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Susana Scramim

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Sobre os autores

Sobre os autores

TEORIA, ARTE E UNIVERSIDADE: AS REVISTAS NOIGANDRES E INVENÇÃO

/ SUSANA SCRAMIM

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Esta pesquisa tem uma motivação situada entre a História, esse saber que ocupa um lugar soberano entre as ciências antropológicas, e a escrita literária, pensada com um compromisso com os saberes que são produzidos no âmbito de uma sociedade. No contexto imediato de minha fala, assiste-se, no Brasil, a um arruinamento da ideia da ciência. Passamos do consenso de elaborála mentalmente como algo bom, que deva ser cultivado e promovido no planejamento do futuro, a um rechaço ao pensamento científico, porque ele estaria a serviço de ideologias. A página na internet da Science publicou os resultados da pesquisa “Welcome Global Monitor 2018”, feita com 140 mil pessoas de 144 países. Nos dados coletados, observa-se que 35% dos brasileiros desconfiam da ciência e que um em cada quatro acredita que a produção científica não contribui para o país. Quase metade dos brasileiros afirmou que “a ciência discorda da minha religião” e, desses, 75% disseram que “quando ciência e religião discordam, escolho a religião”. Apenas 13% dos brasileiros entrevistados afirmaram ter “muita confiança” na produção científica.1 Também em outra recente pesquisa, a Fiocruz revela que metade dos jovens pensa que cientistas exageram sobre o aquecimento global; 40%

1 RABESANDRATANA, Tania. These are the countries that trust scientists the most-and the least. Science

News, 19/06/2019. https://doi.org/10.1126/science.aay4391. Acesso em 24 jun. 2019.

deles têm a convicção de que seres humanos não necessariamente evoluíram ou têm relação filogenética com outras espécies do planeta; um quarto deles acha que vacina pode fazer mal.2 Existe algo doentio no ar que estamos respirando. Estamos, sim, precisando de vacinas. Nem nos meus piores sonhos, pensei em ter que defender a ciência outra vez. Fui formada por professores que me ensinaram a testar e ampliar os limites da ideia de ciência, mas nunca a não lhe dar crédito e, desse modo, destruí-la. Meu trabalho de pesquisa, em função desses acontecimentos regressivos dos tempos atuais, acabou sofrendo dos males da sua época: o de ter que voltar às décadas de 1960 e 70. Tento buscar um lugar intermediário para enunciar ainda uma vez verdades disciplinares. Gostaria de refletir um pouco a partir das premissas da disciplina nomeada de Teoria Literária e também de Teoria da Literatura, como podemos recordar a partir da polêmica protagonizada por Antoine Compagnon, no âmbito francês, na década de 1980, quando das discussões na cultura ocidentalizada daquilo que era próprio – situado internamente aos procedimentos técnicos do texto – ou do que era passível de ser situado fora das fronteiras do espaço autonomista literário, isto é, no seu exterior. O que estava em questão naqueles anos era a resposta complexa necessariamente a ser devolvida a uma pergunta capciosa que previamente continha já sua solução simplista na própria formulação da questão, quer seja, a de onde se situa a verdade de uma disciplina. Ou: o que é a teoria literária? Ainda que não seja possível propor uma verdade para nossas práticas de ensino da teoria da literatura, e nem mesmo a possibilidade de uma única história para ela, penso que há uma emergência em nossa área, não em função de uma ameaça tecnológica ou de mudança de paradigma científico no tratamento das questões estruturais da prática literária, mas há uma emergência que advém de algo completamente exterior à própria teoria, que a ameaça e que poderá destruir a força de transformação e de desdobramentos internos que ela potencializa. Devo ressaltar previamente como um antídoto ao meu próprio modo de pensar que é preciso dizer mais uma vez que um discurso científico não é eterno, não é passível de uma definição simplista, e que ele ocupa lugares de poder distintos no transcurso da história humana. Basta lembrar que a teologia, outrora ciência soberana, foi até ontem um discurso exíguo, que se situava mal no âmbito

2 REHEN, Stevens.Falta ciência na vida dos brasileiros. Blog do Stevens Rehen, 24/06/2019. https://stevensrehen. blogosfera.uol.com.br/2019/06/24/falta-ciencia-na-vida-dos-brasileiros/. Acesso em 24 jun. 2019.

da ciência antropológica, ficando restrita ao estudo histórico das religiões. Contudo, no Brasil dos anos 2000, a proposição de um lugar de destaque para a teologia no debate sobre a ciência tem demonstrado a fragilidade não somente das áreas ditas humanas, mas de toda uma comunidade de discursos científicos altamente sofisticados, que vão desde a biologia até a astrofísica. Na sociedade brasileira dos dias de hoje, a ciência, em vez de atuar como doadora de modelos experimentais para o futuro, tem demonstrado o seu reverso, a afirmação de paradigmas3 expostos a partir de convicções particulares, singularidades extremadas e situações unicamente passíveis de exemplificação individual, distanciando-se do conceito de paradigma científico definido pelo médico e biólogo polaco Ludwik Fleck. Ele criou, na década de 1930, o conceito de “pensamento coletivo”, que foi importante para a história, filosofia e sociologia da ciência, pois ajudou a compreender como as ideias científicas se modificam ao longo do tempo. Demonstrou, ainda, que a normatividade do pensamento coletivo é resultado de uma dialética sempre em movimento entre experimentos individuais e normatividade científica; portanto, o paradigma é resultado dela. Para Fleck, o pensamento singular necessita ser comungado pelo modo de organizar do pensamento coletivo. Na década de 1960, Thomas Kuhn, no livro The structure of scientific revolution (1962), retoma a discussão empreendida por Fleck, propondo o conceito de paradigma tanto para o conjunto de regras e normatividade dos valores de uma comunidade científica quanto para cada elemento singular desse conjunto. A equiparação do pensamento singular à qualidade de paradigma científico alterou imediatamente a ideia de ciência. A teoria literária não ficou imune a essa discussão. O debate, sempre desejável, marcado, em nossa área, por oposições entre estruturalismo e sociologia do texto literário, desdobradas nos diálogos (nem sempre sem disputas) entre o pós-estruturalismo e estudos culturais, ofereceu à área uma história com um quadro bem complexo de se narrar.

3 Em 2008, como maneira de esclarecer os frequentes usos que faz do conceito de “paradigma”, Giorgio

Agamben publica o livro Signatura rerum. Nele, discorre acerca do problema do seu método de análise filosófica da modernidade e inicia o processo com a comparação entre o conceito de “paradigma”, de

Thomaz Khun e de Michael Foucault, chegando à conclusão de que haveria diferenças mais políticas do que propriamente epistemológicas nos usos que ambos fazem do “paradigma”. Com essa advertência, faz notar que há, no modo como os enunciados científicos estabeleceriam entre si regimes de poder, usos de discursos de legitimação. O paradigma para Agamben tem a função de fazer inteligíveis aqueles fenômenos cujo parentesco havia escapado ou poderia escapar ao ponto de vista histórico. E, nesse sentido, ele não se restringe a coisas ou à mente do investigador, sendo sua exemplaridade dada como potência e não como realização individual ou coletiva, a partir de um sujeito ou de um objeto. Cf. AGAMBEN, 2019.

Em 7 de janeiro de 1977, ao proferir sua aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio de França, Roland Barthes justifica o “projeto profundo do ensino” que se iniciava naquele momento, em função de certo esgotamento que o ensino das Letras experimentava na década anterior. Segundo Barthes, a filologia estava “dilacerada até o cansaço, entre as pressões da demanda tecnocrática e o desejo revolucionário de seus estudantes. Sem dúvida, ensinar, falar simplesmente, fora de toda sanção institucional, não constitui uma atividade, por direito, pura de qualquer poder” (BARTHES, 1987, p. 10). Tendo em vista a atitude não ingênua de Barthes de não localizar fora do jogo do poder o ensino produzido no Colégio de França, que ele qualificava como um lugar eminentemente de pesquisa e de fala – “e de prazerosamente sonhar alto sua pesquisa e de falar – não de julgar, de escolher, de promover ou sujeitar-se a um saber dirigido: privilégio enorme, quase injusto” (BARTHES, 1987, p. 10), naquele momento de crise, em que pesem todas essas qualidades, ele propunha que a semiologia pudesse fazer com que esse ensino alcançasse a plenitude de ser livre, e para tal deveria “indagar-se sob que condições e segundo que operações o discurso pode despojar-se de todo desejo de agarrar” (BARTHES, 1987, p. 10). É com esse propósito que Barthes faz sua opção pela pesquisa semiológica, investindo no ensaio que é, segundo ele, o lugar onde a escritura rivaliza com a análise, passando a definir a literatura como “uma prática de escrever” (BARTHES, 1987, p. 17). Em seu elogio à imprecisão, Barthes comentava que, naqueles dias em que escrevia sua aula, era de “bom-tom” contestar a oposição das ciências às letras e que talvez, algum dia, essa oposição aparecesse apenas como um mito histórico. No entanto, do ponto de vista da linguagem, essa distinção era útil para evidenciar os lugares de fala. De acordo com a linguística, o saber é um enunciado, e, para a escritura, ele é uma enunciação. O enunciado é produto de uma ausência do enunciador, e a enunciação exporia “o lugar e a energia do sujeito, quiçá sua falta (que não é o mesmo que sua ausência)” (BARTHES, 1987, p. 20), sendo que a “enunciação faz ouvir um sujeito ao mesmo tempo insistente e insituável, desconhecido e, no entanto, reconhecido segundo uma inquietante familiaridade” (BARTHES, 1987, p. 21). As instâncias de servidão e poder se encontram no uso da língua, contudo, a prática da escrita permitiria “instituir no próprio seio da linguagem servil uma verdadeira heteronímia das coisas. Eis-nos diante da semiologia” (BARTHES, 1987, p. 29).

Nos anos 1970, Roland Barthes analisou a disciplina de teoria literária diante das ameaças imediatas às quais estava sujeita, a saber, a tecnocracia e a opressão dos paradigmas científicos vigentes. Diante da catástrofe que vivemos hoje, a tecnocracia continua a impor sua agenda de atualizações, no entanto, não são mais os paradigmas de uma ciência todo-poderosa que nos acossam, mas seu exato reverso, o pensamento anticientífico e, ainda mais do que isso, o seu fruto mais perverso, isto é, a manipulação das opiniões e da tomada de decisões a partir de uma maneira encantada e mítica de enxergar os acontecimentos. Realmente, conseguimos retornar 50 anos ou, talvez, mais. Com isso, tento justificar meu desejo de voltar ao trabalho de divulgação da prática de escrita que pretendia instituir no âmago de um estudo científico da língua uma heteronímia das coisas, apostando, com isso, na ampliação dos limites formais da língua e do mundo, e que foi empreendido no Brasil especialmente, mas não somente, pela vanguarda concretista de modo militante nas duas revistas organizadas pelo grupo de artistas reunidos sob a orientação desse tipo de revolução na linguagem. Fixados numa das proposições mallarmaicas, “Mudar a língua”, marcaram encontro com a palavra de ordem de Marx, “Mudar o mundo”, colocando suas obras em estado de escuta política. Reuniram-se Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari em torno de um nome, Noigandres, incluíram-se nele Reinaldo Azeredo e José Lino Grünewald, respectivamente em 1956 (no número 3) e 1962 (no número 5). A partir disso, produziram a poesia concreta. Uma análise apurada dos cinco números da primeira revista do grupo, a Noigandres, permite acompanhar o desenvolvimento da produção da poesia desses escritores. Essa análise demonstra que, nos seus primeiros números, se publica também a produção anterior ao lançamento oficial da vanguarda concreta, que aconteceu primeiramente na Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em dezembro de 1956, e, posteriormente, no prédio do Ministério da Saúde, no Rio de Janeiro, de janeiro a fevereiro de 1957. Uma descrição detalhada de tudo o que foi publicado nos cinco números da revista pode ser encontrado nos ensaios de Omar Khouri (2006), Carlos Ávila (2006) e Gonzalo Aguilar (2005). Do que foi publicado na revista Noigandres, gostaria de destacar aquilo que há de alimentar minha hipótese na releitura dessas duas revistas da vanguarda concretista. Haroldo de Campos, em 1984, quando encerra as atividades de grupo de escritores reunidos em torno do nome “poesia concreta”, reconhece a limitação histórica da vanguarda; no entanto, justifica a motivação para as

quase três décadas de intensa produção de pesquisa formalista/estruturalista com a língua e com a cultura brasileira como uma estratégia para tentar escapar à servidão que a língua em sua tendência à reprodução de parâmetros impõe aos seus falantes. A estratégia consistia em deslocar infinitamente o sentido no manejo com a própria língua e suas estruturas. Esse deslocamento constante provocaria uma instabilidade e tamanha falta de essências que faria com que a língua se encontrasse com algo relacionado a um espetáculo, um teatro da linguagem no qual são intercambiados os nomes, e não as essências. Em 1984, nos dois artigos4 que publica no caderno de cultura “Folhetim”, da Folha de São Paulo, Haroldo de Campos apostou em um gesto que tem o sentido tanto de “abjurar” a vanguarda concretista, a partir da análise do resultado alcançado por ela frente às demandas de seu tempo, quanto de “abjurar” a crença na capacidade infinita de produzir uma espécie de “essência” do espetáculo da língua operado pela vanguarda. E note-se aqui que essa ação de “abjurar” não está feita com base em convicções, e sim assentada num jogo restrito com os elementos formais da língua; consiste em novamente jogar com os signos no lugar de destruí-los ou superá-los, e, a partir dessa constatação, colocá-los em uma maquinaria de linguagem.

A revista Noigandres

A partir da hipótese de que o trabalho com a língua na poesia concreta se transformaria numa operação inserida na linguagem em geral, fundamentada num deslocamento constante que daria visibilidade à instabilidade do espetáculo e ao teatro não essencialista da linguagem, gostaria de destacar, dos cinco números de Noigandres (capas apresentadas a seguir, Figuras 1, 2, 4, 5 e 6), a publicação no número 2, em 1952, do poema “ciropédia, ou a educação do príncipe”, e do “servidão de passagem”, de Haroldo de Campos. Também dou destaque ao poema-manifesto “poetamenos”, de Augusto de Campos, e ao “Plano-Piloto para Poesia Concreta”, publicados em Noigandres 4, em 1958. Sublinhe-se aqui que o “Plano-Piloto” foi publicado em duas línguas: português e inglês.

4 Cf. CAMPOS, Haroldo de. Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação. Folha de São Paulo,

Folhetim, 7 nov. 1984; e CAMPOS, Haroldo de. Poesia e modernidade: o poema pós-utópico. Folha de

São Paulo, Folhetim, 14 nov. 1984.

Figuras 1 e 2. Capas da revista Noigrandes, números 1 e 2 respectivamente.

Aquilo que destaco desses textos é a tonalidade de manifesto, com a singularidade de serem neles compostas e expostas teorias da linguagem para a arte. No macunaímico poema “ciropédia”, o que se constrói é uma exposição de premissas que devem organizar o pensamento que “forma”, “educa” e “disciplina” o poeta, herói da nação. A relação com a política não se faz com dados ou informações da realidade histórica, afinal, comparar um príncipe como Ciro, da dinastia dos Aquemênidas da Pérsia, que viveu entre 559-530 a.C., com um poeta, mesmo que seja um herói nacional, é algo passível de formulação apenas no âmbito da própria literatura. Contudo, tampouco se trata de uma paródia da obra homônima do então soldado e discípulo de Sócrates, Xenofonte. No poema de Haroldo de Campos, se compõe um jogo linguístico que envolve gêneros discursivos distintos, como o tratado político, a biografia, o tratado poético e a própria linguagem literária, encenada em seus mitos que aparecem como citações de outros textos, como, por exemplo, a repetição deslocada das singulares aliterações em “v” do reconhecido poema de Cruz e Sousa, publicado postumamente no livro Faróis, “Violões que choram”: “Vozes veladas, veludosas vozes,/ Volúpias dos violões, vozes veladas,/ Vagam nos velhos

vórtices velozes/ Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas” (SOUSA, 1993, p. 91). No poema de Haroldo de Campos, as mulheres do reino de Agedor, submetido ao regime político do “matriarcado de ovários ávidos”, são apresentadas como “vulveludosas mulheres, valvas cor crepúsculo, calipígias/ Sorriem/ Em bandos, infestam as ruas, em Agedor” (CAMPOS, 1962, p. 57). Explícito jogo teatral esse que se conforma nele mesmo, já também puro teatro, porque inscreve seu trabalho no campo da ciência, da literatura, da lexicologia e até mesmo da sociologia, tendo como resultado um texto-ensaio. O que também se antevê nesse poema escrito em 1951 é uma antecipação da experiência do livro de poema-ensaio Galáxias, que teria seu começo registrado apenas a partir do ano de 1963. Cito novamente o “ciropédia”:

Ele compôs uma criatura sonora

ÁUREAMUSARONDINAALÚVIA

que cintila como um cristal e possui treze fulgurações diferentes.

Beber dessa água é uma sede infinita.

(CAMPOS, 1962, p. 57)

Nos fragmentos do poema “servidão de passagem”, especialmente em “poesia em tempo de fome”, a composição é feita com teorias do texto da assinatura poética.

poesia em tempo de fome fome em tempo de poesia

poesia em lugar do homem pronome em lugar do nome

homem em lugar de poesia nome em lugar do pronome

poesia de dar o nome

nomear é dar nome

nomeio o nome nomeio o homem no meio a fome

nomeio a fome

(CAMPOS, 1962, p. 82)

Em 1961, Haroldo conjuga no espaço híbrido do poema a relação com outros discursos, a saber, o da filosofia com a teoria da linguagem poética. O poema se compõe com esses modos e pontos de vista de pensar a finalidade da poesia e se insere na cena da discussão, que lhe foi contemporânea, do “para quê?” da poesia. Ele se erige entre os ensaios “E para que poetas?”, que Heidegger escreve naqueles tempos de indigência cultural e política dos anos de 1946, após o fim da segunda Guerra Mundial; “Discurso sobre lírica e sociedade”, que Adorno escreve e lê em Roma, em 1957; e “Estrutura da lírica moderna”, que Hugo Friedrich publica em 1956. Em outro fragmento de poema, publicado também no número 2 de Noigandres, pergunta-se: “a poesia é pura?/ a poesia é para?” (CAMPOS, 1962, p. 84). Essas são todas questões que atravessaram de modo visceral as formulações da disciplina de teoria literária no Brasil ao longo da segunda metade do século XX. Entre esses problemas estão o da definição dos limites entres os campos de saber nas ciências humanas, que derivou na intensamente discutida autonomia do discurso literário, que se desdobrou no problema da voz enunciativa da literatura, formulada de distintos modos, desde o ensaio “A morte do autor”, em 1968, por Roland Barthes, passando por O que é um autor?, escrito por Michael Foucault em 1969, e por Otobiographies: l’enseignement deNietzsche et la politique du nom propre, de Derrida, em 1984, e, mais recentemente, por “Pode um subalterno falar?”, escrito inicialmente em 1985 por Gayatri Spivak, e pelo Genius, em 2004, de Giorgio Agamben. Com a publicação da série “Poetamenos”, de Augusto de Campos, a exposição da composição e contaminação entre arte e teoria se torna mais

do que evidente. Inserida no segundo número de Noigandres, essa publicação incluiu o sentido de um manifesto com a demonstração empírica daquilo sobre o que se estava teoricamente refletindo. A série “Poetamenos”, termo com o qual ainda hoje o poeta Augusto de Campos nomeia sua atividade criativa, funciona como primeiro manifesto público das proposições teóricas e da prática da escritura da poesia concreta, destaco nessa apresentação do poema “Lygia fingers”5 (Figura 3), que considero o mais radical da série. O deslocamento operado pela língua do poema não é somente entre signos verbais; o poema desloca-se entre distintos suportes e linguagens. Como se pode constatar na leitura do “prefácio” aos poemas publicados em Noigandres 2, no qual Augusto de Campos nomeia sua assinatura autoral:

POETAMENOS Augusto de Campos

Ou aspirando à esperança de uma

K L A N G F A R B E N M É L O D I E (melodiadetimbres)

com palavras

(CAMPOS, 1975, p. 21)

O Klangfarbenmelodie, de Webern, incorpora-se à pesquisa com a língua verbal, mimetizando a desarticulação semântica e a fragmentação morfológica operadas nos deslocamentos que criam uma estrutura permutacional mediante o uso de diferentes cores, as quais conduzem à emissão de timbres distintos. Não há o processo de nomeação e, sim, a construção de uma paisagem de signos linguísticos em relação entre si, compondo um sincretismo vibrante, além da polêmica do que seria uma arte intersemiótica/multisemiótica. A poesia abre-se ao apelo de outros suportes e sobretudo àquilo que Roland Barthes questionava, ao se inserir no corpo docente do Colégio de França: se haveria

5 Os caracteres do poema “Lygia fingers” foram impressos em cores diversas, como pode ser observado na

Figura 3.

Figura 3. Poema “Lygia fingers” (CAMPOS, 1962, p. 101).

lugar para sua pesquisa ali, uma vez que seu trabalho vinha se interessando mais pela performance da fala do que pela construção do discurso. Quando o “Plano-Piloto para Poesia Concreta” foi publicado na revista, ela já estava em seu quarto número, e o ano era 1958. A exposição de arte concreta tinha acontecido e o grupo aparecia já com ares institucionais. O PPPC foi publicado em duas línguas, português e inglês, num claro gesto concreto de internacionalização dos saberes produzidos no país. Esse gesto foi uma antecipação cientificista sem precedentes. Hoje, todos os pesquisadores da área de Letras no país somos constrangidos a publicar textos em inglês e fora do Brasil, e os resumos e palavras-chave de nossos trabalhos já são obrigatoriamente versados em uma língua estrangeira, geralmente o inglês. Com o “Plano-Piloto”, a poesia concreta alinhava seu tecido na urdidura das ciências da linguagem: a tradução e a linguística.

a poesia concreta visa ao mínimo múltiplo comum da linguagem, daí sua tendência à substantivação e à verbificação: “a moeda concreta da fala” (sapir), daí suas afinidades com as chamadas “línguas isolantes” (chinês); “quanto menos gramática exterior possui a língua chinesa, tanto mais gramática interior lhe é inerente (humboldt via cassirer). O chinês oferece um exemplo de sintaxe puramente relacional baseada exclusivamente na ordem das palavras (ver fenollosa, sapir e cassirer) (CAMPOS, A.; CAMPOS, H.; PIGNATARI, 1958, s/p).

Tal fragmento retirado do manifesto é apenas um exemplo daquilo que comentava anteriormente sobre a relação entre arte e ciência, entre poesia e teoria, entre literatura e linguística.

Figura 4. Capa da revista Noigandres número 3.

Figura 5. Capa da revista Noigandres número 4.

Figura 6. Capa da revista Noigandres número 5.

A revista Invenção

Da revista Invenção (Figura 7),que teve seus números publicados entre 1962 e 1967, destaco o artigo que será tomado como emblemático para os estudos de crítica literária e, consequentemente, tomado também como bibliografi a de muitos programas de cursos de Letras no Brasil. A revista é uma publicação muito interessante se pensada no seu percurso histórico, porque ela migra das páginas do jornal para o formato livro. Conforme a leitura que lhe dedicou Carlos Ávila, quando da tentativa de reedição da revista em 2006, Invenção foi realmente uma publicação que antecipou a fase alternativa pela qual passou a imprensa brasileira, nos anos 1970. Fez um percurso que foi do efêmero para o consolidado, deixou de ter caráter independente para adquirir uma função de orientadora de diretrizes numa área que também acabava de ser criada no país. Inicialmente, era uma página no extinto Correio Paulistano, depois de um ano de atividades, se transforma em revista (ÁVILA, 2006, p. 96).

Figura 7. Capa da revista Invenção.

Nas páginas da revista, ressalte-se aqui, foi feita a primeira releitura do trabalho do escritor Oswald de Andrade à luz da teoria de um artista de invenção. No quarto número da revista, Haroldo de Campos publica seu ensaio “A arte no horizonte do provável” – escrito em 1956, segundo nota da edição em livro, com o mesmo título em 1969 –, e é ali que se opera o ataque aos críticos que não quiseram dar à obra de Oswald a atenção necessária que pudesse ressaltar as qualidades de uma escrita pulsante e com amplo espectro de abordagens. O texto de Haroldo de Campos se refere à pusilanimidade dos críticos majoritários atuantes no Brasil e que não estiveram dispostos à pesquisa com outros modos de compreender o objeto artístico. A crítica de invenção, segundo o artigo de Haroldo de Campos, teria que estar atenta ao processo de autonomização da linguagem e, para tal, recorrer à optofonética, que serviria para registrar o seu espectro sonoro-visual. As relações técnicas entre música e literatura contemporânea estavam sendo pela primeira vez reivindicadas por uma atividade crítica que queria ampliar a potência dos discursos críticos, artísticos e de pesquisa. Faz-se necessário ressaltar que no número três foi publicado o hoje histórico “Manifesto da nova música brasileira”, que propunha uma renovação musical baseada num “compromisso total com o mundo contemporâneo”. Os autores do manifesto são Damiano Cozzela, Rogério e Régis Duprat, Sandino Hohagen, Júlio Medaglia, Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira e Alexandre Paschoal. Ainda deve ser ressaltado que o número quatro de Invenção fez uma homenagem a Oswald de Andrade, que funcionou como um tipo de incentivo à reedição de sua obra, iniciada em 1964 pela editora Difusão. O número cinco, último de Invenção, publicado em 1967 – ano repleto de agitações político-culturais, como anotou Carlos Ávila –, dá a ver a associação dos poetas concretos com o movimento tropicalista, “aproximando a vanguarda erudita da música popular renovadora de Caetano Veloso e Gilberto Gil” (ÁVILA, 2006, p. 97). Nesse número, encontra-se o texto introdutório de Pignatari, que é um encadeamento de ideias estéticas e ideológicas provocantes, e que termina com a conhecida frase: “na geleia geral brasileira alguém tem de exercer as funções de medula e osso” (ÁVILA, 2006, p. 100). A expressão “geleia geral” seria apropriada, em seguida, pelo poeta tropicalista Torquato Neto, tanto na sua letra de mesmo título para uma canção de Gilberto Gil, quanto na sua coluna no jornal Última Hora, do Rio de Janeiro – homenageando, assim, a inquietude criativa do editor de Invenção. As questões propostas nos números de Invenção foram especialmente acolhidas nos programas de ensino do curso de pós-graduação em semiótica

da PUC-SP, que, mesmo tendo sido fundado por iniciativa de Lucrécia Ferrara, esteve sob a orientação intelectual de Haroldo de Campos e seu trabalho como pesquisador da área de teoria. O programa foi criado em 1970 com o nome de Comunicação e Semiótica, e talvez seja o primeiro na área de comunicação no Brasil. Foi fundado, como ressaltei anteriormente, por Lucrécia Ferrara, e seus primeiros professores foram Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Leyla Perrone-Moisés, Willi Bolle; entre seus professores convidados, estavam Boris Schnaiderman e Hans-Joaquim Koellreutter. O programa passou por sua primeira reforma curricular em 1978, quando alargou suas dimensões da teoria literária para a comunicação e semiótica, dentro de uma motivação interdisciplinar da literatura, artes, música e meios de comunicação, que tinha na semiótica seu eixo conceitual integrador. Nesse momento, o programa já contava com a presença dos professores José Segolin e Lucia Santaella. É interessante comparar as preocupações interdisciplinares do curso de semiótica com o curso de teoria literária e literatura comparada da Universidade de São Paulo. Antonio Candido criou um curso de graduação em teoria literária e literatura comparada em 1961. O processo de criação da nova área começou em 1959, tendo por referência a existência de disciplinas teóricas gerais e especializadas em outras áreas, organizou-se a área com o nome de Teoria Geral da Literatura; dois anos depois, Antonio Candido inaugurava o curso de teoria da literatura, posteriormente denominado Teoria Literária e Literatura Comparada. O curso nascia, nas palavras de Candido, com o intuito de “ensinar de maneira aderente ao texto” e “procurando mostrar de que maneira os conceitos lucram em serem apresentados como instrumentos de prática imediata, isto é, de análise”, conforme se pode ler na página eletrônica do curso. Durante três anos, Antonio Candido foi o coordenador do curso, cujo corpo docente começou a ampliar-se a partir de 1964, com a contratação de Roberto Schwarz; em seguida, vieram a integrar o quadro docente Walnice Nogueira Galvão, Davi Arrigucci Júnior, João Alexandre Barbosa e Teresa Pires Vara, ainda na década de 1960. Mantinha-se o currículo básico inicial, com um primeiro ano de introdução aos estudos literários, e um quarto ano de teoria literária e literatura comparada. Na década de 1970, alguns novos professores passaram a atuar na área: Lucilla Ribeiro Bernardet, Marlyse Meyer, João Luiz Lafetá e Lígia Chiappini.

Enquanto o programa de pós-graduação em semiótica se empenhava na inclusão da literatura no âmbito transdisciplinar de uma teoria das artes e da sociedade – lembremos que se tratava também da interdisciplinaridade entre arte e comunicação – o curso de graduação em teoria literária e literatura comparada se detinha na aderência ao texto em si e na apresentação dos conceitos como instrumentos de sua análise. Ainda que a diferença entre as concepções de curso estivesse delineada em função de um ser propriamente um curso de graduação e o outro estar direcionado a estudos avançados, quando da proposição do curso de teoria literária da USP como programa de pós-graduação em 1971, a concepção do programa não se distanciou muito das premissas do curso de graduação. Suas linhas de pesquisa eram então as seguintes: literatura e sociedade, estudos comparatistas da literatura, formas e gêneros literários, crítica e história literária. É importante ressaltar que, com essa comparação, não se quer fazer uma separação qualitativa entre os cursos de semiótica da PUC e de teoria literária da USP. Esta pesquisa empenha-se em demonstrar o modo pelo qual a disciplina de teoria literária ajudou a conformar o perfil tanto da revista Noigandres quanto da Invenção – e vice-versa. A divulgação e assimilação dessas revistas, por sua vez, promoveram uma alteração nos programas de ensino dos cursos de Letras com suas interfaces no Brasil da década de 1960 e 70. Promoveram não somente a alteração, mas a criação de um espaço no interior da instituição universitária brasileira de abertura para uma discussão mais estrutural e, ao mesmo tempo, ampliada do problema da autonomia do campo literário. Se a pesquisa em teoria da linguagem caminhou em direção às ruas e das ruas em direção aos institutos de pesquisa no Brasil, como se observa hoje em muitos trabalhos científicos e em diferentes currículos de cursos de graduação na nossa área, ela também foi empurrada por essa “marcha” dos professores atuantes nas revistas Noigandres e Invenção. Esse movimento não deixou de continuar empurrando a teoria para a rua, conforme podemos observar nesta postagem nas redes sociais do “Poetamenos”, no ano de 2019 (Figura 8, na página seguinte).

Figura 8. Postagem do “Poetamenos” nas redes sociais.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. Signatura rerum. Sobre o método. Trad. Andrea Santurbano e Patrícia Peterle. São Paulo: Boitempo, 2019.

AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista. Trad. João Bandeira e Marilena Vizentin. São Paulo: EDUSP, 2005.

ÁVILA, Carlos. Invenção – uma reedição necessária. O eixo e a roda, v. 13, p. 95-101, 2006.

BARTHES, Roland. Aula. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1987.

CAMPOS, Augusto de. “poetamenos”. Noigandres, n. 5, 1962.

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