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A MULTIPLICIDADE DE EXPRESSÕES E A CONSCIÊNCIA NEGRA A REORGANIZAÇÃO DO CECAN

JOANA FERREIRA DA SILVA*

*UMA DAS GRANDES LÍDERES DO MOVIMENTO NEGRO FEMINISTA. FORMADA EM HISTÓRIA E FILOSOFIA, DOUTORA EM ANTROPOLOGIA POLÍTICA, FOI PROFESSORA, ATIVISTA E POLÍTICA.

TEXTO ADAPTADO DO LIVRO CENTRO DE CULTURA E ARTE NEGRA (CECAN), SÃO PAULO: SELO NEGRO, 2012.

Na fase de reorganização do Centro de Cultura e Arte Negra (Cecan), logo após o autoexílio político de Tereza Santos, a sua coordenadora, em meados de 1976 iniciam-se articulações para a reorganização de suas atividades, por meio do seu vice-presidente, Odacir de Mattos. Este acreditava que o Cecan seria o espaço adequado para uma atuação voltada à consciência negra.

Era preciso, então, como dizia Odacir Mattos, valorizar todos os nossos padrões estéticos, morais e físicos: enfim, tudo que consideramos importante. Toda ação de uma pessoa, conscientemente ou não, baseia-se nos conceitos que ela tem de si mesma. O negro precisa formar sua autoimagem sem medo da crítica de outros grupos

sociais e sem se preocupar com a

aceitação ou não do negro – como realmente somos – por parte dos

outros 1 . Odacir de Mattos retomou as

atividades no Cecan, nessa segunda fase, enfatizando o peso da colonização cultural como um dos fatores determinantes para a distorção da imagem e da consciência negra. Além do mais, ele apontava o perigo da folclorização da cultura negra, propondo uma recuperação dos valores negros, criticamente, para se alcançar uma consciência e uma autoimagem positiva do negro.

A partir de então, o Cecan passa a ter como finalidade a pesquisa de todo o tipo de cultura e, em particular, a cultura negra; a promoção de cursos,

1. O. Mattos, Comunicação apresentada no “Simpósio Educação e descolonização cultural”. In: Estudos Afro- -Asiáticos, p. 93-4.

seminários e conferências de cunho cultural

dentro ou fora dos assuntos afro-brasileiros;

o trabalho pelo desenvolvimento intelectual,

cultural, cívico e moral dos sócios; a realização de atividades artísticas, culturais, sociais e

desportivas, em todas as suas manifestações:

o intercâmbio sociocultural entre o Brasil, os

países africanos e demais, onde haja a influência da cultura negra; relações culturais com a Société Africaine de Culture (SAC) e entidade

americana congênere; a representação junto aos poderes constituídos: lutar pelo maior

prestígio da cultura negra e da nobre missão de

representar; reconhecimento e desenvolvimento do espírito de irmandade entre os indivíduos de qualquer raça, respeitando as normas dos direitos da pessoa humana, bem como os princípios espiritualistas e democráticos que fundamentam a organização 2 .

Em relação ao primeiro estatuto, há uma ampliação nas finalidades do centro, com referência explícita à cultura negra e assuntos afro-brasileiros: o intercâmbio entre Brasil, os países africanos e outros onde houver influência da cultura negra; as relações culturais com a Société Africaine de Culture e entidades congêneres americanas; a definição do Cecan como órgão representativo de pesquisadores amadores da cultura negra não apareciam no estatuto anterior. Outro aspecto é a manutenção do artigo pela não participação da entidade em qualquer ação, manifestação ou propaganda de caráter político-partidário, apesar do início da abertura política, e a não promoção ou apoio a atividades desta natureza.

O fato de ampliarem suas finalidades deve-se a uma mobilização maior do negro. Isso era possível, naquele período, por causa do início da abertura política. Ora, isso não ocorria em 1971, época de seu primeiro estatuto, quando a repressão alcançava seu ápice. A referência explícita à cultura negra é provável fruto do momento vivido pelo Movimento Negro, quando foi colocada a necessidade de recuperação das raízes negras para a criação de uma identidade e a percepção de que a cultura desempenharia um papel fundamental no processo da constituição dessa identidade étnica.

No primeiro momento, havia a preocupação de um trabalho também voltado para a conscientização do branco quanto à questão racial negra; e nesse segundo momento, parece prevalecer a ideia de atuação voltada somente para o interior da comunidade negra.

Em entrevista, uma militante afirmou que para o Cecan

era um momento de recuperar os grupos culturais e tidos como folclóricos, para mostrar que o negro era mais do que aquilo que era mostrado, visualizado. Ele se voltava mais para dentro, para atingir a comunidade negra, não para atingir a comunidade branca. Aliás, ‘branco não entra’, porque toda vez que o branco chegava às reuniões, vinha dizendo o que tínhamos que fazer, e não para deixar que a gente fizesse como achasse melhor... 3 .

O grupo que reiniciou as atividades no Cecan caracterizava-se por já trazer experiência de militância; alguns no Movimento Negro, mais especificamente na Associação Cultural do Negro, citada anteriormente, e no Grupo Decisão, outros na organização de esquerda Liga Operária. Observa-se que apenas um membro havia participado da diretoria passada do Cecan, como vice-presidente, mas sem uma intervenção concreta nos trabalhos do departamento teatral.

Segundo um dos militantes, o “Grupo Decisão é originário de um grupo de amigos de

3. Entrevista com Maria Lucia da Silva, tesoureira do Cecan, em 27/08/1990.

adolescência dos bairros Bela Vista e Ipiranga.

Na década de 1960, eles juntavam-se no centro de São Paulo, entre a praça da República e o viaduto do Chá, um ponto de encontro dos

negros paulistanos. Reuniam-se para discutir questões diversas, desde informação sobre festas negras até problemas do dia a dia. Esses amigos

reencontraram-se na Universidade de São Paulo

(USP) e juntaram-se a outros estudantes negros que discutiam e refletiam sobre a problemática

racial no espaço universitário e editavam o jornal

mimeografado Árvore das Palavras, versando sobre o mesmo tema 4 .

Esse pequeno grupo, almejando atingir um maior número de negros, saiu do circuito universitário, indo participar da Escola de Samba Vai-Vai. Seus componentes encabeçaram um movimento para a realização da primeira eleição para a diretoria da escola, participando com uma chapa de oposição. Perderam, mas conseguiram formar uma ala, chamada “Ala do Cala Boca”, composta por cerca de 60 pessoas, que saíam a desfilar com fantasias mais artesanais e com uma temática afro.

O grupo preocupava-se e refletia acerca dos espaços negros, sua folclorização e sua invasão

4. Entrevista com Milton Barbosa, vice-presidente do Cecan, em 17/04/1991.

por intelectuais e pessoas da classe média branca. É desse momento o contato com uma pesquisadora negra norte-americana, Angela Guillen, que realizava estudos sobre o papel da língua, especificamente da gíria, no processo de resistência negra. Ela influiu, de forma bastante acentuada, sobre o grupo, ao trazer muitas informações sobre o Movimento Negro americano. O grupo via no seu comportamento uma semelhança com o ativismo de Ângela Davis, também militante negra norte-americana.

Em relação à cultura negra, um militante afirma que “entendiam que ela garantiu a sobrevivência do negro enquanto grupo étnico, e tínhamos que resgatá-la, indo contra a folclorização e passando, por meio de um trabalho, à ideia de cultura negra dentro de uma visão histórica, filosófica e de defesa do grupo. Nessa perspectiva, acreditávamos estar buscando o ego rompido pelo colonizador”. Ainda, segundo outro militante, “tínhamos que recriar o que nós chamávamos de linguagem negra e definir uma identidade, o que é ser negro. Além da ideia de cultura negra como sendo aquilo que foi folclorizado – alimentação, música, dança, religião etc. –, começaram a surgir outras coisas que para nós seriam também consideradas como cultura negra: a produção de livros, de jornais, de uma arte plástica feita por negros e, na maioria das vezes, com uma temática negra” 5 .

Após as atividades na Escola de Samba VaiVai, são iniciados contatos com outros grupos: Grupo Evolução – de Campinas –, que atuava como grupo teatral; Negros do Bairro Casa Verde, vinculados ao poeta Solano Trindade, e que se encontravam todos os domingos na praça da República – na feira de artesanato; alguns para vender os seus produtos artísticos, outros para conversar sobre problemas raciais – e Casa da Cultura e Progresso (Cacupro), existente no bairro Ipiranga. Todos participam da campanha política de um candidato negro – Milton Santos – para deputado estadual pelo MDB.

No processo de conhecimento sobre o que ocorria no nível das discussões sobre a questão racial e do Movimento Negro, o grupo foi convidado a dar continuidade ao Centro de Cultura e Arte Negra.

Os outros membros que dirigiram o Cecan conheceram-se em eventos negros, que ocorriam na cidade, pois, além da reativação do Cecan,

5. Entrevista com Rafael Pinto, organizador do segundo momento do Cecan, em 23/01/1991.

os anos pós-1975 podem ser tomados como

parâmetro de crescimento dos eventos e grupos, na capital e interior. É desse período, por exemplo, o Grupo de Divulgação da Arte e

Cultura Negra ( Gana) de Araraquara; o Teatro

Zumbi de Santos, o Grupo Rebu, posteriormente chamado Congada de São Carlos e o Grupo

Vissungo de São Paulo. A I Semana do Negro na Arte e na Cultura é realizada em maio de 1975;

o I Encontro de Entidades Negras de São Paulo, Rio de Janeiro e ex-Guanabara, no início de

1976, e os II e III Encontros, no Rio de Janeiro e

São Carlos, respectivamente 6 .

Fatores de ordem econômica, social e política contribuíram para o crescimento dessas entidades e grupos negros. O período pós-1975 marcou o começo da reorganização da sociedade civil no interior do processo de abertura política, retomando valores democráticos. Em São Paulo, estudantes, operários, grupos de reivindicações da periferia, mulheres e homossexuais organizamse e saem às ruas para protestar e reivindicar melhores condições de vida e o fim da repressão e da discriminação, num momento que ainda guardava vestígios da repressão político-militar.

6. Maria Ercília do Nascimento. A estratégia da desigualdade: o movimento negro dos anos setenta, dissertação (mestrado), PUC São Paulo, 1989, p. 93.

Em 1970, a população foi criando formas políticas de repúdio ao autoritarismo e

conquistando espaços para suas reivindicações: Comunidades Eclesiais de Base (CEBs),

Movimento contra a Carestia e Movimento do

Custo de Vida podem ser vistos como antecessores de organizações voltadas para formas específicas de exploração, dominação e discriminação, (...) tais como movimento operário, sindical, de mulheres, negros, homossexuais, sendo que estes últimos (...) trouxeram ao conhecimento

da sociedade outros domínios onde grupos e indivíduos são igualmente discriminados 7 .

Entretanto, a tradição organizadora dos negros é um fator relevante, pois foi por meio dela que, historicamente, o negro evitou sua destruição social, cultural e biológica. Além disso, a influência de um contexto internacional relativo à luta do negro no mundo – seja nos países africanos colonizados, seja na luta do negro americano por seus direitos civis – contribuiu para um aumento substantivo das entidades negras.

Os integrantes do Cecan, após a realização de várias reuniões, decidiram organizar um ciclo de debates. A ideia era o resgate do trabalho dos

velhos militantes, pessoas do mundo do samba e religiosos do candomblé. O intuito era ouvir as experiências dos mais velhos, refletir sobre elas, tentar fazer avançar a luta e, ao mesmo tempo, exercitar e vivenciar uma tradição da cultura africana, o griot, o contador de histórias, aquele que mantém viva a tradição, os costumes e, fundamentalmente, a história do grupo.

O ciclo de depoimentos “O negro e suas associações” 8 realizou-se de 5 de junho a 3 de julho de 1976, como promoção do Cecan e do Grêmio Recreativo, Esportivo e Cultural Coimbra, na sede deste último 9 . Nesse mesmo ano, houve no Coimbra a conferência do professor de Ciência Política da Universidade de Princenton, Michael Mitchel – brasilianista negro, com o tema “Movimento Negro Americano na década de setenta”, evento realizado pelo Cecan.

8. A programação contou com a presença de Geraldo Filme – compositor da Escola de Samba Paulistano da Glória; Altair Silva – presidente do Coimbra; Raul Joviano do Amaral – da Imprensa Negra do passado; Henrique Cunha – ex-presidente da Associação Cultural do Negro; Caio Aranha – babalorixá do Achê Ilé Obá; José Jambo Filho (Chiclet) – presidente do Grêmio Recreativo e Cultura Escola de Samba Vai-Vai; Alberto Alves da Silva (seu Nenê) – presidente do G.R. Escola de Samba Nenê de Vila Matilde; Iracema de Almeida – presidente do Grupo de Trabalho e Profissionais Liberais Universitários Negros (Gtpun); Sebastião Francisco da Costa – presidente da Associação Cristã Brasileira Beneficência; Inocêncio Tobias – presidente do GRE de Samba Mocidade Camisa Verde e Branco; Ana Florêncio Romão – presidente da Casa de Cultura Afro- -Brasileira; Francisco Lucrécio – ex-participante da extinta Frente Negra Brasileira; Wilson Antonio Reginaldo – pai pequeno da Tenda Espírita de Candomblé Cabana Eruiá; José Correia Leite e Jayme Aguiar – das extintas Associação Cultural do Negro e do Jornal Clarim da Alvorada; Odacir de Mattos – presidente do Centro de Cultura e Arte Negra. 9. A sede localizava-se na av. São João, 1.143, 2° andar, Centro.

Em 1977, em função do grande número de negros que o Cecan aglutinava, seus organizadores decidem alugar uma sede social 10 . Esse fato pode ser considerado um marco na sua história, pois, a partir da sede social, transforma-se num ponto de referência e num espaço aglutinador de uma heterogeneidade de negros: desde aqueles que já tinham um passado de militância no Movimento Negro e outras organizações políticas até aqueles que iniciavam sua militância e que, pela primeira vez, tinham contato com uma organização negra. Havia, ainda, aqueles que estavam desejosos de congregar, mas que buscavam algo mais do que as escolas de samba e entidades

negras recreativas ofereciam. Enfim, todos os negros interessados e sensibilizados pela questão racial acorreram ao Cecan para usufruir das atividades e/ou participar dos trabalhos e de suas organizações. Naquele momento, o Cecan era a única organização negra, com proposta diferenciada das outras, a ter uma sede social. Reunidos em assembleia geral em 29 de julho de 1977, definiram a reestruturação da diretoria, em que foram eleitos Odacir de Mattos, presidente; Milton Barbosa, vicepresidente; Isidoro Telles de Souza, secretáriogeral; e Maria Lúcia da Silva, tesoureira.

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