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Marcos Siscar

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Sobre os autores

Sobre os autores

O PRINCÍPIO DE PLURALIDADE NA POESIA CONTEMPORÂNEA: O CASO DA REVISTA INIMIGO RUMOR

/ MARCOS SISCAR

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O princípio de pluralidade

Uma das ideias mais decisivas para a poesia brasileira das últimas décadas é a ascensão de uma perspectiva não utópica e plural de projetos estéticos individuais, associada ao esgotamento das utopias dos movimentos coletivos de vanguarda. Tal situação, ao que tudo indica, não é exclusivamente brasileira. Na França, por exemplo, uma antologia de poesia buscava um “panorama o mais diversificado possível” a fim de reagir à “constatação com a qual todos concordam: a poesia francesa de hoje é feita menos de escolas exclusivas umas em relação às outras que da coexistência de personalidades singulares” (DEGUY et al., 2001, p. 45).1 A vida literária “contemporânea” é vista ali como um feixe de singularidades, um espaço de coexistência, de proximidade contígua. No Brasil, o paradigma crítico da pluralidade ganhou, ao longo dos anos, um aspecto cultural particularmente combativo. Liberto de palavras de ordem

1 “nous nous sommes efforcés de présenter un panorama aussi diversifié que possible. […] Nous ne l’avons pas fait par œcuménisme, mas selon un constat sur lequel tout le monde s’accorde: la poésie française est aujourd’hui moins fait d’écoles exclusives les unes des autres que de la coexistence de personnalités singulières.”

consideradas por demais restritivas, associou-se a um mecanismo (ou pelo menos a uma aspiração) de liberação democrática que se intensificou com o fim da ditadura militar (1964-1985). Ao longo dos anos, já entrando no século XXI, passou a constituir uma espécie de dispositivo e de imperativo – aquilo que chamo princípio de pluralidade. 2 Tomando como missão caracterizar o momento posterior às vanguardas, o ensaio “Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. O poema pós-utópico”, de Haroldo de Campos, é um dos trabalhos que definiram os termos desse debate.3 Publicado em 1984, no suplemento Folhetim, do jornal Folha de S. Paulo, foi traduzido depois em revistas na Itália, na Espanha e no México. Trata-se, para esse importante personagem da vanguarda concretista, de repensar as partilhas teóricas do passado e de buscar algo que poderíamos interpretar como uma reconciliação entre critérios históricos e estéticos na discussão sobre a poesia no Brasil. A propósito da noção de “modernidade”, o autor empreende uma releitura de pressupostos de vanguarda a fim de anunciar seu esgotamento. No início do ano seguinte, no mesmo jornal, seu irmão e companheiro de armas, Augusto de Campos, publica o poema “Pós-tudo”, palavra composta que remete simultaneamente à posteridade (“pós-tudo”) e à morte (“póstumo”). Mesmo que se possa falar de ironia em relação às proposições desse poema, a marca do “fim”, isto é, o interesse pelo sentido histórico que está em jogo na ideia, é evidente em ambos os casos. Há, em Haroldo de Campos, particularmente, uma tentativa muito clara de abandonar a lógica do impasse, a fim de postular a abertura de uma nova época. Para tanto, o autor se apoia na noção de “agoridade” (tradução do conceito de Jeztzeit, de Walter Benjamin), espécie de presentidade da “história plural”, associada à ideia de uma poesia do “agora”, em Octavio Paz. Apesar do curtíssimo diagnóstico sobre o contemporâneo que se segue ao anúncio do fim das vanguardas, o ensaio “Poesia e modernidade” se tornou uma espécie de acontecimento crítico para a poesia contemporânea, qualificada como “pós-utópica”: “a poesia viável do presente é uma poesia de

2As transformações da situação política brasileira nos últimos anos, com o rompimento do pacto democrático (em 2016) e com a emergência de um modelo autoritário de relação com o espaço público (a partir de 2019), pressupõem outras estratégias na condução desse tipo de discussão. Contudo, reforçam sua necessidade, inclusive a fim de refletir sobre seus desdobramentos futuros. 3 É verdade que, em 1976, Heloísa Buarque de Hollanda já falava da “diversidade de procedimentos” e da

“não formação de grupos ortodoxos” para descrever a “nova poesia” dos anos 1970 (apud CESAR, 1993, p. 50), que ela chama de “marginal”. Generalizada como dispositivo histórico e colocada em contexto teórico mais amplo, esta proposta ganha, em Haroldo de Campos, o sentido de pluralização como traço determinante de uma era de pós-vanguarda.

pós-vanguarda, não porque seja pós-moderna ou antimoderna, mas porque é pós-utópica” (CAMPOS, 1997, p. 268). Para Haroldo de Campos, “a pluralização das poéticas possíveis” sucede à era dita das vanguardas, na qual visões de arte e projetos de sociedade distintos competem entre si, a fim de atribuir um sentido global à experiência de mundo: “Ao projeto totalizador da vanguarda, que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis.” (CAMPOS, 1997, p. 268). A despeito do caráter descritivo da observação, e considerando-se em específico a importância de sua recepção, é possível dizer que o ensaio desempenha um papel mais propriamente performativo, estabelecendo uma mudança de paradigma na crítica de poesia. Acaba se tornando, no fundo, uma espécie de “manifesto” do pós-utópico, dando perspectiva à discussão numa época banhada pela dimensão do presente, e não mais obcecada pelo futuro – ou seja, uma perspectiva aberta à diversidade, à multiplicação de vozes e de projetos pessoais.4 Mais do que isso, essa perspectiva se impõe como referência (confirmada ou contrariada) de estudos críticos, prefácios, documentos pedagógicos e institucionais sobre a poesia e a cultura brasileiras. E as revistas literárias não fazem exceção à regra. Antes de comentar o caso de uma dessas revistas, é preciso levar em conta que os conflitos estéticos e ideológicos supostamente superados não estavam ausentes da vida literária do final do século XX: por um lado, a discussão da chamada poesia de “invenção” ainda lançava mão de valores críticos de vanguarda; por outro, a referência à linguagem e aos temas cotidianos, à notação social, o próprio recurso aos temas ditos “políticos”, buscava trazer a discussão de volta para a esfera do local. É verdade que debates dessa natureza, que no passado envolviam a própria legitimidade do experimentalismo artístico no Brasil, não parecem ser estruturantes nesse momento. Trata-se agora de sair do âmbito da querela, do empobrecimento crítico e criativo que dela resultaria. As propostas de Haroldo de Campos não são estranhas a essa situação, isto é, a um desejo histórico de virar a página. Elas esboçam uma superação dialética,

4 Analiso o sentido histórico e alguns elementos retóricos desse ensaio em “O tombeau das vanguardas: a

‘pluralização das poéticas possíveis’ como paradigma crítico contemporâneo” (SISCAR, 2014). Diana Junkes discorda do caráter disjuntivo que enxergo no texto, afirmando que ele se insere na lógica mais ampla da obra de Haroldo (MARTHA, 2017). Não creio que essas perspectivas de leitura sejam incompatíveis, uma vez que me refiro à recepção da obra de Haroldo e à função estratégica daquilo que ele próprio passa a chamar de “pós-utopia”.

ainda que por meio de um mecanismo textual engenhoso que permite ao autor preservar suas antigas referências, mantendo determinadas alianças e conferindo-lhes outra coerência diante da nova situação. É em tal contexto que surge a revista de poesia Inimigo rumor, cujo primeiro número foi publicado em 1997. Consideradas como extensões ativas da militância poética, as revistas são um dispositivo privilegiado de relação com o espaço público. Até por isso, costuma-se esperar delas algum tipo de explicação sobre sua razão de ser. Ora, em vez de marcar posição sobre questões polêmicas, Inimigo rumor preferiu evitar qualquer tomada de partido. Tendo em vista a ausência de apresentação e as escolhas editoriais que caracterizaram os primeiros números, poderíamos falar, aí também, de uma tentativa de suspensão das oposições críticas. Encontramos na revista, lado a lado, os atores tradicionais dos antigos debates da vida literária brasileira: Ferreira Gullar e Augusto de Campos, por exemplo, ou ainda Antonio Candido, entre outros. Sem exagerar na importância do fato, pode-se ao menos perceber, nesse “ecumenismo”, um propósito. Há nessas opções uma ideia de superação, mas também um engajamento indireto, porém decisivo, pela pluralidade (que, ao longo do tempo, passou a alternar com outros termos como “diversidade”, ou “multiplicidade”, eventualmente associados à “heterogeneidade” ou ao “hibridismo”). Que o texto de abertura do número 1 da revista seja um poema de Haroldo de Campos não é, em si, um fato conclusivo. Mas o paralelo entre o paradigma da pluralidade e as opções da revista se confirmaria posteriormente de modo mais explícito. Nem Carlito Azevedo nem Júlio Castañon Guimarães, os primeiros editores (até o número 6, em 1999), são poetas comprometidos com a vanguarda. Carlito Azevedo – verdadeiro pivô em torno do qual a revista se constituiu, em colaboração com a Editora 7Letras, do Rio de Janeiro, por 20 números e 10 anos de existência – não deixou de exprimir mais de uma vez sua preocupação em romper com as clivagens tradicionais. Se a relação da revista com a questão da escolha, da eleição, isto é, com a afirmação do critério de valor literário, parece apenas indireta, quase protocolar, como veremos, é porque no fundo a opção por esse viés ativo funciona antes de mais nada como estratégia de dissipação dos a priori críticos: busca-se mais claramente o compromisso com a formulação de valores, e não o vínculo com algum tipo de pressuposto, “formalista” ou “esteticista”. Em suma, interpreto a trajetória da Inimigo rumor como aventura pioneira da ideia crítica da pluralidade, transformada em operador da história

literária recente no Brasil.5 Com isso, gostaria de mostrar como uma revista de poesia pode funcionar como dispositivo de estruturação da vida literária.

O rumor em revista

No verso da página de abertura do número 1, uma nota dos editores é a única explicação sobre a origem do título e sobre o campo de interesse da publicação:

Com periodicidade quadrimestral, a revista Inimigo Rumor, cujo título provém de um livro de poemas de Lezama Lima, Enemigo Rumor, destinase, preponderantemente, à publicação de poemas e de textos críticos ou documentais referentes à poesia.

A revista se apresenta com brevidade, anunciando seu ritmo de publicação, sua relação com o gênero e seu nome. Na lógica do “inimigo”, a autoapresentação sumária não deixa de flertar com a noção de negatividade, certa aversão ao barulho generalizado. Se, no livro de Lezama Lima (1941), “Flecha e distância sonham seu rumor”6, colocando em foco o intervalo rumorejante entre o alvo e a dificuldade de atingi-lo, a revista brasileira parece desejar um lugar (ainda que discreto) de resistência ou de resiliência, por meio da poesia.7 Resistência a quê? Ao alarido da “cultura”, poderíamos supor, ao discurso da “crise” da poesia, à sensação opressiva provocada pelos slogans da mídia ou pela abordagem oficialista da arte; resistência, portanto, à sonolência da vida literária indiferente aos problemas que deveriam, ao contrário, alimentá-la. Vale a pena lembrar que um dos periódicos que serviu como veículo do modernismo brasileiro se chamava Klaxon e que, nessa semântica do barulho e da relação com a vanguarda, haveria algo a ser explorado. Inimigo rumor

5 Maria Lúcia de Barros Camargo observa que outras revistas de poesia do mesmo período foram baseadas na “afirmação da diversidade” (CAMARGO, 2008, p. 230). Seria interessante verificar de que maneira cada um desses casos lida com o desejo de afirmação e com os impasses que dele decorrem. Um resumo do trabalho de Camargo sobre revistas brasileiras de poesia nos séculos XX e XXI, incluindo a Inimigo rumor, pode ser encontrado em Europe, n. 919-920 (2005). 6 “Flecha y distancia sueñan su rumor”. 7 “O nome pareceu, desde o primeiro instante, e continua parecendo, uma excelente definição de poesia.” (n. 20, p. 321).

não visa ao silêncio, obviamente, à paz sonolenta; mas seu título parece se dirigir ao leitor em voz baixa. A poesia já não deseja buzinar?8 Não teria mais esse poder? Já não teria essa finalidade? O que dizer sobre o “rumor”, nesse sentido?9 Além da menção a Lezama Lima, deveríamos provavelmente levar em conta uma interpretação histórica particular das relações entre poesia e espaço público: isto é, entre a poesia e aquilo que seus rumores realizam. Inimigo rumor se associa, como assumirá mais tarde, a uma “negatividade afirmativa”. Esse é o sentido mais relevante de seu título, um “modo de se pensar a poesia” (diz o texto de apresentação do nº 10, de 2001). Para isso, a revista busca constituir um lugar ativo de escrita, graças ao qual a poesia poderia ganhar corpo e audiência. Naturalmente, esse processo envolve uma multiplicidade de objetos, de situações, de proposições. Do ponto de vista do conteúdo, a revista publica textos de poetas reconhecidos (tanto os que frequentam a mídia quanto os mais discretos, ou mesmo os esquecidos), mas publica também jovens poetas, frequentemente poetas inéditos (opção, aliás, que se torna uma das características principais da publicação, ao longo de sua trajetória). Ao mesmo tempo, a parceria direta com editores de Portugal dará um sentido novo e um novo impulso à leitura da poesia portuguesa contemporânea no Brasil. Entrevistas e ensaios críticos também são publicados, ocasionalmente entrevistas e ensaios traduzidos. A tradução da poesia contemporânea proveniente de vários espaços linguísticos é um fio condutor dos mais explorados. Poderíamos, inclusive, considerar o trabalho da Inimigo rumor como um dos mais sólidos das últimas décadas em termos da recepção da poesia estrangeira. Em suas páginas, a poesia argentina e a francesa estão muito presentes, mas também poetas americanos, espanhóis, alemães, poloneses, russos, entre outros. A revista propõe, assim, o reconhecimento dos estados contemporâneos da produção poética mundial, sem basear-se na ideia tradicional do grande autor reconhecido, criando um dispositivo que se generalizou posteriormente entre as publicações de poesia;

8 Aliás, em que condições a poesia foi ouvida no tempo em que buzinava? Que tipo de advertência ou de espetáculo estaria propondo, quase 80 anos depois, se buzinasse? Foi preciso esperar o n° 16 da Inimigo rumor para que este tipo de questão viesse explicitamente ao primeiro plano: “A proposta é provocar

‘turbulências’ na, por vezes, pacificada produção poética brasileira.” 9 Outra cadeia de sentido importante no título é a do boato, isto é, do rumor como registro específico da informação, ou da comunicação, relacionado com determinada modalidade da “ação” e, portanto, da produção de fato ou de acontecimento (Cf. nota 18).

mas também sem esquecer as tradições nacionais, retomadas em abordagens pouco habituais. Celia Pedrosa (2017, p. 71) tem razão ao apontar a “organização desierarquizante, aberta ao heterogêneo” na disposição das matérias (mescla de poetas, épocas, línguas, dicções e tipos de texto diferentes), no decorrer da trajetória da revista. Eu diria, de modo mais genérico, que a revista substitui o compromisso com espaços críticos determinados por um procedimento que adota a posição da poesia, isto é, o interesse da poética em todas as suas possibilidades. A multiplicidade é aí, naturalmente, um princípio fundamental. Mas, ao longo do tempo, esse princípio implica um trabalho distintivo e acumulativo. Inimigo rumor, em seus 10 anos de existência (1997-2007) e em seus 20 números, ganha novos e diferentes colaboradores. Publicada no Rio de Janeiro, a revista é dirigida até o número 6 por Carlito Azevedo e Júlio Castañon Guimarães. A partir do número 7 (1999), Guimarães é substituído por Augusto Massi, poeta e professor da USP, um dos principais editores da Cosac & Naify (de 2001 a 2011). No número 10, monta-se um comitê editorial com Aníbal Cristobo, Heitor Ferraz, Paula Glenadel, e do qual também participo. Por ocasião do número 11, a revista experimenta uma virada surpreendente, rara, tornando-se binacional (Brasil / Portugal): aproximação “pensada sem condescendências nem falsas amizades, mas sim como um espaço de mútuo (re)conhecimento” (nº 11, de 2001). Passa a ser coeditada pela 7Letras (Rio de Janeiro) em colaboração com a Cosac & Naify (São Paulo), pelo lado brasileiro; e, pelo lado português, por Cotovia (Lisboa) e Angelus Novus (Coimbra). Nesse momento, os editores brasileiros são Carlito Azevedo, Augusto Massi e eu; os editores portugueses são Osvaldo Manuel Silvestre (da Universidade de Coimbra), André Fernandes Jorge (editor da Cotovia) e Américo António Lindeza Diogo (da Universidade de Braga, depois substituído, a partir do número 13, de 2002, por Pedro Serra, da Universidade de Salamanca). Além dos “editores”, um “comitê editorial” reúne, de ambos os lados, poetas e críticos relativamente conhecidos, colocando em primeiro plano o equilíbrio e a respeitabilidade: do lado português, os nomes de Abel Barros Baptista, Gustavo Rubim, João Barrento e Luís Mourão, por exemplo, dão um aspecto mais universitário à revista. A separação dos dois grupos ocorreria por ocasião do número 16 (2004). O comitê da Inimigo rumor retorna então à sua composição puramente brasileira, sempre agregando poetas e professores. Entre os muito próximos da revista,

além dos nomes já citados, colaboram Marília Garcia, Valeska de Aguirre, Leonardo Martinelli, Manuel Ricardo de Lima, os editores Jorge Viveiros de Castro e Isadora Travassos, entre outros. As oscilações no comitê editorial são frequentes, com exceção de Carlito Azevedo10 e do apoio da 7Letras, que asseguram sua continuidade. Esses movimentos podem sinalizar uma espécie de flexibilidade editorial, mas também uma maneira de evitar a ideia de “grupo” organizado por algum tipo de coerência estética projetiva e combativa. Isso não nos impede, naturalmente, de reconhecer regularidades na variação, afinidades, convergências suscitadas ou confirmadas pela produção coletiva dos “conteúdos” da revista. Em todo caso, a ideia de pluralidade ou de diversidade permanece manifesta. Instaurada, de início, pela ausência de editorial, ela se desdobra em seguida graças à diversificação dos colaboradores (e, portanto, também dos conteúdos), reforçada pelo afluxo de poesia contemporânea e pelo ensaísmo provindo de outros campos linguísticos. Em resenha publicada por ocasião do lançamento do número 20, sem deixar de reconhecer o valor da experimentação, Fábio de Souza Andrade refere-se a esse viés de pluralidade:

“Inimigo Rumor” equilibra uma vocação por abrir frentes que não se reduz a inventário museológico ou ecletismo de bazar (ainda que o gosto de abrir a revista sem saber o que se vai encontrar lembre o da descoberta imprevista num mercado de pulgas) com a disposição firme de levar a sério o aspecto sedicioso da linguagem poética. (ANDRADE, 2008).

Desconsiderando-se razões pragmáticas ou pessoais, eu diria, de um ponto de vista histórico e analítico, que é exatamente esse projeto (ou antes esse desejo) de pluralidade que constitui a força de abertura da revista – mas que também realiza seu movimento de fechamento. Creio que tal impasse é o destino mais plausível para qualquer concepção de pluralidade baseada em um dispositivo acumulativo.

10Dada certa militância pela pluralidade, e mesmo subestimando radicalmente o trabalho coletivo, não creio que seja adequado ler os volumes da Inimigo rumor como “arquivo” pessoal de Carlito Azevedo, ou seja, um conjunto que corresponderia a seu repertório particular (FRANÇA, 2008). Apesar do papel crucial que o poeta desempenha, a questão não se restringe aos conteúdos na publicação: ela diz respeito ao modo de reorganizar a relação com a tradição, ao qual atribuo um valor histórico. É a partir daí que poderíamos estabelecer relações mais sólidas entre a atividade das revistas e as obras individuais de seus editores.

O movimento de abertura

A certidão de nascimento da Inimigo rumor é um documento em branco. Seus primeiros números não contêm editoriais, explicações, informações significativas sobre a revista. Nenhuma declaração de princípio, nenhum elemento que permita ao leitor reconhecer tomadas de partido em relação à vida literária. Por contrariar as expectativas, essa ausência sugere uma política. Nesse sentido, seria possível falar do ideal implícito de um centro vazio, ou da tentativa de tornar produtiva uma ausência de princípios. É apenas no número 7 (1999) que encontramos elementos mais significativos. Não propriamente ainda um editorial, mas um agradecimento aos colaboradores argentinos que ajudaram a preparar uma seção especial sobre a poesia daquele país, somada a uma expressiva “dedicatória” ao poeta João Cabral de Melo Neto, que acabara de falecer. A dedicatória rememora o fato de que Cabral havia publicado duas vezes na revista: no número em curso, com a resenha de um livro de Ferreira Gullar (de 1954); e, no primeiro número, com uma carta inédita destinada a Clarice Lispector (enviada de Barcelona, no final dos anos 1940). A dedicatória não constitui apenas uma homenagem ao último dos “grandes” poetas do Modernismo. Para além do tributo, fica implícita a necessidade de se levar em consideração o papel desempenhado por Cabral na concepção da Inimigo rumor. A esse respeito, permito-me fazer referência a um ensaio que (eu próprio) publiquei no número 13 (2002), chamado “A máquina de João Cabral”. Ao mesmo tempo em que esse texto participa da história da revista, como colaboração de rotina, creio que constitui um gesto ou uma tentativa de autoanálise. A partir da correspondência e da poética de Cabral, eu sustentava ali a ideia de que a carta a Clarice Lispector, colocada no centro de uma longa sucessão de textos poéticos, dava ao número 1 da Inimigo rumor uma espécie de eixo. Como se se tratasse, no fundo, de um prefácio oculto, camuflado ou então incapaz de dizer seu nome, de chegar à consciência de seu próprio acontecimento.11 Cabral expunha nessa carta alguns de seus princípios poéticos e o propósito de criar uma nova revista literária cujas escolhas deveriam ser baseadas exclusivamente no valor dos textos. Tal revista não deveria “dar nenhuma bola à chamada vida literária”, funcionando como “qualquer coisa

11 Um texto de Maria Lucia de Barros Camargo, que conheci posteriormente, já havia percebido, em 1999, que a carta de Cabral tinha de fato um valor simbólico na apresentação da revista.

fora do tempo e do espaço – um pouco como nós vivemos”. Eu considerava que, na ausência de um prefácio, esta carta poderia ser lida como exposição de uma problemática ao mesmo tempo poética e editorial. Minha leitura começava com a análise das questões poéticas formuladas por Cabral (o apego aos dispositivos maquínicos e a crítica da subjetividade, curiosamente atravessada por razões pessoais e afetivas), a fim de concluir que sua ideia de poesia supunha um centro vazio em torno do qual o volume se adensaria, a exemplo do funcionamento da máquina de algodão-doce (ou algodão de açúcar), figura que o autor escolheu para ilustrar sua discussão. Uma revista que resultasse desses princípios envolveria problemas análogos. Assim sendo, ao desdobrar a ideia de um centro vazio e ao tirar outras consequências, eu sugeria que um mecanismo institucional (uma revista literária, por exemplo) deveria incessantemente levar em conta um suplemento de alteridade. Mesmo que a poética de Cabral não se refira a ela, a necessidade dessa alteridade nunca estaria ausente. Uma revista deveria, portanto, não apenas dar desdobramentos a um programa específico, mas estimular iniciativas exógenas que ajudem a refletir sobre seus próprios imperativos. Apontava, dessa maneira, para uma tensão permanente entre a estrutura e sua “ocupação”, em nome de uma revista ainda por vir, que deveria evitar “tanto a brutalidade de boas intenções quanto a pluralidade ineficiente” (SISCAR, 2002, p. 161). Meu ensaio obviamente pretendia dialogar com o projeto de revista que estava em curso, naquele momento. Procurava valorizar seus pontos de partida a fim de esboçar perspectivas conciliáveis com a eficacidade e a proliferação maquínica da poesia e da vida literária;12 procurava, também, mobilizar um pensamento da “eficiência”, no qual a capacidade de produzir sentido aceitasse pensar também seus excluídos. Tratava-se, portanto, de uma experiência de análise, e de autoanálise, que ao mesmo tempo propunha uma tarefa futura, a fim de dar consistência à produtividade do diverso e do múltiplo.

12 Um projeto internacional do mesmo período, baseado em afinidades eletivas, articulava um dispositivo matemático exponencial (cada participante convida outros cinco) com o abandono de critérios de valor (o sistema deveria ser “autogerido”). Hospedado na internet, o projeto gerou iniciativas em países de língua espanhola, na Itália e no Brasil. No Brasil, foi chamado de “as escolhas afectivas: curadoria autogestionada da poesia brasileira”, e teve como administrador o poeta argentino Aníbal Cristobo, que, na época, vivia no Rio de Janeiro e colaborava com a Inimigo rumor. O site está inativo, mas ainda pode ser encontrado on-line (em 2019) no endereço <http://asescolhasafectivas.blogspot.com.br/>. Não por acaso mecanismos semelhantes a esse, que recusam tomadas de partido de ordem teórica e adotam dispositivos acumulativos, podem ser encontrados em revistas posteriores, as quais, ao longo do tempo, foram migrando para um formato de repositório, como é o caso da revista Modo de Usar & Co.

O procedimento supunha que a transformação da ideia de pluralidade em revista de poesia havia sido bem-sucedida. E que se fazia necessário, a partir dali, extrair lições e consequências para que não perdesse sua força. De fato, era ao dispositivo e ao éthos da pluralidade que eu atribuía aquele movimento de abertura da Inimigo rumor – sua capacidade de fazer circular, de colocar em relação, de abrir possibilidades... em suma, de criar acontecimento. A revista imaginada por João Cabral chamava-se Antologia e deveria trazer uma epígrafe de Paul Valéry (“Plus élire que lire”; Mais eleger do que ler). Colocado nos termos gerais de uma publicação “fora do tempo e do espaço”, o antigo projeto de Antologia sugere uma des-historicização radical. Evidentemente, a conclusão é apressada, em se tratando de Cabral13 , se consideramos o sentido de sua reflexão política, já em curso nessa época. Seria preciso recolocar essas ideias em contexto. Limito-me aqui a sugerir que a menção ao projeto de Cabral aponta para uma peculiaridade importante da Inimigo rumor. Supondo-se que essas palavras de ordem do final da década de 1940 possam aplicar-se ao caso de uma revista brasileira da virada do século XXI,14 pelo menos como elemento genealógico, creio que seria preciso compreendê-las como uma tomada de distância em relação ao contemporâneo, mais do que como uma des-historização; em outras palavras, como forma de instaurar uma crítica do presente. A vida “fora do tempo e do espaço” não é o contrário da atenção à historicidade. Considerando-se os aspectos que evoquei anteriormente, estar fora do tempo é, para a Inimigo rumor, paradoxalmente (mas muito sensivelmente), o modo mais contemporâneo de viver seu próprio tempo: constitui um chamado à liberação em relação àquilo que é percebido como temporalidade intransigente, anacrônica, infecunda. A tentativa de autoanálise prospectiva que eu fazia no ensaio de 2002 não teve consequências visíveis. Era publicada num momento (a colaboração com Portugal) em que os desafios eram de outra natureza. Para permanecer na lógica do acontecimento, minha proposta era que a revista deveria ter um editorial, isto é, um ponto de vista sobre si mesma – um editorial sobre

13 Sem falar do próprio Paul Valéry, cuja leitura vem se enriquecendo consideravelmente nos últimos anos, a partir da releitura de seus textos políticos e dos Cahiers. 14Para Camargo, a Inimigo rumor era uma espécie de duplo da revista Antologia, ou seja, a realização concreta de seu projeto, mais de 50 anos depois. Seria necessário, entretanto, explicar como a caracterização da Inimigo rumor a partir da ideia da eleição, da escolha (“Plus élire que lire”), ou ainda sua suposta subordinação ao campo canônico da poesia ocidental, coabita com seu pertencimento à “esfera do hibridismo, signo pós-moderno” (CAMARGO 1999, p. 13).

o vazio, eventualmente, que nomeasse a origem vazia e deixasse ver suas aporias; e que tirasse consequências dessa posição em relação a propostas poéticas contemporâneas “excluídas” ou “imprevistas”. Não se tratava de uma aspiração abstrata de “justiça”, de um gesto piedoso em favor da inclusão ou da igualdade de forças, mas de pensar uma ocupação de espaços que fosse submetida ao desafio da estranheza, na medida em que essa estranheza pudesse efetivamente constituir, na lógica do diálogo e da alternância, um lugar de interpretação responsável, capaz de organizar e desenvolver publicamente uma visão alternativa sobre os desafios da poesia. Essa poderia ser uma maneira alternativa de pensar o plural? De que estratégias disporíamos diante do sectarismo, da hostilidade cultivada em nome da coerência dualista (reconhecível como dispositivo de vanguarda), para além do trabalho episódico de agregar unidades, ou identidades, de dispô-las em espaços contíguos, em forma de soma aritmética? Creio que a hipótese de um lugar pleno contendo sujeitos pré-determinados e supondo a totalização desses sujeitos, ainda que discreta, é sensível e problemática no princípio de pluralidade, formulado como mecanismo de justaposição. Parecia necessário, então, levar a sério o problema da multiplicidade, especialmente após a passagem para a experiência binacional. Antes de referir especificamente a esse momento, lembro que os números 8 (2000), 9 (2000) e 10 (2001) continham finalmente textos de apresentação. No número 8, Carlito Azevedo enfatiza a importância da obra de Cacaso (1944-1987), objeto de um dossiê temático; para o número 9, Carlito Azevedo e Valter Hugo Mãe (responsáveis pelo dossiê sobre poesia portuguesa) assinam, cada um deles, um texto. O editorial do número 10 é menos evasivo sobre a existência da revista e sobre o caminho percorrido, optando por comentários em tópicos, divididos em oito pontos. O mais significativo em termos de autodefinição afirma: “Não há muito a dizer. Nada que já não esteja melhor dito nas próprias páginas”. O laconismo impressiona. A ideia de ausência de editorial poderia ser vista, aqui, como uma pura pulsão de recusa, carregada de sentido, se não fosse matizada, no mesmo prefácio, pelo anúncio do “fim de um ciclo”, tendo em vista a futura parceria com Portugal. A “negatividade afirmativa” da expressão “inimigo rumor” é nomeada nesse momento, na proximidade com a promessa de um “novo ciclo”. Do número 11 (2001) ao número 15 (2003), em contraste com o que havia ocorrido até ali, cada volume da revista se abre por um prefácio, geralmente longo. Trata-se, inicialmente, de explicar o significado da colaboração Brasil-

Portugal e, em seguida, de propor análises pontuais e detalhadas sobre temas ou autores escolhidos para cada dossiê. A revista recebe uma nova identidade gráfica e um sotaque mais português, mais acadêmico. O princípio de pluralidade parece assumir uma nova face, provavelmente mais determinada, mais explícita, graças à ideia de “proximidade” sem identificação, entendida na escala das nacionalidades e das novas colaborações.15 A proximidade “não chega a ser um hífen” (n. 11, p. 3). Ela não designa exatamente o mais um: requisita, ao invés disso, a possibilidade do encontro e do acontecimento.16 Se a revista passa a adotar um discurso extremamente reflexivo e refinado sobre si mesma, tenho dúvidas de que a estratégia geral (a lógica da aproximação, da reunião de unidades ou de identidades definidas por sua “diferença” mesma, por seu “encontro”) altere completamente a situação. Do ponto de vista da nova configuração da Inimigo rumor, os desafios crescem e se distanciam geograficamente, assumindo um aspecto mais internacional e mais complexo. Mas não há como negar que a lógica da abertura permanece. Na dinâmica da vida cultural brasileira, a passagem para a escala internacional não requisitava nenhuma “universalidade”; tampouco reproduzia uma relação eventualmente desconfiada ou complexada com a velha metrópole. Mesmo sem deixar o âmbito da língua materna, o trabalho supunha um exercício contínuo de tradução de diferentes visões de poesia, isto é, o exercício de um pensamento da relação.

O fechamento dos possíveis

O término dessa colaboração confirma seu fracasso ou sinaliza o desejo de um novo começo? A questão está provavelmente mal colocada. Prefiro entender o esgotamento da parceria portuguesa como uma espécie de ruptura, de renúncia, momento em que o princípio de pluralidade sofre abalos significativos. Nada, contudo, que se pareça com uma decadência. É fato que muitos dos números mais densos da revista estão entre seus últimos (do número 16 ao número 20): a variedade permanece estruturante, o papel da tradução e da poesia contemporânea continua bastante dinâmico (talvez

15 Celia Pedrosa também traça um paralelo entre a heterogeneidade, a desterritorialização e o princípio de cooperação com Portugal, ou seja, um “investimento em poesia e crítica portuguesas” (PEDROSA, 2017, p. 72). 16 “O rumor é um barulho que corre na perspectiva do acontecimento e acontecimentos não se preparam com manifestos. Uma revista deve estar atenta àquilo que procura manifestar-se” (n. 11, p. 4).

mais do que nunca). Porém, é justamente aí que alguma coisa parece sair dos eixos. Na lógica do passo atrás, da volta ao estado preexistente, a interrupção da colaboração com Portugal sinaliza um movimento de fechamento. Ainda que a revista tenha sempre estado mais ou menos em recuo na sua maneira de se apresentar, na concepção que poderia ter de si mesma, eu veria neste movimento um dobrar-se sobre si, um gesto de retorno (inclusive, reflexivo, como veremos) que sugere a dificuldade de relação com o plural. Minha hipótese é que a lógica desse fecho tem relação direta com a própria dificuldade de instalação da pluralidade como princípio. O número 16 (2004), primeiro depois da aventura internacional da revista, é um volume robusto, tanto pela dimensão quanto pela densidade. Traz um conjunto razoável de traduções da poesia francesa contemporânea, mas exibe, também, em seu editorial (o que me parece mais decisivo em termos de trajetória), uma experiência de autorreferência e autointerpretação histórica:

As revistas de poesia em atividade valem por aquilo que elas ajudam a reconhecer e a provocar no cenário poético. Por isso, o sentido de uma revista só é dado a posteriori, de acordo com uma determinada leitura da poesia do presente e do papel que desempenham seus periódicos. Inimigo Rumor entra em seu oitavo ano de existência fiel às propostas de abertura que a moviam desde o início [...] (n. 16, p. 5).

O editorial (não assinado) funda-se sobre uma aporia temporal. O primeiro parágrafo suspende a ideia de critério, considerando as revistas de poesia a partir daquilo que ajudam a reconhecer e a provocar (não a explicar ou a julgar). Haveria motivos, é claro, para retornar à epígrafe escolhida por Cabral (“Plus élire que lire”), interpretada por alguns como tomada de partido pelo critério de valor literário. Tal referência poderia efetivamente ser usada a propósito da Inimigo rumor, se não como espelho, ao menos como parte de uma cena genealógica, como propus. Mas, neste caso, seria necessário entender a nova declaração como uma correção de curso – ou, quem sabe, como uma justificação tardia. Se a revista de poesia não tem editorial, é porque (diz o editorial) a possibilidade de definição se dá somente a posteriori. O sentido não remete, portanto, a um projeto, a um centro, a um lugar de significação predeterminado: ele é uma resultante da ação, proveniente da eficácia de um percurso baseado no desejo de abertura. Não estamos longe da ideia de disposição ao não previsto, da autodefinição como tarefa futura, noções que remetem ao meu ensaio de 2002.

Mas esse movimento é radicalmente invertido na frase seguinte. Referindo-se à circunstância (comemoração de seu oitavo ano de existência), a revista se declara “fiel” às propostas de origem. Naturalmente, essas “propostas” poderiam ser entendidas como resultado de uma leitura a posteriori, isto é, como conteúdo determinado pela lógica do resultado. A fidelidade a elas seria meramente constatada. Contudo, bem mais do que uma declaração de caráter retroativo, me parece que há aqui uma reivindicação de coerência, de fidelidade a si mesma, uma insinuação de identidade como característica histórica da revista – a fidelidade à sua “origem”, a fidelidade intangível e incessante aos seus princípios. A ideia é forte e, de certo modo, surpreendente porque tende a instaurar uma lógica retrospectiva de continuidade. A referência ao passado, neste caso, é mais que uma comemoração. Torna-se uma lembrança dos princípios, um elogio da coerência, sugerindo que convicções foram seguidas, que estavam lá desde o início e posteriormente frutificaram. Não são, neste caso, o mero resultado de uma análise retrospectiva, de uma anamnese descritiva, especulativa ou interpretativa. A frase do editorial que acabei de citar termina com dois pontos, remetendo a três “proposições” vistas como portadoras de definição e coerência (n. 16, p. 6): 1. a abertura para jovens poetas, para poetas inéditos; 2. a publicação de novos textos de poetas e críticos reconhecidos; 3. a publicação de traduções de poemas e estudos sobre poesia (“que aumentem nosso repertório de poesia e crítica em português”). Cada uma dessas propostas é descrita e comentada a partir de exemplos dos números anteriores. No que diz respeito ao segundo aspecto (a relação com os poetas estabelecidos na cena poética), o editorial afirma que a revista

assumiu, sem qualquer estardalhaço teórico ou qualquer sentimento de culpa, a herança modernista recente, incorporando os poetas concretos, os marginais dos anos 70 (Francisco Alvim, Zuca Sardan, Ana Cristina Cesar, Eudoro Augusto e Cacaso, em especial), além de autores independentes como Ferreira Gullar e Sebastião Uchoa Leite, com a diferença fundamental de ler a todos eles não mais por suas oposições, já bastante conhecidas, mas sim “por suas interseções” (n. 16, p. 5).

A reivindicação da diversidade é clara, propondo um modo de relação com a história literária que evita as divergências e os confrontos em favor dos encontros e das interseções. A escolha é reforçada na terceira proposição, que se dispõe explicitamente a provocar “turbulências” na vida literária, pela via

da tradução de poetas estrangeiros. A conclusão: “O que demonstra que o fato de existir num universo ‘policêntrico’, distante da era das vanguardas e seu dogmatismo doutrinário, não resulta em que as revistas percam ‘seu poder de impacto’.” (n. 16, p. 6). Reivindicação do princípio de pluralidade associado a um contexto policêntrico; acusação das vanguardas (o passado) por sua relação dogmática com a vida literária; defesa de seu próprio poder de ação sobre o presente. Ao mesmo tempo em que o editorial evoca o real sucesso da revista (objeto de atenção até mesmo na grande imprensa, geralmente mais interessada no mercado de livros), o leitor pode observar a natureza algo defensiva das referências ao “estardalhaço teórico” ou à ausência de “culpa” (em relação à tradição). A fidelidade às propostas originais, ou seja, àquilo que a revista sempre foi, parece remeter ao travo de acusações ou de tarefas deixadas a meio caminho – em outras palavras, à própria dificuldade de julgar o impacto em época dita policêntrica, de multiplicação de narrativas e de “rumores”. Depois da comemoração do número 10, o número 16 é o momento da rememoração. A revista retorna a si mesma e a seu percurso, à sua relação com a história e com o contemporâneo, motivada por um apelo à identidade e à fidelidade. A retórica ambivalente do editorial (em que o a posteriori da leitura acaba por reconduzir ao a priori da origem) produz a autodefinição retroativa e a identidade positiva. Creio que o resultado desse curto-circuito foi o de conduzir não à metamorfose renovadora, mas a uma espécie de fechamento dos possíveis, à clausura autorreferenciada. Evidentemente, a história da Inimigo rumor não acaba aí, mas é preciso constatar que, depois disso, a revista retorna a seu mutismo inicial, evitando textos de apresentação. Quatro volumes se sucedem rapidamente (de 2005 a 2007), até o silencioso grand finale do número 20 (volume luxuoso, inclusive do ponto de vista editorial, contendo um dossiê sobre fotografia, prosas, ensaios, entrevistas, novos poetas brasileiros e poetas contemporâneos dos Estados Unidos, França, Suíça, Suécia, Portugal, Argentina, Alemanha e Inglaterra). A invenção de uma fidelidade a si mesma não enfraqueceu a consistência e a qualidade da revista, mas parece ter bloqueado seu ímpeto de reinvenção.

Políticas da pluralidade

O que chamo “fechamento” não é precisamente um fato de história: não coincide com o fim. O mais importante aqui não é o encerramento material da revista, tampouco as razões pessoais ou editoriais para a interrupção de suas atividades.17 Ao dizer “fechamento”, refiro-me a um aspecto discursivo do princípio de pluralidade enquanto tese histórica e referência política para a cultura e para a literatura. Do ponto de vista da história recente da poesia, da cultura e da política no Brasil (com governos ditos “de esquerda”, de 2003 a 2016), o éthos da pluralidade corresponde a uma demanda de desrepressão que deveria a princípio produzir “inclusão”. A ideia de pluralidade se nutre da necessidade de fortalecer o múltiplo e de fazer justiça ao excluído. Por extensão, libertar a atividade do poeta da camisa de força das militâncias tradicionais, da submissão a posições já definidas, levaria a conferir à experiência artística e cultural uma dimensão mais democrática. Um estudo sobre o papel das revistas brasileiras nas décadas de 1990 e 2000 (cuja disseminação e riqueza poderiam ser associadas à da década de 1970)18 incluiria naturalmente várias outras publicações (Azougue, por exemplo, editada por Sérgio Cohn; ou Coyote, por Rodrigo Garcia Lopes, Marcos Losnak e Ademir Assunção; ou, ainda, Sibila, por Régis Bonvicino). Mas o fato de que a Inimigo rumor tenha sido considerada o mainstream dos periódicos de poesia no Brasil, eventualmente acusada de elitismo ou de gregarismo, confirma (ainda que pelo viés negativo) a importância histórica da revista e seu efeito de nucleação. Outras publicações se lançaram explicitamente no mesmo caminho, como é o caso da Cacto (editada por Eduardo Sterzi e Tarso de Melo, entre 2002 e 2004) e da Modo de Usar & Co (criada por Ricardo Domeneck, Marília Garcia, Angélica Freitas e Fabiano Calixto, e publicada entre 2007 e 2017).19 A trajetória da Inimigo rumor e a influência que exerceu são portas de entrada para nossa historicidade; permitem compreender como uma disposição

17 Inimigo rumor não declarou sua interrupção, de imediato (a exemplo das correções de rumo anunciadas em outros momentos). O fim permaneceu em aberto, assim como seu começo. 18 Cf. CAMARGO, 1999. 19 Modo de Usar & Co, originalmente impressa (a partir de 2007, ano da última edição de Inimigo rumor), tornou-se um periódico on-line (http://revistamododeusar.blogspot.com.br/). Seu fim foi anunciado por

Ricardo Domeneck, em 2017 (após 10 anos de existência, mesmo tempo de vida da Inimigo rumor).

de ordem histórica e intelectual (a relação com as vanguardas) se associa no Brasil a questões de natureza cultural e política (o éthos da diversidade). Nesse sentido, o acontecimento Inimigo rumor sugere dois movimentos a serem considerados na reflexão sobre o imperativo crítico e histórico da diversidade: por um lado, um movimento de liberação e, por outro, um movimento em que esse desejo de abertura (quer seja pelo impacto da afirmação, quer seja pela lógica defensiva) conduz a um impasse. De fato, manter aberto o espaço da pluralidade, sem produzir outras exclusões, suporia a capacidade de levar em conta determinadas dificuldades, verdadeiras aporias, tais como: a fidelidade a si mesmo como princípio de um trabalho de abertura; o caráter defensivo da afirmação de identidade; a ideia de relação reduzida à justaposição linear (conciliatória ou antagonista) das diferenças; a renúncia a compreender os jogos de força que operam sob o espaço do múltiplo (ou seja, os conflitos ou contradições subterrâneas que sustentam a superfície aparentemente estável da diversidade). Essas dificuldades, ao que tudo indica, acompanham e restringem os efeitos do princípio de pluralidade, afetando a disposição de acolhimento aquilo que advém. O caso de Inimigo rumor revela os limites práticos e hermenêuticos de uma política da pluralidade, ao mesmo tempo em que faz emergir uma questão histórica estruturante da poesia contemporânea: a relação com as vanguardas e, mais precisamente, a oposição a determinadas práticas e políticas intelectuais. Não é por acaso que a revista se tornou referência para toda uma geração de jovens poetas, mostrando que é possível levar a sério a leitura e a discussão de poesia (um tipo de escrita subestimado pela mídia e pelo bom senso pragmático, que, em geral, apenas se interessam por sua situação ou seu devir minoritário); e mostrando que é possível fazer essa discussão a partir de um desejo legítimo de superação e de refundação. Por outro lado, mesmo que tenha aberto caminhos, gerado outras propostas, essa experiência nos sugere de maneira não menos plausível que não vivemos em um contexto de neutralidade, de igualdade de iniciativas, de liberdade criativa, de abolição de fronteiras, de relações pacíficas; que é preciso, portanto, permanecer atentos aos pontos de tensão ou de cegueira, com suas motivações e seus impasses específicos. Desde os anos 1980, várias dimensões recalcadas da poesia brasileira ressurgiram como possibilidades abertas pelo éthos da pluralidade: o lirismo tradicional de dicção elevada, a poesia erótica e libertina, as tendências abstratas ou primitivas, as novas configurações da intimidade, a poesia da mulher,

a perspectiva identitária (racial ou de gênero), entre outras. Herdeiras das vanguardas, as escritas experimentais parecem se contentar com o estatuto de “possibilidade” de poesia, num contexto em que o campo literário passa a ser considerado como coabitação diferencial. Há, de fato, muitas aberturas. No entanto, não apenas essas aberturas são muito reguladas (pelo mercado de livros, pela agenda da mídia, pela política dos prêmios e festivais, pelo interesse universitário, pelas redes sociais, pelas afinidades pessoais), como as relações que mantêm entre si não estão isentas de dissensão ou de exclusão. Pelo contrário, os conflitos são numerosos, permanentes e raramente levam em conta sua inserção no debate sobre a situação e as perspectivas da poesia. Se as exclusões que decorrem desses conflitos podem ser identificadas e enumeradas, mesmo em contextos de acolhimento da diferença,20 é preciso igualmente aprofundar a história e as leis das “regulações” que as sustentam, os termos pelos quais se apresentam (em geral, eufemisticamente), além de atentar para os diferentes lugares em que acontece. Os efeitos de exclusão não podem ser imputados unicamente a forças externas à experiência da diversidade – embora estas sejam evidentemente determinantes. Entendido como resultante de um processo histórico e conceitual, o princípio de pluralidade produz inclusões e exclusões, expansão e retração, renovação e esgotamento. Sua política de pluralidade não se resume a seu programa de “inclusões”, sobretudo quanto este não é acompanhado pela análise do campo no qual se pensa a relação com o outro. É preciso lembrar que a decisão de virar a página das vanguardas provém de um impulso de abertura para outras dimensões da tradição e da cultura: é um gesto político em sentido amplo, que se relaciona com determinadas políticas literárias, de modo mais específico.21 Mas não basta defender esse gesto: a maneira de colocá-lo em prática é fundamental. Diferentes estratégias de relação com a pluralidade, com seus eventuais inconvenientes (a naturalização

20 As tendências neoclássicas (os “neoparnasianos”, termo usado por Carlito Azevedo para se referir aos poetas do lirismo tradicional) estariam entre os excluídos da Inimigo rumor, segundo Maria Lúcia de

Barros Camargo (2008, p. 233). 21 A acusação contra o que é percebido como abandono da dimensão do real (“consciência histórica”) e da

“referência nacional” (SIMON, 2011), instâncias do espírito crítico ao modo modernista, apenas confirma, indiretamente, a natureza do gesto histórico contemporâneo, isto é, seu espírito ativo de contradição histórica. Celia Pedrosa (2015) lembra oportunamente que, no cenário de hoje, “a pluralidade é valorizada contra o cânone moderno” [eu sublinho]. É exatamente na busca de redefinir sua relação com o presente (na qual se coloca também a assim chamada questão do “real”) que determinados discursos sobre a poesia respondem à tradição das vanguardas do século XX e às suas exclusões.

do marketing pessoal, a rejeição sistemática das “hegemonias”, a reivindicação defensiva da tradição, o apagamento das particularidades de línguas e tradições), designam formas igualmente distintas de conceber a natureza e o papel da poesia, de participar do conflito de interpretações sobre o presente. Por isso, é importante abordar o assunto sem deixar de apontar seus pontos cegos, seus contrassensos, suas aporias; pensar em inclusão, sem renunciar à complexidade e ao desafio da relação. É preciso, também, não perder de vista as referências do campo institucional e discursivo (o espaço crítico universitário, o próprio debate mais geral em torno da poesia) que oferece as bases para essa discussão – ou seja, que mantém aberta a possibilidade mesma de tais gestos interpretativos. Sem cuidado crítico, dificilmente conseguiremos identificar possibilidades encorajadoras de presente, alternativas mais consistentes na rosa dos ventos da poesia contemporânea.

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