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Jorge Wolff

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Sobre os autores

Sobre os autores

TODA POESIA DE JOAQUIM1

/ JORGE WOLFF

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– Que século, meu Deus! diziam os ratos. E começavam a roer o edifício. Drummond

Não a fênix, não a águia, o ouriço, muito baixo, bem baixo, próximo da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, angélico talvez, temporariamente. Derrida

Um inseto cava cava sem alarme perfurando a terra sem achar escape.

Drummond

Ratos drummondianos roem um edifício desde as suas fundações, seu underground; insetos-orquídea cavam, cavam aporéticos e sem escape; o ouriço derridiano é igualmente terra-a-terra: vamos ler, postular e destacar, portanto, no presente texto, a vertente pau-brasileira e antropofágica, a dos roteiros roteiros roteiros, a do grande pé no chão do Abaporu numa certa revista de cultura d’après-guerre; vamos numa palavra antropofagizá-la. Ocorre que a

1 “A poesia de Joaquim” é o título de uma resenha de O beijo na nuca de Dalton Trevisan (seu último livro, de 2014), que publiquei na MusaRara [https://www.musarara.com.br/a-poesia-de-joaquim], sem fazer referência especificamente à poesia. É o que trato de fazer aqui em “Toda poesia de Joaquim”, além de remeter a Paulo Leminski: Toda poesia é o título de seu best-seller póstumo de 2013 (e também de um site de divulgação de poesia: https://www.youtube.com/c/TodaPoesia/featured).

revista Joaquim, editada por Dalton Trevisan e Poty Lazzarotto, em Curitiba, entre 1946 e 1948, é invariavelmente considerada um periódico fechado com a “geração de 45” e tudo o que este nome significa: neoparnasianismo e antimodernismo de 22, que seus partidários definiriam antes e vagamente como “neomodernismo”. Em texto panorâmico, publicado ainda no final do século passado, “As revistas literárias brasileiras”, Raul Antelo as postula como uma forma de crítica cuja “multiplicidade é normativa”. No entanto, a revista “é, a princípio, não hierárquica; ela oferece, horizontalmente, múltiplos enunciados, nem sempre passíveis de unificação ou convergência, porém certamente rearticuláveis, em redes aleatórias, numa leitura de conjunto realizada a posteriori. Sua multiplicidade em consequência é anômala e estriada” (ANTELO, 1997, p. 1). É uma tal “leitura de conjunto a posteriori” que se busca desdobrar aqui, e de uma revista específica, a Joaquim, o que permitiria abrir e problematizar nos próprios termos acima – em sua dimensão “não hierárquica” e de “múltiplos enunciados rearticuláveis” – cada uma das inúmeras publicações mencionadas no breve artigo de Antelo. É nesse sentido que se pretende rearticular a leitura da velha senhora curitibana com nome de homem comum enquanto mero periódico do “neo-romantismo emergente, a ‘geração de 45’, representados por Joaquim (Curitiba, 1946-1948), Edifício (Belo Horizonte, 1947), a Revista Brasileira de Poesia (São Paulo, 1947-1960), Orfeu (Rio de Janeiro, 1948), Sul (Florianópolis, 1949-1952) ou a Revista Branca (Rio de Janeiro, 1950-1954)” (ANTELO, 1997, p. 8). Gostaria, enfim, de tentar sacar a Joaquim deste grupo propondo-a como uma revista aberta anacronicamente aos cinco ventos, do mais profundo penumbrismo oitocentista e fin-de-siècle até uma expansão de caráter já então pós-autonômico da literatura, que logo vai desembocar no programa verbivocovisual concretista e derivados, vindo a se transmutar mais tarde – no caso de Dalton, mas também no de Leminski – numa estética do haicai e da rarefação.2 Em síntese, já na virada para os anos 1950: artes expandidas e literaturas menores. Como essas literaturas se desterritorializam? Em ambos os escritores, cada um a sua maneira, e em temporalidades diversas, esfacela-se a língua da província – a futura “república de Curitiba” – onde encontram “seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu

2 Na introdução à primeira edição de Distraídos venceremos (1987), Leminski escreve que aboliu não a realidade, mas a referência através da “rarefação”. Outra coisa não fez Dalton Trevisan, a sua maneira, da década de 1960 em diante e para sempre.

próprio dialeto, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto” (DELEUZE; GUATTARI, 2017, p. 39). Assim, no ecletismo absoluto que marcou todos os 21 números de Joaquim, a revista de cultura curitibana do imediato pós-guerra era tudo ao mesmo tempo naquele agora: era uma revista de literatura e era uma revista de artes visuais; era uma revista centrada num só nome, Dalton, e era uma revista de divulgação cultural; era geração de 45, era modernista de 22 e era também uma “revista de invenção”.3 Senão o que faria ali o “Rondó do atribulado do Tribobó”, de Manuel Bandeira, em página inteira, incluindo a imagem do rosto do poeta, com seus versos de circunstância, justamente naquela circunstância? Ou o Macunaíma, cujo autor “desistira” (segundo Patrícia Galvão)4, mas cuja página de abertura é apresentada numa seção da revista em que se destacam as principais experiências romanescas da primeira metade do século XX na literatura ocidental (Proust e Gide, entre outros)? Também a voz de Oswald de Andrade se faz ouvir aqui e ali, sendo invocado no último ano sobretudo como representante de um modernismo ultrapassado, em função do Congresso Paulista de Poesia de 1948, promovido pela “geração de 45”. Na vertente da suposta “nova poesia” da hora, destaca-se a figura de Lêdo Ivo com presença frequente, mas Vinicius de Morais não aparecia menos com sua poesia de guerra. Do mesmo modo, as leituras de poesia vinham assinadas sobretudo por Wilson Martins, que se tornaria o crítico mais reacionário da literatura brasileira, mas que era, então, apenas um neófito presunçoso a impor toda a verdade sobre a poesia, justamente, de Manuel Bandeira, e já em seu artigo de estreia no número 2, de junho de 1946.5 Há, porém, outro nome de poeta que se destaca e se impõe na revista por vários motivos, a começar precisamente pelo humor: Drummond.

3 Em 2011, Sérgio Cohn publicou a antologia Revistas de Invenção com uma visão aberta desse conceito, incluindo cem títulos e excertos de revistas culturais modernizantes do século XX, sem se preocupar em defini-lo na introdução. No entanto, a partir dos anos 1950 o conceito de “invenção” passa a ser associado, no Brasil, aos concretistas, que o empregaram de diversas formas, desde “poesia de invenção” até sua importante publicação homônima (1962-67). Reivindico Joaquim como “revista de invenção” no sentido de sua mescla renovadora de literatura e artes visuais e de sua ousadia crítica e também gráfica. 4 Cf. a “Contribuição ao julgamento do congresso de poesia” de 1948, assinada por Galvão e Ferraz, a ser invocada adiante (GALVÃO apud CAMPOS, 2014, p. 249-254). 5 É sintomático que seu texto comece com um “na verdade”: “Na verdade é uma só a constante da poesia de

Manuel Bandeira”, que é sua redução a “temas simples e muito humanos” e a poesia em geral a “um fenômeno emocional”, apesar da inglória busca do jovem-velho crítico por uma “lógica da poesia” (MARTINS, 1946, p. 6).

Drummond pai do José é o padrinho – mesmo que involuntário – da Joaquim desde o primeiro número, de abril de 1946. No início, ainda se sobressaía um certo passadismo simbolista-paranista através da pessoa do primeiro diretor da revista, Erasmo Pilotto, prefaciador da poesia completa do poetastro Emiliano Perneta, mas sua presença duraria apenas três números. Pois foi o próprio Drummond que, com humor modernista, consolida o desprezo pelo passado beletrista paranaense ao comentar, em carta a Joaquim publicada no segundo número (aberto com o “Caso do vestido”), que era muito divertido ter lido o anúncio no primeiro número do artigo “Emiliano Perneta, poeta medíocre”, sendo que se trata de uma revista cuja oficina se localiza à rua Emiliano Perneta, 476! A impiedosa crítica de Dalton a Emiliano, com a violência típica do manifesto de vanguarda, é publicada nesse mesmo número 2, com todas as letras da assinatura do jovem escritor, então com 21 anos incompletos. É, portanto, o Drummond de 45 anos incompletos, autor do recente A rosa do povo, que observa com ceticismo e distância crítica a “geração de 45” e que marca a ferro e fogo a neovanguarda curitibana joaquina, cujos efeitos serão prolongados. Ou será mera coincidência que Alice Ruiz, Paulo Leminski e outros constituam, em pleno ano de 1969, um grupo chamado “Áporo”? Ou que Leminski, com base numa estética do haicai, confronte e provoque desde sempre o Vampiro de Curitiba, lendo-o com lentes realistas, quando ele se tornaria antes o rei da rarefação da linguagem? De modo que, para fazer tremer o estereótipo relacionado a “45” – reforçado por uma tese de doutorado recente, “Neomodernistas de 45: uma querela de gerações” defendida na PUC-SP6 –, vale apelar para o manifesto de Patrícia Galvão e Geraldo Ferraz que é a “Contribuição ao julgamento do Congresso de Poesia”, originalmente no Diário de São Paulo de 9 de maio de 1948, em que são contestadas de modo contundente as posições do poeta e “dono” do evento Domingos Carvalho da Silva. Observar como esse debate de 1948 reverbera nas páginas dos últimos números da Joaquim não é menos relevante aqui. Galvão e Ferraz, esse nós forjado na experiência de escrita a dois

6 De autoria de Ana Paula Meyer Velloso, a tese, defendida em 2017, no Doutorado em Ciências Sociais da

PUC-SP, é bem documentada, mas extremamente irregular, acabando por reforçar a ideia de uma oposição absoluta 22-45 e, ao mesmo tempo, de que os “moços” de 45 eram na realidade “velhos”. De modo previsível, nela aparecem como as “principais revistas literárias da Geração de 45 a Revista Brasileira de Poesia, de São

Paulo: Orfeu, do Rio de Janeiro; Joaquim, de Curitiba; Edifício, de Belo Horizonte; e Sul, de Florianópolis” (VELLOSO, 2017, p. 89). As três primeiras mais a revista Clima (SP, 1941-42) foram escolhidas para “estudos de caso” que chamam a atenção pelos recortes parciais e pelas interpretações superficiais. Uso, portanto, sua tese como fonte e como sintoma hoje de “45”.

de A Famosa Revista (1945)7 – questionam o rótulo de “‘nova poesia’, datada de 45”. Carvalho da Silva e o grupo da Revista Brasileira de Poesia foram os organizadores do congresso realizado em diferentes pontos da capital paulista entre 29 de abril e 2 de maio de 1948: assim como a Semana de fevereiro de 22 ocupara o espaço nobre do Teatro Municipal, o Congresso de Poesia ocupa espaços institucionais da cidade: a Biblioteca Municipal, o Museu de Arte, o bar do Teatro Municipal, a Escola Normal Caetano de Campos, além do auditório do jornal A Gazeta. A importância que Galvão e Ferraz atribuem ao evento se reduz ao fato de representarem “o consentimento de um agrupamento de moços”, que possui, no entanto, uma “deformação congênita”: “É a corrente que cresceu dentro de um estado de espírito estreito, passivo, oprimido. Essa geração não tem culpa. Dentro dos muros da opressão ela não pôde desenvolver as suas asas” (GALVÃO apud CAMPOS, 2014, p. 251). Assim como para Oswald de Andrade, para Galvão e Ferraz 1922 é “um marco revolucionário – e 1945 é apenas a saída de uma prisão sem que os prisioneiros libertados saibam o que fazer de sua liberdade”. Tal corrente sofre de “fobia” e “fixação” em relação a 22, dizem com todas as letras, acrescentando que “a tese [22 × 45] do sr. Domingos Carvalho da Silva nada mais é que uma tentativa sonolenta de um manifesto para formular um grito de independência”: não há “conquista” como pretende a inócua tese. Tomando Mário de Andrade como “traidor” por ter declinado da radicalização estética e política no final dos anos 1920, Galvão e Ferraz apontam sem hesitar para aqueles que não teriam desistido nem traído a causa da vanguarda e que vinham a ser “os que se mantinham mais à margem, um Antônio de Alcântara Machado, um Murilo Mendes, um Carlos Drummond”: “Politicamente mais atrasado do que todos, como militante, Mário de Andrade realizou a sua evasão na poesia, dedicando-se também a objetivos pedagógicos, que era o seu meio de se tornar um ‘chefe’, um ‘duce’ da juventude” (idem, p. 253). Não à toa, Lêdo Ivo insistiria, então, na necessidade de resgatar a poesia e apenas a poesia de Mário, ao que fazem eco várias manifestações pró-45. Sublinhemos que este confronto com “45” se materializaria em breve e de forma potente através da vanguarda concretista, que em 1948, na pessoa de Augusto de Campos, já amava a poeta Solange

7A “contribuição” tende a ser atribuída apenas a Patrícia Galvão, mas ela mesma esclarece em nota final que:

“A crítica e indicação ao Congresso teve a assinatura também de Geraldo Ferraz. O plural desta contribuição também nos representa (N. A.).” (GALVÃO apud CAMPOS, 2014, p. 254).

Sohl sem saber que se tratava de pseudônimo de Patrícia Galvão, vindo a conhecer sua real identidade apenas no início dos anos 1960, quando ela já havia morrido e Geraldo Ferraz desfaz o mistério.8 Informa a nota anteposta ao poema “Natureza morta”, de Sohl, no suplemento literário do Diário de São Paulo de 15 de agosto de 1948: “Solange Sohl é uma estreante. A publicação do presente poema é feita a título de animação, pois há que considerar, na sua realização lírica embebida de um dramatismo intenso, um compromisso para o futuro.” (CAMPOS, 2014, p. 235, grifo meu). Vejamos o modo singular com que Dalton Trevisan assume este “compromisso para o futuro” e se coloca “à margem”, posicionando-se antes na esteira de Carlos Drummond de Andrade do que na de seus próprios companheiros de geração, Lêdo Ivo e Wilson Martins.

Joaquim sou eu

Dalton Trevisan usa descaradamente a revista como plataforma de lançamento da própria obra, que se vê na segunda metade dos anos 1940 no umbral entre o sonetismo como gaiola (Oswald de Andrade) – manifestado pelo próprio Dalton adolescente na sua estreia em dois livretos de sonetos de 1941 – e a narrativa breve e poeticamente livre que o caracterizará século afora, cujos motivos são retomados e reescritos incessantemente, como se vê ainda no seu último livro “oficial”, Beijo na nuca (2014).9 Num momento em que a poesia neoparnasiana dessa geração torna-se hegemônica em relação à prosa e ao romance – conforme, por exemplo, o testemunho do poeta Wilson Figueiredo na revista carioca da “geração de 45”, Orfeu (n. 7, 1949) –, Dalton justamente começa a definir seu caminho através da prosa como que a fugir do novo penumbrismo de seus contemporâneos. É através dela que se regenera em relação a sua formação basicamente acadêmica (paranismo + faculdade de Direito), ao lado da religiosa (forte formação católica), para desdobrar nos anos subsequentes todo o universo literário que lhe seria peculiar.10 “Orfeu Orftu Orfele∕ Orfnós Orfvós Orfeles”, leremos no exergo de Convergência (1970), de Murilo Mendes. Invoco, portanto, aqui, como

8 Cf. Pagu Vida-Obra (CAMPOS, 2014). 9 Chamo de livros “oficiais” de Dalton aqueles publicados pela editora Record. 10 Ver o livro de Luiz Claudio Soares de Oliveira: Dalton Trevisan (en)contra o paranismo (2009).

contracanto a Joaquim, a experiência neoparnasiana e combativa de Orfeu. 11 No terceiro número da revista, em 1948, Haroldo Maranhão divulga um texto antimodernista e antimuriliano, apropriando-se, no entanto, do célebre título de Murilo Mendes, “A poesia em pânico”, para denominar seu próprio artigo: “A ordem restabelecida do futuro não poderá ser anarquista nem passadista, tampouco futurista, contudo, será uma ordem” (MARANHÃO apud VELLOSO, 2017, p. 109). Mas – vale repetir – a poesia e a estética dos “moços velhos” de 45 entraria mesmo em pânico com o surgimento, nos anos 1950, da dissidência concretista que se apropria do modernismo de forma vigorosa, passando a dominar o campo cultural brasileiro até pelo menos os anos 1970. Ou, como escreve Italo Moriconi (2002, p. 87): “Da geração 45, deu-se melhor na história literária quem com ela rompeu: Cabral, que entrou para o time dos grandes modernos, e a vanguarda concreta, que optou pelo caminho da ruptura radical”. Em 1949, quando a Joaquim já fechou seu ciclo, a Orfeu vive seu segundo ano de existência e segue insistindo com uma política que chamaríamos hoje de fake news, por exemplo, em “Paralelo das duas gerações”, artigo de um de seus animadores, Darcy Damasceno, na edição de número 7, quando afirma: “Os primeiros anos modernistas foram aquela nulidade sabida, pela falta de força criadora, sedimentação cultural, falta de experiências de vida, potência poética” (DAMASCENO apud VELLOSO, 2017, p. 119). Qualquer leitura a posteriori minimamente honesta, hoje, ontem ou amanhã, favorável ou desfavorável, desprezaria esta colocação que, no entanto, foi característica de várias reações dos arautos de 45 à força da poesia pau-brasileira do início da década de 1920. É chamativa e sintomática, aliás, a obsessão dos “moços velhos” com relação ao movimento de 22 – obsessão que tem no artigo de Damasceno um ápice de distorção da geração modernista ao considerá-la “apática, desencantada, estagnada” (idem, p. 120). Não à toa, um dos poetas mais presentes em Orfeu é Lêdo Ivo, que contribui com poemas e ensaios, a exemplo de “Grandeza e miséria de Murilo Mendes” (n. 7), em que prefere ver o autor de Mundo enigma como um “grande poeta imperfeito, sacrificado por sua própria riqueza” (idem, p. 120).

11 Como observa Sérgio Cohn (2011, p. 60), “a revista manteve em todos os seus números o mesmo tom guerreiro. Em consequência dessa postura, os participantes da publicação ficaram marcados por sua postura esteticamente reacionária, o que inibiu o reconhecimento do valor de suas próprias obras literárias”.

Mas se “Joaquim sou eu”, Joaquim igualmente são eles, Murilo, Drummond e Bandeira, o autor do Mafuá do Malungo, publicado justamente em 1948.12 Com esse nome, como se sabe, Manuel Bandeira publica seus “versos de circunstância”, que são a meu ver de pouca circunstância, uma vez que se apresentam em singular fatura de pobreza e riqueza,13 assim como toda sua poesia da maturidade. O esperado livro onomástico – esperado ao menos pelas amigas e amigos nomeados de Bandeira – seria editado na prensa caseira do então vice-cônsul brasileiro na Catalunha, João Cabral de Melo Neto. Foram feitos 110 exemplares do livro menor do poeta menor, cuja poesia, segundo Afonso Félix de Sousa, na mesma Joaquim (n. 19, julho 1948, p. 7), seria “a própria alma brasileira desfeita em versos”. Como Bandeira esclareceria no Itinerário de Pasárgada, os malungos desse mafuá são os comparsas, velhos ou novos, crianças ou adultos, homens ou mulheres, de vida e da vida do “Manú”. No “Rondó do atribulado do Tribobó”, a voz do atribulado é, ao mesmo tempo, a do louco da aldeia e a do poeta do Castelo que, estando na Guanabara, desdobra o mapa de uma paisagem imaginária do interior de Minas Gerais pela origem familiar dos reais anfitriões: o velho amigo Rodrigo Melo Franco de Andrade, o escritorfuncionário de origem mineira que criou o Instituto do Patrimônio Histórico do Brasil em 1937. Seus filhos, então pequenos, surgem com os primeiros nomes no poema de Bandeira publicado originalmente em Joaquim: Rodrigo Luís, Joaquim Pedro e Clara. Eram os anos 1930, o “interior” ainda ficava muito perto da capital federal, e o “vale do Tribobó”, de Bandeira, não deve ser outro senão o bairro Tribobó, em São Gonçalo, a menos de trinta quilômetros do Rio, logo após Niterói. Pois, neste sítio e naquela circunstância, se passam os eventos narrados no “Rondó”, com o refrão que dá a sensação climática do périplo do poeta atribulado: “Mas era um calor danado!”, em contraste com a distensão oferecida pelo bosque e pelas redes da casa. É num dos últimos números da Joaquim, o n. 17 de março de 1948, que aparece o “Rondó do atribulado do Tribobó”, ainda inédito então. A importância dos rondós em Bandeira implica na sua dedicação a essa poesia menor, como sugere o próprio poeta no Itinerário de Pasárgada, e como

12 Retomo aqui em parte meu texto “Joaquim Bandeira: Jogos onomásticos e Nova Gnomonia”, publicado no Boletim de Pesquisa Nelic, UFSC, em 2019, em dossiê dedicado a Manuel Bandeira: https://periodicos. ufsc.br/index.php/nelic/issue/view/2916. 13 Contra o paradigma de leitura do “simples” e do “humilde” estabelecido pela crítica domesticadora da obra de Manuel Bandeira.

discutira na correspondência com Mário de Andrade.14 A breve fábula de viagem a Tribobó é composta por quatro estrofes, as duas primeiras e a última em versos predominantemente octossílabos, a terceira em versos mais longos, todas as quatro concluídas com o refrão “era um calor danado”: Era uma vez uma casa bonita e avarandada no vale do Tribobó com “várias cadeiras de lona” e “redes rangendo gostosas”, adornada, na parte interna, com “uns quadrinhos mozarlescos/ como os cocôs de Clarinha”,15 lê-se na primeira estrofe. Na segunda, surge o bosque diante da casa, “todo de madeira de lei”, em cujas sombras “era bom ficar fumando/ embalançando nas redes/ contando bobagens”. Já, na terceira estrofe, os versos se estendem na descrição material da casa moderna e confortável, equipada com itens então ainda excepcionais no campo e na cidade, como “luz elétrica gelo instalações sanitárias completas/ Água quente de serpentina a qualquer hora do dia”, além da “Comida ótima”. Em seguida, é feita a descrição humana da casa, na qual se destaca “A mulher do homem que estava passando uns tempos no sítio/ era uma senhora distintíssima”: aqui Rodrigo Melo e Franco de Andrade e a esposa Graciema Prates de Sá não são nomeados, ao contrário dos três filhos, delatando a paternidade: “Rodrigo Luís, que quando se referia aos planetas dizia ‘o Vênus’, ‘o Mártir’, etc.; Joaquim Pedro bonitinho pra burro mas muito encabulado; e Clarinha, a mesma de cujos cocôs já falei atrás” ... “O atribulado achava tudo isso delicioso familiar bucólico repousante/ Mas era um calor danado!”. Na última estrofe é descrito o percurso final desatado por um incidente, provocando “pânico tremendo/ no sítio do Tribobó”: falta água na véspera da partida e o atribulado “embarafusta” para a cidade. No caminho de volta se desloca “sacudido num fordinho” por várias localidades até Niterói, onde o turista de fim de semana toma a barca rumo ao Rio. Nesta barca ocorre um encontro imprevisto: “por cúmulo do azar/ surgiu o Martins errado!”, em versos que são sucedidos pelos quatro finais, os quais aparecem entre parênteses e reforçam a impressão de um desfecho apressado

14 Cf. Luciana Di Leone, que reflete sobre o gênero rondó, em “Poesia de roda. Notas a partir do convívio poético entre Alfonso Reyes e Manuel Bandeira” (2016). 15 Na crônica “Nova Gnomonia”, de outubro de 1931, Bandeira define o qualificativo atribuído no poema aos quadros nas paredes da casa: o “mozarlesco” em questão não é referência ao compositor alemão e, sim, ao obscuro professor cearense Francisco Mozart do Rego Monteiro, cuja pretensão, ingenuidade e inépcia são comparadas a excrementos infantis no poema. Em outras três categorias caberia toda a humanidade patriarcal na burla gnomônica: os membros do “exército do Pará” (empreendedores predadores), os “dantas” (modestos e nobres) e os “kernianos” (bons, mas irascíveis). Em quarto lugar vêm, então, os pretensiosos, ingênuos e ineptos “mozarlescos”, como todo poeta, segundo o cronista.

em mais de um sentido: “(Não havia possibilidade de evasão/ Nascer de novo não adiantava/ Todas as agências postais estavam fechadas/ Fazia um calor danado!)”. Pois o que chama a atenção na conclusão dedicada ao “Martins errado” (fosse quem fosse), que a acelera e extravia ao mesmo tempo, é que dois dos versos finais do “Rondó do atribulado do Tribobó” são autoplágios, retirados de dois noturnos de Libertinagem, o “Noturno da parada Amorim” – em que se lê “Todas as agências postais estavam fechadas” no último verso – e o “Noturno da Lapa”, em que se lê, na quarta estrofe: “Nascer de novo também não adiantava”. Resulta que o “Rondó do atribulado do Tribobó” foi estampado no centro da edição 17 da Joaquim, página 11, seguido do relato “Terra”, de Dalton Trevisan, e de um poema de Lêdo Ivo, “A contemplação”. Observando essa sequência percebe-se bem a função da revista, que era a de promover nacionalmente o seu diretor vitalício, o que se deu tanto em forma de um ou dois textos autorais por edição, junto com resenhas elogiosas de sua prosa nascente e anúncios da publicação dos primeiros livros, Sonata ao luar (1945) e Sete anos de pastor (1948), depois renegados. Mas aquela sequência de três publicações na Joaquim manifesta outra coisa mais instigante e reveladora do estado-da-arte da época do pós-guerra: a tensão permanente entre o vanguardismo de 22 – risonho, leve e frívolo – e a Geração de 45 – solene, pesada e reativa. Joaquim, alta e magra, moderna e modernista, eclética e esquizo, nunca passava das vinte páginas e tinha mais ou menos um terço dos seus grandes espaços dedicados a reclames publicitários (como se dizia). Navegava nessa contradição entre burgueses e antiburgueses de Curitiba, paranistas e antiparanistas (a meia dúzia de “novíssimos” locais), entre o modernismo de 22 e o antimodernismo de 45, colocando-se sempre nesse precário fio da navalha, ousada e contraditória. Publicou muita poesia brasileira e alguma poesia latino-americana, além de poesia traduzida – Eliot e Rilke, por exemplo – ou mesmo no original – como no caso de um poema de Lorca e outro de Tzara. Assim, heterogênea e paradoxal, Joaquim se caracterizou pela colagem de textos breves em colunas fixas como “Revista” e “História Contemporânea”, e pela miscelânea de textos e imagens em claro-escuro sobre páginas amplas e limpas para os padrões da época, esculpidas artesanalmente por Poty e Dalton na oficina da rua Emiliano Perneta. A tensão entre 22 e 45 aparece, por exemplo, à página 4 do nº 18, através da reprodução de um certo “Manifesto dos Novíssimos”, dentro da melhor tradição da burla oswaldiana, que se

autodenominavam “Geração do Primeiro Semestre de 1948”, e, desse modo, expunham o embate entre Domingos Carvalho da Silva e o próprio Oswald de Andrade. Ali os “novíssimos” se mostravam insatisfeitos com “as duas soluções”: contra os “clichês” de 22 e contra o “limitado romantismo e parnasianismo reacionário” de Carvalho da Silva. Mas, em se tratando desse caleidoscópio onomástico de artistas e intelectuais afrancesados, aparece igualmente Otto Maria Carpeaux, colaborador desde os primeiros números, empilhando regras sobre a “crítica literária” (a exemplo de Wilson Martins), sendo finalmente, e surpreendentemente, banido da revista na última edição, após a crítica ácida e anônima da invectiva “500 ensaios”, em que Carpeaux é visto como um erudito pretensioso que desconhece por completo o Brasil. Sua autoria seria mais tarde atribuída não a Dalton Trevisan e, sim, a outro colaborador da revista, Temístocles Linhares, mas foi seu diretor quem pagou a conta: o crítico de origem austríaca se vingaria com uma resenha negativa do livro de estreia de Dalton, Novelas nada exemplares, que, segundo Carpeaux, era composto de relatos e personagens mal-acabados.16 Enfim, Dalton Trevisan é Joaquim, Joaquim é Trevisan, mas também Bandeira, também Andrade, também Martins (certo ou errado), também Ivo, também Paes, também Domingos e demais dias da semana. Assim, não surpreende que o “Rondó do atribulado do Tribobó” volte à baila no número 19 de Joaquim, de julho de 1948, só que agora para ser contestado de forma contundente. A edição é aberta com a seção “Revista”, na qual aparece uma curiosa admoestação do “espírito de 22”: o objeto da crítica francamente negativa é justamente o rondó escolhido e enviado por Bandeira para publicar de forma inédita na revista, destacado apenas dois números antes. O poeta mineiro Edmur Fonseca é quem assina o ataque ao rondó de Bandeira no primeiro texto da seção, cujo título é “E agora, José?”, o lema drummondiano dos interlocutores mineiros da revista Edifício, de Belo Horizonte. Ainda que também sobrem farpas para Drummond, quando Fonseca ousa afirmar, de forma irônica e em tom desafiador, o que segue:

Aparecem as interrogações, a insatisfação e o abismo que nos separa de 22 e tudo nos leva a perguntar o que se poderia dizer, aqui, do sorriso desencorajado e humor provinciano de Carlos Drummond de Andrade;

16 A crítica impiedosa de Carpeaux, “Pretensão sem surpresa”, publicada logo após o lançamento do livro, está disponível para leitura na internet. “As histórias curtas do Sr. Dalton Trevisan não surpreendem”, concluiria o artigo em resposta direta aos “500 ensaios”.

de Murilo Mendes e suas malcuidadas trombetas de Jericó; de Oswald de Andrade e seu cabotinismo caboclo; de Jorge de Lima e tantos, tantos senhores do poema piada, poetas do pau-brasil, queiram ou não, mestres do verso sobre acontecimentos, da poesia feita com o corpo, a gota de bile e as caretas de gozo e dor no escuro, rapsodos sentimentais, dramáticos, invocativos. Incapazes já de superar o realizado, repetem-se em brincadeiras inconsequentes, muito gostosas, muito líricas, muito simpáticas, como o “Rondó do atribulado do Tribobó” que até parece a mameluca tão maluca da maloca do próprio Manuel Bandeira.17

Dos “despojos de 22”, o texto propõe um único e previsível resgate, o da poesia de Mário de Andrade, “incompreendida e silenciada por uma grande maioria”. No texto seguinte da mesma seção “Revista”, assinado por Valdemar Cavalcanti, a “nova geração” digna do nome seria composta por Lêdo Ivo, Maria Julieta Drummond de Andrade, Wilson Martins e Hélio Pellegrino... Além do elogio das revistas paulistas e mineiras, Fonseca conclui o breve texto com um parágrafo dedicado à revista paranaense: “O grupo de Joaquim, (...) esse transformou-se num caso nacional, destinado, talvez, a ser lembrado amanhã como hoje aludimos ao grupo de Cataguazes [revista Verde, 1928-29], quando focalizamos a evolução histórica do pensamento modernista”. Já o texto seguinte fazia o elogio da nova geração do Pará através da revista Encontro, cujos diretores eram Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Mário Faustino.

Modernismo e post-modernismo

De modo que era moderna e simultaneamente post-moderna a revista Joaquim, uma publicação culta e saudável da segunda metade dos anos 1940, tempo de angústia e de esperança no mundo e na província de Curitiba. Tão moderna, burguesa, culta e saudável que, logo após a capa cor de laranja do primeiro número com suja gravura de Poty (que permanece nos primeiros sete números em cores diferentes), vemos na página dois reclames publicitários que dão conta (1) do Matte Leão e do Chimarrão Cysne, o “preferido em todos continentes”; e (2) da “ordem – higiene – distinção” do “ponto de reunião das famílias elegantes” da capital paranaense, a Confeitaria Tinguí, que convida “a elite paranista” para uma visita. Do início ao fim da trajetória da revista,

17 FONSECA, Edmur. “E agora, José”. Joaquim, n. 19, julho 1948, p. 5.

esse tipo de anúncio vai ocupar cerca de um terço de suas páginas, a começar pela Fábrica de Louças, Refratário e Vidro João Evaristo Trevisan, presente com uma página inteira no final de todos os 21 números: prova do permanente apoio paterno ao projeto. As artes gráficas e a publicidade, aliás, têm forte tradição no estado do Paraná, e o anúncio de uma joalheria no número 4, de setembro de 1946, já investia, sem o saber, na melhor linhagem da poesia visual brasileira, antes mesmo do advento do concretismo. Como em 22, a elite empresarial pagava a aventura dos jovens neovanguardistas Dalton e Poty com verba publicitária e design sofisticado. Constelação de signos, raios laser no céu da cidade, palavras viajando sobre fundo escuro, a gravura que se projeta para fora da página vem assinada simplesmente por “Joaquim” e é reproduzida em diferentes cores nos números seguintes (Figura 1):

Figura 1. Joaquim, n. 4, setembro de 1946.

Estamos de volta para o futuro nas asas da Joaquim: desde o primeiro texto da história da revista, “Manifesto para não ser lido.” (n. 1, p. 3), se propõe um lance de dados em forma de colagem de citações que resulta num inovador manifesto pela negativa: não é para ser lido e não se faz ouvir senão pela voz de outros – uma frase de Rilke escolhida a dedo, seguida de trechos de Dewey, Gide, Maiakóvski, Milliet, Carpeaux e Verlaine. A frase de Rilke diz: “Os versos são experiências e é preciso ter vivido muito para escrever um só verso”.18 Sob essa insígnia poética inaugural, a revista viverá seus dois anos e meio de existência, nos quais os escritos do autor das Cartas a um jovem poeta ecoarão permanentemente – com as Elegias de Duíno na versão de Dora Ferreira da Silva no número 7 (dez. 46) – e mesmo além: “Para escrever o menor dos contos, a vida inteira é curta”, dirá e repetirá Dalton Trevisan de diferentes formas vida afora. De modo que são três as máximas que informam a poética da revista desde o seu não-manifesto inaugural: além daquela de Rilke, uma de Maiakóvski – “eu me domo, o pé sobre a garganta da minha própria canção” – e uma de Verlaine, que o conclui: “Vamos, poetas que somos, amemo-nos uns aos outros”. Entre amor e ódio, 45 e 22, poesia e prosa, Joaquim anda na corda bamba – rato, ouriço, inseto, orquídea. Quanto a Drummond, ele estreia de fato, já no primeiro número de Joaquim, ainda que de modo discreto: um fragmento das Confissões de Minas (1944) sem referência bibliográfica é incluída na seção “História Contemporânea”, colagem no estilo do não-manifesto inaugural. Trata-se do trecho final do texto que no livro leva o título de “Natal USA, 1931”. Drummond questionava ali che cos’è la poesia a partir do seguinte “memento do poeta: fazer todos os anos um poema sobre o Natal” (p. 208). Ao concluir o texto, anota: “Mas nenhum poema superior ao telegrama de Nova York, cujo autor permanecerá anônimo pelos séculos; telegrama que o poeta não compôs, não poderia compor”. Arrola nele, então, uma série de acidentes e mortes ocorridas durante as festas do Natal nos Estados Unidos naquele ano, postulando a morte do autor diante dos desastres cotidianos através do poeta desconhecido e do telegrafista do acaso.19 É significativo que essa mesma seção de Joaquim conte, em sua inauguração, com forte presença “modernista”, começando com um trecho de Oswald de Andrade sobre teatro e ópera da vanguarda francesa, e

18 O mesmo Rilke, que mais tarde também iluminaria o projeto transcriativo de Augusto de Campos: o poeta paulista reeditou, em 2013, Coisas e anjos de Rilke, com 130 poemas traduzidos. 19Na reedição das Confissões de Minas, feita pela Cosac Naify, em 2011, o texto aparece às páginas 208 e 209.

concluindo com um trecho de Sérgio Milliet (o chamado “homem-ponte” da vida literária nacional), intitulado justamente “Modernismo”, e em diálogo justamente com Oswald a defender principalmente, como de praxe, a “pesquisa de estilo” do movimento, concluindo com “a troca do fado pelo samba no ritmo da frase” (n. 1, p. 9). Conclusão-contradição: é o modernismo que dá o tom desde o primeiro número da revista, mesclado a um desfile da nova poesia imediatamente “pós-modernista”, o que o texto “Post-Modernismo”, de José Paulo Paes, lá na Joaquim, número 18, p. 5, irá corroborar amplamente. Vamos a ele e a ela, a Zé Paulo aos 22 anos (ele que também foi um intelectual-dobradiça entre diversas tribos) e à Joaquim 18 (com direito à bela capa preta e branca de Fayga Ostrower). No breve artigo em quatro partes, a própria ideia de geração é questionada: falando, no entanto, na segunda pessoa do plural, ou seja, em nome da “nova poesia”, observa, na primeira parte, que “não temos programa”, “não temos sensibilidade comum”, “valemo-nos (...) da liberdade de pesquisa conquistada pelos modernistas”. Parte dois: como não poderia deixar de ser, surge Drummond como “influência decisiva sobre os post-modernistas”, por duas razões: “equilíbrio orgânico entre forma e conteúdo” e “solução ao problema da obrigação moral do artista frente aos conflitos sociais da época”. Parte três: Murilo Mendes, com “razões equivalentes às anteriores” somadas a “sua riqueza em símbolos, mistérios, transfusão do mítico no real” e a visita de seus versos à “tragédia guerreira do século, ligando indissoluvelmente o poeta à realidade temporal”. Cabe lembrar aqui que estamos no imediato pósguerra e que ressoam no breve artigo as recentes bombas poéticas de A rosa do povo e Mundo enigma. Quarta e última parte: é sintomático que Paes invoque criticamente nela um “cajado imperioso de certos pastores tradicionais”, além de considerar não menos fundamental “um processo crítico e autocrítico, confrontando severamente nossas obras com as precedentes”. Finalmente, filho de Abaporu que é, colocava os dois pés no chão: “Nossa obra precisa ter outras raízes mergulhadas na terra, além de simples malabarismos folclóricos.” Oferece, então, dois exemplos nos poetas baianos Sosígenes Costa e Jacinta Passos. Como que respondendo simultaneamente à demanda do artigo de Paes, a antologia de poemas (páginas 8 e 9) do mesmo número inclui “A história dos meus cabelos”, de Sosígenes, mas fica devendo em relação a Jacinta. Há também sonetos de Lêdo Ivo e de Afonso Félix de Sousa, entre outros nomes menos cotados.

Não menos sintomático é que, na página anterior ao artigo de José Paulo Paes, a Joaquim 18 figure aquele “Manifesto dos novíssimos”, antes mencionado, com nomes pouco conhecidos de jovens de São Paulo que se autoproclamaram, com sarcasmo, a “geração do 1º semestre de 1948”, rejeitando tanto 22 quanto 45. Como diz o novíssimo José Régio, em seu “Cântico negro”: “Não sei por onde vou,∕ não sei para onde vou,∕ – sei que não vou por aí!”... Ressoando anacronicamente o “eu vou”, de “Alegria, alegria”, sem lenço e sem documento, desenhava-se, nesse gesto, uma ruptura geral que logo se consolidaria através da dissidência concretista.

Epílogo (da revolução modernista)

A poesia é dom que se distribui, lembra Drummond em “Morte de Federico García Lorca”, texto publicado em 1937, no Boletim de Ariel (logo recolhido nas Confissões de Minas), que conclui: “A poesia está viva e sua luz, de tão fulgurante, algumas vezes torna-se incômoda.” (DRUMMOND, 2011, p. 101). Pois, no mesmo número 7 de Joaquim em que se estampam as Elegias de Duíno, na tradução de Dora Ferreira da Silva, o poeta mineiro publica “A Federico García Lorca”, homenagem “em setembro de 1946, décimo aniversário de sua morte”, que logo será parte dos Novos poemas (1948). Também em 1946, Drummond pronuncia a conferência “García Lorca e a cultura espanhola”, enquanto presidia justamente o Ateneu García Lorca, de quem também foi tradutor. E apenas dois números depois – o número 9 de março de 1947 – já retornava o padrinho da Joaquim com uma intervenção especial: num lance latino-americanista que antecipa a mudança da filha Maria Julieta para a Argentina em 1949, a qual resultaria no aprofundamento de sua relação com a cultura daquele país, faz publicar o “Manifesto Invencionista” (p. 12) assinado por um coletivo de artistas argentinos encabeçado por Edgar Bayley. Além disso, Drummond acrescenta um texto crítico de sua lavra (p. 13) em que a proposta antifigurativa do grupo de arte concreta – para o qual era necessário “exaltar la opticidad” e “ni buscar ni encontrar: inventar” – é questionado por ingênuo e limitado, além de reproduzir escritos de Kandinski, de quem o invencionismo do Prata seria mera continuação. Temos aí, portanto, outra mostra de que a Joaquim, se não era uma genuína “revista de invenção”, na linhagem do concretismo por vir – e que o próprio Drummond prenuncia

com a iniciativa de introduzir o debate da arte concreta no Brasil –, era, no mínimo, um antenado veículo das novidades plásticas e literárias não apenas de origem europeia mas igualmente latino-americana. Tudo isto compõe o nutrido número 9, que inclui o poema “Nostalgia”, de “um jovem poeta equatoriano”, Galo René Pérez, logo após a abertura da edição com o manifesto “A geração dos vinte anos na ilha”, sendo esta “ilha” a província de Curitiba e o estado do Paraná, onde a revolução modernista foi aquela que “não houve”, sufocada pela “arte paranista”, e que a Joaquim tratará por sua vez de sufocar. Já o texto que abre o penúltimo número da revista, com o título de “Novíssimos”, é do Drummond mais sarcástico que se possa imaginar, em sua derradeira contribuição à revista. Reflete, claro, o assunto que comove e chacoalha a vida literária nacional do momento e os últimos números da Joaquim: o “congresso de poesia” da “geração da guerra” volta a ocupar páginas e páginas do número 20, de outubro de 1948. Drummond invoca em ácido e breve texto de quatro parágrafos a volta das declamadoras “ao cartaz” juntamente com o que seria a volta da emoção e dos romances sentimentais aos “grandes diários”. Bombástica conclusão: “É esta a primeira conquista séria da poesia dos novíssimos” (com destaque no original). Denunciando uma mera disputa de poder no campo literário, os “velhotes” modernistas, os “párias do verso livre, jamais declamáveis”, concederiam de bom grado o posto da poesia ao novo passadismo do “bom soneto de chave de ouro” e de Coelho Neto enquanto “autor muito cotado”, já que “este é o ‘novo’ que se oferece hoje em substituição ao ‘antigo’, também chamado de modernista”:

Corolário inevitável desse regresso ao autêntico lirismo é o reinício promissor da declamação nos teatros, que logo será seguido pela declamação nos salões. (...) Pouco falta para este epílogo da revolução modernista. As salas já varrem de novo o chão, e Coelho Neto é autor muito cotado. Quanto a nós, remanescentes da “escola” vencida, os párias do verso livre, jamais declamáveis – tempo é de reconhecer a derrota. Eia, pois, irmãos! amarremos a trouxa e, à sorrelfa, piremos. (p. 5).

E assim foi feito, isto é, os irmãos modernistas piraram – vazaram, diríamos hoje – e junto com eles pirou Dalton Trevisan, como o demonstram as cartas enviadas a Drummond nos anos 1940 e 50 e sua própria trajetória poética anti-45 para dar vazão a “toda poesia de Joaquim”, que resultaria na

“mais ágil, mais malandra, mais louca” prosa de ficção do Brasil, segundo ninguém menos que Paulo Leminski.20

Referências

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REVISTA Joaquim, Curitiba, n. 1-21, 1946-1948.

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TREVISAN, Dalton. Beijo na nuca. Rio de Janeiro: Record, 2014.

VELLOSO, Ana Paula Mayer. Neomodernistas de 45: uma querela de gerações. Tese de doutorado. Programa de Doutorado em Ciências Sociais, PUC-SP, 2017.

20 As referidas cartas de Dalton Trevisan a Drummond encontram-se no arquivo da Fundação Casa de Rui

Barbosa (RJ). Quanto à revisão de Leminski sobre a obra de Dalton, aparece no texto “Disparates de Duarte” publicado poucos meses depois de sua morte na revista Nicolau, Curitiba, n. 4, 1990, p. 10). Agradeço a

Rosana Clesar pela indicação desse texto.

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