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Valéria Lamego

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Sobre os autores

Sobre os autores

A POLÍTICA E OS POETAS:1 AS DUAS FACES DA REVISTA RENOVAÇÃO, DE VICENTE DO REGO MONTEIRO

/ VALÉRIA LAMEGO

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I

Uma pretensão que o pesquisador deve sempre buscar é revelar novos sentidos para a história social da literatura a partir de documentos, livros ou periódicos jamais vistos ou lidos e, a princípio, considerados irrelevantes. Porém, em algum lugar de suas anotações, esse crítico precisa estar atento à frase de Hannah Arendt à qual recorro ao iniciar este trabalho com viés histórico: “A convicção de que tudo que acontece no mundo deve ser compreensível, pode levar-nos a interpretar a história por meio de lugares-comuns” (ARENDT, 2012, p. 12). Vicente do Rego Monteiro é um personagem quase inexistente para o cânone da literatura brasileira. A busca pela sua atuação nesse campo surgiu a partir do conhecimento de que, além de pintor modernista, ele foi poeta, com quase duas dezenas de livros publicados no Brasil e na França. Essas obras, escritas majoritariamente em francês, foram ignoradas pelos críticos e editores; não tiveram outra edição além da primeira, feita de forma quase artesanal nas prensas tipográficas do próprio autor, e não há biblioteca brasileira

1 Parafraseando o título do livro de Jacques Ranciére, La politique des poetes.

que tenha uma coleção completa delas. Os poemas de Rego Monteiro sequer foram traduzidos e publicados em seletas ou antologias. Como editor, foi responsável pela publicação dos primeiros poemas de jovens autores, entre eles, João Cabral de Melo Neto e Lêdo Ivo, nas páginas de sua revista Renovação, de que trataremos neste artigo. No rastro da descoberta desse editor, pintor e poeta, surgiu um personagem importante no cenário cultural pernambucano entre os anos de 1920 e 1950 (ANJOS; VENTURA). Talvez Vicente do Rego pudesse creditar a si próprio alguma relevância como editor de livros e produtor de congressos e salões de poesia, entre 1946 e 1957, na Paris do pós-guerra. No período, publicou mais de uma centena de autores de várias nacionalidades em sua La Presse à Bras, pequena editora tipográfica que funcionou em sua casa em Montparnasse, na Rue Didot. A língua oficial das publicações era o francês, porém, que se tenha notícia, nunca foi escrita uma linha na França sobre sua atuação literária, e são poucos os artigos e livros sobre esse período também no Brasil. Rego Monteiro nasceu em Recife, Pernambuco, em 1899. E morreu na mesma cidade, em 1970. Até os 60 anos, se dividiu entre longas passagens por Paris e outras de igual extensão por Recife. O ecletismo e a plasticidade de suas ideias – plasticidade no sentido de se amalgamarem com facilidade às ideologias de sua época – são o que vem movendo em parte as aflições desta pesquisa de pós-doutorado. Este artigo é uma pequena amostra de um estudo sobre a produção editorial do artista, não só como autor, mas, sobretudo, como editor, em um período tão crucial da vida das capitais europeias, como foi o pós-guerra. Procurei conhecer os seus 19 livros de poesia, que permaneceram exatamente como ele os deixou há mais de 70 anos. Ressaltamos o caráter plástico e artístico desses livros e plaquetes, que conjugam o apreço gráfico e tipográfico (com ilustrações apuradas do próprio Vicente) e poesias de circunstância influenciadas pelo surrealismo. Nesses mesmos acervos, sobretudo nas bibliotecas que fazem parte do complexo da Bibliothèque Nationale de France (BnF), conheci melhor sua atividade como editor-impressor. Busquei apreender o artista para quem João Cabral de Melo Neto escreveu o poema “A Vicente do Rego Monteiro”, que diz:

Eu vi teus bichos. mansos e domésticos: um motociclo

gato e cachorro. Estudei contigo um planador, volante máquina, incerta e frágil. Bebi da aguardente que fabricaste, servida às vezes numa leiteira. Mas sobretudo senti o susto de tuas surpresas E é por isso que quando a mim alguém pergunta tua profissão não digo nunca que és pintor ou professor (palavras pobres que nada dizem de tais surpresas); respondo sempre: – É inventor, trabalha ao ar livre de régua em punho, janela aberta sobre a manhã

(MELO NETO, 1994, p. 80-81)

Procurei o incansável “inventor cabralino”, o artista gráfico, o poeta politécnico, e venho encontrando um homem de muitas ideias e contradições políticas e estéticas, e de modo de agir complementares na sua Paris de autoexílio e no seu Recife natal. Na Paris do pós-guerra, a vida era precária em todos os níveis – desde as longas filas para compra de pão, pois o trigo era matéria rara, dada a devastação de suas plantações –, e os editores, principalmente de

origem judaica, retornavam aos poucos para a cidade. Nessa época, em que a impressão de livros sofria com a falta de tinta e papel, Rego Monteiro publicou mais de 20 coletâneas, além de organizar congressos de poesia na cidade, em lugares como o famoso restaurante La Coupole. Uma década antes, em 1930, editou em Paris uma das mais importantes revistas de arte contemporânea, a Montparnasse. Já em Recife, entre os anos de 1935 a 1945, foi, entre muitas invenções, editor de jornais e revistas, defensor da Igreja Católica e do Estado Novo, e agitador literário, tendo promovido o 1º Congresso de Poesia do Recife, em 1940.

Origem social

Vicente foi o terceiro filho de Ildefonso do Rego Monteiro, representante comercial da Havendich & Co., indústria têxtil inglesa, e de Elisa Cândida Figueiredo Melo do Rego Monteiro, professora, prima dos pintores acadêmicos e românticos Pedro Américo e Aurélio de Figueiredo, autores de obras fundamentais para a formação da iconografia da Primeira República e, sobretudo, da ideia de nação brasileira.2 Viveu parte da infância em Paris, com os pais e irmãos, e lá iniciou seus estudos em arte (ATIK, 2004, p. 21). Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, voltou ao Brasil, já adolescente, fixando residência no Rio de Janeiro, onde prosseguiu seus estudos. Seus irmãos receberam, como ele, formação católica e uma educação voltada para as carreiras ligadas às artes. José foi arquiteto; Fédora e Joaquim, pintores; Débora formou-se na Faculdade de Direito do Recife, mas tornou-se escritora. Em Paris, enquanto seu irmão José estudava arquitetura, Vicente acompanhou Fédora na Académie Julian, matriculado em um curso para jovens do departamento de escultura. Frequentou também os cursos noturnos de desenho e croquis da Académie Colarossi e da Académie de La Grande Chaumière. No Rio de Janeiro, frequentou a Escola Nacional de Belas Artes; assim, antes dos 14 anos, conhecia os museus europeus e tinha exposto por duas vezes na mais tradicional mostra de jovens artistas franceses, o Salon des Indépendants, com obras de temática cubista. Um currículo de fazer inveja a muitos artistas brasileiros mais velhos.

2 A exemplo de “Batalha do Avaí”, “Independência ou morte”, “Tiradentes esquartejado”, entre outras pinturas.

Arte indígena

Em 1921, no final da Primeira Guerra Mundial, Vicente retorna para a Europa, porém em uma breve passagem pelo Rio de Janeiro amplia suas pesquisas sobre a arte indígena nos livros do acervo do Museu Histórico Nacional. Seu interesse recai, sobretudo, sobre a coleção de arte marajoara, composta pelos vasos e cerâmicas com padronagem geométrica e ideográfica. Nos anos de 1920, artistas e pesquisadores brasileiros dedicaram-se ao conhecimento e à exploração temática de arte indígena de maneira crítica, científica e antropológica, reconhecendo tanto seu modo de vida como a sua complexidade. O novo movimento indigenista brasileiro distanciou-se em léguas do acontecido no século anterior, quando a geração dos românticos, que participou da independência política do Brasil, buscou nas raízes indígenas algo que os diferenciasse da matriz cultural reinol (CARDOSO, 2008, p. 180). Ao contrário de imagens de índios alegóricos, esses estudos buscavam situar as culturas indígenas no devido contexto, dando atenção à sua produção material e artística. Nesse ambiente, Rego Monteiro ilustrou-se a partir das pesquisas do naturalista Emílio Goeldi e dos etnógrafos Barbosa Rodrigues e Couto Magalhães. Paradoxalmente, inferimos que a procura de Vicente pelo conhecimento da arte indígena demonstra o quanto ele estava inserido não apenas na cultura brasileira, mas, sobretudo na arte europeia dos primeiros anos do século XX. Tanto cubistas como dadaístas descobriram nas artes dos povos originários da Ásia, da África e das Américas um estilo e uma liberdade estética que os levaram a romper com a estrutura conservadora mantida pela arte europeia no final do século XIX até o início do século XX.3 A adoção e a recepção das artes e culturas africanas e indígenas/americanas foram o passe de entrada dos artistas europeus (e eurocentrados) para uma nova estética, para um espaço livre das amarras acadêmicas propostas por um mundo que agonizava em uma crise política e financeira, como a vivida na Europa de meados da década de 1910 até 1930. A arte marajoara, com suas linhas geométricas, concêntricas, e com seus símbolos ideográficos, seria facilmente transportada para a leitura art déco em evidência na Europa. A primeira grande exposição de Vicente do Rego no Brasil foi em 1921, no Rio de Janeiro, na galeria do teatro Trianon, quando apresentou cerca de 70

3 Ver DADA AFRICA. Paris: Éditions du muséee d`Orsay ; Éditions Hazan, 2017.

aquarelas e desenhos influenciados por suas pesquisas no acervo indígena do Museu Histórico Nacional. O cubismo e a art-déco estavam presentes nessas pinturas, que retratavam indígenas longilíneos e delgados que mais lembravam sílfides da mitologia ocidental (ZANINI, 1997, p. 86). Após a mostra, Vicente parte para Paris e de lá só retornaria 15 anos depois. Em 1922, no entanto, o poeta Ronald de Carvalho, a quem confiou as obras da sua exposição, incluiu peças do artista no envio da delegação modernista carioca para a Semana de Arte Moderna. Vicente foi o único pintor pernambucano a participar da Semana de 22 e o único a levar a temática indígena para o evento.

II

A temática indígena na obra de Vicente ressurge três anos depois de sua participação na Semana de Arte Moderna. Em 1925, ele publica seu primeiro livro-arte de poesia, Quelques visages de Paris, de clara influência estéticográfica marajoara. Veremos que esse trânsito pendular cultural acomete também as suas ideias políticas na edição da revista Renovação, anos depois. A experiência do autoexílio – muito diferente do exílio em si, uma vez que o autoexílio é uma demanda exclusivamente pessoal sem pressões externas e do meio circundante – atravessa a sua vivência e o sentido dado à sua arte, à sua literatura e à sua participação como indivíduo na sociedade francesa e brasileira. Por onde teria passado essa experiência? Para a lírica moderna, o caminhar, o atravessar, foi fundamental para o estabelecimento do vínculo do sujeito poético com o meio e a poesia (RANCIÈRE, 2018, p. 73). Vicente trafegava entre as duas culturas, tanto a partir do centro-Paris para a periférica-Recife, como ao contrário. Porém, a partir de que lugar o poeta-tipógrafo movia sua apreensão artística e a transformava (e se a transformava)? A estética do outro, das vanguardas europeias, invadiu a sua “intimidação local” de artista latinoamericano da elite periférico-urbana, como veremos. Mas o que lhe “forneceu lastro” para a travessia entre a estética do outro e a sua percepção do que é local (MICELI, 2003) foi muito mais a sua relação com o eurocentrismo do que propriamente a ideia de transgressão expressa pelas vanguardas. A ideia do autoexílio é fundamental para o entendimento da linguagem e do sentido na obra de Vicente do Rego Monteiro, é a partir dela que se dá o diálogo entre o centro, a Europa, e o outro, o Brasil visto de Pernambuco.

Em Quelques visages de Paris, de 1925, o artista inaugura sua linguagem poética por meio da temática indígena, que atravessa a obra e se transforma ao contato com a cultura ocidental. No livro,o poeta é o mediador entre o centro (Europa) e o local (Brasil). Travestido da figura de um chefe indígena amazônico que passeia pela Paris central, Vicente narra, em francês, a visão de seu personagem por meio de versos e ícones que reinterpretam (também graficamente) os pontos mais representativos da cidade, tais como o Arco do Triunfo, a Torre Eiffel e a Place de la Concorde. A linguagem gráfica usada pelo artista é, visivelmente, decalcada da arte marajoara. No prefácio, o autor apresenta ao leitor francês o narrador da história como um “selvagem de uma tribo amazônica” que procura dialogar com a sociedade europeia:

Um chefe selvagem que deixa sua selva para uma viagem a Paris. Cansado de tantas belezas, ele retorna à sua oca. Numa de minhas viagens ao interior da Amazônia, eu tive a grande felicidade de conhecê-lo. Ele me contou suas impressões sobre Paris, ao mesmo tempo fiz uns rascunhos do que ele me narrava, que eu reuni sob o título de Qualques visages de Paris. (REGO MONTEIRO, 1925; tradução nossa).

Diz a voz indígena sobre a Basílica de Sacre-Coeur:

Uma igreja, toda Branca; sobre O alto de uma Colina Acredito que ela venha se perguntar para que tanta solidão

Ou sobre a Catedral de Notre-Dame:

Os velhos dizem: Diante daquela igreja Uma jovem mulher dançava.

É importante enfatizar que, em meio a esse período vertiginoso de ideias e revoluções estéticas, o artista moderno se colocava cada vez mais como um indivíduo, quase sempre imbuído do sentido de coletividade. As guerras e o ideal republicano levaram o artista a se posicionar coletivamente, mas, como consequência de toda a instabilidade política, social e cultural dos anos posteriores (e anteriores) à Primeira Guerra Mundial e das crises econômicas, ideologias insidiosas como o fascismo, o comunismo e o nazismo disputavam centímetro a centímetro os espaços dos periódicos e a atenção desses artistas. Entre os anos de 1920 e 1930, Vicente do Rego Monteiro tomou contato com as revistas e a publicação de periódicos de arte na França, chegando a editor da Montparnasse, vitrine da arte contemporânea esteticamente mais conservadora, advinda dos prestigiados salões4. As publicações que surgiram no período foram fundamentais para sedimentar a ideia pendular de trânsito e de passagem, e formaram o pilar de sustentação da divulgação estética e das ideologias políticas e sociais que marcaram o período.

Surge Renovação

A mais longa permanência de Vicente do Rego no Brasil, antes do retorno definitivo, no final da década de 1950, se deu em meados de 1930. O artista retorna de uma Europa em crise, desgastada economicamente pela recessão de 1929 e com uma segunda guerra a caminho. Por quase 15 anos, se estabelece na capital pernambucana e tenta diversas atividades econômicas e editoriais, desde produtor de aguardente a professor, político e editor de revistas e jornais. Era um inventor de possibilidades. Seu empreendimento mais bem-sucedido foi a revista Renovação, que surgiu em julho de 1939, tendo desaparecido quatro anos depois. A publicação pode ser dividida em duas fases: a primeira, mais política e de divulgação de ideais católicos e fascistas, e a segunda, predominantemente dedicada à literatura francesa. Desde sua estreia, a revista se posicionou como se em uma guerra ideológica e patrimonial – sendo o patrimônio a literatura, a arte e a cultura para o povo, e não popular – com os grupos e as publicações modernistas.

4 Principalmente os Salon des Indépendants (fundado em 1904) e o Salon d’Automne (fundado pelos impressionistas em 1903).

Em seu primeiro editorial, de julho de 1939, Vicente assina as prédicas e as intenções da revista, deixando evidente que o órgão surgiu para se opor não só às revistas literárias, mas às ideias surgidas durante o movimento de 1922. Diz ele:

Renovação não é uma revista nascida de egoísmos pessoais, de capelas literárias ou intriga de jovens envelhecidos pelo pessimismo e ambições desmedidas [...]. Renovação é a síntese de uma vontade despretensiosa que vai realizar, em Pernambuco, a elevação espiritual das classes trabalhadoras, construindo sobre alicerces cristãos a grande obra do futuro; Renovação é ação cultural, artística e ideológica, e como tal obedece às necessidades inelutáveis do novo regime.5

Embora a crítica parecesse um tanto anacrônica, veremos que a publicação ataca não exatamente o modernismo histórico, mas seu legado na pesquisa da cultura brasileira, em que ritmos, modos de expressão e temáticas populares foram incorporados tanto à literatura como à música, à educação e às artes plásticas. As expressões “valores nacionais”, “grandeza da pátria” e “elevação espiritual” são repetidas com frequência em seus editoriais que enaltecem, num primeiro momento, o Estado Novo (1937-1945) e Getúlio Vargas como o líder inconteste. A revista, como propõe o editorial, é um órgão que “obedece às necessidades inelutáveis do novo regime”. A estrutura da publicação permaneceu inalterada nos primeiros três anos; era uma revista de luxo para a época, em papel couché de baixa gramatura, no formato 21 × 28cm, com 20 páginas e muitas imagens e ilustrações primorosas do próprio Vicente, que, naquele momento, era nacionalmente reconhecido como um dos grandes artistas brasileiros. Porém, na capa, Renovação estampou na maior parte de suas edições da primeira fase alguma pintura renascentista de passagem bíblica: O crucificado, de Lorenzo, do século XV; Nossa Senhora e o menino, de Andrea Orcagna, também do século XV; ou, ainda, São João Evangelista, do século XIV, de Ugolino della Gherardesca, da escola florentina; entre muitas outras. Um motivo pagão só foi surgir anos depois, o que demonstrava claramente que a revista era um órgão muito mais católico do que um “órgão de ação de educação proletária”, como expresso no alto da capa, acima das pinturas.

5 Monteiro do Rego, Vicente. Renovação, Ano 1, Recife, 1939.

A ideia de popular, por exemplo, não era exatamente aquela estabelecida pelos estudos e pesquisas de Mário de Andrade e Santa Rosa, para não falar de Câmara Cascudo e Cecília Meireles, que encontraram nas diversas formas de expressão da arte popular uma linguagem da brasilidade que seria incorporada por artistas e intelectuais. Em um artigo intitulado “Música”, assinado por Vicente Fitipaldi, no número de julho de 1939, o autor se pergunta: “O que o nosso povo canta?”. E ele próprio responde: “Músicas dissolventes que amolecem o caráter.” O artigo defende o ensino da música clássica como forma de “educar nosso povo” contra a malemolência do samba, da cuíca, e faz sobretudo uma preleção contra a imagem e a ideia do “mulato bamba”... “Ao povo”, diz o artigo, “nunca foi oferecida música boa; vejam, pois, o samba, a marchinha, a batucada, o diabo”, sentencia, ao estipular uma escala de valores em que o racismo, o desprezo pela música brasileira e a supremacia do ideal europeu disputavam os espaços simbólicos e culturais ali construídos (FITIPALDI, 1940). A ideia de “educação proletária” – ostentada como slogan no alto da capa da publicação – vinha na esteira de uma série de programas socioeducacionais que reunia três áreas: educação, religião e sindicalização. Muitos dos colaboradores da revista – que apresentavam suas ideias por meio de organogramas profissionais, eram oriundos de órgãos católicos de educação, ligados ao Centro Dom Vital6. E os seus programas eram vinculados claramente à ideia e aos ideólogos do fascismo italiano como Pannunzio e Sorel. No início de suas atividades, a revista apareceu como um periódico de divulgação do pensamento político e econômico alinhado com o governo Vargas. Aos poucos, entretanto, as menções e os elogios ao Estado Novo vão rareando e, concomitantemente, surgem artigos em defesa da família, da religião, do sindicato cristão e da administração pública, até teses anticomunistas e antimaterialistas. Havia, no entanto, um espaço voltado para a arte e a poesia. A arte veiculada nos artigos era dos grandes mestres europeus modernos como Renoir e Picasso. Todos os ensaios sobre arte, desse período da revista, eram interpretações ideológicas que levavam, direta ou indiretamente, ao ideário do fascismo, lembrando que este cooptou o futurismo como divulgador de suas

6 Associação civil para estudo, discussão e apostolado, subordinada à Igreja Católica, fundada em maio de 1922 por Jackson Figueiredo. Era uma associação de caráter elitista, cujos objetivos mais importantes eram atrair para a Igreja elementos da intelectualidade do país e formar uma “nova geração de intelectuais católicos”. Ver http://www.cpdoc.fgv.br, consultado em 24/09/2019.

ideias (SCHNAPP, 1996), dentre outras subversões. O autor do artigo sobre Renoir, por exemplo, é Gino Severini, futurista italiano residente na França. Na apresentação, Vicente do Rego destaca dois fatos sobre Severini, sendo nenhum deles corroborado pela história e crítica recente: Primeiro, diz que “o futurismo associou-se ao fascismo na sua marcha ascensional ao poder”, tendo sido justamente o contrário, como demonstra Perloff (1993) e Schnapp (1996). Para os críticos contemporâneos, o fascismo usou o modelo do futurismo para criar um ambiente artístico e nacionalista. Segundo Vicente, “cedo Severini desertou das ‘milícias futuristas pagãs’ para realizar a grande obra humana do individual e do coletivo em Cristo”. Também não se tem notícia da conversão de Severini. Curiosamente, nas frestas de Renovação, surge a poesia contemporânea pernambucana do período. Em 1940, ainda na primeira fase, o jovem João Cabral de Melo Neto publica “Poema deserto”, e na fase mais literária, em 1943, publica “Paisagem zero”, e, em 1944, “O funcionário” (MAMEDE, 1987). Décadas depois, em uma entrevista concedida à Folha de S. Paulo, em 1991, o poeta relembra Renovação e destaca a ligação da revista com certo sindicalismo católico, lembrando que Vicente do Rego levou-a, o quanto pôde, para o “lado literário”. O sindicato mencionado por João Cabral era de fato atrelado às atividades católicas. Porém, seus organizadores pegaram emprestado o modelo idealizado na Itália pelos líderes fascistas Sergio Pannunzio e Georges Sorel, citados à exaustão nas páginas de Renovação. Sorel e os sorelinos, como eram chamados seus seguidores, fundamentaram uma relação entre trabalho, proletariado, sindicalismo e Igreja a partir de uma forte crítica antimaterialista que unia uma espécie de espiritualismo católico com um verdadeiro pavor ao marxismo. No artigo “Renovação sindical”, o padre Leopoldo Brentano (Renovação, julho, 1939), gaúcho, fundador do Círculo Operário e um dos líderes do Centro Dom Vital, pontifica: “o sindicato marxista serve à luta e não ao bemestar das famílias. O sindicalismo teve dois grandes inimigos, o liberalismo individualista e o comunismo marxista. Ambos ainda continuam na arena”. A primeira fase da revista de Vicente Monteiro, descrita pelos seus pesquisadores como simpatizante do Estado Novo, era claramente um órgão divulgador das políticas sociais e econômicas fascistas no Brasil. Atuava como forte opositora ao comunismo, divulgava leituras antissemitas e de admiração pela educação dos jovens na Alemanha nazista. Como observa Zeev Sternhel na introdução do seu clássico The Birth of Fascist Ideology – From Cultural

Rebellion to Political Revolution, o fascismo foi uma revisão antimaterialista e antirracionalista do marxismo e não uma variante deste. Renovação bebeu vastamente nessa fonte. Em todos os seus números, padres e educadores escreviam sobre a relação do trabalho e da união dos trabalhadores em torno de um sindicato espiritual, antimaterialista e que buscasse o bem-estar promovido pela Igreja Católica. As referências que seus articulistas encontravam para ilustrar suas ideias estavam calcadas nos pensamentos de Sorel e Pannunzio, só para citar dois dos mais famosos fundadores do fascismo ideológico. Na Itália, a Igreja Católica apoiou Mussolini como uma demonstração de boa vontade pelo fato de o ditador italiano ter conduzido, juntamente com o Papa Pio XI, o Tratado de Latrão, de 1929, tornando o Vaticano um Estado independente e um dos mais ricos do ocidente. É curioso que nenhum estudioso de Rego Monteiro tenha observado que a revista Renovação – na qual ele assinava todos os editoriais juntamente com seu sócio, Edgard Fernandes – trouxe para a sociedade pernambucana questões como: a divulgação das atividades sindicais de cunho fascistas no Brasil; a divulgação das práticas católicas que combinavam os centros do operariado com uma forma de “sindicalização espiritual”; e a ferrenha oposição às ideias marxistas e materiais, principalmente dos sindicatos e de todas as atividades que pudessem estar supostamente relacionadas ao materialismo marxista – como a literatura praticada no Brasil na década de 1930, que foi alvo permanente dessa crítica pregada por Renovação. Também foi operada, por meio dos artigos, uma oposição radical e desmedida à música brasileira popular, sobretudo ao samba. Segundo seus articulistas, eram ritmos reverenciados em demasia pelos marxistas. Por outro lado, as discussões sobre sindicalismo espiritual fascista e cultural eram mensais. Em um desses ensaios, “Teatro e arte popular” (1939), José Campelo defende a organização da Opera Nazionale Dopolavoro, que literalmente significa “Obra nacional para depois do trabalho”. Dopolavoro foi uma organização recreativa fascista italiana, criada em 1º de maio de 1925, para supostamente promover o desenvolvimento físico, intelectual e moral da população nos feriados e finais de semana. A partir da instituição do Dopolavoro, o trabalhador italiano era ocupado pela cantilena fascista não só durante os horários de trabalho, mas também em suas folgas. Era ali, no lazer, que a ideologia se infiltrava de maneira célere e despercebida. Os fascistas, segundo Marjorie Perloff, no clássico O momento futurista (2003), estetizaram ao máximo a política e suas ideologias, enquanto o comunismo politizou o estético. Os italianos chegaram a criar os famosos

teatros em que cabiam vinte mil pessoas, para encenar as conquistas do fascio com mais de dois mil atores no palco (SCHNAPP, 1996). Até Renovação chegar a sua segunda fase, predominantemente literária, é possível afirmar que era um órgão católico de divulgação das atividades fascistas para o trabalho e para a cultura, e de homenagem ao Estado Novo, em um momento em que ecos do horror da Segunda Guerra chegavam por meio da imprensa e por tímidos relatos daqueles que conseguiram escapar. Ao analisar a primeira fase da Renovação e a sua recepção, hoje, pelos estudiosos de obra e vida de Vicente do Rego, podemos supor que a “silenciosa corrente subterrânea da história” de Hannah Arendt pode ser, em nosso caso, uma página do equivocado cordialismo brasileiro que apaga amiúde as mazelas de sua elite. Com o paulatino afastamento do governo Vargas das posições do Eixo, na Segunda Guerra, e o apoio aos americanos, sobretudo a partir da política de boa vizinhança norte-americana (1933-1945), cuja reunião decisiva, no Brasil, data de 1942, nota-se uma mudança gradual no editorial da revista. Continuam os editoriais nacionalistas, bem como os artigos sobre sindicalismo e dietas alimentares, porém os nomes de líderes fascistas foram paulatinamente apagados.

III

As poesias publicadas na primeira fase de Renovação eram, em sua maioria, voltadas às questões clericais, com versos quase pueris. Porém, na sua via de transformação, surgem jovens autores como João Cabral, Jorge de Lima, Lêdo Ivo e Rangel Bandeira. No final desta fase, vemos o aparecimento frequente do crítico Willy Lewin, que assina a série Diário de poesia. O marco desse novo momento é o lançamento do 1º Congresso de Poesia no Recife, em dezembro de 1940, cujo editorial de divulgação é assinado por Lewin, Vicente do Rego e João Cabral, na época com apenas 19 anos. Diz o editorial: “A poesia nada ‘resolve’. A poesia não é uma coisa ‘útil’. A poesia é um mistério amável”. A palavra “mistério” é usada constantemente como oposição às questões e estéticas ditas materiais, relacionadas à literatura realista ou regionalista. A ideia de mistério, como símbolo, é vinculada ao mistério da criação da vida. Assim, por meio de artifícios linguísticos, a revista se opõe também ao materialismo do qual a literatura da década de 1930, segundo os autores de Renovação, era feita. Discussões sobre a espiritualidade na literatura dominam

por meses as páginas de Renovação. Os argumentos vão desde se há espaço para a existência de uma poesia materialista/realista, até se a linguagem poética poderia conter ironia. Lewin escreve em seu Diário as seguintes pensatas líricas: “O que existe de belo numa paisagem, nas coisas do mundo, é a eterna, a misteriosa, a invisível Presença que elas ocultam e refletem. Um poeta realmente materialista: que absurdo!” Ou ainda: “O espírito irônico e o espírito poético se repelem. A ironia é essencialmente racional. É mesmo o requinte do racional. Ora, o poeta é o tipo que se deslumbra, do que acredita em ‘mágicas’.” (Lewin, Renovação, 1940). O debate se estende até chegar à análise da poesia de Manuel Bandeira: “seria ela irônica e lírica?”. Seria possível a união entre estados de “espírito” paradoxais, perguntam-se. Destas indagações sobressai, no entanto, o surgimento de vozes dissonantes na publicação, mostrando a possibilidade da convivência do dito materialismo com uma linguagem lírica poética. Esse breve hiato, no entanto, é perpassado pela certeza quase pétrea de Vicente do Rego Monteiro que na política, como na poesia, os opostos se enfrentam e não convivem; ou o poeta é “frio e lógico” ou “legítimo tapeceiro”. Esse poeta tapeceiro, que surgiu na narrativa de Rego Monteiro – naqueles anos de mudanças políticas em que o Brasil optou sem convicção pela democracia e não pela tirania dos regimes totalitários – se debruçou em uma linguagem obscura, em que objetos ganham vida e assumem o espaço simbólico. No final da primeira fase de Renovação, o surrealismo domina os versos com sua transmutação do discurso politizado de antes para um mundo de alusões oníricas, deslocando, com isso, o lugar da política e da literatura. Vicente do Rego publica, no período, em uma separata, o seu ensaio Mobiliário interior da poesia:

Este pequeno ensaio sobre o mobiliário interior da poesia não tem outro fim senão o de realizar uma viagem de atmosfera da poesia pelo seu mobiliário. Mobiliário interior da poesia não quer dizer estilo de móveis para a poesia. Para o verdadeiro poeta uma nuvem pode ser um leito de colunatas e de baldaquino rosa. Um fragmento de chifre de rena esculpido e a câmara de explosão de um cilindro de aço – ritmos novos para o seu atelier. [...] Uma gaiola de pássaros se transforma numa bela dama de anquinhas com arcos de baleia e ligas violetas; o papagaio se metamorfoseia em ganso branco. “E, aliás, por esse dualismo mágico-poético que distinguimos o legítimo poeta tapeceiro do frio e lógico pastichador.” (REGO MONTEIRO, s/d, s/p).

Há várias leituras possíveis para esse ensaio de Vicente do Rego, desde a clara influência de Mallarmé até o uso de uma nova linguagem que o afastava (e, por conseguinte, a publicação) do universo anterior, mostrando-se, a partir de então, dedicado exclusivamente ao poético. Com os novos ares, em 1942, quando o governo brasileiro não flertava mais politicamente nem com o nazismo e, tampouco, com o fascismo, Renovação se torna uma publicação exclusivamente literária. Desapareceram os artigos fanáticos, os organogramas fascistas, e, sobretudo, os ensaios que glorificavam figuras como Pannunzio, Sorel, Manoilescu e outros do panteão de Mussolini. A revista ressurge, em sua segunda fase, menor, com uma publicação inteiramente dedicada a Mallarmé, na qual constam ensaios de João Cabral e Manuel Bandeira. Não se fala mais da política ideológica, não se abrigam mais contendas, e as diferenças se diluem, aparentemente, em uma desabrida ode à cultura francesa. O pêndulo mais uma vez oscila, leva a cultura de um lado para o outro, porém as cicatrizes ficam, e o que se plantou no subsolo das intenções totalitárias criaram raízes fecundas, porém invisíveis.

Referências

ANJOS, M. dos; VENTURA, Jorge. “Picasso visita o Recife: a exposição da escola de Paris em março de 1930”. Revista de estudos avançados, São Paulo, 1998.

ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

ATIK, Maria Luiza Guarnieri. Vicente do Rego Monteiro: um brasileiro na França. São Paulo: Editora Mackenzie, 2003.

CARDOSO, Rafael. “Vicente do Rego Monteiro: atirador de arco”. In: CARDOSO, Rafael (Org.). A arte brasileira em 25 quadros (1790-1930). Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.

DADA AFRICA. Paris: Éditions du muséee d`Orsay/Éditions Hazan, 2017.

MAMEDE, Zila, Civil geometria: bibliografia crítica de João Cabral de Melo Neto (1942-1982). São Paulo: Nobel, Edusp, INL, Vitae; Natal: Governo do Estado do Rio Grande do Norte, 1987.

MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

MICELI, Sergio. Nacional estrangeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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