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Mirhiane Mendes de Abreu

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Sobre os autores

Sobre os autores

IMAGENS DE PORTUGAL E DINÂMICAS URBANAS NAS REVISTAS MODERNISTAS BRASILEIRAS*

/ MIRHIANE MENDES DE ABREU

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Considerações preliminares

As imagens de Portugal no modernismo brasileiro, por se inscreverem sob o signo da plurivalência de sentidos, enfeixou elementos contraditórios e mergulhou a atividade crítica e criativa daqueles anos em programas que exigiam escolhas e cujas formas de ação se processaram nos periódicos literários. Esta afirmação assinala a perspectiva deste ensaio: as revistas modernistas foram meios de comunicação fundidos ao tecido cultural de uma cidade, devem ser lidas como um gênero que sancionou a instalação de novos trajetos abertos pelo convívio com as práticas de vanguarda e, assim como ocorreu ao redor do mundo, prosperaram ao longo de todo Brasil, veiculando as tópicas da novidade e as estratégias que definiam as formas

* Este texto participa da minha pesquisa em andamento intitulada Portugal brasileiro – figurações do universo português no pensamento de Mário de Andrade, que recebeu apoio da Fapesp e do CNPq. Com algumas modificações, o conteúdo aqui exposto foi publicado originalmente em: ABREU, Mirhiane M.

“Modernismo, revistas brasileiras e Portugal. Tramas de um complexo tecido cultural”. In: MARQUES,

Ricardo. Tradição e vanguarda: revistas literárias do Modernismo (1920-1926). Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2020.

de convivência e/ou de conflito entre os diversos setores do campo cultural. A importância dessas publicações deve-se à repercussão delas no terreno intelectual e, no tocante à imagem de Portugal nelas difundida, pretendo aqui compreendê-la como um dos profícuos temas de enunciação poéticocrítica a par dos processos da modernização da cultura e cuja expressão se efetuou no caráter versátil desses veículos. O papel desempenhado pelo periodismo literário será examinado, neste artigo, em títulos circunscritos à década de 1920 e produzidos em algumas cidades brasileiras. Inicialmente, a Klaxon (São Paulo, 1922-1923) e a Festa (Rio de Janeiro, 1927-1929; 1934-1935) serão examinadas como dois paradigmas de novas propostas que elaboraram interpretações distintas do mundo circundante. A primeira delas empregou a estética do barulho e da novidade com o propósito de inovar a produção cultural do país. A segunda identificou-se com a noção de continuidade, construindo um paralelo entre a ideia de nação e de universalidade. A repercussão desses dois títulos não pode ser avaliada pela simples medida quantitativa de seus números, mas deve levar em consideração o impacto que produziram no terreno intelectual do país e pela maneira como enfrentaram os dilemas então vividos, dentre os quais se inclui a relação contraditória com o universo português. Encaminhada assim a questão, Klaxon e Festa são observadas aqui como dois modelos de apreensão simbólica da modernidade, cujas diretrizes sublinharam a diversidade de programas do projeto modernista em curso. A despeito de suas singularidades, ambaspossuem um núcleo de significados comuns e expuseram, desde os seus respectivos primeiros números, algumas das tópicas acolhidas e reproduzidas nos demais periódicos do país, dentre as quais destacam-se a concepção sobre arte moderna; a relação com o passado cultural; a questão da modalidade brasileira da língua portuguesa; o conceito de cosmopolitismo e universalidade no contexto das reflexões sobre as raízes nacionais; e o delineamento da funcionalidade de um projeto gráfico inovador, como síntese imagética das propostas de cada revista. Diante disso, a segunda seção deste artigo pretende observar a força das concretizações desses dois títulos, articulando seus aspectos às outras iniciativas periódicas do mesmo tempo de produção, postas em circulação numa gama de cidades brasileiras, notadamente Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador, sem deixar de mencionar algumas realizações no próprio eixo Rio-São Paulo. Outras cidades e capitais do Brasil produziram seus periódicos, mas o recorte do corpus deseja apontar o papel dessas revistas como produtoras

de bens simbólicos, em cujas dinâmicas de sedimentação os pressupostos de continuidade ou de renovação mais explícita abrigam o convívio com o conteúdo cultural português, quer como parte inerente à história brasileira, quer como contemporaneidade que se desejava conhecer. Trata-se, em síntese, de um panorama dos periódicos brasileiros considerando neles a experiência com a modernidade e com as imagens de Portugal identificadas em suas edições. Contudo, não se pretende aqui construir um inventário de revistas e colaboradores para mostrar, nos fragmentos da periférica modernidade brasileira, as tensões e proximidades com a antiga metrópole. A questão é densa, enfeixa elementos contraditórios e não se unifica numa linha hegemônica. Proponho ler Klaxon e Festa como dois marcos discursivos fortemente inscritos pelas propostas da vida urbana da época.1 No espaço citadino, tributário de um sistema de práticas da modernidade, encarava-se a publicação periódica como mecanismo de sociabilidade intelectual, como aplicação técnica e como veículo capaz de combinar o desejo de legitimação e atualização cultural do país. Nessa experiência, é preciso levar em consideração, ao lado dos dois títulos que compõem o corpus central deste estudo, periódicos como A revista (Belo Horizonte, 1925); Verde (Cataguases, 1928-1929); Madrugada (Porto Alegre, 1926), Arco e flexa2 (Salvador, 1928), bem como Terra de Sol (Rio de Janeiro, 1924) e Revista de antropofagia (São Paulo, 1928-1929). O corpus reunido aqui suscita a reflexão sobre os pares opositivos centro/periferia e nacional/estrangeiro, que são decisivos, por duas razões, para o entendimento da relação com Portugal na propagação do movimento modernista brasileiro. Primeiramente porque, na publicação de revistas, reside o estilo de vida de vanguarda, organizado como conduta de ação. Em segundo lugar, porque, ainda que as revistas não absorvessem a efervescência do mesmo

1 É consensual, nos estudos especializados em periódicos modernistas brasileiros, incluir Festa no rol de títulos que enfrentaram a noção de moderno, ainda que diferisse da dicção das revistas produzidas pelo modernismo de São Paulo. Esse é o ponto de vista abraçado por Maria Eugênia Boaventura em seu exame da Revista de antropofagia. Em A vanguarda antropofágica, a estudiosa percorreu de forma sistemática o conceito de “vanguarda”, a fim de dirimir questões obscuras do modernismo brasileiro, notadamente quanto à contribuição singular da intelectualidade brasileira ao desenvolvimento da vanguarda histórica, e é no contexto de uma distinção entre “modernismo de intenção” e de “vanguarda” que a autora insere

Festa, produção afinada com essas intenções e portadora de projeto gráfico arrojado (BOAVENTURA, 1985). Já Tania de Luca, em Leituras, projetos e (re)vistas do Brasil, compreende Festa como uma revista desafiadora para os padrões da época, por suas posições solidamente apresentadas como modernas, embora rejeitassem a perspectiva da ruptura (LUCA, 2011). 2 O grupo envolvido com a revista Arco e flexa, após longo debate, optou por grafá-la com X.

modo, repousa nelas a organização de ideias condensadas pelo ímpeto de um movimento definido pelo nome de “modernismo”. Esse dado quer chamar a atenção para o princípio segundo o qual os parâmetros organizados pelos grupos que pensaram e produziram os antecedentes e as consequências da Semana de Arte Moderna(BRITO, 1978) se ramificaram de forma muito plural pelo país, em virtude da própria complexidade cultural brasileira, em si mesma muito diversificada. Em comum, porém, a intelectualidade procurava articular saberes locais com saberes universais, fosse no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Belo Horizonte ou Porto Alegre. Seja como for, a tradição crítica encarou a cidade de São Paulo como paradigmática para se compreender a produção cultural que se deseja nova e afinada aos conceitos de modernidade e modernismo. Em “Moderno e modernista na literatura brasileira”, Alfredo Bosi esclarece o que seria, da sua perspectiva, a “condição paulista” do modernismo, isto é, “o desejo do novo e do refinado, ainda que chocantemente novo e refinado, sentimento menos acessível a grupos saídos de outras áreas, naquela altura do processo” (BOSI, 1988, p. 115). Mais adiante, no mesmo ensaio, o crítico emprega termos como “ruptura paulista”, porque a cidade seria o “espaço da modernidade” (BOSI, 1988, p. 118). É verdade que São Paulo encontrava-se na ponta de lança da formação de um parque industrial e possuía condições econômicas para incidir sobre os sistemas culturais vigentes, através, por exemplo, de editoras, que moviam, sob o signo do novo, o curso da modernização. No entanto, mais recentemente, olhares acadêmicos têm problematizado a centralidade que os modernistas paulistas teriam atribuído a eles próprios na construção de uma vanguarda intelectual hegemônica. Dentre outros exemplos incontornáveis, encontram-se os estudos empreendidos por Ângela de Castro Gomes, cujos objetos de investigação são periódicos e livros de memória, através dos quais a historiadora identificou distintas formulações político-culturais concebidas em nome do projeto de modernização então em pauta (GOMES, 1999). Apontando a insuficiência de dicotomias rígidas, a autora entende que o Rio de Janeiro se encontrava “no centro da própria polêmica, não só por ser o polo de atração e civilização de toda nação como, por isso mesmo, por encarnar os estigmas do ‘passado e atraso’ a serem vencidos” (GOMES, 1999, p. 13). A ideia de periferia cultural e estética repousa sobre paradoxos. Rio de Janeiro e São Paulo estavam em posições estratégicas e eram os lugares

receptores de novidades, para onde desaguavam e de onde se irradiavam as questões polêmicas e a problematização dos modos de ser e agir. Na dinâmica urbana, em que, conforme o ângulo de visão, os mesmos espaços podem ser simultaneamente centro e margem, a nova sensibilidade vai construindo seus modelos culturais, cuja funcionalidade e cuja força simbólica decorrem de formas de sociabilidade, tais como conferências, viagens individuais ou em caravana, troca de cartas e produção de revistas, práticas que são hoje rastros da dimensão de como artistas e intelectuais experimentavam a celeridade das transformações vividas em diversas cidades. Examinar como São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Belo Horizonte e Salvador absorveram essas práticas, adequando-as às demandas estéticas e culturais próprias, possibilitanos revolver, por outra ótica, o movimento modernista brasileiro, que se sedimentou pressupondo a cultura portuguesa na dinâmica do debate.

Klaxon e Festa: dimensionando os novos projetos culturais

A linguagem jornalística marcou, no registro do periódico literário, as produções culturais brasileiras, a exemplo do emprego de frases de efeito, linguagens rápidas e ilustrações. Esses procedimentos do jornalismo ensejaram a assimilação das formas de pensar e se comunicar dos ambientes centrais e, seguindo o “rastro da técnica” (SÜSSEKIND, 1987, p. 29), moldaram a “intercomunicação e complementaridade entre os universos artísticos” (VELLOSO, 1996, p. 24). Assim, se lançou a Klaxon, ainda em 1922, logo após a Semana de Arte Moderna, reunindo ao seu redor nomes expressivos do modernismo brasileiro, tais como Mário de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida, Rubens Borba de Morais, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet e Manuel Bandeira. Do ponto de vista da organização de propostas de modernidade, a revista, publicada em São Paulo, foi o esforço concreto do grupo para sistematizar os ideais estéticos ainda confusos no ar. Com apenas nove números publicados entre maio de 1922 e janeiro de 1923, foi um periódico decisivo para a construção e divulgação do ideário modernista, cujas linhas-mestras eram expostas com clareza já no primeiro editorial. No Rio de Janeiro, agruparam-se em Festa os nomes de Cecília Meireles e seu marido, o português Fernando Correia Dias, bem como o dos intelectuais brasileiros Tasso da Silveira, Andrade Muricy, Adelino Magalhães, Adonias Filho, entre outros artistas afinados com uma abordagem metafísica e

espiritualista da arte e com uma “realidade total do espírito”, base para se ultrapassar o regional e tocar o universal (RÜCKER, 2005, p. 26). Fundada no Rio de Janeiro por Tasso da Silveira e Andrade Muricy em 1º de agosto de 1927, a revista dividiu-se em duas fases: de agosto de 1927 a janeiro de 1929, quando se subintitulava “Mensário de pensamento e arte”; e de julho de 1934 a agosto de 1935, com o subtítulo “Revista de arte e pensamento”. Textos como “A modernidade universalista da arte”, de Tasso da Silveira, elucidam a ideia de universalidade da arte. Ao mesmo tempo, é parte inerente ao escopo do periódico estudar e divulgar a produção brasileira. Em seu terceiro número, publica-se uma significativa homenagem a José de Alencar, com estudos, poemas dedicados ao autor e sua obra, comentários sobre a tradução de Iracema para o francês e uma reflexão sobre a arte nacional. Já o número 6 trata do livro Estrela de absinto, de Oswald de Andrade. Do ponto de vista da recepção da revista entre os contemporâneos, além de menções às apreciações dos volumes no exterior e ao longo do país, o número 6, de 1927, traz um conjunto de apreciações, entre as quais destacam-se as resenhas de Mário de Andrade, com o texto “O grupo de Festa e sua significação”, e de Tristão de Ataíde, “Gente de amanhã”. No caso específico do escritor paulista, o fragmento abaixo nos dá mostras de que Festa repercutiu entre os membros da Klaxon:

Porque Festa, com suas letras minúsculas, bancando maiúsculas em nomes e títulos, com suas disposições tipográficas divertidas, com suas linhas sintéticas e telegráficas, com seus versos livres, com suas afirmativas desassombradas a respeito de Bilac e outros ídolos, se Festa aparecesse de supetão no Brasil, antes de Klaxon, de Estética (tão livre que acolheu gente de Festa), de Terra roxa e de Revista, de Minas, havia de causar escândalo e tomar pancadaria na certa. (Festa, n. 6, 1927, p. 12).

Foi assim, expondo a efervescência das revistas modernistas pelo Brasil, que Mário de Andrade registra a chegada de Festa ao contexto editorial: com o projeto gráfico moderno, linhas “sintéticas e telegráficas” e versos livres, Festa seguiria o caminho aberto por Klaxon sem enfrentar o escândalo provocado pela revista paulista porque, da perspectiva de Mário de Andrade, o terreno da incompreensão teria sido aberto e decifrado pelos leitores. Importa matizar essa afirmativa, pois, se o formato inovador de um

periódico literário havia sido moldado pela revista de São Paulo, uma das chaves identitárias do grupo reunido ao redor de Festa não era a estratégia do barulho, nem mesmo a radical ruptura com o passado. Se Klaxon ofereceu as diretrizes da experimentação da linguagem moderna por meio de editoriais-manifestos, Festa permanece na expectativa programática que articula um projeto estético-político, em contraste explícito com a produção paulista. Uma e outra expõem em seus respectivos primeiros editoriais suas buscas e questões, que correspondem a distintos significados sobre o papel desempenhado pelas revistas:

E KLAXON não se queixará jamais de ser incompreendido pelo Brasil. O Brasil é que deverá se esforçar para compreender KLAXON. [...] KLAXON não é exclusivista. Apesar disso jamais publicará inéditos maus de bons escritores já mortos. KLAXON não é futurista. KLAXON é klaxista. (Klaxon, n. 1, 1922, p. 2).

Nas declarações militantes do que queria e não queria, Klaxon constrói o enredo do combate, que seguirá orientado pelos princípios da atualidade e da internacionalidade da revista, marcada especialmente pelas colaborações de autores estrangeiros na língua original e/ou pelas traduções. Festa também expôs seus princípios no primeiro editorial, assinado por Tasso da Silveira:

Nós temos uma visão clara e certa desta hora. Sabemos que é de tumulto e incerteza. E de confusão de valores. E de vitória do arrivismo. E de graves ameaças para o homem. Mas sabemos, também, que não é esta a primeira hora de Agonia e inquietude que a humanidade vive. [...] Nós temos a compreensão nítida deste momento. Deste momento no mundo e deste momento no Brasil. Vemos, lá fora e aqui dentro, o rodopio dos sentimentos em torvelinho trágico. (Festa, n. 1, 1927, p. 1).

De um lado, na capital paulista, Klaxon foi constituída como porta-voz do grupo da Semana de Arte Moderna, anunciada sob o signo da novidade

e absorvendo a linguagem da publicidade e propaganda;3 linguagem esta captada desde a produção da capa, idealizada por Guilherme de Almeida (LARA, 1972). De outro, na capital do Rio de Janeiro, a imagem da vida contemporânea (fortemente reiterada pelos termos “desta hora”; “deste momento” e variantes) estaria assentada sobre os índices do “tumulto e incerteza”, os quais fariam os que se esqueceram de Deus pensarem que tudo está perdido. Da perspectiva assumidamente cristã de Festa, caberia ao artista cantar a “realidade total”, a “do homem e a de Deus”. Seriam, dessa forma, indissociáveis as propostas espiritualistas e o objetivo de traçar a “essência do nacional” face ao mundo e à modernidade, projeto bifronte em que se inscrevem, de um lado, o exame da poesia simbolista, compreendida como expressão de arte moderna e “triunfo do absoluto” e, de outro, a recusa às proposições políticas marcadas pelos debates sobre a perspectiva do comunismo (CACCESE, 1971, p. 31-35). Essas observações são suficientes para sugerir que algumas das invenções estéticas e estratégias culturais espraiadas pelo território brasileiro retomaram as propostas de Klaxon e Festa. A primeira, sublinhando o caráter coletivo do projeto, faz da revista espaço de arregimentação, experimentação e discussão acerca dos rumos do movimento. A isso soma-se o norte dado pelas ideias de novo, atual e progresso, sempre desenhadas pelo aspecto internacionalista e destrutivo: “Ser de hoje, Ser de hoje!!... Não trazer relógio, nem perguntar que horas são... Somos a Hora!”, assinala o editorial do nº 3 de Klaxon (2014, p. 1, grifos originais), assinado pelo escritor português António Ferro. No campo da expressão literária, publicam-se, no original, textos em inglês, francês e italiano, e é na dimensão internacional do movimento que se localiza a colaboração do português António Ferro. O grupo de Klaxon era próximo de António Ferro, que deu visibilidade à vanguarda portuguesa no Brasil e interagiu assiduamente com os artífices da revista. Em carta a Sérgio Buarque de Holanda, Tácito de Almeida diz: “Klaxon fará sem dúvida o possível por conseguir um olhar bem amoroso do esplêndido português” (apud CARDOSO E SILVA, 2013, p. 397). Na sua quinta edição, na seção “Luzes & refrações”, Klaxon testemunha:

3 Em Revistas em revista, Ana Luiza Martins estabelece a estreita relação entre a linguagem da propaganda e as revistas modernistas. Devido ao alto custo da produção dos periódicos, a empresa editorial aliou-se à propaganda, a fim de tornar os veículos economicamente viáveis, afetando as práticas culturais em sentido amplo. Entre os anúncios, misturavam-se gêneros, autores e assuntos, incorporando a inovação que os modernos recursos técnicos possibilitavam (MARTINS, 2008, p. 166).

Está entre nós o escritor português António Ferro. Ao autor dessa adorável LEVIANA ofereceram os Klaxistas um jantar. Houve alegria, amizade, discursos e trocadilhos. Num dos momentos um dos convivas escreveu no cardápio: “S. Paulo precisa importar ferro”. Ao que o homenageado imediatamente respondeu: “porque Ferro se importa com S. Paulo”. O céu escureceu. A terra tremeu. E muitos mortos ressuscitaram”. (Klaxon, nº 5, 2014 [1922], p. 14).

A colaboração de António Ferro em Klaxon ocorre com a publicação de uma versão de “Nós” na terceira edição do periódico. O texto incorpora uma inovação gráfica importante: aparece ajustado em duas colunas e a letra S do título é reproduzida na primeira letra S da palavra “Somos”, que abre o texto, conferindo ao conjunto harmonia gráfica e sonora. O que aqui se pretende ressaltar é um gesto de proximidade entre o grupo de Klaxon e a vanguarda portuguesa inclinada à ação,4 ambos imbuídos dos ecos das propostas futuristas e da ideia de convergência entre mundo, máquina e técnica. Nesse contexto, não apenas a presença, mas a própria composição do texto de António Ferro na Klaxon pode ser interpretada como uma experiência de fusão entre a letra e a plataforma de uma revista com ambições programáticas, fusão encenada pela disposição gráfica. Cabe considerar, mesmo que brevemente, que o contato entre os modernistas da Klaxon e António Ferro decorreu da experiência de Ronald de Carvalho com a revista Orpheu (1915), na qual colaborou ao lado do poeta Eduardo Guimarães. A proximidade de Ronald de Carvalho com a vanguarda portuguesa pode ser avaliada, hoje, como fundamental para a compreensão do modo como se deu a aclimatação e a sedimentação das complexas novidades de ideias e costumes que se processavam no Brasil e em Portugal por suas elites culturais. Essa proximidade desdobrou-se em inter-relações diversas sob a forma de menções, de troca de correspondência e de livros e de mútuas colaborações periódicas, como é o caso da Klaxon.

4 Em “De portugueses nos modernismos do Brasil – histórias por narrar”, Marcia Arruda (2019), cujo pensamento aqui acompanho, interpreta a versão de “Nós” da Klaxon como o nutriente para dramatizar, na estrutura tipográfica, a manipulação dos meios de comunicação nos regimes de força (ARRUDA, 2019).

Figura 1: A inovação gráfico-visual da Klaxon (1922, nº 1, p. 18) se manifestou também nos anúncios. Criação: Guilherme de Almeida.

Figuras 2 e 3: Publicação do texto “Nós”, de António Ferro, em Klaxon, nº 3, 1922, p. 1-2.

As conferências de António Ferro proferidas no Rio de Janeiro foram reproduzidas pelas revistas e pelos jornais brasileiros da época, mas não em Festa. O grupo espiritualista elegeu outras referências portuguesas,

especialmente com reproduções de textos de António Nobre, na poesia, e Fernando Correia Dias, na ilustração. A inovação ambicionada incorporaria a tradição e manteria estreito diálogo com o passado. Da perspectiva daquele grupo, modernidade não descartava continuidade, um ponto de vista que iria formatar o exame da poética simbolista na revista. Versos em francês de Rimbaud e Baudelaire conviviam com traduções e textos críticos sobre a poética simbolista e suas implicações na literatura brasileira, informando a quantidade de produções brasileiras contemporâneas que assumiriam o ritmo das propostas do simbolismo. Os estudos adquiriram tal relevância que resultaram no livro, hoje incontornável, Panorama do movimento simbolista (1962), de Andrade Muricy, autor de parte dos ensaios sobre a poética simbolista publicados na revista Festa. Os estudos sobre o simbolismo contribuíram para a tendência espiritualista da revista, tendência com a qual Cecília Meireles se identificou em sua época de Festa. Como já mencionado, ao lado da escritora e absorvendo os princípios do periódico, o ilustrador, escultor e capista português Fernando Correia Dias modulou o projeto gráfico da revista impressa nas Oficinas Alba (GOMES, 1999, p. 56). Suas habilidades foram reconhecidas pela imprensa brasileira da época, especialmente A Manhã, Diário de Notícias e O Globo, jornais com os quais colaborou, além de ter sido também capista da editora Anuário Brasileiro, do português Álvaro Pinto (SOUZA, 2008). Na capa de Festa e nas paisagens estampadas no corpo da revista, o pintor português incorporou aos seus traços modernos a fauna e a flora locais, e fez dos elementos da cultura brasileira a base constante do seu trabalho. Cada um ao seu modo, grupos tão distintos reunidos em torno de Klaxon e de Festa se empenharam com afinco para modificar o quadro cultural do país. Nesse itinerário, a ideia de arte moderna participa das modificações processadas nas formas de sociabilidade urbana, sendo que os periódicos lançados em quase todas as capitais brasileiras salientam ora a integração ao ideário combativo e às reflexões sobre as raízes nacionais, ora a associação entre os avanços da técnica, a linguagem regional e a multiplicidade plástica constituída quer pela poética simbolista, quer pelas vanguardas europeias. Conjugam-se, nesse movimento de circulação de bens culturais, as formas de apreensão do passado e seus resíduos na contemporaneidade, o que traz nova semântica à interpretação da ideia de Portugal no imaginário brasileiro da década de 1920.

Figura 4: Capa da primeira fase de Festa: mensário de pensamento e de arte. Rio de Janeiro, nº 1, out. 1927. Figura 5: Capa da segunda fase de Festa: revista de arte e pensamento. Rio de Janeiro, nº 1, jul. 1934.

Figura 6: Reprodução de página da revista Festa com o desenho “O Cacto”, motivo brasileiro, de Fernando Correia Dias.

Práticas de vanguarda e complexidades locais: Arco e flexa, Madrugada e as revistas de Minas Gerais

Em 1926, quando Madrugada passou a ser editada, a ilustração – recurso de que a revista se serviu abundantemente – já era corrente no país, tanto em periódicos quanto em livros (SÜSSEKIND, 1987, p. 29-88). No Rio Grande do Sul, lançando mão dos novos registros técnicos, Augusto Meyer, Theodemiro Tostes, Ruy Cirne Lima, Sotero Cosme e João Fahrion agruparam-se em torno do projeto coletivo de atualizar a cultura local, experimentando novos formatos numa revista que se desejava modernista e, ao mesmo tempo, cronista da nova paisagem urbana, praticando uma mescla de literatura, artes visuais e mundanismo (com grande quantidade de anúncios, coluna social e notícias desportivas). No editorial do primeiro número, a revista afirmava: “Pontualidade é defeito de burgueses. [...] Perfeitamente civilizada e revista de linha, não quis sair no dia fixado” (Madrugada, nº 1, 1926, p. 9). Foi assim, justificando seu atraso de 14 dias, que Madrugada teve início em 25 de setembro de 1926. Como concepção, o editorialista afirma que a revista “se destina ao povo, necessita do povo para ser uma bela afirmação” (Madrugada, nº 1, 1926, p. 9). As nove páginas iniciais e as sete finais são dedicadas a anúncios diversificados. No centro do volume, sempre entremeados pelas notícias da sociabilidade da alta burguesia local, encontramse publicados textos de poesia, prosa, inéditos, informes biográficos sobre os escritores gaúchos e comentários sobre cinema e música, reprodução de conferências orais e uma antologia poética, tópicos implicados no slogan que definia conceitualmente o periódico: “revista semanal de literatura, artes e mundanismo”. As ilustrações contavam com a colaboração marcante de João Fahrion (1898-1970), pintor de sólida formação acadêmica construída na Alemanha e alinhado às vanguardas europeias em vigor (RAMOS, 2006).

Figuras 7 e 8: Capas da revista Madrugada, Porto Alegre, 1926.

Figura 9: Antologia da poesia de Antònio Nobre, Madrugada, 1926, p. 10.

Em Madrugada, as formas de representação visual foram mais evidentemente impactadas pela exploração de novas concepções e técnicas imagéticas. Do lado das produções literárias, assinalam-se duas diretrizes: 1) espaço dedicado às produções locais; 2) reproduções de escritores identificados sob o signo da modernidade nacional e estrangeira, incluindo a tradução.

Embaladas pelo jazz-band e pelas muitas imagens de automóveis e ilustrações contemporâneas, as antologias poéticas trazem produções de Alphonsus de Guimarães, Cruz e Sousa, do poeta português António Nobre e traduções realizadas por Eduardo Guimarães de poemas de As flores do mal, de Charles Baudelaire. Trata-se, como se pode perceber, de uma antologia de sabor estético simbolista, à qual vem se juntar um número que destaca a sensibilidade poética de Cecília Meireles e de Guilherme de Almeida. Do ponto de vista da internacionalização, é preciso levar em conta que a revista gaúcha, ao experimentar o processo de modernização poética, propaga o ideário atualizado e conserva o horizonte penumbrista com as imagens crepusculares da poesia simbolista, o que se concretizou de duas formas: a primeira, por meio de traduções, prática recorrente nos periódicos modernistas em todo o mundo (BRADBURY; McFARLANE, 1989, p. 161); a segunda, pela reprodução de poemas de António Nobre. A híbrida disposição para universalizar a revista e enraizar-se nas tradições locais pode ser elemento valioso como índice das experiências estéticoculturais vivenciadas pelos escritores do Rio Grande do Sul e partilhadas pelos companheiros modernistas de todo o território brasileiro. Em entrevista concedida a Ligia Chiappini Moraes Leite e publicada em Modernismo no Rio Grande do Sul, o escritor gaúcho Raul Bopp, tratando do tema local/universal e da relação dessa dicotomia com um projeto de atualização cultural, afirma: “verdade é que o regionalismo tem um caráter mais estável, articulado com a tradição, sem tentar uma linguagem nova” (LEITE, 1972, p. 253). Ressaltando que Madrugada havia chegado aos “grupos modernistas do Rio e São Paulo”, avalia que a revista teve “um forte sentido de renovação” (LEITE, 1972, p. 253-254). Será em nome do “sentido de renovação” que o mesmo Raul Bopp irá colaborar com a revista baiana Arco e flexa, em seus números 4 e 5, de 1929, com o poema “Putirum”, apresentado como “inédito para Arco e flexa, do ‘Clube da Antropofagia’, de S. Paulo” (BOPP, 1929, p. 61). Poeta da região Sul do país, Raul Bopp sugere nesse comentário ao poema o intercâmbio cultural interno embutido nas práticas das revistas modernistas. O primeiro número de Arco e flexa é publicado em 1928, e todas as edições subsequentes procuram apresentar registros poéticos em que ecoam práticas de estranhamento e tentativas de experimentação da linguagem. A figura aglutinadora da revista chamava-se Carlos Chiacchio, poeta baiano, de quem se aproximavam os novos nomes com o propósito de

fundir o “regional” e o “universal” a partir de temas, debates e formas poéticas. Ao redor do escritor, reunia-se um grupo muito jovem e heterogêneo de colaboradores fixos e outros esporádicos, vindos de várias regiões brasileiras. Intitulado “Tradicionismo dinâmico” e assinado por Chiacchio, o editorial-manifesto do primeiro número apresenta como ideia fundamental da revista a tentativa de equilibrar as práticas estético-culturais do tempo com a preservação do regional baiano. Em deliberado esforço para construir uma dicção própria, a revista enfrenta o problema da modalidade brasileira da língua portuguesa, levando aos seus números reflexões sobre as diferenças idiomáticas entre Brasil e Portugal. Assim, a ortografia correta da palavra flecha é explorada como “compromisso filológico” e cultivo da linguagem. Contudo, afora a questão linguística, a revista não explora colaborações ou menções ao universo cultural português.

Figura 10: Capa da revista Arco e flexa, 1928 (1978).

Madrugada e Arco e flexa inscreviam-se na ambição de um projeto artístico inovador e pressentiam, cada uma a seu modo, a mudança dos rumos culturais, teóricos e estéticos. A aproximação dos periódicos publicados em cidades tão distantes do país, mas não alheios ao eixo Rio-São Paulo, centros da produção de cultura e modos de vida, permite-nos inferir que os novos recursos técnicos propiciaram o elo entre a modernidade e a tradição. Essas revistas não entendiam a tradição como uma espécie de ressonância

estética a ser aproveitada nas novas produções, e, em comum, entendiam que investigar e propagar os costumes locais era uma forma de diálogo com o passado, tomado como conteúdo de produções literárias. Já as revistas publicadas em Minas Gerais na década de 1920 permitem reconfigurar a problemática do eixo centro/periferia e deixam clara a abrangência do termo “moderno”. Publicadas em cidades distantes do eixo cultural Rio-São Paulo, essas revistas estamparam obras dos autores mais expressivos do país, a exemplo de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, além das assíduas colaborações de Mário de Andrade. Assim, A revista (Belo Horizonte, 1925) e Verde (Cataguases, 1927-1928; 1929) – para nos restringirmos a dois títulos, entre os muitos publicados em Minas Gerais – desempenharam papel-chave no contexto do modernismo brasileiro e deram mostras do intercâmbio cultural dos periódicos e das ideias neles contidas. Permeadas por anúncios e colaborações de intelectuais de todos os países, essas publicações tiveram editoriais que versavam sobretudo acerca do conceito de arte moderna, além de artigos sobre a produção literária brasileira da época, notícias de publicações de obras do Brasil e do exterior, artigos sobre o conceito de modernismo e sobre cinema. Em Verde, a imagem de Portugal se manifesta inserida na da cultura brasileira, especialmente na reprodução de fragmentos de estudos sobre o tema racial. Um exemplo é a publicação de um fragmento de Retrato do Brasil – ensaio sobre a tristeza brasileira, de Paulo Prado. Em A Revista, a questão se apresenta de dois modos: primeiramente pela abordagem constante das diferenças entre o idioma português falado nos dois lados do Atlântico (veja-se, por exemplo, o artigo “O Momento Brasileiro II”, de Magalhães Drummond, ano 1, n. 2, 1925, p. 43); e, em segundo lugar, pelo conhecimento da produção portuguesa contemporânea. Na seção “Livros e ideias” do mesmo número, Mário de Andrade publica uma crítica com um conjunto de ressalvas ao livro de contos Sob a garra do sonho, do escritor português Ruy Gomes. O espaço aberto por esses dois periódicos – que se mostraram ágeis na capacidade mobilizadora – era o registro das cidades em desenvolvimento e em franco processo de modernização, e sua atuação não se constituiu como experiência regional deslocada, na qual houvesse meros ecos da produção dos eixos urbanos centrais, mas uma resposta própria ao clima renovador daqueles anos.

Figuras 11 e 12: Capas de A revista (Belo Horizonte, 1925) e Verde (Cataguases, 1927).

No tocante às imagens de Portugal fixadas nas revistas modernistas brasileiras da década de 1920, as publicações de Minas Gerais problematizaram o conteúdo ibérico incorporado à história do Brasil, misturando, no projeto cultural, a atualização estética e o diálogo com as vanguardas europeias. A Revista e Verde partiram do pressuposto de que eram revistas com vistas à ação, conforme expuseram em seus editorais e ao longo de suas páginas. Incorporadas ao discurso do movimento que atravessava o país, reduziram a temática regional para abraçar os problemas culturais enfrentados pelo intelectual daqueles anos. Desse ângulo, a imagem de Portugal não se efetivou por oposições binárias e rígidas, em que celebrações ou inimizades tivessem que ser definidas. Ao contrário, por meio das revistas, é possível identificar que diferentes conceitos motivaram agrupamentos e proximidades. Na leitura de um conjunto geograficamente abrangente de revistas, percebem-se as condições históricas e culturais que formaram o imaginário dos modernistas brasileiros e, neste, as diferentes versões sobre a natureza do mundo português no debate cultural do tempo. Dentro desse espírito, a força integradora de Minas Gerais também foi proporcionada pelo diálogo com Portugal:

Não pretendemos fornecer ao leitor uma visão de conjunto da produção literária nacional e muito menos da estrangeira. Essa tarefa, difícil de ser realizada no Rio ou em São Paulo, seria impraticável em Minas, que mantém escasso intercâmbio intelectual com os outros Estados, e do estrangeiro recebe apenas o que enviam os editores portugueses e franceses. (A Revista, nº 1, 1925, p. 56).

A citação acima é valiosa para enfrentarmos a questão centro/periferia no âmago das propostas modernistas brasileiras e a presença portuguesa nelas, seja na pena de colaboradores, seja sob a forma de menção elogiosa ou difamatória, seja até como acesso à atualização cultural. Cabe registrar, ainda, outra diretriz: a discussão estética em lugares àquela época distantes dos centros culturais era menos incisiva nos expurgos academicistas e mais enfática no desejo de estabelecer uma rotina para as práticas literárias e culturais, as quais foram impulsionadas pela proliferação dos periódicos literários. Assim, se havia uma face modernista que investia contra o passado, o diálogo com a ideia de tradição foi ativado em todas as regiões do Brasil pela incorporação e valorização da cultura local, que viria a alicerçar o programa modernista conduzido pelo signo da inovação. A imagem de Portugal, desse prisma, é dupla: por um lado, amalgamada à história do país, provoca um ato reflexivo sobre as peculiaridades da nossa cultura e sobre a modalidade da nossa língua; por outro, absorve o caráter universalista que se desejava construir no Brasil, estabelecendo as tensões sobre as próprias condições da cultura brasileira em face da absorção das propostas das vanguardas europeias.

Entre Terra de Sol e Revista de antropofagia, traços inversos da imagem portuguesa nos periódicos brasileiros

A descrição de Portugal em Terra de Sol e na Revista de antropofagia é eminentemente moderna, isto é, processou-se sob o signo do “agora” e identificou as formas de selecionar e pensar a tradição. Essa ocorrência se fez dentro dos horizontes conceituais propostos por Klaxon e Festa, tomadas neste artigo como paradigmáticas do percurso dos periódicos brasileiros do decênio de 1920. Nelas, a antiga metrópole é um meio de enxergar a ambiência local, seja por mediar imagens das especificidades brasileiras

Figuras 13 e 14: Capa e contracapa de Terra de Sol (Rio de Janeiro, 1924).

Figura 15: Ilustração de Correia Dias para Terra de Sol.

no contexto de construção de uma ideia de nacionalidade, seja por facultar uma espécie de circulação de bens culturais. Em Festa, desaguaram os projetos políticos e culturais desenvolvidos em publicações anteriores, especialmente em América Latina: revista de arte e pensamento (1919-1920), Árvore nova: revista do movimento cultural do Brasil (1922-1923) e Terra de Sol: revista de arte e pensamento (1924-1925). Os integrantes do chamado “grupo Festa” desenvolveram e amadureceram seus projetos nessas experiências anteriores, usufruindo, inclusive, da grande proximidade com os portugueses atuantes na Terra de Sol, revista que se apresentava como luso-brasileira e contava com a direção do editor português Álvaro Pinto. Klaxon, por sua vez, teve por núcleo central a corrosão dos procedimentos convencionais e este foi o terreno aberto para dicção da Revista de antropofagia, dividida em duas fases, às quais seus diretores chamaram de “duas dentições”, ambas tentando definir o éthos da cultura brasileira. A primeira “dentição” circulou entre maio de 1928 e fevereiro de 1929. A segunda foi publicada entre março e agosto de 1929. Quando o primeiro número de Terra de Sol foi publicado, Klaxon já havia encerrado em São Paulo seu expediente e o novo periódico não deu continuidade ao caráter corrosivo do antecessor. Dirigida por Tasso da Silveira (brasileiro) e Álvaro Pinto (português) e publicada no Rio de Janeiro, Terra de Sol afirmou-se como luso-brasileira. O projeto editorial, implementado mediante a atenção às tradições literárias, deu continuidade ao diálogo cultural entre os dois países por meio da edição de seções portuguesas e brasileiras, dedicadas tanto a questões socioculturais, quanto a temas literários. Assim, os nomes de Cecília Meireles, Ronald de Carvalho e Murilo Mendes conviveram com os de António Nobre, Jaime Cortesão e Aquilino Ribeiro. O repertório da revista foi composto também por sucessivas homenagens a Camões caracterizadas pela forma de estudos e reproduções de suas obras. Aos artigos sobre problemas brasileiros, sobre os quais se debruçaram Ronald de Carvalho, Tristão de Ataíde e Renato Almeida, seguia-se a seção fixa “Páginas portuguesas”. Esse intercâmbio denota o papel pragmático atribuído a Terra de Sol, que ainda divulgava as publicações da Casa Publicadora Anuário do Brasil, também de propriedade de Álvaro Pinto, que se empenhou para estreitar os laços culturais entre os dois países e enxergou no leitor brasileiro um público aberto às novidades tecnológicas. Do primeiro editorial ao último número, os pares opositivos antigo/ moderno e exotismo/civilização mostram-se como principal configuração

de Terra de Sol. No texto de lançamento da revista, muitos dos elementos relacionados aos atributos discursivos sobre o exotismo telúrico suscitados pela experiência com o Novo Mundo são convocados para reputar à revista a imagem de irradiadora de novas ideias: “uma revista que surge é como um astro novo que se acende na esperança de quem a cria, nos desejos de quem a recebe”. É assim, grandiloquente em sua estreia, que Terra de Sol se apresenta como publicação “bem brasileira” e “ao mesmo tempo bem universal” (Terra de Sol, n. 1, p. 1, 1924). As numerosas referências à opulência da terra – a “fecundidade cada vez mais ampla da energia brasileira” (n. 1, p. 1) – são confi rmadas pelas ilustrações de Correia Dias, que também foi o responsável pela capa e pelas vinhetas (SARAIVA, 2003, p. 134). Apesar de tamanho louvor à luminosidade da paisagem brasileira, esta parece ser a mais portuguesa das revistas publicadas no Brasil no decênio de 1920, mesmo intercalando notícias, temas, imagens e publicações nacionais. A presença portuguesa em Terra de Sol, em resumo, não é episódica, mas consubstanciada por meio de um número volumoso de referências, estudos e notícias sobre o universo lusitano, em tom celebrativo ou laudatório.

Figuras 16 e 17: Primeira página e “Manifesto Antropófago” (Revista de Antropofagia, 1928, p. 1; p. 7).

Por outro lado, não há nenhuma colaboração portuguesa contemporânea na Revista de Antropofagia, nem mesmo páginas de antologias, como vistas em outros periódicos. O seu editorial-manifesto, o “Abre-alas”, redigido por Antônio de Alcântara Machado, expressa o posicionamento artístico e intelectual de um grupo de jovens disposto a provocações e a polêmicas, buscando exercer o que chamavam de “canibalismo cultural”. Construída por uma analogia biológica, a metáfora sugeria que, assim como o alimento digerido sofria uma alteração, no plano intelectual, a fórmula brasileira de relacionamento com a cultura europeia deveria ser a apropriação transformadora. Nessa linha de raciocínio, se a produção portuguesa contemporânea não está ali publicada, a construção da especificidade formal da revista, estabelecida pelo cômico e pela paródia, é vinculada à imagem portuguesa como objeto de crítica e dessacralização. Tome-se como exemplo a paródia aos textos produzidos no período colonial ou ao próprio processo de colonização:

Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. (Oswald de Andrade, “Manifesto antropófago”. In: Revista de antropofagia, nº 1, 1928, p. 7).

Trechos como esse, extraído do conhecido “Manifesto antropófago”, publicado na Revista de Antropofagia, convive com o editorial do número 2, em que Antônio Alcântara Machado mostra-se indignado com a menção a um menino de 12 anos que teria escolhido o livro Os lusíadas como seu preferido. Inconformado, o articulista protestou: “Já no grupo escolar a molecada indígena ouve da boca erudita de seus professores que o Brasil foi descoberto por acaso e Camões é o maior gênio da raça” (Revista de antropofagia, n. 2, 1928, p. 1). A figura de Camões dessacralizada funciona para identificar os modos como se materializaram, nessa revista, as propostas de ruptura. Há uma ligação prática entre a diluição dos clássicos e os planos técnicos e formais empregados para explorar um conjunto de referências da tradição literária na dinâmica da experimentação da linguagem. Nessa atmosfera de atrito, a proposta da antropofagia se materializa pelo choque

e tem por procedimento o uso da agressão, o que determinou o ideário canibalista da revista.5 Em termos sumários, o projeto da antropofagia equivalia a identificar o canibal como elemento distintivo da América “selvagem” diante da Europa “civilizada”. A posição central era digerir para modificar. A fórmula da modernidade operada na revista é compreender o sentido de brasilidade no mundo, questionando os índices da colonização e da linguagem própria, distinta da sintaxe portuguesa. Para isso, brincando com o dilema de Hamlet e o passado indígena, Oswald de Andrade cunha uma de suas mais conhecidas blagues: “tupi or not tupi, that is the question”. A inventividade literária, em grau maior do que o projeto gráfico, marca o recurso vanguardista da revista (BOAVENTURA, 1985). Para isso, ao lado da linguagem, textos do passado são dessacralizados, particularmente os que a antropofagia elege como os “seus clássicos”, isto é, textos de cronistas, missionários e viajantes dos primeiros tempos da colonização portuguesa. A experimentação foi o procedimento central da revista, notadamente na prática da colagem-citação, um mecanismo para remanejar a técnica da escritura e da atualização da linguagem pertencente à tradição (BOAVENTURA, 1985). Fazendo desse labirinto de citações um subsídio crítico, a imagem de Portugal é integrada ao conjunto da Revista de Antropofagia de forma invertida, isto é, como objeto de crítica e exploração da linguagem. O número inaugural desse periódico comporta algumas das obras mais conhecidas do decênio de 1920, como o “Manifesto antropófago”, de Oswald de Andrade, o “Abaporu”, de Tarsila do Amaral, e o poema “No meio do caminho”, de Carlos Drummond de Andrade, todos eles manifestações artísticas polissêmicas e modernas. A análise comparativa de Terra de Sol e da Revista de Antropofagia permite-nos observar a legitimação de distintos projetos coletivos através do periódico. O que era “moderno” e o que era “vanguarda” nas duas capitais funde-se ali. Nessas revistas, o conteúdo português traduziu-se na tentativa de superação do localismo, quer pela proposição universalista, intercultural

5 A chamada fase heroica e militante do movimento modernista brasileiro já foi assiduamente estudada e problematizada, tornando-se quase um topos da nossa ensaística sobre os anos de 1920. Não poderia ter por intenção aqui me referir às dezenas de autores que se debruçaram sobre a questão, mas sim reconhecer, na Revista de antropofagia, as referências escolhidas pelo periódico para agir na combinação das correntes de vanguarda europeia e produzir uma resposta brasileira às tendências que estavam no ar; resposta essa que abrange a imagem de Portugal como elemento de dessacralização.

e até celebrativa de Terra de Sol, quer, ao contrário, pelo caráter iconoclasta na leitura do passado e da tradição da Revista de antropofagia.

Considerações finais

Seria inviável, no espaço deste texto, mapear todas as revistas brasileiras e as múltiplas e sugestivas imagens portuguesas que povoaram o universo modernista no Brasil. Procurei compreender algumas facetas dos seus significados conforme concretizados nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, sem esquecer as importantes contribuições oriundas de Salvador, Belo Horizonte e Porto Alegre. Ainda que faltem nomes e títulos, o conjunto observado teve por fim compreender a prática periodista no modernismo brasileiro, levando em consideração os componentes culturais do país na década de 1920. Com isso, caberia destacar alguns pontos já mencionados, mas que se afiguram de especial relevância para a compreensão das diretrizes constitutivas dos periódicos literários em meio à expansão da vida urbana, que se desejava moderna e atualizada. Antes de mais nada, é preciso ter em mente que as revistas eram formas de sociabilidade intelectual. Essa consideração é fundamental para o entendimento dos intercâmbios de colaboração e dos agrupamentos de pessoas, de ideias e de conceitos ao redor de programas estético-culturais concretizados em suas páginas. Além disso, entre os elementos contextuais expressivos, releva considerar as transformações tecnológicas que permitiram recodificar os meios de comunicação. Em consonância com os imperativos de ação da vanguarda, os avanços técnicos aproximaram texto e arte visual. Essa circunstância, do ponto de vista da experiência estética, direcionou a concepção gráfica das revistas e denotou o anseio de cada grupo por se mostrar formalmente moderno. Por outro lado, os modos como lugares distintos enfrentaram a vontade de atualização formal, em face do que se desenrolava nos países hegemônicos, permitem entrever a particularidade de programas culturais distintos, cada um com conceitos próprios do que fosse a arte moderna e a especificidade nacional. Nas revistas, esses modos se manifestaram em três temáticas: o desejo de ação, o debate linguístico e a interpretação do passado. Como estratégia de ação, era a sociabilidade contemporânea que interessava. Desde que Ronald de Carvalho e Eduardo Guimarães viram seus

nomes estampados na Orpheu até as mútuas colaborações em periódicos de ambos os países ao longo das primeiras décadas do século, foi ascendente a incorporação de obras artísticas e literárias nas revistas dos dois lados do Atlântico, dando mostras de algum tipo de proximidade cultural. A interlocução entre os intelectuais manifestou-se publicamente nessas páginas e não foi exclusividade de nenhuma tendência, como se pode ver na colaboração de António Ferro na Klaxon ou de Correia Dias em Festa, para nos restringirmos a dois exemplos. O debate sobre a língua, que se traduz também pelo intercâmbio entre idiomas, não é simplesmente uma escolha estética, mas visava estabelecer e fixar o que seria a linguagem padrão na modalidade brasileira e aquela que se desejava dissolver. Fosse por meio de artigos, fosse através de manifestos, tratava-se de um tema decisivo para as ações programáticas, revelando-se instrumento eficaz na sedimentação dos pressupostos fulcrais de cada revista, a despeito das diferentes propostas que assumiam entre si. As revistas aqui observadas oferecem significados culturais que só ali podem ser encontrados, especialmente quanto às escolhas feitas face ao conceito de arte moderna: pronunciar-se simbolista ou de vanguarda. A solução é ilusória porque não se renuncia a uma ou a outra, já que ambas se misturam. Um dado, porém, é concreto: no plano dos editoriais, a enunciação do conceito de arte fez-se por meio de escolhas e em conexão estreita com a interpretação do passado e com o convívio com a tradição literária. As formas desse investimento conceitual inclinaram o periódico para antologias e homenagens ou para a blague e a paródia. Sobre o vigor dessas coordenadas repousa a imagem de Portugal, um rico arsenal para a experimentação do novo e do original, para o projeto de vanguarda e para a reflexão sobre as raízes culturais do país. Assim, o exame da publicação periódica, pelo seu amplo alcance, oferece ao leitor de hoje a percepção da multiplicidade dos debates então vividos e toca em questões de ordem crítica essenciais sobre o modernismo brasileiro. À guisa de conclusão, é importante enfatizar que um dos aspectos relevantes dessas questões refere-se ao aproveitamento intelectual e imagético do repertório português, que, por ser parte significativa da história do país, precisa ser explorado em toda sua complexidade.

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