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Paloma Roriz
POR UM PROJETO MÍNIMO, A REVISTA CACTO
/ PALOMA RORIZ
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Em suas célebres teses sobre o conceito de história,1 Walter Benjamin propõe a ideia de um tempo histórico entendido não como algo linear e homogêneo, mas como algo saturado de diferentes temporalidades e descontinuidades. Na esteira de seu pensamento, Jacques Rancière reflete sobre o anacronismo não como um problema da ordem dos tempos e sua sucessividade, mas sobretudo como um problema de “partilha do tempo” (2011, p. 23), enfatizando a ideia de que não existe anacronismo, mas sim “anacronias”2. Já Georges Didi-Huberman, ainda pelo viés de Benjamin, vai problematizar os diferenciais de tempo que atuam por trás de cada imagem, ao refletir acerca da visualidade própria da obra de arte enquanto dimensão temporal historicamente impura e descontínua em incessante montagem, reconfiguração e fragmentação da memória e do passado, em seus “múltiplos tempos estratificados” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 44). Eis alguns breves exemplos de expressões do pensamento contemporâneo que, guardadas suas muitas particularidades, convergem, de um modo ou de outro, para um entendimento da história a partir do reconhecimento de temporalidades heteróclitas como agentes e acionadores do tempo presente. Num recorte mais específico, em torno da poesia contemporânea, Marcos Siscar, ao problematizar o topos da crise e do “fim das vanguardas”,
1 Parte deste texto, com modificações e posterior desdobramento, foi apresentado no I Congresso Nacional
El Huso de la Palabra – Teoría y crítica de poesía latinoamericana, organizado pela Universidad Nacional de Mar del Plata e ocorrido em maio de 2017.
2“Não existe anacronismo. Mas existem modos de conexão que podemos chamar positivamente de anacronias: acontecimentos, noções, significações que tomam o tempo de frente para trás, que fazem circular sentido de uma maneira que escapa a toda contemporaneidade, a toda identidade do tempo com ‘ele mesmo’.” (RANCIÈRE, 2011, p. 49).
na conjuntura instaurada a partir de 1970 na cena brasileira, lembra também que as formas de relação com o passado nem sempre se dão por meio de uma lógica linear de fatos e sequencialidade histórica, mas como processo intermitente e inevitável “de conflitos, de recalques e de estratégias” (2016, p. 9), nas muitas formas de reinscrição desse passado diante do contemporâneo e de seus agenciamentos críticos. Nessa perspectiva, as práticas editoriais de revistas literárias, se entendidas como modo privilegiado de manifestação do anacrônico, parecem se desenhar como manifestação exemplar de articulação e incitação de tal processo. Veículo e canal das vanguardas na consolidação do modernismo no Brasil, as revistas literárias operaram um papel crucial enquanto campo de produção poética e crítica, construção de identidades e problematização de novas práticas estéticas – tendo provavelmente como “último representante forte” (CAMARGO, 2001, p. 27), a Noigandres, publicada em 1952, e substituída depois por Invenção, nos anos 1950-60. Se na década de 1970, a aparição de muitas revistas parecia dar provas de vitalidade na cena literária e cultural, a década seguinte surge sem grandes novidades, quando, a partir do ano de 1995, alguns novos periódicos3 produzidos por poetas, ou grupo de poetas, surgem trazendo uma tônica diferente, para além dos paradigmas do cânone moderno, embora retomando a ideia de pequenas revistas tão cara às publicações vanguardistas. Como exemplo dessas revistas especializadas, produzidas no país nas duas últimas décadas, propomos a leitura um pouco mais detida, embora de forma breve, dado os limites deste texto, de um caso específico: o da revista Cacto, lançada no ano de 2002 e organizada e editada pelos poetas e críticos Eduardo Sterzi e Tarso de Melo. Com a publicação de quatro números ao todo, tal exemplo parece, pela sua orientação, formato, organização e montagem, bastante ilustrativo. A começar por certa ideia de anacronia deliberada que permeia todo o projeto e que responderia a alguma aproximação ao modelo de outra revista, a Inimigo rumor4: poemas de nomes contemporâneos e menos conhecidos ao lado de traduções de outros já canônicos e de épocas ou geografias
3 Elisa Helena Tonon elenca algumas delas com o ano de surgimento e o nome de seus editores no artigo
“O arquivo Inimigo rumor, escolhas e afinidades” (2008, p. 125-26). 4 “Na série Inimigo rumor – sobriedade gráfica, ausência de ilustrações, conteúdo baseado na fórmula antologia de poemas diversos e ensaios críticos, inclusive traduzidos, e denominações que remetem ao universo literário moderno – a que lhe é mais próxima, aliás explicitamente filiada, é Cacto, cujo título alude a um conhecido poema de Manuel Bandeira.” (CAMARGO, 2008, p. 233).
diversas, entrevistas com referências importantes da cena literária ao lado de breves “antologias” de poemas estrangeiros contemporâneos e ainda inéditos no país, além de artigos, ensaios e resenhas, sempre com foco numa relação dialogante de pensamento e crítica com a produção poética. De disposição gráfica sóbria e visualmente econômica, a revista recebe formato impresso e padronizado de livro e capas variando apenas em suas cores de fundo, conforme os números publicados: vermelho, amarelo, azul e laranja. O primeiro número apresenta, na primeira página, a sua numeração, a data – agosto 2002 –, seguido do subtítulo “poesia & crítica”, abaixo do título, assim como a localidade da publicação, São Paulo (mais precisamente, São Bernardo do Campo). Além dos editores já referidos, o conselho editorial é composto, inicialmente, pelos nomes de André Dick, Jerônimo Teixeira, Júlio Castañon Guimarães, Kleber Mantovani, Leandro Sarmatz, Pádua Fernandes, Ronald Polito, Sérgio Alcides e Veronica Stigger. O texto da apresentação abre com a breve contextualização de surgimento da revista no ano de 2002 que, de início, levaria o nome de Totem, e com a evocação das “efemérides oportunas” dos 80 anos da Semana de 22 e centenários de Carlos Drummond de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda. O nome da revista, Cacto, merece também alguma atenção, sobretudo no que se refere à alusão ao poema de Manuel Bandeira, de mesmo título, encontrado em seu livro Libertinagem, de 1930, e publicado anteriormente no terceiro número da revista Estética, no ano de 1925. Interessante notar a referência explícita a um repertório exemplarmente modernista, de um poema emblemático, publicado originalmente numa revista-veículo das ideias modernistas nas artes e na literatura, assim como de um livro igualmente emblemático do modernismo brasileiro. Contudo, ao mesmo tempo, e muito ironicamente, a alusão parece imprimir certa indicação subliminar daquilo que afinal não há mais, já que o poema narra a morte do cacto, que, embora enorme, “mesmo para esta terra de feracidades”, e tendo arrebentado cabos elétricos, impedido o movimento da cidade, já não existe, trata-se da narrativa de um fim, da descrição de algo que acabou:
Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da estatuária: Laocoonte constrangido pelas serpentes, Ugolino e os filhos esfaimados. Evocava também o seco Nordeste, carnaubais, caatingas... Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades excepcionais.
Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz. O cacto tombou atravessado na rua, Quebrou os beirais do casario fronteiro, Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças, Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro horas privou a cidade [de iluminação e energia:
– Era belo, áspero, intratável.
Petrópolis, 1925
(BANDEIRA, 2014, p. 27)
Por outro lado, e paradoxalmente, não deixa também de evidenciar a ideia, de cunho mais genérico, de que o cacto,afinal, permaneceria vivo, ainda existente – belo, áspero e intratável –, como emblema figurativo da própria poesia, a par de rótulos de época, programas ou correntes. Seja como for, é evento que ocorre como notícia, fato, acontecimento: Bandeira conta que o poema vai inclusive nascer da “verídica história de um cacto formidável na Avenida Cruzeiro, hoje João Pessoa, em Petropólis” (CAMPOS, 1986, p. 13), transmutado então para o texto perpassado por referências díspares, Laocoonte, Ugolino, Nordeste, caatinga, Petrópolis, no contato simultâneo com o universo da escultura e da imagética da seca nordestina, bem ao modo do entrecruzamento de “contextos diversos”, como vemos em muitos dos poemas do autor, quando, como aponta Arrigucci, “desloca e justapõe elementos de procedência variada, reaproveitando dados da tradição ou introduzindo novidades inesperadas, articulando ou rearticulando insolitamente novos conjuntos, formando estruturas por assemblage ou montagem” (2000, p. 16). De outra parte, se a figuração solitária de um cacto poderia comparecer ainda como imagem exemplar da própria figura do poeta moderno, único, singular, excepcional, teríamos como claro contraponto, ao final da apresentação do primeiro número da revista, um entendimento contemporâneo da poesia como exercício que se afirma enquanto prática plural, diversificada e fundamentalmente dialógica. Destacando o papel das revistas no desenrolar da história literária brasileira, os editores apontam afinidades, como com a revista Inimigo Rumor, e escrevem:
Há cerca de cem anos é possível acompanhar a história literária brasileira quase que tão-somente pelas revistas produzidas a cada época: as simbolistas, as modernistas, as concretistas, as dos anos 70, as contemporâneas. Por sua maior agilidade em relação aos livros, as revistas permitem que se apreenda uma imagem viva da poesia de uma época em seu processo de contínua formação e transformação. Conscientes dessa responsabilidade é que oferecemos nossas vozes ao diálogo que já se encontra estabelecido em outras publicações atuais, dentre as quais destacamos Inimigo Rumor, já em seu 12º número e agora luso-brasileira, à qual nos sentimos especialmente afins. Felizmente, alguns cactos não precisam de um deserto para crescer. (CACTO, 2002, p. 5-6).
Realizada através de uma campanha de subscrições para o custeio da publicação, divulgada entre amigos e colaboradores para os quais o primeiro número de Cacto é dedicado, lemos na sua apresentação o anúncio das colaborações: o hoje conhecido ensaio de Giorgio Agamben, “O fim do poema”, na tradução de Sérgio Alcides, surgido originalmente em 1995, título que vem com indicação do país de origem do filósofo entre parênteses, “(Itália)”, como vai ocorrer em todos os nomes de colaborações estrangeiras;5 um poema inédito de Augusto de Campos, além de uma entrevista com o autor, e também um ensaio de Eduardo Sterzi originalmente escrito por ocasião dos 70 anos do poeta, em 2001; a tradução de Marcos Siscar para “Projet de livre des gisants”, “Projeto de livro dos jacentes”, de Michel Deguy; poemas do poeta cubano José Koser e do poeta português Alberto Pimenta; e inéditos de poetas contemporâneos brasileiros, compondo a seção6 dedicada à poesia. Caberia sublinhar a presença de Augusto de Campos nesse primeiro número, tanto com o poema inédito “Faça o que faça”, na sua abertura, quanto com a entrevista, ao final. O poema, na disposição gráfica original, abrindo o número e também a seção, pode ser visto na Figura 1.
5 Notação que não será mais empregada a partir do segundo número. 6 A seção conta com, além dos já citados, poemas dos seguintes autores e autoras (indicados aqui na ordem original da publicação): Júlio Castañon Guimarães, Sérgio Alcides, Heinrich Heine, Ricardo Aleixo, Fernando
Paixão, Frederico Barbosa, Pádua Fernandes, Danilo Rodrigues Bueno, André Dick, Tarso de Melo, Luis
Javier Moreno, Kleber Mantovani, Fabiano Calixto, François Malherbe, Fabio Weintraub, Eduardo Sterzi,
Carlos Augusto Lima, Marília Garcia, Coral Bracho, Fabrício Carpinejar, Fábio Cardoso, Joan Brossa,
Leandro Sarmatz, André Luiz Pinto, Reynaldo Jiménez, Luis Hernández, Adolfo Montejo Navas, Luiz
Roberto Guedes, Dalila Teles Veras, Langston Hughes, Reynaldo Damazio, Iuri Pereira, Carlos Piera,
Marcos Siscar, Jorge Lucio de Campos, Alfred Jarry, Mário Alex Rosa, Rodolfo Häsler, Tino Villanueva,
Vince Fasciani, Rodrigo Petronio, Dante Alighieri, James Joyce, Carlito Azevedo.
Sem pretender realizar uma leitura das questões sonoras e visuais implicadas no poema, gostaria apenas de sinalizar algo de seu aspecto semântico, a despeito das muitas direções que pode tomar, no que estaria, de algum modo, sendo dito: “faça o que faça, o que quer que queiram que faça”, quando, ao lermos o trecho inicial, temos a ideia ambivalente de uma incitação ao cumprimento de uma demanda ou exigência, “o que quer que queiram que faça”, ao mesmo tempo que o seu contrário, com o que se segue: “não faça”, para então lermos afinal “faça o que quer”, quando salta a instigação ao gesto de inobediência, embora a prevalência do modo imperativo “faça”. A revista sai em agosto de 2002. Encontramos um pouco depois, em março de 2003, uma entrevista do poeta a Jardel Dias Cavalcante, que pergunta: “A publicação de poesia no Brasil parece ter aumentado e uma nova geração de poetas tem surgido. O sr. acompanha essa produção? Percebe alguma característica marcante nesses poetas?” (CAVALCANTE, 2003, s/p). Na resposta, Augusto de Campos identifica duas correntes: a de uma produção em busca de uma “pós-voz” afeita aos moldes da dicção “Drummond-cabralina”, e a de uma mais “experimentalista” e minoritária, “que vai dos poetas pósconcretos, de linha verbal, ‘logopaicos’ – como diria Pound –, aos poucos, ‘melo’ e ‘fanopaicos’, que começam a desbravar a terra semi-incógnita da linguagem digital” (ibid.), pelos quais nutriria maior simpatia, e finaliza, dizendo: “Mas longe de mim querer ditar normas. Que cada um faça a sua mágica. Com os meus melhores votos”, o que não deixaria de remeter ao que parece igualmente dito ao final do poema: “faça o que quer”, como se atestasse um não fechamento a qualquer espécie de diretriz programática, na tensão refratária e contraditória da composição poemática de “radicalidade ímpar”, como apontado pelos editores, que remarcam, ainda no texto de apresentação, o fato de que tal poema “não poderia estar senão na abertura das páginas especificamente dedicadas à poesia na revista” (CACTO, 2002, p. 5), tanto pela referência que o concretista representaria para boa parte dos nomes contemporâneos reunidos ali, como também por algo anunciado ainda no mesmo parágrafo: “Esta seção, aliás, poderia servir de resposta àqueles que insistem em vazar seu ressentimento sobre a produção poética contemporânea: aqui, ela se mostra forte e variada como poucas vezes se mostrou” (ibid.). A afirmação não deixa de subscrever um papel nem sempre apaziguador e/ou conciliador – conferido de modo geral às revistas surgidas no final da década de 1990 e início de 2000 –, que, no caso, manifesta-se aqui numa direção explícita de contraponto a certos posicionamentos de refutação e
desvalorização, bastante correntes no período, da produção poética e crítica de então. Trata-se de um momento de crescente valor crítico dado à noção de diversidade, ou ainda “pluralismo” no contemporâneo, momento em que também vemos o cenário brasileiro da crítica de poesia dividido7 entre, em linhas muito gerais, os que, por um lado, incorporam perspectivas movidas pelos deslocamentos que se operam no campo da literatura, face a novas dinâmicas sociais, tecnológicas e culturais ocorridas a partir do final dos anos de 1970, e, por outro, os que vão encarar a cena da produção contemporânea com certa desconfiança, descrença ou ceticismo, na ausência de programas claros e projetos bem delimitados, calcados de certo modo em parâmetros modernizantes de arte. Marcos Siscar apresenta com precisão aspectos deste cenário, entrecruzado pelo discurso da diversidade, enquanto componente de certa dificuldade e “impasse” instaurado a partir da última polêmica significativa do século XX, datada de 1984, pela voz de Augusto de Campos, em seu conhecido poema visual “Pós-tudo”, ou ainda do texto de Haroldo de Campos, “Poesia e modernidade”, publicado na Folha de São Paulo em 1984, com a declaração que “fez fortuna na crítica brasileira” (SISCAR, 2016, p. 22): “Ao projeto totalizador da vanguarda que, no limite, só a utopia redentora pode sustentar, sucede a pluralização das poéticas possíveis.” (CAMPOS, 1997, p. 268). O texto de apresentação do segundo número da Cacto, lançado aproximadamente oito meses depois, em 2003, não deixa de ser uma clara manifestação desse quadro, alinhada ali ao entendimento da produção contemporânea pelo viés de sua pluralidade, variedade e diversidade, quando, acerca da situação da poesia do período, é dito: “a poesia contemporânea brasileira ainda se mostra vigorosa na razão da grande quantidade de livros, revistas, sites, eventos de que têm sido objeto (e sujeito) não só de lá para cá, mais já há alguns anos” (CACTO, 2003a, p. 5). O texto, de fato, aponta, talvez de forma mais explícita do que na apresentação do primeiro número, as linhas de orientação de um “projeto mínimo” da revista, “resolutamente desafeito aos sectarismos” (CACTO, 2003a, p. 6), e interessado, antes de tudo, na “poesia que possa haver, e há”, com foco no tempo presente e em avançar no “passeio plural pelo que de mais inquieto – em poesia, em tradução, em
7 Problematizando a noção de “pluralidade”, Celia Pedrosa identifica as tendências da crítica de poesia no cenário contemporâneo, a partir da ativação e circulação das ideias de expansão e crise. Cf. PEDROSA,
Celia. Poesia e crítica de poesia hoje: heterogeneidade, crise, expansão. Estudos avançados, v. 29, nº 84, 2015, p. 322-323.
crítica – se produz entre nós e nos arredores, sempre expansíveis, que cada vez mais se interpenetram com a poesia brasileira” (CACTO, 2003a, p. 5), sem, contudo, deixar de lado, o interesse por um atravessamento temporal e linguístico diversificado e heteróclito, passando por referências muitas vezes já incorporadas ao repertório literário mais conhecido, no embate crítico do presente com o passado:
Incorporar o passado criticamente (e toda tradução ponderada nos oferece uma interpretação e uma crítica do passado) é uma tarefa inevitável para os homens e mulheres responsáveis do presente. [...] Nosso esforço fundamental, porém, continua sendo apresentar a produção poética contemporânea, lado a lado com a (e confrontando-se com a, e permeando-se da) reflexão sobre a poesia, sempre com a esperança de que essa produção possa se beneficiar, do modo adequado às singularidades criativas de cada um, dos diálogos efetivos ou subentendidos instaurados em nossas páginas. (CACTO, 2003a, p. 6).
Com isso, temos a reiteração de uma espécie de mescla, de entrecruzamento e de uma não hierarquização propositalmente acionadas na montagem/seleção de autores e textos, quando encontramos nesse segundo número, a seção de abertura dedicada ao poeta paraense Age de Carvalho, com entrevista, poemas seus inéditos, e dois textos de Benedito Nunes escritos para os primeiros livros do escritor, publicados no Pará e com circulação até então limitada; a seção central do número dedicada à poesia contemporânea brasileira, com poemas de Duda Machado, Donizete Galvão, Fabio Weintraub, Glauco Mattoso, Cláudio Nunes de Morais, Maria Esther Maciel, Ronald Polito, Edivaldo Texeira, Leandro Sarmatz, Micheliny Verunschk, Júlio César de Abreu e Silva, André Vallias, Ricardo Rizzo, Jean de Oliveira Ferreira, Kleber Mantovani, Prisca Agustoni, Danilo Monteiro, Veronica Stigger e Eduardo Sterzi; em seguida, a seção de ensaios, em torno da poesia brasileira contemporânea, com textos de Ronald Polito, Vera Lins e Tarso de Melo; a seção intitulada “Documento”, com a tradução, por Eduardo Sterzi, da entrevista com Stéphane Mallarmé a Jules Huret, “Sobre a evolução literária”, publicada originalmente em 1891; e as seções finais, uma de tradução, “Poesia traduzida”, com textos de Paul Valéry, Rose Ausländer, Ingeborg Bachmann, Virgilio Piñera, Jorie Graham, Joan Navarro e Marcel Proust; e a última, um dossiê reunindo poetas argentinos contemporâneos, organizado por Aníbal Cristobo.
O movimento de abertura desse “território de multiplicidades”8 seria movido, assim, pelo desejo de um desfazimento de fronteiras tanto espaciais quanto temporais, na demarcação não de um “programa”, mas de certo posicionamento, o que é facilmente constatado no texto de apresentação do terceiro e penúltimo número, lançado na “primavera”9 de 2003, em que lemos, no anúncio da entrevista com o poeta Carlito Azevedo, algumas das “linhas de atuação com relação à poesia brasileira” de maior interesse para a revista: “o posicionamento que conjuga à criação poética o trabalho de tradução, de crítica, de pensamento sobre poesia, e mais do que não considerar absoluta qualquer fronteira entre esses trabalhos, acredita na superação crítica de seus impasses apenas investindo contra tais fronteiras” (CACTO, 2003b, p. 5). Linhas de atuação que conversariam diretamente com as da revista Inimigo Rumor, como já dito: segundo o seu editor Carlito Azevedo, trata-se, com a busca de repertório, de ampliar o “valor da poesia não através da afirmação de valores estéticos em si mesmos, mas pela ampliação das possibilidades de elocução, pela ampliação das escolhas num repertório diversificado”10 (ALVES; PEDROSA, 2008, p. 229). Na sequência, além da seção de abertura dedicada a Carlito, encontramos o texto de Reynaldo Damazio sobre Haroldo de Campos, por ocasião de seu falecimento no mesmo ano; a seção, mais uma vez central do número, dedicada à poesia;11 uma seguinte, de tradução, com textos de Charles Simic, Jacques Roubaud, Friedrich Hölderlin, José Ángel Cilleruelo e Renato Leduc; um breve dossiê, ou “pequena antologia aleatória da poesia portuguesa contemporânea”,
8Como afirma Susana Scramim: “A prática adotada pelo periodismo cultural deixa de estar voltada para um critério unicamente temporal para investir na criação de um espaço. A revista literária deveria ser, nesse sentido, um território demarcado por multiplicidades.” (2001, p. 55). 9 A partir do segundo número, a indicação do período de lançamento passa a ser dada pela estação do ano:
“outono 2003”, “primavera 2003”, “primavera 2004”, respectivamente. 10 Vale lembrar que o primeiro número da revista sai em 1997 e, como se sabe, sem apresentar nenhum projeto explícito, publica a “antológica” carta de João Cabral de Melo Neto a Clarice Lispector, na qual se fala sobre a ideia de montar uma revista com o nome de “Antologia”. Temos, neste exemplo, um gesto de (re)inscrição exemplarmente anacrônico, na recuperação e deslocamento de um fragmento do passado canônico literário para a abertura de um primeiro número de revista de poesia lançada meio século depois, e, sobretudo, em outro momento cultural e histórico. 11 Com os nomes (dessa vez dispostos em ordem alfabética, o que irá se repetir no quarto número): Aníbal
Cristobo, Annita Costa, Bluma W. Vilar, Carlos Machado, Chantal Castelli, Dalila Teles Veras, Fabio
Weintraub, Fabrício Marques, Franklin Alves, Heitor Ferraz, Josep Domènech Ponsatí, Laura Erber,
Leandro Sarmatz, Luiz Paulo Rouanet, Mário Alex Rosa, Pádua Fernandes, Ricardo Rizzo, Tarso de Melo e Veronica Stigger.
organizada por Carlito Azevedo, com poemas de autores portugueses, em sua maior parte ainda pouco divulgados no Brasil, como Manuel António Pina, António Franco Alexandre, Jorge de Sousa Braga, Adília Lopes, Manuel de Freitas e Fernando Guerreiro; e também uma seção de resenhas e ensaios, com textos de Pádua Fernandes, Tarso de Melo e Sérgio Alcides. Por último, na breve seção intitulada “carta”, lemos uma de Augusto de Campos, dirigida a um dos editores, Eduardo Sterzi, em que se refere ao texto publicado no segundo número de Cacto, “Notas para a poesia no Brasil a partir dos anos 70”, no qual Ronald Polito traça rotas de leitura para alguns elementos da cena literária contemporânea. Augusto procura esclarecer e contextualizar o emprego de uma mal compreendida resposta sua (dada em entrevista de 1999 ao poeta Ricardo Aleixo), em que teria concordado genericamente com a afirmação de que “nada aconteceu na poesia brasileira de 1980 para cá”. Segue um trecho:
Ora, há uma grande distância entre o juízo, a mim atribuído, de que “nada aconteceu na poesia brasileira de 1980 para cá” (1999) e a resposta dada no contexto de uma entrevista em que, acentuando a evidente existência de exceções, manifestei, de passagem, a minha concordância com a afirmação genérica do meu interlocutor sobre o retrocesso da linguagem poética nas duas últimas décadas. De qualquer forma, assim reduzida e descontextualizada, a declaração pode soar como a de alguém que desqualifica a produção poética do país a partir da década de 80, o que obviamente não corresponde ao que penso. (CAMPOS in CACTO, 2003b, p. 222).
Na carta, o autor reposiciona a sua colocação, como vemos acima, disponibilizando seus componentes contextuais, como a reprodução, inclusive, de um trecho da entrevista. Ao final, pede que a carta seja publicada na intenção de evitar “equívocos de interpretação”, e se despede, em tom de amizade e apreço pela revista, evento que a confirma também como espaço de debate, interlocução e diálogo. O quarto e último número, com atenção especial para a tradução, oferece uma primeira seção dedicada a Paulo Henriques Britto, com entrevista dada aos editores, um poema seu, “Três tercinas”, do seu último livro, Macau (2003), originalmente escrito em inglês, e especialmente vertido para o português para o número da revista, numa operação de “auto-tradução”, além de um texto crítico de Gislaine Marins sobre o autor; logo em seguida, a seção de
poemas,12 e uma subsequente, chamada “Genealogias possíveis”, com Pádua Fernandes; também vemos a de traduções, com textos de Georg Trakl, Ludwig Wittgenstein, Bertolt Brecht, Kurt Schwitters, Francisco Hernández, Jordi Sarsanedas, Mario Meléndez e Sófocles; finalmente a de ensaios e resenhas, com Osvaldo Manuel Silvestre, Carlos Leone e Vera Lins. Vale remarcar ainda a parceria, anunciada na apresentação, com a editora Unimarco, da Universidade São Marcos. O que é possível perceber na organização da Cacto, assim como em outros desses projetos editoriais menores, chamados de “revistas de poetas”,13 na expressão de Maria Lucia de Barros Camargo, é sobretudo a incorporação de uma função outra para a revista literária, caracterizada como espaço alternativo e experimental, onde vemos uma reatualização do passado na própria realização e impressão da revista como ato poético, não mais como projeto moderno ou vanguardista, mas principalmente enquanto instância anacrônica movida na possibilidade mesma de reedição e remontagem do passado e seus “espectros”, que, embora não eximida do inevitável gesto de seleção e escolhas, nem presa a posições acriticamente conciliadoras, atuaria no sentido de abertura de um espaço de convívio, deslocamento e contato de assinaturas, quando, agora segundo Faccioni e Scramim, “a função que a revista cultural assume para si parece ser a de criar um espaço estriado, aberto a possibilidades de conexões nervosas, tensas, as quais aproximam o poeta de um mundo outro que não somente o da tradição e de seu decorrente peso institucional” (2001, p. 55). Camargo chama ainda a atenção, pensando com Derrida, para o desejo de “arquivo” dessas revistas, enquanto “espaço onde o heterogêneo se reúne” (2008, p. 235). Aproximando a prática de tais revistas ao sentido de um anacronismo aberto, na esteira de Didi-Huberman, a autora afirma:
Mas lendo essas revistas, em qualquer das séries, é como se todo o passado, seja como faculdade poética, como potência, seja como série de poemas
12Desta vez, com André Luiz Pinto, Annita Costa Malufe, Antonio Brasileiro, Carlos Augusto Lima, Claudia
C. Pinheiro, Cláudio Nunes de Morais, Eduardo Sterzi, Kleber Mantovani, Laura Schichvarger, Leonardo
Martinelli, Ligia Dabul, Manoel Ricardo de Lima, Pádua Fernandes, Paulo Ferraz, Priscila Figueiredo,
Ricardo Domeneck, Roberval Pereyr, Ruy Proença, Tarso de Melo e Veronica Stigger. 13A expressão é de Maria Lucia de Barros Camargo. Em nota a autora afirma: “À falta de melhor denominação, chamo ‘revista de poeta’ a este tipo de periódico que é fruto, basicamente, da iniciativa de poetas novos, que desejam fazer circular a produção de seus afins, ou sua própria produção, além de suas afinidades eletivas.” (2001, p. 33).
realizados, se reatualizasse no ato poético de fazer e de imprimir hoje uma revista de poesia, instância anacrônica que, ao mesmo tempo, traz as marcas do passado e aponta para o futuro, não como projeto moderno, e sim como prefiguração. (CAMARGO, 2008, p. 234).
Ver tais revistas, entre as quais a Cacto como caso exemplar, enquanto instâncias anacrônicas acionadas entre as marcas do passado e a presciência do futuro parece não deixar de se aproximar ainda de um gesto de inscrição no que Siscar assinala como um presente expropriado, ou seja, num presente que se articula na busca e no desejo de um contemporâneo que não se alcança, mas que se desdobra ininterruptamente em modos de dissociação e descontinuidades de tempos estratificados, o que pode nos levar, idealmente, a uma ideia de renúncia a perspectivas cronológicas ou historiográficas, como propõe Giorgio Agamben em seu “programa” para uma revista, quando refere-se ao dever de uma “destruição” da historiografia literária: “o lugar que ela escolhe como morada vital não é nem uma continuidade nem um novo início, mas uma interrupção e uma quebra, e é a experiência desta quebra como evento histórico originário que constitui precisamente o fundamento de sua atualidade” (AGAMBEN, 2014, p. 159). Revistas de poesia lançadas, portanto, ao plano de vetores de ativação e circulação anacrônica e aporética de tempos e espaços experimentais, na medida em que esse mesmo espaço delimitado por multiplicidades abrirá campo para acionamentos discursivos de novas operações críticas e de pensamento acerca do poético. Por certo, a elaboração desses circuitos de produção abriu pouco a pouco terreno para o surgimento de novas situações paradigmáticas na poesia brasileira, assim como de novas formas de compreensão do contemporâneo – na problematização e questionamento das noções de poesia e de crítica em suas múltiplas manifestações, quer institucionais, alternativas ou periféricas, em seu caráter próprio de tensão, abertura e inacabamento –, tanto quanto do passado, em que pesem tentativas de resposta ao vazio aparentemente lançado por uma época de esgotamento de práticas vanguardistas, ou movimentos literários pautados por paradigmas modernos, como ocorre no Brasil até os anos de 1970.
Referências
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ARRIGUCCI JR., Davi. O cacto e as ruínas – A poesia entre outras artes. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
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CAMARGO, Maria Lucia de Barros; PEDROSA, Celia (Orgs.). Poesia e contemporaneidade – Leituras do presente. Chapecó: Argos, 2001.
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