadora? “Não sei se incentivaria, mas apoiaria a decisão de uma amiga ou filha a seguir em qualquer coisa”, responde. “Apenas usaria a minha experiência para que ela tivesse uma carreira bacana e com sucesso, buscando os clubes que respeitem mais as mulheres. A situação atual é bem diferente e precisamos nos preparar mais e ter ex-atletas na gestão para que o esporte cresça mais”, complementa Thaís.

time é amor”, enfatiza. Cláudia relembra que, na primeira vez em que foi sozinha ver o seu time do coração jogar, não foi uma experiência agradável. Não se sentiu segura em meio aos olhares e gestos das outras pessoas. “Depois tudo correu tranquilamente e voltei para casa acompanhada do meu pai. Mas foi constrangedor as pessoas apontando e fazendo comentários porque me viram sozinha”. O fato infelizmente ainda é corriqueiro em muitos estádios pelo Brasil. Na visão dela, é o reflexo de uma cultura machista que influencia na demora da presença feminina no ambiente futebolístico.

Frequentar os estádios no Brasil afora vem aos poucos se tornando um programa rotineiro para a mulher. Apaixonadas por futebol, as meninas vêm dando um chute no machismo e se mostram cada vez mais participativas na vida dos clubes. “Há quanto tempo são vendidos uniformes oficialmente? Desde a década de 90. Só agora começaram a surgir as camisas com cortes femininos mais diferenciados, após muitas reclamações das mulheres que são hoje parte viva dos clubes”, como observa Cássio Ziporli. Um exemplo desse crescimento é o de Cláudia Patrícia Meira, de 23 anos. Torcedora do Náutico, a assistente de administração, embora não seja uma assídua frequentadora de estádios, sempre aproveita as oportunidades de discutir futebol com os amigos e provar que conhece realmente do esporte e acompanha seu clube. “Gosto de futebol desde criança. Meu pai sempre me levava para estádios e, de forma mais intensa, acompanho há 8 anos”, diz ela. Cláudia se informa das novidades do seu clube pelas redes sociais e também em grupos de discussão na internet. Não esconde que já se sentiu censurada por torcedores homens nas discussões sobre o mundo da bola. “Na maioria das vezes, eles não dão crédito para o que falamos. Esquecem que estamos em pleno século XXI, 2017 e ainda existem pensamentos machistas de que futebol é coisa para homem. Mas quando a gente consegue oportunidade para poder falar, eles percebem e parabenizam o fato de gostar e entender de futebol. Mas é complicado. Sempre vai ter alguém para criticar pelo fato de você ser mulher e comentar sobre futebol. É uma situação muito desagradável”, analisa. A torcedora alvirrubra vem percebendo que o crescimento da presença feminina nos estádios vem sendo uma arma eficiente para tentar derrubar o machismo que ronda o futebol e impor o respeito necessário. “A mulher não só pode acompanhar o futebol. E sim acompanhar, entender, torcer... É uma relação de amor. Torcer pelo seu

16

16

Fotos: Arquivos Pessoais

Nas arquibancadas

Lidar com o assédio masculino é outro grave problema que algumas garotas ainda enfrentam quando vão assistir futebol nos estádios. A reação da torcedora do Santa Cruz Beatriz Fernanda foi dura quando se viu diante dessa situação. Ela conta que, na ocasião, estava usando short, “Mas mesmo se eu estiver de burca, isso acaba acontecendo. Reagi com um gesto obsceno e mandei se f..., apesar de não ser de fazer esse tipo de coisa. Fiquei bastante irritada”, diz a estudante de jornalismo de 20 anos. Beatriz é uma das muitas meninas pernambucanas apaixonadas pelo futebol e que busca, através da profissão que escolheu para estudar, ampliar este amor. Além de acompanhar futebol desde os 9 anos de idade, ela é sócia do tricolor do Arruda e frequenta estádios numa média de duas vezes a cada mês. A influência para tanto amor veio através do pai e do avô. A estudante utiliza muito a internet para se informar sobre seu clube e também utiliza um fórum de discussão,


junto com outras garotas, para discutir novas formas de ampliar a participação da mulher no esporte. “Muitas mulheres gostam de futebol, mas acabam se sentindo retraídas. Então através do grupo tentamos estimular a participação delas e também nos ajudar”, explica. A necessidade de explorar o mercado feminino como de fato consumidoras do esporte é outro ponto que pode ser melhor visto pelos clubes locais. Em vez de explorar a imagem da mulher como “musa” do time, realizar uma aproximação mais eficiente dela com a marca. “No Santa Cruz, a atual fornecedora de material esportivo foi a primeira a fazer camisas baby look para a mulher. Antes, a

mais torcedora do que a outra”, analisa. Este tipo de problema não a afasta de acompanhar o Sport de forma muito presente. Apesar de não ter uma família que frequenta jogos de futebol, Erica foi presença garantida em praticamente todos os jogos do leão nesta temporada. Ela participa de modo constante de grupos de discussão sobre o clube na internet, onde fez muitas amizades femininas, além de seguir vários perfis nas redes sociais sobre o futebol em geral. Porém, a rubro negra reclama de uma certa falta de incentivo do seu clube do coração em estimular a presença de mulheres. “Gostaria de ver mais ações. Como chegar na loja do meu clube e encontrar produtos voltados para a mulher ou um banheiro nas sociais com um espelho e papel higiênico... coisas básicas. Sinto falta disso e vejo pouco estímulo”, reclama. As três torcedoras, embora de clubes diferentes, concordam que o futebol feminino no Brasil ainda precisa de muitos estímulos para se desenvolver. “O futebol masculino é falado, é divulgado... mas para o feminino a mídia não dá atenção”, observa Cláudia. Erica lembra que o Brasil tem atletas qualificadas, mas a estrutura é precária. “As melhores atletas jogam fora do país. E o que um jogador do futebol masculino ganha num mês tenho certeza que daria para pagar meses de salário de um time feminino todo”. E Beatriz resume a situação da prática do futebol feminino no Brasil em uma palavra: “Desprezo”.

Não vai ser de uma hora para outra, mas a mulher está conquistando seu espaço

gente precisava comprar a camisa tamanho P da masculina para caber. Hoje, até camisa de goleiro feminina tem para vender”, destaca. Além do machismo e do assédio, as mulheres também precisam lidar com a reprovação de outras mulheres por gostarem de futebol. Erica Xavier, 26, é torcedora do Sport e aponta que este problema é real e precisa ser discutido. “Existe (o preconceito). Tanto das mulheres que acompanham o futebol quanto das que não acompanham”, pontua Erica, que trabalha como auxiliar administrativo. “Tenho muito amigos que são casados e suas esposas não acompanham os jogos. Elas têm em mente que os maridos não podem estar com amigas no futebol. Suspeitam que há envolvimento, que as meninas estão no estádio com outra intenção... isso ocorre muito”, diz ela, que frisa ter feito muitos amigos homens graças aos jogos do Sport. “Também existe entre as próprias meninas uma rivalidade em relação com a vivência dentro do clube, do querer ser

Todavia, as recentes conquistas as enchem de esperança de que mais meninas vão acompanhar o esporte nos próximos anos. “Quando vejo os pais nos estádios com meninas de 3, 4 anos... visualizo que elas são o futuro”, afirma Erica. “Mulher pode tanto frequentar o estádio quanto o homem. É igualdade de gênero e isso me deixa feliz”, comenta Cláudia. Beatriz destaca que as conquistas na sociedade através do movimento feminista funcionaram como uma alavanca para mais mulheres entrarem no universo do futebol e no esporte em geral. “Não vai ser de uma hora para outra, mas a mulher está conquistando seu espaço como torcedora ou como profissional”, aponta. Com esta confiança num futuro melhor estas jovens e fanáticas torcedoras seguem a sua trajetória. Sentadas nas cadeiras ou pulando nas arquibancadas dos estádios, incentivando seus clubes com fervor e torcendo por seus ídolos. Mas também lutando e resistindo às ameaças, ao machismo e às piadas inoportunas para buscar o seu espaço no ambiente do futebol brasileiro e pernambucano. Como deve sempre ser.

17

17


Nos bastidores do jogo Os desafios também são muitos para as mulheres que escolhem profissões relacionadas ao mundo do esporte.

Gustavo Militão Tempo de leitura: 6 minutos.

Foto: Instagram A inserção na imprensa esportiva para a mulher, se não ocorre de modo tão amplo, também não está mais para um “Clube do Bolinha”. É visível o crescimento da participação feminina no jornalismo esportivo, atuando como apresentadoras, repórteres ou assessoras de imprensa. Elas estão se qualificando no ramo e buscando passar o seu conhecimento sobre esporte.

Quando comecei a estudar jornalismo, só havia vagas nessa área para estágio e topei. Eu jogava vôlei, mas não sabia nada de futebol.

A paraense Sabrina Rocha, repórter da Rede Globo Nordeste, é um bom exemplo disso. Ela começou a trabalhar com jornalismo com um estágio na área de esportes, quando estava em Belém (PA), sua cidade natal. “Quando comecei a estudar jornalismo, só havia vagas nessa área para estágio e topei. Eu jogava vôlei, mas não sabia nada de futebol”, admite. A boa recepção dos homens que trabalhavam na editoria ajudou muito no processo de aprender mais sobre os detalhes do jogo. Quando veio para o Recife trabalhar na Globo local, a repórter ficou três anos fazendo reportagens de outras áreas. Mas logo voltou para o esporte e a paixão renasceu. Já se vão aí 19 anos desde quando começou a atuar como jornalista. Para Sabrina, o grande desafio da sua carreira foi conhecer mais sobre o mundo dos esportes e entender a superação de quem pratica, além da paixão

18


dos torcedores, que para ela é algo cativante. Falando mais especificamente da atuação da mulher no jornalismo esportivo, o machismo é, na visão de Sabrina, uma barreira ainda a ser superada. Mas a cada dia, as mulheres vão dando passos para serem respeitadas, como nas outras áreas do cotidiano. “Acontece (o machismo). Mas não foi algo que me paralisou ou que me fizesse pensar em deixar de seguir na área. Muitas mulheres hoje estão no jornalismo esportivo. As redações estão procurando as mulheres, mas muitas ainda não se identificam”. Já nos clubes de futebol, o tratamento dado às jornalistas ainda deixa bastante a desejar, na avaliação da repórter. “Tem um Centro de Treinamento de um clube aqui no Recife que não possui banheiro feminino”, diz. Ainda iniciando na área, Lindainês Santos, 22, trabalha há dois anos e meio como assessora de imprensa do time feminino do Sport Club do Recife. O desejo de trabalhar com esportes a motivou na opção pelo curso de jornalismo. Após experiências em outras áreas, ela começou como assessora e se encantou pelo trabalho. “Pretendo continuar trabalhando com assessoria no futebol o resto da minha vida, seja no Sport ou em outro clube”, diz ela.

O que se pergunta para um zagueiro no futebol masculino tem que ser perguntado também para uma zagueira do time feminino.

Receber cantadas no ambiente de trabalho ou ser impedida de ter acesso a determinados locais no clube é uma das grandes barreiras da profissão. “Já é absurdo você receber esse tipo de abordagem na rua ou em transportes públicos, quanto mais num local em que você está sendo paga para trabalhar”, denuncia ela. Entretanto,

o aumento do número de times femininos pode criar um mercado novo e mais aberto para a mulher ingressar na área de comunicação. “Sair da caixinha”. É o que a assessora considera como o grande desafio no que diz respeito à comunicação do futebol feminino. “Todas as matérias de futebol feminino giram em torno da superação, da luta. O que se pergunta para um zagueiro no futebol masculino tem que ser perguntado também para uma zagueira do time feminino. Fugir dos clichês e das matérias batidas e cobrir o esporte com seriedade no dia a dia”, alerta. O desafio da mulher de trabalhar na comunicação vai além de dar uma informação. É necessário provar que ela é correta e conquistar credibilidade. Mas ambas profissionais tem um conselho de encorajamento para as garotas que desejam trabalhar na área esportiva. “Se fosse dar um conselho, diria para cair de cabeça. É prazeroso quando você consegue fazer as coisas. Acaba até lhe inspirando até na sua vida pessoal e profissional. Trabalhar com o futebol feminino é muito prazeroso. Saber que você está trabalhando com gente humilde que quer vencer todo dia é apaixonante”, observa Lindainês. “A mulher que gosta de futebol tem que chegar focada e determinada. No início a gente leva desvantagem, porque tem sempre que provar que sabe e que pode estar ali, até conquistar a credibilidade do torcedor, dos jogadores e dos dirigentes. Então, se faça acreditar, vá atrás de boas histórias e se coloque. Creio que em breve estejamos no mesmo nível (dos homens). Oremos”, complementa Sabrina. Lutar pela representatividade e igualdade num universo tão machista como o futebol, é mais que um desafio. É uma necessidade da busca de igualdade de gênero e do respeito. Como coloca a professora Soraya Barreto, compreender o sexismo no esporte “é observar um resquício do que as mulheres vivem em sociedade. O futebol é um fenômeno sociocultural e por isso mesmo, sofre com as prerrogativas e comportamentos sociais”.

Foto: Arquivo pessoal

19


Por um cinema como forma de emancipação social Aproximar

o

poder

da

arte

cinematográfica das populações e grupos periféricos sempre foi um motor da Sétima Arte enquanto manifestação. Foto: Úrsula Freire

Fillipe Vilar Tempo de leitura: 15 minutos, 30 segundos.

20

20

A décima edição do festival Janela Internacional de Cinema do Recife, realizada no mês de novembro deste ano, trouxe como temática central da curadoria as “heroínas do cinema”. O mote muito provavelmente tem a ver com as questões levantadas na edição do ano passado, onde a já histórica sessão de Câmara de Espelhos (Dea Ferraz, 2016) foi marcada pelo protesto das mulheres trabalhadoras do audiovisual pernambucano, diante de um cinema São Luiz lotado. As questões sociais, de uma maneira ou de outra, sempre estiveram presentes nas edições do Janela. Este ano também houve uma mostra paralela, dentro do festival, que exibiu algumas obras do movimento cinematográfico conhecido como L.A. Rebellion. Durando do final da década de 1960 até meados dos anos 1980, a onda de filmes, realizados por estudantes de Cinema, de pele preta, na Universidade da Califórnia (UCLA), trabalhava com temáticas vindas da luta do povo negro nos Estados Unidos. Com ecos dos pensadores pan-africanistas, como o martinicano Frantz Fanon, e de ativistas e filósofos ligados aos Panteras Negras, como Angela Davis, os filmes ligados ao L.A. Rebellion mostravam a realidade cruel da vida das pessoas negras na Califórnia. Uma população eternamente subjugada pelas injustiças e abusos de autoridade. Os famosos distúrbios de Watts, em 1965, e de Los Angeles, em 1992, são reflexos da revolta da população com a opressão da sociedade branca, traduzida pela violência policial. O público do Janela, uma elite


público periférico de obras com o caráter como as do L.A. Rebellion? Filmes que falam sobre periferia, sobre luta, violência e que chamam para a ação, que é urgente. Há caminhos possíveis. A troca entre a periferia, de várias origens étnicas, sempre rendeu frutos importantes para a arte e para a sociedade. A onda que veio da França

intelectual recifense, proeminentemente branco e de esquerda, aclamou as obras, até então obscuras para a grande plateia. Como parte da programação da mostra, um ciclo de debates sobre os filmes e o movimento como um todo correu em paralelo às exibições. Durante as discussões, uma questão foi levantada: o cinema pode ser uma ferramenta de emancipação das classes oprimidas, mas como fazer com que essa ferramenta chegue até as populações mais carentes? O Janela Internacional de Cinema olhou para o próprio umbigo. Um pequeno nicho de intelectuais assistindo a filme obscuros falados em língua inglesa, em sessões onde as legendas sempre apresentavam problemas, seja de sincronia, seja de exibição. No fim das contas, ficou parecendo mera masturbação ideológica e olhar condescendente de uma elite que se diz engajada sobre um movimento que dialogaria muito bem com a realidade local, marcada a chumbo pela violência, seja ela da polícia, seja ela social como um todo. Essa violência se fez presente em frente ao Cinema São Luiz em um dos dias de festival, em uma ironia perversa do acaso. Um grupo de menores, negros, foi abordado de forma agressiva por policiais militares. O público, que se aglomerava em frente ao cinema, assistiu a tudo de forma quase passiva. Não era a realidade deles. Chocava, mas não importava. Mas a questão permanece. Como aproximar o

François Truffaut, um dos nomes mais importantes da nouvelle vague francesa, foi uma criança carente. “Criança problemática”, suas memórias da época em que esteve detido em um reformatório ajudaram a criar um dos filmes mais importantes da história: Os Incompreendidos (1959). Primeiro longa do realizador, ganhou o prêmio de melhor direção no festival de Cannes e foi um dos primeiros grandes expoentes da “nova onda”, então assim chamada, do cinema francês. Mas ele, longe de ter estado só em sua ascensão, precisou de ajuda. O jovem Truffaut teve o talento descoberto pelo crítico de cinema André Bazin, fundador de uma das publicações mais influentes na Sétima Arte, os Cahiers du Cinema. Começou como crítico na revista de Bazin. Seu trabalho com a crítica rapidamente ganhou projeção mundial. Com o prêmio em Cannes debaixo do braço, o jovem François, que dirigiria clássicos inesquecíveis, como Atire no Pianista (1960) e A Noite Americana (1973), ajudou a colocar em lugar de destaque o trabalho de diretores considerados, até então, menores, pelo apelo comercial de seus filmes. O caso de maior destaque é o de Alfred Hitchcock. Sucesso incontestável com o público, Hitchcock era considerado um diretor de segunda categoria pelos críticos americanos e europeus, até que a longa entrevista que Truffaut fez com ele, publicada em livro (Hitchcock/ Truffaut, de 1966), colocasse o cineasta de origem inglesa, nascido em uma família pequeno-burguesa, no patamar dos gênios da arte. Justiça histórica? Uma mão - a pobre lava a outra - burguesa -, e vice-versa. Truffaut era um homem branco, europeu, intelectualizado. Cidadão parisiense. Cinéfilo. Apesar das limitações econômicas de sua origem, em um mundo racista, deslumbrado com a arte do mundo moderno que é o cinema, ele precisava apenas de uma mãozinha - aliada, é claro, ao seu enorme talento - para conseguir tudo o que conseguiu como artista e pensador da arte. Ele apareceu na edição deste ano do Janela, estrelando um dos clássicos exibidos no festival: Contatos Imediatos do Terceiro Grau (Steven Spielberg, 1977). A onda que veio do Senagal É justo que se faça uma comparação com outro cineasta e notável escritor, mais importante que Truffaut, de origem também pobre: Ousmane Sembène. Senegalês, ainda hoje é um dos nomes mais lembrados do cinema de origem africana. Radicou-se, porém, na França. Estudou formalmente até os 14 anos de idade. Cresceu como

21

21


Foto: Úrsula Freire trabalhador braçal, apesar de saber falar francês, árabe e wolof, língua nativa senegalesa e a que a mãe dele falava. Sembène foi para a europa ainda na década de 1940. Lutou na Segunda Guerra Mundial no exército da França Livre, fundado pelo general Charles DeGaulle. Trabalhou como estivador no porto de Marselha, experiência que serviria como base para um dos seus romances mais famosos, O Estivador Negro (1956). A questão racial sempre esteve presente nos trabalho de Sembène, que lançou seu primeiro longa em 1966, Garota Negra. Vencedor do prêmio Jean Vigo, honra dada sempre para cineastas jovens de origem ou radicados na França, o filme foi exibido como um dos clássicos na programação do Janela deste ano. Sembène voltou para o Senegal como intelectual de imensa importância. Até hoje conhecido como pai do cinema africano, o cineasta também era um expoente do discurso anticolonial e pan-africanista, que inspirou os cineastas do L.A. Rebellion. Seu debate com Jean Rouch, documentarista ligado ao movimento cinéma vérité, que defendia e realizava filmes etnográficos, influenciou e muito o debate sobre a representação no cinema. O senegalês acreditava que os africanos, periferia do mundo ocidental - e podemos fazer um paralelo com todas as periferias - em contrapartida ao discurso dos documentaristas franceses, é que deveriam contar suas histórias, sem o ranço etnocêntrico e o tom de exotismo que os brancos imprimiam em suas obras sobre o continente. Em seu país de origem, Sembène fundou uma escola de

22

22

cinema em sua casa, na beira de uma praia. Auxiliou diversos cineastas a conseguirem realizar suas obras. Ele ensinava uma técnica cinematográfica muito própria, cunhada na própria experiência pessoal, que abriu caminhos para vários movimentos fora do eixo europeu e estadunidense. Em exibição de filmes e oficinas, Sembène colocou todo um continente, o que originou a humanidade, no mapa da Sétima Arte. Cine S.A. Sembène, filho de pescadores, estivador na França, era um homem das marés. Se ele fosse recifense, poderia muito bem habitar o bairro de Santo Amaro. Santo Amaro das Salinas, batizado graças à antiga igreja construída em cima do Forte das Salinas, ainda no século XVII. Carrega dentro de si contrastes históricos. É o local do primeiro parque urbano da cidade, o 13 de Maio (dia da assinatura da Lei Áurea). Data irônica, não comemorada pela população negra do Brasil, por tudo o que ela representa na falta de reparação ao trauma das populações sequestradas e escravizadas no país. Marcado pela violência do tráfico, concentra dentro de si uma periferia própria, em comunidades vizinhas e rivais, que extermina e faz parte de um mapa de genocídio das populações negras e periféricas do Brasil. É em Santo Amaro que Erlânia Nascimento, jornalista e cineasta, se cria. Mulher e negra, é através do cinema que expressa os anseios da realidade que vive e observa. Seu


Cineclubes (https://fepec.wordpress.com/apresentacao/). Criada no primeiro Encontro de Cineclubes, realizado naquele ano, reúne diversas iniciativas cineclubísticas. Festival como espaço representativo

O contato com filmes feitos por cineastas locais, do bairro, pode ser um exemplo para os jovens.

primeiro filme, Especulação S.A (2017)., fala da especulação imobiliária dentro do bairro, que vai se transformando e aprofundando suas desigualdades nas diretrizes das empreiteiras. Erlânia, junto com outros habitantes do bairro, fundou o Cine S.A., cineclube que funciona dentro da Escola de Referência em Ensino Aníbal Fernandes, e tem como público adolescentes e jovens de Santo Amaro, que frequentam a escola. As sessões, a princípio, enfrentam o problema da obrigatoriedade: a direção da escola fez com que todos os alunos tivessem que assistir ao filme que Erlânia realizou. O modelo escolar, quase militarizado, é um problema sempre satirizado pelo cinema. O próprio Jean Vigo - diretor que deu nome ao prêmio dado a Sembène por Garota Negra -, em 1933 lançou, Zero de Conduta, sobre um reformatório semelhante ao qual Truffaut passou a infância - que se revolta contra a autoridade escolar. Os assuntos se entrelaçam. Em parceria com o Grupo Ruas e Praças - organização não-governamental que desde 1989 estimula e cria projetos de educação para crianças em situação de rua ou carentes no Recife e Região Metropolitana - o Cine S.A. fez exibições extras na rua, para menores carentes e o público em geral. “O contato com filmes feitos por cineastas locais, do bairro, pode ser um exemplo para os jovens”, diz Erlânia. “Discutir o próprio lugar onde mora, com a linguagem das pessoas daqui, para as pessoas daqui, é uma coisa que não acontece todos os dias e precisa ser cada vez mais frequente”, conclui. Alguns cineclubes de Pernambuco estão organizados desde 2008 na Fepec, a Federação Pernambucana de

Especulação S.A. também está na programação da décima nona edição do Festcine, festival de curtas de Pernambuco, no Cinema São Luiz. O cinema feito na periferia local frequenta a mesma sala onde o Janela aconteceu. Os debates se tocam. Outro festival que tentou expandir seus horizontes em 2017 foi o Recifest. Festival voltado para filmes realizados ou que representem as pessoas LGBTQI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transvestigêneros, Queers, Intersexuais e outros), realizou sessões descentralizadas, algumas delas na Colônia Penal Feminina Bom Pastor, no bairro da Iputinga, Zona Oeste do Recife. As sessões aconteceram imediatamente depois da edição do Janela deste ano. Alguns equívocos, no entanto, acontecem. O Recifest teve que manifestar uma carta de posicionamento contra um filme exibido no festival, de teor considerado misógino durante uma programação de curtas. As lutas e autocríticas estão sempre presentes. O que nos faz retornar ao Janela: os filmes do L.A. Rebellion um dia serão acessíveis, com legendas, aos cineclubes, ao público em geral, e poderão ser exibidos e inspirar públicos periféricos locais? Um dos filmes exibidos na mostra foi Bush Mama (Haile Gerima, 1977). Conta a história de uma mulher negra, moradora de Los Angeles - o filme foi gravado em Watts, onde aconteceram os distúrbios de 1966 -, que tem a vida destroçada pela violência da polícia. A história é contada propositalmente com pontas soltas, que serão amarradas no final de forma que abalou os público que esteve presente na primeira exibição no festival.

O discurso é forte e, num anseio de mostrar ao mundo que aquela é uma fala possível, automaticamente viu-se a necessidade de que filmes como Bush Mama conversassem com as periferias locais, muito distantes do público dos festivais de grande porte, como o Janela. Como esperança restante, a pirataria - a livre distribuição de conteúdo cultural a baixos custos - deu uma luz de esperança nos últimos dias deste ano. Um torrent de Bush Mama surgiu na internet, sendo possível baixar o filme, antes quase inacessível, de graça. Os cineclubes, periféricos, locais, atentos às discussões, mencionaram o acontecido. Finalmente, a questão levantada nos debates do Janela, parece encontrar uma resposta: o L.A. Rebellion começa a poder ser visto por qualquer pessoa.

23

23


Os desafios da requalificação do Cais de Santa Rita Ambulantes cobram a conclusão do projeto das obras na feira livre, prometidas desde 2014.

Obras públicas que não saem do papel são um dos grandes problemas de nosso país. Não é incomum ver o abandono sendo cenário de todo o investimento, principalmente em obras que poderiam atender a anseios antigos da população. No Recife, não é diferente. Encontramos no centro da cidade uma situação que nos chamou a atenção: as obras de requalificação do espaço onde hoje funciona a Feira Livre do Cais de Santa Rita, no bairro de São José, não estavam concluídas. A obra previa a instalação de uma cobertura metálica no local e melhoria nos boxes dos ambulantes que trabalham no local. O financiamento veio através do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em parceria com o Prodetur, o Programa de Desenvolvimento do Turismo do Nordeste. O projeto faz parte de uma obra maior: a revitalização total do Cais de Santa Rita. De acordo com o aviso de licitação divulgado em 2015 pelo Prodetur na busca de construtoras, o empréstimo do banco foi de U$ 75 milhões. Desse dinheiro, somente a parte da cobertura foi orçada em R$ 3,5 milhões. A divulgação da homologação saiu no Diário Oficial do Estado de Pernambuco em 30 de junho de 2016. Assim, foi estimada a vigência a partir do dia 27 do mesmo mês até o dia 23 de março de 2017. Revitalizar o Cais

Gustavo Militão e Sarah Rachel Meneses Tempo de leitura: 8 minutos, 50 segundos.

24

24

Trata-se de um projeto que estava previsto desde 2014, como parte das obras estruturais visando a Copa do Mundo no Recife. Porém, sofreu atrasos e somente em junho de 2016 foi anunciada a sua retomada, através de medida tomada pela Secretaria de Turismo do Estado para destravar projetos municipais parados pela falta de verbas. Na ocasião, foi anunciado que a obra estaria concluída em 180 dias. “É um equipamento de extrema importância, que ganhará mais organização e segurança, proporcionando também melhores condições de trabalho para as pessoas”, explicou à época o Secretário de Turismo, Esportes e Lazer do Estado, Felipe Carreras, durante a assinatura da ordem de serviço. Estava também previsto um outro pacote de obras, que foi orçado em R$ 4 milhões, anunciado no início de 2014 e previsto para ser entregue em dezembro de 2015. A planta previa a requalificação de todo o local, com a construção de mais de 500 boxes, distribuídos em diferentes segmentos, como: lanchonetes, bares, barracas de frutas e verduras, fiteiros, além de um amplo estacionamento para 400 veículos. Todavia, pouco do projeto para o Cais avançou. Estivemos no local no dia 8 de junho de 2017 e iniciamos a visita por um dos módulos da feira que sequer teve as obras iniciadas. Lá, nos deparamos com barracas em precário estado de conservação, um calçamento irregular que dificulta a acessibilidade, falta de limpeza e uma sensação de insegurança. Os cerca de 200 comerciantes reclamam da demora da entrega das obras e da falta de comunicação da Prefeitura do Recife. “A prefeitura apenas nos diz que está trabalhando e não dá um prazo. Estamos sofrendo com a falta de segurança e de limpeza. Não podemos reformar as barracas, nem fazer modificações”, diz a ambulante Tereza Cristina, que possuí uma barraca de comida no local há 22 anos. Ela conta que quase todos os dias há funcionários de construtoras pelo local, mas a construção pouco avança, o que tem afastado muitos clientes.


Foto: Sarah Rachel Meneses Mais à frente, encontramos outros ambulantes instalados em barracas estilo módulo. Eles tinham sido retirados do primeiro setor da feira, que estava em obras desde a Copa. Um dos comerciantes relatou que foi deslocado pela prefeitura três vezes, por causa do andamento da construção. Porém, as mudanças não melhoraram as condições dos feirantes. O desordenamento dos boxes chama a atenção. Muitos estavam praticamente em cima das calçadas, dificultando o trânsito dos pedestres, que precisavam se deslocar pelo meio da rua.

Estamos sofrendo com a falta de segurança e de limpeza.

“Vocês podem entrar lá, é logo alí”, indicou o último feirante que abordamos. Encontramos vários tapumes cercando o trecho em obras, mas com acesso a quem quisesse entrar. Ao chegarmos, alguns poucos funcionários trabalhando no local. Um deles estava preparando massa para rejunte enquanto mais dois observavam. Outro funcionário estava ajeitando as grades e um mestre de obras apenas observava a movimentação. Ele mesmo nos confirmou que a obra estava atrasada e não havia uma previsão para a conclusão. Foi quando encontramos Iraquitan Reis, coordenador responsável por toda a fiscalização da obra de requalificação da Feira Livre do Cais de Santa Rita, desde 2016. A primeira pergunta feita foi sobre o motivo do atraso das obras, já que o edital previa a conclusão do serviço em março deste ano e nem o primeiro módulo estava pronto – estávamos no segundo, que nem teve todo o piso finalizado. O coordenador tratou de explicar que o motivo do atraso não foi a falta de dinheiro, pois os recursos já estavam disponíveis. Completou, relatando que foram feitos ajustes ao plano inicial do projeto.

Fomos então convidados a conhecer o primeiro módulo, que fica próximo à Avenida Martins de Barros. É onde o ritmo das obras, previstas para serem concluídas até o fim do mês de junho (a conclusão aconteceu na verdade em setembro), está num estado mais adiantado. Várias barracas já foram instaladas e a demora é para a instalação das ligações elétricas e de água. Iraquitan esclareceu que o projeto não se resumirá apenas a retirar o feirante de um local e colocá-lo num novo equipamento. O projeto, que faz parte de todo um reordenamento da área do Cais de Santa Rita, inclui a qualificação dos ambulantes através de cursos do SENAI, mais higiene e a criação de um horário de abertura e funcionamento do local, que terá segurança e será gradeado. Assim, se evitará que o local se torne um ponto de assaltos e tráfico de drogas, como vinha sendo no passado, com bares funcionando 24h por dia no local. “Na base da conversa e do entendimento com os ambulantes, sem entrar em confronto, conseguimos reduzir drasticamente o número de assaltos e homicídios na área”, explica o coordenador. Com relação à situação dos feirantes que estão num setor mais afastado, Iraquitan afirmou que o quanto antes haverá a remoção para as novas áreas, mas alerta que é preciso se ter paciência para que se termine toda a obra. A boa notícia é que, segundo ele, não haverá novos atrasos (a obra completa deverá estar concluída até o fim de 2018, de acordo com a Secretaria de Mobilidade e Controle Urbano - SEMOC). Reis ainda garantiu acesso a qualquer cidadão que deseje fiscalizar as obras. “Estamos aqui disponiveis a tirar as dúvidas que existam”, esclarece. Resta aguardar para saber se o prazo será cumprido e se, finalmente, veremos a tão esperada requalificação de uma área que já foi um setor nobre da cidade.

25

25


Muita gente está fugindo dos tradicionais cães e gatos para criar pets silvestres ou exóticos e tratalos como seus fiéis companheiros. Mas cuidar desses bichinhos requer cuidados.

Gustavo Militão Tempo de leitura: 7 minutos, 20 segundos.

Foto: Jefferson Freitas Cuidar de um animal de estimação é uma tarefa que sempre requer muita dedicação e cuidados. Ainda mais se, em vez de optar por adotar um cachorrinho esperto ou um gato fofinho, você resolver criar uma cobra, um furão ou até mesmo um gavião. E, sim, muitas pessoas estão escolhendo fugir do “tradicional” e adotar esses pets mais exóticos. Claro que estamos falando da forma legalizada de se criar este tipo de animal. Sem maus tratos e com a devida autorização dos órgãos competentes. A falta de informações básicas para criar estes bichinhos torna essa tarefa mais difícil, pois muitos deles precisam de cuidados especiais. Desde uma alimentação específica, remédios e um local apropriado para ficarem localizados, já que o fato de viverem fora de seu habitat não quer dizer que tenham que viver enjaulados ou em más condições dentro de casa. Ciar um animal sem autorização é tipificado como crime ambiental, com uma pena que varia de seis meses a um ano de prisão, além de multa. Por isso, decidir cuidar de um pet exótico não é tão simples quanto parece. Muitas pessoas acabam preferindo não obter autorização. E, com medo de serem punidas, acabam não levando esses pets para terem cuidados com um veterinário, como deveria ocorrer.

Foto: Arquivo Pessoal

Os novos (e exóticos) animais de estimação

“É parte da família” Entretanto, outros criadores têm a consciência de cuidar de seus pets da maneira correta e acabam transformando esses animais em grandes companheiros. O zootecnista Vagner Rodrigo de Barros, 35 anos, é um feliz criador de um gavião asa-de-telha (parabuteo unicintus) desde abril de 2015. O animal, chamado Sinistro, tem 3 anos de idade e veio diretamente de um criadouro de aves de rapina, no Rio de Janeiro. Hoje, o gavião já se tornou um membro da família. O gavião vive tranquilamente em casa num poleiro, mas precisa voar livremente ao menos uma hora por dia pelos arredores da casa, uma tarefa que se faz necessária

26

26


Foto: Arquivo Pessoal para manter a boa saúde do animal. Se ele não voar, pode desenvolver comportamentos anormais, como arrancar as próprias penas ou ficar muito agressivo. Sua alimentação consiste de codornas, ratos, pintos e até porquinhos da Índia, quando possível. Sinistro também recebe cuidados específicos, como tomar banho de sol, controle de peso e visitas regulares a um veterinário. Porém, não é qualquer pessoa que está apta para criar um gavião em casa, pois é importante se conhecer a fundo tudo sobre um animal desse porte. “Ao adquirir um gavião desse tipo, aconselho que a pessoa dedique um ano de estudo sobre como manter e confeccionar equipamentos e poleiros para não prejudicá-lo, além de conhecer bem as suas necessidades”, alerta. Para criar aves exóticas, o interessado precisa inicialmente verificar a Instrução Normativa Nº 18/2011, de 30 de dezembro de 2011. Essa norma estabelece que os criadores de aves da fauna exótica precisam estar registrados no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA). “Para outros animais adquiridos em pet shops, a nota fiscal funciona como um documento de autorização”, informou Patrícia Gimenez, funcionária do setor de fauna da Agência Estadual do Meio Ambiente (CPRH).

devem ser supridas”. André também faz uma observação sobre os cativeiros, que são vistos de uma forma negativa pelo público. “Se não fosse o cativeiro, algumas espécies de animais já teriam desaparecido da terra, como a ararinha azul, o mutum alagoano, entre outros. O cativeiro quando acontece de forma correta é importante para a manutenção da genética da fauna mundial. O grande problema é que as pessoas não têm conhecimento de causa e replicam informações equivocadas”. O biólogo administra uma página no Facebook chamada “Trilogiabio”, um projeto de educação ambiental que consiste em palestras com a interação do público com animais exóticos e silvestres. A dedicação para cuidar dos pets é total e exige muita responsabilidade. Pois, como qualquer bicho, eles sentem necessidades como fome, frio, sede e precisam de carinho e cuidados. Assim, Maia resume sua relação com os bichos em uma frase: “meus pets são meus filhos”.

“Meus pets são meus filhos” O amor por um animal, exótico ou não, faz com que esses bichos sejam tratados como verdadeiros filhos por seus donos. André Maia é biólogo e tem 36 anos. Ele conseguiu desenvolver uma verdadeira relação familiar entre o furão “Paçoca” e o Lóris Molucanos (papagaio) “Pipoca”, adquiridos há três anos em criadouros legalizados. As rotinas dos dois pets são bem distintas. Paçoca é um furão bastante dorminhoco (dorme de 14 a 18 horas por dia), que se alimenta de ração própria, mas quando acorda quer gastar suas energias e interagir. Pipoca se estabelece em um viveiro e não dispensa uma boa papinha além de frutas, mas sempre fica solto quando André está em casa. É neste momento que os dois pets têm a oportunidade de interagir e brincar, sempre na maior harmonia. Conhecer o comportamento particular de um animal é uma das dicas que Maia dá para qualquer pessoa que deseje criar pet exótico. “Tem gente que compra um animal e não quer que o animal suje sua casa, não faça barulho etc. Então antes de adquirir animais exóticos, tem que saber que, assim como um cão ou um gato, os animais têm necessidades que

27

27


ESPAÇO

ECOS

CULTURAL

RESENHA

Quem tem saudades de Amélia? Maria Nívea Siqueira Melo Tempo estimado de leitura: 2 minutos

Ilustração: J. Bosco Sucesso na Era do Rádio na primeira metade do século XX, a canção “Ai, que saudades de Amélia”, composta por Mário Lago e Ataulfo Alves, nasceu numa despretensiosa conversa de botequim, mais precisamente no memorável Café Nice, no Rio de Janeiro. Historiadores afirmam que a inspiração veio de uma exímia lavadeira por nome de Amélia, que prestava serviços à sambista Araci de Almeida. Diz a lenda que, nas rodas do Nice, sempre que algum boêmio queria se referir a uma gueixa do lar, bastava sublinhar os predicados da tal Amélia, até então anônima. A moça lavava, passava, cozinhava com louvor. Em 1941, a história deu samba, eternizado a quatro mãos por Lago e Ataulfo. A música figura como um dos sambas mais conhecidos na MPB. Na letra, Ataulfo sempre compara Amélia a uma

28

28

segunda mulher, esta sempre vista em tom de crítica, num contraponto entre a subserviência e a autoafirmação. “Nunca vi tanta exigência, nem fazer o que você me faz”. Admita! Ao ouvir a melodia “Ai, que saudades de Amélia”, qual ser pensante nunca se perguntou: mas essa mulher existe mesmo? O fato é que, se nunca existiu, permeou o imaginário masculino como referencial de mulher perfeita, do tipo que, numa extrema anulação de si mesma, “acha bonito não ter o que comer”. Atitude mais franciscana, impossível. “Aquilo sim é que era mulher”, diz a letra do samba. Sim, para os machistas de plantão, “Amélia era a mulher de verdade”, capaz de se despojar do luxo, riqueza e vaidade, numa submissão capaz de desmontar qualquer teoria pró-feminismo de Simone de Beauvoir.


ILUSTRAÇÃO

Jerusalém Jonathas Vieira

29

29


ESPAÇO

ECOS

CULTURAL

FOTOG

Metrô Camar Daiana N

30

30


GRAFIA

ragibe-Recife ascimento

31

31


32


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.