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O estado-da-arte em inovação
Web Summit 2020 debate ética nos negócios, papel das empresas de tecnologia na construção de um futuro melhor e importância das startups como geradoras de transformação no planeta
Por Renato Müller, jornalista, cofundador da Käfer Content Studio
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Durante três dias em dezembro, a edição 2020 do Web Summit foi um verdadeiro tour de force de seus organizadores, que reuniram mais de 104 mil participantes de 168 países de forma virtual, em um evento que trouxe uma sequência quase 700 palestras em uma sucessão de insights, ideias, casos de sucesso e debates sobre o presente e o futuro da inovação. Em todas as suas formas.
Ao mesmo tempo em que em uma sala era discutido o papel dos países na regulamentação ao poder das big techs, em outra eram apresentadas novidades em sequenciamento genético, enquanto logo a um clique de distância fintechs debatiam o futuro das transações financeiras e, mais adiante, a sustentabilidade reforçava seu papel transformador na sociedade.
Por tudo isso, é praticamente impossível sair de um evento como o Web Summit 2020 com uma visão integrada do que aconteceu. Até porque uma das marcas do mundo atual é a fragmentação: com muita frequência, dessa polinização de ideias muito diferentes é que surge uma inovação relevante, ou uma nova percepção de mundo. E esse é o maior valor trazido por esses três dias de muito debate.
Ao mesmo tempo em que o Web Summit abre espaço para mais de 2000 startups fazerem apresentações e se mostrarem para todo o mundo, traz uma visão bastante crítica sobre o papel da tecnologia na vida das pessoas. Seja por representantes da própria indústria de TI, seja a partir de organismos internacionais como a ONU e a União Europeia, o evento mostra que a tecnologia não é uma cura para todos os males. Ao mesmo tempo em que traz grandes benefícios para a vida de bilhões de pessoas, também pode ser – quando mal utilizada – uma arma contra a liberdade de expressão e a democracia. Um bom exemplo foi a apresentação de Margrethe Vestager, vice-presidente da Comissão Europeia para questões digitais, que não poupou críticas ao papel das big tech. “Práticas monopolistas sufocam a inovação. Não são prejudiciais somente aos consumidores, mas a todas as empresas que não são as líderes de mercado”, afirma.
Para ela, a emergência de empresas chinesas e americanas como gigantes de tecnologia também se deve ao fracasso europeu em construir um mercado realmente unificado. “Não conseguimos criar um sistema que viabilizasse ganhos de escala para os negócios na Europa. China e Estados Unidos têm mercados de capitais muito mais vibrantes, além de contar com mercados unificados – até mesmo no idioma”, diz.
Sua expectativa é que o Digital Services Act, nova legislação europeia de regulamentação do mundo digital, estimule o desenvolvimento de grandes empresas europeias de tecnologia, trazendo novos competidores para o
mundo das big tech e novas formas de gestão e paradigmas de negócios. “Temos que caminhar um passo por vez. No caso da Europa, existe uma dificuldade natural em orquestrar uma visão única, mas isso é essencial para que possamos competir globalmente”, afirma.
Para Nikolay Storonsky, CEO da Revolut, dificilmente o mundo ocidental (EUA inclusive) conseguirá repetir o sucesso dos superapps chineses. “Há muito menos competição no Ocidente, e ela vem na forma de bancos, que funcionam praticamente da mesma forma há um século, sem necessidade de mudar”, diz. “São estruturas muito mais enraizadas que na China”, diz.
Em vez de ser um prato cheio para a inovação, o setor financeiro talvez seja grande demais para ser revolucionado no Ocidente como aconteceu na China. “As fintechs estão aumentando a competição com os bancos, mas seu poder é limitado. Já as big tech têm muito talento, recursos e capital, além de uma base de bilhões de consumidores cujos comportamentos já conhecem. Acho que a única razão pela qual elas não entraram com força nesse mercado é porque não querem estar sujeitas à regulamentação dos governos”, analisa.
Como resultado, a inovação no setor financeiro caminha mais devagar, já que as iniciativas acabam tendo de passar pelos bancos e serem regulamentadas antes de irem a público. É o oposto do que acontece na China, em que os superapps se beneficiaram de um ambiente de grande desregulamentação para ganhar espaço.
A revolução digital da Europa
Nos mais variados setores da economia, o ano de 2020 foi um período de profundas transformações. Nem sempre geradas pela pandemia, mas certamente aceleradas por ela. Segundo a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, o valor das empresas de tecnologia europeias aumentou quase 50% ao longo do ano e quadruplicou desde 2015. Mesmo assim, o ambiente regulatório e os obstáculos de infraestrutura limitam seu impacto. Para combater isso, a autoridade europeia desenvolveu o plano Next Generation EU,
uma iniciativa de 750 bilhões de euros, 20% dos quais aplicados diretamente em investimentos digitais. “Cada vez mais, online e offline são uma coisa só. Da mesma forma, o que é ilegal no mundo físico também precisa ser no digital. Estamos reescrevendo as regras do mundo digital para evitar a venda de produtos inseguros, a disseminação de discursos de ódio e outros problemas que enfrentamos hoje. Essa é uma luta contínua, que moldará o nosso futuro”, analisa.
O lado digital do plano Next Generation EU está baseado em três pontos:
1) Ajudar pequenas empresas a se reposicionar em um ecossistema
digital: para isso, é preciso capacitar os profissionais e ampliar o acesso a dados públicos. “Tem tudo a ver com o uso do potencial de Inteligência
Artificial, seja para aumentar a produção de alimentos, seja para proteger empresas de ciberataques. Queremos levar os benefícios da era digital para trabalhadores de todos os setores da economia.
2) Apoiar a criação e expansão de
hubs de inovação digital: o objetivo é facilitar o encontro da oferta com a demanda por soluções digitais.
“Hoje, somente 20% das empresas europeias são altamente digitalizadas, e esse é um gap importante que afeta a competitividade da região. Temos muito a evoluir”, comenta Ursula. Em hubs de inovação, como é o caso do OASISLAB no Brasil e de seu braço europeu, o OASISLAB Europe, startups podem encontrar novos clientes e empresas tradicionais podem descobrir o potencial do uso de dados em seus negócios.
3) Reduzir a disparidade digital entre os países europeus: hoje, 40% das pessoas que vivem em áreas rurais na
Europa não possuem acesso a internet banda larga, um cenário inesperado para a região – e que costumamos associar a regiões bem mais pobres do planeta. “Conexões de alta velocidade são um pré-requisito para desenvolver negócios, seja em indústrias tradicionais, seja em startups. Temos uma oportunidade única para expandir 5G, 6G e fibra ótica para toda a região”, explica Ursula.
Saiba mais sobre o projeto da Comissão Europeia que quer colocar a Europa na liderança da inovação digital.
Democracia sob ameaça
Pela primeira vez em décadas, as democracias estão em desvantagem em relação às ondas de fake news. Boatos, informações plantadas e notícias falsas sempre existiram, mas nos últimos anos se tornaram uma praga que ameaça a legitimidade de governos em todo o mundo. Para Brad Smith, CEO da Microsoft, a natureza da evolução tecnológica e da capacidade dos governos em reagir aos desafios é o principal motivo para essa desvantagem. E a solução não é simples, pois depende de um esforço conjunto de empresas e governos. “As empresas de tecnologia precisam fazer mais para combater esse problema”, disse ele durante o Web Summit 2020, em uma espécie de mea culpa para todo o setor, que tolerou por muito mais tempo do que deveria o crescimento do discurso de ódio e intolerância.
E essa desvantagem dos governos em relação a ameaças cibernéticas, crimes virtuais e fake news tem data para acabar. “É um problema para o resto de nossas vidas. É parte da luta que a sociedade precisará travar daqui em diante”, afirma. Para Smith, a saída depende da cooperação das empresas de tecnologia com os governos, criando mecanismos de combate às fraudes e estimulando a criação de leis que garantam a privacidade da informação. “Vários países já possuem leis nesse sentido e acredito que veremos em 2021 uma lei nacional americana. E já é preciso avançar para criar parâmetros de uso de reconhecimento facial, que levanta pontos éticos delicados”, avalia Smith.
A solução para combater a desinformação também depende da educação da população, inclusive quanto ao uso de dados. “Se não aprendermos a analisar os dados disponíveis, continuaremos tendo muita opinião e pouca informação. É preciso ter fontes confiáveis e acionáveis de dados para uso em todas as instâncias”, diz o executivo.
Exemplificando a ação da Microsoft, Brad Smith cita o trabalho em parceria com autoridades de saúde durante a pandemia para fornecer e organizar dados de forma que possam ser usados rapidamente. Para ele, parcerias de empresas de tecnologia com órgãos públicos são uma tendência, pois viabilizam o uso estruturado e ético dos dados e aumentam a digitalização da população. “Várias iniciativas de empresas em parceria com governos em diversos países têm diminuído os gaps educacionais e aumentado o acesso à informação. Somente ações em conjunto poderão superar os desafios que enfrentaremos nesta década”, completa.
O ano de 2020 ficará na História como um período de pandemia global, uma eleição americana controversa
e o reconhecimento de problemas ecológicos cada vez maiores. Para piorar, uma crise de desinformação criou cenários de “realidade paralela” que fizeram questionar a sanidade das pessoas. Nesse contexto, o papel das mídias sociais vem sendo fortemente questionado. “as plataformas de rede social se favorecem por ter uma imensa audiência, mas não têm nem uma parcela do accountability que os meios de comunicação têm”, diz Maria Ressa, CEO da Rappler. “Elas assumiram o papel tradicional da imprensa, de editores de informação, mas não assumiram a responsabilidade de garantir a veracidade das informações que são divulgadas”, explica.
Para Brian Stelter, jornalista da CNN, o problema é ainda mais sério. “Muitas redações estão ativamente enganando as pessoas. Se você me diz que está chovendo e eu posso ver que está ensolarado, eu tenho o dever de questionar. E se eu fingir que você pode estar certo, também sou parte do problema. Por isso, essa é uma questão que depende da responsabilidade de todos os envolvidos”, analisa.
Web Summit e o mundo da Covid-19
Evidentemente, em um ano marcado pela pior pandemia dos últimos 100 anos, a Covid-19 marcou muita presença no Web Summit. E em altíssimo nível. O secretáriogeral da ONU, António Guterres, afirmou em carta aos participantes do evento que a pandemia, ao mesmo tempo em que acelerou nossa dependência de tecnologias digitais, mostra que a conectividade pode salvar a vida das pessoas.
O acesso à internet e as facilidades do mundo digital mantiveram as pessoas conectadas e a sociedade funcionando. Por outro lado, a pandemia ampliou os desequilíbrios, incluindo a divisão entre conectados e não-conectados. “As pessoas sem acesso às tecnologias digitais são quase metade da população mundial e, neste momento, não têm oportunidade de estudar, se comunicar, trabalhar, fazer negócios e participar de grande parte do que é hoje a vida normal nas regiões mais ricas do mundo”, afirma Guterres.
Durante a pandemia, cresceram os casos de vulnerabilidade de menores e
assédio contra mulheres. O crescente volume de desinformação e fake news também gera riscos à vida das pessoas e ameaça reduzir a eficiência do combate à Covid-19 no período de vacinação. “A desinformação, a proliferação dos discursos de ódio e a falta de diálogo nas redes sociais continuam a corroer a coesão social e reduzir a confiança na ciência, nas instituições e nas pessoas”, analisa o secretário-geral da ONU.
Para ele, somente a união das pessoas é capaz de reduzir o uso tóxico das tecnologias digitais e reforçar seu poder como uma força libertadora do potencial humano. “Precisamos que novas tecnologias sejam supervisionadas, na Web, em áreas de conflito e em laboratórios de pesquisa, para que a sociedade possa se beneficiar do rápido desenvolvimento e seja protegida de riscos significativos”, explica.
Para Dorry Segev, professor de epidemiologia da Johns Hopkins University School of Medicine, a pandemia pode aumentar a atenção dedicada a outras doenças, como a gripe comum. “Culturalmente, não levamos a sério o fardo de uma gripe convencional, mas ela mata cerca de 80 mil pessoas por ano. Sou otimista: provavelmente nunca mais será aceitável aparecer para trabalhar com o nariz escorrendo, espirrando ou tossindo, especialmente sem máscara. Acredito que as mortes por gripe podem cair até pela metade por vários anos, por causa dos hábitos adquiridos durante a pandemia”, afirma. Outro lado das lições aprendidas durante a pandemia é o salto na capacidade logística das empresas. A FedEx, por exemplo, transportou mais de 1,8 bilhão de máscaras desde março e vem mantendo uma operação de guerra para atender ao aumento da demanda por equipamentos de saúde e por produtos no e-commerce. “2020 trouxe o maior desafio logístico desde o Bloqueio de Berlim, em 1948, quando Berlim Ocidental precisou ser abastecida durante mais de um ano exclusivamente por via aérea”, afirma Raj Subramaniam, presidente da empresa.
Trabalhando em parceria com fabricantes, distribuidores e governos, a empresa aumentou seus padrões de rastreabilidade para garantir que a distribuição de vacinas ocorra com a maior qualidade possível. “O controle e o acompanhamento das doses é um ponto fundamental para garantir a vacinação de toda a população mundial. Será um imenso desafio, para o qual estamos preparados”, diz.
Essa preparação não começou durante a crise: a empresa já esperava um aumento da demanda pelo transporte de encomendas. “Em 2016, transportávamos 25 milhões de pacotes por dia e projetávamos chegar a 100 milhões em 2025. Por isso, desde 2018 vínhamos aumentando nossa capacidade logística para lidar com a expansão”, diz. A pandemia acelerou a demanda: a marca de 100 milhões de pacotes deve ser alcançada já em 2022.
O aumento da demanda – com a necessidade de manter a qualidade do atendimento – fez com que a empresa investisse em uma série de estratégias que irão ajudar também no pós-pandemia. “Demos um foco muito grande à automação de nossa estrutura e ao uso de Inteligência Artificial para projetar melhor a demanda”, afirma.
Nada de Big Brother
O uso dos dados dos cidadãos é uma questão delicada, seja pela privacidade, seja pelos aspectos de segurança envolvidos, ou mesmo pela preocupação com um Estado totalitário. Por isso, quando a cidade de Londres lançou seu app de rastreamento da Covid-19, houve uma grande preocupação com o aspecto “Big Brother”. “Discutimos o assunto com a população para assegurar que não há um controle central dos dados e que ele funciona de maneira autônoma, sem envolvimento do governo”, conta Sadiq Khan, prefeito de Londres.
Em uma das cidades com maior vigilância da população no mundo, o uso de reconhecimento facial é outra questão importante. “É uma maneira de facilitar a busca por criminosos, mas é preciso entender as preocupações de privacidade e o risco de falsos positivos”, analisa Khan. Para ele, é preciso combinar tecnologia e pessoas, e ter recursos de validação das informações para garantir o uso correto dessas ferramentas. “O desafio é mostrar aos cidadãos que as informações estão sendo utilizadas somente para sua segurança, e não para reduzir direitos civis”, comenta.
Londres conta com um painel de especialistas em ética para discutir as preocupações da população, mas Khan defende medidas mais amplas. “A legislação nacional não está em
pé de igualdade com a evolução tecnológica. É preciso avançar nesse sentido para assegurar os direitos dos cidadãos”, afirma.
Já o prefeito de Toronto, John Tory, disse que a cidade aprendeu com os erros de uma parceria com o Sidewalk Labs, do Google, que levaram ao cancelamento do projeto. “Avançamos muito na coleta de dados, mas havia uma imensa preocupação da população sobre essas informações serem usadas por uma empresa privada”, comenta. “É preciso encontrar formas de trabalhar com o setor privado e assegurar que os dados não sejam usados para outras finalidades. As questões de privacidade de dados e confiança são fundamentais”, afirma Tory.
Para Fernando Medina, prefeito de Lisboa, a grande questão não é a tecnologia em si, mas a percepção que as pessoas têm sobre seu uso ético e seguro. “A preocupação é a maneira de organizar os dados e comunicar que existem proteções às informações, que nem tudo está disponível para todos”, comenta. Um exemplo é um sistema municipal de Lisboa em que médicos e enfermeiros têm acesso aos dados de saúde das pessoas para responder rapidamente aos casos de Covid-19. A cidade tem acesso a parte das informações, para saber quais são as regiões mais afetadas pelo vírus, mas os dados privados estão disponíveis somente para os profissionais de saúde. “Só assim é possível construir confiança no uso dos dados dos cidadãos”, diz Medina.