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Marcia Arruda Franco
A CULTURA FRANCESA NA REVISTA TERRA ROXAE OUTRAS TERRAS
/ MARCIA ARRUDA FRANCO
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A cultura francesa há muitos séculos é modelizada na Ibéria e em seus antigos domínios americanos. Em diversas frentes discursivas e artísticas, a presença francesa será aqui pensada na cultura luso-brasileira modernista. Do lado português, o foco recai sobre a releitura de “O Francesismo”, de Eça de Queirós, na conferência de José Osório de Oliveira, “Uma cultura francesa”, proferida a convite do Instituto Francês de Lisboa, no ano de 1940. Esse crítico e historiador literário português foi o primeiro a reconhecer a autonomia intelectual da literatura brasileira em relação à europeia. Por isso, a sua correspondência com Mário de Andrade, os seus artigos sobre o fenômeno paulista, a sua obra em geral e sobretudo essa conferência em particular nos fornecem um modo de abordagem da questão. Do lado brasileiro, é analisada a presença da cultura francesa no quinzenário paulista dirigido por António de Alcântara Machado e A. Couto de Barros, entre janeiro e setembro de 1926, Terra roxa e outras terras. 1
A conferência “Uma cultura francesa”, de José Osório de Oliveira, pode ser lida no exemplar do Bulletin des études portugaises, que compõe o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP. Traz dedicatória manuscrita em Lisboa a Mário de Andrade, em 13 de junho do mesmo ano
1 Os números de Terra roxa e outras terras e da Revista antropofágica encontram-se reunidos, juntamente com outras revistas modernistas, em caixa organizada por Samuel Titan Jr. e Pedro Puntoni. O presente artigo recorre a essa coletânea; no entanto, as indicações bibliográficas feitas ao longo do texto (ano de publicação e número de página de cada citação) remetem aos originais.
de 1940: “A Mário de Andrade que, em mim,/ prefere o ensaísta,/ com toda a minha admiração e amizade.” Trata-se do melindrado autor da novela misógina e racista Aventura, que o autor de Macunaíma detestou. Osório, em letra de forma e com destaque, dedica a conferência aos estudiosos franceses de literatura portuguesa e brasileira: Georges le Gentil, Lebesque, Hourcade, Larbaud, Durtain, Cassou. Definindo as conferências como inutilidades, o crítico português confessa, ainda, que atende a convite oficial do Instituto Francês, que a II Guerra Mundial o obriga a aceitar. Em 1940, o Ocidente está “em guerra contra um espírito inimigo”. Concorda com Leo Ferrero que Paris seja o “o último modelo do Ocidente”2. É a civilização francesa que está ameaçada, a sua visão do homem ocidental contra a Alemanha, a Rússia. É preciso – segundo pensa – ser nacional sem renunciar à universalidade, sem se ufanar ou negar as diferenças étnico-culturais. Para entender o conjunto heterogêneo de nações europeias, complementa Du Bellay: “Eu odeio alguns vícios em todas as nações”3, informando que “Duhanrel atribui esta outra frase a desconhecido: ‘Em cada nação eu amo alguma virtude’”4. Para José Osório de Oliveira, as nações têm um caráter composto de vícios e virtudes. À questão “Como se constituem as nações?” (1940, p. 7), responde: “Por homens com qualidades e defeitos, com determinadas características psicológicas e com interesses particulares”, concluindo que a “solidariedade entre as nações não é natural”, sendo, portanto, artificiosa. Como se explicasse a psicologia do conflito mundial, pondera: “Não é, pois, natural que os homens de uma nação se sintam, integral e constantemente, solidários com os de outra nação.” Assim, “os homens não podem considerarse absolutamente solidários senão com os outros membros da comunidade nacional a que pertencem”. Herdeiro das ideias românticas e liberais, considera que os homens estejam agrupados em nações não arbitrariamente, mas por compartilharem uma maneira de ser, de pensar, de sentir, de escrever e de falar o mundo. O filho de Ana de Castro Osório pensa como o autor de Casa grande e senzala a respeito de um mundo criado pelos portugueses. Se estes são “Desenraizados do solo”, “entenda-se bem”: não são desenraizados “do gênio nacional”,
2 No original, “dernier modèle de l’Occident”. 3 “Je hais quelque vice en chaque nation.” 4 “En chaque nation j’aime quelque vertu.”
pois que na expansão para além do território, na projecção no Mundo, na própria dispersão, naquela capacidade de que fala Gilberto Freyre, de se perpetuar noutros povos, dissolvendo-se neles, naquilo tudo que a separa da gleba, a grei portuguesa precisamente se afirma como entidade moral particular. (OSÓRIO, 1940, p. 13).
Entretanto, aquele que se definia como luso-brasileiro, disperso entre duas pátrias que o português criou, desconsidera que um português possa se sentir francês, mostrando ignorância do fenômeno franco-lusitano: “É absurdo dizer, por exemplo: ‘A França é a minha segunda pátria’” (OSÓRIO, 1940, p. 7). Para ele, a comunhão de sentimentos, ideias, interesses, aspirações, estilo de vida etc. distingue os grupos nacionais e as pátrias. Assim, o mundo criado pelo colonialismo português, para José Osório, comporta um ar de família, a condição dos seus dois patriotismos; porém, o mundo que o francês criou, inclusive como modelo e resumo de ocidentalidade, não gera sentimento de pertença a um português, salvo no caso da guerra mundial. Para defender o caráter de originalidade nas produções do gênio nacional, caro a românticos e modernistas, revela o que pensam os franceses do estrangeiro que toma a França como sua pátria: “Métèque”, expressão que exprime o desprezo contra estrangeiros que se estabeleceram fora da sua própria pátria, renunciando a sua originalidade nacional. Quase maldosamente, observa o “sorriso com que os escritores franceses acolhem os que escrevem em francês” (OSÓRIO, 1940, p. 8). Cita Vitotia Ocampo, diretora da revista Sur, pertencente a elites que falam em francês na América Latina; que “pensam em francês”5, uma vez que “o francês é a língua do verdadeiro eu”6(OSÓRIO, 1940, p. 10). Observa que, em Portugal, o leitor da literatura francesa desfrutaria de reconhecimento intelectual, conhecendo ou não a portuguesa. Osório (1940, p. 9 e 11) critica a “formação de uma cultura literária francesa por um português”, pois o leva a escrever a literatura portuguesa como imitação da francesa e também o afasta das literaturas portuguesa e brasileira, da sua originalidade de escrita peculiar do português. Em suma, os intelectuais portugueses e brasileiros sofrem de “francesismo”, lendo mais a literatura francesa do que a escrita em português, imitando o modo de vida e o pensamento dos franceses.
5 No original, “pensent en français”. 6 “le français est le langage du véritable moi”.
Lembra, sem o nomear, o escritor brasileiro que telegrafou a Nouvelles littéraires “100 livros para companheiros espirituais”, “100 livros franceses”. Para José Osório de Oliveira é um absurdo não se considerar Machado melhor ou igual a Stendhal. Revela que o sonho de morar em Paris é multinacional. Baudelaire e Balzac fizeram de Paris o centro do mundo moderno. Brasileiros, portugueses, hispano-americanos sonhavam viver em Paris. Por fim, saúda que as histórias infantis de fadas, de tradição popular portuguesa, andem em todas as mãos infantis ensinando a alma nacional portuguesa aos pequeninos, por suas virtudes e vícios, marcando a diferença entre o seu tempo e o de Eça de Queirós, em que a cultura portuguesa não era ensinada nem nas famílias nem nas escolas, em detrimento da hegemonia do modo de vida francês. Para o crítico romântico e modernista, a história de Portugal é o mundo que criou em decorrência das navegações quatrocentistas, a partir do século XVI, onde o Brasil novecentista emergiria como a grande obra civilizatória da colonização portuguesa.
O quinhentismo de Terra roxa e outras terras
O quinzenário Terra roxa e outras terras, cujos editoriais, colunas7 e poemas foram assinados por modernistas, como António de Alcântara Machado, Couto de Barros, Mário de Andrade, Paulo Prado, Oswald de Andrade, Sérgio Milliet, Carlos Drummond, Prudente de Moraes Neto, Clodomiro Santarém, Teobaldo Fagundes, Martins de Almeida, Teillin e Luiza Guerreiro, entre outros mais ocasionais, como René Thiolier, Afonso d’E. Taunay e Motta-Filho, também contou com colaboração de poetas como Guilherme de Almeida (“modinha do pernilongo”, n. 2, p. 1), Ronald Carvalho (“épura”, n. 3, p. 1), Manuel Bandeira (“pneumo-tórax”, n. 3, p. 1; “cidade do
7 O projeto editorial apresenta colunas temáticas sobre as diversas artes (poesia, prosa, música, teatro, pintura, esporte, resenha de poesia), além de minicolunas que alongam a linha editorial, como “Pontos nos is” ou
“Ponto nos ismos”, e “Contribuições espontâneas de Pau-brasil”. Mário de Andrade assina a coluna de música como Pau-d’Alho, resenha poesia e romances de viagem, polemiza o seu estro poético em Losango cáqui. Alcântara assina a coluna de teatro, Teobaldo Fagundes, a de pintura, Teillin e Luiza Guerreiro, a de esportes, Sergio Milliet, secretário da redação, faz crônicas e publica o seu folhetim de viagem a Paris,
“Naturezas mortas”, nos sete números do periódico. A arquitetura é objeto de um longo artigo no número 7.
A. Couto de Barros escreve, no número de estreia e seguinte, o artigo “Profetas e profecias”, que põe em questão, com o racionalismo paulista, a superstição. Paulo Prado integra o projeto editorial.
interior”, n. 4, p. 4), Mário de Andrade, (“iara”, n. 5, p. 6), Ribeiro Couto (“rio de janeiro”, n. 6, p. 1), Câmara Cascudo (“não gosto de sertão verde”, n. 6, p. 4), Carlos Drummond (“jardim da praça da liberdade”, n. 7, p. 1) e Jorge Fernandes (“poema”, n. 7, p. 4). Inicia-se o quinzenário com um projeto que reconstrói a identidade dos paulistas a partir do século XVI, em que ressalta a figura do jesuíta José de Anchieta como novo símbolo da paulistanidade, mas com o ponto de fuga em Blaise Cendrars. Trata-se de um projeto filológico e histórico, na medida em que a carta autográfica do jesuíta retorna, como nos mostra o número cinco da revista, 347 anos depois, a São Paulo, ao Museu do Ipiranga, à “casa do passado paulista”: Paulo Prado à frente, os paulistas se fintam para trazerem a São Paulo o autógrafo de Anchieta, que compram com a doação de 30 sacas de café de uma livraria inglesa. Mas a referência quinhentista não se limita a esse jesuíta. Em seu número inaugural, de 20 de janeiro, na primeira página, sugerindo a “origem americana da tristeza e da liberalidade do paulista”, o periódico Terra roxa e outras terras publica um trecho de Fernão Cardim, extraído do Princípio e origem dos índios do Brasil, registrando o costume lamuriento dos indígenas na recepção e hospedagem dos viajantes. Na resenha de Paulo Prado a Toda a América, de Ronald de Carvalho, a última frase cita o autor da História de Santa Cruz: “Basta, para mim, que o poeta cante na sua terra a sua terra que já tem, como dizia Gandavo, de si mesma a forma de uma harpa.” (1926, n. 4, p. 1). Camões não é referido no pequeno cânone de poesia sempre nova e clássica de Mário de Andrade: a Bíblia, Dante, Cervantes, Shakespeare, Molière, Goethe. É citado, porém, um episódio célebre de Os lusíadas, aproximando-o de Baudelaire e do belo horrível, “tolices de nomenclatura estética”: “Com a exposição de flores do mal, de tartufos, de shylocks e de adamastores, o artista se utiliza do nojo, da indignação, da repelência, do pavor, do ridículo, da raiva como material de deslumbramentos cuja necessidade prática é muito relativa e mediata.” (1926, n. 3, p. 2). No número 5, em homenagem à chegada da carta ao Museu do Ipiranga, que então dirigia o historiador Afonso d’E. Taunay, este resume os símbolos da tradição paulista no Brasil: “É o café, de meio século para cá, o symbolo de S. Paulo, como o ouro e as pedras foram os de S. Paulo setecentista e o desporto da correria pelo continente e da caça ao índio o do S. Paulo seiscentista.” (1926, n. 5, p. 2). Anchieta recua os símbolos da paulistanidade para o jesuitismo, propondo outra relação com o índio, a catequese, e não o extermínio. Se, para o quinzenário, isso significa uma
retificação da identidade do índio pela noção antropofágica da brasilidade, para o historiador, o simbolismo da relíquia de Anchieta reside em ser uma carta escrita do seu punho, ditada pelo seu espírito jesuíta, “pela apprehensão dos recessos das faculdades primitivas daquelles irmãos brutos, de pele vermelha, a quem immenso se affeiçoara por amor a Christo”:
À cidade anchietana offertaes uma reliquia rara e preciosa de seu fundador, reliquia da mais subida valia. Não um objecto que recorde a vida material de Joseph de Anchieta e sim a exteriorização dum pouco da sua mentalidade profunda e de sua alma immortal; demonstração daquela intelligencia poderosa e invulgarmente culta que poetava em latim e musicava em tupy, encarava, com enorme descortino, as condições do desenvolvimento do Brasil, e tinha a curiosidade immensa das cousas da natureza. (1926, n. 5, p. 1).
Natureza em que se inscrevem os indígenas. Anchieta, em sua carta de três séculos e meio, relata a formação da sua comitiva ao tentar contratar quem o acompanhe na sua viagem para outros campos de catequese no Brasil. Em Terra roxa e outras terras,o quinhentismo na formação da tradição paulista se alimenta de Anchieta, mas também de Fernão Cardim, Gandavo, Hans Staden, Botero, Camões, a fim de os digerir de forma crítica pela visão brasileira e paulista do mundo, preconizando a Revista de antropofagia, cuja primeira série ou dentição (10 números, de maio de 1928 a fevereiro de 1929) também foi dirigida por António de Alcântara Machado. Até o n. 5, anunciando as doações de sacas de café, Terra roxa e outras terras se desenvolve em torno da compra da documentação quinhentista do jesuíta, a fim de reconstruir a tradição quinhentista da paulistanidade. Para Motta-Filho (1926, n. 2, p. 2), em “Bom caminho”, a “modernidade domina”, logo é preciso pensar os meios de o Brasil “largar de vez a mamadeira cômoda de leite importado da Europa!”, considera que “essa foi aliás uma preocupação louvável do Romantismo”. Para o crítico, “Magalhães veio e gritou contra a França e contra o extrangeirismo. Procuraram mesmo os literatos dessa estirpe ilustre reagir contra a grammatica enrolada de Sá de Miranda e Gil Vicente. Descuidaram-na em affectação e o próprio Gonçalves Dias [,] prestimoso no tratar do fraseado classico, protestava em favôr das construcções rebeldes do brasileirismo ingênuo.” Alberto de Oliveira (1926, n. 7, p. 4), como acadêmico simpático ao modernismo, é longamente entrevistado no último número do quinzenário, a respeito da reunião final “quase pronta” de suas
Poesias, com a qual “cont[a] acabar, como no verso de Luis de Camões, a peregrinação cansada [dele]”. A via crítica do francesismo paulista será a digestão antropofágica americana da cultura europeia, a fim de construir a cultura brasileira, retrospectivamente, desde o presente de 1926 até o passado do século XVI. A língua ítalo-paulista está entre as prerrogativas dessa formação brasileira que põe em xeque a “macaqueação” irrefletida de centros europeus, e da França em especial. Boa epígrafe para o francesismo crítico que se desenvolve em Terra roxa e outras terras se encontra no texto assinado por Pau-d’Alho, pseudônimo de Mário de Andrade, “Pirandello, a Epiderme Desvairada e um Sentimento Alegre da Injustiça” (1926, n. 4, p. 3): “Dona Poesia (dogmática): Tu anda macaqueando/ Os moços lá da França!/ EU (conteúdo): Pudera! Tá bão deixe!/ Quem espera sempre alcança!”.
A análise dos sete números desse periódico revela múltiplas referências à cultura francesa, como o anúncio e a recepção da exposição de Tarsila do Amaral, em Paris, a assiduidade de Blaise Cendrars, além de relatos de viagens de outros modernistas à Europa e França. Pathé Baby8 , Naturezas mortas9 , Serafim Ponte Grande10 são romances de viagem modernistas anunciados, citados ou resenhados no quinzenário, ao lado de livros de poemas modernistas como Losango cáqui11 ,Raça12 , Borrões de verde e amarelo13, Toda a América14 ,
8 Sergio Buarque de Holanda (n. 6, p. 3), e Teillim (n. 5, p. 6) resenham Pathé baby. Anúncio no n. 3, p. 3. 9 Este romance de Sergio Milliet foi publicado como folhetim nos sete números do periódico. 10 Oswald de Andrade, n. 7, p. 1. 11 Ocupam toda a página 4 do n. 1 de Terra roxa e ouras terras anúncios de Losango cáqui e Raça. No segundo número, publica-se “Artigo de Menotti del Picchia e Resposta de Mário de Andrade” (p. 4); e no terceiro número, p. 3, Sergio Milliet resenha o livro de Mário de Andrade. 12 Sergio Milliet (n. 1, p. 6) resenha Raça, de Guilherme de Almeida. 13 Sergio Milliet (n. 2, p. 3) resenha Borrões de verde e amarelo, de Cassiano Ricardo. 14 Paulo Prado (n. 4, p. 1) interpreta o brasileirismo de Toda a América, de Ronald Carvalho; e Sergio
Milliet faz a resenha na página 4 do mesmo número. No seguinte, n. 5, p. 4, Martins de Almeida, num artigo intitulado “Sobre a expressão técnica”, analisa os três livros de poesia: Raça, Losango cáqui e Toda a América. Há, ainda, um anúncio pequeno do livro de Ronald Carvalho (n. 3, p. 2).
Um homem namultidão15, cuja preocupação era identificar a cultura da nação americana, brasileira e paulista. Afora a educação à francesa, e embora haja trechos em francês no modernismo brasileiro e ensaístas que redigiram na língua culta de seu tempo, mal se compara aos autores de outras nações latinoamericanas, que usaram o francês como língua da alta cultura, escrevendo e pensando na língua francesa: os paulistas e outros modernistas brasileiros não modelizaram a cultura francesa apenas para substituir a matriz colonizadora portuguesa por outra espécie de colonialismo cultural, francês, inglês ou norteamericano, mas para construir a literatura brasileira pela antropofagia, como se explicitará na primeira dentição da Revista de antropofagia. Agora, a partir de sua modelização crítica e nacionalista da cultura francesa, analisarei o breve periódico paulista Terra roxa e outras terras, cujo objetivo era formar, por meio de suas colunas temáticas, um conjunto de leitores paulistas, e brasileiros, interessados na sua formação histórica, literária, musical, artística, pictórica, teatral, esportiva, circense e “pau-brasil”. No romance Naturezas mortas, de Sergio Milliet (1926, n. 3, p. 4), que se passa sobretudo em Paris, o protagonista com Carmén, no Moulin Rouge, comenta “mãos mais sábias da França”, à Torre Eiffel, refere-se como “sexo do mundo”, capitalizando a racionalidade iluminista da cultura francesa contra a aborrecida Hamburgo: “Cartazes, annuncios, tudo cheira a expressionismo. Mas não ha a unidade e a clareza dos francezes nas tentativas. É uma arte mal assimilada. Obscura. Ou, então, violenta. Autoritaria, como é aborrecida a Allemanha” (1926, n. 3, p. 4). Em “Profetas e profecias”, A. Couto de Barros (1926, n. 1, p. 2-3) aborda a questão da mentalidade supersticiosa no plano da história ocidental, a fim de fornecer o contraponto iluminista contra a superstição em geral e luso-afro-brasileira em particular, tema que cada colunista glosa mais ou menos explicitamente; António de Alcântara Machado publica na primeira página o conto “Festa de S. Gonçalo” (1926, n. 1, p. 1), visão crítica de uma festa afro-luso-brasileira, que, em 1940, torna-se um dos contos agregados a Mana Maria, e que descreve uma festa no terreiro, onde se cantam em redondilha as rimas da superstição. Em “MUSICA / CHAMINADISMO” – artigo da coluna sobre música, assinada por Pau-d’Alho –, a superstição é considerada, do ponto de vista já antropofágico, como uma má digestão cultural: “Toda e qualquer superstição (até a superstição nacionalista, necessaríssima nos momentos de
15 Sergio Milliet (n. 6, p. 3) resenha Um homem na multidão, de Ribeiro Couto. Martins Almeida (n. 7, p. 3) analisa o mesmo livro.
afirmação duma nacionalidade) são erudições mal digeridas e consequências de incultura” (grifo meu). Adiante, resume: “Deus e o Romantismo – tudo superstições, tudo incultura. Tudo vaidade, Salomão” (1926, n. 1, p. 5). Por sua vez, Sergio Milliet, não mais assinando Serge Millet, como em Klaxon, na resenha a Raça, de Guilherme de Almeida, afirma: “Pode-se criticar Raça sob o ponto de vista mesquinho dos modernismos francezes e italianos. Eu nego, porém, qualquer valor a essas críticas, porquê o nosso modernismo tem de ser differente. E Guilherme é profundamente brasileiro. Digo mais: paulista” (1926, n. 1, p. 6). Se a princípio queria dizer que “Só se é brasileiro sendo paulista, como só se é universal sendo do seu país”, Milliet depois adere à defesa do paulista como o brasileiro que deu certo, herdeiro de bandeirantes. O periódico publica a discussão entre os colunistas de Terra roxa e outras terras sobre o brasileiro ser ou ter de ser o paulista, o empreendedor... António de Alcântara Machado, no número seguinte, em “Colhér direita” (1926, n. 3, p. 4), dirige-se a um você, que o leitor entende ser Mário de Andrade, defendendo Sergio Milliet: “Sergio acertou quando escreveu que só se é brasileiro sendo paulista. Quis insinuar com isso que é preciso fazer de cada brasileiro um paulista injectando-lhe as qualidades deste. Eduardo Prado declarou bem alto (num discurso) que quem fez o Brasil para os brasileiros foi o paulista. O Brasil quer filhos que sejam bandeirantes na vontade e na audácia”. Mário de Andrade é julgado culpado em tom de brincadeira, em língua brasileira e com um discurso determinista: “Você, produto do meio, é dos cabras mais perigosos em toda essa brigalhada. Sujeito desordeiro, meu Deus!/ Teje preso!”. No espaço ao lado da página, a coluna “Pontos nos is”, “respondendo à carta-protesto de Mário de Andrade e à réplica de Alcântara Machado”, Sergio Milliet explica: “Na minha crônica falava de Guilherme que, só podia ser brasileiro sendo paulista. Isto é: sendo êle. Si se tratasse de um carioca diria: ele só é brasileiro sendo carioca” (1926, n. 3, p. 4). Citando anedota de Mallarmé, “aquele poeta das palavras cruzadas”, que achou excelente lhe musicarem um soneto, “adot[a] a interpretação de António de Alcântara Machado”: “De hoje em deante é ali no duro; só se é brasileiro sendo paulista. E se quiser!” (1926, n. 3, p. 4). René Thiolier, aristocrata franco-paulista que viajou na Semana Santa de 1924 a São João del-Rei com o grupo modernista, já havia publicado no número inaugural da revista o seu longo relato da ida às cidades “decrépitas do Estado de Minas”, no qual considerava a dimensão federal da sua paulistanidade:
Acredito que se passe no seu íntimo, – disse-lhe, – o mesmo que se passa commigo! Tenho loucura pelo meu Estado natal! No entanto, basta-me penetrar num Estado vizinho, para que immediatamente pulse meu coração de um modo differente, e eu veja, então, o quanto sou brasileiro!... Foi o que me aconteceu, quando estive no Paraná! É o que me está a acontecer neste momento! (1926, n. 1, p. 2).
O francesismo crítico da cultura paulista se anuncia como a saída para o Brasil e encontra-se em colunas de temas artísticos, como música, teatro, pintura, resenhas de poesia, anúncios de automóveis e de livros de poesia, novelas, artigos do periódico, enquetes, concursos, apontando para a superação da “macaqueação” pela originalidade nacional, que consiste em digerir a cultura europeia em geral e francesa em particular, valorizando a tradição paulista da brasilidade. Para Milliet (1926, n. 6, p. 3), “Não será nunca copiando os francezes ou imitando Papini que conseguiremos um lugar permanente no Conselho da Liga Literária das nações. Muito pelo contrario. Mil vezes os motivos regionaes do Morro da Favella e do Bom Retiro. [...] É inútil querermos a aproximação pela compreensão identica das cousas de lá”. Por exemplo, na coluna “Esportes”, “Os nossos recordes”, assinada por Teillin no número inaugural do periódico, lê-se: “Quando se falou, nas vesperas das Olimpíadas de Paris, em enviar nossos atletas á Europa, fui dos que se regosijaram com a notícia. Não pensei, um só instante, que iríamos colher vitórias e maravilhar o mundo com as nossas proezas” (1926, n. 1, p. 6). Teillin denuncia a falta de método e constância dos treinos: os abusos. “Nossos atletas fumam, bebem, farreiam.” A idade com que abandonam o esporte é outra causa. “A vida quotidiana esmaga-os. São precoces, mas esgotam-se facilmente. A prova do que afirmo está nos resultados sempre excelentes obtidos pelos juniors, e sempre mediocres obtidos pelos seniors.” Para formar o apreciador de esportes é preciso dar um jeito nos estádios nacionais sem arquibancadas. “É preciso, ainda, interessar pela literatura esportiva, completamente nula entre nós.” Sugere, então, uma série de ações que envolvem a cultura francesa como paradigma de excelência:
Crear bibliotecas com autores estrangeiros, visto não haver nacionaes, que tenham falado do esporte de maneira original e agradável, como Tristan Bernard, Henri de Montherian, Dominique Braga, etc... Aqui abro um parentese para felicitar o Anhanguéra, cujo enthusiasmo dá à luz, na “Platéa” [,] a tópicos cheios de vérve e simpaticamente esforçados. [...]
Trabalhemos juntos para transformar a literatura esportiva brasileira, até hoje insípida, dar-lhe mais vida e mais atualidades. Para esse fim, Terra roxa, institue um premio e abre um concurso. O autor do melhor poema ou conto esportivo enviado para o nosso redator secretario terá direito a uma assinatura de um ano de uma das excelentes revistas francezas “Miroir des Sports” ou “Sporting”, e seu trabalho será publicado no nosso jornal. (1926, n. 1, p. 6).
O concurso anunciado por Teillin parece vencido por Luiza Guerreiro, cujo “Diário de viajem – Excursão automobilística pelo interior” ocupa a coluna de esportes nos outros números do periódico. Trata-se de relato turísticoficcional sobre as dificuldades de sua excursão automobilística pelo interior, sem estradas apropriadas. A motorista viaja com mecânicos e utiliza a oferta humana e natural que o sertão apresenta, incluindo a indígena, sem deixar de caçar animais para comer e usar a flora para construir pontes e caminhos. Atletas são os mecânicos que literalmente carregam nos ombros o automóvel. Se as estradas ainda não foram construídas para o Ajax, automóvel cuja propaganda está no quinzenário, nem por isso a cultura produzida em São Paulo se põe abaixo da europeia. Mário de Andrade, sob o pseudônimo Pau-d’Alho, cita observação de Paulo Prado a respeito da qualidade da cultura brasileira modernista, que se livra do seu complexo de inferioridade: “Em nosso meio literário e de artes plásticas tais superstições (ao menos no meio verdadeiramente moderno) parecem estar se acabando. Frase de alcance extraordinário. Paulo Prado me falou um dia: – Quando observo as obras de alguns artistas modernos brasileiros não vejo por onde considerar superiores a estes um Picasso ou um Cocteau. Finalmente!” (1926, n. 1, p. 5). Tal confiança na arte nacional, na maioridade artística da cultura brasileira, para Milliet (1926, n. 6, p. 3), encontra na música e na pintura os seus exemplos incontestáveis: “Mas as mais características realizações actuaes nós as devemos a Tarsila do Amaral e a Villa-Lobos. Esses são, por enquanto, os que melhor nos podem representar aos olhos estrangeiros”. Tarsila agrada ao secretário e administrador do periódico de 1926; a sua arte lhe parece a ilustração de Um homem na multidão, de Ribeiro Couto: “A família brasileira de Tarsila, você a pinta constantemente com ternura irônica”. No periódico em análise, Tarsila tem anunciada a sua mostra em Paris de forma a resumir o francesismo crítico e brasileiro dos paulistas. A repercussão da mostra também está noticiada no periódico como êxito antropofágico. Primeiro, o anúncio: “Tarsila do Amaral vai abrir exposição em Paris. É a
grande notícia que nos enviam daquela cidade. Já agóra podemos apresentarnos de cabeça erguida perante o público culto da Europa”. Anteriormente, a arte brasileira era medíocre, e “Os que conhec[iam] os movimentos artísticos europêos, sempre se envergonharam dos nossos emissários intelectuais”. “Com Villa Lobos, Brecheret, Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Gomide e agora Tarsila, as cousas mudam.” Agora os brasileiros encontraram a sua arte nacional: “Temos uma arte nossa, tão grande e tão pura quanto à das outras nações europêas, e acima da de todas as nações sul-americanas, que não cessam de namorar as civilizações de além mar”. Em suma, o jugo colonial se quer suspenso: “Nós fomos discípulos e emancipamo-nos. Do que nos ensinou a velha Europa só guardamos o abecedário e a taboada. O resto é Brasileiro” (1926, n. 5, p. 5). A autovalorização intelectual e artística do paulista se desenvolve como francesismo crítico porque questiona a macaqueação do estrangeiro. Brasileiro e estrangeiro são alvo de questionamentos. Não confundir amizade com arte é a primeira lição: “Tal pianista que foi na Oropa se aperfeiçoar inclui no concêrto um ou dois trechos do seu professor de piano ou da tropilha dele... por gratidão.”; “Como si fosse possível a gratidão em manifestações de ordem crítica. [...]”; “Tal cantora [Camile Chaminade] se aplica em silabar um canto impossível duma francezinha qualquer porquê agrada ao público.” (1926, n. 1, p. 5); “Como si não tivesse um bilhão de cantos populares bem harmonizados e peças de arte erudita que agradam”. Chaminades do presente e do passado puderam “produzir até coisas interessantes nas suas pátrias porquê nelas tinha cultura e consequentemente o fatal bonito e humano egoísmo nacional” (1926, n. 1, p. 5). O nacionalismo valoriza o artista de casa, via de regra mais talentoso do que os maus artistas que chegam de Paris: “Ora si essa superstição da incultura não subsistisse, pois que autores de segundo-plano também são valiosos e dignos da gente escutar, inconscientemente, por interesse pelo meio e pelo presente.” Pau-d’alho prossegue, sugerindo artistas hoje ainda pouco conhecidos de não especialistas: Glauco Velasquez, brasileiro internacional, em vez de Tchaikowsky, russo internacional, ambos mortos: “no lugar de Mascagni que é vivo e italiano estaria Lourenço Fernandes, Iberê da Cunha, Francisco Braga, Carlos Pagiucchi, Francisco Casabona que são excelentes autores de segundo-plano porém brasileiros vivendo aqui e de muito maior interesse prá gente” (1926, n. 1, p. 5). Critica Mário de Andrade o modelo francês, aponta a sua mediocridade, disparando: “na França a vulgaridade camuflada de Massenet escreveu uma
Thais aonde se ajuntam todos os requififes característicos da ruindade musical de França” (1926, n. 1, p. 5). Por fim, lamenta que bons franceses e brasileiros não sejam valorizados nem por empresários do entretenimento musical nem pelo público “guarani apolainado”, apontando para a aculturação do indígena, que não questiona os estrangeiros medíocres:
Porém quem sabe aqui a existência de um valoroso Luciano Gallet e o interesse histórico assú que tomará ou devia de tomar prá música nacional brasileira a obra de Francisca Gonzaga? Quase ninguém. Tudo incultura tudo superstição. Tudo estupidez de guarani apolainado, agravada pela boçalidade de estrangeiros mal transplantados que gemendo de gratidão idiota e saudade idolatra pela pátria em que não conseguiram ganhar pão, vêm envenenar a agua da gente com suas Danzas, uns Renée Batons, uns ediceteras de porcaria, inomináveis. A incultura profunda e logicamente pedante é o caracter mais pomposo da musicalidade paulista. Por enquanto. (1926, n. 1, p. 5).
A mesma ideia se encontra nas colunas de crítica teatral assinadas por António de Alcântara Machado. Na coluna sobre teatro com título “Indesejáveis” (1926, n. 1, p. 5), ironiza a superstição nacional, “peg[a] logo em madeira” contra o programa lírico de 1926, que traz a “GRANDE COMPANHIA FRANCESA DO THÉATRE DE LA PORTE ST. MARTIN. GRANDE COMPANHIA FRANCESA DO THÉATRE DU VAUDEVILLE”. Explica que “Com tais rótulos é que elas têm aparecido. Vai-se ver uma: droga. Vai-se ver outra: droga. Droga todas”. Denuncia que Walter Mocchi é um “conjunto francês de quinta ordem” e defende “que o teatro nacional não o é”. O monopólio do negócio teatral é um mau negócio para o teatro francês e para o público nacional: “Com essa exploração perdem a nossa platéa e o theatro francês. Aquela perde dinheiro, tempo e paciência. Êste perde no conceito daquela”. Por fim, repreende os próprios franceses por permitirem a exportação desse lixo cultural: “Não sei como, lá na França, se permite a partida de tais companhias, com tais repertórios. Que diabo!” Sugere o boicote do público – “tratemos nós mesmos de tirar o entusiasmo aos empresários desses horrores: não indo aos espectaculos” –, pois “Não há recurso melhor”. Logo se vê que os empresários portugueses estão metidos na mediocridade do teatro estrangeiro aqui exibido e na sua não correspondência com a língua falada no Brasil: “E nós livres dos canastrões [como o português José Loureiro] da língua, que dizem que é a dos brasileiros mas os brasileiros não entendem. É isso mesmo.” Por fim, Alcântara
Machado dispara o seu francesismo crítico contra o teatro afrancesado exibido no Brasil: “O theatro nacional, como muita história nossa, não é nacional. Os assuntos vêm de Paris.”; “Ou melhor, o comediógrafo brasileiro imagina um enredo que ele julga parisiense. Às vezes é mesmo. [...] E pensa que faz theatro nosso! O cúmulo!”; “Resultado: o absurdo delicioso da peça de costumes nossos, mas com essência e trejeitos de parisiense. É fantástico. E irreconhecível.”; “E só vendo a pobreza dos tipos. Sempre os mesmos. Sempre a criada pernóstica e mulata, que diz coisas em francês de Bangú. Sempre o casal de fazendeiros analfabetos e o moço que chega da Europa. Sempre o novo-rico português. Sempre a menina piegas. Sempre essa gente. Só ela. Sempre.” (1926, n. 1, p.5). Reclama que “Peças auri-verdes, de facto, [sejam] raríssimas”: conhece “Juriti, de Viriato Corrêa, e Mimoso Colibri, de Armando Gonzaga”. Lamenta que “A cena nacional ainda não [conheça] o cangaceiro, o imigrante, o grileiro... o político, o ítalo-paulista, o capadócio, o curandeiro, o industrial”. Conclui que o teatro no Brasil “Não conhece nada disso”, porque “não nos conhece. Não conhece o brasileiro”. O que “É pena”. “Dá dó.” (1926, n. 1, p. 5). Em consonância com o artigo de Mário de Andrade, “Do Brasil ao Far-West – Piolin”, (1926, n. 3, p. 2), Alcântara desloca a cena teatral nacional do palco para o picadeiro, enaltecendo a brasilidade do espetáculo circense: “São Paulo tem visto companhias nacionais de toda a sorte. Incontáveis. De todas elas, a única, bem nacional, bem mesmo, é a de Piolin! Ali no Circo Alcibíades! Palavra. Piolin, sim, é brasileiro”. Às peças teatrais circenses, “que ele chama de pantomimas, deliciosamente ingênuas, estupendas, brasileiras até ali”, opõe a chatice das companhias brasileiras e o divertimento nacional proporcionado por Piolin:
As outras companhias [...] caceteiam a gente com peçazinhas mal traduzidas e bobagens pseudo indígenas. A de Piolin, que nem chega a ser uma companhia, não. Diverte. Revela o Brasil. Improviza brasileiramente tudo. É tosca. É nossa. É esplêndida.
Por fim, conclui que “Piolin e Alcibíades são palhaços, o que quiserem, mas são os únicos, os únicos elementos nacionais com que conta o nosso theatro de prosa”; “Devem servir de exemplo” (1926, n. 1, p. 5). A mesma ideia se desenvolve na crítica à temporada teatral brasileira em Paris. António de Alcântara Machado, na sua coluna sobre teatro, “Questão de vergonha”, do n. 4, à página 3, escreve: “E levar para Paris peças que são
decalques maus de más peças francezas e actores que são macaqueações más de maus actores francezes é apresentar producto falsificado a quem o fabrica legítimo”; “Se vamos até Paris como discípulos imitadores sujeitar-nos a um exame, levamos bomba na certa. Nem se discute”. E conclui que “Só desconhecendo o que há na França nesse terreno é que se pode pensar em mostrar lá o que há aqui. Francamente” (1926, n. 4, p. 3).
Presença de Cendrars
No número 6, de 6 de julho de 1926, publica-se na segunda página o “catalogo da exposição Tarsila em Paris” – com boas reproduções dos trabalhos da nossa pintora. Encabeça o catalogo um poema de Blaise Cendrars, intitulado “Saint-Paul”. Os editores não podem “furtar[se] ao prazer de citá-lo, em parte”, pois o celebrado modernista francês faz o elogio de “Saint-Paul”, cidade que “está de acordo com [seu] coração”16. Pois “Aqui nenhuma tradição/ Nenhum preconceito/ Nem antigo nem moderno”17 impede a cidade de crescer desordenadamente. O discurso de Cendrars, tão próximo ao de Gilberto Freyre, valoriza a mistura arquitetônica de São Paulo, como se escancara nos versos finais da citação, na nota melancólica sobre o fim da arquitetura colonial: “As duas três velhas casas portuguesas que sobram são de faianças azuis”18 (1926, n. 6, p. 2). Cendrars, porém, adora o “apetite furioso”, a “confiança absoluta”, o “otimismo”, a “audácia”, o “trabalho”, o “labor”, a “especulação” dos paulistas “que fazem/ construir dez casas por hora/ de todos os estilos ridículos grotes-/ cos belos grandes pequenos norte/ sul egípcio ianque cubista” (1926, n. 6, p. 2)19 . Se com a carta de Anchieta o periódico almeja atribuir tradição quinhentista à moderna São Paulo, Cendrars considera os paulistas mestres do capitalismo: “sem outra preocupação senão/ acompanhar as estatísticas prever/ o conforto a utilidade a mais-valia e atrair uma grande imigração”20 (1926, n. 6, p. 2). O poeta francês é uma referência assídua no quinzenário, como na “Conversa
16 No original, “est selon [son] coeur”. 17 “Ici nulle tradition/ Aucun préjugé/ Ni ancien ni moderne”. 18 “Les deux trois vielle Maison portugaises qui restent sont des faiences bleués”. 19 “qui font/ construire dix maisons par heure/ de tous styles ridicules grotes-/ que beaux grands petits nord/ sud égyptien yankee cubiste”. 20 “sans autre préoccupation que de/ suivre les statiques prévoir/ le confort l’utilité la plus value/ et d’attirer une grosse immigra-/ tion”.
com Prado Kelly”, em que “Carlos Drummond” classifica como “delicioso de incompreensão” o pensamento de seu interlocutor, que considera que “é natural floresçam escriptores modernistas, illudidos pelas últimas promessas de Cendrars”, inclusive, “[f]undou-se uma revista para propagar o novo credo” (1926, n. 4, p. 3). O poeta mineiro questiona o processo de “macaqueação” dos europeus com zombaria: “Então agora não é mais Marinetti que nós seguimos, hein? Sou obrigado a me lastimar que V. não tenha lido o grande poeta francez Blaise Cendrars”. No “P. S.”, salienta o francesismo erudito do magistrado: “Seu artigo é uma beleza, estilo de 1ª ordem, aviamentos ricos: citação de poeta francez antigo, Angelus de Millet” (1926, n. 4, p. 3). No romance Natureza morta, de Sergio Milliet (n. 4, p. 4), “Paris parecia-[lhe] um immenso cabaret, onde Blaise C[e]ndrars era chefe de orchestra. Cocteau dansarino. Jules Romains porteiro e Aragon chanteuse a voix”. Milliet opõe dois modos de vida franceses, o urbano parisiense e a França meridional: “No sul da França a vida é mansa como um loulou. Paris, no inverno, é um bulldog venenoso” (1926, n. 4, p. 4). “Em Paris o amor é pecego. No sul é vatapá” (1926, n. 4, p. 4). Há duas Franças opostas para o francesismo crítico dos paulistas. A subcultura francesa exportada pelos empresários da indústria de entretenimento com o foco no lucro e no pastiche, e não no produto artístico, não se confunde com a expressão genuína da cultura francesa modernista, simbolizada por Cendrars, cuja entrevista na coluna “Outras terras”, “Dez minutos com Blaise Cendrars”, deixa claro o seu antifascismo (1926, n. 2, p. 1).
Antropofagia da Europa
No número 6, na coluna “Pontos nos ismos” (p. 3), Oswald de Andrade, de “Paris, maio, 1926”, escreve ao “Senhor Redactor” antropofagicamente considerando que a capital da França “está no papo”: o modernismo é o lugar da blague; contra o desmentido de António de Alcântara Machado no número anterior, faz piada assumindo ser o seu inventor para parisienses: “Não blefei só meus compatriotas. Aqui, por estas bandas, consegui ainda melhores resultados do que na terra de Chico-Capivara. Ver a Exposição de Artes Decorativas em 1925, em Paris. Tudo torto, fora do prumo, rebentado, doido. Fui eu que disse que assim era bonito. E os trouxas acreditaram. Paris está no papo”. O francesismo crítico de Terra roxa e outras terras se desenvolve como antropofagia cultural. No romance de Milliet, a frase “É sómente por uma
questão de circunstancia que não nos tornamos antropophagos” (1926, n. 4, p. 4) pode muito bem indicar como Terra roxa e outras terras resultou na Revista de antropofagia. A intelectualidade paulista, pelo influxo da imigração italiana, questionou a matriz intelectual e cultural portuguesa herdada do colonialismo como a única referência cultural europeia no Brasil e em São Paulo. No período entre as guerras em que viveu António de Alcântara Machado, as duas revistas paulistas investem na busca de uma identidade brasileira que remonta ao século XVI, exaltando o processo colonizador a fim de adquirir independência cultural e intelectual em relação à ex-metrópole portuguesa. Aí entra o projeto de reescrever literalmente a língua portuguesa no Brasil, da sonhada gramatiquinha da fala brasileira, a única capaz de dizer o pensamento nacional, à ortografia, de que ninguém tem certeza, a começar pela ortografia “semi-phonética de um indeciso” (1926, n. 4, p. 4) secretário, como reza o subtítulo de seu romance-folhetim dedicado a Oswald, Tarsila e Mário, Naturezas mortas. Em última instância, o que se põe em dúvida é a autoridade da gramática portuguesa e da lógica colonialista no domínio do idioma nacional brasileiro e na ficção modernista, projeto de independência cultural que Macunaíma representará na Revista de antropofagia e na história da literatura brasileira.
A antropofagia latente em Terra roxa e outras terras, apesar de redimensionar a herança indígena como resposta ao colonizador, esbarra no sério problema da identificação dos paulistas como “descedores de índios”21 . No seu discurso de recepção da carta anchietana do Museu do Ipiranga, Taunay não poderia ser mais sucinto a respeito da simbologia do paulista no século XVII: o desporto da correria pelo continente e da caça ao índio [seria o símbolo identitário] do S. Paulo seiscentista” (n. 5, p. 2). Caçar ou descer índios era encarado como um desporto que caracteriza a paulistanidade seiscentista: No “bello hall” do Museu Paulista, “[r]ecordam os painéis episódicos as grandes phases de recuo desse meridiano [o de Tordesilhas], desrespeitado pelos descedores de índios, pelos perseguidores do ouro, pelos creadores de
21 Em suas Reminiscências de viagens e permanência no Brasil, Daniel Parish Kidder (1940, p. 186) explica que “As expedições de descedores de índios, denominadas Bandeiras, gastavam meses e às vezes anos nas mais cruéis e devastadoras guerras contra o elemento selvagem.”
gado, pelos posseiros da Amazônia, em prol da dilatação brasileira” (n. 5, p. 2). Taunay, o historiador de São Paulo, saúda o extrativismo mineral, que transformou “descedores de índios” em “mineradores”. A busca de uma tradição quinhentista para a São Paulo modernista como narrativa da identidade paulista e intelectual brasileira toma o café, os arranha-céus e a indústria como prolongamentos da história dos bandeirantes, cuja desobediência ao Tratado de Tordesilhas é avaliada como expansão do território nacional. Do ponto de vista do modernismo paulista, a matriz portuguesa e europeia é digerida, mastigada e tomada como cibo para se construir a identidade e autonomia intelectual em relação a Portugal, a Paris, ao Tio Sam. Trata-se de consciência da classe artística e intelectual brasileira que se reconhece como elite educada à francesa, mas se propõe a construir o pensamento “nacional” da “raça brasileira” por uma revisitação da história e dos textos do período colonial, remontando ao século XVI, ao trabalho de catequese de jesuítas, a fim de conferir outro sentido ao extrativismo do paubrasil e ao descimento de índios, para construí-los como elementos tradicionais da identidade brasileira e paulista. O projeto antropofágico latente em Terra roxa e outras terras reverte a identidade de paulistas de “desportistas que caçam índios” para paulistas que se comportam como índios canibais em relação à cultura europeia, deglutindo-a para encontrar a via original brasileira – a partir da valorização da cultura indígena, como Oswald de Andrade, pela antropofagia cultural, mas também pelo folclore, como Câmara Cascudo. No quinzenário, a busca da identidade nacional ELEGE a cultura popular e o folclore como lugares autênticos e originais da brasilidade. É preciso lidar com o fato de o lugar do Brasil na cultura ocidental estar condicionado à língua portuguesa, embora não à sua gramática, sistema de acentuação, de regência, de colocação de pronomes, sem falar na questão lexical e na construção sintática. Tais diferenças derivaram, por exemplo, na língua ítalo-paulista de Terra roxa e outras terras e na concordância verbal e nominal de paulistas, assim como na paulatina exclusão da segunda pessoa do discurso (tu/vós) da linguagem e do ensino do português brasileiro. Terra roxa e outras terras saúda a imigração italiana, que embranqueceu com o seu sangue europeu os ítalo-paulistas, criando uma raça de novos bandeirantes votados ao progresso do Brasil meridional, fornecendo uma identidade europeia ao paulista que revalidava a sua ancestralidade indígena, pela antropofagia, por assim dizer, pós-colonial.
Referências
KIDDER, Daniel Parish. Reminiscências de viagens e permanência no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1940.
OSÓRIO, Ana de Castro. A Grande Aliança (A minha propaganda no Brasil). Lisboa: Edições Lusitania, 1924.
OSÓRIO DE OLIVEIRA, José. Uma cultura francesa. Separata de: Bulletin des études portugaises. Lisboa, Institut Français au Portugal, Numéro spécial, 1940.
TERRA ROXA E OUTRAS TERRAS. Quinzenário, São Paulo, n. 1 a 7, 1926.
TITAN JR., Samuel; PUNTONI, Pedro (org.). Revistas do modernismo: 1922-1929 [caixa contendo as revistas Klaxon, Antropofagia, Verde, Terra roxa e outras terras, A revista e Estética]. São Paulo: Imprensa Oficial ; BBM/USP, 2014.