ISBN: 978-85-5795-001-6
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29/09/2016 09:36:56
Sumário
Parte 1 - MANEJOS PERIOPERATÓRIOS 1- Terapêutica da pneumonia aspirativa................................................................................................................. 03 Guilherme A. S. Monteiro
2- Nutrição parenteral no período perioperatório................................................................................................. 09 Fabio Alves Teixeira • Aulus Cavalieri Carciofi
3- Manejo da acidose................................................................................................................................................. 23 Guilherme A. S. Monteiro
4- Manejo do paciente em choque hemorrágico.................................................................................................... 28 Kaleizu Rosa
5- Manejo do paciente em sepse............................................................................................................................... 37 Ricardo Andrés Ramirez Uscategui
6- Agentes bacterianos associados a infecções severas.......................................................................................... 45 Laura Beatriz Robrigues • Luciana Ruschel dos Santos
7- Abordando o felino com tríade............................................................................................................................ 56 Katia Barão Corcozinho • Fernanda V. Amorin da Costa • Heloisa Justen Moreira de Souza
8- Procedimentos anestésicos complexos............................................................................................................... 68 8.1 Anestesia no neonato/pediátrico.................................................................................................................................... 68 Marília Teresa de Oliveira
8.2 Anestesia do paciente em choque séptico..................................................................................................................... 74 Fernanda Antunes • Guilherme de Souza Vieira
8.3 Anestesia no paciente urêmico....................................................................................................................................... 77 Gabrielle Coelho Freitas • Adriano Bonfim Carregaro
8.4 Anestesia no choque hipovolêmico................................................................................................................................ 86 André Vasconcelos Soares
8.5 Anestesia no cardiopata................................................................................................................................................... 96 Celina Tie Nishimori Duque
8.6 Anestesia do politraumatizado descompensado........................................................................................................107 Roberto Thiesen • Roberta Martins Crivelaro
8.7 Anestesia nas doenças metabólicas..............................................................................................................................116 André Vasconcelos Soares
Parte 2 – CIRURGIAS NOS TECIDOS MOLES 9- Cirurgias tegumentares....................................................................................................................................... 125 9.1 Reconstrução de defeitos extensos na face..................................................................................................................125 Maurício Veloso Brun
9.2 Reconstrução de defeitos em extremidades................................................................................................................134 Jorge Luiz Costa Castro • Thayana Neiva de Lima Queiroz
9.3 Mastectomia radical em grandes neoplasmas............................................................................................................150 Ana Lúcia Pascoli • Nazilton de Paula Reis Filho • Andrigo Barboza De Nardi
9.4 Manejo de perdas cutâneas extensas............................................................................................................................160 Andrigo Barboza De Nardi • Rafael Ricardo Huppes • Josiane Morais Pazzini
XIV
Cirurgias Complexas em Pequenos Animais
10- Manejo cirúrgico da peritonite séptica........................................................................................................... 169 Rodrigo Cardoso Rabelo • Leandro Fadel
11- Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular..................................................................................... 173 11.1 Ressecção de neoplasmas hepáticos extensos e manejo da perfuração hepática profunda................................173 Maurício Veloso Brun • Rodrigo Luis Morais da Silva
11.2 Manejo de neoplasmas tiroideanos extensos em cães.............................................................................................178 Fabíola Dalmolin • Maurício Veloso Brun
11.3 Manejo de neoplasmas tiroideanos extensos em gatos...........................................................................................184 Heloisa Justen Moreira de Souza • Katia Barão Corgozinho
11.4 Ressecção de neoplasmas perianais extensos...........................................................................................................193 Daniel Curvello de Mendonça Müller
11.5 Desvios portossistêmicos - anomalias vasculares extra-hepáticas.........................................................................203 Eros Luiz de Souza
11.6 Cirurgias pancreáticas................................................................................................................................................212 Luis Felipe Dutra Corrêa
12- Cirurgias complexas no trato digestório........................................................................................................ 223 12.1 Reconstrução de grandes defeitos esofágicos...........................................................................................................223 Maurício Veloso Brun
12.2 Preparo intestinal para cirurgias no colón e no reto................................................................................................228 Anelise Bonilla Trindade
12.3 Tratamento de perfuração do cólon e colectomia total...........................................................................................235 André Lacerda de Abreu Oliveira • Jussara Peters Scheffer
13- Cirurgias complexas no trato reprodutor....................................................................................................... 242 13.1 Manejo cirúrgico da hipospadia severa.....................................................................................................................242 Maurício Veloso Brun • Fernando Wiecheteck de Souza
13.2 Prostatectomia total em grandes neoplasmas...........................................................................................................251 Maurício Veloso Brun
13.3 Prostatectomia total perineal......................................................................................................................................257 Maurício Veloso Brun
13.4 Manejo de neoplasmas vaginais extensos ou profundos.........................................................................................261 João Pedro Scussel Feranti • Maurício Veloso Brun
13.5 Manejo de apresentações incomuns de piometra....................................................................................................270 João Pedro Scussel Feranti • Maurício Veloso Brun
14- Cirurgias complexas no trato urinário........................................................................................................... 282 14.1 Manejo do ureter ectópico..........................................................................................................................................282 Saulo Tadeu Lemos Pinto Filho • Adamas Tassinari Bonfada
14.2 Neobexiga ortotópica...................................................................................................................................................286 Maurício Veloso Brun
14.3 Manejo de lesões graves na uretra pélvica................................................................................................................296 João Pedro Scussel Feranti
15- Flapes de omento para cirurgia reconstrutiva............................................................................................... 306 Maurício Veloso Brun
16- Herniorrafia perineal em defeitos extensos e com pouca sustentação....................................................... 318 Alceu Gaspar Raiser
17- Manejo da hidrocefalia..................................................................................................................................... 333 Lucas M. Colomé
18- Cirurgia intracraniana na oncologia e traumatologia.................................................................................. 342 Richard Filgueiras
Parte 3 – CIRURGIAS TORÁCICAS E DO TRATO RESPIRATÓRIO 19- Ressecção de grandes neoplasmas torácicos com invasão de parede......................................................... 365 Artur Gouveia Rocha
20- Reconstrução de defeitos torácicos complexos com flape muscular.......................................................... 379 Maurício Veloso Brun
Sumário
XV
21- Reconstruções diafragmáticas em hérnias crônicas e extensas................................................................... 385 Saulo Tadeu Lemos Pinto Filho
22- Tratamento do quilotórax persistente em felinos.......................................................................................... 391 Heloisa Justen Moreira de Souza • Katia Barão Corcozinho
23- Ressecção de grandes neoplasmas pulmonares............................................................................................. 402 Maurício Veloso Brun
24- Ressecção de tumores mediastinais extensos................................................................................................. 412 André Lacerda de Abreu Oliveira • Jussara Peters Scheffer
25- Cirurgias cardíacas complexas......................................................................................................................... 416 25.1 Cirurgias cardíacas complexas sem circulação extracorpórea...............................................................................416 Paulo Juliani
25.2 Cirurgias cardíacas complexas com circulação extracorpórea...............................................................................430 André Lacerda de Abreu Oliveira
Parte 4 – CIRURGIAS ORTOPÉDICAS
26- Tratamento de osteomielites............................................................................................................................ 443 Marcelo Meller Alievi
27- Manejo da união óssea retardada e da não união óssea............................................................................... 446 Bruno Watanabe Minto • Guilherme Galhardo Franco
28- Perdas mandibulares complexas...................................................................................................................... 452 Cristiano Gomes
29- Preservação de membros em grandes perdas ósseas.................................................................................... 459 Bruno Testoni Lins • Paulo Roberto dos Reis
Parte 5 - CIRURGIAS MINIMAMENTE INVASIVAS 30- Cirurgias endoluminais.................................................................................................................................... 471 30.1 Abordagem a corpos estranhos de difícil remoção..................................................................................................471 Fausto Brandão • Diego L. Casas García
30.2 Tratamento intraluminal da estenose esofágica severa...........................................................................................489 Franz Naoki Yoshitoshi
30.3 Cirurgia endocardiovascular - valvopatias cardíacas..............................................................................................494 Paulo Juliani
30.4 Manejo da estenose colônica/retal.............................................................................................................................509 Hellen Fialho Hartmann • Maurício Veloso Brun
31- Videocirurgias na cavidade peritoneal........................................................................................................... 514 31.1 Hérnias inguinais encarceradas..................................................................................................................................514 Maurício Veloso Brun
31.2 Tratamento de grandes defeitos diafragmáticos.......................................................................................................519 Maurício Veloso Brun
31.3 Prostatectomia radical laparoscópica........................................................................................................................527 Maurício Veloso Brun
31.4 Abordando abscessos renais e prostáticos.................................................................................................................533 Maurício Veloso Brun
31.5 Adrenalectomia laparoscópica....................................................................................................................................540 Fernando Wiecheteck de Souza
32- Videocirurgias na cavidade torácica............................................................................................................... 543 32.1 Tratamento do quilotórax persistente........................................................................................................................543 Marco Augusto Machado Silva • Bianca Silva Medeiros
32.2 Pericardiectomia por toracoscopia............................................................................................................................558 Francisco M. Sánchez Margallo
32.3 Drenagem de derrames pleurais não responsivos....................................................................................................568 Maurício Veloso Brun
Índice remissivo............................................................................................................................................... 575
CAPÍTULO
11
Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular 11.1 Ressecção de neoplasmas hepáticos extensos e manejo da perfuração hepática profunda Maurício Veloso Brun Rodrigo Luis Morais da Silva
11.2 Manejo de neoplasmas tireoidianos extensos em cães Fabíola Dalmolin Maurício Veloso Brun
11.3 Manejo de neoplasmas tireoidianos extensos em gatos
11.4 Ressecção de neoplasmas perianais extensos
Daniel Curvello de Mendonça Müller
11.5 Desvios portossistêmicos – anomalias vasculares extra-hepáticas Eros Luiz de Sousa
11.6 Cirurgias pancreáticas Luís Felipe Dutra Corrêa
Heloisa Justen Moreira de Souza Katia Barão Corgozinho 11.1
Ressecção de neoplasmas hepáticos extensos e manejo da perfuração hepática profunda Introdução A ressecção de grandes neoplasmas hepáticos pode ser um desafio na rotina cirúrgica devido às suas dificuldades de acesso e às características teciduais desse órgão parenquimatoso, as quais predispõem a hemorragias por laceração durante a manipulação e podem ampliar o
risco de disseminação de células neoplásicas. Dessa forma, o emprego de instrumentos cirúrgicos delicados (tais como diferentes pinças e tesouras vasculares), bem como de equipamentos especializados (como o plasma de argônio), pode facilitar esta tarefa. Outro desafio se encontra no manejo das profundas e cruentas lesões ocasionadas por projétil por arma de fogo, que podem transpassar o órgão, bem como no tratamento das fissuras graves associadas a traumatismos com hemorragia difusa. Para tanto, estão disponíveis diferentes possibilidades cirúrgicas, ainda pouco executadas na medicina veterinária, mas que possuem potencial para a obtenção de bons resultados, como os exemplos a seguir.
Lobectomia parcial ou total em neoplasma extenso Na ressecção de grandes neoplasias hepáticas, geralmente torna-se necessário realizar extensa laparotomia mediana, iniciada na região xifóidea. Ainda assim, para determinados
174
Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
A
B
Figura 11.1 – Para a exposição de extensos neoplasmas hepáticos pode ser necessário promover incisões combinadas na linha média ventral e paracostal. (A) Uma técnica que tende a reduzir a lesão de acesso consiste em promover incisão cutânea sem invadir o leito da cadeia mamária (seta), dissecando-a da parede muscular e do tecido subcutâneo adjacente. Com a redução da tensão na ferida cutânea e com auxílio de afastador, realiza-se então a incisão paracostal. (B) Apresentação da celiorrafia após a extirpação tumoral.
neoplasmas muito extensos, o acesso pela linha média pode ser insuficiente para expor adequadamente a base do(s) lobo(s) hepático(s) acometido(s), condição necessária para a execução das manobras apropriadas de hemostasia e diérese. Nesses casos, pode-se associar uma incisão pré-retroumbilical a uma paracostal. Para as fêmeas com tecido mamário desenvolvido, uma técnica menos invasiva na obtenção do acesso combinado consiste em realizar inicialmente uma incisão cutânea sem transpassar o leito da cadeia mamária, dissecando e isolando-o da camada muscular e do tecido subcutâneo adjacente. Assim, a incisão cutânea reduzirá a tensão sobre a borda da ferida primária de acesso, permitindo que com auxílio de afastador Farabeuf se proceda outra incisão muscular paracostal, desta vez por debaixo da cadeia mamária (Fig. 11.1). Essa manobra tende a reduzir a lesão e a hemorragia de acesso e o dano tecidual para a exposição hepática.
Lobectomia parcial em neoplasma extenso Na nossa rotina, temos utilizado mais frequentemente a aplicação de pinças vasculares, tais como a Satinsky ou a pinça de aorta, em lobectomias parciais extensas ou nas totais. Para tanto, posicionam-se cranialmente ao local de ressecção os ramos de uma pinça vascular ou de duas (neste caso, com os cabos colocados de forma oposta), de acordo com a extensão do lobo a ser extirpado. Se possível, aplicam-se ainda duas pinças hemostáticas caudalmente a esse ponto, isolando-se assim o tecido a ser removido. A secção do parênquima hepático respeita a margem de aproximadamente 1cm a partir do(s) instrumento(s) vascular(es), buscando-se manter coto tecidual que evite
o desalojamento das ligaduras isoladas transfixantes, que serão posteriormente aplicadas. Após a extirpação do tecido alterado, ligaduras absorvíveis são aplicadas através do parênquima sequencialmente por detrás da(s) pinça(s) vascular(es), tendo-se o cuidado de abrir levemente a pinça na medida em que a ligadura é apertada (Fig. 11.2). Para tanto, podem-se utilizar fio absorvível sintético multifilamentar 2-0 a 0 e agulha retificada antes de
A A
B B
C C
Figura 11.2 – (A) Esquematização da técnica para a
ligadura dos vasos e canalículos/ductos biliares acessórios durante lobectomia parcial extensa com auxílio de pinça Satinsky; (B) ligaduras isoladas transfixantes são aplicadas subsequentemente sob as pinças após a remoção do neoplasma; (C) aspecto final da ressecção.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular
175
transpassar o parênquima. O procedimento é facilitado se os fios forem reparados na medida em que vão sendo aplicados. O emprego de pinça vascular permite que o parênquima seja fragmentado sem que os vasos e ductos acessórios sejam rompidos, podendo, assim, facilitar a aplicação das ligaduras. Na sequência, pode-se ainda fixar o omento sobre a superfície hepática exposta para reduzir a hemorragia e evitar aderências indesejadas. Indica-se ainda avaliar os linfonodos regionais e removê-los (linfadenectomia), principalmente aqueles que apresentarem alteração de tamanho ou conformação.
Lobectomia total em neoplasma extenso Para a lobectomia total, temos utilizado os mesmos princípios da técnica de lobectomia parcial com o emprego de pinças vasculares. Contudo, uma diferença substancial consiste na necessidade de dissecção (isolamento), ligadura e secção dos vasos hepáticos e ductos lobares. Para tanto, é necessário conhecer profundamente a anatomia local, já que não raramente existem alterações nos padrões vasculares associados aos lobos neoplásicos, tal como é descrita na literatura a presença de mais de uma veia hepática lobar. A veia portal lobar, a veia hepática lobar e a artéria hepática lobar são individualmente dissecadas e triplamente ligadas. Indica-se que cada um desses vasos seja submetido à aplicação de duas ligaduras circulares (a uma distância aproximada de 1cm entre elas, se possível) e de uma transfixante entre estas (mais próxima da ligadura profunda), de tal forma que o coto remanescente possua duas ligaduras para segurança. Para vasos poucos calibrosos, pode-se lançar mão de três ligaduras circulares. Seguindo os princípios da oncologia, é mais apropriado ligar inicialmente as veias para reduzir o risco de liberação de células neoplásicas pela manipulação tumoral. Ainda assim, a primeira ligadura da artéria, se possível, será realizada imediatamente após a oclusão da veia para evitar o acúmulo de sangue no lobo com-prometido e reduzir a hemorragia transoperatória. Na sequência, o ducto hepático correspondente é duplamente ligado e seccionado entre as ligaduras. Na dependência das dimensões deste, pode ser apropriado manter também duas ligaduras no coto remanescente (Figs. 11.3 e 11.4). Após seccionar os vasos e o ducto, o parênquima hepático pode ser melhor manipulado para o posicionamento da(s) pinça(s) vascular(es). A sequência de manobras para hemostasia do parênquima hepático segue a descrição do item anterior.
Lobectomia com coagulação com plasma de argônio Por estarem localizadas em um órgão parenquimatoso (portanto, com amplo aporte sanguíneo), espera-se que
A
N
B
Figura 11.3 – (A) Extenso neoplasma hepático em cão
submetido à lobectomia hepática; (B) a colocação de pinças vasculares é realizada cranialmente (na base do parênquima) ao ponto de ressecção do lobo afetado. N = área do neoplasma.
Figura 11.4 – Detalhe dos vasos lobares ocluídos por ligaduras anteriormente à lobectomia total. Nota-se o linfonodo sentinela (seta) alterado em coloração e tamanho, sendo, neste caso, indicada a linfadenectomia.
176
Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
lesões hepáticas por traumatismo ou por extensas ressecções cirúrgicas estejam associadas à considerável hemorragia. Conforme visto anteriormente, em geral tais sangramentos são contidos (ou prevenidos) com o uso de pinças vasculares e/ou por ligaduras. Ainda assim, o uso da coagulação com plasma de argônio (APC, argon plasma coagulation) proporciona segurança adicional e agilidade na execução do procedimento de lobectomia ou no manejo de lesões traumáticas. O gás argônio não é inflamável, sendo amplamente utilizado em medicina nas videocirurgias e com excelentes resultados. O seu emprego tem como conceito o uso de energia elétrica, que é transferida para o tecido por meio do gás argônio ionizado, em estado plasmático. Portanto, esse se configura como um método de hemostasia de característica térmica, sem o contato direto com o tecido, aplicado a partir de probe específico (Fig. 11.5).
Sua capacidade de penetração é superficial e controlada, se estendendo de 1 a 3mm, podendo ser aplicada axial, lateral ou radialmente (de acordo com a necessidade), de maneira uniforme. Coagula, assim, vasos superficiais e facilita a ligadura dos vasos mais calibrosos profundos. Como vantagem do uso de plasma de argônio, descreve-se sua facilidade de aplicação, podendo abranger áreas grandes e múltiplas, como na ressecção de tumores e pólipos. As desvantagens envolvem os custos do equipamento e da manutenção do gás. Na rotina, esse valioso instrumento tem auxiliado na contenção de hemorragias de origem traumática não somente no fígado, mas também no baço, evitando a necessidade de esplenorrafia complexa ou até mesmo esplenectomia (Fig. 11.6). Também se mostra como uma valiosa ferramenta na obtenção de biopsias hepáticas com acurada hemostasia (Fig. 11.7).
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A
B
C
D
Figura 11.5 – Paciente canino submetido à hepatectomia parcial para exérese de neoplasma. Após realizada a ressecção da massa utilizando pinças vasculares e ligadura (A), o leito hepático foi submetido à coagulação de plasma de argônio (B). Pode-se notar que o sítio da lesão foi adequadamente cauterizado (C), o que permite a exposição de vasos calibrosos para as ligaduras. (D) Neoplasma extirpado.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular
Figura 11.6 – Paciente canino politraumatizado com
ruptura parcial esplênica. Foi realizada hemostasia por coagulação com plasma de argônio.
Figura 11.7 – Paciente canino submetido à biopsia hepática incisional com plasma de argônio. Verifica-se a excelente hemostasia obtida no sítio de biopsia.
Tratamento da perfuração hepática por projétil e de fissuras traumáticas profundas Lesões decorrentes de arma de fogo podem produzir perfurações transfixantes profundas e tubulares, sendo algumas vezes difícil controlar a hemorragia associada.
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Na medicina, foi desenvolvida uma técnica que possibilita o controle hemostático de tais feridas, a partir de uma adaptação envolvendo a associação de sonda Foley com dreno de Penrose. Esse procedimento possui potencial de aplicação para pequenos animais, mas seus resultados ainda não estão estabelecidos. Para realizá-lo, utiliza-se uma sonda com diâmetro inferir ao da ferida. Remove-se parte do seu balonete com tesoura. A sonda é então posicionada no interior do dreno de Penrose, o qual é firmemente amarrado próximo da extremidade de conexão para drenagem e após o cuff, com fio de seda 2-0. Desta forma, ao se colocar ar através do cuff perfurado o Penrose será inflado e dilatado (Fig. 11.8) cuidadosamente até o ponto em que promova a hemostasia. Na sequência, a sonda é transpassada através da parede muscular e do próprio túnel produzido pelo projétil através do parênquima hepático, mantendo-se o dreno vazio. Quando a Foley está posicionada adequadamente, insufla-se o cuff até que se obtenha completa hemostasia pela dilatação do Penrose (Fig. 11.9). Após a lavagem da cavidade para a remoção do sangue residual, procede-se a fixação da Foley na pele (com sutura em manga chinesa) e a celiorrafia. O paciente é mantido com colar elisabetano e bandagens protetoras durante todo o período em que estiver com a sonda adaptada. A abertura da sonda é mantida fechada durante todo o seu tempo de permanência com uma tampa de agulha estéril, posi cionada ainda no transoperatório e firmemente fixada no local para reduzir o risco de peritonite. Passados 5 a 7 dias, e se o animal já estiver estável para tanto, realiza-se uma nova anestesia no bloco cirúrgico, seguida de laparoscopia, a fim de acompanhar completamente a remoção lenta e gradual da Foley. Têm-se o cuidado de remover a sonda sob visão laparoscópica, pois se houver a necessidade de reintervenção pela presença de hemorragia ativa, o animal já se encontra preparado no bloco cirúrgico para uma eventual celiotomia de emergência. O uso de um segundo portal para a adaptação de pinça DeBackey poderá reduzir a movimentação hepática, durante o desalojamento, que pode estar associada à hemorragia. Caso não se disponha de serviço de videocirurgia, a remoção da Foley poderá ser acompanhada via reduzida celitomia. No manejo de fissuras hepáticas profundas é indicado que as suturas aplicadas abranjam profundamente o parênquima para evitar a formação de espaços mortos sobre a sutura e, por consequência, de hematomas extensos. Algumas vezes se torna impraticável aprofundar as suturas aplicadas superficialmente, até porque o tamanho do fio indicado para sutura de cápsula e parênquima hepático de cães (3-0 a 4-0) é munido de agulha pouco calibrosa, a qual não alcançará a profundidade da lesão. Assim, é possível posicionar no interior da fissura agentes hemostáticos (tais como esponjas e malhas de fibrina) ou até mesmo retalhos de omento desdobrados.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
Leitura complementar
A A
B B
CC
Figura 11.8 – Esquematização da adaptação de sonda Foley e dreno de Penrose para o tratamento de hemorragias em lesões hepáticas transfixantes, causadas pela passagem de projétil de arma de fogo. Remove-se parte do balonete da Foley (A), colocando-a através de um dreno de Penrose, o qual é firmemente amarrado na Foley (B). (C) Ao preencher o cuff (seta), o ar passa para o espaço entre a sonda e o dreno, promovendo sua dilatação.
Bjorling DE. Fígado, sistema biliar e pâncreas. In: Bojrab MJ, organizador. Técnicas atuais em cirurgia de pequenos animais. 3a ed. São Paulo: Roca; 2005. p. 276-92. Fossum TH. Surgery of the livery. In: ______. Small animal surgery. 4th ed. Philadelphia: Elsevier; 2013. Cap. 21; p. 584-618. Mayhew PD, Weisse C. Liver and biliary system. In: Tobias KM, Johnston SA, editors. Veterinary surgery: small animal. 4th ed. St. Louis: Elsevier, Saunders; 2012. p. 1601-23. Radlinsky MG. Surgery of the liver. In: Fossum TW, editor. Small animal surgery. 4th ed. Philadelphia: Elsevier; 2013. p. 584-617. Stedile R. Cirurgias glandulares/fígado e baço. In: Brun MV, organizador. Videocirurgia em pequenos animais. 1a ed. Rio de Janeiro: Roca; 2015. p. 251-62. Tangner CH. Cirurgia biliar. In: Bojrab MJ, organizador. Técnicas atuais em cirurgia de pequenos animais. 3a ed. São Paulo: Roca; 2005. p. 284-88.
11.2
Manejo de neoplasmas tireoidianos extensos em cães
A A
B B
C C
Figura 11.9 – Em casos de lesão hepática transfixante por arma de fogo, passa-se a sonda adaptada por toda a extensão da ferida (A), deixando-se parte do Penrose exposta de ambos os lados (B). Ao insuflar o cuff da Foley, o Penrose é dilatado pelo ar (C), promovendo a hemostasia hepática por compressão interna.
Na sequência, promove-se a sutura de cápsula e parênquima esplênicos com fio absorvível sintético monofilamentar 3-0 a 4-0 em padrão de Wolff, tendo-se o cuidado de aproximar as bordas o suficiente para obter a hemostasia, sem tracionar demasiadamente para não lacerar o órgão junto aos pontos de passagem dos fios.
Considerações iniciais acerca dos neoplasmas tireoidianos Doenças da glândula tireoide incluem distúrbios de desenvolvimento, mudanças degenerativas, inflamação, hiperplasia e neoplasmas1. O diagnóstico de neoplasma geralmente é feito quando os pacientes são adultos idosos, com 10 a 15 anos de idade, não havendo predisposição quanto ao sexo. Existe sugestão de predisposição das raças Golden Retriever, Beagle e Husky Siberiano2. Clinicamente, os cães afetados podem apresentar dificuldade respiratória e de deglutição e tosse decorrentes da compressão ou do deslocamento esofá gico e traqueal, assim como alterações de pele e edema facial3,4. Os lobos direito e esquerdo são igualmente envolvidos, sendo o envolvimento bilateral presente em 60% dos pacientes5. Neoplasmas da tireoide são os que mais comumente afetam o sistema endócrino dos cães e correspondem a 1,1% de todos os neoplasmas que acometem essa espécie2. Estudos post-mortem demonstraram que 30 a 50% dos casos eram adenomas benignos, porém, em uma casuística de 545 cães levados para atendimento,
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular verificou-se que 90% eram carcinomas e apenas 9,3%, adenomas2,5. A diferença decorre do comportamento biológico, pois, em geral, adenomas são pequenos, não invasivos e clinicamente silenciosos, enquanto neoplasmas malignos frequentemente estão associados a sinais clínicos. Carcinomas são considerados altamente malignos e 16 a 60% dos cães acometidos apresentaram metástases em linfonodos regionais ou parênquima pulmonar ao diagnóstico. Dos pacientes não tratados, 60 a 80% apresentaram metástases à necropsia6. O carcinossarcoma tem comportamento mais agressivo que os carcinomas e caracteriza-se por crescimento rápido, invasão de tecidos adjacentes e metástases frequentes1.
Anatomia local A glândula tireoide em cães possui 2 lobos distintos, localizados laterais e ligeiramente ventrais à região do 5º ao 8º anel traqueal. Os lobos têm coloração vermelho-escura e estão fixados por um delgado folheto de tecido conjuntivo ou, ocasionalmente, um istmo7. O lobo esquerdo geralmente se localiza 1 a 3 anéis traqueais caudalmente ao lobo direito, sendo o tamanho da glândula variável8,9; em adultos, têm aproximadamente 5cm de comprimento e 1,5cm de largura, sendo palpáveis quando aumentados de tamanho8. Duas paratireoides estão associadas a cada lobo tireóideo, interna e externamente à cápsula da tireoide7. O número de glândulas pode sofrer variação individual e as suas dimensões ficam em torno de 5mm de comprimento9. A tireoide é altamente vascularizada e recebe a maior parte da irrigação da artéria tireóidea cranial, ramo da artéria carótida comum; as paratireoides, por sua vez, são irrigadas por ramo da artéria tireóidea. A drenagem venosa ocorre pelas veias tireóideas craniais e caudais nos polos correspondentes de cada lobo tireóideo, sendo inervada pelo nervo tireóideo7.
Métodos diagnósticos e exames complementares O estadiamento de neoplasmas de tireoide em cães deve ser realizado e para tanto são considerados a avaliação laboratorial (hemograma, perfil bioquímico e urinálise), os exames radiográficos torácicos em 3 exposições ou, se possível, tomografia computadorizada ou ressonância e a ultrassonografia abdominal, além da citologia a partir de punção com agulha fina de neoplasma e linfonodos regionais4,5,10. Biopsia com agulhas Tru-Cut deve ser evitada devido ao alto risco de hemorragia, que pode ser fatal. Dosagens de T4 total, T4 livre e concentração de hormônio estimulante da tireoide (TSH) são indicadas com o objetivo de determinar o
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status funcional do neoplasma, assim como também são recomendados exames de coagulação, pois animais hipotireóideos podem apresentar coagulopatias graves4,8. A citologia aspirativa por agulha fina geralmente é útil para confirmar ou descartar malignidade. Entretanto, o diagnóstico definitivo requer biopsia, que pode ser excisional, em casos de neoplasmas operáveis, ou incisional, naqueles em que houver infiltração ou alteração bilateral10. Radiografias cervicais ou ultrassonografia geralmente revelam edema cervical difuso e inchaço de tecido mole caudalmente à mandíbula, circundando a traqueia, o qual pode apresentar-se parcialmente mineralizado8. A ultrassonografia cervical permite confirmar se a massa tem origem na tireoide, assim como verificar invasivi dade, vascularização e evidências de metástases nos linfonodos retrofaríngeos10,5. O doppler colorido auxilia no diagnóstico e no estudo do padrão de distribuição vascular e na pesquisa de alterações dos linfonodos e metástases, assim como no acompanhamento pós-operatório11. A cintilografia pode ser útil para avaliação da extensão neoplásica, detecção pós-operatória de neoplasma residual e presença de lesões ectópicas ou de metástases5,7,10. Entretanto, tanto a tomografia computadorizada como a ressonância magnética são mais vantajosas, pois determinam a possibilidade cirúrgica e permitem o planejamento do procedimento10. Utilizando-se estes recursos é possível indentificar a cápsula do neoplasma e a invasão do tecido na musculatura cervical, assim como nos vasos, na traquéia, na laringe e no esôfago9.
Possibilidades terapêuticas O tratamento apropriado dos carcinomas de tireoide em cães depende em grande parte da invasividade do neoplasma, da presença de metástases e de quaisquer sinais de tirotoxicose12. A excisão cirúrgica promove melhor recuperação e menor morbidade em neoplasmas móveis que não invadem os tecidos profundamente. Entretanto, quando o neoplasma não é móvel ou invade estruturas adjacentes, a cirurgia pode causar dano a vascularização, ao nervo laríngeo recorrente, ao tronco vagossimpático, à laringe, à traqueia ou ao esôfago5. Nestes casos, estão indicadas a radioterapia e a quimioterapia previamente à cirurgia12. A maioria dos carcinomas de tireoide em caninos é não funcional, sendo que aproximadamente 60% dos pacientes são eutireóideos, 30% são hipotireóideos devido à destruição do parênquima tecidual e 10% são hipertireóideos5. Cães com hipertireoidismo apresentam perda de peso, poliúria, polidipsia, polifagia, vômito, ansiedade, fraqueza e intolerância ao calor. Taquicardia ou arritmias graves devem ser tratadas antes do procedimento anestésico. Há um relato de caso de um
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
canino hipertireóideo que apresentou hipertensão e foi tratado com sucesso utilizando-se enalapril no período pré-operatório4. Anormalidades no equilíbrio acidobásico e de eletrólitos devem ser corrigidas previamente à cirurgia, assim como alterações hormonais8.
Protocolos radioterápicos e quimioterápicos pré e pós-ablação
Terapêutica cirúrgica Realiza-se ampla tosquia de região cervical, mandíbula e metade ventral da face, a qual é estendida até o manúbrio. O animal anestesiado será posicionado em decúbito dorsal na calha (se suas dimensões permitirem), com os membros anteriores voltados e fixados caudalmente. A exposição da tireoide será facilitada pelo posicionamento de campos cirúrgicos enrolados sob o pescoço (Fig. 11.10). A cabeça poderá ser mais bem imobilizada ao se colocar fita larga de esparadrapo sob a junção dos ramos mandibulares, a qual será fixada aos 2 lados da mesa cirúrgica ou da calha. 978-85-5795-001-6
Há indicação de radioterapia com finalidade de reduzir o volume do neoplasma antes da cirurgia, objetivando a obtenção de margens cirúrgicas limpas. A radiação também pode ser útil para reduzir a recorrência após a ressecção cirúrgica, auxiliar no controle local de neoplasmas nos quais não foi possível a ressecção cirúrgica completa ou a fim de alcançar uma opção cirúrgica em casos inicialmente não operáveis5,10,12. A irradiação com cobalto parece ser benéfica na redução de volume de neoplasmas de cães após cirurgia, sendo exigidas grandes doses para tal8. A radiação pode induzir toxicose de laringe, traqueia e esôfago, sendo geralmente bem tolerada, e hipotireoidismo pode desenvolver-se meses ou anos após o tratamento. Iodo radioativo pode ser benéfico em cães com carcinoma, principalmente nos hipertireóideos, sendo necessárias altas doses, que implicam em internamento hospitalar e elevados custos5. O papel da quimioterapia nos carcinomas de tireoide não está completamente elucidado12. Embora de importância discutível, esta deve ser considerada em tumores primários não operáveis e/ou doença metastática5,8,10. Doxorrubicina, cisplatina e mitoxan trona apresentam atividade contra carcinomas, porém geralmente observa-se recorrência do neoplasma meses após a realização da quimioterapia12. Doxorrubicina é o quimioterápico de escolha para humanos com carcinoma de tireoide, demonstrando também atividade no tratamento de cães com esta doença12. Observou-se redução de 50% do volume tumoral em 30 a 50% dos pacientes tratados com esse fármaco5. A doxorrubicina pode ser utilizada sozinha ou combinada, devendo ser aplicada a cada 3 semanas em bolus lento ou em infusão em período acima de 10 a 30min. São indicados 30mg/m2 para cães > 15kg e 1mg/kg para cães < 15kg e gatos. O paciente deve ser monitorado a fim de garantir aplicação exclusivamente venosa, sendo a sedação benéfica em alguns casos para evitar aplicação extravascular. Avaliação cardíaca deve ser realizada antes de cada sessão objetivando detectar murmúrios, arritmias ou déficit de pulso devido à cardiotoxicidade potencial do quimioterápico. Além disso, deve ser observada a dose máxima cumulativa de 120 a 150mg/m2 (4 a 5 doses)13. Carcinomas de tireoide foram tratados com doxorrubicina ou pela combinação desse fármaco com ciclofosfamida ou vincristina. Verificou-se que 44%
dos pacientes que receberam apenas doxorrubicina apresentaram remissão parcial do tumor primário, porém metástases pulmonares demonstraram-se refratárias e apenas se obteve resposta parcial ao tratamento12. Dos pacientes manejados com cisplatina, 9% tiveram resposta completa, 54% resposta parcial e a média de sobrevida foi de 98 dias10; embora geralmente bem tolerada, náuseas e nefrotoxicidade podem limitar o uso da cisplatina14. Utilizando-se mitoxantrona em doses ≤ 4,5mg/m2, foi reportada remissão neoplásica parcial em 1 de 10 cães com carcinoma de tireoide após 21 dias; doses maiores (entre 5 e 6mg/m2) também são aceitas15. A cisplatina promoveu resposta parcial contra carcinomas de tireoide em 7 de 13 cães tratados. A média das respostas foi de 252 dias, e o período médio de sobrevivência em todos os cães foi de 98 dias. Em cães que responderam à cisplatina, a média de vida foi de 322,5 dias14. Também foram relatadas respostas individuais positivas em neoplasmas malignos de tireoide com o uso da mitoxantrona, assim como da actinomicina D5.
Figura 11.10 – Posicionamento do paciente com neoplasma tireoidiano na mesa operatória em decúbito dorsal, após ampla tosquia de pescoço e face. Os membros anteriores foram tracionados caudalmente e fixados à mesa. A seta demonstra o abaulamento ocasionado pelo neoplasma.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular
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Esse posicionamento permite ampla exposição da linha média cervical, local por onde os neoplasmas tireoidianos não acessados pelos métodos diagnósticos invasivos (citologia aspirativa, biopsia com agulha apropriada ou biopsia incisional) serão abordados. Em caso de punção prévia ou biopsia, indicamos realizar incisão elíptica sobre o(s) acesso(s) anterior(es) de coleta de material, para assim reduzir a chance de recidiva pela presença de células neoplásicas que possam ter se implantado por ocasião da biopsia.
Ressecção de grandes neoplasmas isolados dos tratos respiratório e digestório Caso o procedimento seja iniciado pelo acesso cervical mediano ventral, a incisão começará aproximadamente na altura de uma linha imaginária, unindo caudalmente os ramos mandibulares, até a extensão caudal necessária para a extirpação tumoral. Vencidos os tecidos cutâneo e subcutâneo, os músculos esterno-hióideos serão separados em seu ponto médio de junção, condição que torna o acesso pouco cruento nessa etapa. Caso não haja maiores aderências do neoplasma nesses músculos, realizar-se-á a dissecação junto da musculatura, buscando-se afastar ao máximo da cápsula tireoidiana (Fig. 11.11), já que em casos de carcinomas está indicada sempre a técnica extra capsular8. Mais comumente, em nossa rotina, tem sido operar animais submetidos à biopsia prévia para citorredução de neoplasmas volumosos. Nesses casos, o acesso será a partir de incisões elípticas sobre o próprio neoplasma e que envolvam a(s) área(s) previamente abordada(s). Para se manterem margens livres de neoplasma, maior ou menor quantidade de músculo esterno-hióideo do lado afetado acabará sendo removido em conjunto com a glândula. Em casos de incisões elípticas, as bordas das feridas cutâneas podem ser apreendidas em conjunto com tecido subcutâneo e parte do esterno-hióideo seccionado para melhor apresentação dos aspectos medial e lateral do neoplasma. Respeitando-se a margem de tecido sadio segura, a disssecção será avançada medial e lateralmente. A traqueia entubada é afastada medialmente com Farabeuf delicado, cuidando-se para não comprimir o nervo laríngeo cranial ou o caudal (também denominado laríngeo recorrente). Os vasos neoformados que se dirigem ou partem do neoplasma são pinçados, seccionados e ligados com fio absorvível multifilamentar sintético fino (3-0 a 4-0) na medida em que vão se apresentando, assim como os tecidos conjuntivos e musculares na área de ressecção (Fig. 11.12). Pode-se empregar eletrocirurgia monopolar ou bipolar, dando-se preferência à segunda opção para reduzir o risco de
Figura 11.11 – Acesso ao neoplasma tireoidiano (carcinoma compacto) relativamente extenso – mas não muito invasivo – pela linha mediana ventral cervical em cão. Ao se separarem os músculos esterno-hióideos medialmente – exatamente no tecido conectivo entre estes – haverá mínima hemorragia. Contudo, esta abordagem não é a primeira escolha em casos de neoplasmas tireoidianos previamente biopsiados.
Figura 11.12 – Na medida em que a dissecção do neoplasma vai avançando, os tecidos adjacentes aderidos e os vasos neoformados – assim como os ramos dos vasos tireoidianos craniais e caudais (bem como estes mesmos) – vão sendo pinçados e ligados.
danos térmicos numa área tão nobre como esta. Procura-se preservar a carótida e o nervo vago a partir de cuidadosa dissecação. Em nossa rotina, já tivemos situação em que o nervo laríngeo recorrente e a jugular estavam adentrando no carcinoma extenso de tireoide, tornando-se necessário o sacrifício destas estruturas para adequado tratamento cirúrgico. A lesão de laríngeo recorrente interfere diretamente na fonação do animal (o paciente apresentará latido rouco) e pode ter repercursões clínicas importantes quanto a alterações de mobilidade da laringe. O sacrifício da jugular externa não apresenta maiores repercursões no paciente.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
As artérias e veias tireoidianas caudais e craniais são duplamente ligadas e seccionadas na medida em que se avança na dissecação tumoral. O afastamento e a hemostasia de pequenos vasos são facilitados pelo uso de gazes úmidas montadas em pinças hemostáticas manuseadas pelo auxiliar (Fig. 11.13). Se for possível, a glândula paratireoide externa associada ao neoplasma será preservada a partir de cuidadosa dissecção extracapsular, mas em grandes neoplasmas pode ser muito difícil inclusive identificá-la junto ao tecido alterado. O neoplasma extirpado é enviado para avaliação histopatológica (Fig. 11.14). Em caso de presença de linfonodos cervicais anormais em forma, coloração ou tamanho, devem-se promover linfadenectomia e biopsia. A ferida cirúrgica é suturada em 3 camadas. Na muscular, geralmente se utiliza sutura de tensão com fio absorvível sintético 2-0 ou 3-0 (para animais de pequenas dimensões). Na aproximação do tecido subcutâneo para abolir o espaço morto, será empregada sutura contínua
ou interrompida de tensão, caso exista ampla ressecção. Algumas situações requerem o emprego de drenagem por sucção contínua, adaptando sonda uretral fina e seringa de 10mL (ver Cap. 20, Reconstrução de defeitos torácicos complexos com flape muscular).
Ressecção de grande neoplasma com invasão de aparelho respiratório e/ou digestório Mesmo após a citorredução, um neoplasma tireoidiano extenso poderá envolver parte dos tratos respiratório e/ou digestório, tornando-se necessário invadi-los durante a ressecção para que assim se respeitem as margens macroscópicas livres de doença. Em alguns casos, o neoplasma está amplamente fixado na laringe, na faringe, no esôfago e até mesmo no aparellho hióideo, condição que tornará necessária ampla resseção com perdas substanciais desses tecidos nobres, inviabilizando a manutenção do fluxo respiratório e/ou alimentar normal(is). Nessas situações, tornar-se-ão necessárias cirurgias reconstrutivas (ver Subcap. 12.1, Reconstrução de grandes defeitos esofágicos) ou até mesmo traqueostomia e gastrostomias permanentes. Técnicas clássicas de traqueostomia e gastrostomia permanentes são trazidas em muitos livros-texto e artigos científicos, recomendando-se aprofundamento nesses temas ao se manejar cirurgicamente pacientes com extensos neoplasmas tireoidianos.
Reposição hormonal, vitamínica e de cálcio Figura 11.13 – A exposição do neoplasma (N) e a hemostasia
de pequenos ramos vasculares associados a este podem ser melhor obtidas a partir do uso de “gaze montada” em uma pinça hemostática.
A
Em casos de paratireoidectomia unilateral é possível que não sejam necessárias terapias suplementares, porém os pacientes devem ser acompanhados quanto à ocorrência de hipocalcemia e hipertireoidismo, para se
B
Figura 11.14 – Aspecto macroscópico do neoplasma do mesmo caso das Figuras 11.10 a 11.13 antes (A) e após (B) a secção longitudinal da cápsula. Tratava-se de um carcinoma compacto.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular estabelecer precisamente a necessidade (ou não) de complementação terapêutica8. Já no caso de parati reoidectomia bilateral, suplementação de vitamina D, cálcio e hormônios tireoidianos deve ser iniciada no período pós-operatório. Hipotireoidismo é uma complicação potencial da tireoidectomia bilateral e deve ser avaliado por meio de exames laboratoriais e tratado quando houver indicação4. Os cães devem ser mantidos com fluidoterapia pós-operatória até que possam ingerir água normalmente16. O hipoparatireoidismo deve ser manejado anteci padamente quando as quatro paratireoides forem removidas, pois a maioria destes pacientes deverá receber reposição de vitamina D durante toda a vida4. Indicam-se dosagens de cálcio 1 a 2 vezes/dia durante 3 a 7 dias após a cirurgia, pois pode ocorrer hipocalcemia precocemente 12h após a cirurgia, assim como 20 dias depois8,16. O tratamento é recomendado quando as concentrações totais de cálcio são < 8mg/dL, quando o cálcio ionizado estiver < 0,8 a 0,9mg/dL ou na presença de sinais clínicos como fricção facial, espasmos, convulsões e tetania16. O tratamento da hipocalcemia aguda é realizado com gluconato de cálcio 10%, administrando-se 0,5 a 1,5mL/kg/IV lentamente durante 20min, concomitantemente à monitoração com eletrocardiograma, observando-se quanto a bradicardia e arritmias8. Quando o paciente estiver estável, deve-se iniciar a suplementação de cálcio e vitamina D por via oral (VO). A suplementação de calcitriol (vitamina D) é realizada em doses crescentes, iniciando-se com 0,02 até 0,03mg/kg/dia, sendo o volume total dividido em 2 vezes/dia, durante 3 a 4 dias; depois, a dosagem é diminuída para 0,005 até 0,015mg/kg/dia, dividida em 2 vezes/dia. Embora a maioria dos pacientes possa manter a concentração adequada de cálcio sérico oriundo da ingestão de rações comerciais quando da suplementação de vitamina D, fica indicada a terapia inicial com carbonato de cálcio na dose de 25mg/kg, a cada 8 ou 12h. Objetiva-se com tal protocolo a manutenção da concentração sérica de cálcio entre16 8,0 a 9,5mg/dL. Hipotireoidismo é uma complicação potencial da tireoidectomia bilateral e deve ser avaliado por exames laboratoriais e tratado quando houver indicação, sendo indicadas dosagens séricas de T4 e TSH periodicamente após a recuperação da cirurgia. Clinicamente, a complicação é rara após a cirurgia, sugestivamente devido à presença de tecido tireóideo acessório presente na região cervical ao longo da traqueia, na entrada do tórax, no mediastino e ao longo da aorta torácica descendente. Graças aos vários fatores que podem influenciar a concentração sérica de hormônios tireoi dianos, é essencial considerar os sinais clínicos e os resultados dos exames prévios durante a interpretação dos dados de dosagem hormonal. A suplementação é desnecessária a menos que sinais clínicos como letargia, obesidade e manifestações dermatológicas tornem-se
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aparentes16. O tratamento do hipotireoidismo é realizado com levotiroxina e a dose média de manutenção é 22mg/kg a cada 12h, VO. Entretanto, ajustes de posologia podem ser necessários de acordo com cada caso8. O aparecimento de hipercalcemia pode indicar a recorrência da doença. Por esta razão, os pacientes devem ser acompanhados periodicamente após a cirurgia16.
Cuidados pós-operatórios e prognóstico Deve-se prover a analgesia adequada e monitorar o paciente com relação a sangramento excessivo no local da cirurgia16. Se danos a nervos ocorreram durante a operação ou ressecção bilateral foi necessária, o cão deve ser monitorado a fim de identificar complicações, que podem incluir paralisia laríngea, megaesôfago, hipoti reoidismo e hipoparatireoidismo se as glândulas paratireoides forem removidas4,5. Hemorragias e anemia são complicações relativamente comuns, principalmente quando há neovascularização e invasão neoplásica4. Hipocalcemia, hipotireoidismo e recorrência de hipertireoidismo também podem ocorrer e devem ser monitorados. A ressecção de neoplasmas extensos na região cervical comumente está associada à produção de espaço morto considerável. Quando não se utiliza drenagem por sucção contínua, a aplicação de ataduras ao redor do pescoço – formando um colar cervical – auxilia na redução da ocorrência de seroma. Contudo, deve-se tomar cuidado a fim de não ocorrer dispneia por excessiva compressão. O diagnóstico precoce de massas móveis tratadas com excisão cirúrgica completa correlaciona-se com prognóstico bom a excelente. O diagnóstico tardio entretanto permite crescimento neoplásico, invasão e fixação do neoplasma primário, aparecimento de metástases e prognóstico ruim. Grandes neoplasmas tendem a ser piores candidatos à cirurgia, além de serem mais propensos a provocar metástase10. O potencial de metástases aumenta quando o volume do neoplasma excede 23cm3 e aproxima-se de 100% quando o volume tumoral excede 100cm3. Neoplasmas bilaterais são 16 vezes mais susceptíveis de metástases que os unilaterais, nas quais pulmões e linfonodos regionais, incluindo retrofaríngeos, cervical cranial e mandibular, são os tecidos mais comumente afetados5. O prognóstico para adenomas da tireoide é excelente e a cura pode ser alcançada somente com a excisão cirúrgica; no caso de carcinomas, essa é dependente de vários fatores, incluindo a mobilidade e o tamanho do tumor e o estágio da doença4. Pacientes com carcinomas móveis têm sobrevida média de 3 anos após ressecção cirúrgica e, no caso de neoplasmas invasivos, 12 meses5. Pacientes portadores de carcinossarcomas tireoidianos têm prognóstico reservado a desfavorável devido ao
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
comportamento agressivo deste neoplasma1. Se metás tases estiverem presentes no momento da primeira avaliação, a média de vida reportada é de 16 semanas12.
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Leitura complementar Christie BA, Bjorling DE. Kidneys. In: Slatter D, editor. Textbook of small animal surgery. 2a ed. Philadelphia: W.B. Saunders; 1993. p. 1428-41.
11.3
Manejo de neoplasmas tireoidianos extensos em gatos O hipertireoidismo é uma doença endócrina comum em felinos, tem sido descrita desde 1979 e é caracterizada pelo aumento dos hormônios tri-iodotironina (T3) e tiroxina (T4) produzidos pela glândula tireoide. A causa dessa endocrinopatia é a hiperplasia ou o adenoma da glândula e, menos frequentemente, o carcinoma (< 3% dos casos)1-3. A patogenia do hipertireoidismo felino ainda não está totalmente elucidada. No entanto, uma vez que não há conexão física entre os 2 lobos tireoidianos nos gatos, pressupõe-se que fatores genéticos, ambientais, compor tamentais e/ou dietéticos podem interagir para causar a enfermidade neles2-5. A fisiopatogenia do hipertireoidismo envolve uma subpopulação de células foliculares com grande potencial de crescimento que, eventualmente, passa a replicar-se de maneira autônoma, mantendo seu crescimento e produção hormonal, mesmo na ausência de estimulação extratireoidiana, ou seja, pelo estímulo do hormônio estimulante da tireoide (TSH)1,6. Nos seres humanos, a doença de Graves (hiperplasia difusa) e o bócio nodular tóxico (hiperplasia nodular focal ou múltipla) constituem as duas formas mais comuns de hipertireoidismo. Na doença de Graves, são produzidos autoanticorpos que se conjugam com o receptor de TSH, mimetizando sua atividade. Como os autoanticorpos estimulam o crescimento de todas células foliculares, a hiperplasia difusa é característica dessa doença, diferentemente do que ocorre em gatos. As tentativas de se correlacionar a presença desses auto anticorpos como causa do hipertireoidismo felino foram, até o presente momento, fracassadas2,7. Algumas hipóteses têm sido levantadas como causa do desenvolvimento do hipertireoidismo, como o excesso ou a deficiência de iodo na dieta e substâncias presentes na água, no ambiente e na dieta que interfiram com o funcionamento da glândula tireoide. O baixo teor de iodo na dieta a longo prazo levaria à baixa produção dos hormônios tireoidianos, o que estimularia o eixo hipotalâmico-hipofisário e aumentaria a produção do TSH. O estímulo crônico do TSH acarretaria na hiperplasia das células tireoidianas e os folículos ficariam autônomos e começariam a produzir hormônios, independentemente de estímulo hormonal, o que levaria ao desenvolvimento da hiperplasia tireoidiana e, em decorrência dessa, o adenoma tireoidiano3,4.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular Certos inseticidas, conservantes (como bisfenol A), herbicidas e fertilizantes podem levar à disfunção tireoidiana e ao hipertireoidismo3,4. O bisfenol A é uma resina utilizada em produtos enlatados para evitar a corrosão do metal. Essa substância se liga ao receptor do hormônio da tireoide na célula e impede a transcrição desse, levando ao aumento do TSH circulante e predispondo à hiperplasia tireoidiana. Essas substâncias que predispõem à hiperplasia tireoidiana são chamadas de substâncias bociogênicas. A tireoide felina é uma glândula composta por 2 lobos que se localizam na região cervical, na lateral dos primeiros anéis traqueais (Fig. 11.15). Esses lobos podem ser unidos por um fino istmo. A glândula tireoide normal tem 10mm de comprimento, 4mm de largura e 2mm de espessura. O suprimento sanguíneo ocorre pela artéria tireoidiana cranial e a drenagem, pelas veias tireoidianas cranial e caudal. Tecido tireoidiano acessório tem sido descrito desde a base da língua até a base do coração em alguns gatos. Associada a cada lobo tireoidiano está uma glândula paratireoide interna, embebida no tecido tireoidiano, e uma glândula paratireoide externa, geralmente localizada cranial ao lobo tireoidiano, medindo em torno de 3 a 4mm de diâmetro. A glândula paratireoide é responsável por produzir o paratormônio (PTH), que controla a homeostase de cálcio, e a presença de somente uma glândula paratireoide mantém os níveis séricos de cálcio. O hipertireoidismo acomete animais machos e fêmeas, principalmente acima de 6 anos de idade, com idade média de 12 anos, e não tem predisposição racial8-11.
Traqueia
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Os principais sinais clínicos observados são emagrecimento e polifagia. Os hormônios tireoidianos afetam todos os órgãos e a doença é multissistêmica. Os animais podem ficar mais ansiosos e irritáveis. Podem-se observar sopro e taquicardia. Os pacientes podem apresentar poliúria, polidipsia, vômitos, fezes pastosas, pelos arrepiados e agitação. Os sinais podem variar na presença de doenças concomitantes9,12. No exame físico, verifica-se aumento do lobo tireoidiano na palpação cervical em mais de 90% dos casos (Fig. 11.16)13. O acometimento é bilateral em 70% dos casos de hipertireoidismo e unilateral em 30%. Os lobos tireoidianos se localizam próximos ao 2º anel traqueal e quando aumentam de tamanho por hiperplasia ou adenoma, ficam mais pesados e deslizam em direção ao tórax, podendo entrar na cavidade torácica e não serem palpáveis na região cervical1,6. O diagnóstico do hipertireoidismo é realizado por meio da detecção do aumento da T4 total. A T4 total pode estar dentro dos valores de referência em animais hipertireóideos quando o hipertireoidismo está no início, os sinais clínicos são leves ou, ainda, quando há presença de outras doenças que suprimem sua concentração8,13. A concentração sérica do TSH está abaixo do valor de referência na maioria dos animais
Vasos tireoidianos cranais Glândulas paratireoide externa Glândulas tireoide Glândulas paratireoide interna
Veia tireoidiana caudal
Figura 11.15 – Anatomia da glândula tireoide em felinos. Glândula composta por 2 lobos laterais aos anéis traqueais. Possui 2 glândulas paratireoides intimamente relacionadas aos lobos tireoidianos. Os gatos podem não apresentar a artéria tireoidiana caudal.
Figura 11.16 – Paciente felino com hipertireoidismo apresentando lobo tireoidiano esquerdo palpável. Observa-se aumento de volume na região cervical esquerda (seta).
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
hipertireóideos e pode ser avaliada para complementar o diagnóstico de hipertireodismo8. O valor de T4 livre pode estar aumentado em gatos não hipertireóideos e não tem valor diagnóstico como único exame para o hipertireoidismo felino8. O hemograma pode revelar aumento do hematócrito em decorrência da ação do hormônio tireoidiano na medula óssea. A maioria dos animais apresenta aumento das enzimas séricas alanina aminotransferase e fosfatase alcalina pelo dano tóxico no fígado. A cintilografia nuclear é um exame essencial para animais com hipertireoidismo por determinar a anatomia e a função da glândula tireoidiana, porém não está disponível em todos os locais. Esse exame permite identificar o lobo tireoidiano acometido, localizar o tecido tireoidiano acessório hiperfuncional ou a metástase hiperfuncional, identificar tecido tireoidiano residual após a tireoidectomia e avaliar a eficácia da radioterapia1,6. Quanto maior o tempo que o gato é diagnosticado com hipertireoidismo, maior será o risco de o lobo tireoidiano ser encontrado no tórax1. O tecido ectópico pode ser encontrado na região mediastinal (64/79), na cervical (6/79), na sublingual (8/79) e na sublingual e intratorácica (1/79)1. A cintilografia também é usada para determinar a dose de iodo radioativo6,11. O carcinoma tireoidiano pode não ser diferenciado de lesões benignas por esse exame, porém uma captação maior de radionuclídeo pelo tecido tireoidiano pode sugerir lesão maligna tireoidiana6. Em gatos hipertireóideos, o tratamento pode ser clínico, cirúrgico ou por iodo radioativo. A escolha do tratamento deve ser feita de acordo com a idade do paciente, doenças sistêmicas concomitantes, a prefe rência do proprietário e a disponibilidade financeira e terapêutica da região1,14,15. Deve-se lembrar que o hipertireoidismo é uma doença crônica e progressiva e que o tratamento clínico não previne o aumento do lobo tireoidiano e nem a transformação de lesões benignas em malignas1. Nenhum tratamento para o hipertireoidismo, seja esse medicamentoso ou definitivo, leva à lesão renal. Essa lesão pode existir em pacientes hipertireóideos e não ser evidente porque no hipertireoidismo ocorre um aumento da taxa de filtração glomerular, o que mascara uma lesão renal prévia. Quando o hipertireoidismo é controlado, essa taxa é reduzida e pode ocorrer aumento das enzimas renais nos pacientes com lesão renal prévia dentro de 1 a 6 meses após o controle6,16,17. O tratamento médico consiste em administrar fármacos que bloqueiam a síntese dos hormônios tireoidianos, como o metimazol, que inibe a peroxidase tireoidiana, enzima envolvida no processo de oxidação do iodeto em iodo e na incorporação do iodo à molécula de tireoglobulina por meio da ligação do iodo com os resíduos de tirosina para formar T3 e T4. Esse fármaco não bloqueia a liberação de hormônio pré-formado, o que explica no atraso de 2 a 4 semanas antes da
concentração de T4 total atingir o nível sérico normal18. Também não inibe a captação de iodo pela tireoide, não impedindo a captação do iodo radioativo no exame de cintilografia, pelo contrário, aumentando a captação desse pelo tecido tireoidiano normal por até 15 dias após a suspensão da medicação. Porém, a medicação interfere com a radioiodoterapia ao reduzir o tempo de ativação do iodo radioativo dentro da tireoide, inibindo a incorporação do iodo nos resíduos de tirosina, devendo-se suspender a medicação 7 a 10 dias antes do tratamento. O tratamento clínico não diminui o tamanho do lobo tireoidiano, sendo que, na maioria dos casos, este aumenta de tamanho com passar do tempo, podendo predispor ao desenvolvimento de carcinoma tireoidiano1. A dose recomendada de metimazol é 1,25 a 2,5mg/ gato, podendo chegar a 10mg/gato, a cada 12h ou a cada 24h, sendo que a dose a cada 12h tem melhor eficácia que a dose única diária. Os hormônios tireoidianos aumentam 48h após a suspensão da medicação18. O metimazol pode ser usado para estabilizar os pacientes antes da tireoidectomia, reduzindo o risco de complicações, tais como taquiarritmias, durante a anestesia18. Pode ser utilizado em gatos com insuficiência renal crônica antes da terapia definitiva como um teste para determinar se o nível de T4 sérico pode ser seguramente reduzido sem causar descompensação renal16,18. O tratamento medicamentoso tem como desvantagens administração diária, efeitos colaterais e necessidade de exames clínico e laboratorial periódicos para o controle hormonal. Os efeitos colaterais do metimazol têm sido relatados em 18% dos gatos e incluem discrasia sanguínea (neutropenia e trombocitopenia), escoriação facial, hepatotoxicidade, transtorno gastrointestinal (anorexia, vômito, letargia), descompensação renal, anormalidades de coagulação, miastenia gravis adquirida e foliculite piogranulomatosa19. Também pode ocorrer linfoade nomegalia generalizada com o uso desse medicamento. Alguns gatos hipertireóideos podem ser refratários ao tratamento com metimazol. A troca do metimazol humano para o metimazol fabricado para gatos reduz o vômito e a diminuição de apetite em alguns desses animais. Outras medicações podem ser usadas para tratar gatos com hipertireoidismo quando há efeitos colaterais com o uso de metimazol, como carbimazol, betabloqueadores e agentes de contraste à base de iodo18. Alguns animais são intolerantes à medicação oral e a administração transdérmica do metimazol tem sido uma opção para eles. O gel transdérmico de metimazol tem como vantagem evitar a via gastrointestinal e assim não causar irritação gástrica, não sendo necessário realizar a contenção do animal pelo proprietário. Esse gel é manipulado em organogel lecitina plurônica e passado na parte interna da orelha (face sem pelo). Tem como desvantagem irritação local e pode infrequentemente também causar sinais gastrointestinais, como anorexia, vômito e diarreia. Seu uso tem alcançado bom controle em gatos hipertireóideos10.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular Dieta com baixo teor de iodo tem sido indicada para gatos com hipertireoidismo e os sinais clínicos e a concentração de T4 total são reduzidos 4 semanas após o consumo. A deficiência de iodo na dieta inibe a habilidade da glândula tireoide de produzir T4.5 Porém, o seu uso é controverso pelo fato de essa deficiência ser um fator de risco para o desenvolvimento de hipertireoidismo3,4,6. O iodo radioativo age quase que exclusivamente no tecido tireoidiano hiperfuncional, irradiando-o e destruindo-o, enquanto o tecido tireoidiano normal suprimido recebe pequena quantidade de radiação. Tumores tireoidianos afuncionais não captam iodo radioativo, não sendo esse recomendado nesses casos. É o tratamento de escolha por ser simples, efetivo e seguro, com baixa taxa de morbidade e mortalidade. Não causa efeitos sistêmicos adversos de maneira substancial e muitos gatos ficam eutireoidianos com um único tratamento, sendo que menos de 5% dos animais tratados precisam de um segundo tratamento. As desvantagens dessa terapêutica são necessidade de uma licença especial, custo financeiro do proprietário, disponibilidade do aparelho, de material e de pessoas capacitadas, e isolamento do felino por um período de 7 a 10 dias após o tratamento6,20. A eliminação da radioatividade é gradativa e ocorre em 2 a 4 semanas6,21. O animal tem de ficar estritamente em casa por 2 semanas após a liberação e não pode ter contato com crianças com menos de 18 anos e mulheres grávidas. As fezes e urinas têm de ser manejadas com luvas e os gatos não podem dormir com os proprietários ou sentar nos seus colos6. Os efeitos colaterais relatados são febre, dificuldade de deglutição e hipotireoidismo iatrogênico20,22. A cirurgia pode ser curativa, porém os efeitos do excesso de hormônio tireoidiano em vários órgãos fazem com que a anestesia e a cirurgia desses pacientes estejam associadas a importantes morbidade e mortalidade. Por isso, os pacientes hipertireóideos devem ser estabilizados com o uso de medicamento à base de metimazol na dose
A
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de 2,5 a 5mg/gato, 1 a 2 vezes/dia; se o animal apresentar efeitos colaterais com essa medicação, é indicado o uso de propanolol na dose de 2,5 a 5mg/gato, a cada 8h, ou de atenolol na dose de 6,25 a 12,5mg/gato, 1 vez/dia, pelo menos 2 semanas antes da cirurgia15. Após estabilização do quadro de hipertireoidismo por meio do uso de medicação oral, o paciente pode ser indicado para o tratamento cirúrgico. Como agente pré-anestésico, pode ser usada a acepromazina (0,05mg/ kg) associada à meperidina (4mg/kg), via intramuscular (IM). A anestesia pode ser induzida com propofol (2 a 4mg/kg), via intravenosa (IV), ou com isoflurano, por máscara, e mantida com isoflurano. Gatos com cardiomiopatia podem ser pré-medicados com butorfanol (0,2mg/kg) ou metadona (0,3mg/kg, via IM), induzidos com diazepan (0,2 mg/kg, via IV) seguido por etomidato (1 a 3mg/kg, também via IV) e mantidos com isoflurano. Apesar de já terem sido descritas complicações anestésicas, nenhuma foi observada recentemente durante a tireoidectomia15,23. O paciente é colocado em decúbito dorsal com os membros torácicos direcionados no sentido caudal e a cabeça inclinada para trás, para o pescoço ficar estendido. Uma ampla tricotomia na região cervical ventral é necessária, desde a laringe até o manúbrio. A antissepsia é realizada no campo cirúrgico. Os lobos tireoidianos são acessados através de uma incisão ventral entre a laringe e o manúbrio. Os músculos esterno-hióideos e esternotireóideos são incisados na rafe e são afastados lateralmente para expor a traqueia. No aspecto lateral à traqueia e medial aos músculos esternotireóideos estão localizados os lobos tireoidianos (Fig. 11.17). A tireoidectomia pode ser realizada por meio das técnicas extracapsular e intracapsular, que podem ser modificadas, e as complicações variam de acordo com a técnica cirúrgica efetuada (Tabela 11.1).
B
Figura 11.17 – Tireoidectomia. (A) Posicionamento do animal para tireoidectomia em decúbito dorsal com membros torácicos direcionados em sentido caudal; (B) localização ventral do lobo tireoidiano esquerdo aumentado de tamanho (seta branca) e lateral aos anéis traqueais (seta azul).
– – –
11/41
50/106
30/106
101
8
Intracapsular bilateral
Intracapsular modificada
Extracapsular 26/106 modificada
10
Intracapsular modificada
Implantação em estágio
Intracapsular modificada
Implantação unilateral
Norsworthy, 199527
Naan et al., 200628
Corgozinho et al., 201015
Welches et al., 198926
–
19/41
Intracapsular modificada
–
–
–
–
–
2/101
–
–
–
–
1 edema de laringe
–
–
–
–
–
53/85 bilateral
Extracapsular 11/41 modificada
Flanders et al., 198725
8/85
Óbito
32/85 unilateral 9/85
Arritmia
Intracapsular modificada
Número de animais
Bichard et al., 198424
Técnica utilizada
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
Hemorragia
–
–
–
–
–
–
–
–
–
–
1/85
Síndrome de Horner
–
1/101
–
–
–
–
–
–
–
–
–
Espasmo laringiano
Complicações
–
11/50 – 1/26
1/11
11/50 10/30 6/26
–
3/8
5/101
2/19
7/19
5/86
1/11
9/11
–
4/53
15/53
–
–
Retorno ao hipertireoidismo
–
Hipocalcemia
978-85-5795-001-6
Estudo
Complicações pós-operatórias de diferentes técnicas de tireoidectomia
Tabela 11.1 – Complicações da tireoidectomia utilizando diferentes técnicas cirúrgicas.
188 Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
189
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular A tiroparatireoidectomia foi a primeira técnica descrita e consiste na ligadura dos vasos sanguíneos cranial e caudal à glândula tireoide e na remoção dos lobos tireoidianos acometidos juntamente com as glândulas paratireoides (Fig. 11.18). Essa técnica apresenta a desvantagem de haver desenvolvimento de hipocalcemia pós-cirúrgica quando realizada bilateralmente. Sua vantagem é a ausência de resquício de tecido tireoidiano após a retirada do lobo, pois esse é retirado por completo, juntamente com a cápsula tireoidiana. A técnica extracapsular foi criada com o intuito de diminuir a hipocalcemia pós-operatória. A glândula paratireoide externa é identificada e dissecada cautelosamente da cápsula tireoidiana a fim de evitar danos ao seu suprimento sanguíneo. O lobo tireoidiano é removido (Fig. 11.19). Essa técnica reduziu o índice de hipocalcemia pós-operatória se comparada com a tiroparatireoidectomia. Apesar de a glândula para tireoide externa permanecer após a retirada do lobo tireoidiano, pode ocorrer alteração no suprimento vascular e essa não ser capaz de manter os níveis de cálcio logo após a cirurgia. A técnica intracapsular consiste na incisão da cápsula tireoidiana, na dissecção delicada do lobo com tesoura de ponta romba ou haste plástica com ponta de algodão e na remoção do lobo tireoidiano com manutenção da cápsula, tomando cuidado para não traumatizar a glândula paratireoide externa e seu suprimento sanguíneo (Fig. 11.20). As desvantagens dessa técnica são a hipocalcemia, quando há comprometimento do suprimento das glândulas paratireoides externas na técnica bilateral, e a permanência de tecido tireoidiano acometido, levando ao retorno do hipertireoidismo. Há menor incidência de hipocalcemia se comparada à técnica extracapsular.
Traqueia
Traqueia
Figura 11.18 – Técnica de tiroparatireoidectomia. Ligadura dos vasos e remoção da glândula tireoide direita juntamente com as glândulas paratireoides.
Diferindo da técnica anterior por remover quase toda a cápsula tireoidiana, a técnica intracapsular modificada deixa apenas o fragmento da cápsula próximo à glândula paratireoide externa (Fig. 11.21). Isso reduz o risco da permanência de tecido tireoidiano e o retorno ao quadro de hipertireoidismo. Uma técnica cirúrgica mais recente visa a retirada do lobo tireoidiano e das glândulas paratireoides, porém realiza a implantação da glândula paratireoide externa entre as fibras do músculo esterno-hióideo (Fig. 11.22). A retirada da glândula paratireoide pode ser realizada anteriormente ou após a remoção do lobo tireoidiano, sendo que a retirada anterior permite mais fácil visibilização da glândula paratireoide externa, pois a remoção da vascularização da glândula tireoide faz com que a coloração dessa fique menos intensa, prejudicando a identificação da glândula paratireoide23. Após a implantação da glândula paratireoide na musculatura, uma sutura com fio não absorvível é realizada no músculo para permitir identificação do local da implantação, caso haja necessidade de uma segunda tireoidectomia, evitando-se assim lesão na glândula paratireoide implantada. Duas semanas após a implantação da glândula paratireoide, ocorre neovascularização e retorno da sua função29. O ideal é realizar essa técnica em etapas para evitar a hipocalcemia pós-cirúrgica. Sua dificuldade está em achar a glândula paratireoide que nem sempre estará localizada no polo cranial da tireoide e pode ser confundida com o tecido cranial à tireoide (Fig. 11.23)23. Esta técnica é a que menos apresenta complicações pós-operatórias quando realizada em etapas. A técnica cirúrgica em etapas – ou seja, realizar a tireoidectomia unilateralmente e, após um período de 3 a 4 semanas, fazê-la no outro lobo – permite a recuperação do suprimento sanguíneo da glândula paratireoide externa após o trauma cirúrgico. A desvantagem é
Traqueia
Traqueia
Figura 11.19 – Técnica de tireoidectomia extracapsular.
Dissecção da tireoidiano.
glândula
paratireoide
externa
do
lobo
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
Traqueia
Traqueia Traqueia
Traqueia
Traqueia
Incisão na cápsula tireoidiana e remoção de todo o tecido tireoidiano, permanecendo a cápsula tireoidiana.
Figura 11.21 – Técnica de tireoidectomia intracapsular modificada. Incisão na cápsula tireoidiana, remoção do tecido tireoidiano e posterior remoção da cápsula tireoidiana, preservando a glândula paratireoide externa.
A
B
C
D
Figura 11.20 – Técnica de tireoidectomia intracapsular.
Figura 11.22 – Tireoidectomia com implantação da glândula paratireoide no músculo esterno-hióideo. (A) Exposição da glândula paratireoide para remoção cirúrgica e separação da glândula paratireoide externa da glândula tireoide; (B) incisão no músculo esterno-hióideo para implantação da glândula paratireoide; (C) glândula paratireoide introduzida na incisão da musculatura esterno-hióidea; (D) sutura com fio não absorvível do músculo esterno-hióideo com a glândula paratireoide externa em seu interior para identificação posterior.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular submeter o paciente a 2 procedimentos anestesiológicos. A vantagem é a liberação mais cedo do animal para casa já que o risco de hipocalcemia é mínimo15. Não têm sido observadas complicações anestesiológicas ou intraoperatórias de tireoidectomia em pacientes estabilizados previamente, mesmo esses sendo idosos e tendo doenças concomitantes15,23. A mais importante complicação pós-cirúrgica é a hipocalcemia, decorrente de dano na glândula paratireoide ou no seu suprimento sanguíneo, principalmente após a tireoidectomia bila
191
teral. Geralmente, o gato não desenvolve hipocalcemia quando a tireoidectomia é realizada unilateralmente. Em um estudo de 11 gatos submetidos à tireoidectomia unilateral, somente 1 apresentou hipocalcemia pós-cirúrgica no exame laboratorial no 1º dia, sem apresentar sinais clínicos e, portanto, sem a necessidade de tratamento clínico. Geralmente não ocorre hipocalcemia quando a técnica é realizada em etapas porque a presença de somente 1 glândula paratireoide é capaz de manter a normocalcemia15.
A
B
C
D
E
F
Figura 11.23 – Glândulas tireoidianas. (A a C) Glândulas tireoidianas apresentando as glândulas paratireoidianas externas
localizadas no polo cranial (setas); (D) glândula paratireoide (seta) localizada no polo caudal da glândula tireoide; (E e F) glândulas tireoidianas não apresentando as glândulas paratireoidianas externas no polo cranial. Não foi possível a identificação da glândula paratireoide externa nestes animais.
192
Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
Os sinais clínicos de hipocalcemia são espasmos ou fraqueza muscular, anorexia e depressão, hipersalivação, decúbito lateral e incapacidade de levantar a cabeça. Os níveis séricos de cálcio devem ser monitorados por pelo menos 6 dias pós-cirúrgicos. Gatos não mostram sinais de tetania até a concentração de cálcio total atingir níveis < 6,5mg/dL. O tratamento é a aplicação de gluconato de cálcio a 10% lentamente (20min), via IV, na dose de 0,5 a 1,5mL/kg. Em humanos, a dosagem de cálcio sérico é realizada no pós-operatório da tireoidectomia para evitar os sinais clínicos de hipocalcemia. O PTH é avaliado depois da cirurgia também com o intuito de prever a hipocalcemia pós-cirúrgica. O decréscimo desse hormônio para níveis < 75% do hormônio basal 10min após a operação é indicativo de hipocalcemia pós-cirúrgica, mas, por enquanto, esse exame não está disponível na medicina veterinária. Quando o gato for submetido à segunda tireoidectomia com implantação da glândula paratireoide, ele deverá ficar internado por 3 dias para acompanhamento dos níveis de cálcio sérico. Coleta de sangue deverá ser feita a cada 2h após a cirurgia no 1º dia. Se os níveis de cálcio estiverem abaixando, isso indica que não houve implantação da primeira glândula paratireoide externa. Quando os níveis de cálcio atingirem a concentração de 7,5mg/dL, será suplementado gluconato de cálcio, por via subcutânea (SC), na dose de 1 a 2mL/kg, diluída 1:4 em solução fisiológica, a cada 6 ou 8h, se o animal não apresentar sinais clínicos de hipocalcemia; se ele apresentar tais sinais, a suplementação de cálcio será por via IV, lentamente. A via SC é utilizada até a medicação oral ser instituída. Suplementação de carbonato de cálcio oral, na dose de 25 a 50mg/kg/dia, e calcitriol (metabólito da vitamina D) oral, na dose de 5 a 15ng/kg/dia, devem ser instituídas. A vitamina D ajuda na absorção de cálcio no trato gastrointestinal e mantém os níveis séricos de cálcio. Após a estabilização, os níveis de cálcio devem ser mensurados a cada 7 dias, para ser avaliada a necessidade de suplementação. A meta é manter tais níveis entre 8,5 a 9,5mg/dL. Se a segunda glândula paratireoide tiver sido implantada, a suplementação de cálcio e calcitriol não será mais necessária em 15 a 21 dias pós-cirúrgicos. Se não for possível implantar a glândula paratireoide externa na primeira e nem na segunda cirurgia, os níveis séricos de cálcio irão reduzir após a segunda e a suplementação de cálcio e calcitriol deverá ser iniciada conforme descrito previamente. Mesmo assim, em geral, a hipocalcemia é transiente nos gatos, voltando a normo calcemia 2 a 6 meses após a cirurgia, e não sendo mais requerida suplementação oral de cálcio e calcitriol. Uma explicação para esse fato é uma acomodação do sistema que regula o nível sérico de cálcio e que trabalha em níveis subótimos na ausência do PTH. Uma possível causa para essa acomodação seriam mudanças no metabolismo da vitamina D que levariam à contínua absorção de cálcio pelo intestino na deficiência de PTH, aumentando a concentração de cálcio sérico. Devem-se avaliar os níveis séricos de cálcio continuamente para evitar a hipercalcemia e, como
consequência, a calcificação de tecidos moles, especialmente do rim, causando nefrocalcinose e insuficiência renal nesses animais com suplementação oral de cálcio e calcitriol. Outra complicação da tireoidectomia é o retorno do hipertireoidismo após a cirurgia. Isso pode ocorrer por uma retirada incompleta do tecido tireoidiano hiper funcional, pela presença do outro lobo não removido que está ou se torna funcional (o acometimento é bilateral em 70% dos casos) e/ou pela presença de tecido tireoidiano acessório ou de metástase hiperfuncional. Por isso, o uso da cintilografia é indicado no pré e no pós-operatório6. A recorrência do hipertireoidismo pode acontecer de 8 a 63 meses após a cirurgia15. O desenvolvimento de hipotireoidismo após tireoi dectomia bilateral parece ser raro. Os níveis de T4 total diminuem em 24 a 72h após a cirurgia. A suplementação hormonal é raramente requerida pela presença de tecido tireoidiano acessório que é capaz de manter os níveis séricos de T4 dentro do normal. A suplementação é indicada se os níveis de T4 continuarem baixos após a cirurgia e o animal desenvolver letargia, ganho de peso em excesso ou problema dermatológico. A dose é de 0,05 a 0,2mg/gato/dia e deve ser reduzida e retirada em 1 a 3 meses, de acordo com os sinais clínicos. A lesão do nervo laríngeo recorrente durante a cirurgia em alguns gatos leva à síndrome de Horner no período pós-operatório. A dissecção da glândula tireoide deve ser realizada o mais próximo a ela, evitando assim danos ao nervo laríngeo recorrente, à veia jugular ou à artéria carótida. A patogênese do hipertireoidismo parece envolver fatores nutricionais e ambientais e não está bem elucidada, por isso pode ser difícil a prevenção dessa doença hormonal. Algumas orientações podem ajudar a reduzir o risco de desenvolvimento do hipertireoidismo em gatos. Recomenda-se fornecer dieta que não contenha substâncias que interfiram no funcionamento da glândula tireoide (por exemplo, alimentos que contenham o bisfenol A), oferecer água filtrada e não mineral, intro duzir areia sanitária biodegradável sem neutralizante de odores, reduzir produtos químicos para limpeza da casa, aplicar produtos duzir dietas com antipulgas quando necessário e intro níveis de iodo entre 0,5 a 2,0ppmL (em mg/kg de matéria seca), para gatos de 4,5kg com ingestão3 de 25 a 100mg/dia. O hipertireoidismo é uma doença crônica e progressiva. Os hormônios tireoidianos afetam todos os sistemas e levam a lesões em vários órgãos, por isso ele deve ser tratado. O tratamento clínico não impede o crescimento do lobo e a transformação de lesões benignas em malignas, portanto, deve-se avaliar, estabilizar e, se possível, instituir o tratamento adequado para cada animal. Como no Brasil ainda não há disponibilidade de cintilografia para avaliar a localização do tecido hiperfuncional, a radiodoterapia é o tratamento mais indicado. Quando não há a possibilidade de realizar a radiodoterapia, a retirada do lobo tireoidiano cervical aumentado pode ser realizada como terapia definitiva e instituída em etapas para se evitar a hipocalcemia pós-cirúrgica.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular
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11.4
Ressecção de neoplasmas perianais extensos Introdução A região perianal de cães e gatos é constantemente acometida por neoplasmas benignos e malignos. Dentre as ocorrências, estão os lipomas, sarcomas e carcinomas de células escamosas, os rabdomiossarcomas, os leio miomas e os mastocitomas. Contudo, os neoplasmas
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
sebáceos e os adenomas e carcinomas de glândulas perianais são os mais corriqueiros nessa região (Fig. 11.24)1. Este capítulo objetiva abordar o comportamento dessas massas tumorais e suas respectivas remoções cirúrgicas, auxiliando cirurgiões a procederem exéreses com bons resultados pós-operatórios.
ulcerados (Fig. 11.25)2. Quando os adenomas perianais afetam fêmeas, essas são quase sempre ovariectomizadas, o que sugere uma possível perda da “proteção” estrogênica3.
Neoplasmas perianais
Os adenocarcinomas das glândulas perianais não são responsivos a hormônios e representam apenas 3 a 17% dos neoplasmas perianais2,4. Pela característica maligna, a ocorrência de metástases é possível e, em cerca de 13% dos casos, os linfonodos regionais estarão positivos no momento do atendimento. Metástases pulmonares são raras. Não há ocorrência em felinos, pois essa espécie não possui glândulas circum-anais2,5,6.
Adenomas Originados das glândulas circum-anais, os adenomas são neoplasmas comuns (80%) da região perianal. Apresentam crescimento rápido e estão relacionados com hormônios andrógenos, sendo, portanto, mais encontrados em cães machos, intactos e idosos. Por serem hormôniodependentes, geralmente diminuem de tamanho após a castração. São pouco descritos em fêmeas (10 vezes menos), não havendo relato em felinos2. Ocorrem em nódulos únicos ou múltiplos, sendo salientes, firmes e circunscritos, e não sendo rara sua ocorrência em tamanhos grandes e
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Adenocarcinomas de glândula perianal
Adenocarcinomas do saco anal O carcinoma do saco anal é pouco frequente em cães. Originam-se nas glândulas apócrinas localizadas no interior do saco anal, acometendo principalmente cães
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Figura 11.24 – Imagem da região perianal de 2 pacientes caninos. Observam-se adenoma (A) e adenocarcinoma (B) de glândulas circum-anais.
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Figura 11.25 – Ocorrência de adenoma perianal ulcerado, em fêmea ovariectomizada (A) e em macho intacto (B).
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular adultos a idosos7. Em geral são unilaterais, com comportamento maligno, localmente invasivos e altamente metastáticos. Estão associados aos sinais clínicos de hipercalemia, poliúria e polidipsia. Iniciam seu crescimento de forma lenta, mas, conforme evoluem, invadem o reto e a cavidade pélvica, atingindo os linfonodos ilíacos, sacrais e sublombares2. O mecanismo associado ao desenvolvimento de hipercalcemia em pacientes com carcinoma de saco anal é a produção, pelo tumor, da proteína relacionada ao paratormônio (PTH-rP, parathyroid hormone-related protein), que eleva a atividade dos osteoclastos, destruindo a matriz óssea e liberando cálcio na circulação8. Podem ocorrer metástases em outros órgãos, mas elas são mais encontradas em pulmões, fígado e baço2.
Carcinomas de células escamosas Os carcinomas de células escamosas (CCE) são neoplasmas epiteliais malignos que exibem variado grau de diferenciação escamosa9. Surgem a partir da linha anocutânea e, pela malignidade, causam lesões ulceradas que podem evoluir para fístulas. Cursam com dor local, dificuldade para defecar e sangramento, apresentando prognóstico grave2. Esses tumores apresentam ocorrência comum em cães e gatos, geralmente com crescimento lento, localmente invasivo e não metastático6,10. Os CCE induzidos por radiação solar metastatizam tardiamente e, em geral, apenas para linfonodos regionais10,11.
Leiomiomas Embora não sejam comuns, os leiomiomas e os leiomiossarcomas do reto já foram descritos, e sem predileção por raça. Quanto à espécie, sabe-se que neoplasmas benignos do trato digestivo são raros em felinos4. O leiomioma é uma neoplasia benigna, que ocorre na forma de massa intramural circunscrita, com
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origem na musculatura lisa de vagina, útero e reto12. Sua etiologia não é definida e não existem critérios claros para distingui-los entre benignos e malignos. Podem apresentar diversos padrões de crescimento, tais como: endorretal ou submucoso, exorretal, intramural, in tersticial ou misto. Não há predileção de sexo, assim como não há sinais específicos. Quando assintomáticos, a identificação de uma massa retal passa a ser o primeiro achado. Os sinais relacionados são sangramento retal, tenesmo e alteração do hábito intestinal. O diagnóstico diferencial é feito com neoplasmas carcinoides, fibroma, lipoma, endometriose, hemangioma e plasmocitoma13. No aparelho genital, acomete, principalmente, fêmeas idosas e não castradas, estando relacionado à estimulação estrogênica. São bem demarcados, mas não encapsu lados, usualmente esféricos e de tamanhos variáveis12. Dependendo do tamanho, mesmo com origem na vagina, podem comprimir a parede do reto, comprometendo as funções normais. Além disso, tornam-se visíveis devido ao aumento de volume na região perineal (Figs. 11.26 e 11.27). O tratamento é eminentemente cirúrgico, podendo variar entre eletroincisão e ressecção transanal ou endoscópica. Além disso, ressecções ampliadas abdominoperineais para amputação do reto nas grandes lesões ou recidivas são uma alternativa de tratamento. Recomenda-se acompanhamento criterioso do pós-operatório, para detectar eventuais recidivas ou mudança de malignidade. Alguns dados sugerem que os leiomiossarcomas desenvolvem-se a partir dos leiomiomas13.
Diagnóstico Pacientes com neoplasmas perianais apresentam-se com histórico de tenesmo, disquezia, defecação dolorosa e fezes mucoides e com presença de sangue. Prolapso retal e dilatação do cólon descendente são consequências da força abdominal na tentativa de defecar. Estágios
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Figura 11.26 – Animal em decúbito ventral com a cauda tracionada cranialmente e fixada sobre o eixo dorsal da paciente. (A)
Evidencia-se a presença de compressas dobradas sob a região inguinal, elevando a pelve. (B) Observa-se aplicação de sutura de bolsa de tabaco no ânus, impedindo a contaminação transoperatória por derramamento de fezes.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
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Figura 11.27 – Animal acometido por leiomioma no teto da vagina, o qual comprometia a defecação. (A) Dupla incisão lateral ao ânus, convergindo para a porção ventral; (B) exposição do teto da vagina, permitindo a visibilização da massa neoplásica que comprimia o reto; (C) dissecação e delimitação do neoplasma; (D) imagem ao final do procedimento, evidenciando a dermorrafia com fio de náilon 4-0 em padrão isolado simples.
Tratamento cirúrgico Preparação do paciente A preparação do paciente que será submetido à cirurgia do ânus e reto visa reduzir a contaminação trans e pós-operatória. Recomenda-se jejum pré-operatório variando
entre 24 e 48h, sendo administradas, nesse período, apenas dietas ricas em calorias e que resultem em pouca formação de resíduos. A limpeza da ampola retal com enema é contraindicada no dia da cirurgia, pois aumenta o risco de derramamento de conteúdo fecal líquido no momento da incisão. Dessa forma, recomenda-se sua realização 12h antes do procedimento. Fezes remanescentes no reto deverão ser mecanica mente removidas antes da antissepsia do campo operatório, considerando apresentarem altas concentrações bacterianas, relacionadas com a contaminação da ferida cirúrgica2,4. Protocolos de antibioticoprofilaxia para cirurgias anorretais de cães e gatos devem prever ação contra bactérias aeróbias e anaeróbias. Utilizando-se protocolos parenterais, sugere-se o intervalo de 2h entre as aplicações, iniciando 1h antes do ato cirúrgico. Dessa forma, concentrações adequadas do fármaco nos tecidos são obtidas enquanto ocorre a exposição ao ambiente e são cessadas no momento da conclusão cirúrgica. A implementação de terapia pós-operatória só está recomendada em situações de infecção pré-existente ou quando houver quebra da assepsia transoperatória, como, por exemplo, em caso de derramamento de
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avançados da doença incluem perda de peso, caquexia e letargia4. Ao exame digital, percebe-se dor local e torna-se possível a identificação de massas invisíveis externamente. Exames ultrassonográficos abdominais permitem avaliação dos linfonodos, enquanto estudos radiográficos auxiliam a quantificar a gravidade da afecção. Análises histológicas auxiliam na diferenciação de adenomas perineais de carcinomas, contudo a diferenciação entre neoplasmas benignos e malignos é difícil. Como diagnóstico diferencial dos neoplasmas perianais têm-se irritação perianal, saculite anal, fístulas perianais, hérnias perineais, hiperplasia das glândulas locais, pitiose, neoplasmas vaginais e neoplasmas da musculatura adjacente ao ânus.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular conteúdo nos tecidos circunjacentes. Em procedimentos colorretais, prefere-se a utilização de cefalosporinas de segunda geração (cefoxitina, cefotetana, cefmetazol), pela eficácia sobre os patógenos locais. Associações como gentamicina e cefazolina, neomicina e eritromicina ou metronidazol e cefazolina podem ser utilizadas com resultados satisfatórios4. O acesso aos neoplasmas perianais varia conforme a localização. Lesões envolvendo a junção colorretal e o terço cranial do reto podem requerer osteotomia púbica, por acesso ventral. Massas localizadas no terço médio do reto são mais bem acessadas pela abordagem perineal dorsal, enquanto para lesões como lacerações, divertículos ou hérnias o acesso lateral é o mais adequado, podendo ser uni ou bilateral. Por fim, massas na porção dorsal da vagina, que interfiram na defecação, são exteriorizadas por meio de incisão ventral ao ânus4. A seguir, detalham-se os acessos citados e suas particularidades.
Posicionamento do paciente Decúbito ventral O decúbito ventral favorece a identificação das estruturas em sua posição fisiológica. Está indicado para a remoção de neoplasmas perineais externos e perianais acometendo ânus, reto e glândulas apócrinas e circum-anais. Uma vez posicionado o animal sobre a mesa, traciona-se a cauda cranialmente, fixando-a sobre o eixo mediano dorsal com amarras de algodão. Sob a região inguinal, sugere-se a colocação de compressas dobradas, elevando a pelve (ver Fig. 11.26 A). Recomenda-se a aplicação de sutura de bolsa de tabaco no ânus, impedindo a contaminação transoperatória por derramamento de fezes (ver Fig. 11.26 B). Uma vez em decúbito ventral, 3 acessos cirúrgicos permitem intervenções à ampola retal: acesso ventral, acesso lateral e acesso dorsal ao ânus4.
Decúbito dorsal Posiciona-se o paciente em decúbito dorsal, com os membros pélvicos tracionados cranialmente. Dessa forma, permite-se boa visibilização da região perianal e de suas estruturas, especialmente após a colocação de compressas dobradas sob a região sacral para elevar a pelve (Fig. 11.28). O decúbito dorsal também permite o acesso à ampola retal no interior da cavidade pélvica, por meio de osteotomia púbica. Nesse caso, os membros pélvicos são posicionados abduzidos caudalmente, na posição natural. Quando necessário pode-se ampliar a incisão em direção cranial, permitindo exploração da cavidade abdominal concomitantemente. Realiza-se a incisão na linha mediana caudal, a qual é ampliada sobre o púbis. Na inspeção abdominal, observa-se a ocorrência de metástases no colón e em órgãos distantes. O cólon e o reto são palpados para delimitar a lesão e, havendo necessidade de se explorar o canal pélvico, procede-se a osteotomia púbica,
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Figura 11.28 – Animal em decúbito dorsal com os membros pélvicos tracionados cranialmente.
a qual oferece melhor exposição do que a sinfisiotomia púbica. Além disso, esse posicionamento permite realizar a orquiectomia, quando indicada, sem necessidade de reposicionamento do paciente.
Acessos cirúrgicos Exérese de neoplasmas perianais externos A exérese de neoplasmas externos benignos é facilmente realizada sem necessidade de incisão da espessura completa na parede do reto (Fig. 11.29 A). Aplicando-se pontos de tração na mucosa, próximos à massa tumoral, torna-se possível sua completa visibilização e, consequentemente, remoção. Após incisão elíptica, eleva-se a mucosa associada ao neoplasma e promove-se a hemostasia local. O defeito é ocluído com sutura absorvível monofilamentar 3-0 ou 4-0, em padrão interrompido (Fig. 11.29 B). Quando pequenos e pediculados, a eletrocirurgia com cautério é uma boa opção para exérese rápida.
Acesso ventral ao ânus A abordagem ventral ao ânus, com o paciente em decúbito ventral, fornece visibilização da porção final do reto e da região dorsal da vagina. Comumente acometida por neoplasmas benignos, a musculatura lisa da vagina é local de ocorrência de leiomiomas e fibromas, os quais podem ser solitários ou numerosos. Surgem como massa globoide de base séssil, ou polipoide pedunculada, que se salienta no lúmen vaginal, mas podem evoluir de tamanho e pressionar o reto, dificultando a defecação. Nesse caso, a realização de 2 incisões, laterais ao reto e convergindo para a porção ventral é uma boa alternativa de acesso para a exérese cirúrgica (ver Fig. 11.27)4.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
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Figura 11.29 – (A) Imagem de adenoma das glândulas perianal, pequeno, localizado na borda ventral do ânus; (B) resultado final demonstrando a síntese com fio de náilon 4-0, em sutura isolada simples.
Acesso lateral ao ânus A abordagem lateral é menos utilizada do que as demais, contudo está indicada para ressecção de divertículos e correção de lacerações. Assemelha-se com o acesso às hérnias perineais, permitindo ampla exploração da parede lateral do reto. Com o paciente em decúbito ventral, realiza-se a incisão semicircular, a 3cm do ânus, no sentido cauda-ísquio (Fig. 11.30). O tecido
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subcutâneo é divulsionado até a exposição do diafragma pélvico, quando são identificados e separados os músculos esfíncter anal externo e elevador do ânus, expondo a parede lateral do reto. Deve-se atentar para a preservação dos nervos retal caudal e pudendo, do contrário poderá ocorrer incontinência fecal pós-operatória4. Após correção da alteração em questão, lava-se a região com solução salina aquecida e sutura-se a musculatura envolvida com fio absorvível sintético. Para evitar
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Figura 11.30 – Acesso lateral ao ânus. (A) Observa-se a região afetada, à direita do ânus; (B) incisão semicircular, a 3cm do ânus, no sentido cauda-ísquio; (C) visibilização interna das estruturas: reto, diafragma pélvico, musculatura local.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular herniação perianal, é possível associar implantes sintéticos que reforcem as estruturas naturais, como a tela de polipropileno, fixada a estruturas que ofereçam resistência a tração, como inserções musculares circunjacentes ao canal pélvico (Fig. 11.31 A e B). Ao ocluir o diafragma pélvico, o tecido subcutâneo é aproximado sobre a tela, reduzindo completamente o espaço morto remanescente. Para sutura da pele, recomenda-se o fio de náilon 3-0 ou 4-0, em sutura de Wolff, com os nós voltados para o lado oposto ao ânus (Fig. 11.31 C). Essa técnica previne a fixação de fezes nos nós de sutura, reduzindo a contaminação. Deve-se considerar a prescrição pós-operatória, baseada em lubrificantes intestinais, fato que gera o amolecimento fecal4.
Acesso dorsal ao ânus
intervenção. Atenta-se para o cuidado em evitar lesões ao plexo nervoso pélvico, localizado lateral ao ânus. Uma vez identificado e delimitado o neoplasma, aplicam-se pontos de reparo nos limites a serem resseccionados para evitar retração dos tecidos e auxiliar na anastomose. A anastomose terminoterminal é realizada com fio absorvível sintético monofilamentar (por exemplo, poliglecaprone, polidioxanona), em sutura isolada simples. Preferencialmente, inicia-se a anastomose pela região ventral do reto, com os nós voltados para o lúmen. Dividindo a anastomose em 4 quadrantes, a última linha de sutura ocorrerá com os nós extraluminais. Após confirmação da eficácia da anastomose, lava-se a região com solução de NaCl 0,9% aquecida e promove-se a aposição da musculatura seccionada. Drenos ativos poderão ser posicionados para redução completa do subcutâneo, caso haja suspeita de espaço remanescente. Após finalizado o procedimento, remove-se a sutura em bolsa de tabaco4.
Acesso por osteotomia púbica O acesso ao ânus por osteotomia púbica é indicado para a ressecção de neoplasmas do reto caudal. Com o paciente em decúbito dorsal, realiza-se a celiotomia pela linha média ventral, retroumbilical, estendida sobre o púbis. Após exploração da cavidade abdominal, expõem-se cólon distal e reto, isolando as demais vísceras
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O acesso dorsal ao ânus é indicado para a ressecção de tumores da porção média do reto. Para tanto, com o paciente em decúbito ventral, realiza-se a incisão em formato de “U” invertido, entre o ânus e a base da cauda, comunicando as tuberosidades isquiáticas. Por meio de dissecação romba, expõem-se a musculatura dorsal ao reto e o esfíncter anal externo. Para completa visibilização da camada serosa do reto, poderá ser necessária a transecção dos músculos retococcígeo e elevador do ânus. Após secção de ambos no sentido transversal, a exposição do canal pélvico torna-se ampla e de fácil
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Figura 11.31 – (A e B) Fixação de tela de polipropileno para reforçar a musculatura do diafragma pélvico; (C) visibilização da dermorrafia em padrão de Wolff, com os nós voltados para o lado oposto ao ânus.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
com compressas embebidas em solução de NaCl 0,9% estéril morna. Incisa-se a aponeurose dos músculos adutores, posicionados sobre a sínfise púbica, e esses são dissecados, sendo movidos lateralmente aos forames obturadores, o que promoverá exposição do púbis. Utilizando-se osteótomo, promove-se a secção dos limites laterais do forame obturador, em cada lado, e caudalmente na linha média, na junção com o ísquio, ou bilateralmente pelos ísquios. Desprende-se o osso nos dois sítios de osteotomia cranial e caudal e, após o término da ressecção e a anastomose colorretal, realizam-se a recolocação do fragmento ósseo e a fixação com fios de aço.
Anoplastia parcial ou total É frequente o atendimento de pacientes portadores de neoplasmas envolvendo grande parte do ânus, fato que impossibilita a exérese isolada (Fig. 11.32 A). Nesses casos, indica-se incisão circular na pele circunjacente às lesões, dissecando-se delicadamente o tecido subcutâneo até a ampola retal. O músculo esfíncter anal externo poderá ser removido junto com o ânus, mas, havendo possibilidade, deve-se mantê-lo, ao menos, em sua porção final (Fig. 11.32 B) facilitando a sutura da mucosa na pele. A saculectomia anal bilateral deverá ser realizada. Após remoção do neoplasma, sutura-se o tecido subcutâneo à porção seromuscular do reto, com fio absorvível sintético monofilamentar, em padrão de Wolff ou sultan. Finaliza-se a síntese aproximando a submucosa e a mucosa retal com a pele, em pontos interrompidos simples com fio de náilon 3-0. Após a excisão cirúrgica, casos de incontinência fecal ocorrem em média em 21% dos pacientes2. Cuidados pós-operatórios são descritos a seguir.
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Exérese de grandes neoplasmas e reconstrução local Neoplasmas grandes envolvendo regiões próximas ao ânus podem comprometer a defecação por meio da compressão da ampola retal ou mesmo por obstrução anal (Fig. 11.33). Por vezes, sua remoção culmina com a realização de enxertos cutâneos para correção dos defeitos gerados. Autoenxertos de deslizamento, remo vidos da porção dorsal, são úteis para o recobrimento perineal. Contudo, mais relevante que o local doador é a técnica utilizada na confecção da enxertia. Dessa forma, destacam-se a seguir os princípios da realização de enxertos cutâneos. Enxertos cutâneos, ou flapes, são fragmentos de pele e subcutâneo capazes de recobrir áreas lesionadas. Protegem estruturas internas, áreas deprimidas e regiões com pouca elasticidade cutânea ou com problemas de cicatrização. Para o sucesso do tratamento, a tensão na linha de sutura deve ser evitada. Técnicas transoperatórias auxiliam na redução da tensão, como a divulsão do tecido subcutâneo adjacente à lesão, que permite a mobilização de tecido para a superfície exposta. Suturas de deslizamento, como a walking suture, também são utilizadas para distribuição uniforme da tensão. Em casos mais graves, é possível realizar incisões de relaxamento, paralelas à lesão, de forma que essas aumentem a disponibilidade de tecido para recobrir o defeito primário. Ainda que cursem com feridas secundárias, garantem a cobertura da área lesionada. Enxertos pediculados são compostos por pelo menos um ramo vascular, que nutre o fragmento de pele deslocado e garante sua implantação no leito receptor (Fig. 11.34). Quando classificados como “locais”, recobrem áreas próximas, sendo apenas deslizados ou rotacionados
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Figura 11.32 – (A) Neoplasmas envolvendo grande parte do ânus, impossibilitando a exérese isolada; (B) manutenção da porção final do ânus, facilitando a sutura da mucosa na pele.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular sobre a lesão. Os enxertos locais dividem-se em flapes de avanço unipedicular (com a presença de um único pedículo), de avanço bipedicular (com dois pedículos nutrindo o mesmo fragmento de pele), flapes de transposição (subdivididos em enxertos de rotação, de
Figura 11.33 – Neoplasma envolvendo regiões próximas ao ânus, comprometendo a defecação por meio da compressão da ampola retal.
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transposição em 45° e de transposição em 90°) e Z-plastia, utilizada principalmente para mobilização de tecido em direção à área com necessidade de recobrimento. Quando as regiões adjacentes não são capazes de garantir suporte à lesão, utilizam-se flapes à distância. Esses podem ser de transferência indireta ou direta. Dentre os de transferência indireta, existem os flapes tubulares e os de padrão axial, os quais, por vezes, requerem 2 ou mais intervenções cirúrgicas em momentos distintos. Essa técnica de enxertia é amplamente utilizada em lesões nos membros, em úlceras de cotovelo e em lesões da face interna da coxa. Os flapes de transposição direta são utilizados para regiões distais laterais dos membros e, por isso, não serão abordados neste capítulo. Pesquisadores sugeriram o uso do retalho coxal anterolateral em humanos, pois fornece grande porção de tecido cutâneo e pode ser coletado com nervo cutâneo lateral anterior, fáscia lata e parte do músculo vasto lateral. Dessa forma, preenchem defeitos complexos da região perineoescrotal e da área vaginal. Ainda, segundo eles, devido à grande versatilidade no design do enxerto e à baixa morbidade do local doador, este enxerto é uma opção para cirurgia reconstrutiva da região perianal14.
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Figura 11.34 – (A e B) Grande neoplasma ulcerado dorsal à pelve, em cadela idosa, acometendo musculatura glútea, parte do
ânus e base da cauda; (C) imagem pós-operatória após recobrimento da lesão com dois flapes unipediculados; (C) região da exérese envolvida com ataduras acolchoadas por algodão, para aumentar o contato entre o flape e o leito receptor.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
Fatores como excesso de fios de suturas, hematomas, acúmulo de materiais e movimentação entre enxerto e leito receptor determinam a perda da enxertia. Segmentos estreitos de pele tendem a apresentar necrose na extremidade, causada por vascularização ruim. Por tanto, recomenda-se confeccionar enxertos de base e extremidades largas. Ao finalizar o procedimento, sugere-se o envolvimento do local com ataduras acolchoadas, reduzindo o espaço morto no subcutâneo e auxiliando a pega da enxertia.
Complicações pós-operatórias A formação de sinus após a cirurgia perianal normalmente está associada com porções do saco anal remanescentes no local cirúrgico, erros de técnica operatória e presença de tecidos inflamados ou infeccionados. Outras complicações incluem deiscên cia de sutura, prolapso retal, tenesmo, disquezia, hematoquezia, incontinência permanente e estenose anal. A incontinência fecal poderá ser temporária ou permanente, conforme o grau de lesão ao esfíncter anal esterno e ao plexo nervoso lateral ao ânus2.
O tratamento para o sinus é a exérese cirúrgica da causa do trato drenante. Cureta-se a região afetada, lavando-a abundantemente com solução salina estéril. Depois, sutura-se a região usando fio absorvível sintético monofilamentar, realizando-se sutura isolada e avaliando-se a necessidade de implementação de drenos. Nos casos de deiscência de sutura, geralmente ocasionada por contaminação pós-operatória, recomenda-se a descontaminação inicial com limpeza da região e antibioticoterapia. Quando a ferida estiver limpa e com tecido de granulação viável, procede-se a correção cirúrgica local (Fig. 11.35). Para tanto, sugere-se técnica semelhante à descrita na rafia da cirurgia de anoplastia. O tratamento antibiótico deve prosseguir até a remoção dos pontos externos, aproximadamente 10 dias após a correção cirúrgica.
Cuidados pós-operatórios Os cuidados pós-operatórios de pacientes submetidos à ressecção de neoplasmas retais, anais ou perianais consistem no fornecimento de dieta pastosa e amolecedores fecais (por exemplo, óleo mineral e lactulose). Anal-
A
B
C
D
Figura 11.35 – Paciente canino acometido por deiscência de sutura após 2 intervenções perianais. (A) Observa-se a lesão
após a descontaminação local com açúcar cristal e lavagem com solução de NaCl 0,9% estéril; (B) imagem da ferida cirúrgica durante a 1ª semana pós-operatória; (C) evidencia-se o ânus 10 dias após a correção cirúrgica, quando removeram-se os pontos de pele; (D) ânus completamente cicatrizado 25 dias após o tratamento.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular gésicos e anti-inflamatórios não esteroidais reduzem a dor e o desconforto durante a defecação. Intervenções cirúrgicas nas quais a assepsia transoperatória foi mantida não requerem antibioticoterapia. Nesse caso, os antibióticos são descontinuados em até 24h após o procedimento. Quando da ocorrência de queda de conteúdo fecal no campo operatório, recomenda-se a implementação de antibioticoterapia, conforme já descrito na preparação do paciente. Limpeza criteriosa da ferida cirúrgica garante a redução da carga microbiana local, minimizando o risco de deiscência de sutura por contaminação2. Para tanto, preconiza-se lavagem exaustiva com solução estéril de NaCl 0,9% e recobrimento da ferida com pomadas à base de hidrogel com alginato, reduzindo a irritação local.
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11.5
Desvios portossistêmicos – anomalias vasculares extra-hepáticas Desvios portossistêmicos Introdução Os meios diagnósticos da medicina para animais de companhia têm avançado e, especialmente no Brasil, o acesso a esses meios, por causa do desenvolvimento econômico aliado à mudança de comportamento dos humanos para com estes animais, possibilita propiciar um significativo aumento no número de diagnósticos e tratamentos para cães e gatos com anomalias vasculares no sistema venoso portal, comumente conhecidos como desvios portossitêmicos (DPS). A rotina cirúrgica no Brasil nesses casos baseia-se na oclusão extraluminal, pela acessibilidade e viabilidade econômica dos dispositivos. Assim, este capítulo aborda os aspectos dessas operações. Os DPS, ou shunts portossitêmicos (SPS), são anomalias vasculares que comunicam o sistema venoso portal (vasos provenientes do estômago, intestinos, baço e pâncreas) ao sistêmico, desviando parcialmente o fluxo sanguíneo do fígado1-4. É possível visibilizar, na Figura 11.36, uma inserção da veia gástrica esquerda na veia cava caudal. Nos DPS, substâncias hepatotróficas oriundas dos intestinos e pâncreas, como insulina, glucagon e nutrientes, não atingem o fígado, resultando em atrofia e disfunção hepática. Por sua vez, toxinas como amônia, metionina/mercaptanas, ácidos graxos de cadeia curta, ácido γ-aminobutírico e benzodiazepinas endógenas, que seriam desativadas no fígado, alcançam a circulação sistêmica; o excesso dessas toxinas circulantes atravessa a barreira hematoencefálica causando alterações no sistema nervoso central, caracterizando a encefalopatia hepática, responsável pelo quadro clínico no paciente com desvio1,5-7. O quadro inflamatório que se instala é comum e evidente por meio da avaliação de neutrófilos, monócitos e linfócitos, os quais apresentam-se em quantidades absolutas ou relativas alteradas3,8. O fígado desempenha numerosas funções, como síntese de colesterol, lipoproteínas, ureia, albumina, fibrinogênio, glicose, glicogênio e sais biliares; detoxificação de substâncias químicas, excreção de bilirrubina e moléculas orgânicas endógenas e exógenas na bile; armazenamento
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles a falha no correto fechamento no duto venoso após o nascimento, ou ocorrem por anastomoses da veia porta com a veia hepática ou cava caudal14-16. Várias são as comunicações possíveis para os DPS em cães e gatos, sendo elas: veia porta para veia cava caudal; veia porta para veia ázigos; veia gástrica esquerda para veia cava caudal; veia esplênica para veia cava caudal; veia gástrica esquerda, mesentérica cranial, mesentérica caudal ou gastroduodenal para veia cava caudal e combinações das anteriores5,13,16. No Japão, Fukushima et al. observaram, por exames de tomografia computa dorizada, a frequência de anastomoses anômalas em 172 cães com DPS extra-hepático; desses, 64 apresentavam anastomoses entre a veia esplênica e a frênica, 38 as apresentavam entre a esplênica e a ázigos e em 29 essas ocorriam entre a gástrica direita e a cava17. No mesmo levantamento, Fukushima et al. citam que os desvios mais comuns relatados por outros autores são o esplenocaval, o espleno-ázigos e o gástrico direito-caval17.
Figura 11.36 – Tomografia computadorizada com o registro da inserção da veia gástrica esquerda no lado esquerdo da veia cava caudal.
de glicose, vitaminas, minerais e sangue; ativação, desativação e excreção de diversos hormônios; e remoção de bactérias e antígenos alimentares. Tais funções são eficientes quando ocorre correta passagem dessas substâncias pelos hepatócitos. Na presença de DPS, essas funções hepatocelulares são reduzidas8,9. Cerca de 80% do fluxo sanguíneo e 50% do fluxo de oxigênio que chegam ao fígado são fornecidos pela veia porta, e o restante é provido pela artéria hepática. A veia porta é formada pela confluência das veias mesentéricas craniais que drenam o sangue oriundo do intestino delgado; pela veia mesentérica caudal, que drena o sangue oriundo do cólon e do reto proximal; pela veia esplênica, que recebe sangue do baço; e pela veia gástrica esquerda, que recebe o sangue do estômago; em cães, é também pela veia gastroduodenal, que drena partes do pâncreas, do duodeno e do estômago1,2. Os DPS podem ser classificados em sua origem como intra ou extra-hepáticos, únicos (simples) ou múltiplos e adquiridos ou congênitos1,5. Os desvios extra-hepáticos em cães e gatos podem ser congênitos ou adquiridos10. Os congênitos ocorrem geralmente por presença de vasos anômalos que permitem o fluxo sanguíneo anormal do sistema portal para a circulação sistêmica e representam 63% dos desvios únicos em cães. Os desvios extra-hepáticos adquiridos geralmente são múltiplos, sua etiologia está relacionada à resistência ao fluxo sanguíneo portal e à hipertensão portal subsequente e correspondem a 20% de todos os DPS caninos3,4,11-13. Os desvios intra-hepáticos geralmente são únicos e congênitos, tendo como etiologia
Predisposição Estudos morfológicos e epidemiológicos em diferentes países relatam que não há uma relação expressiva quando as variáveis de raças são interpostas com o país de origem do cão e o comportamento anatômico das anomalias vasculares4. Os cães de raças puras apresentam maior risco de desenvolverem alterações patológicas na circulação portal do que os mestiços. Gatos domésticos de pelo curto são mais comumente afetados, embora os de raça pura também possam apresentar tais alterações, sendo as raças mais predispostas a Persa e a Himalaia18. Em um estudo de White e Parry são citadas a British Shorthair e a Birman, além da Persa, como as mais afetadas pelos desvios únicos, envolvendo a veia gástrica esquerda19. DPS únicos são, na maioria das vezes, congênitos e, mais frequentemente, diagnosticados em animais jovens, com menos de 1 ano de idade. Desvios extra-hepáticos foram diagnosticados, em geral, em cães de raça miniatura e toy (Schnauzers miniatura, Yorkshire Terriers, Poodles, Lhasa Apsos, Pequineses, Malteses, Dachshunds, Shih Tzus, Cairn Terriers e Spitz alemão)2,13,17,19. A Yorkshire Terrier é a raça canina mais acometida e seu risco para a doença é 20 vezes maior do que o das demais raças combinadas. Supõe-se que seja hereditária em Malteses, Yorkshire Terriers, Boiadeiros australianos, Irish Wolfhounds e em Schnauzers e que nos Cairn Terriers esteja relacionada à herança autossômica poligênica ou monogênica com expressão variável2,20. DPS intra-hepáticos são mais diagnosticados em cães de raças médias e grandes, como Pastores-alemães, Pastores-australianos, Boiadeiros australianos, Golden Retrievers, Dobermanns, Irish Wolfhounds, Labrador Retrievers, Setters irlandeses e Samoiedas18.20. A idade do animal é um fator diagnóstico importante. A maioria dos cães e gatos no DPS congênito apresenta
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular sinais crônicos e agudos da doença com até 1 ou 2 anos de idade. Entretanto, ela também pode ser diagnosticada em cães de meia idade ou mais velhos (10 a 12 anos) se os sinais forem discretos ou leves20-22. Nos gatos, o período de manifestação dos sinais clínicos é mais expressivo nos primeiros 6 meses de vida, porém a consideração diagnóstica também é para animais de meia-idade10. Em geral, os desvios extra-hepáticos adquiridos são múltiplos e acredita-se que eles surjam parcialmente devido a um aumento de resistência ao fluxo sanguíneo portal e, subsequentemente, à hipertensão portal causada por doenças adquiridas como a cirrose ou desordens vasculares congênitas13,23. Esta hipertensão portal causa conexões microvasculares não funcionais normais, que estão presentes ao nascimento, entre a veia portal e sistêmica para se tornarem funcionais. Os desvios múltiplos estão comumente associados à doença hepática crônica e grave (cirrose), mas já foram reportados secundariamente à fibrose hepatoportal em cães jovens. Estes desvios ocorrem mais comumente na área renal esquerda e no trajeto do mesentério, e conexões para a veia cava caudal ou veia ázigos são normalmente vistas13,24-26.
Histórico e sinais clínicos Os sinais clínicos nestes pacientes apresentam-se das mais diversas formas. Geralmente são sinais confusos e que tendem a marginalizar a suspeita de DPS. Os relatos muitas vezes trazem sinais de dores generalizadas, com registros de intervenções medicamentosas para o tratamento de osteomiopatias. O histórico varia de modo considerável. Sinais clínicos de DPS relacionam-se com sistema nervoso central, sistema gastrointestinal e trato Os animais podem apresentar urinário1,6. subdesenvolvimento ou baixo ganho de peso; estatura corporal pequena, quando comparados a animais da mesma ninhada; perda de peso; febre; e intolerância a anestésicos ou tranquilizantes6,12. Anormalidades neurológicas manifestam-se devido à encefalopatia hepática e são comuns: alterações comportamentais; depressão; letargia; deambulação em círculos; ataxia; fraqueza; estupor; compressão na cabeça; movimentos de pedalagem; convulsões ou coma; amaurose e vocalização (ocorrendo geralmente de forma intermitente e piorando com dietas rica em proteínas); e sangramento gastrointestinal associado a parasitas, úlceras ou terapia medicamentosa e pela administração de acidificantes urinários à base de metionina2,16,27,28. Devido à redução na produção de ureia e ao aumento na produção de amônia podem ser observadas nos pacientes poliúria, polaciúria, estrangúria, infecções e outras alterações no trato urinário2,29. Wincler cita que 30% dos cães com DPS manifestam infecções urinárias22. Geralmente animais com DPS apresentam micro-hepatia e rins proeminentes, bem como pode ser observada uma
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coloração dourada ou acobreada na íris de gatos com essa doença. Ascite e edema são características raras2,16. Hipoglicemia ocorre em 22 a 47% dos pacientes com DPS e está associada a massa muscular pobre, reservas de gordura reduzidas, baixa reservas de glicogênio e distúrbios na glicogenólise30.
Diagnóstico A ocorrência de pacientes com DPS é maior do que se imagina, porém o diagnóstico é pouco explorado e muitos pacientes passam a vida tratando hepatopatias sugestivas. Os exames hematológicos e bioquímicos, amplamente disponíveis, são elucidativos e podem orientar o clínico nesta busca pelo diagnóstico definitivo31. Sabe-se que a avaliação dos ácidos biliares, de fácil acesso na medicina veterinária, é de suma importância no estudo do comprometimento hepático e é o exame bioquímico de eleição para suspeitas de DPS27. Outro exame descrito na sequência e de extrema relevância e fácil execução é a ultrassonografia, porém pede-se atenção à qualidade do equipamento e à experiência do operador. A angiotomografia compu tadorizada está disponível em vários centros veterinários e acredita-se que na rotina dos DPS é o exame mais específico atualmente no Brasil, com alta especificidade e menor invasividade se comparado aos demais exames complexos disponíveis. A hematologia é um ótimo apoio na investigação, pois na maioria das vezes revela indícios de resposta inflamatória e/ou infecciosa em pacientes com anomalias do sistema circulatório portal31. As hepatopatias, de forma geral, podem ser diagnosticadas com base nos sinais clínicos, achados laboratoriais e exames de imagem. Os resultados dos exames laboratoriais de forma isolada apoiam mas não proporcionam diagnóstico definitivo de DPS, sendo de extrema importância a correlação clínica. Entre as alterações, observam-se: leucocitose, microcitose com hemácias normocrômicas, anemia não regenerativa leve, pecilocitose, hipo proteinemia, diminuição da capacidade total de ligação do ferro e aumento do conteúdo de ferro hepático nas células de Kupfer2,16,29. A urinálise pode revelar isostenúria ou hipostenúria; cristalúria de biurato de amônia é um achado comum no exame de sedimento e pode indicar doença hepática subjacente, que pode levar a hematúria, piúria e proteinúria. Os testes de funções hepáticas podem revelar aumento da alanina aminotransferase (ALT), da aspartato aminotransferase (AST), da fosfatase alcalina (FA) sérica, da amônia sanguínea e dos ácidos biliares, além de reduções da albumina sérica, da proteína total, da glicose, do colesterol total, do nitrogênio ureico sanguíneo, da curva de resposta de tolerância ao glucagon e da proporção de aminoácidos de cadeia ramificada e aromáticos. Os testes de coagulação podem demonstrar
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
tempo de tromboplastina parcial aumentado e hipofibrinogenemia, mas a evidência clínica de problemas de coagulação é mínima30,32. A avaliação dos ácidos biliares está disponível em grande parte dos laboratórios clínicos veterinários no Brasil e constitui o exame de eleição para diagnóstico de hepatopatias e/ou comprometimento hepático21,29. Em um estudo, Isobe et al. definem que as lesões que podem ser encontradas em fígados de pacientes com DPS são variadas e independem do vaso envolvido, porém há necessidade de outras investigações para ter como variável a localização do DPS e o padrão da lesão hepática que o causou33. O exame histopatológico é importante para identificar congestão generalizada de veias centrais e sinusoides, proliferação de dutos biliares, hipoplasia de tributários portais intra-hepáticos, lipogra nulomas, atrofia hepatocelular, hiperplasia das células de Kupffer, vacuolização citoplasmática, aumento de fragilidade das organelas intracelulares, aumento das enzimas lisossômicas e dos retículos endoplasmáticos e aumento do componente canalicular biliar da atividade da FA2,18,26. O exame histopatológico é de extrema importância para os pacientes que são operados para ocluir o(s) vaso(s) anômalo(s), pois servirá como apoio na definição do prognóstico. O ultrassom (US) pode ser um grande aliado do planejamento cirúrgico, por causa de sua acurácia e acessibilidade. Um exame ultrassonográfico pode reduzir a morbidade e a mortalidade ao auxiliar o cirurgião no pré e no transoperatório17,34. Os exames de raios-X e US podem revelar a presença de fígado com tamanho reduzido, rins moderadamente grandes e ascite; o deslocamento cranial do estômago quase sempre é indicativo de micro-hepatia. No US, ainda é possível diferenciar os desvios intra dos extra-hepáticos e identificar se existe a presença de vasos tortuosos e anecoicos observados juntos a fístulas arteriovenosas hepáticas10,35. Pelo US deve-se avaliar também a vesícula urinária e as pelves renais em busca de cálculos de urato que, devido à sua radioluscência, são difíceis de se observar em radiografia abdominal simples. Pode-se ainda fazer uso de doppler de fluxo colorido para demonstrar o padrão anormal de fluxo sanguíneo do sistema porta2,10,26. O US é um dos exames mais comuns e bem utilizados no diagnóstico dos diferentes comportamentos dos vasos anômalos. Quando se considera o fato de termos equipamentos modernos sendo lançados periodicamente, como doppler colorido de boa qualidade, esta ferramenta torna-se ainda mais eficaz3,10,13,26,34. A portografia com contraste positivo determina o tipo e a localização do desvio, sendo descritas técnicas de portografia mesentérica (ou jejunal), esplenoportografia e portografia mesentérica cranial ou arterial celíaca. O exame requer anestesia e laparotomia; faz-se isolamento de uma porção do jejuno e colocação de um cateter na veia jejunal, um contraste radiopaco estéril e hidrossolúvel
é injetado em bolus no cateter, fecha-se a cavidade abdominal e então é realizada radiografia abdominal laterolateral imediatamente após a conclusão da administração de todo o contraste. Uma radiografia ventrodorsal também pode auxiliar na localização da lesão. Em animais normais, o sangue portal circula pelo fígado, delimitando a veia porta e suas ramificações; já naqueles com DPS congênito, o vaso anômalo é delineado conforme o sangue é desviado para o sistema venoso sistêmico de baixa pressão. Nos portogramas pode-se diferenciar se o desvio é intra ou extra-hepático6,17,21,24. A cintilografia portal transcolônica nuclear é outro meio diagnóstico de DPS. É uma alternativa não invasiva para a portografia mesentérica e não requer sedação ou anestesia. Para essa técnica é utilizado o pertecnetato 99m tecnécio por via retal, que é absorvido do cólon para o sangue portal. Em animais hígidos, a radioatividade do princípio é visualizada primeiro no fígado e depois no coração; em animais com DPS, é observado um transporte mais rápido do tecnécio para o coração do que para o fígado, confirmando assim o desvio. Porém esse exame não detecta o tipo e a localização dos desvios2,16,21,24. A angiografia tomográfica computadorizada é outra técnica acessível, de rápida e fácil execução e pouco invasiva, permitindo a visibilização de todas as tributárias portais e ramos portais intra-hepáticos e tendo como desvantagem a impossibilidade de aferição do fluxo sanguíneo portal e a necessidade de submeter o paciente à anestesia, porém, depois do US, é o método menos invasivo, mais acessível e mais seguro9,17,36,37. Quando comparados os resultados da localização da origem e da inserção dos vasos anômalos, por meio dos exames por ultrassonografia e tomografia computadorizada, Kim et al. observou que a tomografia é 5,5 vezes mais apurada do que a US34. Os meios de diagnóstico são diversos, porém a laparotomia exploradora sempre será recomendada quando a clínica indicar e os meios diagnósticos auxiliares não forem conclusivos38.
Tratamento A partir do diagnóstico, o caminho deve seguir para correção cirúrgica, que é o tratamento de eleição32. A condução clínica do paciente objetiva o melhor momento de estabilidade orgânica para operar. O tratamento clínico poderá ser mantido em casos específicos, sob orientação médica. A cirurgia para atenuação é relativamente simples, desde que o cirurgião esteja preparado para o estudo anatômico da angiologia, sendo que a dissecação do(s) vaso(s) anômalo(s) e a decisão pela implantação do constritor ameroide de tamanho e posição adequados não requerem mais do que as habilidades próprias do cirurgião geral. Observa-se que a escolha pelo anel constritor ameroide parece ter melhor benefício, pois independe da reação orgânica do paciente e o dispositivo
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular não requer mensurações de estrangulamento, como na aplicação do celofane. A atenuação abrupta tem grandes chances de complicações fatais. O tratamento recomendado para cães com DPS é a atenuação cirúrgica do vaso anômalo para redirecionar o fluxo de sangue portal para o fígado12. De acordo com estudos hematológico e bioquímico em 140 casos de DPS intra e extra-hepáticos, em universidades do Reino Unido, a atenuação cirúrgica resulta na diminuição dos sinais clínicos e na melhora da função hepática, do fluxo de sangue portal e do volume do fígado8. Em outro estudo, Kummeling et al confirmam que a hemostasia é normalizada em cães com DPS que são submetidos à atenuação, quando comparados aos tratados clinicamente e que permanecem com parâmetros alterados32. O tratamento clínico de animais com DPS é paliativo, ineficaz a longo prazo e tem como objetivo diminuir a absorção de toxinas produzidas por bactérias intestinais, reduzir a interação das bactérias intestinais com substâncias nitrogenadas, restringir a ingesta proteica, corrigir os desequilíbrios hidroeletrolíticos, acidobásicos e de glicose e prevenir a encefalopatia hepática12. A expectativa de vida com o tratamento clínico varia de 2 meses a 2 anos e quanto mais velho for o animal em terapia clínica apresentado para o tratamento cirúrgico, melhor será seu prognóstico1,2,39. Sabe-se que muitos cães tratados clinicamente apresentam sinais neurológicos refratários, pois o tratamento não é capaz de reverter a micro-hepatia e as alterações no metabolismo de carboidratos, lipídios e proteínas40. Terapias com lactulose, dissacarídeo não metabolizável, têm se mostrado eficientes pois esta é hidrolisada pelas bactérias do cólon até ácidos graxos de cadeia curta, ácido láctico e hidrogênio41. A lactulose diminui o pH colônico, causando aprisionamento de amônia no colón, inibindo o metabolismo de proteínas e aminoácidos, reduzindo a formação de amônia e ácidos graxos de cadeia curta derivados de aminoácidos, diminuindo o tempo de trânsito intestinal e aumentando a excreção de nitrogênio fecal2. Antibióticos de amplo espectro como neomicina, metronidazol ou ampicilina por via oral, a curto prazo, reduzem a população de bactérias produtoras de urease40.
207
invasiva diminui a morbidade e a mortalidade quando comparada a atenuações extravasculares, porém requer habilidade e equipamentos onerosos12,42. A ligadura abrupta geralmente reflete em graves intercorrências, como a hipertensão portal, e a ligadura parcial não oferece todos os benefícios da atenuação total, porém a atenuação branda, completa ou não, pode trazer muitos benefícios ao paciente1,42. A recuperação hepática após a cirurgia para atenuação dos vasos anômalos pode ser analisada por marcadores, por meio da avaliação do fator de crescimento dos hepatócitos, segundo um estudo de Tivers et al.43. O volume hepático é recuperado com a mesma eficácia por meio das técnicas de constrição com anel ameroide e com celofane9. Após uma celiotomia de rotina, com o paciente em decúbito dorsal, os DPS extra-hepáticos podem ser observados entre a porta e suas tributárias e a veia cava caudal, a ázigos, a renal e a frênica. Mais raramente, é possível que os desvios estejam associados a outros vasos, como a veia cólica esquerda e remanescente da veia umbilical. Os desvios da circulação portal extra-hepáticos com frequência desembocam do lado esquerdo da veia cava caudal, cranialmente às veias renais e adjacente mente ao forame epiploico, como demonstra a Figura 11.371,2,19,21,41. Desvios porto-ázigos são mais frequen temente observados em cães com 2 anos de idade ou mais e muitas vezes atravessam o diafragma, nos pilares ou no hiato esofágico, ficando encobertos por vísceras adjacentes no abdômen cranial, sendo que este trânsito também foi observado em shunts da veia frênica para a ázigos em gatos em um estudo de White e Parry19. A grande maioria dos desvios extra-hepáticos únicos é encontrada ao longo da curvatura menor do estômago em direção ao diafragma. A criação de uma janela no omento
Tratamento cirúrgico para desvios portossitêmicos extra-hepáticos A constrição lenta do vaso anômalo por meio do constritor ameroide ou da banda de celofane é um método eficaz e rotineiramente aplicado nos últimos 10 anos. O índice de mortalidade para o constritor ameroide é de 5% e aproximadamente 80% dos pacientes têm suas funções hepáticas normalizadas quando avaliados bioquimicamente9. Outras alternativas minimamente invasivas para identificação e atenuação incluem a laparoscopia e a cirurgia sob intervenção radiológica41. A técnica intravascular minimamente
Figura 11.37 – Apresentação de um desvio portocava único, com diâmetro maior do que o da veia porta.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
Figura 11.38 – Apresentação da inserção de um desvio
portocava único, com diminuição do diâmetro da porta cranial a comunicação.
Figura 11.39 – Aferição da pressão portal para aplicação da ligadura na comunicação anômala.
Figura 11.40 – Aplicação do constritor ameroide no vaso anômalo, onde observa-se a dissecação cautelosa e mínima para que as estruturas adjacentes acomodem o dispositivo sem permitir que este dobre e promova a oclusão vascular.
978-85-5795-001-6
permite uma maior observação; retrai-se o estômago cranialmente, o lobo esquerdo do pâncreas caudalmente e o duodeno para a direita ventralmente para facilitar a identificação do vaso anômalo, que geralmente é tortuoso e com um calibre maior que qualquer outro vaso da vasculatura circulante, como demonstra a Figura 11.38. A presença de fluxo sanguíneo turbulento é facilmente observada através da delgada parede do desvio41. Os DPS extra-hepáticos podem ser ligados de forma aguda em cães sem histórico de encefalopatia, contudo 48% a 68% dos animais submetidos à correção cirúrgica toleram apenas ligação parcial, pois apresentam sinais de hipertensão portal imediatamente, podendo ser fatal44. Antes da correção permanente, o desvio deve ser ocluído temporariamente por 3 a 5min para a observação das vísceras quanto à hipertensão portal (palidez, cianose dos intestinos, aumento de peristaltismo, cianose ou edema do pâncreas e aumento das pulsações vasculares mesentéricas), a pressão arterial portal deve ser aferida (Fig. 11.39) e, ocorrendo sinais objetivos ou subjetivos de hipertensão portal, a ligadura deverá ser afrouxada até que esses não estejam mais presentes2,45. Devem-se utilizar fios de seda para que não absorvam e causem reação inflamatória mais intensa, pois isto pode ocasionar uma oclusão maior a médio prazo42. Tendo em vista essas complicações da oclusão abrupta comparadas às da oclusão gradativa do vaso anômalo, optam-se por dispositivos de oclusão lenta, de fácil acesso e economicamente viáveis, como o constritor ameroide, feito de material caseínico higroscópico, circundado por um anel de aço inoxidável42. A Figura 11.40 apresenta a dissecação cautelosa ao redor do vaso para a colocação do dispositivo e a Figura 11.41 apresenta o leito dissecado e a circunferência preparada, recebendo o constritor, cuidando-se para não dissecar de forma excessiva, pois esta manobra permitirá a movimentação do constritor e a obstrução aguda do vaso42,46,47. Antes da aplicação do constritor, a “chave”, uma pequena coluna de titânio que completa o anel constritor, é retirada. O constritor é colocado ao redor do desvio e essa chave é recolocada, conforme a Figura 11.42. A caseína do constritor começa a absorver o líquido corporal e a “inchar”, e o lúmen do anel diminui gradativamente, causando a oclusão progressiva do vaso12,42,48. O constritor não se fecha por completo, porém a reação do tecido fibroso estimulada pelo ameroide resulta em oclusão do vaso em 4 a 5 semanas, sendo mais rápida no primeiros 3 a 14 dias após a cirurgia e diminuindo a velocidade de fechamento, gradativamente, após esse período, evitando deste modo a hipertensão portal aguda5,8,42,46,48. Outro método de constrição progressiva, relatado pela primeira vez em 1990 num desvio porto-ázigos, dos DPS extra-hepáticos é a utilização de faixas de celofane42,49. A faixa é formada pelo dobramento longitudinal em terços de uma tira de 1,2cm de largura de celofane esterilizado com óxido de etileno2,50. O uso em desvios intra-hepáticos é relatado com sucesso por Sereda e Hunt42,50.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular
Figura 11.41 – Constritor ameroide repousando no leito preparado pela dissecação circunferencial.
Figura 11.42 – Fechamento do dispositivo por meio da aplicação da chave que fecha a circunferência do constritor ameroide.
Em vasos anômalos extra-hepáticos, a faixa de celofane é passada ao redor do desvio e o grau de oclusão é pré-determinado pela aplicação de um pino metálico em L ou cateter de uso intravascular do diâmetro desejado ao longo do desvio; a faixa de celofane é apertada em torno do desvio e da barra ou cateter e é mantida em seguida com clipes vasculares; o pino ou cateter é removido. Esta manobra evita o estrangulamento total do vaso ao aplicar o clipe. Avalia-se em seguida o paciente para sinais de hipertensão portal. Os hemoclipes são deslizados ao longo do celofane para ajuste da compressão e assim que houver o posicionamento definitivo se faz a união do celofane com suturas para evitar que afrouxe. Na maioria dos cães, a fibrose estimulada pelo celofane resulta na oclusão do desvio em 8 semanas após a aplicação da faixa. Devido à limitada resposta inflamatória
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não é recomendado o uso de faixas de celofane em gatos3,8,41,51. A dinâmica deste método é a reação por corpo estranho, portanto esperam-se diferentes respostas entre os pacientes42. Os desvios intra-hepáticos são passíveis de aplicações de bandas de celofane, sendo que na maioria dos casos disseca-se o próprio vaso anômalo ou o ramo que emerge da porta e que dará origem ao shunt49. Os diâmetros dos vasos anômalos que podem responder positivamente à aplicação de bandas de celofane são citados49 como ≤ 3,5mm. O uso da videocirurgia para diagnóstico e tratamento dos DPS é de extrema relevância, considerando a facilitação da exploração anatômica da circulação portal e de toda cavidade, bem como a possibilidade de implantação das bandas ou faixas de celofane41,51. Instala-se o 1º trocarte para passagem da ótica logo abaixo da cicatriz umbilical, seguindo com a instalação de mais 2 trocartes, direito e esquerdo, segundo o princípio da triangulação. A gastropexia na parede abdominal pode melhorar a visibilização da cavidade41,51. As bandas são implantadas com auxílio dos instrumentais e fixadas com clipes hemostáticos. O uso desta tecnologia para implantar constritores ameroides não é fácil devido à força que é exercida na chave que é aplicada no dispositivo para fechar a circunferência desse. A manipulação excessiva e a força podem representar riscos relacionados ao trauma vascular iatrogênico. As complicações agudas dos DPS após tratamento cirúrgico por técnicas de oclusão parcial incluem: hemorragia, anemia, hipoglicemia, hipotermia, convulsões, hipertensão portal e recidiva dos sinais clínicos, sendo que a persistência desses sinais pode estar vinculada a novos shunts ou desvios que não foram visibilizados52. Também é possível que animais que fizeram e ou fazem uso de esteroides possam ter prejuízos na atenuação por constritor ameroide e faixas de celofane, devido à interferência na inflamação1,2. Mankin cita que em um estudo retroativo com 206 cães com DPS extra-hepático, no 1º mês de pós-operatório 7% morreram; dentre os sobreviventes, 24% continuaram com fluxo de sangue pelo vaso anômalo e 92% não apresentaram mais sinais clínicos de DPS41. Isso revela que o índice de sucesso do tratamento cirúrgico é de 75%. O mesmo autor menciona que neste estudo 18% dos cães mantiveram fluxo no vaso anômalo 8 semanas após a cirurgia, porém sem interferência na condição clínica do paciente, assim, a reintervenção não é recomendada. A taxa de complicações em pacientes com DPS intra-hepáticos é maior se comparada à de pacientes tratados cirurgicamente por DPS extra-hepáticos49. A histo patologia do fígado é de extrema importância para se definir o prognóstico, pois revela o comprometimento morfológico da glândula pelo desvio do aporte sanguíneo. Após a cirurgia deve-se monitorar o paciente quanto à temperatura, ao hematócrito, à concentração sérica de proteínas, à hiperamonemia, à hipóxia, a desequilíbrios eletrolíticos e acidobásicos, à hipertensão e à hipoglicemia.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
A hipoglicemia pode acometer 44% dos pacientes operados41. Deve-se manter a fluidoterapia no pós-operatório imediato, administrar analgésicos opioides nos primeiros 3 dias pelo menos e, se necessário, administrar baixas doses de acepromazina (0,01 a 0,02mg/kg) nos casos de vocalização e aumento de pressão abdominal pelo excesso de movimentos. Esta atividade aumenta a pressão portal1. Deve-se fornecer dieta pobre em proteína e administrar lactulose por 4 a 6 semanas ou até a regeneração hepática2,49,52. O uso do metronidazol no pós-operatório está indicado. O período é discutível, visto o comportamento dos sinais clínicos de cada paciente. A associação com outros antibióticos pode ser feita quando necessário. O prognóstico para pacientes que recebem tratamento cirúrgico com atenuação lenta é bom e a remissão dos sinais bioquímicos e hematológicos e a regeneração hepática são evidentes13,14,38,43,44,49,52-54. Em seu estudo, Simpson et al confirmam a normalização dos parâmetros bioquímicos e hematológicos, excluindo os ácidos biliares, sugerindo que as atenuações parciais, resultantes do constritor ameroide e da banda de celofane, perpetuam, porém não subestimam, a indicação e a técnica de constrição lenta31.
Considerações finais A atenuação dos vasos anômalos é o tratamento definitivo para os DPS e as técnicas de constrição lenta são mais benéficas ao paciente se comparadas com as da atenuação abrupta. O uso de fio de seda, constritor ameroide e bandas de celofane está entre as técnicas de constrição extraluminais economicamente viáveis e de fácil aplicação. O constritor ameroide independe da intensidade da reação inflamatória do indivíduo, portanto mostra-se mais eficaz na comparação com as bandas de celofane. O prognóstico é favorável ao procedimento cirúrgico e desfavorável, a longo prazo, quando a opção de tratamento for a clínica13,14,38,43,44,49,52-54.
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Leitura complementar Monnet E, Rosenberg A. Effect of protein concetration on rate of closure of ameroid constrictors in vitro. Am J Vet Res. 2005;66:1337.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
11.6
Cirurgias pancreáticas Introdução Os procedimentos cirúrgicos relacionados ao pâncreas merecem atenção especial, amplo conhecimento anatômico e destreza do cirurgião, pois as principais artérias que nutrem este órgão também vascularizam órgãos adjacentes, como baço, estômago, fígado e duodeno, logo, um erro de técnica cirúrgica poderia trazer danos a esses órgãos. As alterações pancreáticas operáveis na rotina incluem sequelas da pancreatite (como abscessos pancreáticos), pseudocistos, tumores do pâncreas endócrino (como insulinomas e gastrinomas) e tumores do pâncreas exócrino (como adenocarcinomas pancreáticos), que, por sua vez, têm prognóstico desfavorável. Embora haja um consenso sobre o fato de alterações de pancreatite não mais serem classificadas em abscesso pancreático e cisto pancreático e, sim, denominadas coleções líquidas e peripancreáticas agudas, pseudocisto e coleções líquidas e peripancreá ticas pós-necróticas, neste capítulo, ainda manteremos a nomenclatura mais usual. As alterações pancreáticas requerem uma certa acurácia do clínico veterinário para esse orientar o diagnóstico o mais precocemente possível e a terapia de apoio. Frequentemente, animais que padecem de alterações do pâncreas recebem diagnóstico errôneo ou tardio. É muito comum, na clínica do dia a dia, a pancreatite ser diagnosticada como gastroenterite, fato que leva à perda de tempo no tratamento do paciente pancreático, o que pode repercutir no sucesso da terapêutica específica, já que a abordagem é diferente. Por exemplo, em casos de gastroenterite, muitas vezes a antibioticoterapia é desejada, por outro lado, nos de alterações pancreáticas, sabe-se que a antibioticoterapia não acrescenta nada ao tratamento, devido ao fato de essas alterações serem, na sua maioria, assépticas. Muitas vezes, os animais chegam no setor de cirurgia desnutridos, desidratados e não estabilizados, fatos que repercutem no bom prognóstico cirúrgico. E, frequentemente, animais são encaminhados para a cirurgia sabendo-se que, em determinados momentos, eles se beneficiariam muito mais de um tratamento clínico do que cirúrgico. Portanto é necessária uma equipe treinada e apta a suprir as demandas de cada paciente pancreático, desde a correção eletrolítica até o suporte nutricional e parenteral adequado. Não obstante, o diagnóstico por imagem, muitas vezes, não é conclusivo, mas orienta o clínico-cirurgião na decisão pelo melhor tratamento.
Neste capítulo, serão abordadas as principais técnicas cirúrgicas do pâncreas, sua execução passo a passo e as prováveis complicações inerentes à técnica propriamente dita. No entanto, salientamos que muitas vezes é importante reportar à literatura clínica específica das alterações pancreáticas para melhor conduzir o quadro clínico do animal diante de determinada alteração1,2. Lembramos que o sucesso não depende exclusivamente da técnica operatória, mas também do tempo de diagnóstico, do estado clínico do animal e da terapia de suporte.
Anatomia cirúrgica do pâncreas O pâncreas é um órgão em forma de “v” responsável pela produção de hormônios (pâncreas endócrino) e de enzimas que auxiliam na digestão, neutralização de pH e ação contra bactérias (pâncreas exócrino). Possui um aspecto glandular e é dividido em lobo direito, lobo esquerdo e corpo. O direito está intimamente associado com o duodeno, pelo mesoduodeno, e é vascularizado pelas artérias pancreático-duodenais cranial e caudal. A artéria pancreático-duodenal cranial vem da artéria hepática e gastroduodenal; a artéria pancreático-duodenal caudal se origina da artéria mesentérica cranial. Qualquer lesão traumática, inflamatória ou iatrogênica pode levar à necrose do pâncreas por falta de vascularização. O lobo esquerdo está situado caudodorsalmente ao estômago, na lâmina profunda do omento maior. Pode ser exposto rebatendo-se o omento maior, o baço e o estômago cranialmente e retraindo-se o cólon transverso caudalmente. Tem sua nutrição advinda de ramos das artérias gastroduodenal, hepática comum e esplênica, todas originadas da artéria celíaca (Fig. 11.43). Os vasos linfáticos drenam para os linfonodos regionais como os duodenais, hepáticos, esplênicos e mesentéricos, por isso, quando de uma pancreatite ou neoplasma, esses linfonodos, bem como seus respectivos órgãos, podem estar envolvidos. Portanto, na presença de alterações ou comprometimento total, esses devem ser retirados para análise histopatológica. Os ductos pancreáticos excretores exercem papel fundamental no transporte das enzimas. Para tanto, ligam o corpo do pâncreas desde o parênquima pancre ático até o duodeno. Há variações entre as espécies em relação à sua localização; em cães, o ducto pancreático entra no duodeno conjuntamente com o ducto biliar, na papila duodenal maior próxima ao piloro. O ducto pancreático acessório entra no duodeno na papila duodenal menor, posterior à papila duodenal maior (Fig. 11.44). Em felinos, geralmente a secreção pancreática provém somente do ducto pancreático.
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular
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F B
Q R
S
O K H
A
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J L G
M
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E
Figura 11.43 – Anatomia da circulação pancreática. Estômago (A). Fígado (B). Baço (C). Pâncreas (D). Cólon transverso (E). Vesícula biliar (F). Artéria aorta abdominal (G). Intestino delgado (H). Artéria celíaca (I). Artéria esplênica (J). Artéria hepática (K). Artéria mesentérica cranial (L). Artéria pancreático-duodenal caudal (M). Artéria esplênica (N). Artéria gastroepiploica direita (O). Artéria gastroepiploica esquerda (P). Artéria gástrica curta (Q). Artéria gástrica esquerda (R). Artéria gástrica direita (S).
Considerações pré-operatórias Os sinais das alterações do pâncreas são os mais variados possíveis, incluindo desde anorexia, vômito, diarreia, dor abdominal e letargia até melena. Portanto, o diagnóstico deve ser firmado antes de se levar o animal à cirurgia, a fim de se evitar a abordagem cirúrgica de animais com pancreatite, que pouco se beneficiariam das técnicas operatórias. Para isso, são indicados exames sanguíneos, incluindo hemograma e análise bioquímica,
a fim de se avaliar a necessidade e qual o melhor momento de se abordar o paciente com alterações pancreáticas operáveis. Além disso, é válido salientar que muitos dos pacientes operados na rotina clínica estão hipocalêmicos, hipofosfatêmicos e em mau estado nutricional, necessitando de correções eletrolíticas a fim de serem estabilizados para uma posterior cirurgia. Não obstante, deve-se dar atenção à glicemia. Portanto, chama-se atenção para o fato de que animais com alterações no sistema endócrino, do qual a glândula pâncreas faz parte,
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
D
C
A B
E
Figura 11.44 – Anatomia dos ductos pancreáticos e biliares. Observe a proximidade das papilas duodenal maior (A) e menor (B). Os ductos pancreáticos (C) e colédoco (biliar comum) (D) se anastomosam e liberam seus produtos na papila duodenal maior. O ducto pancreático acessório (E) se liga ao duodeno pela papila duodenal menor (B).
podem sofrer uma série de outras alterações e influenciar outros órgãos, o que se deve levar em consideração na hora de escolher o melhor momento para a cirurgia. A monitorização da glicemia é importante para o bom sucesso cirúrgico. Animais diabéticos devem ter sua glicemia monitorada antes, durante e após a operação. Quando da ocorrência de hiperglicemia, deve-se administrar a metade da dose de insulina no pré-operatório e monitorar a glicemia no transoperatório. Se o paciente estiver em hipoglicemia, pode-se administrar uma solução de NaCl a 0,45%, associada à dextrose a 2,5%, ou fazer uso de alimentação em pequenas quantidades, associada à prednisona oral. Se a glicemia estiver estável, preconiza-se Ringer lactato. Detalhes maiores sobre monitorização do paciente diabético ou com distúrbios
eletrolíticos podem ser averiguados em livros técnicos de fluidoterapia, anestesia e pacientes endócrinos3. Para a escolha do protocolo anestésico, devem ser considerados o estado clínico do paciente, os resultados laboratoriais, a alteração do pâncreas em questão e o tipo de cirurgia, ou seja, se o paciente passará por uma pancreatectomia parcial ou total3,4. Além disso, é válido salientar quanto à importância cirúrgica e anestésica de se estabilizar o paciente para evitar problemas no trans e pós-operatório, sendo esses, por exemplo, hemorragias, infecções, arritmias, retenção urinária e atraso na alimentação5. Outro fator levado em consideração no momento da abordagem ao paciente pancreático é a anti bioticoterapia. Como a maioria das alterações
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular pancreáticas é de origem inflamatória, não haveria a necessidade de se fazer uso de antibióticos. Mas quando for necessária sua utilização, devem-se considerar culturas e antibiogramas de tecidos infectados e necróticos, principalmente nos casos de abscesso. Há autores que recomendam o uso de antibióticos de maneira profilática, como a ampicilina e a cefazolina, todavia sua aplicação buscaria evitar uma possível contaminação da cirurgia e do abscesso no pâncreas. Deve-se manipular o pâncreas com delicadeza e fazer uso de fluidoterapia adequada com o intuito de manter a pressão sanguínea sistêmica e a perfusão pancreática, para assim evitar pancreatite iatrogênica devido ao excesso de manipulação em casos de pancreatectomia parcial. Pacientes que estão desnutridos se beneficiam de dietas parenterais. Logo, se for permitido, no momento da cirurgia pode-se realizar o procedimento de jejunostomia, tendo-se o cuidado de se utilizar uma sonda apropriada e de se confeccionar um túnel para evitar extravasamento de conteúdo e posterior contaminação da cavidade peritoneal.
Principais técnicas cirúrgicas do pâncreas Pancreatectomia parcial Tem por objetivo a remoção de parte do pâncreas, que pode estar lacerado após um trauma ou apresentar nódulo, cisto ou abscesso. Esta técnica deve ser recomendada em casos nos quais podemos manter parte do órgão. Muitas vezes, em casos de remoção do lobo esquerdo, se não for mantido o suprimento sanguíneo da artéria esplênica, deve-se realizar também uma esplenectomia, no entanto, salienta-se a necessidade de se manter a vascularização da artéria gastroepiploica esquerda, pois sua ausência poderia ocasionar isquemias locais, podendo haver complicações como necrose gástrica e até mesmo pancreatite, devido à perda da microcirculação local. Tal técnica é muito utilizada para remoção de insulinomas localizados no lobo esquerdo ou na porção distal do lobo direito. Após tricotomia e antissepsia da região das últimas costelas à região inguinal, realiza-se incisão pré-umbilical ou, se necessário, dependendo das características do neoplasma, pode-se ampliar o acesso. Após celiotomia e exposição do pâncreas, faz-se um exame visual a fim de se localizar o(s) nódulo(s) pancreático(s). Insulinomas normalmente são firmes quando comparados ao resto do parênquima pancreático. Uma técnica para localização do nódulo do insulinoma, embora essa possa trazer como desvantagens anemia hemolítica e insuficiência renal aguda no pós-operatório, é a infusão de azul de metileno na dose de 3mg/kg de peso corporal diluídos em 250mL de solução de NaCl 0,9%, 30min antes da exposição do
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pâncreas6,7. O tecido pancreático normal ficará corado de azul-ardósia, enquanto o tecido hiperfuncional ficará corado de azul-avermelhado. Após a localização do nódulo, deve-se romper o mesoduodeno ou omento que circunda a porção desejada para remoção cirúrgica e ligar os vasos adjacentes à porção extraída. Realiza-se incisão no mesoduodeno que recobre o pâncreas na altura da transecção do lobo. Deve-se lembrar de deixar uma margem de segurança de 1 a 2cm do nódulo. Após secção do parênquima da glândula, cuidadosamente, com o auxílio de uma pinça hemostática, separa-se o tecido parenquimatoso até se visualizarem os vasos. Isolam-se os vasos e o ducto principal e ligam-se com fios de suturas monofilamentares (Fig. 11.45). Se a região a ser retirada não envolver nenhum vaso principal, pode-se lançar mão de uma sutura em forma de guilhotina (Fig. 11.46). Quando possível, prioriza-se a manutenção da circulação principal do pâncreas. Devem-se ligar somente os ramos dos vasos que drenam a parte do pâncreas a ser extirpada. Após transeccionar, omentaliza-se o órgão, mas fica a critério do cirurgião a execução dessa manobra, não sendo essa uma etapa obrigatória. Terminada a cirurgia, deve-se explorar o abdômen quando houver a presença de alterações metastáticas ou aderências. Os locais de metástase mais comuns são o fígado e os linfonodos regionais. Todos os linfonodos aumentados e lesões hepáticas suspeitas devem ser excisados completamente. Na impossibilidade da excisão completa, coleta-se um fragmento para exame histo patológico. Após a verificação do abdômen, lava-se com solução NaCl 0,9% pré-aquecida e completa-se a celiorrafia de forma usual. O paciente deve fazer jejum sólido de 48h. Realiza-se correção eletrolítica quando necessário, associada à dextrose a 5%. Monitora-se a glicemia e na ausência de sinais clínicos de pancreatite, introduzem-se gradativamente água 48h após a cirurgia e alimento de fácil digestão após 72h. A dieta normal somente deve ser reiniciada após 7 dias.
Abscesso ou cisto pancreático No caso de abscesso ou cisto, está indicada a pancreatectomia parcial, mas podem-se realizar a extirpação cirúrgica dos cistos e abscessos e a omentalização, a qual preencherá o defeito e fará a drenagem na região. Antes da fixação do omento, deve-se realizar a lavagem cuidadosa do leito do cisto ou abscesso a fim de diminuir os contaminantes e a presença de enzimas. As áreas necrosadas devem ser removidas. A sutura para fixação do omento deve ser realizada desde o omento até a borda do cisto ou abscesso com fio não absorvível. Quando existirem alterações no corpo do pâncreas, essas devem ser retiradas, mantendo-se margem de segurança, mas tentando não se danificar os ductos pancreáticos, pois no corpo do pâncreas eles se encontram para drenar o conteúdo para as papilas. Em casos de
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
A A
B B C C
C
D
D D E E
Figura 11.45 – (A) Técnica de pancreatectomia parcial. Identifica-se a região a ser removida e incisa-se o mesoduodeno, no caso de a lesão estar no lobo direito, ou omento, no caso do lobo esquerdo. (B) Separa-se o parênquima com pinça delicada identificando os vasos e ductos; (C) isolam-se os ductos e vasos tendo o cuidado de não rompê-los; (D) ligam-se os ductos e vasos com suturas com fio monofilamentar não absorvível (2-0 ou 3-0); e (E) omentaliza-se a região incisada do pâncreas fixando o omento com 3 ou 4 pontos com fio absorvível.
A A
BB
Figura 11.46 – Técnica da sutura em forma de guilhotina para lesões localizadas nas bordas do pâncreas. (A) Secciona-se o mesoduodeno e passa-se um fio ao redor da lesão respeitando a margem de segurança; com fio não absorvível, aperta-se o nó até comprimir o pâncreas; (B) posteriormente, incisa-se o tecido pancreático com tesoura ou bisturi e encaminha-se a lesão para exame histopatológico.
obstrução da papila ou do ducto biliar, pode-se lançar mão de cateterização através do duodeno com sonda. Após tricotomia ampla das últimas costelas até a região inguinal e antissepsia adequada, deve-se fazer a incisão de pele, tecido subcutâneo, aponeurose e peri-
tônio até adentrar a cavidade. Localiza-se o pâncreas em região mesogástrica e verifica-se a presença do abscesso ou cisto. Neste momento, dependendo do aspecto da cápsula (se esta estiver regular, sem muitas aderências), pode-se optar por fazer a drenagem
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular com agulha e seringa. Então, após localizar o pâncreas, devem-se desfazer as aderências, tomando cuidado para não lesar alguma estrutura importante. Localizam-se os ductos pancreáticos e acessórios, o ducto biliar comum e as estruturas vasculares antes de começar a adesiólise, como medida de segurança para evitar traumas indesejáveis. Após a localização e desfeitas as adesiólises, desbridam-se as áreas necrosadas usando pinças delicadas (Fig. 11.47A). Dependendo da região, se for optada pela realização da incisão do cisto, em vez da pancreatectomia parcial, deve-se lembrar de se isolar o pâncreas juntamente com o duodeno por meio de compressas úmidas, a fim de se evitar extravasamento do conteúdo para as demais estruturas, prevenindo-se, assim, uma possível peritonite. Após ruptura do abscesso ou cisto e remoção das necroses, procede-se a omentalização com suturas com pontos isolados simples, com fio absorvível sintético (3-0 ou 4-0) (Fig. 11.47B). Se julgar necessário, o cirurgião pode realizar um túnel no parênquima pancreático e atravessar o omento através do tecido pancreático e suturar a estrutura em si mesma (Fig. 11.47E e 11.47F). No momento da confecção do túnel, deve-se lembrar de, dependendo da região pancreática abordada, se evitar lesionar algum dos vasos principais (Fig. 11.47C). É importante antes da omentalização e após a ruptura e o debridamento do abscesso ou cisto fazer uma lavagem copiosa com solução salina pré-aquecida de maneira delicada (Fig. 11.47D). Evite a manipulação do pâncreas com compressas úmidas. Posteriormente, verifica-se o resto da cavidade abdominal a fim de serem localizadas outras aderências e anormalidades. Devolve-se o pâncreas à cavidade e procede-se a lavagem com solução salina pré-aquecida. Completa-se a celiorrafia de forma usual.
Pancreatectomia total Este procedimento está indicado para pacientes nos quais a pancreatectomia parcial não foi benéfica ou para casos de neoplasmas em todo o pâncreas. É importante salientar que animais submetidos a este procedimento cirúrgico ficarão diabéticos e com esteatorreia, sendo necessário acompanhamento com endócrino ou gastro enterologista veterinário para reposição de insulina e enzimas digestivas. No entanto, a pancreatectomia parcial é procedimento que se torna pouco realizado devido às alterações como fibroses e aderências em virtude de inflamações, infecções e neoplasias, fazendo com que sejam perdidas as referências anatômicas. Nesse contexto, pode não ser possível mais preservar as estruturas pancreáticas e identificá-las, tornando necessária a conversão para a pancreatectomia total. Após tricotomia desde a região das últimas costelas até a região inguinal, posiciona-se o animal em decúbito
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dorsal e realiza-se antissepsia da região abdominal com clorexidina ou combinação de álcool-iodo-álcool. Faz-se então uma incisão na linha média ventral do apêndice xifoide caudal até a região umbilical (incisão pré-umbilical). Da mesma forma, procede-se incisão de pele, tecido subcutâneo e folhetos externo e interno para exposição da cavidade abdominal. Explora-se o pâncreas delicadamente. Localizam-se os vasos principais do pâncreas. Para liberar o pâncreas esquerdo, deve-se seccionar o omento na porção livre das aderências. Lembramos que este procedimento é realizado princi palmente em casos de neoplasmas, logo não é vantajoso deixar na cavidade o omento que estava aderido ao tumor. Se algum dos vasos do omento sangrar, pode-se realizar a ligadura com fio poliglactina 910 3-0. O omento sobre o lobo direito pode ser retraído dorsalmente. Para liberar o pâncreas esquerdo, deve-se realizar a ligadura dupla dos ramos da artéria gastroepiploica que suprem o pâncreas. Deve-se evitar lesionar a artéria gastroepiploica esquerda. Depois, realizam-se as dissecções rombas delicadamente do pâncreas direito, liberando-os dos vasos pancreático-duodenais. Deve-se lembrar que o mesmo vaso pancreático-duodenal caudal origina ramos para o duodeno e o pâncreas, sendo que somente este último deve ser ligado. O mesoduodeno deve ser rompido delicadamente, separando-se o pâncreas do duodeno, sem lesionar os vasos duodenais. Durante a cirurgia, deve-se umidificar com solução NaCl 0,9% pré-aquecida a serosa do duodeno. Após este procedimento, ainda resta liberar o corpo do pâncreas e o ducto pancreático comum. A ligadura de todos os ramos dos vasos pode ser realizada com fio absorvível 2-0 ou 3-0. No entanto, não está totalmente contraindicada a utilização de suturas não absorvíveis. Com a dissecção delicada, os vasos que suprem o duodeno são mantidos. Os poucos ramos da artéria gastroepiploica direita ao pâncreas são ligados. Por último, fica a decisão sobre a única estrutura que ainda une o pâncreas ao duodeno, que é o ducto pancreático, do qual, juntamente com o ducto biliar, se origina a papila duodenal menor. Neste momento, o cirurgião deve avaliar a vesícula biliar; se essa estiver alterada, existe a possibilidade de se fazer uma colecistectomia e acabar ligando o ducto biliar comum e remover por completo o pâncreas e a vesícula biliar. Deve-se dissecar delicadamente o pâncreas até chegar na bifurcação do ducto pancreático com o ducto biliar, ligando somente o ducto pancreático (Fig. 11.48). Lembre-se de ter cuidado no momento da dissecção delicada para não lesionar o ducto biliar e acabar tendo de fazer uma colecistectomia ou colecistojejunostomia. Se for feita a dissecção cuidadosa, posteriormente implantar-se-á o ducto biliar no duodeno por meio de uma sutura com pontos interrompidos simples e fio não absorvível 4-0 ou 5-0 ou realizar-se-á uma colecistojejunostomia.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
D D A A
E E B B
FF C C
Figura 11.47 – Representação esquemática dos passos para abordagem cirúrgica de cisto/abscesso pancreático. Localiza-se ocisto/abscesso a ser removido. (A) Com auxílio de pinças e tesoura delicadas realizam-se as adesiólises; (B) desbridam-se as áreas necrosadas remanescentes após a excisão do cisto/abscesso; (C) confecciona-se um túnel no parênquima pancreático com auxílio de uma pinça hemostática delicada; (D) lava-se a região do pâncreas cuidadosamente com solução NaCl 0,9%, sendo delicado na hora de secar o excesso e (E e F) passa-se o omento por dentro do túnel.
Pancreatectomia total associada à técnica de Billroth II A cirurgia de Billroth II é a última opção em casos de neoplasias pancreáticas ou lacerações. Ela consiste na retirada do pâncreas com o duodeno e parte do piloro. Essa técnica difere da de Billroth I pelo fato de haver uma anastomose laterolateral do estômago com o jejuno, e não terminoterminal, como na Billroth I.
Após preparo do animal e antissepsia da região com a colocação dos panos de campo, realiza-se uma incisão no abdômen da região xifoide até a cicatriz umbilical (pré-umbilical). Faz-se incisão de pele, subcutâneo e folhetos externo e interno (Fig. 11.49A). Não se deve esquecer de suspender com pinças Allis a fáscia do músculo retoabdominal, a fim de auxiliar a incisão da cavidade abdominal e evitar traumas iatrogênicos. Visualiza-se a cavidade e identificam-se, quando possível, as estruturas
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular
AA
B
Figura 11.48 – Pancreatectomia total - observação a partir da
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face dorsal do estômago. (A) Ligadura dos vasos após exposição do pâncreas; (B) ligadura do ducto acessório e do ducto principal, tendo cuidado para não obstruir o ducto biliar.
anatômicas já abordadas neste capítulo a fim de orientar a cirurgia. Deve-se lembrar que a cirurgia é um exercício metodológico, passo dependende, ou seja, a execução errô nea de um passo ou a falta de programação da operação poderá implicar no seu insucesso. Após a identificação das estruturas, deve-se expor o piloro com o duodeno. Localiza-se o ducto biliar comum e os ductos pancreáticos. Para remoção do ducto biliar, faz-se uma ligadura circular com fio não absorvível e secciona-se. Pode-se também optar por implantar o ducto no jejuno. Ligam-se os ramos da artéria e das veias gastroepiploica direita e esquerda para remover o tecido esperado (Fig. 11.49B). Se necessário, secciona-se o ligamento hepatogástrico para uma melhor exposição do piloro. As aderências, quando presentes, devem ser desfeitas sempre aplicando as técnicas preco nizadas quando se tratarem de neoplasias. Utiliza-se pinça vascular para ocluir o estômago e o duodeno, antes e depois da linha de ressecção, evitando-se extravasamento do conteúdo e uma possível contaminação. Com auxílio de um bisturi ou tesoura de Metzenbaum, secciona-se o piloro. Após ligadura dos vasos duodenais, secciona-se o duodeno na linha programada e retiram-se piloro, duodeno e pâncreas alterados. Verifica-se a presença de hemorragias e ligam-se alguns vasos que possam passar despercebidos. Explore a cavidade novamente. Feche o coto pilórico e duodenal com um padrão de sutura não contaminante, sendo a mucosa e a submucosa as primeiras camadas a ser serem suturadas em padrões interrompido ou contínuo simples com fio absorvível (2-0 ou 3-0). A segunda sutura é realizada em padrão invaginante, seromuscular, podendo ser do tipo Lembert ou Cushing (Fig. 11.49C). Poste riormente, avalia-se a sutura tanto do duodeno como do estômago com movimentos de ordenha suaves ou com auxílio de uma seringa, após ser retirada a pinça vascular. Localiza-se uma região menos vascularizada na parede do
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estômago, entre a curvatura maior e a menor. Pega-se uma alça do jejuno e traz-se a região gástrica escolhida. Realizam-se as suturas de fixação seromusculares das porções escolhidas e, se preferir, escarifica-se levemente a serosa a fim de promover aderência (Fig. 11.49D). Essas suturas são feitas em um dos lados da futura incisão das paredes gástricas e jejunais. Realiza-se uma incisão em todas as camadas do estômago e jejuno (Fig. 11.49E). Comece a anastomose gástrica-jejunal unindo as camadas sero muscular do estômago e jejuno com fio absorvível. Posteriormente, as camadas da mucosa e da submucosa do estômago com jejuno, em padrões interrompido ou contínuo simples, com fio absorvível (2-0 ou 3-0) (Fig. 11.49G). Complete no mesmo padrão o outro lado da incisão, unindo camadas mucosas e submucosas. Faça rafias das camadas seromusculares do lado contralateral com padrão invaginante Lembert ou Cushing. Repita a fixação deste lado também (Fig. 11.49G). Após teste das suturas, omentalizam-se as feridas. Não se esqueça de implantar o ducto biliar no jejuno fazendo uma pequena incisão circular e, com pontos isolados simples de náilon ou poliglactina 910 (4-0 a 6-0), incorpore o ducto biliar na parede do jejuno. Para realização da colecistojejunostomia, deve-se mobilizar com tesoura de Metzenbaum e incisar o peritônio visceral ao longo da junção da vesícula com o fígado. Traciona-se a vesícula com pinças hemostáticas delicadas (pinça DeBackey). Libera-se o ducto cístico até sua união com o ducto colédoco. Traciona-se a vesícula ao jejuno em uma posição que não fique sobre tensão, em uma região antimesentérica do jejuno. Colocam-se compressas úmidas para proteger a cavidade e as serosas do extravasamento do conteúdo biliar. Faz-se uma sutura em padrão contínuo entre a serosa/muscular da vesícula e a serosa/muscular do jejuno. O comprimento da sutura deve ser de aproximadamente 5cm. Deve-se drenar a vesícula com o auxílio de uma seringa e depois fazer uma incisão sobre o orifício da agulha de 2 a 3cm paralela à linha da sutura de fixação. Com o jejuno ocluído temporariamente com auxílio de pinças delicadas ou dos dedos do auxiliar, faz-se uma incisão de mesmo comprimento na posição antimesentérica do jejuno. Realiza-se uma sutura em padrão contínuo com fio absorvível (3-0 a 4-0) da mucosa da vesícula à mucosa do jejuno. Posteriormente, confecciona-se os mesmos padrões de suturas em planos de forma contralateral. Após a completa confecção da colecistojejunostomia, devolver a jejuno a cavidade e lavar copiosamente e fechar de forma rotineira o abdômen.
Procedimentos auxiliares Jejunostomia de Witzel Como alternativas para suporte nutricional até que o animal possa voltar a ingerir alimentos existem diferentes formas de fornecer dietas parenterais e enterais; uma muito utilizada é a jejunostomia de Witzel. Para execução da jejunostomia de Witzel, após tricotomia da região xifoide até a região inguinal, deve-se fazer uma
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
AA
B B
C
D
C
E
E
D
F
F
G
G
Figura 11.49 – Técnica de pancreatectomia total associada à técnica de Billroth II. (A) Faz-se uma incisão na parede abdominal,
expondo-a; (B) ligam-se os ramos da artéria gastroepiploica direita e esquerda e o ducto biliar comum. Realiza-se a oclusão de estômago e duodeno com pinças atraumáticas e secciona-se o omento para expor o lobo pancreático esquerdo. (C) Após a secção, fecha-se o coto pilórico e duodenal com um padrão de sutura não contaminante, sendo a mucosa e a submucosa as primeiras camadas a serem suturadas em padrões interrompido ou contínuo simples, com fio absorvível (2-0 ou 3-0). A segunda sutura é realizada em padrão invaginante, seromuscular, podendo ser do tipo Lambert ou Cushing. (D) Traz-se a alça intestinal para uma região menos vascularizada e realizam-se suturas seromusculares para fixação; (E) realiza-se uma incisão em todas as camadas de estômago e jejuno; (F) faz-se a anastomose gástrica-jejunal, unindo as camadas seromusculares do estômago e do jejuno com fio absorvível e, posteriormente, as camadas mucosa e submucosa do estômago com jejuno em padrão interrompido ou contínuo simples, com fio absorvível (2-0 ou 3-0); (G) realiza-se o mesmo procedimento do lado contralateral da incisão, terminando a rafia.
incisão pré-umbilical. Explora-se a cavidade e localiza-se uma alça do jejuno no flanco esquerdo. Exteriorizam-se 25 a 30cm de jejuno . Localiza-se a região de colocação da sonda de jejunostomia. Realiza-se uma sutura em bolsa de tabaco, seromuscular, com fio absorvível ou não absorvível (2-0 a 3-0) (Fig. 11.50A). Posteriormente, confecciona-se um túnel de 5cm de comprimento executando uma sutura em padrão interrompido tipo Lembert, com fio absorvível, sobre a sonda de jejunostomia (Fig. 11.50B). Após a
confecção do túnel, faz-se a incisão na parede do intestino no centro da sutura de bolsa de tabaco (Fig. 11.50C). Introduz-se a sonda e completa-se a sutura (Fig. 11.50D). Depois executam-se mais 2 pontos em padrão interrompido Lembert para tuneilizar a parte da sonda proximal à sutura em bolsa de tabaco (Fig. 11.50E). Deve-se lembrar que a confecção do orifício para introdução da sonda e a confecção do túnel são realizadas na superfície antimesentérica do jejuno. É realizada fixação do jejuno à parede abdominal
Capítulo 11 • Cirurgias complexas envolvendo sistema glandular mais próxima da alça jejunal na qual foi colocada a sonda. Realizam-se 4 suturas em padrão interrompido com fio absorvível (2-0 a 3-0) para fixação do jejuno à parede e procede-se a confecção de um orifício transparietal com incisão de pele com bisturi e divulsão do músculos abdo minais e folhetos com auxílio de uma pinça hemostática. Passa-se a sonda pelo orifício. Realiza-se uma sutura ao redor da sonda em padrão bailarina para estabilização dessa (Fig. 11.50F). Lava-se a cavidade com solução salina aquecida. Fecha-se a cavidade abdominal de forma rotineira.
Complicações Em toda cirurgia pode ocorrer complicações inerentes ao procedimento cirúrgico propriamente dito, tais como contaminação pelo extravasamento de conteúdo gástrico, intestinal e da vesícula, deiscência da sutura e outras causadas pela execução errônea da técnica. As principais
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complicações da cirurgia pancreática são pancreatite, diabetes, insuficiência pancreática exócrina e hipoglicemia. A pancreatite pós-operatória decorrente da técnica de pancreatectomia parcial é a mais comum. Essa complicação pode ser minimizada pela manipulação delicada do pâncreas. Outra complicação é a hipoglicemia na persistência de insulinomas não perceptíveis. Nestes casos, o animal deve ser submetido à cirurgia novamente para verificação de tumor que pode ter passado despercebido. A insuficiência pancreática exócrina também pode ser uma das complicações, principalmente em casos de pancreatectomia total, pois na ausência das enzimas pancreáticas, o animal tem sua absorção de nutrientes prejudicada, sendo necessária a reposição desses. Também pode ocorrer hiperglicemia (diabetes mellitus) devido à falta de tecido pancreático para produção de insulina. Neste caso, o animal deverá receber a suplementação da insulina para o resto da vida.
AA
B B
EE
C C
DD
FF
Figura 11.50 – Jejunostomia de Witzel. (A) Após se exteriorizar o jejuno, realiza-se uma sutura em bolsa de tabaco, seromuscular,
com fio absorvível ou não absorvível (2-0 a 3-0); (B) confecciona-se um túnel de 5cm de comprimento, executando-se uma sutura em padrão interrompido tipo Lembert, com fios absorvíveis, sobre a sonda de jejunostomia; (C) faz-se a incisão na parede do intestino no centro da sutura de bolsa de tabaco; (D) introduz-se a sonda e finaliza-se a sutura em bolsa de tabaco; (E) realizam-se 2 pontos em padrão interrompido Lembert para se tuneilizar a parte da sonda proximal à sutura em bolsa de tabaco. Fixa-se o jejuno na parede abdominal mais próxima da alça jejunal na qual foi colocada a sonda, com 4 suturas em padrão interrompido, com fio absorvível (2-0 a 3-0), e passa-se a sonda pelo orifício transparietal com auxílio de uma pinça. (F) Realiza-se uma sutura ao redor da sonda, em padrão bailarina, para estabilização dessa.
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Parte 2 • Cirurgias nos tecidos moles
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