Jornal Laboratório Ecos - Edição 2 - FBV| DeVry
ECOS
A ORQUESTRA CRIANÇA CIDADÃ MUDA A VIDA DE CRIANÇAS DA COMUNIDADE DO COQUE
Desmitificando a Osteogênese Imperfeita
Empresas privadas e o financiamento eleitoral
A vida de quem trabalha no Alto da Sé, Olinda
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p. 16
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Expediente Carta dos Editores Reportagem Isabella Barbosa Larissa Leite Larissa Oliveira Maria Nívea Siqueira Reuel Almeida Sarah Rachel Meneses
Projeto Gráfico Camila Bresani Caio Lira
Em sua segunda edição, o Ecos, jornal laboratório do curso de Jornalismo da Faculdade Boa Viagem/DeVry, traz, em sua matéria de capa, uma reportagem sobre a Orquestra Criança Cidadã. A repórter Sarah Rachel Meneses conheceu o trabalho deste projeto social beneficiente que causa grande impacto em crianças e adolescentes da comunidade do Coque, no Recife (PE). A Osteogênese Imperfeita, popularmente conhecida como Ossos de Vidro, é tema de um conjunto de matérias, elaboradas por Isabela Barbosa e Larissa Alves. A reportagem traz a história de um personagem bastante particular: o também estudante de jornalismo Gustavo Militão, que vive com a doença há mais de 30 anos e superou todas as expectativas de vida estimadas pelos médicos. Em entrevista, o aluno, que é autor da biografia “Ousei Desafiar o Destino”, contou um pouco sobre sua vida. A repórter Larissa Leite investigou o mundo de pacientes que sofrem de doenças cardiovasculares. Além disso, foi até o Alto da Sé, em Olinda, e produziu uma delicada matéria sobre todos os que dão vida a um dos principais cartões postais de Pernambuco. Essas e outras matérias, crônicas, resenhas, ilustrações e fotografias produzidos pelos alunos da Faculdade Boa Viagem fazem mais uma edição do jornal laboratório. As próximas páginas são ecos de aprendizado e trabalho em equipe. Desejamos uma leitura prazerosa.
Índice Crônica: Até que o casamento nos separe ............................................................03
Colaboração
Harley-Davidson e uma história de 112 anos.........................................................04
Cibelly Melo
Depósito de dor.......................................................................................................06
Felipe Moura Jully Vieira Ramone Ramalho
Edição
Mercado infantil mobiliza economia......................................................................08 A exuberância vista do alto por ângulos e vozes diferentes..................................10 À la bacana..............................................................................................................12 Dos holofotes aos bastidores..................................................................................14 Empresas privadas e financiamento eleitoral........................................................16 As partituras que mudam o mundo........................................................................18
Diego Gouveia
Ele ousou desafiar o destino...................................................................................22
Cecília Almeida
Entrevista com Gustavo Militão.............................................................................25
Coordenação do Curso de Jornalismo Talita Rampazzo
ISSN 2447-763X
Atitudes preventivas podem evitar doenças cardíacas..........................................26 Espaço Cultural ......................................................................................................28
Crônica
Até que o casamento nos separe Cibelly Melo
Foto: Chu Wel Hung/Creative Commons Desde menina, desejava um amor pra toda vida. O primeiro beijo, o namoro, um anel de brilhantes e um “felizes para sempre”. Seja da maneira tradicional, vestida de princesa; ou moderninha, a cara da riqueza. Seja em um castelo, igreja ou campo; seja com algumas dezenas de testemunhas ou com poucos convidados mais chegados, o desejo de quase toda mulher apaixonada é casar com seu príncipe desejado ou com o sapo encantado. Mas, em meio a tantos desejos e por vezes delírios, tenho a impressão de que esqueceram de informar à sonhadora e futura senhora que o vestido custa caro, que a comida não sai de graça e que não dá para morar na casa da sogra. Daí você pensa: Mas o Brasil tá em crise! A inflação é a mais alta dos últimos doze anos e taxa de desemprego só aumenta. Com tanta coisa acontecendo no país, será que dá para fazer muita festa? Já imagino a cara do noivo, deve começar a suar, só de pensar! Enquanto ela se imagina linda no altar, ele só consegue visualizar as contas a pagar... Ele deve até querer voltar no tempo, saber se o digníssimo sogrão tem o dote da princesa. Mas não passa de ilusão. Já faz um tempo que a casa, o carro, a mobília, além das alianças, a festa, as roupas, o conjunto de talheres, xícaras, copos... É responsabilidade dos noivos. Pode ser até que recebam presentes, mas não dá para confiar. Uma das vantagens dos maus tempos é que eles abrem alas para a criatividade. Na busca da realização do desejo, os mais sofisticados encontros podem se transformar em reuniões intimistas, aconchegantes e deliciosamente inesquecíveis. E para que servem os amigos? É nessa hora que a gente descobre quem realmente eles são. Os chegados, os amados, os que topam qualquer tromba! Afinal de contas, ninguém quer que os noivos se separem antes de chegar ao altar. Uma boa dose de amor, duas pitadas de amizade, um tanto de criatividade e dedicação deve ser a receita necessária para fazer acontecer um sonho que por vezes parece difícil, chega a ser impossível, mas que pode ser concretizado. Até porque, no fim da história, é sempre encantador testemunhar o fim... E um começo.
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Harley-Davidson e uma história de 112 anos Proprietários da motocicleta mais famosa do mundo não a veem apenas como uma marca, mas como uma irmandade Reuel Almeida
Foto: Bryce Walker/Creative Commons
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A fabricante de motocicletas Harley-Davidson foi fundada em 1903 pelos amigos de infância Arthur Harley e Walter Davidson, no quintal da casa de Arthur, em Milwaukee, Wisconsin, Estados Unidos. Queriam criar um meio de se deslocar mais rápido até o lago em que pescavam. Assim, por pura diversão. O momento era propício, com a Revolução Industrial impulsionando invenções e criando novos mercados. O sucesso foi tanto que o exército norte-americano usou motos da Harley-Davidson nas duas grandes guerras mundiais. Eram robustas, velozes e dificilmente davam problemas. O próprio Walter Davidson, em 1908, participou de um enduro com duração de dois dias. Enquanto seus competidores paravam constantemente para fazer manutenção em suas motos, Walter seguiu direto para linha de chegada. E não levava consigo nenhuma ferramenta de reparo. Essa era uma grande forma de propaganda e os amigos empreendedores sabiam disso. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, e com a economia estadunidense a todo vapor com o seu crescente way of live (estilo de vida, em tradução livre), símbolo do desenvolvimento, mais as pessoas queriam uma moto para uma road trip. Mas, até então, motocicletas eram vistas apenas como um item de lazer para um simples passeio de fim de semana, e era assim que a empresa
gostava de vender suas motos. Entretanto, um fato mudou para sempre a maneira de como as motos eram vistas. Durante o feriado de 4 de julho de 1947, na cidade Hollister, próxima a San Francisco, houve um rali entre motocicletas. Após a corrida, um grupo de motoqueiros aterrorizaram a cidade com muito quebra-quebra, brigas e prisões. Duas semanas depois, a revista Life publicou em uma matéria a foto de um desses arruaceiros. Foi o estopim para que Hollywood comprasse a ideia. Em 1953 chegava às telas dos cinemas The Wild One, filme com Marlon Brando, sobre um motoqueiro selvagem que, com sua gangue, apavorava uma pequena cidade. O interessante é que Brando, o astro do filme, não pilotava uma Harley, mas sim o vilão. Em 1956, o ícone rebelde do Rock Elvis Presley posava para a Enthusiast, revista da própria Harley-Davidson, que acabara abraçando o estereótipo do vilão motoqueiro. Não dava mais para se desvencilhar. Nascia então uma legião de admiradores da vida selvagem sobre rodas, cruzando estradas afora só para sentir o vento nos cabelos e a sensação de liberdade. Surgiu daí o Grupo de Proprietários de Harley (Harley Owners Group – HOG), o clube oficial da Harley-Davidson, presente em várias partes do mundo,
inclusive aqui no Brasil. É um clube onde as pessoas se unem para rodarem juntos, compartilharem o prazer de possuir uma Harley. “Só a Harley é capaz de juntar as pessoas que andam com uma moto específica”, diz Ivan Alecrim, fotógrafo e membro do HOG em Recife. “As motos da Harley-Davidson não são as melhores que existem no mercado. Não é a que tem mais tecnologia, não é a que quebra menos e não é a mais confortável, mas só uma Harley pode ser totalmente customizada pelo proprietário. Nenhuma moto é igual a outra”, complementa Ivan. A Harley-Davidson conseguiu, em 112 anos de história, construir não apenas uma marca forte, mas uma legião de combatentes capazes de tudo para defender um estilo de vida baseado em liberdade e fraternidade. Um produto criado entre dois amigos se transformou em um legado. Uma lenda. “Quando você compra uma HarleyDavidson, em poucos dias ela é sua dona”, finaliza o fotógrafo.
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Depósito de dor Relatos de Angélica Brito, presa na Penitenciária Feminina do Recife, expõe a vulnerabilidade e o abandono emocional de mulheres ‘esquecidas’ por companheiros e familiares Maria Nívea Siqueira
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Na cela, em seu “universo particular”, ela gosta de ouvir Chico Buarque. Diz que é herança deixada por uma antiga vizinha do bairro da Bomba do Hemetério, zona norte do Recife, onde morou quase toda a adolescência, na década de 80. Estatura mediana, corpo roliço, olhar um tanto distante, expressão marcante e boca carnuda, Angélica mais parece daquelas mulheres copiadas e coladas das telas do pintor holandês Albert Eckhout. Mas, clássicos de Buarque à parte, a trilha sonora da vez resume-se a versos de “Cuida bem dela”, da dupla sertaneja Henrique e Juliano, que ela ouve de olhos fechados, como que em transe. Espero-a saborear a sua estrofe predileta: “esse é o meu único aviso, se ela quis ficar contigo, faça ela feliz, faça ela feliz”. Cumprindo pena na Colônia Penal Feminina do Recife há um ano, ela amarga a solidão pelo abandono do companheiro, que nunca mais compareceu às visitas. “Sem nenhuma explicação, simples assim. No começo ele vinha sempre, mas depois foi deixando, deixando, até que não veio mais.” diz. Angélica, irônica e literalmente não está sozinha: assim como centenas de outras mulheres que cumprem cárcere na Colônia, engrossa as estatísticas das presidiárias largadas à própria sorte pelos companheiros. De acordo com Wilma Melo, assistente social e coordenadora do Serviço de Militância nas Prisões (SEMPRI), ONG que atua no monitoramento das condições (sub) humanas nos presídios, o abandono de mulheres nas prisões pernambucanas por parte de companheiros e também de familiares não é mera figura ilustrativa. “É real, existe e é latente, uma ferida que está sempre sangrando. Aqui tem de tudo: mães, filhas, esposas, irmãs e até mulher abandonada depois de um diagnóstico de câncer de mama”, diz. Isto se reflete nos dias de visitação, onde não há formação de filas no pátio externo, em contraposição às 17 Unidades Prisionais Masculinas dispersas em todo o estado, cuja fila de espera é quilométrica. Mesmo assim, algumas fotos desbotadas de companheiros e familiares, expostas nas paredes das celas quentes e minúsculas, traduzem timidamente a esperança de um dia serem lembradas. Na Colônia Feminina Penal do Bom Pastor, a população carcerária atual, estimada em 820 presas, contrasta com a capacidade máxima permitida: 240 pessoas. Lá também reside o calcanhar de Aquiles do sistema prisional: a superlotação e a infraestrutura deficitária, presente de grego perpetuado de gestão em gestão. Muitas dessas mulheres vão para além das grades por situações provocadas pelos cônjuges, que por vezes tem passagem policial por cometer algum delito, ou por envolvimento maciço no tráfico de drogas. Este último caso é o de Angélica. Presa há um ano por crime de associação ao tráfico de drogas, ela diz que não vê o marido – e também o pivô da sua prisão – há mais de seis meses. Interceptada em 2014 por policiais durante revista num domingo de sol rumo à praia de Boa Viagem, ela foi presa em flagrante por porte de drogas. “Não sabia que tinha papelotes de maconha na minha mochila. Meu marido me pediu pra guardar um pacote e eu guardei. Sou inocente, estou aqui por
Foto: Ramone Ramalho causa dele”. Traficante de drogas reincidente, Marcos hoje vive com outra mulher, mais jovem que Angélica, que soube do relacionamento através de uma amiga de infância. “Minha amiga é a única que vem me visitar sempre que pode, é o meu único elo além dos muros. Fiquei sabendo que ele agora vive com uma manicure de 21 anos, 19 anos mais nova que eu. Tenho idade de ser mãe dela”, recorda. Angélica, 40 anos, mãe da pequena Ana Júlia, de 6 anos, fruto de um relacionamento anterior, tem um histórico de vida simples, mas não menos sofrida. Natural de Palmares, cidade da zona da mata sul de Pernambuco, distante 128 km do Recife, desde muito cedo tem em seu currículo uma trajetória de abandono. Filha de agricultores, Angélica não conheceu o pai, que morreu quando ela tinha apenas dois anos. Aos dez anos recém-completados de Angélica, a mãe desistiu da família e dos maus tratos e surras impostos pelo segundo marido: fugiu da cidade com “o primeiro caminhoneiro que apareceu. Nunca mais tive notícias dela”. Angélica ficou sozinha e com a responsabilidade de cuidar do padrasto e de dois irmãos mais novos. Não consegue mais lembrar-se do rosto da mãe. “Tudo se apagou da minha mente, moça, como as velas que a gente usava à noite nas festas santas, em dia de procissão. Tudo se apagou”, afirma. As represálias do padrasto não demoraram a acontecer, traduzidas em surras, assédio moral e estupros que duraram intermináveis três anos, findos com a morte prematura dele, numa tentativa de assalto aos 33 anos. “Quase não tive infância. Minha vida era a colheita no canavial, cuidar da casa
e à noite era obrigada a pular para a cama do meu padrasto. Mesmo assim, aguentei caladinha, tinha muito medo que ele me abandonasse também.” Angélica recorda que nessas ocasiões sempre levava consigo a sua boneca de pano, Elizângela, companheira inseparável desgastada pelo tempo, que está com ela também na Colônia Feminina. “Essa daqui já viu muito sofrimento meu, passamos juntas”. Os irmãos não compartilharam do mesmo posicionamento dela e o êxodo familiar foi inevitável: os gêmeos Jeferson e André migraram para São Paulo. Os elos de comunicação foram mantidos por alguns anos através de cartas trocadas, que a cada ano ficavam mais escassas, até que um dia cessaram. Angélica nunca mais estabeleceu contato com os irmãos, desde 1997. Mais um hiato na vida dela, que com os avanços da internet, busca encontrar e reaproximar-se dos seus. Como quem reza uma novena, nas mãos, Angélica aperta um calendário de 2015, já roto de tanto manusear. Nele estão circundados em tinta vermelha os dias em que Marcos não comparece à Unidade durante as visitas. Conto e são exatos 28 domingos. “São muitos domingos”, diz, num misto de resiliência e na tentativa de mascarar a emoção. Nesse momento, Angélica é traída pela aflição, que dá sinais nas mãos trêmulas e suadas. Pergunto-a qual a primeira coisa que fará quando tiver pago a sua dívida com a Justiça. “Vou falar com ele, saber o motivo. Não desisti do meu casamento. Não sei ficar sozinha”, diz, meneando a cabeça, a mulher que um dia sonhou em ser aeromoça.
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Universo infantil mobiliza economia Saiba um pouco sobre o mercado infantil e como ele movimenta a área de serviços. Sarah Rachel Meneses
Foto: Jon Kline/Creative Commons Todos os anos, a advogada Vilma Pontes faz questão de celebrar o aniversário dos filhos. Para ela, o mais importante é garantir atividades infantis adequadas. Maria Eduarda, de 11 anos, e Arthur, de 6, são fruto de amor, mas também de planejamento financeiro. Além dos gastos com a educação, girando em torno de R$ 3 mil por mês, Vilma realiza os aniversários dos filhos em casas de festas. Um gasto que gira em torno de R$12 a R$ 15 mil reais cada. Nos fins de semanas, na programação do domingo, não podem faltar atividades como um passeio no parque, na praia ou no cinema. Vilma também realizou um sonho. Junto com os filhos e o marido, viajou à Disney. Passaram 13 dias, visitando sete parques temáticos por indicação de conhecidos. Segundo Vilma, os meses de mais gastos são o de outubro, por causa do aniversário de seu filho e o Dia das Crianças, e o mês de dezembro, devido ao Natal. Mesmo com os grandes gastos, ela é muito pé no chão e cuidadosa com as finanças. Na opinião da jornalista Claudia Bettini, autora do blog Corujices – espaço com dicas de programações infantis, ideias para festas e outros assuntos do universo da criança -, o evento mais importante na vida da criança é o aniversário de um ano. “Para os pais, é um marco. As suas vidas mudam e tudo fica voltado para o filho. É uma época de aprendizagem. O primeiro
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ano é muito intenso”. Ela também considera particularmente especial a fase do letramento, quando a criança começa a ler. “Cada fase tem seus encantos”, complementa. Para proporcionar lazer à família, com conforto para os pais, o comércio oferece desde parquinhos em Shopping Centers a casas de festas com buffet e recreação. O restaurante Parque da Pizza sentiu a carência de restaurantes com área de lazer para as crianças e, com isso, desde sua abertura, instalou um parque, que foi baseado no que as crianças gostavam para se divertir. Essa também foi a base do parque do Papacapim, que tinha um parque pequeno mas que, por pedido dos pais, expandiu. Durante passeios no shopping, os pais podem deixar seus filhos em áreas de recreação privada, como no Clube da Estrelinha, que oferece recreação, brinquedos e games. O preço varia de acordo com a duração da criança no local. No sábado, o Clube da Estrelinha chega a ter 114 crianças no estabelecimento. Nos aniversários, os pais têm a opção de realizarem a festa em espaços especializados, como a Jungle Festa, que oferece buffet e brinquedos para a diversão das crianças. A Jungle Festa possui seis casas, com atrações diferentes umas das outras e fez uma pesquisa de mercado sobre a preferência
dos brinquedos. Os dados mostram que a criançada prefere brinquedos mecânicos aos lúdicos. Todos os estabelecimentos declararam que os dias de mais movimento são da sexta até o domingo. Dependendo da forma como os gastos são feitos, podem não afetar o desenvolvimento da criança. No entanto, se for para compensar a ausência e a falta de afeto dos pais, pode se tornar um problema. Para a psicóloga Raquel Lacerda, escolar e educacional, essa troca é inconsciente, devido ao estilo de vida contemporâneo. Esse problema tanto influencia na relação dos pais com os filhos, na construção do seu vínculo, como no desenvolvimento saudável da criança. “Tudo depende da forma como a situação é conduzida. Se as necessidades afetivas são atendidas, não há problema”, avalia Lacerda. Para os pais não entrarem em um ciclo vicioso, o essencial é aprender a dizer “não”, comenta a psicóloga. “Nessa fase em que as crianças estão conhecendo o mundo, o ‘não’ impõe limites. Se perceberem que estão nesse conflito, os pais devem repensar quais são as necessidades familiares, buscando dialogar e, caso necessário, procurar ajuda”, complementa.
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A exuberância vista do Alto por ângulos e vozes diferentes Há quem vá apenas para um passeio agradável de fim de tarde, mas também quem precisa estar presente todos os dias porque é o seu ambiente de trabalho Larissa Leite
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Com muitos atrativos e vista exuberante, o Largo do Alto da Sé, em Olinda, Pernambuco, recebe diariamente pessoas de todos os tipos e lugares. Alguns vão para conhecer, outros porque precisam ganhar “o pão de cada dia”. Existem os que conhecem cada descida e subida das ladeiras, a parte histórica e a comida regional, principalmente as famosas tapiocas e o artesanato. O local costuma ser mais frequentado a partir das 15h, horário em que se aproxima do pôr-do-sol – um dos convites da área, pois, lá do alto, a vista é privilegiada. O clima é agradável e tranquilo. Atrai muitos turistas e pessoas da Região Metropolitana do Recife (RMR), que buscam um passeio familiar aos domingos ou que estejam de passagem pela cidade. Para quem busca conhecer a parte histórica e os pontos turísticos da cidade, vários guias locais fazem o trabalho de condutores. Cada um tem seu ponto para aguardar o visitante e mostrar não apenas o sítio histórico, mas toda a cidade. Isso varia de acordo com a necessidade do cliente, tempo disponível e valor que será acordado para cada caso. A maioria dos guias faz parte da Associação dos Condutores Nativos de Olinda (Acno), formada por grupos de crianças, adolescentes e alguns já adultos, de origem humilde. Ramilson Freitas nasceu em Olinda e atualmente reside no bairro de Peixinhos. Entrou para o projeto quando tinha 12 anos. Hoje, aos 40 anos, além do ofício de guia, também é artesão e aproveita para expor suas pinturas no local. “Olinda para mim é muito importante. Estou aqui todos os dias, das 9h às 17h. Tenho orgulho de trabalhar como guia local e respeito o turista, porque dependo deles para sobreviver e é aqui onde exponho minhas obras”, diz Ramilson. Além de fazer parte desse projeto, também investiu em um curso como condutor de turismo no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac). A cultura local está presente não apenas nas paredes coloridas, nas igrejas ou nas apresentações de frevo, maracatu e capoeira, mas também na culinária, destacando-se as famosas tapiocas da Sé. Dona Maria José Moreno da Silva, mais conhecida como Zeinha, nasceu em Olinda e tem o Alto da Sé como local de trabalho desde 1972. No início, vendia artesanato numa lojinha junto com o marido, mas, depois de aproximadamente três anos, passou a vender tapioca. Hoje, ela tem sua clientela local fidelizada, e atende turistas de todos os locais. É uma das mais conhecidas e antigas tapioqueiras. Está presente todos os dias, das 15h às 22h ou enquanto houver movimento. “Trabalho aqui com o maior prazer e tenho isso como meio de sobrevivência para mim e minha família, mas não tenho ideia de quantas pessoas atendo diariamente. Tem dia que vem excursão, para navio, vem gente de todo lugar. Mas quem sustenta realmente as barraqueiras é o pessoal local que costuma vir”.
Foto: Larissa Leite Dona Zeinha foi casada por 30 anos, mas perdeu o marido há quatro meses e hoje é seu único filho quem está no lugar de seu ex-companheiro, que retornou ao lar para fazer companhia e ajudar a mãe. “O trabalho me ajuda a superar a perda, pois ele morou 30 anos comigo”, disse Dona Zeinha. Ari Pablo Vieira, natural de Passo Fundo, cidade do Rio Grande do Sul, está na cidade a negócios. Resolveu ir com a esposa conhecer a Sé. “Já vi reportagens na televisão e aproveitamos que estamos aqui para vir conhecer. Achei bonita e as pessoas são simpáticas”, avaliou. Mas a tranquilidade e o charme do local também atraem os que já conhecem, residem ou nasceram na cidade. Carolina Freitas é natural de Olinda e residente local, a Sé costuma atrai-la por ter um clima agradável. “Sempre que posso, venho com meus filhos e minha irmã durante as tardes de domingo”. Já a educadora física recifense Jaqueline Borges, 26 anos, conheceu a Sé no período de Carnaval, quando tinha aproximadamente 15 anos. Atualmente, vai esporadicamente e gosta de ir para passear pelos artesanatos, restaurantes e pela praça, onde pode parar e comer tapioca. “Vejo o Alto da Sé como um grande ponto turístico dos pernambucanos, um cartão-postal, uma referência em relação à cultura. Faz parte da nossa essência nordestina de ser, do estilo de vida que a gente tem, um lugar praieiro, mas que também é regado por musicalidade,
por histórias, por cultura, faz parte da formação histórica de Pernambuco”. O Alto da Sé faz parte do Sítio histórico de Olinda, assim como também da Região Metropolitana do Recife. É um local que atrai muitos turistas e pessoas da localidade, por ter um ambiente prazeroso, vista privilegiada pela beleza, comidas típicas nas barracas, artesanatos, restaurantes e a Igreja do Alto da Sé que foi construída com arquitetura barroca, no século XVII.
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À La Bacana Qual a diferença entre uma comida simples e uma comida gourmet? Sarah Rachel Meneses
Nunca tive muito contato com o mundo gourmet. Na verdade, não importava onde eu estava comendo, mas sim se a comida era gostosa e barata. O meu primeiro contato foi com 17 anos, na minha formatura colegial, porém não tive tempo de apreciar a comida – estava mais interessada em comemorar com meus amigos, afinal foram mais de 10 anos de convivência. Quase dois anos depois, me propuseram esta matéria, sobre o mundo gourmet. E, para isso, era preciso ouvir duas pessoas, com opiniões opostas sobre o tema e vivenciar na pele a diferença entre o mundo da comida simples e o mundo gourmet. Pois bem, desafio aceito. O prato escolhido para a degustação foi o cachorroquente, uma comida de rua. Fui para dois lugares, um simples e outro mais “bacana”. De primeira, pensei: “claro que o mais simples é melhor! É mais barato e, com certeza, vou me satisfazer”. Bem, não foi bem assim. Fui para um posto de gasolina indicado por meus amigos e pedi um completo, que era composto por duas salsichas, molho bolonhesa, muito cheddar e um pão bem grande, cortado ao meio. Ele custou R$ 7,50. Encurtando a história, não consegui terminá-lo sozinha e só consegui sentir o gosto do cheddar, que ficou um bom tempo nas minhas unhas. Para o cachorro-quente gourmet, fui a um restaurante que eu sempre passava por perto, voltando para casa, e tinha vontade de ir. A salsicha era Viena, envolvida por bacon, o pão era menor, no entanto especial, a maionese era aioli, e me custou R$ 13,50. Já estava com água na boca só de ler no cardápio. Comi bem devagar para apreciá-lo devidamente.
Foto: Flickr/Creative Commons Depois da experiência, refleti sobre os argumentos que ouvi da jornalista e pesquisadora Renata do Amaral e do chef consultor e professor da FBV/DeVry, Raphael Cavalcanti. Para Renata, o gourmet não existe, pois o termo é usado para pessoas que apreciam comer bem. Muitas vezes, a diferença entra uma comida simples e uma gourmet é nenhuma, pois o produto é caro somente por causa da nomenclatura “gourmet”, e não propriamente pela sua qualidade. “É uma tentativa de ‘agregar valor’ ao produto pelo rótulo e não pela qualidade. Produtos de qualidade não necessitam desse rótulo”, comentou a jornalista. O público que consome esse
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Ilustração: Felipe Moura tipo de alimento, para ela, ou são pessoas ingênuas, pois creem que estão consumindo um artigo de qualidade, ou pessoas que querem status por obtê-lo, mesmo sua qualidade sendo duvidosa. Na opinião dela, a explicação sobre a explosão desse mercado pode estar ligada ao aumento do poder de compra do brasileiro. Ao mesmo tempo, quanto mais gente consumir esse produto, menos exclusivo ele será. “Quanto a sua duração no mercado, espero que não dure”, declarou. Em contrapartida, a opinião do professor Raphael é que gourmet é a pessoa que possui conhecimentos sobre comidas e bebidas refinadas, além de se interessar, procurar e interpretar as iguarias. A técnica, o produto e a apresentação são o que fazem a diferença. “Comida simples é mais acessível”, mencionou Cavalcanti. Quanto ao público, para o chef, este mercado é dirigido para pessoas antenadas, de 18 a 25 anos. A explosão no mercado é devida à criação de vários artigos, comidas e restaurantes voltados para esse estilo. Também há a alta difusão pelas novelas, filme e, principalmente, pelas redes sociais, nas quais as pessoas postam fotos do prato antes mesmo de prová -lo. Por causa dos altos preços dos produtos oferecidos como gourmet, a gourmetização, nomenclatura usada para essa expansão do gênero, é comentada e ironizada pelas pessoas. No Facebook, foi criada uma página dedicada ao assunto, a ‘Raio Gourmetizador’. A página, com mais de 77 mil curtidas, mostra tirinhas com produtos gourmetizados lançados no mercado, em que um ‘raio goumertizador’, lançado pelo conhecido chef de cozinha escocês Gordon Ramsay, transforma algo simples em algo mais elaborado, como a transformação de um rato comum para um hamster chinês. Sobre as gozações feitas sobre o gourmet, Renata declarou que acha ótimo. “Mostra que as pessoas estão despertando para essa enrolação toda”. Já para Cavalcanti, as sátiras são feitas porque “às vezes são cobrados em preços abusivos por coisas simples. Em contra-
partida, um produto diferenciado é caro”, ponderou. Não se sabe a permanência desse fenômeno no mercado, tudo depende das tendências. Enquanto a sua passagem no comércio não chega ao fim, muitas pessoas demonstram sua inquietação sobre o assunto. O colunista de gastronomia da revista Carta Capital, Marcio Alemão, se despediu dos leitores por causa da moda Gourmet e Food Trucks na publicação intitulada ‘Foi Um Prazer’. Na coluna, ele comenta sobre seu tempo na revista, sobre a gastronomia nacional, que é uma das melhores do mundo, mas que não chega nas mesas que frequentamos. Critica os chefs, que parecem ser modernos, com suas tatuagens e cabelos espetados, mas que não aprenderam muito. A jornalista Renata do Amaral também publicou um ensaio nomeado ‘Contra a Gourmetização da Vida’, no qual fala sobre o uso do termo fora do universo gastronômico. O ensaio mostra o uso da expressão em outras áreas, como em anúncios de imóveis, onde se tornou frequente ofertar varandas gourmets. Além disso, o ensaio apresenta as concepções do pai da gastronomia, Brillat-Savarin, e dos sociólogos Don Slater e Pierre Bourdieu. Bem, meu caro leitor, depois de pesar e medir todos os prós e os contras, cheguei a uma conclusão: o gourmet não é tão ruim quanto eu pensava, quando aplicado de modo certo. Falo modo certo, quando o preço é justo pelo produto. Há algo realmente diferente da comida simples e não é exagerado. Mas não é toda semana que posso pagar R$13,50 só pelo cachorro-quente, sem um refrigerante e sem companhia, então a comida simples quebra um galho... e ela também pode ser maravilhosa. Podemos encontrar uma comida muito boa sem ser gourmet. Quem vai deixar de tomar o picolé de praia só porque não é gourmet? Podemos viver nos dois mundos, com moderação, sem se gabar por estar comendo uma comida num lugar bacana e sem menosprezar a comida habitual.
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Dos holofotes aos bastidores Os árduos caminhos de um músico que já experimentou a fama e agora atua de forma independente, tentando repetir o mesmo sucesso Reuel Almeida
De todas as grandes expressões artísticas que a humanidade conseguiu até hoje exprimir, arrisco dizer que a música é a principal expoente dessa capacidade lúdica. Não somos os únicos animais com aptidão para comunicação através de sons, mas só nós conseguimos criar e transmitir emoções por meio de ondas sonoras ritmadas. Das eruditas óperas acompanhadas das músicas clássicas de Beethoven, Mozart e Johann Sebastian Bach, aos grã-finos cafés e boates da bossa-nova com compassos libertários do jazz norte-americano. Do sensual e melancólico blues aos protestos do hip-hop. Sem esquecer a libertinagem do funk e as rodas de samba dos morros cariocas. Na panela sonora da humanidade, grandes pitadas de rock, salsa, tango, frevo, baião e o Pop, um dos mais novos ingredientes. Apesar de possuirmos a exclusividade da composição e execução musical, não somos todos capazes de produzir obras como as dos artistas mais expressivos dos movimentos musicais citados acima. Muitos tentaram, e até hoje tentam, almejar um patamar de destaque nessa grande selva da indústria fonográfica. Seria essa uma forma de seleção natural do mercado? Talvez. Mas como explicar o surgimento de um fenômeno que nunca pretendeu ser nada mais do que uma simples diversão entre amigos? O meteoro Mamonas Assassinas coloca uma grande pulga atrás de nossas orelhas. Assim como os super produzidos artistas dos programas de calouros The Voice e afins, que quase nunca conseguem exportar alguém de talento que sobreviva às armadilhas desse mundo selvagem. Há um outro caso bastante peculiar, mais conhecido na região nordeste do Brasil, de uma banda formada por quatro jovens. A Nós4 surgiu em 2004, com a junção das duplas João e Ricardo Chacon e Pietro Bianchi e Juliana Fernandes, que se apresentavam na boates e bares de Recife. Com empresário em comum, e com grande aceitação do público, a junção foi inevitável.
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Foto: Nic Taylor/Creative Commons Cabe aqui explicar que a capital pernambucana viveu sua melhor fase musical em meados dos anos de 1990, com a explosão do Manguebeat e a criação de festivais como o Abril Pro Rock. O festival devolveu às pessoas o orgulho de ter bandas pernambucanas fazendo sucesso e a oportunidade de consumir músicas de qualidade, muitas também vindas de fora, aproveitando a efervescência local. Esse cenário proporcionou a procura e fomentação de novos artistas. E não existe lugar melhor de descobrir novos talentos do que nas noites dos bares e boates. Desde o princípio, a ideia da Nós4 era se apresentar tocando músicas de outros artistas, porém com uma roupagem mais pop, procurando agradar os jovens, seu público-alvo. O sucesso foi imediato. Lotavam os lugares por onde passavam e chegaram a colocar quatro mil pessoas no estacionamento do Aeroporto Internacional dos Guararapes. A banda chegou ao fim em 2012, após os integrantes perceberem que era hora de seguirem carreira solo, aproveitando o sucesso com a banda. Mas não foi bem isso que aconteceu. Voltaram à estaca zero, encontrando muita resistência do mercado. “A Nós 4 nunca foi planejada. Ela simplesmente deu certo”, relembra o vocalista Ricardo Chacon com muito saudosismo. Aliás, saudosismo esse que fez com que a banda voltasse a fazer uma turnê em comemoração aos 10 anos de lançamento do primeiro DVD, Nós4 em Maracaípe, famosa praia do litoral sul de Pernambuco. “A banda não tem mais nenhum trabalho de divulgação. Existe uma página no Facebook que quase não é atualizada. Mas é impressionante como muita gente ainda não esqueceu a Nós4. Estão sempre enviando mensagens. E essa volta é por eles”, avalia Ricardo. Diferente da sua ex banda, Chacon tem encontrado muitas dificuldades em manter seu trabalho autoral. Lançou dois discos, Terra Papagali Coffe Shop (2008) e ChacaNights (2013), com o dinheiro do próprio bolso. Tentou
o financiamento através de editais para divulgação dos discos, sem sucesso. E alfineta a dependência – forçada – que os artistas têm do dinheiro público. “Se existe uma lei de incentivo à cultura, ela vai me apoiar a divulgar meu trabalho. Eu também levo o nome de Pernambuco. Deveria ser assim, mas não é”, desabafa o vocalista. Se Pernambuco viveu seu grande momento no final do século passado, hoje voltou a ser a província de antes, que exportava seus melhores talentos em busca do sonho na cidade grande. Mas chega uma hora em que o artista se vê em uma encruzilhada porque o corpo já não aguenta a vida agitada de músico que tenta encontrar seu espaço. “Quando você é novo, consegue aguentar o rojão das viagens de divulgação, carregando os próprios equipamentos. Tudo é divertido. Mas chega uma hora que cansa. Não dá para fazer tudo isso com o dinheiro do próprio bolso”, lamenta Chacon. Se, por um lado, a expansão da internet e o escancaramento da pirataria gerou a grande crise das gravadoras, por outro, a rede tem sido a única aliada dos músicos independentes. A facilidade de se mostrar para o mercado vem ajudando a impulsionar muitas carreiras. O melhor exemplo tupiniquim é Mallu Magalhães, considerada o primeiro fenômeno musical da internet. Ricardo Chacon sabe bem disso. Ele disponibiliza todas suas músicas em seu site e faz divulgação de seus trabalhos mais recentes, as bandas Bailinho Maravilha, inspirados em bailes antigos e voltado para festas de casamentos e similares, e a Chacon #Private, voltado para festas mais despojadas, tocando grandes sucessos. “Ainda não me dei por satisfeito. Estou sempre trabalhando nos bastidores e pretendo fazer um disco mais comercial usando a fama alcançada com a Nós 4”, profetiza Ricardo. A cena cultural de Pernambuco agradece pessoas assim, determinadas a jamais desistir da sua arte.
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Empresas privadas e o financiamento eleitoral O assuntou voltou a ser tema de grande discussão após o escândalo da operação Lava Jato, deflagrada pela Polícia Federal Reuel Almeida
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As eleições presidenciais no Brasil sempre ocorreram de forma conturbada, ora por vazamento de escândalos envolvendo candidatos ou candidatas, ora por mentiras e trocas de farpas. Na última eleição, ocorrida em outubro de 2014, não foi nem um pouco diferente do costumeiro. O circo foi armado e os palhaços fizeram bem o seu papel de entretenimento, apresentando os números Mensalão, Privatização, Tráfico de Drogas, Energia e alguns outros não menos importantes. O povo, dividido na arquibancada como torcidas organizadas, aplaudia e vaiava. Mas um assunto, que sempre recebeu um tratamento de reticências entre os candidatos, surgiu com força após a última eleição. O financiamento eleitoral feito por empresas privadas ganhou destaque à luz de tantos outros problemas do sistema eleitoral brasileiro. Não que ela seja uma prática ilícita mas, em se tratando de política brasileira, é sempre vista com desconfiança. A principal crítica que se faz ao modelo é a fidelização do político ao seu financiador. É o que pensa Carlos Fernando dos Santos, Procurador Geral da República, em entrevista para a Folha de São Paulo, quando afirma não ter dúvidas de que existe uma engrenagem criada para financiar a política no país. Santos é o responsável pela investigação de um dos maiores crimes de corrupção já desmascarados no Brasil, no qual políticos desviaram cifras milionárias da Petrobras para financiamento de campanhas, conhecido como Petrolão. O esquema funcionava com a cobrança de propina das construtoras civis responsáveis pela construção das obras da estatal. O dinheiro arrecadado era repassado aos partidos políticos envolvidos. O que está em discussão hoje, e que tem ganhado força com as redes sociais, é o fim desse modelo que já se mostrou venoso para a sociedade brasileira. Para se ter uma ideia, em levantamento feito pela UOL, das dez maiores empresas doadoras na campanha eleitoral de 2010, sete estavam sob suspeitas de corrupção. São elas: Construções e Comércio Camargo Correa S.A, Construtora Andrade Gutierrez S.A, JBS S.A, Construtora Queiroz Galvão S.A, Construtora OAS S.A, Banco BMG e Galvão Engenharia S.A. Se olharmos as empresas doadoras na campanha de 2014, veremos que são as mesmas, só alternando na quantidade doada. Há quem acredite que a proibição de doação por parte da iniciativa privada é um erro pelo fato de que as contribuições passarão para a clandestinidade. “O principal motivo pelo qual a proibição não funciona é que ela focaliza na oferta de recursos e não na demanda. Em termos mais simples, se a legislação proibir a doação de empresas, isso não vai modificar a demanda de recursos por parte de candidatos e partidos para o financiamento de suas campanhas. Dessa forma, a total proibição de recursos privados tende a institucionalizar o Caixa Dois”, argumenta Dalson Britto, cientista político e professor da Universidade Federal de Pernambuco
Ex-Diretor da Petrobrás, Paulo Roberto Costa (Foto: Revista Época) (UFPE). Se hoje é possível rastrear o dinheiro usado no financiamento dos partidos, no qual exige a lei, a proibição passará a fomentar ainda mais a ilegalidade, pois bem sabemos que o mau sempre encontra um caminho, principalmente quando se mistura política e dinheiro. A solução mais nítida até o momento, e a única que está ao alcance das autoridades, é a fiscalização. “O melhor caminho é adotar mecanismos de transparência, fiscalização e controle. Por exemplo, disponibilizar em tempo real os valores doados aos candidatos por CNPJ. Adotar auditorias para checar as notas fiscais de produtos e serviços utilizados durante a campanha”, explica Britto.
a origem do dinheiro. É aí que entra a lavagem de dinheiro que nada mais é do que tornar legal um valor de origem ilícita, o que nos leva de volta às propinas cobradas das empreiteiras. Em depoimento à Polícia Federal, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, principal delator do escândalo na petroleira, disse que o financiamento eleitoral constitui um empréstimo a ser cobrado no futuro a juros altos. Se pensarmos com a visão de uma empresa privada, todo dinheiro investido deve ter retorno. Essa é a regra básica do mercado. Até aquela empresa que faz campanha beneficente está, na verdade, querendo que o consumidor em potencial passe a comprar dela por ser “boazinha” em relação às causas sociais. No fim, o que importa é o lucro. Seja qual for o futuro das doações privadas no Brasil, o certo é que corrupção sempre existirá. Infelizmente. De duas, uma: ou se proíbe o financiamento arrochando as leis para Confrontados pela opinião pública, os políticos e evitar a clandestinidade, ou se passa a vigiar com mais vigor as empresas envolvidas no escândalo do Petrolão dizem que empresas doadoras. todas as doações de campanha foram feitas de forma legal, obedecendo a legislação vigente. O deputado estadual Edinho Silva (PT-SP), que foi tesoureiro da campanha presidencial de Dilma Rousseff, divulgou nota em repúdio às alegações de que a atual presidenta teria recebido doações ilegais. “A campanha de reeleição de Dilma Rousseff foi realizada de forma ética e transparente, conforme previsto na legislação eleitoral”. Ele ainda informa que todas as contas da campanha foram aprovadas pelo TSE. Esse tipo de argumento esconde uma casca de banana. Embora esteja correto aos olhos da lei, tenta apenas camuflar
O outro lado
“O melhor caminho é adotar mecanismos de transparência, fiscalização e controle” - Dalson Britto, cientista político 17
As partituras que mudam o mundo Com partituras e instrumentos, o projeto Orquestra Criança Cidadã transforma a realidade de vários jovens da comunidade do Coque, no Recife Sarah Rachel Meneses
A música instrumental nem sempre é a primeira escolha nas nossas playlist, mas ela transformou a vida de vários jovens da comunidade do Coque no Recife. E isso só foi possível por causa de um sonho, de uma pessoa que, apesar de não ser musicista, via a música como uma forma de ascensão social e espiritual. A história que vamos contar é a da Orquestra Criança Cidadã, sonhada e idealizada pelo juiz João Targino, em conjunto com o maestro Cussy de Almeida, falecido em 2010, e gerida pela Associação Beneficente Criança Cidadã. Tudo começou quando o juiz de Direito observou o trabalho do maestro Cussy de Almeida com as crianças da comunidade Alto do Céu. Após assistir a uma apresentação musical do grupo, o juiz procurou o maestro, e, a partir desse momento, a Orquestra Criança Cidadã nasceu. Inaugurada em 2006, a ação social tornou-se um programa da Associação Beneficente Criança Cidadã (ABCC), fundada em 2003 pelo desembargador Nildo Nery dos Santos e tendo Targino como sócio-fundador. Contudo, o começo não foi fácil. O maestro e o juiz tiveram que correr atrás de patrocínios para começar o projeto. “Se hoje ainda é difícil manter as atividades, imagine quando a ideia ainda estava no papel. Eu e Cussy visitamos empresas, fomos até Brasília, levamos muitos chás de cadeira até conseguirmos reunir as condições para implantar o projeto”, conta Targino. Alguns órgãos os ajudaram a implementar a
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Fotos: Sarah Rachel Meneses ação social, como o Exército Brasileiro, que sedia até hoje a Escola de Música em seu campo; a Confederação Nacional da Indústria (CNI), com doação de uma quantia para a compra de instrumentos e a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), com o financiamento das primeiras folhas de pagamento e a mobilização da Escola. Hoje, a Orquestra atende 230 jovens, na faixa 7 a 23 anos de idade, da comunidade do Coque. A escolha do local foi pelo fato de a comunidade ser uma das mais violentas do Recife e por seu baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Uma das histórias de transformação é a de Julio Carlos, de 20 anos, que está no programa desde o começo e declara que participar dele foi uma mudança de vida. O violinista soube da Orquestra por meio da sua escola, onde chegou a notícia de testes para participar da escola de música. ”Eu fui, sem saber nem o que era, e fiquei até hoje”, conta o aluno. Hoje, Julio Carlos dá aulas de música na ABCC e toca profissionalmente. “O projeto ajudou a me tornar um cidadão, me amadureceu, me deu uma profissão”, declara o violinista. No entanto, a iniciativa não tem necessariamente o objetivo de encaminhar seus alunos para a carreira musical. “A gente trabalha nessa opção, nessa possibilidade, mas não é regra”, afirma o coordenador musical e regente Nilson
Galvão Jr. O projeto social oferece aos jovens assistência médica e odontológica, apoio psicológico, três refeições diárias e acompanhamento pedagógico, com reforço escolar. Para isso, a ação social tem contato com as escolas para saberem o que os alunos estão estudando e quais livros estão sendo usados no ano. Quanto às aulas, o projeto oferece aulas de reforço, informática, inglês e de música (teórica e prática). Nas disciplinas teóricas, as aulas ocorrem em turma, e há a subdivisão de canto coral, percepção, solfejo (canto das notas musicais) e teoria musical. Na parte prática, as aulas são individuais ou em grupos de até cinco pessoas, divididas em três núcleos: cordas, com os instrumentos violino, viola, violoncelo, contrabaixo; sopro, com os instrumentos flauta transversa, clarinete, oboé, trompa, fagote; e percussão, tanto popular, quanto erudita. O método de ensino utilizado é o Suzuki, que visa à aprendizagem de forma lúdica. Os alunos ficam num período de cinco horas na Orquestra Criança Cidadã, sempre no contraturno escolar. A iniciativa conta com 19 docentes, como a professora de violino Rafaela Fonseca, que está no projeto desde 2009. Para ela, dar aula na Orquestra é satisfatório. “Realmente percebemos que causamos um impacto muito importante na vida desse público. Com certeza, é muito mais fácil do que trabalhar na máquina pública, por exemplo, onde tudo
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é muito burocrático e acaba atrapalhando o trabalho da gente”. O momento que mais lhe marcou foi quando pôde ajudar uma aluna vítima de estupro a denunciar. “A gente teve todo o apoio jurídico do projeto, que também foi outra coisa extremamente importante. Eles não têm só o apoio didático. A eles, é dado todo tipo de apoio”, comenta a professora. A Orquestra Criança Cidadã possui três orquestras funcionando, classificadas como A, B e C. A orquestra “C” é o laboratório de iniciantes; a orquestra “B” é de nível intermediário e a orquestra “A” é a que possui mais visibilidade. O motivo disso é que a A está preparada para as apresentações para o público externo. Os alunos desse nível ganham uma bolsa financeira para atuarem como músicos. Todos os alunos devem estar inseridos em uma das orquestras, e, para avançarem de nível, há uma bancada interna, constituída de professores que selecionam quais serão promovidos. São três tipos de apresentações: de patrocínio, que contribui financeiramente, e é marcada desde o início do ano no calendário; de cachê, na qual uma empresa/instituição contrata mediante remuneração que é em parte repassada para os alunos; e filantrópicas. O calendário anual é elaborado no início do ano, visando não coincidir datas escolares com as apresentações. Para a preparação das apresentações, as sextas-feiras são reservadas para ensaios durante todo o turno do aluno. Uma das apresentações marcantes do projeto foi realizada no final do ano de 2014, para o Papa. O convite foi feito por meio da Fraternidade Católica para tocar em uma apresentação reservada para o pontífice e uma plateia de 600 convidados no Vaticano. “Foram dois eventos [apresentação no Vaticano e em Portugal, para o Primeiro Ministro], assim, muito pomposos, importantes. Foi uma experiência única, tanto para a equipe que acompanhou, quanto para os meninos”, declara o coordenador pedagógico Aldir Teodózio. As conquistas e histórias marcantes não param por ai. O êxito de estar entre os primeiros no concurso público para integrar a Orquestra Sinfônica de Goiânia (GO), participar de grandes festivais musicais, tocar para o ex-presidente Lula e para a atual presidente da república Dilma Rousseff, e a aprovação no vestibular foram alguns pontos citados pelo Doutor João Targino. Isso pode ser observado no caso do aluno Diego Diaz, de 18 anos. Presente na orquestra há sete anos, o violinista soube da Orquestra por meio de seu primo, que já participava do projeto, e atualmente cursa Música, com Bacharelado em Violoncelo, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Para Diego, a Orquestra o ajudou muito. “Eu ganhei uma profissão que eu nem pensava que eu ia ter. Não pensava em ser músico antes de entrar aqui. E, hoje, quando eu paro para pensar, se não tivesse a Orquestra, eu não sei o que eu faria. Aqui, tracei objetivos para o meu futuro. A música transforma qualquer pessoa”, declara Diaz. Visando ao futuro, a iniciativa está dedicada a construir sua sede fixa e o primeiro teatro totalmente acústico da Região Norte e Nordeste, intitulados, respectivamente,
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Escola de Música Maestro Cussy e Sala de Concerto Criança Cidadã. O projeto já possui aprovação do Ministério da Cultura (Minc) e o terreno, que foi doado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Agora, a entidade está na fase de captação de recursos. “O valor é alto para os nossos cofres, mas temos esperanças que até 2016 comecemos a obra”, comentou Aldir Teodózio. A obra irá ampliar o atendimento e tornará a Orquestra autossuficiente financeiramente. “Há uma constante busca pela autossuficiência, para garantir os atuais benefícios e melhorar o atendimento aos alunos”, declara o Desembargador Nildo Nery. A Orquestra também está estabilizando a Escola Luthier e Achetier, que funciona desde setembro de 2012 e ensina a construir e reparar instrumentos, mas estava sofrendo evasão dos alunos. A solução para o problema foi convidar alunos de outras instituições de ensino musical, como para a Escola Municipal de Arte João Pernambuco. Dessa forma, o jovem já vem com o conhecimento musical e iria para a Escola de
Lutheir e Achetier com intuito de aprender a construir e reparar instrumentos. Atualmente, a Escola está com oito alunos e dois professores. Sobre o resultado, Aldir comenta que “é muito cedo para a gente ter um resultado, porque ainda é recente, mas a gente está muito otimista”. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pelo projeto, a vontade de mudar a realidade dos jovens venceu, e vence até hoje, todas as barreiras. Histórias como as de Julio e Diego serão ouvidas e seguidas como inspiração para as gerações futuras. Professores como Rafaela irão influenciar outros educadores. E ideias como a de João Targino mudarão a realidade brasileira.
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Ele ousou desafiar o destino Portador de Osteogênese Imperfeita, conhecida como a doença dos Ossos de Vidro, o publicitário Gustavo Militão está cercado por amor e carinho e tem orgulho de ter chegado aos 35 anos Isabella Barbosa
Gustavo Militão renasceu 57 vezes durante sua vida. Quando nasceu, o médico disse que ele não sobreviveria até o primeiro aniversário. Então, quando ele completou um ano, o mesmo médico disse que ele não chegaria aos cinco. Graças a dois anjos, hoje, Gustavo é um homem feito, tem 35 anos, é publicitário e atualmente está cursando a sua segunda graduação. Esses anjos são seus pais. Cheguei à casa de Gustavo às 16h27. Sua mãe atendeu a porta com um sorriso largo e disse que eu podia entrar e ficar à vontade. Me levou ao quarto dele e, quando cheguei lá, ele estava sentado na cadeira em frente ao computador, fazendo alguns trabalhos da faculdade. O quarto estava à meia luz, mas consegui ver que na parede perto da cama estavam colados vários pôsteres do do Sport Club do Recife. Também pude ouvir alguma música tocando, e logo perguntei o que estava ouvindo. Rapidamente, ele respondeu: - MPB. Quem está apaixonado escuta música assim, né? Foi então que a nossa conversa começou. Sentei na cama e ele continuou sentado na cadeira do computador.
Guga José Gustavo de Andrade Militão, ou simplesmente Guga, como seus amigos o chamam, tem 35 anos e é recifense. É apaixonado pelo Sport Club do Recife, formado em Publicidade e Propaganda e atualmente cursa jornalismo, na Faculdade Boa Viagem (FBV). Gosta de ouvir MPB, assistir aos jogos do Sport no estádio e é apaixonado por Coca-Cola. Trabalha como freelancer para a revista Empório Paradigma. A infância de Gustavo foi um pouco diferente da de outras crianças. Ele nasceu com Osteogênese Imperfeita, anomalia popularmente conhecida como Ossos de Vidro ou Ossos de Cristal. Por causa da doença, ele ficava a maior parte do tempo brincando em casa com seus irmãos, seus pais e, muitas vezes, sozinho. Jogava bola na sala, brincava de carrinho e alguns brinquedos tem guardados até os dias de hoje. Quando saía, sempre estava acompanhado de seu pai ou sua mãe e ele se divertia bastante na companhia deles. Apesar das dificuldades, sempre foi uma criança esforçada e inteligente. Falou aos seis meses. No entanto, só entrou numa escola aos nove anos: antes disso, nenhuma escola o aceitava por causa da sua doença. A única que o aceitou foi o Colégio Walt Disney, situado no bairro do Ipsep. Foi lá que Gustavo concluiu o terceiro ano do ensino médio. Antes de ingressar na escola, seus pais já o estimulavam em casa para que ele aprendesse. Quando começou na escola, já sabia ler e escrever. A paixão pela escrita é gigante em Gustavo. Tão grande que resultou no livro “Ousei desafiar o destino”. A ideia de escrever o livro surgiu em uma conversa de Gustavo com uma amiga, onde ele contava que estava triste, pois estava
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Fotos: Acervo pessoal apaixonado por uma menina e ela não o correspondia. Então, sua amiga sugeriu que ele contasse a história em um livro e que dedicasse um capítulo para contar sobre o desamor. E assim Militão fez, escreveu o livro e publicou por conta própria. Durante nossa conversa, perguntei o porquê do título. Ele respondeu, sorridente, “Muitos médicos diziam que eu não chegaria a um ano e eu já tô com 35, né?”. Gustavo é um homem de intensas paixões e conta que está apaixonado atualmente, embora não seja correspondido. Ele nos conta que pensa em casar, mas não deseja gerar filhos: “Se eu tiver um filho, ele vai nascer com o mesmo problema que eu, e eu não quero que ele sofra tudo que eu sofri. Mas, se a minha futura esposa quiser, nós podemos adotar uma criança”.
A doença Quando Maria Cristina Militão, mãe de Gustavo, estava grávida, ela sentia muitas dores, mas os médicos falavam que era normal. Naquela época, não existiam tantas tecnologias como existem hoje, por isso, ela apenas aceitava o que os médicos diziam e ficava de repouso o máximo que podia. Aos nove meses de gestação, Maria foi ao hospital em um doloroso trabalho de parto. Havia chegado a hora de ela conhecer o seu bebê. Ela estava sozinha no quarto e, quando percebeu, seu filho estava nascendo. Ela apoiou-se na mesa e fez muito barulho para que alguém pudesse ajudá-la. Mas era tarde, seu menino já havia nascido. Gustavo nasceu às 11h40. “Ele só não morreu naquela hora porque eu já tinha experiência de dois outros partos, dos meus outros filhos. Isso ajudou bastante”. Uma copeira que estava distribuindo a comida
chamou os médicos. “Acho que eles deveriam estar em alguma festinha, porque eu conseguia ouvir eles cantando parabéns”, conta Maria Cristina. Os médicos correram para socorrê-la. Levaram-na para sala de parto. No mesmo momento, nascia outra criança. “Eu estava lá deitada, mas olhando com cuidado pra ‘marcar’ o meu, porque a maternidade que eu tava tinha a fama de trocar crianças. Foi então que eu vi que Gustavo nasceu com a perninha roxa e ele chorava muito”. Ao perguntar para a enfermeira porque seu bebê chorava tanto, o médico solicitou que a colocassem em outra sala, pois ela estava “perguntando demais”. Levaram Maria para outra sala e, durante todo esse processo, ela tentava prestar o máximo de atenção ao seu filho. Seu marido, José Militão, não acompanhou parto, mas chegou ao hospital às 14h para a visita. Ele comunicou a uma enfermeira conhecida que tinha ido ver seu filho, ao que ela perguntou: “o seu filho é o bebê que nasceu todo quebrado?” E foi assim que José Militão recebeu a notícia do nascimento de Gustavo. Após várias radiografias, foi detectado que o bebê estava com cinco fraturas: um traumatismo craniano, uma na clavícula e três nos membros inferiores. Por conta disso, no primeiro dia de vida, Gustavo precisou ficar quase todo engessado. No dia seguinte ao parto, Maria teve alta, mas ele precisou ficar internado, pois os médicos ainda não sabiam o motivo de ele ter nascido com as fraturas. Depois de uns três dias, médica Anita Mizrahi chegou ao diagnóstico de Gustavo: Osteogênese Imperfeita, mais conhecida como Ossos de Vidro. A doença é uma rara condição do tecido conjuntivo, provocada pela deficiência de colágeno, é genética e hereditária, e afeta aproximadamente uma em cada 20 mil pessoas. A principal característica é a fragilidade dos ossos, que quebram com enorme facilidade. A Osteogênese Imperfeita (OI) pode ser congênita e afetar o feto, que sofre fraturas ainda no útero materno e apresenta deformidades graves ao nascer, como no caso de Gustavo; ou, então, as fraturas patológicas e recorrentes, muitas vezes espontâneas, ocorrem depois do nascimento, o que é característico da Osteogênese Imperfeita tardia. Os primeiros anos da vida de Gustavo foram os mais críticos. Certa vez, ele sofreu uma fratura por causa de um espirro. Mas é graças aos cuidados de seus pais que Gustavo está vivo até hoje. Durante a conversa, não me contive e precisei perguntar se eles já pensaram em como será a vida de Gustavo quando eles, seus pais, não estiverem mais aqui. “Nós pensamos bastante nisso, não gostamos de que Gustavo saiba que nos preocupamos tanto assim, mas é impossível não pensar. Mas meu filho não ficará desamparado, temos mais dois filhos que são maravilhosos e que com certeza dariam todo o suporte ao Guga”.
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Portador de Osteogênese Imperfeita, o estudante Gustavo Militão superou todas as estimativas dos médicos
Pequenos gestos Gustavo mora num apartamento que fica no segundo andar. Fiquei curiosa para saber como ele subia aquelas escadas e prontamente ele disse “Ah, meu pai que me ajuda. Eu consigo descer, apesar de ser bem cansativo. Mas meu pai me ajudaem tudo. Ele é mais que um pai, ele é meu amigo”. Todas as noites, o pai de Gustavo para o que está fazendo para levá-lo e buscá-lo na faculdade. É perceptível o companheirismo entre os dois, que não ocorre apenas dentro de casa. Gustavo é torcedor apaixonado do Sport. Já seu pai é torcedor do Santa Cruz. Gustavo é sócio do Sport e José é seu dependente. Sempre que pode, leva o filho para assistir aos jogos. O rubro-negro só gosta de assistir ao jogo lá de cima do estádio, praticamente no último degrau, perto de uma caixa d’água. Sempre que vão aos jogos, José leva Gustavo até lá, com o maior sorriso do mundo. O jovem nasceu para se destacar e está se destacando em tudo que faz. Um exemplo de estudante, uma inspiração como pessoa.
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“A rotina dos meus pais mudou radicalmente com a minha chegada. Entretanto, nunca me faltaram amor, cuidado, carinho e atenção da parte deles. Meus irmãos sempre souberam dos problemas e que teriam que ter os mesmos cuidados comigo. E sempre cuidaram bem de mim e até hoje têm o mesmo cuidado”
Entrevista com Gustavo Militão “É melhor um talvez, que um não depois das seis”. Larissa Oliveira Escritor da biografia pessoal “Ousei desafiar o destino Vida e Relatos de Gustavo Militão”, Gustavo falou um pouco sobre sua infância e adolescência, das dificuldades que viveu decorrente a doença que tem, e principalmente, da superação que vive a cada dia. ECOS: Quem é Gustavo Militão? GM: Gustavo é um cara que já passou por coisas complicadas na vida, mas procurou e conseguiu superar todos os obstáculos. Sou um cara que tenta ser amigo de todo mundo, que quer viver bem, da melhor maneira possível e sempre estou procurando me socializar. Eu nunca me senti excluído da sociedade por conta do meu problema, então eu sempre procuro estar vendo gente, estar em movimento, estar fazendo alguma coisa. ECOS: Como foi sua infância? GM: Quando eu nasci foi tudo muito novo, para todo mundo. A doença ainda era desconhecida, não tinham tantos casos de Osteogênese imperfeita. No começo, muita gente me olhava com estranheza. As pessoas não tinham conhecimento do meu problema, elas não entendiam. Aquilo não me chateava, mas magoava a minha mãe. Eles [meus pais] tiveram que aprender a cuidar de mim, sabe? Uma criança frágil e que pode até ter fratura com espirro. Para você ter ideia, eu já tive três faturas em menos de um mês. Movimentos simples me fraturavam. Ao todo, foram 57 fraturas. Minha infância foi diferente da das outras crianças, eu brincava sozinho porque não aguentava determinadas brincadeiras, era eu e meus brinquedos. ECOS: Como surgiu o livro “Ousei desafiar o destino”? GM: O livro surgiu a pedido dos amigos. Eles sempre falaram que minha história de superação servia como exemplo, mas eu nunca tinha pensado nisso, até que aconteceu um fato com uma garota e eu decidi escrever. E eu me perguntava: será que minha história vai interessar as pessoas mesmo? Quanto a escolha do nome, foi bem interessante, eu fiz uma votação na comunidade do Sport Club do Recife e depois fiz uma votação entre a família e o título mais votado foi esse. Eu gostei muito do título, não que eu achasse que tivesse desafiado alguém, mas porque me disseram, duas vezes, que eu não chegaria a determinada idade de vida. Disseram que eu não chegaria a 1 ano, depois aos 7, depois não me deram mais previsão nenhuma, porque desistiram. Talvez seja isso o lance de desafiar o destino, de ter passado por tanta coisa e chegar aqui.
Eu ainda tenho muita vida pela frente, quero chegar aos 100 anos, logo quero viver 66 anos ainda. Todas as pessoas que leram o livro gostaram muito, disseram até que se emocionaram, embora essa não fosse minha intenção. Eu queria falar de tudo o que aconteceu. Minha mãe ajudou muito, ela na realidade escreveu boa parte, porque tinham coisas de que eu não lembrava. ECOS: Como você aprendeu a ler, escrever e consequentemente escolher sua profissão, tanto publicidade como jornalismo? GM: Entrei na escola com 10 anos, porque as escolas não queriam me aceitar. Então fui me adaptando. Segundo minha mãe, comecei a falar as palavras básicas de um bebê, como papai e mamãe, aos 3 meses. Com 1 ano, eu já falava bem. Comecei a ler em casa mesmo. Quanto a escrever, eu só aprendi quando fui à escola, aos 10 anos de idade. Me formei aos 19. Quanto à minha profissão, eu tentei 3 anos o vestibular da UFPE, mas não consegui passar. Um belo dia, minha irmã me chamou para fazer o vestibular da FAMA e eu resolvi aceitar o convite. Passamos no concurso e nos formamos juntos no ano de 2006. Quanto ao jornalismo, ele sempre foi um sonho. Eu me lembro de quando era criança e queria isso, sabe? Sempre sonhei em trabalhar na CNN. Eu sempre me vi trabalhando em jornal, nos bastidores. Sabe o que foi estranho nisso tudo? Entrar numa faculdade depois dos trinta anos. No começo todo mundo já se conhecia, e eu me perguntava: será que a galera vai gostar de mim? Mas aos poucos eu fui me enturmando e hoje eu estou muito feliz. ECOS: Fale um pouquinho sobre seus pais. GM: Graças a eles eu estou aqui hoje. Meus pais são minhas maiores inspirações, são meus melhores amigos. Meus pais nunca me esconderam, porque infelizmente existem pais que fazem isso. Eu também não preciso me esconder, e se eu tivesse feito isso eu nunca teria conhecido os amigos que tenho hoje, nunca teria me apaixonado. Eles sempre me apoiaram em tudo e minha relação com eles não poderia ter sido melhor. Talvez, se eu tivesse nascido em outra família, teria dificuldades, porque não é todo mundo que tem esse cuidado, essa paciência. Hoje eu tenho buscado compensá-los de alguma forma por tudo que eles fizeram por mim. ECOS: Uma frase! GM: “É melhor um talvez, que um não depois das seis”. É uma frase que me marcou por um longo tempo, é uma música do Roupa Nova.
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Atitudes preventivas podem evitar doenças cardíacas Ir ao médico e praticar atividade física são algumas das medidas que podem ajudar a evitar o aparecimento de problemas no coração Larissa Leite
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Hilton Marques Pinheiro Filho é economista. Exerceu durante 20 anos a atividade de auditor fiscal, na empresa Souza Cruz, até que conheceu uma cirandeira, mais popularmente conhecida como Lia de Itamaracá, numa apresentação no Pátio de São Pedro, localizado no centro de Recife. Maria Madalena Correia do Nascimento, a dançarina que também é compositora e cantora de ciranda brasileira, convidou-o para conhecer a Ilha de Itamaracá. Em sua primeira visita à Ilha, o encantamento. “É um paraíso”, disse Hilton. A partir daí, resolveu mudar a vida. Primeiramente, alugou uma casa em Itamaracá. Em seguida, vendeu tudo o que tinha no Recife e mudou de residência e de estilo de vida completamente. Como gostava de futebol, começou a fazer trabalho social com as comunidades locais. Há dez anos, a prefeitura o colocou à frente do trabalho social em escolas, morros e na praia. Hoje, ele é presidente do Forte Santa Cruz de Itamaracá, mais conhecido como Forte Orange, localizado em Itamaracá. Por ele, foi tricampeão do time de futebol. Com uma vida mais tranquila e praticante de esportes, aos 57 anos, Hilton Marques sentiu os primeiros sintomas de um princípio de infarto no dia 2 de abril de 2015. Sem saber da presença da doença, foi dar aula de educação física e passou mal durante a atividade. “Comecei a sentir as primeiras dores por volta do meio-dia, mas não quis admitir que fosse alguma coisa no coração”, disse Hilton. Com a melhora, resolveu voltar e dar outra aula. Não sentiu nada, até chegar à noite e as dores no peito e costas voltarem.
Relutou para admitir que precisava de atendimento médico, mas, após duas horas, resolveu ceder e procurar ajuda. Dirigiu-se ao Hospital de Itamaracá, onde teve o primeiro atendimento. Com pressão arterial de 24 por 18 e apresentando os sintomas de dores no peito e costas, o médico resolveu encaminhá-lo à Unidade de Pronto Atendimento (UPA) da cidade de Igarassu, Região Metropolitana do Recife (RMR). Lá, foram feitos os primeiros exames, o que pôde confirmar a suspeita de princípio de infarto. Detectada a gravidade de seu caso, novamente precisou ser encaminhado, dessa vez para o Pronto Socorro Cardiológico de Pernambuco (Procape). A partir daí, começou a ser medicado e ficou internado durante uma noite na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Após realizar um exame de cateterismo, os médicos perceberam que o seu caso seria ainda mais grave e que provavelmente irá passar por uma cirurgia de revascularização miocárdica, mais conhecida como ponte de safena, termo que se refere aos casos em que a veia safena magna é utilizada com enxerto (ponte ou conduto) durante a cirurgia. Enquanto aguarda a cirurgia, Hilton lê livros e assiste a filmes para passar o tempo. “Diminui a ansiedade com a espera da cirurgia. Minha sobrinha trouxe um livro que diz que o medo faz parte da vida e que temos que aprender a conviver com ele”, afirma o paciente. O dr. Sérgio Montenegro é médico cardiologista há aproximadamente 30 anos, mas faz cinco anos que assumiu o cargo de diretor médico no Procape. Dentre as doenças cardiológicas, as que têm maior incidência em todas as emergências são as de insuficiência cardíaca e a de coronária aguda (infarto) para internamento. Na maioria, os casos são revolvidos com sucesso. No pronto socorro, o tratamento da doença de coronária aguda é feito a partir do encaminhamento do paciente para o setor de Hemodinâmica, para a realização do procedimento de angioplastia coronariana primária (introdução de um cateter provido de um balão em sua extremidade até o local obstruído, permitindo assim, o restabelecimento do fluxo de sangue). “Esse é o melhor tratamento, reconhecido no mundo inteiro e na maioria das vezes tem sucesso”, afirma Montenegro. Já a insuficiência cardíaca tem tratamento clínico e, por motivo de o paciente retornar a sua residência, muitas vezes esse tratamento é interrompido, o que faz descompensar; ou seja, por causa da falta do uso contínuo do medicamento, o coração não joga a quantidade correta de sangue para o sistema circulatório. Em consequência, o indivíduo que tem o tratamento paralisado passa a sentir sintomas como falta de ar, cansaço, fraqueza. Então, retorna ao consultório médico, recebe novamente a medicação e o coração voltar a trabalhar de forma eficiente. “A gente paga o preço porque uma boa parte dos doentes internos não consegue tomar remédio em casa. Param de tomar os medicamentos e voltam descompensados para a gente compensar de novo. O sucesso depende da gravidade da doença e do estágio de gravidade que ele chega. Se ele chega a um estágio muito precoce de compensação, é
melhor a gente compensar e mandar para casa. Se chega num estágio muito avançado de compensação, aí ele corre mais risco”, frisa o cardiologista. A prevenção, no caso da insuficiência cardíaca, resume-se à disciplina e uso contínuo dos medicamentos. “A gente sabe que o tratamento é eficiente quando bem feito”, pontua o médico. Algumas medidas preventivas podem ser tomadas e são feitas por meio da minimização dos fatores de risco: não fumar, controlar diabetes, controlar colesterol, fazer atividade física. Essas são condutas que podem ser tomadas para evitar a doença, o que não significa que vão abolir a possibilidade de uma pessoa vir a ter a enfermidade. As doenças crônicas são mais frequentes com a idade, a de coronária tem mais ocorrência depois dos 40, 50 anos. Hilton será submetido à cirurgia de ponte de safena, procedimento de alta complexidade, pois necessita de recursos tecnológicos avançados e competência médica multiprofissional que possibilite solucionar o caso com segurança e eficiência durante a operação. Apesar de sentir medo, por estar ciente de que enfrentará um procedimento de risco, também está confiante, pois acredita na competência da equipe médica e nas boas condições do hospital para realizar a cirurgia. “O que aprendi muito aqui no hospital foi o companheirismo. Depois que me recuperar da cirurgia, vou mudar radicalmente com a minha família, preciso dar mais atenção à minha esposa e aos meus filhos. Depois de uma ponte de safena, não vou poder ter o mesmo ritmo de atividade que tinha, vou ter que diminuir a intensidade”, conclui o paciente. O Procape recebe pacientes de todos os estados, mas a predominância é dos que são do Recife, seguida dos que são do interior de Pernambuco. Possui 203 leitos, os quais são distribuídos por área de atendimento: Emergência, Unidade Coronariana, Unidade Intermediária, Hemodinâmica, Sala de cirurgia, Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica, Unidade de Terapia Intensiva Adulto e a Enfermaria.
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Resenha “O que é jornalismo?”: A profissão de jornalista Jully Vieira Em “O que é Jornalismo”, Clóvis Rossi apresenta diversos pontos e questões interessantes sobre a profissão de jornalista. Escreve com objetividade e clareza, o que facilita a compreensão. Entre vários temas abordados, a pauta, a objetividade e as normas de estilo estão presentes no livro e são problematizados, por proporem aos jornalistas uma verticalização nas redações, influenciando repórteres a produzirem notícias que estejam de acordo com a opinião dos donos das empresas. O autor propõe em seu livro que a objetividade jornalística é um fator quase impossível para os jornalistas. Afinal, jornalistas são humanos e humanos possuem suas próprias expressões e conceitos referentes a tudo. Sendo assim, é impossível o jornalista ser totalmente neutro perante os fatos relatados. Rossi também trata da direção que deverá ser seguida antes de se produzir uma matéria. Devemos fazer seis perguntas fundamentais: quem, quando, onde, como, por que, o quê. Também observa algo muito importante: as respostas para as tais perguntas podem ter pesos diferentes, isso depende do que se está noticiando. Segundo Rossi, ser jornalista não começa só na universidade. O processo de formação de um comunicador acontece no dia a dia, desde antes de seu ingresso no mundo acadêmico. Mas é lá na faculdade onde deveria se ter uma qualidade de formação acadêmica que prepare o aluno para a sociedade, sendo capaz de construir uma identidade crítica diante dos fatos do seu cotidiano. O autor acredita que o jornalismo é uma fascinante batalha pela conquista das mentes e corações do público, e deixa clara sua insatisfação com os novos profissionais que ingressam no mercado, muitos sem a mínima formação cultural. Ele acrescenta que “a melhor preparação para a função jornalística será certamente jogada ao lixo se não for acompanhada de rigorosa honestidade no trabalho jornalístico”. Em síntese, “O que é Jornalismo” traz o conceito de fazer jornalismo, bem como todo o seu processo. Não é sobre um jornalismo engessado, preso a uma regra, como também não é um manual, mas, sim, a visão de alguém que tem respaldo e muita experiência para falar sobre o assunto.
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“O que é Jornalismo” favorece uma leitura rápida, informativa e prazerosa. Por essas e outras, vale muito a pena ser lido, especialmente por aqueles que pretendem escolher o Jornalismo como profissão e que estão iniciando os estudos. Mas também é uma ótima leitura para as pessoas que simplesmente têm interesse de saber e entender mais sobre os “bastidores” do “quarto poder”.
Ilustração Freddie Mercury Felipe Moura
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Fotografia
Menino do Rancho Ramone Ramalho
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