Livro: Não é Tempo para Silêncios!

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Conselho Editorial: Adriano Jannuzzi Moreira Amauri César Alves Andréa de Campos Vasconcellos Antônio Álvares da Silva Antônio Fabrício de Matos Gonçalves Bruno Ferraz Hazan Carlos Henrique Bezerra Leite Cláudio Jannotti da Rocha Cleber Lucio de Almeida Daniela Muradas Reis Ellen Mara Ferraz Hazan Gabriela Neves Delgado Jorge Luiz Souto Maior Jose Reginaldo Inacio Lívia Mendes Moreira Miraglia Lorena Vasconcelos Porto Lutiana Nacur Lorentz Marcella Pagani Marcelo Fernando Borsio Marcio Tulio Viana Maria Cecília Máximo Teodoro Ney Maranhão Raimundo Cezar Britto Raimundo Simão de Mello Renato Cesar Cardoso Rômulo Soares Valentini Rosemary de Oliveira Pires Rúbia Zanotelli de Alvarenga Sandro Lunard Nicoladeli Valdete Souto Severo Vitor Salino de Moura Eça


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Copyright© Cezar Britto, 2018 É vedada a reprodução total ou parcial desta obra, por quaisquer meios, sem a prévia autorização, por escrito, do autor, segundo a lei de Direitos Autorais, n. 9.610/98. CAPA Montagen de Germana de Araujo (UFS) Colagem de Antonio Ferreira Marinho e Isabella de Sousa Melo PLANEJAMENTO, COORDENAÇÃO GRÁFICA E DIAGRAMAÇÃO Germana de Araújo (UFS) INFOGRAFIAS/COLAGENS Antonio Ferreira Marinho e Isabella de Sousa Melo Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

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AGRADECIMENTOS E CRÉDITOS Os textos aqui reunidos são dedicados aos que lutam para que a democracia permaneça habitante do coração brasileiro, aos que não perderam a esperança na Utopia e aos que fazem dos direitos humanos um respirar coletivo, plural e inclusivo. Dos bravos e bravas colegas de viagem quero destacar o pioneirismo corajoso da turma que faz do Congresso em Foco um extraordinário espaço de debates de ideias e de valorização da política. Na mesma linha de agradecimento, deixo aqui registrado o meu obrigado às equipes jornalísticas dos sites e revistas Socialista Morena, Conjur, Jota, El País e Carta Capital, cúmplices das ideias e dos ideais reunidos em palavras interligadas nos textos divulgados em seus portais. Ainda no campo do jornalismo, não posso deixar de escalar a importância de Ana Paula Barreto, responsável pela revisão e seleção de tudo que fora reunido neste ambiente aglutinador de pensamentos. Inspirei-me, também, nos gestos, nas ações e nas ousadias dos companheiros e companheiras da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, da ABRAT – Associação

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Brasileira de Advogados Trabalhistas e da OAB/SE – Ordem dos Advogados do Brasil – Secção Sergipe, que não se calaram nestes períodos tão sombrios e de máscaras caídas. Elizabeth Rocha, Germana Gonçalves de Araújo, Jean de Carvalho e Sylvio Costa são os responsáveis pelas palavras mais abalizadas e pelas artes que dão beleza aos textos. Não seria possível a concretude escrita do pensamento sem o apoio de Marluce e a compreensão carinhosa de meus filhos Diego, Manuela, Gabriella e Ruan, além da inspiração das netas Malu e Morgana. O apoio dos meus companheiros e companheiros da Advocacia Operária, da Cezar Britto & Advogados Associados e da Reis Figueiredo Advogados Associados.

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APRESENTAÇÃO Sylvio Costa

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Este livro é lançado num momento em que voltamos a ser assombrados por fantasmas dos quais parecíamos estar livres, para sempre, faz mais de três décadas. Barbaridades são repetidas à exaustão, embaladas em filosofia vulgar, como se repisá-las sem parar pudesse transformar a fraude em verdade. O repertório de imposturas é infinito, mas aí vão alguns exemplos. Não houve ditadura militar a partir de 1964. A tortura se justifica em alguns casos. Quanto mais armas nas mãos dos cidadãos, mais seguros estaremos. Aquecimento global é invenção da esquerda. Professores devem ser vigiados e jornalistas perseguidos, pelo mesmo motivo: são, quase todos eles, perigosos comunistas, empenhados dia e noite em desencaminhar as crianças e trair à pátria. Há mulheres que “merecem” ser estupradas, outras que nem isso, por serem feias ou por terem opiniões diferentes das minhas, “tá OK”? Delírios patológicos do tipo, embora contrariem valores democráticos elementares e também desafiem a história e a ciência, contribuíram para cimentar a ascensão ao poder de Jair Bolsonaro e seus incontáveis generais. A extrema-direita brasileira é particularmente pródiga na propagação de teses e relatos fantasiosos, mas a emergência do autoritarismo é fenômeno global. Espalha-se pelo planeta, sob 1 Jornalista, com passagem em várias redações e mestre em Comunicações pela Universidade de Westminster (Londres), é o fundador do site e revista Congresso em Foco.

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diversas formas e com filiações à direita e à esquerda, nesta segunda década do milênio. O retorno das ameaças autoritárias e o chamado para enfrentá-las perpassam esta coletânea, que lava a alma de quem, conforme as palavras do autor, “acredita no Estado Democrático de Direito, nos direitos humanos e na resistente esperança de um mundo mais justo, plural, inclusivo e solidário”. A democracia é o bem fundamental que mobiliza Cezar Britto como escritor, jurista e advogado. Dá-lhe a motivação e o caminho, nesta seleção de textos que oscilam entre o ensaio, a crônica e o libelo. Os artigos são curtos e diretos, de modo a facilitar sua leitura no disputado e frenético ambiente da internet, para o qual foram produzidos originalmente. Talvez por modéstia, Cezar não revela que foi ele o advogado que conseguiu condenar Bolsonaro, em ação de indenização, pela famosa agressão verbal contra a deputada Maria do Rosário. O assunto é mencionado em um dos textos, onde descreve “o rosário que faz do machismo um adversário de difícil combate, até porque fecundado, gerado e criado por homens e mulheres que acreditam na superioridade natural do gênero masculino”. A luta contra o machismo nos tribunais está entre os temas a respeito dos quais o autor disserta, sem tergiversar sobre o lado com o qual se identifica. O mesmo se dá em relação a todos os outros assuntos abordados. Eles vão da greve dos caminhoneiros à violência urbana, da Petrobras à corrupção, da reforma do sistema eleitoral ao ativismo do Judiciário, das ameaças contra indígenas e quilombolas à análise de mecanismos que poderiam aprimorar a democracia (como o recall e o veto popular).

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Inspira-o, no trato dessas questões e de várias outras, o sentimento de que “a política é a fórmula constitucional utilizada para verbalizar o poder político emanado do povo”. Assim, alerta contra a “onipresença” e a “hipertrofia” do Poder Judiciário. Destaca a necessidade, “urgente e imprescindível”, de “combater o nazismo, o fascismo e toda forma de violência, pois a paz ainda não venceu a guerra”. E completa: “A cada instante, em todo lugar do mundo, surgem propostas que transformam a violência, o racismo, a misoginia, o preconceito, a homofobia e outras formas de ódio em votos eleitorais depositados em urnas que espelham o que cada eleitor guarda na urna secreta do seu próprio coração”. Um indisfarçável tom de decepção escorre das reflexões reunidas nestas páginas. Nascido na década de 1960, Cezar carrega consigo o sonho de uma geração que desejou e pregou a “conquista do infinito”, o completo “triunfo da raça humana”. Escreve como quem, algo doído, exuma aquela utopia em voz alta: “Predizíamos que a era da opressão não encontraria moradia no futuro, pois o universo era grande demais para justificar as picuinhas e as futricas que impediam uma justa distribuição das riquezas, das terras e da felicidade”. Confrontado pelo autoritarismo e por seus monstrengos, o autor expõe, metódico, alguns dos supostos triunfos do ciclo militar de 1964/1985: uma ordem constitucional imposta; o fechamento do Congresso Nacional; a tutela sobre a Justiça e todos os órgãos de Estado; cassações e prisões ilegais; a tortura, o exílio e o assassinato de adversários; demissões coletivas daqueles que ousaram defender a democracia ou divergir dos ditadores de plantão; censura contra artes e espetáculos; supressão dos direitos de reu-

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nião e associação, expressão e de ir e vir; fechamento de sindicatos, entidades estudantis e de outras instituições da sociedade organizada. Há dor, mas nunca ressentimento ou desânimo. Na “urna secreta” que palpita dentro de Cezar Britto não se vê espaço para ódio. Ao contrário. As dificuldades parecem fortalecer o seu espírito cívico e senso de justiça. Determinado, porém com ponderação, ele resume: “Resistir ao autoritarismo, ainda quando o poder do governante se mostra gigantesco, é a melhor opção quando se luta por um ideal, quando se defende uma nação ou quando se deseja um sistema jurídico que preserva os direitos fundamentais da pessoa humana”. Que assim seja! Afinal, sabemos que, com todos os seus defeitos, a democracia – como no velho axioma de Winston Churchill – é o pior dos regimes políticos, exceto todos os outros que a humanidade já conheceu. Defendê-la, valorizá-la e batalhar por seu constante aperfeiçoamento são tarefas decisivas para quem pretende ajudar a fazer do globo terrestre um lugar melhor para se viver.

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PREFÁCIO Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha2

Martin Luther King se pronunciaria sobre a taciturnidade cúmplice dizendo: “o que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons.” E Cezar Britto, um advogado que se fez na luta, não se cala diante do dever de falar. Falar sobre as contendas éticas que vilipendiam o humanismo, sobre as tentações do poder, sobre o obscurecimento das virtudes cívicas que perpetuam iniquidades morais. Esta obra que tenho a honra de prefaciar é uma vigorosa reflexão acerca da desconstrução do ideário humanista neste início de século, que se projeta mundialmente e compromete conquistas civilizatórias impostergáveis. Coletânea de crônicas metodologicamente interligadas, dividida em cinco eixos centrais; vg: A Democracia em Disputa, A Justiça em Litígio, Os Direitos Trabalhistas em Lona, Os Direitos Humanos em Contenda e O Futuro em Eleição, o livro confronta os pilares democráticos com as vicissitudes históricas que os têm acutilado. Por certo, a tríade liberal fundada nos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, rendeu ensejo na atualidade às novas inspirações como liberdade, diversidade e tolerância, ideais que dão espaço as identidades coletivas e seus modos de ser e de viver, numa fusão de horizontes que une, fragmentando. A modernidade e a contemporaneida2 Ministra do Superior Tribunal Militar

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de argumentam tanto com o direito das minorias quanto com o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, buscando a interação entre o eu e a sociedade, num diálogo permanente e respeitoso de todos para com cada um: trabalhadores, imigrantes, nordestinos, mulheres, presidiários, afrodescendentes, enfim, aqueles todos que não podem capitular. O que está em jogo é a liberdade, e sobre as suas artimanhas Foucault alertaria: “onde há poder, há resistência, e as resistências ao poder, muitas vezes, têm força irresistível.” A liberdade, por sua condição ontológica, é insubmissa: diz sempre não às forças que procuram controlá-la. E o faz em condições fora do terror e do constrangimento, o faz por meio de um afrontamento contínuo. O que está em jogo são as lutas de resistência do ser no mundo. E Cezar Britto não foge do enfrentamento. Ao proceder à análise da recente historiografia pátria e das tragédias que assolam o mundo - a pior delas, a repulsa aos desvalidos - o autor expõe com acuidade o admirável mundo, velho e carcomido, que não queremos. Mestre da palavra, ele não se construiu apenas com senso de correção ética, fez-se na credulidade de um projeto de vida e numa trajetória de coragem que o acompanha desde fragor da tribuna trabalhista até a Presidência da Ordem dos Advogados do Brasil. Um homem bom que com o seu labor e sua pena reescreve a justiça social dos oprimidos em busca do paraíso perdido com o qual insistentemente sonhamos. Quando deu lume a este brilhante ensaio jurídico-sociológico abriu barricadas ao fustigar jargões autoritários insustentáveis para aqueles que creem na Constituição dos

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Princípios e nos Direitos de Cidadania. Transitando pelas provisões da democracia direta e pela interveniência da vontade coletiva, pelas mazelas da classe operária cada vez mais açodada por reformas jurídicas ultrajantes, pela defesa das minorias, dentre outros temas tão sensíveis, marcou opinião sobre uma quadra histórica afetada pela conivência egoística do absenteísmo. Inconteste ser a democracia a única solução aceitável ao dilema da dominação imposto ao Homem como ser coletivo; o monopólio da força só se faz suportável se os programas de decisão dos governantes não ficarem indiferentes às reivindicações e aos interesses dos governados. E neste continuum, escreveria Dimas Macedo, “a Constituição é somente um rito de passagem e o Direito Constitucional, uma ordem positiva e um processo social em compasso de mudança.” O debate ideológico insculpido nos textos que ora apresento versa precisamente sobre a essencialidade da superação dos arquétipos pretéritos e a indispensável reconstrução do sistema coletivo de paz social internacional e doméstico. Por certo, o contorno básico de um regime há de demarcar o consenso justaposto idealizado pelas sociedades organizadas em favor da prosperidade humana. É o mínimo que exige o common sense. E a propósito dele Thomas Paine distinguiria a sociedade do governo, detentores de conceitos e origens diferentes. A primeira responsável pela felicidade ao unir afeições, o segundo constritor de vícios; aquela encorajadora de laços, este estopim das distinções. Por isso a sociedade em todos os Estados é uma benção; o governo, porém, mesmo no melhor regime, é um mal necessário, pelo que se impõe a perpétua vigilância aos passos coercitivos por ele perfilados.

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E na judiciosa estrada Cezar Britto caminha com Maiakovski ao bradar contra a indiferença para que não lhe arranquem a voz da garganta. Afinal, a consciência precede os fatos e o desvirtuamento patriótico, paralelo à despolitização da legitimidade atemorizam os lúcidos. Maior exemplo é o paulatino aniquilamento das garantias laborais cujo escopo é satisfazer as demandas do Capital. Sua genealogia remonta à Inglaterra vitoriana da qual Engels e Dickens testemunham o fracasso em suas literaturas. De lá para cá constata-se que as estratégias de dominação pouco se alteraram. Remanescem a intencional debilitação do princípio da participação popular, o alijamento cívico das massas e a substituição da cidadania por uma relação de clientela. O Estado, corporificado como uma empresa cujos acionistas possuem dividendos desiguais a receber, despreza as ideologias e substitui a política por técnicas de gestão. Um filme antigo e sem final feliz. Mas é possível alterar o enredo e os rumos da História: basta que o “cidadão apático” quebre o silêncio e insurja-se contra a sua própria passividade, que manifeste a sua insatisfação e clame pelo cumprimento satisfatório do Contrato Social do qual todos são partícipes igualitariamente. Á evidência as sociedades são, antes de tudo, constructos das percepções coletivas. E é nesta dimensão dialética entre o movimento e a imobilidade, o singular e o comunitário, e as possíveis reconciliações das contradições que o emérito autor reflexiona; um convite à cognição sobre quem somos e o que buscamos ao exercer nosso dever moral em favor da humanidade constelar entre os humanos.

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NOTA DO AUTOR Esclareço, de supetão inicial, que as crônicas selecionadas para esta coletânea pessoal não têm a aspiração de serem batizadas como integrantes de um livro guardador de verdades postas. Ao contrário, os textos escolhidos, dentre os vários em que tive o acolhimento da publicação, anotam uma visão particular sobre os retrocessos e os ataques aos princípios fundamentais que se entendiam consolidados na alma brasileira, ressurgidos em clima de ódio, homofobia, preconceito, misoginia, racismo e intolerância ao pensamento alheio, criando cizânias entre as mais diversas instituições, agrupamentos sociais e até unidades familiares. Neste sentido, as reflexões aglutinadas nas palavras publicadas e aqui reunidas querem ser compreendidas como elas efetivamente são e o porquê de terem sido reveladas pela lente do meu óculo tão particular. Outro aclaramento anotado. O tempo aqui retratado teve como marco inicial a conspiração comandada pelo então vice-presidente Michel Temer, que resultara, via golpe parlamentar, no afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff. Compreendi que esta ruptura institucional significou a imposição de uma política de retrocesso em velocidade nunca antes imaginada pela cidadania brasileira. A Constituição Federal está suspensa por vinte anos, a CLT foi transformada em Consolidação das Lesões Trabalhistas, princípios fundamentais foram suprimidos ou relativizados, os cariocas foram vítimas de uma preocupante intervenção militar, o trabalho escravo se pretendeu legalizado, parte do sistema de Justiça assumiu-se politicamente parcial e máscaras civilizatórias caíram. A

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eleição de Jair Bolsonaro é o resultado mais visível deste tempo tão sombrio. A partir do lapso temporal abordado, anotei os mais diversos temas que foram debatidos, defendidos, contestados ou nomeados como motes preferidos dos governantes, da sociedade, das instituições sociais e das pessoas. E, neste sentido, apontei como se quedaram turvos incontáveis olhares institucionais e eloquentes os silêncios cúmplices das pessoas que tinham o dever de resistir e lutar para que os retrocessos impostos não se tornassem uma banal realidade no cotidiano tupiniquim. Na mesma mirada, registrei o Brasil que está empossado desde janeiro de 2019 e o misterioso desafio para aqueles que acreditam no Estado Democrático de Direitos, nos direitos humanos e na resistente esperança de um mundo mais justo, plural, inclusivo e solidário. Sabe-se que o Tempo da História é diferente do tempo que se olha no presente. Como igualmente é sabido, a escrita altiva e ativa do hoje é quem determina que será contado no futuro. Daí a razão do esclarecimento inicial de que esta compilação, dividida em cinco tomos (democracia, Justiça, direitos trabalhistas, direitos humanos e futuro), não tem a pretensão de simbolizar, em palavras e reflexões, a finitude de um tempo que já passou. O que se quer é apontar para o tempo que ainda está em plena construção, dependente apenas da nossa ação ou omissão. O período que apelido no título: Não é tempo para silêncios!

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ÍNDICE

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TOMO I

A DEMOCRACIA EM DISPUTA

Não sentirei saudade da Ilunga brasileira, 24 O distritão e a destruição da participação popular, 27 É a hora do grande teste da democracia representativa, 31 Democracia com povo e sem golpe, 34 O último suspiro de um governo antidemocrático, 39 Tragédias: alertas, para não repetir, 41 O fim da democracia pela ditadura com a “Solução Mourão”, 45 A quem pertence a Petrobras?, 50 A Petrobrás, o acordo bilionário e a tragédia brasileira, 54 Fertilizando Sergipe e o Brasil – A luta pela Fafen, 57 A extinção de reserva nacional é a venda da nossa sobrevivência, 62 E a água segue escoando pelo ralo, 65 Da ficção ao ladrão, 69 Síndrome de jabuticaba, 72 No controle do fio mágico da vida, 76 O ocaso dezembrista de Temer, 79

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TOMO II

A JUSTIÇA EM LITÍGIO

A ABJD e o Poder Judiciário, 84 E pra não dizer que não falei de Lula!, 87 Preces para Themis, 91 O controle do Judiciário “em cena”, 99 Luzes! Ação! Abram os olhos: a coerência sumiu!, 102 Amigo da Prova ou Amigo da Onça, eis a manchete!, 106 Holofotes, autógrafos e a autofagia processual, 110 Sobre o que falou Lula, 114 Quem é essa OAB?, 118

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TOMO III OS DIREITOS TRABALHISTAS EM LONA

O dia-a-dia da classe trabalhadora, 124 Contrato de trabalho X contrato de capital, 127 O Parlamento e o direito à reciprocidade, 131 O admirável mundo que não queremos, 134 E o senador assassinou o barão, 138 A “modernização” da legislação trabalhista é o renascimento da Idade Moderna (1453-1789), 141 A utopia e a Justiça do Trabalho, 149 Como nossos pais, 152

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TOMO IV

OS DIREITOS HUMANOS EM CONTENDA

Os imigrantes e a hipocrisia europeia, 160 Por que esse povo safado quer reduzir a idade penal?, 164 O navio negreiro retorna à Terra Brasilis, 169 Os nordestinos e o preconceito nosso de cada dia, 173 Os generais Bush, Trump, Kim e os filhotes da violência, 178 Um rosário para o machismo, 181 08 de Março e as escolhas: de que lado você está?, 185 Reinventando o Natal, 188 A consciência negra tem dia, história e luta, 192 Um urgente resgate a nossa brasileira Homoafetividade Nativa, 196

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TOMO V

O FUTURO EM ELEIÇÃO

Pink Floyd, a turnê brasileira e o fascismo nosso de cada dia, 202 Sobre eleições, corporações, tiranos e a placa de Auschwitz: “O trabalho libertará”, 205 A Europa foi Hitler e Mussolini. E o Brasil?, 209 Meninos, eu vi!, 212 Dienekes, a Democracia e a Batalha da Esperança, 216 Os saberes não tiram férias, 220 O degredo da transparência no Brasil, 223 Crônica do avesso do mesmo lugar, 226 A Reforma da Previdência e a catástrofe dos argumentos catastróficos, 229 Por que caminhar em defesa das universidades?, 233 Recordai-vos das fogueiras do Bonito, 236

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TOMO I A DEMOCRACIA EM DISPUTA

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Não sentirei saudade da Ilunga brasileira3 Cresci aprendendo que a portuguesa saudade era a palavra mais difícil de ser traduzida e compreendia por aqueles que não dominam a língua de Camões. Afinal, como definir em única palavra o que o genial Raul Seixas disse ser “um parafuso que quando a rosca cai só entra se for torcendo porque batendo não vai. Mas quando enferruja dentro nem distorcendo não sai”? Como enquadrar em apenas um monótono vocábulo o inspirado conceito de Patativa do Assaré, quando, divinamente, aponta que “Saudade é canto magoado no coração de quem sente. É como voz do passado ecoando no presente”? Nem mesmo Fernando Pessoa, o poeta português mais admirado no Brasil, conseguiu um sinônimo apropriado para a sua definição, embora brindasse a todos com a lembrança de que “A saudade é a luz viva que ilumina a estrada do passado”. Mas eis que, para surpresa minha, descubro que a palavra saudade não é a de mais difícil tradução no mundo. É que, há alguns anos, estudo realizado por mais de mil e quinhentos tradutores de várias nacionalidades fez da saudade uma palavra de sétima dificuldade interpretativa. No topo estavam Ilunga (tshiluba), Shlimazl (ídiche), Radioukacz (polonês), Naa (japonês), Altahmam (árabe) e Gezellig 3 Congresso Em Foco, 01/12/2017, http:// congressoemfoco.uol.com.br/noticias/ nao-sentirei-saudade-da-ilunga-brasileira/

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(holandês). Para os que têm saudade do tempo em que a saudade era a nossa querida vencedora, recomendo ler a pesquisa publicada no site Today Translation. E foi exatamente o que fiz! Não podia deixar barato o charme de falar, declamar e escrever a mais difícil e poética das palavras portuguesas. Eu tinha que saber o significado da palavra que integra e língua bantu, utilizada no Congo e no Zaire. Aí compreendi a dificuldade em se traduzir a africana palavra que fez ter saudade da época em que eu achava ocupar primeiro lugar no campeonato vocabular. É que ilunga é “pessoa capaz de perdoar qualquer abuso na primeira vez, tolerar na segunda, mas não na terceira”. Ainda não vencido, tentei encontrar exemplos que desmontassem a tese de que ilunga era de difícil enquadramento factual. Deixei, então, a tarefa para o meu livre pensamento de pesquisador. E por vários dias fiquei em busca. E nada! E não encontrei nada que pudesse ser enquadrado na tolerante palavra. E já estava desistindo. Até que recebi um longo WhatsApp de um amigo, em que tentava me justificar a razão pela qual, agora, não mais defende a permanência do presidente plantonista Michel Temer no comando do Poder Executivo. – Ilunga! – explodiu em êxtase o meu pensamento. Meu amigo era o exemplo perfeito e tanto buscado para explicar o que se fala na língua bantu. Ele havia sido um dos mais apaixonados defensores do impeachment da presidenta Dilma, exímio “batedor de panelas” e que portava o amarelo em todas as suas gravatas de puro linho. Ele rompera o silêncio ensurdecedor de quem se cala, envergonhado, ao se descobrir errado, enganado e ludibriado pelo falso moralismo que dizia apenas agora saber.

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Então o uso da expressão Ilunga, pois meu amigo perdoara aqueles que golpearam a democracia brasileira, não considerando grave abuso o afastamento da presidenta eleita. Depois, tolerou a Emenda Constitucional que suspendeu a Constituição Federal por vinte anos congelando investimentos em saúde e educação, aceitou a venda do petróleo, da água, dos aeroportos e das terras brasileiras para grupos estrangeiros e ainda foi permissivo diante das propostas de Reforma Previdenciária e Trabalhista. Apenas agora, quando o Brasil real se apresenta, pela terceira vez, diante do seu olhar é que não mais perdoa o governo plantonista que se apossou do seu país. Pois bem! Reveladas as conversas presidenciais de porão, o poder das malas despachadas na corrida e sem pudor, as especulações imobiliárias da corrupção e as premiadíssimas delações dos capi de tuti capi, humildemente, meu amigo passou a exigir a renúncia do presidente que a sua voz ajudou a empossar. Ele agora integra a imensa multidão de brasileiros e brasileiras que dizem, em claro batu, que a fase do perdão acabou: – Ilunga! E como não terei saudade da quadra temporal em que vivemos, prefiro voltar a usar a expressão portuguesa que inspira a poesia e me faz orgulhoso da língua que falo. A deixarei guardadinha na memória do tempo e servirá como uma “luva” se meu amigo tiver uma recaída e volte a tolerar. Neste dia, lembrarei a ele do seu pedaço ilógico e, citando Chico Buarque, direi que “A saudade é o pior tormento. É pior do que o esquecimento. É pior do que se entrevar”.

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O distritão e a destruição da participação popular4 A Reforma Política não é panaceia, tampouco a solução final para a cura dos males sofridos pela população. Mas ela é, sobretudo, ponto de partida para a restauração da confiança popular na classe política, desde que feita em profundidade, sob a supervisão da sociedade civil e levando em conta sua natureza plural. Somente assim poderia conferir respeitabilidade ao processo legislativo e aos próprios legisladores que pretendem a sua aprovação. Cuidar de esmiuçar o projeto de Reforma Política e a forma em que o sufrágio nele será exercido exige o compromisso de fazer refletir no debate o querer do proprietário originário e destinatário final do processo eleitoral. Não sendo observadas estas premissas, tudo não passará de mero remendo eleitoreiro. A Reforma Política, neste caso, deveria servir de importante instrumento na reinterpretação permanente da legislação eleitoral, adequando-a as novas e crescentes demandas sociais. A sua virtude estaria, assim, na possibilidade de se contribuir para a modernização da própria política e, continuamente, ajudar a revogar o velho patrimonialismo brasileiro. Por isso mesmo, devemos, diuturnamente, apontar propostas que concebam um sistema que minore as mazelas do atual quadro partidário, pois, não obstante sua pluralidade formal, o parlamento brasileiro enfrenta a maior crise de representatividade de sua história. 4 Revista Carta Capital, 15/08/2017, https://www.cartacapital.com.br/politica/o-distritao-e-a-destruicao-da-participacao-popular

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Eis que, repentinamente, surge como “proposta salvadora” para a crise política a possibilidade da perpetuação dos mandatos dos atuais parlamentares e, como complemento, a explosão das bases que fundaram os partidos políticos. A “proposta miraculosa”, denominada distritão, transforma em majoritárias as eleições proporcionais para deputados federais, deputados estaduais e vereadores. A ideia é revogar a histórica fórmula republicana adotada em sistemas bicamerais, onde apenas os senadores são eleitos em razão do somatório dos votos recebidos de forma individualizada. Aprovado voto majoritário para todos os parlamentares, eleitos seriam aqueles que controlam a máquina partidária, os mais conhecidos eleitoralmente, os aquinhoados com a fortuna material ou, como já comum, os que reúnem os três requisitos de desequilíbrio eleitoral. E como serão eleitos de forma individualizada, autônoma e desvinculada do compromisso partidário, sequer serão obrigados à lealdade, aos princípios do partido político que agasalhou cada candidato, como decidiu o STF quando do julgamento da ADI 5081. É evidente que não se podem tornar os partidos políticos fortes e autênticos por via de lei ou de decisões judiciais – e isso ficou amplamente demonstrado no curso do regime militar, que quis engessar em duas siglas, Arena e MDB, toda a diversidade de pensamento da sociedade brasileira, o que empobreceu ou mesmo inviabilizou o debate de ideias. Mas é realmente preciso que a cidadania se reconheça nos partidos, saiba quais estão mais próximos de

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seu ideário, independentemente da circunstância de quem é governo ou oposição. É preciso, também, que o eleitor confie no eleito; que saiba que elegeu pessoa comprometida com determinadas ideias e propósitos e que não irá traí-lo. E mais: que, se o fizer, irá responder pela traição ao compromisso. E nada disso é possível quando se valida a individualização do mandato ou o vaivém de políticos e siglas desorientando o eleitor, decepcionando-o. A experiência democrática nos ensina a entender que o processo eleitoral é atividade primordial ao exercício da soberania popular. Exatamente por isso não contribui para o aprimoramento da representação política uma regra em que o mandato tem como dono um indivíduo apenas compromissado com os seus próprios interesses pessoais. Esta fórmula revoga o conceito de representação coletiva, favorece o fisiologismo e aprofunda o descrédito da sociedade no regime representativo. Daí a importância de se reconhecer que a democracia é plural e que necessita, por isso mesmo, de partidos políticos fortes e comprometidos com a vontade das urnas. Efetivamente, o povo exerce a sua soberania através do voto ou, em outras palavras, o voto é a própria voz republicana do povo. É ele o soberano e, como tal, não pode estar - como tem absurdamente estado ao longo de toda a nossa história - ausente do processo que, em suma, decide e define o seu destino. O individualismo consagrado na proposta do distritão tem como aliado o poderoso exército dos patrimonialistas que sempre impuseram ao

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país um sistema de exclusão. O parlamento precisa pensar mais nas próximas gerações do que, casuisticamente, nas próximas eleições. Sobretudo neste momento histórico, de necessária retomada da democracia, que Otávio Mangabeira comparava a uma “plantinha frágil e tenra”, a exigir cuidados permanentes e olhos vigilantes.

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É a hora do grande teste da democracia representativa 5 No No mundo que se diz democrático não há espaço para o isolamento decisório. Nesta moderna forma de administrar a coisa pública, o governante não é mais o senhor absoluto das decisões, tampouco o único intérprete autorizado a decifrar o pensamento dos seus administrados. O governante que se diz moderno é obrigado a compartilhar os seus poderes, pudores e quereres. Neste sentido, a consulta aos cidadãos e suas organizações não é uma mera faculdade, mas uma obrigação fundamental e definitiva para situar o grau de Democracia aplicado. Mas a participação do cidadão e suas organizações não se resume ao processo eleitoral ou à consulta popular via plebiscito, leis de iniciativa popular e referendo. Não poderia mesmo a Democracia ser reduzida a instrumentos que são utilizados de forma pontual e periódica, ainda que a democracia participativa seja considerada a mais eficaz. O vácuo provocado pelo lapso de tempo é preenchido com a chamada democracia representativa, onde o cidadão e suas organizações escolhem aqueles que representarão os seus 5 Portal Jurídico JOTA, 01/07/2017, https://www.jota. info/artigos/e-a-hora-do-grande-teste-da-democracia-representativa-01072017#.WVgu_9N0Gu4.whatsapp

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interesses, perspectivas, projetos, sonhos e até esperanças. Com a democracia representativa, complementando a participação direta dos cidadãos, estaria fechado o círculo de compartilhamento decisório a que está obrigado o governante. Assim, para a consolidação da Democracia, espera-se que o representante seja o espelho dos cidadãos e organizações que o designou, o receptor mais autorizado para escutar as suas lamúrias e o porta-voz mais legítimo para tornar reais as suas expectativas. Como oriundo de um processo eleitoral de escolha democrática, deve ser fiel às promessas assumidas durante a campanha e, sobretudo, aos compromissos éticos, legais e políticos inerentes ao exercício da função delegada pelo representado. É escrever em outras palavras: o representante de uma organização, comunidade ou segmento social, deve observar o pensamento da entidade, sociedade ou agrupamento que está a representar. E como representante destes cidadãos e organizações, mesmo quando legalmente livre para agir e votar segundo suas próprias concepções, não pode esquecer as motivações de sua escolha. Afinal, afastar-se dos compromissos da representação equivale à perda da condição ética da própria representação. E sem a ética não há que se falar na manutenção da representação, pois é negada a sua legitimidade e a razão da existência democrática. Assim entendendo, não posso deixar de concluir que o presidente plantonista Michel Temer, flagrado em circunstâncias nada republicanas, perdera a condição ética de mandatário dos cidadãos brasileiros. Ainda que empossado em circunstâncias históricas nebulosas, estava obrigado a manter intacto o elo que deve unir o querer do representado ao agir

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do seu representante. O golpe parlamentar que lhe outorgara o mandato não tinha o poder autorizativo de um habeas corpus preventivo para livre violentar a Constituição Federal. O mesmo defeito que atinge o deputado Rodrigo Maia, seu aliado político e cúmplice na manobra parlamentar que evita instaurar, via processo de impeachment, a necessária investigação dos atos ilícitos atribuídos ao chefe provisório do Executivo. Aliás, como demonstram todas as pesquisas divulgadas imprensa afora pelos institutos especializados, não apenas em razão de questões éticas a completa ausência de sintonia entre o povo e os seus representantes, estão rejeitados os governantes e as políticas restritivas de direitos que praticam. Agora, pela primeira vez na História do Brasil, o presidente da República é denunciado criminalmente perante o Supremo Tribunal Federal. A Constituição Federal condiciona o prosseguimento da ação à prévia autorização dos deputados federais. Caberá à chamada Casa do Povo, decidir se o Poder Judiciário pode ou não cumprir a sua missão constitucional de instruir e julgar os atos praticados pelo cidadão residente no Palácio Jaburu. Este será, certamente, o grande teste para confirmar a aposta constitucional na democracia representativa, fundada na ideia de que o representante deve permanente satisfação ao representado, assim como deve proteger a coisa pública daquele que a compreende como patrimônio privado.

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Democracia com povo e sem golpe6 O ano de 2006 foi marcado pelo debate político, especialmente em razão da velha dualidade caracterizada pela disputa presidencial entre o PT e o PSDB, então representados pelos candidatos Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin. Além da questão da ampla privatização – uma bandeira do partido defendida pelo candidato peessedebista -, no palco da peleja também o tema da CPMI dos Correios, que resultara, depois, no que se chamou o “Escândalo do Mensalão”. As palavras “entreguistas” e “impeachment” eram comumente utilizadas, dependendo tão-somente do olhar torcedor do time acarinhado. Lembro-me de um debate marcante em que participei na condição de secretário-geral da OAB, especificamente sobre a questão do caráter democrático do processo de impeachment. Impressionou-me a única preocupação dos respeitadíssimos juristas Fábio Konder Comparato, Paulo Bonavides e Marcello Lavenère Machado, advertindo-nos de que o instrumento parlamentar de afastamento presidencial poderia camuflar em golpe ao sufrágio universal. Em outras palavras: haveria o risco de uma maioria oligárquica, descontente com o resultado eleitoral, usar a sua força política para afastar um presidente eleito que discordasse do seu pensamento político.

6 Congresso Em Foco, 28/06/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/democracia-com-povo-e-sem-golpe/

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Esta hipótese gerou uma inquietação profunda em mim, pois tenho no combate às mais diversas oligarquias a razão da atuação na OAB. Registre-se que, na época, ainda não havia uma base fática a justificar a preocupação externada, até porque a oligarquia paraguaia não havia afastado o presidente Fernando Lugo, tampouco a elite brasileira a presidenta Dilma Rousseff. O meu respeito aos três grandes juristas, entretanto, exigia de mim um maior aprofundamento da questão. E a resposta não tardou. A advocacia brasileira, quando me concedeu a honra temporal de ser o presidente da Casa da Cidadania, debateu a crise da democracia representativa, compreendeu a Reforma Política como a mãe de todas as reformas e, por fim, propôs ao parlamento brasileiro que aperfeiçoasse o sistema de participação política do soberano povo. Assim, em nome da OAB, encaminhei ao parlamento, no dia 23 de outubro de 2007, a proposta de Reforma Política aprovada pelo Conselho Federal, fundada em dois blocos: “Efetivação da Soberania Popular e Proteção dos Direitos Humanos” e “Reformas Partidária e Eleitoral”. Entendíamos que o Brasil não vivia uma “simples crise episódica, mas de um estado de morbidez crônica, cujas causas são não apenas econômicas, mas também políticas”,

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especialmente em razão da “persistente marginalização do povo, impedido de tomar diretamente as grandes decisões políticas, não só na esfera nacional, mas também no plano local”. E, por acreditar na existência de “uma representação popular falseada, que acabou criando um pequeno mundo político irresponsável, cada vez mais distanciado da realidade social”, a OAB cuidou de propor como solução a valorização da Democracia Participativa. Na nossa proposta de Reforma Política, patrocinada no Senado pelos parlamentares Eduardo Suplicy (PT-SP) e Pedro Simon (PMDB-RS), destacava-se o apoio aos projetos legislativos que procuravam tornar efetividade às manifestações da soberania popular consagradas no art. 14 da Constituição Federal, fazendo com que o plebiscito e o referendo, tal como sufrágio eleitoral, não dependessem, para o seu exercício, de decisão do Congresso Nacional, bem como desburocratizando e reforçando a iniciativa popular legislativa. Pretendia, ainda, incluir no texto permanente da Lei Republicana dois novos mecanismos de Democracia Direta, notadamente o recall e o veto popular. Era a ideia de fazer retornar ao soberano povo o protagonismo da História, tanto para cassar o mandato do seu representante, quanto para vetar as inciativas legislativas que destoassem da real vontade popular. Registre-se que a Proposta de Emenda Constitucional nº 0073/2005, ratificada no debate da Reforma Política, também era oriunda da Ordem dos Advogados do Brasil, quando presidida por Roberto Busato, fruto do Fórum pela Reforma Política coordenado por Fábio Konder Comparato. Apesar do intenso debate no Senado, a proposta de fortalecer a Democracia Direta foi arquivada, pois os mandatos dos senadores Eduardo Suplicy (PT-SP) e Pedro Simon

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(PMDB-RS) chegaram ao fim em 2010. Mas a semente da ampliação da democracia participativa ficou plantada, brotando depois na proposta capitaneada pelo senador Antônio Carlos Valadares (PSB-SE). É que o senador sergipano apresentou a PEC 21/2015, fazendo incluir no art. 14, da Constituição, os IV e V, implantando no Brasil as modalidades recall e veto popular, porém deixando para a legislação infraconstitucional a regulamentação das inovações democráticas. Acreditava ele que a regulamentação via Constituição Federal dificultaria a sua aprovação. E é exatamente aí que entra o aditivo proposto pelo senador mineiro Antonio Anastasia (PSDB-MG), aprovado na CCJ do Senado em 21 de junho. O texto vencedor, maliciosamente, estabelece regras que impedem a vigência da Democracia Direta, inviabilizando, na prática, que sejam utilizados pela cidadania os novos institutos constitucionais propostos. Inicialmente, exige quórum de participação exageradamente elevado (10% do eleitorado), maior do que exigido para a efetivação de projeto de lei de iniciava popular, criação de partidos políticos ou mesmo a dificílima cláusula de barreira partidária em tramitação. Restringe, também, a sua aplicabilidade à presidência da República, deixando o parlamento livre do controle popular. Mais ainda, condiciona a validade da consulta revogatória ao próprio querer do parlamento, afirmando que a Democracia Direta, depois da ampla mobilização popular, apenas valerá se referendada pela maioria qualificada do parlamento. O senador mineiro anestesiou, na verdade, a própria ideia de resgatar a dignidade e a respeitabilidade da representação política, já prevista em vários países democráticos. E, paralisada a sua alma, o texto aprovado na CCJ do Senado fez do recall um corpo morto antes mesmo de ter nascido. A

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sua finalidade solucionadora de crises representativas perdeu o sentido, pois para entrar em vigor precisaria do aval daquele que provocou a própria crise. O relator do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o mesmo Anastasia, não quer o povo, via recall, decidindo o seu próprio futuro político. E somente uma Democracia com o a participação do seu povo é que teria “poderes” para evitar qualquer tipo de golpe, seja ele vindo de onde viesse: do parlamento, do “mercado” e até mesmo militar.

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O último suspiro de um governo antidemocrático7 O general João Figueiredo, no dia 18 de abril de 1984, impôs ao Brasil o Decreto nº 89.566, estabelecendo medidas de emergência visando preservar a ordem pública na área do Distrito Federal e em seu entorno goiano “ameaçados de grave perturbação”. Designou, na forma do seu art. 3º, o general Newton Cruz como executor das medidas, em razão de ser o comandante do Comando Militar do Planalto. E qual ameaça pairava sobre o Brasil? Nada mais do que realização de sessão na Câmara dos Deputados que votaria, no dia 25 de abril de 1984, a Emenda Constitucional Dante de Oliveira (PEC nº 05/1983), que tinha por objetivo reinstaurar as eleições diretas para presidente da República, então escolhido, no dizer do autor da emenda, “em círculos fechados e inacessíveis à influência popular e às aspirações nacionais”. A esperança de que a cidadania sairia vencedora naquele especial dia estava respaldada na pressão popular que brotava do grito coletivo simbolizado na palavra de ordem “Diretas Já!”. O maior movimento político-social da História do Brasil, refletida em comícios que atraiam milhões de brasileiros e brasileiras, era a resposta da cidadania à Ditadura civil-militar que teimava assolar o Brasil.

7 Carta Capital, 25/05/2017, https://www.cartacapital. com.br/politica/o-ultimo-suspiro-de-um-governo-antidemocratico

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Embora a madrugada do dia 26 de abril de 1984 tivesse anunciado a derrota da campanha pelas Diretas, o povo seguiu em frente, derrotando o candidato Paulo Maluf e, depois, a própria ditadura militar. O general Newton Cruz, cercando o Congresso Nacional, prendendo manifestantes e invadindo a OAB/DF significou o último suspiro do regime de exceção. Na quarta-feira, 24 de maio de 2017, um decreto assinado pelo presidente Michel Temer autorizou o “emprego das Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem no Distrito Federal”, sob o comando do ministro da defesa Raul Juggmann. Quando a cidadania brasileira volta a questionar a legitimidade do presidente plantonista e de uma possível eleição indireta, insiste-se em repetir as mais obscuras páginas do autoritarismo. Ao fixar o prazo de sete dias para a duração das medidas de exceção, revela-se o verdadeiro querer de quem o impôs. Ao procurar projetar o lapso temporal para o período em que a pressão popular promete aumentar a sua força, o decreto expõe uma clara ameaça a todos que lutam, democraticamente, pelo afastamento presidencial. Sabe-se que as Forças Armadas cumprem e continuarão cumprindo a missão constitucional garantidora do Estado Democrático de Direito. Mas o desesperado gesto de confundir a sociedade com a “compulsória convocação emergencial” revela o que parece ser o último suspiro do governo que será reconhecido na História por não ter respeitado a democracia.

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Tragédias: alertas, para não repetir8 Em debates filosóficos costuma-se afirmar, recorrentemente, que a história é cíclica, fazendo com que os acontecimentos se repitam ao longo da evolução de qualquer sociedade humana, ainda que modulados em versões e personagens distintos. O filósofo alemão Friedrich Hegel, que tinha perfeita compreensão desta rotina fixada pelo tempo, limita-a ao firmar que “um acontecimento histórico acontece, não uma, mas duas vezes”. O também alemão Karl Marx, ao escrever sobre “O 18 Brumário de Luis Bonaparte”, redefine o conceito de seu compatriota, agora para afirmar que as repetições ocorrem “uma vez como tragédia e outra como farsa”. Esta introdução tem como escopo uma proposta de reflexão sobre o Decreto nº 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, que, determinando a “intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro até 31 de dezembro de 2018” (art. 1º, caput), reintroduz no cenário político brasileiro a figura do Governador-Interventor (art. 2º) e, em consequência, priva o governador eleito das competências e atribuições institucionais contempladas no art. 145 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro no que se refere às ações de segurança pública (art. 3º). Com a mesma caneta intervencionista, reinsere a gestão militar em atividade 8 Congresso Em Foco, em parceria com Marcello Lavenère e Roberto Batochio, 02/03/2018, http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/ex-presidentes-da-oab-criticam-intervencao-no-rio/

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que é de natureza civil por excelência (art. 2º, parágrafo único) e, como no Estado Novo e na ditadura civil-militar, subordina a política estadual ao querer absoluto do poder presidencial (art. 3º, § 1º). Não se está a afirmar, ao menos por agora, que o Decreto nº 9.288/18 tem como finalidade reviver os tempos sombrios, que é necessário sempre nominarmos de ditadura civil/ militar e foram sepultados pela Constituição Federal de 1988; tampouco que foram repristinadas as “forças ocultas” apontadas como motivadoras da obscura renúncia do presidente Jânio Quadros. Sequer se está a enunciar qualquer juízo de valor sobre a existência de similitude entre a ruptura constitucional de 1964 e a de 2016, bem assim que o Ato Institucional nº 1/64, ao suspender, parcialmente, a vigência da Constituição de 1946, serviu de inspiração à Ementa Constitucional 95/96 quando “congelou” por vinte anos, a vigência dos artigos 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108 e 109 da Constituição de 1988. Também não se está a assoalhar que o irreverente protesto da escola de samba carioca Paraíso do Tuiuti decretou a vindita presidencial, da mesma forma que o histórico discurso do deputado federal Márcio Moreira Alves desencadeara a superveniência do nefasto Ato Institucional nº 5/68. Cabe-nos apenas, também e por ora, externar algumas preocupações sobre os acontecimentos que soam como já antes vividos pela cidadania brasileira e que, por isso mesmo, não merecem e não podem ser reprisados. A primeira questão decorre da manifesta inconstitucionalidade do malfadado decreto intervencionista, a saber: a) ausência de fundamentação quanto às reais motivações da precipitada intervenção (art. 93, inciso X); b) ausência de esclarecimento

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sobre a alteração do status da atuação do aparato militar em ações conjuntas nos moldes até então praticados, também utilizada em razão do “grave comprometimento da ordem pública” (art. 34, II); c) impossibilidade de transformar a intervenção federal em intervenção militar na gestão pública (art. 142); d) usurpação da competência executiva estadual e irregular suspensão da atividade legislativa do Estado do Rio de Janeiro (art. 144, CF, art. 145, CERJ); e) ausência de especificidade e das condições necessárias à execução da intervenção militar (art. 36, § 1º); f) ausência de prévia consulta ao Conselho da República e ao Conselho da Defesa Nacional (art. 90, inciso I e o art. 91, § 1º). O segundo questionamento decorre da própria natureza da proposta de combate à violência pelo uso da força em indisfarçado “Estado de Guerra”, experiência reconhecidamente fracassada em todos os países que a adotaram. Não se pode esquecer, ainda, que tratar a cidadania brasileira como inimiga externa não encontra amparo nos valores republicanos adotados pela Constituição de 1988. Ainda mais quando o governo central, antes mesmo de iniciar a sua gestão militar, anuncia que pretende quebrar princípios e garantias fundamentais, a exemplo de retirar do Poder Judiciário, como estabelecido expressamente em todos os atos institucionais, a apreciação individual e prévia dos mandados judiciais constritivos. E não se pode esquecer, também, a recente declaração do interventor militar quando alude à possibilidade de prática de atos que futuramente justificariam a criação de uma nova Comissão da Verdade. As instituições militares pertencem ao país e não a um grupo político. Desde a redemocratização, têm sido exemplares no cumprimento de seus deveres, alheias

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aos embates e ao varejo do jogo político-partidário. Daí a improcedência de transformá-las, em seu conjunto, em instrumento de um jogo eleitoral sem regras definidas e com resultados imprevisíveis para a preservação do próprio Estado Democrático de Direito. Neste momento em que o Estado policialesco ganha força, criminalizando a política e o direito de defesa, necessário se faz o alerta para os riscos decorrentes de um decreto presidencial que flerta com o autoritarismo. O Brasil precisa livrar-se do hábito de varrer para debaixo do tapete da História as suas abjeções. Precisa entender que um povo que não conhece o seu passado está condenado a repeti-lo. É o que ensinou a Alemanha no episódio conhecido como Historikerstreit, ao rejeitar a proposta de silêncio defendida por Ernst Nolte, Hillgruber e Sturmer, fazendo vencedora a tese de Habermas que defendia o confronto aberto com o passado. Não se sabe, em conclusão, se os acontecimentos autoritários que macularam a História do Brasil se repetirão como tragédia ou farsa, mas não podemos jamais olvidar o alerta proferido pelo irlandês Edmund Burke, que se faz oportuno e pertinente: “Um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la.”

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O fim da democracia pela ditadura com a “Solução Mourão”9 Tenho recebido vários textos, e-mails e zaps debatendo sobre a existência ou não de corrupção durante o obscuro período em que ao Brasil fora imposta uma longa ditadura civil-militar inaugurada pelos tanques do general Olímpio Mourão Filho. Este vigoroso furor opinativo teve grande impulso após a palestra do também general Antonio Hamilton Martins Mourão, secretário de economia e finanças do Exército, em evento promovido pela comunidade maçônica em Brasília. Dizia o saudosista palestrante que seria possível uma nova intervenção militar no Brasil, caso “os poderes não encontrem uma solução para os problemas políticos”, especialmente a questão da corrupção. Embora o Mourão de 2017 não tenha mencionado a sua “solução final”, o Brasil já conheceu a fórmula executada pelo Mourão de 1964. E a Solução Mourão de 1964 foi rigorosamente aplicada, dentre outros, com o seguinte receituário: a) imposição de uma Constituição Federal, sem consulta popular ou preocupação democrática;

9 Congresso Em Foco, 04/10/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/o-fim-da-democracia-pela-ditadura-com-a-solucao-mourao/

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b) edição de atos institucionais e decreto-lei, desprezando-se o Poder Legislativo; c) fechamento do Congresso Nacional, cercado pelos tanques e pelo medo; d) intervenção no Poder Judiciário, aumentando os membros do STF e cassando ministros e juízes que julgavam contrário aos interesses dos governantes; e) supressão do direito da cidadania e, por consequência, do cidadão eleger plenamente os seus representantes, cassando-se os mandatos daqueles que discordavam do sistema, impondo-se, ainda, senadores, governadores e prefeitos biônicos; f) supressão das liberdades de imprensa e de expressão, estabelecendo-se a censura prévia e censores nos meios de comunicação; g) fechamento de teatros, proibições de novelas e vedações de músicas e shows; h) fechamentos de sindicatos e centro acadêmicos estudantis, impondo-se interventores sindicais e expulsões de estudantes; i) supressão do habeas corpus e do livre direito de ir e vir; j) exonerações coletivas de professores, militares e servidores públicos “suspeitos” de defenderem a volta da democracia;

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k) prisões ilegais, torturas oficializadas, exílio compulsório, assassinatos e “desparecimentos forçados”. Este artigo, entretanto, não tem a pretensão de narrar a face cruel, clandestina, censora, torturadora e “mal-humorada” da ditadura civil-militar. O que se pretende é, na verdade, refletir sobre a endêmica corrupção brasileira, apontada como “motivação” para uma nova intervenção militar e replicada nas chamadas redes sociais. E começo relembrando os programas de humor que, driblando a rígida censura, conseguiam trazer reflexões sérias sobre a corrupção que galopava escondida nos porões daquele obscuro período da História. Destaco o vanguardista Planeta dos Homens, mais precisamente um dos vários personagens interpretados pelo humorista Jô Soares. O personagem da vez atendia pelo nome Porta-voz, uma explícita imitação do ministro Carlos Átila, porta-voz mais conhecido do ex-ditador e último presidente do regime militar, João Batista Figueiredo. Pois bem, a cena do Porta-voz de Jô, aqui recontada como eu me lembro, acontecera durante uma entrevista coletiva de imprensa, convocada para que explicassem os últimos casos de corrupção no governo interventor. Nela, o Porta-voz, esclarecia que governo iria abrir um rigoroso inquérito para apurar um grande escândalo de corrupção que envolvia altas autoridades brasileiras. Provavelmente uma referência indireta aos desvios financeiros da Coroa-Brastel, Capemi, Brasilvest, Grupo-Delfin, Paulipetro, Lutfala ou as comissões da General Eletric, se não me falha a memória.

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Perguntado pelos jornalistas-atores se os corruptos seriam presos e confiscados os seus bens, assim respondeu, calmante, o Porta-voz governamental: “Não basta um rigoroso inquérito? Mesmo com um rigoroso inquérito vocês ainda querem prisões e confiscos?” Incontáveis “rigorosos inquéritos” foram sendo arquivados nos porões da impunidade e apagados da memória censurada da cidadania brasileira, a exemplo destes posteriormente revelados em livros do jornalista Elio Gaspari: a) presença da Construtora Camargo Corrêa nas construções das hidroelétricas de Água Vermelha e Tucuruí; b) o assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten, que, em dossiê, ameaçava apontar agentes do SNI envolvidos em corrupção; c) os contrabandos de uísques, perfumes e roupas praticados pelo capitão do Exército Ailton Guimarães Jorge, patrono da Vila Isabel, comandante do jogo do bicho e portador da Medalha do Pacificador; d) as extorsões praticadas pelo então governador do Paraná, Haroldo Leon Peres, bem assim aquelas praticadas pelo delegado Sérgio Fleury, também portador da Medalha do Pacificador e um dos líderes do Esquadrão da Morte; e) o contrabando de joias preciosas para os EUA. Recentemente a revista Super Interessante, da editora Abril, edição 365-A, setembro/2016, p. 40, investigando sobre o mito da inexistência de corrupção durante a ditadura da militar, publicou o seguinte texto: “Até a década de 1960, as obras da Odebrecht mal ultrapassavam os limites da Bahia. Com o protecionismo de Costa e Silva, começou a dar saltos. Primeiro, construiu o prédio-sede da Petrobras no Rio. Os contratos governamentais na estatal abriram portas para novos projetos, como o aeroporto do Galeão e a usina nuclear de

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Angra. Assim, de 19ª empreiteira de maior faturamento, em 1971, pulou para a 3ª em 1973, e nunca mais deixou o top 10″. Outra beneficiada foi a Andrade Gutierrez. O “amor” da Odebrecht pelo patrimônio brasileiro e o seu “relacionamento fraterno” com a Petrobras, como concluiu a revista, foram sólidos e cimentados com chumbo. E não só a Odebrecht participando deste “seleto” e “apaixonado” grupo. Como se vê, a “Solução Mourão 2017″ não passa de uma propaganda enganosa, pois não combate a corrupção e, gravemente, traz como eleito colateral o fim do Estado Democrático de Direito. Ela é beneficiária da amnésia imposta à cidadania brasileira, gerando, infelizmente, adeptos entre os jovens que não viveram a tragédia autoritária e os adultos que não souberam ou não quiseram saber o que se passou. Salvo para os arrogantes saudosistas que sonham com a volta do arbítrio, a melhor forma de combater a corrupção é respeitar a Constituição, compreender a importância da pessoa humana, fortalecer o controle social sobre as políticas públicas, garantir a liberdade de organização e, sobretudo, manter instituições fortes, livres e independentes. É o que bem advertiu Ulysses Guimarães, quando do seu histórico discurso em 05 de outubro de 1998, falando do tempo que se pretendia rompido pela Constituição Cidadã: “A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam.”

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A quem pertence a Petrobras?10 A greve dos caminhoneiros transportou para o mundo real o debate sobre o papel da Petrobrás, da compreensão estratégica do petróleo enquanto patrimônio do povo brasileiro e quem deve ser o real destinatário dos serviços gerados pelas empresas estatais. Deste debate, entre placas de “pare e siga” para umas e outras análises, perguntas são ligadas, freadas ou estacionadas em locais não pavimentados por respostas sólidas. Mas todos, com raríssimos derrapes excludentes, assumindo a condição de motorista, passageiro, mecânico ou transeunte assumiram o direito de opinar sobre a nova crise gerada pelo governo plantonista. E eu sigo pela mesma estrada opinativa. Da imensa carroceria de perguntas que acarreto para o debate, descarrego, de logo, as seguintes: A quem pertence a Petrobrás e o petróleo extraído do solo brasileiro? É correto submeter os interesses do povo brasileiro ao apetite insaciável do “Mercado”? Quem lucra com os absurdos preços dos combustíveis praticados no Brasil pelo governo plantonista, ardorosamente defendidos por seu porta-voz Pedro Parente? Qual o sentido de lucro em uma atividade estatal? Qual a relação da crise com a política de desmonte, privatização e entrega do patrimônio nacional aos interesses do capital estrangeiro? A questão da propriedade brasileira sobre o petróleo parecia ter sido resolvida quando a Petrobrás foi criada pela Lei 10 Congresso Em Foco, 03/06/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/a-quem-pertence-a-petrobras/

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2004, sancionada por Getúlio Vargas em 03 de outubro de 1953. Vencia-se, ali, a velha batalha do O petróleo é nosso!, iniciada quando descoberta as reservas da Bahia, no bairro soteropolitano de Lobato, ainda em 1938. A Campanha do Petróleo, unindo forças da direita e esquerda, apoiada pelo Centro de Estudos e Defesa do Petróleo, PCdoB, PTB, UNE, militares, trabalhadores, intelectuais e nacionalistas chegara ao fim, inscrevendo que a propriedade do petróleo era um monopólio do povo brasileiro e da sua estatal Petrobrás. Em palavras da época: vencida estava a proposta que pretendia entregar o petróleo aos investidores estadunidenses. Vencida, mas não derrotada. A ganância internacional sobre o petróleo, patrocinadora de guerras, genocídios e ditaduras, não descansaria enquanto não se apossasse da Petrobrás e quebrasse o monopólio conquistado em 1953. Não encontrando aliados nos autores das leis outorgadas de 1967 e 1969, tampouco nos constituintes de 1988, os entreguistas persistiram por décadas. Até que encontraram um forte aliado no então presidente Fernando Henrique Cardoso, que, aceitando a missão estrangeira, mandou esquecer a história que escrevera e, na mesma canetada, rasgou a história do seu pai Leônidas Cardoso e a de seu tio Felicíssimo Cardoso, dois dos generais nacionalistas da Campanha do Petróleo. Da Era FHC a Emenda Constitucional 9/1995, a Lei do Petróleo n° 9.478/97 e a criação da Agência Nacional do Petróleo (ANP), todas com o firme propósito de se quebrar o monopólio da Petrobras sobre o petróleo, abrindo-o para a exploração internacional. Daquele tempo, ainda, a tentativa de aniquilar a resistência nacionalista dos petroleiros, utili-

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zando-se do Poder Judiciário, em método depois condenado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), assim resumido pelo então ministro das Minas e Energia, Raimundo Brito, em reportagem da revista Veja, edição 1.394, página 23: “O segredo dessa estratégia é semear o medo da demissão em todo mundo. Numa refinaria todos se conhecem. Se um funcionário exemplar é demitido, quem está em dúvida quanto à determinação do governo vai pensar duas vezes antes de aderir”. Estratégia também exercida, no ano 2000, na frustrada tentativa de mudar o nome da Petrobras para Petrobrax, na vã esperança de que, com um nome estrangeiro, não fosse ela mais defendida pelos brasileiros. Não é obra do destino o então presidente da Petrobras ter integrado, em ministerial posição de destaque, a equipe econômica de Fernando Henrique Cardoso. Não é coincidência a repetição da política de desmonte da Petrobras, a venda de seus ativos e entrega do pré-sal ao capital internacional. Não se pode atribuir ao acaso o “acordo” de US$ 2,95 bilhões para encerrar ação coletiva em benefício de “investidores estrangeiros”, que corria em Nova York. Não tem outra causa a atual política de diminuir a produção nacional e aumentar a dependência brasileira através de estranhas importações estadunidenses. Não é outra a motivação de se aumentar os lucros dos “investidores internacionais” com a precificação volátil dos combustíveis, ainda que tal prática traga como consequência a destruição da economia nacional. O petróleo deve ser compreendido como uma riqueza do país, para que se possa, com os recursos dele oriundos, retirar os nossos atrasos, os atrasos educacionais, de infraestrutura e os que provocam em muitas Nações alta

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concentração de renda. Em consequência, o lucro da Petrobras deveria ter como fundamento a lucratividade social do Brasil, e não o aumento das riquezas pessoais que se disfarçam em nomes sem rostos, apelidados de “mercado” e “investidores”. A Petrobras e o petróleo devem pertencer ao povo brasileiro, como advertira o escritor Monteiro Lobato, na famosa Carta a Getúlio, em que afirmava ser um escândalo o Brasil não perfurar e não deixar que perfure. A Petrobras completará 65 anos no dia 03 de outubro de 2018, exatamente no dia em que o Brasil escolherá os seus novos governantes entre candidatos nacionalistas e entreguistas. Como se vê, a estrada ainda é longa e árdua!

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A Petrobrás, o acordo bilionário e a tragédia brasileira11 O jornalista Ricardo Boechat, no dia 24 de março de 2017, publicou em sua coluna Caldo de Galinha, que não havia caído bem a presença do presidente da Petrobrás, Pedro Parente, “percorrendo gabinetes de ministros do TST para entrega de memorial defendendo o fim do pagamento de adicionais de periculosidade e insalubridade” para os petroleiros que, diariamente, arriscam as suas vidas para que estatal mantenha o seu status de empresa grande e mundialmente respeitada. Referia-se o jornalista a determinada demanda judicial em que a Petrobrás, já condenada pela Seção de Dissídios Individuais (SDI-1) do TST, insinua, através de seus dirigentes, que cumprir a decisão trabalhista poderia “causar prejuízos aos investidores” e “quebrar a empresa”. Eis que, outra vez, a imprensa noticia que a Petrobrás anunciou um acordo para encerrar uma ação judicial coletiva de “investidores estrangeiros”, que corre em Nova York, em que pagará US$ 2,95 bilhões àqueles que compraram ações da empresa no mercado imobiliário estadunidense e se disseram prejudicados pelos fatos escandalizados na mídia nacional e potencializados pelos holofotes do Poder Judiciário brasileiro. O acordo bilionário, celebrado em processo ainda na sua fase inaugural e, consequentemente, sem decisão judicial, representa uma das maiores cifras 11 Congresso Em Foco, 09/01/2018, http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/a-petrobras-o-acordo-bilionario-e-a-tragedia-brasileira/

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já testemunhada pelo sistema judicial estadunidense. E não quita todas as questões jurídicas que giram em torno da “festejada” e antecipada confissão, até porque “outros investidores” seguem com seus respectivos processos intactos, esperando novas concessões brasileiras. O drama brasileiro, infelizmente, não tem no acordo bilionário o seu capítulo final. Não há, sequer, luz no final do túnel das palavras trágicas. Ainda mais quando se revela que o valor pago representa 65% de tudo que a Petrobrás arrecadou com a privatização de seu patrimônio, agora camuflada com o neologismo “venda de ativos”. Nesta parte da temerária novela, os dirigentes da Petrobrás começaram a escrever que devolverão aos “investidores” o dinheiro pago pelos próprios “investidores” quando se tornaram proprietários do patrimônio do povo brasileiro. Ou, em outras palavras: “Ao término do acordo estadunidense e das novas privatizações o Brasil terá vendido a Petrobrás e pago com o seu próprio dinheiro”. Ironicamente, os dirigentes brasileiros justificaram que celebraram o bilionário acordo porque tinham receio de que o tradicional silêncio do Poder Judiciário estadunidense fosse exercido para proteger os interesses econômicos dos EUA. Verdade ou não a fundamentação protecionista, o papel ideológico do Poder Judiciário estadunidense é uma parte da história que somente as cenas futuras revelarão. Da mesma forma, o tempo escreverá sobre a atuação do Poder Judiciário brasileiro, os interesses em julgamento e as validades dos acordos de delação que serviram de escudos protetivos de históricos corruptores, quase todos preservados nos seus respectivos patrimônios, mantidos

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no Mercado como importantes “investidores” e “livres” nas suas luxuosas mansões. Enfim, os astronômicos valores que serão pagos aos “investidores estrangeiros”, incontavelmente superiores aos devidos aos “trabalhadores brasileiros”, pelo clima de euforia anunciado pela direção da Petrobrás não “quebrarão a empresa”. Evitaria até, segundo os escalados “especialistas nos humores do Mercado”, novos prejuízos para a estatal, pois encerrar uma demanda judicial é sempre um “bom negócio”, desde que beneficie, evidentemente, os donos dos negócios. Neste caso, compreendendo-se como donos do negócio os “investidores” que, duplamente, lucram com a vida dos petroleiros e com a anunciada “tragédia brasileira”. Para estes e muitos outros, pouco importa se o valor a ser pago seja superior em 6,7 vezes ao total das quantias recuperadas pelos “investigadores brasileiros”, o que vale mesmo é vibrar com o Complexo de Província que nos faz reféns dos quereres internacionais e repetir a velha máxima da submissão, proferida por Juracy Magalhães, embaixador do Brasil nos EUA durante o governo de Castelo Branco na ditadura militar: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil!”

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Fertilizando Sergipe e o Brasil – A luta pela Fafen12 Gosto de contar a bela, corajosa e impactante História da Luta pela Fafen, quando os trabalhadores e trabalhadoras filiados ao Sindiquímica/SE ensinaram a importância da coerência ideológica na defesa de um ideal. Eu a contei em recente livro que publiquei pela editora RTM, sob o título “Fiz-me advogado na luta”. Os fatos narrados ganham relevância diante da carta divulgada pelo governador Jackson Barreto, reproduzindo uma deselegante ligação telefônica de Pedro Parente, em que, resumidamente, o presidente da Petrobrás o comunicara da decisão de fechar a unidade fabril sergipana, exatamente como pretendera fazer na época em que era chefiado por Fernando Henrique Cardoso. A grave ameaça voltava, assim, a assombrar Sergipe, fertilizando o nosso receio de perder, mais uma vez, um pedaço da nossa sobrevivência econômica. A História aqui contada teve início quando uma ação judicial que ingressei, na condição de advogado da categoria profissional, confirmou a coerência política do Sindiquímica, modificou a política de fertilizantes da Petrobrás e selou o destino da própria entidade sindical. O sindicato, na condição de substituto processual, postulou o cumprimento da cláusula 3ª, do acordo coletivo de trabalho, que afirmava a obrigação patronal de reajustar os salários de todos os empregados nos termos, critérios e índices oficiais pre12 Congresso em Foco, 29/03/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/fertilizando-sergipe-e-o-brasil-%E2%80%93-a-luta-pela-fafen/

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vistos na Lei nº 7.788, de 3 de julho de 1989, ou seja, um reajuste salarial superior a duzentos por cento (200%). O processo, tombado sob o nº 062900371-01, obteve decisão desfavorável exarada perante a 2ª Junta de Conciliação e Julgamento de Maruim. O sindicato interpôs recurso ordinário, remetido para o TRT da 5ª Região, que, na época, tinha competência para julgar os processos originários de Sergipe. Antes do julgamento do feito pelo Regional, foi sancionada a Lei 8.233, de 11 de setembro de 1991, que criava o TRT da 20ª Região, que determinava a remessa para o órgão sediado em Sergipe dos processos ainda sem relatoria. O processo foi remetido para Sergipe e no dia 19 de maio de 1993 julgado pelo TRT da 20ª Região, reformando, com o voto da relatora Ismênia Quadros, a decisão originária da Junta. A Nitrofértil não percebera a mudança do órgão julgador e, em consequência, não apresentou recurso. O Sindiquímica, assim, tinha em seu poder uma sentença judicial transitada em julgado que, segundo cálculos estimados, se aproximava de duzentos milhões de dólares (US$ 200.000.000,00). Nesta quadra do tempo, o clima de privatização ganhava força e adeptos no Brasil. O presidente Collor renunciara no dia 29 de dezembro de 1992, mas não houve o arrefecimento do seu discurso de transferir o patrimônio público para a iniciativa privada, utilizando o artifício de marketing de combate aos marajás do serviço público. A Nitrofértil, com a sua estratégica e lucrativa atividade de fertilizantes nitrogenados, estava na mira dos privatizantes e dos seus sócios econômicos. O presidente Itamar Franco também mantinha a Nitrofértil no rol das estatais privatizáveis.

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A estatal tentava, em vão, mandar um perito oficial para avaliar o valor do patrimônio a ser vendido. A categoria nunca deixou o avaliador oficial entrar na sede administrativa da empresa, fazendo barricadas nas datas das visitas e até mesmo a queima de uma viatura policial. Demissões, inquéritos judiciais para apurações de faltas graves, descontos salariais por motivo de greve, ações cautelares, inquéritos policiais e negociações com a diretoria da empresa passaram a integrar o meu cotidiano jurídico. Até que a notícia do trânsito em julgado da ação milionária entrou na pauta da privatização da empresa. Afinal, ninguém se aventuraria a comprar uma empresa que carregasse em suas contas tão vultoso débito trabalhista e, ainda, uma categoria aguerrida. A questão da dívida estava posta nas assembleias e nas campanhas contra a privatização. Os negociadores procuravam solução para o impasse. O presidente Itamar Franco, com a intermediação do sergipano Seixas Dória - governador cassado pela ditadura – concordou em resolver a pendência nos moldes solicitados pelos trabalhadores em Assembleia Geral Extraordinária. Eis a redação do inédito, ideológico e histórico acordo judicial, assinado e protocolado em 14 de dezembro de 1993: (...) Os empregados da Nitrofértil, em decisão soberana de sua Assembleia Geral extraordinária, convocada para este fim específico, (ata agora acostada), reconheceram a importância do presente Acordo, razão porque assinam e pedem a HOMOLOGAÇÃO do mesmo, na forma assim positivada: (...)

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3. As partes, de logo, condicionam a validade da homologação do presente ACORDO a efetiva concretização da incorporação das atividades desenvolvidas pela Nitrofértil a Petrobras, inclusive a absorção dos empregados, tornando-o nulo de pleno direito se não concretizada a condição;

Em 17 de dezembro de 1993, conforme acordo celebrado, a Nitrofértil passou a fazer parte da estrutura direta da Petrobras, com a nomenclatura Fafen. O amor dos petroquímicos ao patrimônio público e ao Brasil impediu que mais uma empresa fosse privatizada. Os trabalhadores abriram mão dos duzentos milhões de dólares estadunidenses (US$ 200.000.000,00) e eu, na mesma linha ideológica, dos honorários advocatícios de vinte milhões de dólares estadunidenses (US$ 20.000.000,00). Para todos nós a verdadeira causa era a de combater a política neoliberal, que tanto prejudicou o desenvolvimento social do Brasil. No ano de 1999, também por coerência política, o Sindiquímica/SE se despediu da vida sindical para entrar na História como o mais vanguardista, ético e revolucionário movimento político-social de Sergipe. Integrando, com fusão, a categoria dos petroleiros, a partir de um congresso unificado, o Sindipetrp AL/SE. O presidente Fernando Henrique Cardoso, seguindo o caminho privatista da Era Collorida, resolveu pôr à venda a Fafen, desmembrando-a da Petrobras. O intento foi frustrado quando os propostos foram alertados de que a quebra do acordo judicial implicaria no pagamento aos trabalhadores dos duzentos milhões de dólares estadunidenses (US$ 200.000.000.00), fixados em decisão judicial. Apenas assim o governo federal desistiu de privatizar a empresa, em-

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bora mantivesse a Fafen no rol das atividades econômica descartáveis. Somente quando Zé Eduardo Dutra assumiu a presidência da Petrobras é que pensávamos ter a Fafen saído da relação das unidades privatizáveis, fazendo o setor de fertilizantes integrar a atividade fim e estratégica da empresa estatal de petróleo. Descobre-se, agora, que não. Daí porque é importante lembrar do ato heroico sergipano, especialmente quando ele mudara a política de fertilizantes no Brasil, pois a existência da Fafen estimulou a empresa a ampliar esta atividade econômica para outros Estados e países. E, embora diluídos na imensa categoria dos petroleiros alagoanos e sergipanos, aqueles heróis e heroínas continuaram fazendo história, gerindo, coletivamente, a Fafen que indiretamente compraram e entregaram ao povo brasileiro. Eles e elas precisam, agora da nossa solidariedade e luta. Precisam que escrevamos mais um capítulo da História pela Luta da Fafen, impedindo-a de ser fechada. Apenas assim poderemos, outra vez, impedir a privatização do fertilizante nacional e a consolidação da política entreguista do governante de plantão. Fertilizar o solo da resistência é preciso!

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A extinção de reserva nacional é a venda da nossa sobrevivência13 SSobrevivência é, sem dúvida, uma palavra-chave a unir todos os seres do planeta. O instinto de sobrevivência acompanha o avançar do planeta, determinando quem ultrapassa ou se queda em determinada quadra do tempo. Espécies foram extintas, transformadas ou nascidas unicamente em razão da sua capacidade de adaptação ao habitat, aos adversários, às doenças, às mudanças ambientais ou mesmo à sua formação genética. Não sem razão a História é o registro cronológico do evoluir da vida sobrevivente do planeta. É esta experiência histórica quem alicerça o passado, apontando-nos os fracassos e os caminhos mais seguros a serem percorridos. É cada uma das etapas testemunhadas pelo evoluir do tempo quem nos ensina a construir no hoje uma sobrevivência que sustente o planeta no amanhã. A preocupação com a sobrevivência do planeta e das pessoas que o habita sempre esteve na lista da cidadania brasileira. Tanto é assim que o Brasil fora a sede da Rio+20, nome da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, que ocorrera nos 13 a 22 de junho de 2012. A escolha do Brasil como sede do encontro não fora por acaso, reconhecia-se, ali, o esforço brasileiro na defesa do desenvolvimento sustentável, bem assim por ter sediado a primeira etapa da Cúpula da Terra (ECO-92), vinte anos 13 CONJUR, 01/09/2017, http://www.conjur.com.br/ 2017-set-01/cezar-britto-extincao-renca-venda-nossa-sobrevivencia

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antes. E aqui estiveram os líderes de 193 países que fazem parte da ONU, os cientistas mais sinceros, os ambientalistas mais engajados e as pessoas mais esperançosas com o futuro do planeta. Embora sem atingir todos seus objetivos, ambas as cúpulas produziram novas regras civilizatórias assumidas pelos governantes presentes, refletidas em tratados internacionais. E o Brasil sempre fora elogiado pelo seu esforço preservacionista, como destacado na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2009, também chamada Conferência de Copenhague. Não poderia ser diferente, uma vez que a finitude dos recursos naturais exige o compromisso de todos em proteger o planeta da ação predatória da mente humana, tanto em sua busca incontrolável pelo lucro, quanto pelo vício desenfreado do consumo ou, ainda, pelo simples poder de ser dono do insaciável poder. Afinal, como alertara o escritor carioca Euclides da Cunha no iniciar do século XX: Não é o bárbaro que nos ameaça, é a civilização que nos apavora. Daí a razão da surpresa quando o governo plantonista anunciou a extinção da Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados). Ela havia sido criada no pacto civilizatório de 1984, exatamente com o objetivo de preservar um dos mais importantes ecossistemas do planeta. A reserva, localizada nos Estados do Pará e Amapá, está sendo extinta para que o setor de mineração possa sugar a sua vida, desequilibrar o ecossistema que lá habita e, por fim, matar o futuro das próximas gerações. É escrever em outras palavras: O governo que prometeu vender mais de cinquenta estatais, a Eletrobrás e a Casa da Moeda, também quer ceder para a iniciativa privada o verde que tremula na bandeira brasileira e, de que-

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bra o ouro, os índios, o céu, a água e tudo que possa render algum lucro para a honestíssima brava gente que se embala nos berços esplêndidos dos palácios Jaburu e Itamaraty. Com a suspeita de antecipar para as mineradoras estrangeiras o desejo de se entregar a floresta Amazônica para o faminto consumo internacional, sem qualquer discussão prévia com a sociedade brasileira, o governo plantonista pode ter quebrado o pacto civilizatório assumido pelo Brasil e referendado em nossa alma preservacionista. Ora, sabemos todos que a sobrevivência sustentável do planeta depende dos compromissos assumidos no hoje, especialmente aqueles que garantem conservação da nossa moradia como um ambiente socialmente justo, solidário e igualitariamente utilizado por todos. Até porque o direito de sobrevivência da atual geração não pode eliminar ou comprometer o direito de sobrevivência das gerações futuras. A Terra, vítima do ser humano, não mais externa o mesmo tom azul que um dia enxergara o cosmonauta russo Yuri Gagarin a bordo do Vostok I. E ao personagem que mais interfere na escala da sobrevivência do planeta o governo plantonista pretende entregar o destino da floresta Amazônica. Autoriza ele, sem aviso prévio ou qualquer debate, a invasão do nosso jardim pelas destrutivas mineradoras, estrangeiras ou não. Escancara as portas para que as mineradoras entrem em nossa casa, comprometam o desenvolvimento sustentável do Brasil e, sobretudo, rasguem o compromisso inalienável desta geração com o futuro das próximas gerações. Atual, portanto, o alerta que fizera o poeta russo Vladimir Maiakovski: Você não pode deixar ninguém invadir o seu jardim para não correr o risco de ter a casa arrombada.

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E a água segue escoando pelo ralo14 O 8º Fórum Mundial da Água, que acontece em Brasília esta semana, é ocasião propícia para fazermos um exercício de reflexão que, a rigor, deveria ser permanente, cotidiano, obstinado: o que nós, seres humanos, fizemos (estamos fazendo) de nossa fonte básica de existência? Quem são os destinatários desta fonte tão fundamental à sobrevivência do planeta? Quem controla o seu uso? Compreendemos, como mantra, que sem água não há vida? Não são perguntas despropositadas, ainda mais quando o dia 22 de março, a ela consagrado, é o Dia Mundial da Vida. Sabemos é que da natureza que se nutre e é nela que encontra tudo o que se necessita para que o planeta viva bem. Entretanto, o descaso histórico e sistemático da humanidade com o seu entorno ambiental levou-a ao paroxismo presente: o de se ver ameaçada de não mais dispor de seu insumo fundamental – a água. Esta constatação revela a monstruosa dimensão dos desvios éticos e políticos de governos e governantes, que resultaram na edificação de um sistema econômico internacional que privilegia o lucro e a ganância acima de todos os demais valores – inclusive a própria vida. Um sistema, em suma, irracional. Suicida. O resultado é perceptível, tanto que a discussão agora gira em torno da existência ou não de alguma possível reversão nesse quadro catastrófico, em que danos importantes 14 Congresso em Foco, 22/08/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/e-a-agua-segue-escoando-pelo-ralo/

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estão ocorrendo em velocidade insuperável. Os cientistas informam há tempos das catástrofes ambientais que tais condutas estão construindo para as gerações futuras – e não só para as futuras. Há previsões detalhadas e consistentes dando conta dos efeitos sobre a Terra – e sobre a vida de cada um de nós – dos desequilíbrios ambientais já perpetrados. O aquecimento do clima, a perfuração da camada de ozônio, os desmatamentos, a poluição das nascentes, o acelerado degelo das calotas polares, o televisionado assassinato do Rio Doce pela mineradora Samarco, a não-clandestina contaminação da Amazônia pela mineradora norueguesa, são exemplos do que se poderia chamar de “crônica de uma tragédia anunciada”. O Apocalipse de São João, já anteviu problemas no futuro da humanidade decorrentes do mau uso desse inestimável bem natural. Naquele documento bíblico, o apóstolo advertia para o envenenamento das águas dos rios e dos mares como um dos fatores das tragédias que prenunciava um futuro impreciso. Tal “profecia” se assemelha muito ao que pode acontecer em poucos anos, caso não haja uma reação consistente de governos e organizações da sociedade civil em todo o planeta. É preciso que nos conscientizemos de que a Terra, mesmo possuindo enorme quantidade de água, dispõe de relativamente pouca para o atendimento às necessidades humanas. O Brasil é um país com enorme potencial hídrico. Possui 12% da água potável do planeta. Mas, apesar disso, também aqui há os “sem-água”, contingentes populacionais inteiros privados do acesso a esse bem fundamental. Quase metade da população brasileira está excluída. Como reverter esse

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quadro? O caminho, penso, é conscientizar cada vez mais a população para a preservação do seu habitat. Organizá-la. Estimular a sociedade civil a agir, a se estruturar para reclamar a preservação desse direito fundamental à existência. Esta é sem dúvida uma das causas mais importantes para qual devemos lutar, pois esta trata da vida – da continuidade da vida no planeta. Na Campanha da Fraternidade de 2004, a CNBB adotou o tema “água, fonte de vida”. E propôs a criação de uma lei do patrimônio hídrico brasileiro, que dê ênfase ao conceito da água como bem público, de resto um princípio constitucional. A proposta continua à espera de atendimento. Considerar a água como bem público implica repensar o uso privado que se faz, direta ou indiretamente, dos recursos hídricos. Mas este não é o caminho proposto. A ordem a adotar é privatizar e transferir a água para o patrimônio pessoal dos grandes grupos econômicos, como já iniciado através dos processos de venda das companhias estaduais de água e esgoto. Também assim indica o recente encontro do presidente “plantonista” Michel Temer com o presidente da Nestlé, o belga Paul Bulcke, em Davos, na Suíça. E na mesma corrente patrimonialista navega pelo Senado o PLS 495/2017 que propõe a criação do “mercado privado da água”. O projeto de lei, em resumo, diz que a “água será destinada a quem possa ela comprar”. Há estudiosos que advertem inclusive que a escassez da água poderá ser o motivo da próxima guerra mundial. Entretanto os governantes e os grupos econômicos ainda resistem em com ela relacionar-se de maneira honesta, equilibrada, sustentada, observando-lhe as leis naturais,

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adotando práticas elementares e sensatas de manejo. É que a ganância é descuidada, míope. Não enxerga à distância. Cuida do imediato e não percebe os danos que ocasiona a si mesma. No Brasil, infelizmente, os governantes seguem compreendendo a água como bem privado, instrumento de favores econômicos e acertos eleitoreiros. E enquanto está danosa prática nadar de braçadas no mundo da insensibilidade política, o acesso à agua seguirá considerado um “direito que escoa pelo ralo”.

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Da ficção ao ladrão15 Os Os telespectadores brasileiros ficaram aturdidos quando, das poltronas acomodadas de seus lares, receberam a televisa notícia de que a Polícia Federal encontrara, na primeira terça-feira do mês da Independência, impressionantes quantidades de malas repletas de dinheiro. Remexeram-se com alguma agitação quando, aumentando o som da televisão via “indignado” controle remoto, foi revelado que o soteropolitano apartamento da Graça abrigara suntuosos R$ 42.643.500,00 (quarenta e dois milhões, seiscentos e quarenta e três mil, quinhentos reais) e US$ 2.688.000 (dois milhões, seiscentos e oitenta e oito mil dólares). E ao serem informados de que maior apreensão de dinheiro vivo da história policial brasileira tinha relação direta com ex-ministro Geddel Vieira Lima, externaram suas sacras iras através das “agitadoras” redes sociais. Confesso que fui bombardeado por esta moderna forma de embravecida revolta, certamente entendida como mais eficaz do que as aposentadas panelas e encardidas camisas verdes e amarelas que desfilaram país afora. Aliás, o vídeo mais repetido fora exatamente aquele em que o suspeitíssimo e aprisionado Geddel Vieira Lima, na passeata dos patos amarelos, igualmente colorido, dizia: Ninguém aguenta mais tanto roubo. Competia esta palavra de ordem com outros vídeos em que o honestíssimo personagem aparecia apoiado por Lula, Dilma, Temer, ACM Neto e variados políticos de quem já fora aliado. Centenas de chacotas, panfletagem preferida dos ciber-amotinados, também passaram a circular,

15 Congresso Em Foco, 21/07/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/da-ficcao-ao-ladrao/

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destacando-se as que chamavam de pochete a mala de Rocha Loures, bem assim que agora consta do Dicionário Aurélio a nova expressão popular: Roubou pra Geddel. Particularmente gostei de uma postagem, notadamente por fazer da vida ficcional um retrato fiel do mundo real. Nela, a cena da dinheirama espalhada no apartamento demonstrava que os famosos Irmãos Metralha conseguiram, finalmente, roubar a Caixa Federal de Tio Patinhas, entregando o fruto da pilhagem ao arquivilão Patacôncio. Nesta versão abrasileirada dos quadrinhos de Walt Disney, perguntava-se ao internauta-leitor quem era a incorporação humana do personagem vilão Patacôncio, quem estava por trás dos números 176-671, 176-761, 176-176, estampados nas roupas dos Irmãos Metralhas. Embora a alegria criminosa tivesse durado pouco, a ideia postada era a de uma sala cheia de dinheiro em que o dono do butim nela mergulhava em êxtase, inclusive deixando as impressões digitais como prova do crime. A ficção, entretanto, serve de alerta neste momento em que se anuncia a venda de mais de cinquenta estatais, da floresta amazônica, dos aeroportos, do pré-sal, da Eletrobrás e da Casa da Moeda pela irmandade política integrada pelo aprisionado Geddel Vieira Lima. Não está aqui se dizendo que toda a sua turma partilha do mesmo desejo de colecionar dinheiro alheio em apartamentos clandestinos, até porque faço ressalvas ao ditado popular Diga com quem andas e te direi quem és. Não afirmo que é infalível o mandamento religioso previsto no Coríntios 15, 33, quando assim proclama: Não vos enganeis. As más companhias corrompem os bons costumes. Tampouco que são certeiras as flechas do autonomeado paladino Janot, mesmo porque a História do Judiciário atesta um incontável número de denúncias julgadas improcedentes, pois,

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como já advertiu Ruy Barbosa: “A acusação é apenas um infortúnio enquanto não verificada pela prova”. Mas não se pode negar que tudo isso faz pairar uma grande dúvida sobre a razão concreta das anunciadas privatizações e o destino dos recursos obtidos com a venda do patrimônio nacional. Não podemos negar que neste emaranhado de personagens ficcionais que se confundem com personagens da vida real, sabemos que parte das fortunas sugadas no cotidiano da corrupção fora obtida nas privatizações brasileiras, ou, como alertou o jornalista Elio Gaspari em expressão por ele mesmo criada, nas privatarias brasileiras. É o que demonstrou outro jornalista, Amaury Ribeiro Júnior, ganhador de diversos prêmios Esso de jornalismo, em seu imperdível livro A Privataria Tucana. É o que se constata em todos os processos de privatizações ocorridos no Brasil e nos demais países que adotaram a política de cessão do patrimônio nacional aos grandes grupos econômicos internacionais. O planeta ficcional tem livre autorização para escrachar as coisas ácidas do cotidiano, inclusive como forma de alerta aos habitantes do mundo da lua. O problema está quando o mundo real escracha o cotidiano e apenas reagimos como se moradores de um tempo ficcional. E assim, sentados nas poltronas e repassando “revolucionários manifestos” virtuais, vamos fazendo do futuro um mero projeto ficcional, onde acharemos absolutamente normais apartamentos repletos de dinheiro alheio, Irmãos Metralhas ocupando cargos públicos, a Casa da Moeda sendo uma propriedade privada nas mãos de Patacôncio e o Brasil uma nação de adoráveis ladrões. E assim entenderemos, em estado de Graça, o que certa vez alertou o imortal Machado de Assis: “A ocasião faz o roubo, o ladrão já nasce pronto”.

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Síndrome de jabuticaba16 Certa vez, ao conceder uma entrevista a uma emissora nacional, perguntou-me o âncora do programa jornalístico se não era uma “jabuticaba” a tese que eu defendera na tribuna do STF, na qualidade de representante do Movimento de Combate à Corrupção (MCCE). Referia-se ele ao julgamento da ADI 4650, ajuizada pela OAB para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as contribuições de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais. Antes de responder sobre a importância de se impedir o financiamento (investimento) privado das eleições, perguntei a ele a razão do preconceito contra a jabuticaba, uma das especiais frutas nativas da Mata Atlântica. Disse-lhe que eu adorava jabuticaba, mas se ele gostava de peras, morangos, maçãs, pêssegos e outras frutas estrangeiras eu respeitaria. Mas que não concordava com a premissa de que as coisas do Brasil não mereciam ser respeitadas. O grave é que esse desprezo pela jabuticaba (leia-se: coisas do Brasil) tem se espalhado como um mantra impressionante. Escuto-o a todo tempo ou lugar. Até mesmo no onisciente STF a fruta brasileira já constou como elemento depreciativo de um texto constitucional, dizendo-se que deveria ele ser reinterpretado por ser fruto do “pecado original” cometido pelo constituinte tupiniquim. Tenho a impressão de que, caso pudessem, eles receitariam o “jejum de jabuticaba” como caminho ideal para a conquista do nirva16 Congresso Em Foco, 05/07/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/sindrome-de-jabuticaba/

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na brasileiro. Ou, recitando o mantra com outras palavras, diriam eles que o Brasil somente melhoraria se copiasse o modelo trilhado pelo nobre padrão europeu ou pelo “arrojado” sistema democrático estadunidense. Aconselho aos amantes das frutas importadas que leiam o livro: Pilhagem. Quando o Estado de Direito é Ilegal. Nele, o italiano Ugo Mattei, professor de direito internacional nas universidades da Califórnia, de Hastings e de Turim, em coautoria com a estadunidense Laura Nader, professora de antropologia da Universidade da Califórnia, explicam as consequências deste “encantamento” nada inocente. O livro, escrito ainda na era do general George W. Bush, explica o desmonte das políticas públicas, a privatização das riquezas nacionais, a coisificação da pessoa humana, os retrocessos sociais, o uso dos meios de comunicação, o ativismo judicial e, enfim, o “Reinado do Mercado”. Qualquer coincidência com o Brasil não é, portanto, mera coincidência. Eis o que alertam: “Os países periféricos são, assim, intelectualmente humilhados, criando-se as condições psicológicas para a aceitação da hegemonia estrangeira.” “Os subordinados, ou pelo menos parte significativa deles, devem ser convencidos da natureza superior da ordem e da civilização dominante em comparação com a deles. Sem este componente ideológico, a opressão seria um exercício mais dispendioso.” “A ideia da hegemonia revela, por parte do sistema jurídico dominador, de ser “admirado” pela periferia, obtendo, assim, mero consenso junto a nação dominada.”

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“Para conseguirem esse resultado final, uma espécie de paraíso neoliberal em que poderosos agentes de mercado podem transformar todas as pessoas do mundo em consumidores e todo trabalhador não especializado em bem de consumo, os programas de desenvolvimento indicam cinco áreas e imperativos principais de reforma: 1- Permitir que os mercados livres determinem os preços. 2 – Diminuir o controle estatal dos preços. 3 – Transferir os recursos mantidos pelo Estado para o setor privado. 4 – Reduzir o orçamento do Estado ao máximo possível. 5 – Reformar as instituições estatais (tribunais e burocracia) a fim de facilitar o setor privado (boa governança e Estado de Direito).

É evidente que os “adoradores das frutas estrangeiras”, em providencial amnésia argumentativa, não apontam que fora o “modelo europeu de democracia” quem produzira Hitler, Mussolini, Franco, Salazar, Dollfuss, Ceauȿescu e vários sistemas autoritários, genocidas, racistas e separatistas desprezados pela História. Também esquecem que provocou duas grandes guerras mundiais, usufruiu-se do tráfico de pessoas humanas e ainda elege discursos fundados nos mesmos crimes do passado. Não citam, ainda, que a “liberdade democrática estadunidense” organizou, apoiou, ensinou, torturou e lucrou com Pinochet, Saddam Hussein, Stroessner, Fujimori, Idi Amin Dada, Videla, Fulgêncio, Papa Doc, Noriega Castello, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo e tantos outros ditadores. Não lembram que os EUA não aceitam a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, da Corte Interamericana de Direitos Humanos e, mais recentemente, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, substituindo-a pela justiça de Guantánamo, Abu Ghraib e do Pa-

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triot Act. Não relembram, certamente, a lição já antecipada por Rui Barbosa, quando, resumidamente, ensinou que A tirania muda de amantes. Evidentemente não rejeito ou desgosto de outras frutas, pessoas, culturas ou histórias. Gosto também dos sabores delas, alimentando-me, diariamente, dos prazeres, das informações e das coisas que derivam de suas exclusivas características. Até porque os sabores e os saberes são plurais, nenhum melhor ou pior do que o outro, apenas diferentes. Erros e acertos integram todas as páginas escritas no evoluir da humanidade. Eles acompanham todos os povos, todas as raças, todos os espaços do tempo. Mas, confesso, não posso aceitar o argumento de inferioridade expresso na acusação de que as coisas do Brasil são desprezíveis e, em razão disso, elas são piores do que os acontecimentos forasteiros. Na verdade, o que abomino é a Síndrome de Jabuticaba, a doença social em que a vítima nacional aceita e subordina a validade de seu pensamento à aprovação de seu verdugo internacional. Não concordo, portanto, que se reinterprete a Carta de Pero Vaz de Caminha, retirando a jabuticaba do rol das frutas que “em se plantando tudo dá”. Afinal, como alertado pelos professores Ugo Mattei e Laura Nader, o efeito colateral da Síndrome de Jabuticaba é devastador para o Brasil, gostando-se ou não da fruta brasileira. E, com não abro mão da minha jabuticaba, seguirei defendendo-a nas tribunas da vida.

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No controle do fio mágico da vida17 As pesquisas de opinião pública apontam o governante plantonista instalado no Palácio do Planalto como o mais impopular da História do Brasil. E não é sem razão o desapreço ao presidente que inaugurou o processo criminal no STF, agora suspenso em razão da cumplicidade de 263 deputados federais, de cerca de R$ 3,6 bilhões em liberação de emendas parlamentares e com o perdão das eternas e lucrativas dívidas de ruralistas. Afinal, a chamada “Era Temer” expõe, sem despudor ou máscara, a quadra do tempo em que o direito ao trabalho ficou desempregado e sem qualquer proteção, a estação pontual em que o patrimônio nacional foi vendido a preço vil, a linha cronológica em que a máquina estatal não poupou esforços para fortalecer o poder econômico, a ocasião em que a imagem do Brasil foi descascada como banana e o período em que a parte social da Constituição Federal hibernará por vinte anos. Mas a questão mais intrigante decorre de um fenômeno ainda não avaliado pelas pesquisas. Como explicar a dissintonia entre o clamor popular e a quase invisível reação à consolidação da temerosa política imposta pelo rejeitado governante? O que dizer deste surpreendente “silêncio ensurdecedor”? Como explicar a inércia que se espalha em surto contaminante, deixando como sintoma visível a palidez envergonhada das bochechas que se maquiavam de 17 Congresso Em Foco, 13/08/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/no-controle-do-fio-magico-da-vida/

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pudor e amor cívico pelo Brasil? Como entender a repentina rouquidão das ruidosas vozes que vociferavam contra a corrupção? Como compreender a mancha de bolor amarelado grudada em cada amassada panela que agora dormita nos escuros armários da acomodação? Como aceitar a repristinação, sem reação, da velha frase do ministro da Ditadura Jarbas Passarinho: “Às favas todos os escrúpulos de consciência”? E da epidemia paralisante sequer escapam os que estão sendo devorados pela insaciável máquina governista de triturar direitos fundamentais à pessoa humana. Nela também anestesiados os velhos marujos que ousavam cantarolar canções que nos faziam sonhar um dia aportar no paraíso da igualdade, onde todos estariam vivendo livres na relva da solidariedade. A impressão que se tem é a de que todos assinaram um sinistro “pacto de espera para o ano que vem”. Diferentemente do inquebrantável “Contrato Social” proposto pelo suíço Jean-Jacques Rousseau, parece que a cidadania brasileira “concordou”, tacitamente, com suspensão temporal do constitucional “compromisso republicano” até as eleições de outubro de 2018. O problema da filosofia tupiniquim inspirada no show-man Araquém decorre do próprio conteúdo do “esperar o ano que vem”. É que a possiblidade de simplesmente apressar o avançar da vida não se faz através do uso contínuo de um “fio mágico”, em que, puxando-o, cada etapa angustiante da história é pulada para infinitas outras etapas, até que se encontre a ocasião ideal para pousar, como nos advertiu William J. Bennett, em seu imperdível “O Livro das Virtudes”. Tampouco os problemas de uma nação podem ser resolvidos através de um fugaz “click”

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de um controle remoto, em que os dias e os anos saltam para vários futuros, apagando da memória o passado não querido, como já exposto na tela-grande pelo cineasta pelo Frank Coraci. A realidade quando entra em cena não escolhe momentos, personagens, sabores ou gostos segundo as vontades de cada pessoa, grupo, coletividade ou povo. O mundo factível não é construído através de feitiços ou ficções escritas para acalmar corações agoniados e desesperançados com o “hoje”. O mundo histórico sabe que a “sangria não estancada” em tempo hábil pode matar um país, subjugar o seu povo a um senhorio implacável ou postergar o desenvolvimento de ambos. Ele sabe, também, que o “amanhã” depende umbilicalmente dos atos, dos gestos, das vozes, das ações, das manifestações e de todos os meios de resistência praticados no “hoje”. E que não há magia capaz de ressuscitar o tempo que ficou para trás. Para o Brasil que vive o “agora” não se espera mudança significativa ou alteração de consciência na nefasta trajetória da política em curso. Continuar-se-á praticando troca de favores subterrâneos e não republicanos, privatizar-se-á a coisa pública, violar-se-á direitos essenciais, extinguir-se-á universidades e vagas educacionais, atacar-se-á a perspectiva de uma aposentadoria decente e transformar-se-á o social em moeda negocial. Manter-se-á, ainda, a proteção aos banqueiros, aos industriais, aos empregadores, aos ruralistas e, sobretudo, ao capital internacional. E, neste mundo de mesóclises e maldades irreversíveis, perguntar-se-á em 2018 aos que nada fizeram: É este o Brasil que você sonhou quando puxou e fez avançar, inerte, o fio mágico de sua vida?

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O caso dezembrista de Temer18 Tenho no mês de dezembro o lapso temporal mais paradoxal do calendário. E não estou aqui narrando das coisas do horóscopo ou das múltiplas complexidades das pessoas nascidas em sagitário ou capricórnio. Tampouco filosofando sobre o fracassado movimento dezembrista que, no distante 26 de dezembro de 1825, reunindo militares e a alta nobreza russa, queria impedir a posse do futuro czar Nicolau I, conhecido por sua crueldade. Acho-o paradoxal por ser, simultaneamente, o fim de um ciclo, a promessa de recomeço ou a mistura de tudo, assim poetizada por Érico Veríssimo (17/12/1905): “Quando os ventos de mudança sopram, umas pessoas levantam barreiras, outras constroem moinhos de vento”. Dezembro é agitação para tudo se concluir, limpar armários, arrumar a casa e não deixar ponta sobrando para o ano seguinte, mas também o início da calmaria das férias do trabalho, do recesso escolar e da parada do Poder Judiciário. É dinheiro extra adquirido pelo “jabuticaba décimo terceiro”, na mesma proporção em que se aumentam os gastos com os presentes natalinos, os nada ocultos amigos secretos, as viagens de descansos familiares, os impostos marcados para nascer em janeiro, os materiais escolares nada educados nos preços e as dívidas anualmente cobradas pelos credores impacientes. É o penar de final de ano que, como Luiz Gonzaga (13/12/1912), poderia dizer “Só trazia a coragem e a cara, viajando num pau-de-arara, eu penei, mas aqui cheguei”.

18 Congresso Em Foco, 24/12/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/o-ocaso-dezembrista-de-temer/

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Talvez por isso tenha sido o mês escolhido pelo igualitarista Jesus Cristo para nascer ou fazer brilhar o popstar vermelhinho Papai Noel. Mas também as ousadias de Beethoven (17/12/1770), Camille Claudel (08/12/1864), Cândido Portinari (29/12/1903), Carlos Marighella (05/12/191), Cláudio Villas-Bôas (08/12/1916), Diego Rivera (08/12/1886), Dolores Ibárruri (08/12/1895), Errico Malatesta (14/12/1853), Fausto Cardoso (22/12/1864), Florbela Espanca (08/12/1894), George Santayana (16/12/1863), Gustave Flaubert (12/12/1821), Jeanne Derion (31/12/1805), Jim Morrison (08/12/1943), Mao Tsé-Tung (26/12/1893), Miguel Arraes (15/12/1916), Miguel Costa (03/12/1885), Olavo Bilac (16/12/1865), Oscar Niemeyer (15/12/1907), Osho (11/12/1931) e Steve Bantu Biko (18/12/1946). Afinal, o mês de dezembro é tão plural que, observando-o atentamente, diríamos, bem fez Ulysses Guimarães (06/12/1916): “Olha de novo: não existem brancos, não existem amarelos, não existem negros: somos todos arco-íris”. E o que tem o título desta crônica com tudo isso? Devo esclarecer, antes que me lembrem de Noel Rosa (11/12/1910) e perguntem “Quem é você que não sabe o que diz?”. É que o mês de dezembro de 2018 traz como marco final o ocaso do governo plantonista de Michel Temer. Alçado ao poder por um golpe parlamentar, o respeitado constituinte do ontem deixará como legado no hoje a suspensão da própria Constituição Federal por vinte anos (EC 95/2016), a inconstitucional intervenção militar no Rio de Janeiro, a venda do patrimônio nacional ao capital internacional, a tentativa de fazer retornar os navios negreiros (Portaria 1129/2017-MTE) e o maior ataque ao princípio da dignidade da pessoa humana quando, revogando o papel social do trabalho, trans-

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formou a CLT na Consolidação das Lesões Trabalhistas. Uma frase lapidar de Anita Malfati (02/12/1889) representaria este tempo: “Os objetos se acusam só quando saem da sombra, isto é, quando envolvidos na luz”. As páginas dezembristas de 2018 anotarão capítulos escritos pelas tintas da divisão entre os quereres e sonhares dos brasileiros e das brasileiras e os combates entre as mais variadas colorações. Notarão que máscaras civilizatórias caíram no revelar de rostos que expressavam ódios, preconceitos, misoginia, racismo e homofobia, da mesma forma que, em contraposição, registrarão que milhões de faces destemidas exibiram a humanidade refletida em seus corações. Olharemos este tempo e nos lembraremos de Clarice Lispector (10/12/1920): “Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania. Depende de quando e como você me vê passar”. Assim como ocorrera com o czar Nicolau I, o governante brasileiro entrará para a História como o mais impopular de todos os tempos, ainda mais quando, impulsionado pelas panelas e patos verdes-amarelos que diziam odiar a corrupção, envolveu-se em casos policiais que poderão resultar no aprisionamento de grande parte de sua alta cúpula. Não sem razão, portanto, a escolha do ocaso como símbolo do tempo que findará no dia 31 de dezembro de 2018, até porque, como o sol que se esconde diariamente no poente da vida, sabemos todas e todos que a esperança nunca se cansa de renascer. E quando ela ressurgir no horizonte persistente do tempo, como ensinou Câmara Cascudo (30/12/1898), concluiremos que: “O melhor produto do Brasil ainda é o brasileiro”.

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A ABJD e o Poder Judiciário19 A política é a fórmula constitucional utilizada para verbalizar o poder político emanado do povo, direta ou através de seus representantes eleitos (parágrafo único do artigo inicial da Constituição). Não há vazio constitucional quanto à matéria de competência do Poder Executivo e do Poder Legislativo, tampouco quanto à afirmação de que a soberania é exercida diretamente pelo povo (plebiscito, referendo ou lei de iniciativa popular – art. 14, da CF) ou através do sufrágio universal (caput, do mesmo artigo). Entretanto, o Poder Judiciário tem sido o principal protagonista da vida brasileira, invadindo, por isso mesmo, os espaços majoritários dos noticiários, os debates políticos, os embates eleitorais, as aulas intelectualizas, as rodadas discursivas dos eventos sociais, as mensagens das redes sociais e até mesmo das descontraídas “revoluções de mesa de bar”. Das antenas da TV Justiça, repercutidas nas falas de jornalistas convertidos em juristas de plantão, exibem-se debates relevantes para a sobrevivência democrática. Perguntas são lançadas ao ar, quase sempre sem pousar em respostas. Pode o STF auto investir-se no papel de constituinte derivado? Pode a Constituição Federal ser alterada por “mutação substitutiva de emenda constitucional”? As cláusulas pétreas inseridas no texto constitucional como imutáveis podem ser revogadas pelo Poder Judiciário? É 19 Congresso Em Foco, 20/05/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/a-abjd-e-o-poder-judiciario/

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possível ao magistrado mudar o expresso querer do constituinte originário? O princípio da separação de poderes é quebrado quando os integrantes do Poder Judiciário mandam prender ou afastar, liminarmente, os mandatários do Poder Executivo e do Poder Legislativo? O ativismo político é próprio da magistratura? E não são apenas os temas televisados que provocam perguntas instigantes e desafiam respostas urgentes. A onipresença do Poder Judiciário se faz em todo canto e recanto do país, não raro decidindo sobre a execução dos atos municipais, outras definindo o agir estadual. Afinal, as políticas públicas, as agendas eleitorais, a interrupção dos mandatos sufragados nas urnas, as propostas econômicas, as questões sociais, as regras morais, os comportamentos privados e outros infinitos temas, independentemente do mérito, somente são considerados válidos quando sancionados pela caneta judicial. A própria a validade da Constituição Federal está aprisionada ao querer decisório da suprema magistratura, dependente, portanto, de concessão de habeas corpus que garanta o seu livre ir e vir no mundo do direito. Sabe-se que a supressão da competência de um Poder Republicano por outro Poder, qualquer que seja ele, não contribui para o aperfeiçoamento democrático e constitucional de qualquer sistema político. Ainda mais quando todos eles, sem qualquer exceção, exercidos por pessoas humanas, não estão imunes às paixões políticas, às ideias preconcebidas, à cultura adquirida, ao meio em que vive, enfim, à toda espécie de convicção pessoal. Daí a razão de juristas buscarem, para a própria sobrevivência democrática, compreender os limites e os métodos de atuação do

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Poder Vitalício das Togas. Afinal, a hipertrofia de um poder é anomalia que não faz bem à vida republicana, ainda mais quando o poder mais forte é exatamente aquele que não se submete ao sufrágio universal, não sendo, portanto, controlado pelo soberano do sistema democrático. A necessidade de responder aos questionamentos aqui postos, o desejo de defender a democracia, o querer aperfeiçoar o Sistema de Justiça, o apostar na prevalência dos direitos humanos e o lutar para fortalecer uma sociedade comprometida com a inclusão de todos e todas motivaram a inédita ideia de juntar juristas que acreditam em mundo mais justo, livre, fraterno, igualitário e constitucionalizado. Assim, integrantes da advocacia, da defensoria pública, da magistratura, do Ministério Público, bem assim bacharéis em direito, professoras e professores, profissionais e entidades que atuam no Sistema de Justiça resolveram construir consensos, buscar soluções e unificar ações. Desta unidade, depois de dois anos de intensos debates, incontáveis encontros e firmes movimentos em defesa da democracia, fez-se nascer a Associação Brasileira de Juristas para a Democracia – ABJD, com data de fundação política marcada para o dia 26 de maio de 2018, em assembleia matinal a ser realizada na PUC-Rio. Neste dia, juristas de todo o Brasil começarão uma nova jornada, esperançosa, inacabada, ampliando o seu quadro resistente (www.abjd. com.br), espalhando-se cada vez mais. Filiar-se é preciso.

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E pra não dizer que não falei de Lula!20 “Cada dia na cadeia era mais um dia que eu queria lutar por meus direitos”. Devo esclarecer, de logo, que esta frase não fora pronunciada por Frei Caneca, Gandhi, Graciliano, Gramsci, Malatesta, Mandela, Prestes, Tiradentes ou qualquer outro prisioneiro liberto das grades para correr livre no mundo da história. Mas, confesso, que ela ficou gravada e cravada em minha memória e a escuto como mantra reativo, constantemente, quando me deparo com argumentos punitivistas e moralistas que apontam a prisão como solução para todos os males do mundo. A prisão do outro, é claro! Ela chegara para mim de forma quase anônima, como são as vozes dos milhares de presos permanentemente temporários que aguardam, diariamente, serem julgados com a mesma agilidade com que foram aprisionados pelo aparelho estatal. Ou, escrevendo com mais precisão, poderia ter sido proferida por qualquer uma das duzentas e vinte um mil, cinquenta e quatro (221.054) pessoas que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em janeiro de 2017, aguardam que o Poder Judiciário decida se são culpados, inocentes ou vítimas dos fatos alinhados em processo judicial.

20 Congresso Em Foco, 11/04/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/e-pra-nao-dizer-que-nao-falei-de-lula/

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Nesta longa fila, trinta e um mil, seiscentos e dez (31.610) seres humanos esperam que sejam designadas as audiências de competência do Tribunal do Júri, em que poderão exercer o direito de defesa, explicando as razões dos atos cometidos e, em decorrência, postular Justiça. É o que grita a realidade do sistema judicial brasileiro, como a ilustrada, infelizmente, para dois (02) trabalhadores pernambucanos que, como exemplifica o processo nº 003264571.2016.8.17.0001, aguardaram presos, por oito (08) anos, para que fosse marcada a sessão do Tribunal do Júri em que, finalmente, poderiam exercer o constitucional direito de defesa, inclusive para combater os erros da peça acusatória que já produzia danos irremediáveis em suas vidas. Apenas quando tornados provisoriamente livres, por força de decisão da Sexta Turma do STJ, nos autos do HC 379.461, é que, rápida e repentinamente, encontrou-se agenda para a realização do tão solicitado Tribunal do Júri. No mês de dezembro de 2017 foram absolvidos, embora já condenados em definitivo pela impossibilidade de se recuperar o tempo da liberdade confiscada e a dor da humilhação moral imposta. As injustiças estampadas em variadas páginas processuais, o caos carcerário a moer a dignidade das pessoas e os dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, falam que o aprisionamento, antes de formada em definitivo a culpa, não significa a mudança de postura do julgador no que se refere à agilidade no próprio dever de julgar. Preso ou solto, o Poder Judiciário segue absolutamente lento em matéria de operar o trânsito em julgado das decisões judiciais, quer para condenar ou absolver. E, sabemos todos, que cada dia em

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que um inocente é injustamente preso, o conceito de Justiça perde a sua própria essência, até porque, como bem advertiu Voltaire, convertendo-se em regra basilar do Direito: “É melhor correr o risco de salvar um homem culpado do que condenar um inocente”. Daí porque perversa a lógica fundante dos que querem revogar a constitucional presunção da inocência, expressamente prevista no art. 5º, inciso LVII, da Constituição Cidadã, especialmente quando transfere o ônus da morosidade judicial para aqueles que não integram o Poder Judiciário. A insensibilidade dos que se acham “puros e intocáveis”, neste caso, inverte a regra humanista, para agora dizer que o certo é prender todos e todas, pouco importando se inocentes serão aprisionados e definitivamente repelidos pelo moralismo da comunidade em que vivem. E ao transferir para o processado a culpa pela morosidade do processante, atual se torna a mensagem do advogado e ex-presidente dos EUA, Abraham Lincoln, quando assim ensinou: “Hipócrita é o homem que matou os pais e pede clemência alegando ser órfão”. Estes novos cruzados fazem-nos lembrar do triste episódio ocorrido na cidade francesa de Béziers, quando testemunhou o genocídio de quinze mil (15.000) homens, mulheres e crianças, todos vitimados pela intolerância religiosa e o apetite político do rei Felipe, o Belo. O massacre francês se dera durante a cruel Cruzada dos Albigenses, que durou de 1209 a 1229. Sob a inspiração do papa Inocêncio III, os cristãos-católicos resolveram combater os cristãos-cátaros, acusados do crime de rejeição a alguns dos sacramentos e dogmas da Santa Igreja Romana. Durante o cerco, não conseguindo os solda-

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dos distinguir os católicos dos cátaros residentes na cidade vencida, pediram o aconselhamento de Fernando Amalric, representante do papa na Cruzada, que assim respondeu: “Mate-os todos, Deus reconhecerá os seus!” E pra não dizer que não falei de Lula, a frase que inicia esta reflexão também não é de Lula. Ela faz parte do dramático depoimento de Marcos Mariano da Silva, quando, doze anos atrás, autorizou a OAB a divulgar o seu clamor por Justiça, desejando que casos como o seu nunca mais se repetissem. Lutar pela preservação do princípio da inocência é prestar um tributo à sua História, escrita no processo nº 001.1998.042941-3, assim complementada por ele: “Em 1976, a polícia me confundiu com um assassino e prendeu. Ele tinha o nome quase igual ao meu. Fiquei 19 anos presos. Numa rebelião, fiquei cego. Em 1998, numa revisão de penas sem condenação fui solto. Procurei um advogado, entrei com uma ação contra o Estado e garanti meus direitos. Nunca vou conseguir mudar meu passado, mas recuperei minha dignidade”.

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Preces para Themis21 A deusa grega Themis, também chamada de Justitia pelos romanos, era filha de Urano e Gaia, sendo considerada a personificação da Ordem e do Direito divinos, ratificados pelo Costume e pela Lei. No Olimpo, ocupava o destacado cargo de conselheira de todos os deuses, sentava-se ao lado do poderoso Zeus, selava o destino da sociedade, determinava as regras morais, sociais e religiosas e, enfim, julgava a todos com o dom da infalibilidade. Tornou-se, com este currículo, a Deusa da Justiça, ainda mais quando impressionava o seu austero exemplo divino, bem representado no fato de que se apresentava com os olhos vendados, segurando uma balança e uma tábua de leis. E para quem não está familiarizado com o jeito de ser da badalada deusa, esclarece-se que ela não vendava os seus próprios olhos por capricho, marketing religioso ou assumido prazer masoquista. Ao contrário, assim agia por deliberado querer funcional, pois, não enxergando a classe social, o poder econômico, a aparência física ou o aspecto intelectual dos suplicantes, poderia melhor julgar e aplicar a Justiça requerida. As tábuas de leis que acompanham a sua indumentária, significam que todos devem seguir, universalmente, as mesmas regras e os mesmos princípios preestabelecidos, independentemente da condição humana ou divina do julgado. A balança que porta simboliza o equilíbrio que deveria pautar o mundo, observando-se que os deuses, as pessoas e os seus atos têm seus pesos quantificados, igualitariamente, tanto em relação aos seus respectivos erros e acertos, quanto aos prêmios e os castigos. É escrever em outras palavras: não olhando “o quem” 21 Congresso Em Foco, 27/07/2017, http://congressoemfoco. uol.com.br/noticias/preces-para-themis-a-cidadania-se-torna-

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postulava, seria mais justa e sensível para escutar e julgar “o que” se buscava. Assim, não poderia surpreender a constatação de que a deusa Themis tivesse se tornado uma verdadeira popstar entre gregos, troianos, romanos e todos aqueles que acreditavam na divindade dos que habitavam o Olimpo. Ela era invocada por todos aqueles que se sentiam injustiçados, oprimidos ou indefesos diante dos poderosos deuses, das pessoas que se diziam deuses e dos que endeusavam a arbitrariedade. Os seus devotos sabiam que poderiam contar com a sua voz defensiva nas reuniões dos deuses, especialmente quando violados os ordenamentos impositivos inscritos em suas famosas tábuas, desequilibrando a balança da vida. E, segundo consta dos livros sagrados divulgados pelas sacerdotisas de seus templos, ela sempre atendia as súplicas mais justas. Sobrevivendo aos caprichos implacáveis do tempo, assistindo de camarote a derrocada da própria mitologia grega que a revelou para o mundo, o deslumbrante charme de Themis continuou conquistando a atenção de todos os povos do planeta, inclusive os ateus e os que professam o monoteísmo, fundamentalista ou não. Basta constatar que Themis foi presença cativa em vários episódios que deixaram marcas profundas na História, até porque não se pode falar em igualdade, liberdade e fraternidade sem clamar por Justitia. E não se pode esquecer que a sua imagem, desde o início do seu culto, está edificada em vários prédios públicos, escritórios privados de advocacia e museus, além de impressa em incomensuráveis cartazes, convites, papéis timbrados, diplomas, cartões profissionais e milhares de ra-adoradora-da-justica-quando-esta-for-destinada-a-todos/

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peças publicitárias que pregam a prática da equidade, da ética, do direito e da justiça entre todos e para todos. E toda esta imortal popularidade ocorre em razão de Themis ter se adaptado ao mundo contemporâneo na sua caminhada pelo tempo. É que, não mais contando com os deuses do Olimpo para exigir o cumprimento de suas deliberações, adotou novas práticas, abriu incontáveis templos e empossou sacerdotes em vários cantos do planeta. Além da tábua de leis e da sua impenetrável venda, a eterna deusa passou a portar em seu traje uma reluzente espada, símbolo maior da força do Estado e do seu poder de polícia para exigir o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Também passou a compartilhar com os mortais seres humanos a tarefa de inscrever na tábua das leis o ordenamento jurídico que vigoraria em cada país. Da mesma forma, descentralizou para o mesmo grupo de mortais a tarefa de julgar, permitindo que os próprios seres humanos cuidassem das acusações, das defesas e das decisões judicias. A virtude da democratização legislativa e judicial que permitiu a imortalidade de Themis, paradoxalmente, provocou um grave risco para a sobrevivência da própria humanidade. É que os seres humanos não foram aquinhoados com os dons da onisciência, da onipotência e da onipresença. Não podendo saber de tudo que ocorre, não tendo o poder de tudo fazer e sem condições de estar em todos os lugares os seres humanos podem errar em sua avaliação, desconhecer as circunstâncias em que os fatos ocorreram, ignorar as razões dos atos praticados, não sentir o sentimento em debate ou mesmo não compreender por nunca ter vivido a situação. Ademais, os seres humanos não estão isentos dos defeitos que podem viciar os atos decisó-

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rios e judicias, assim como não estão imunes à corrupção, às paixões políticas, às vaidades, às invejas e aos preconceitos sociais. Daí a razão da necessidade de se observar, como antídoto à possibilidade da falha humana, o equilíbrio democrático na representatividade parlamentar e o rígido cumprimento da uma norma processual que impeça o olhar parcial do julgador. O Brasil vive um desses momentos em que a ação estratégica de Themis é questionada como legítima e eficaz. Afinal, as palavras insculpidas na tábua das leis brasileiras refletem o deliberado conteúdo de proteção ao poder econômico, aos defensores da propriedade enquanto valor absoluto e aos nascidos em terras e berços esplêndidos. E este furor atentatório ficou ainda mais encorpado nos dias comandados pelo personagem não-mitológico Temer-Eunício-Maia. O fervor fanático de sua legislação destruidora dos direitos sociais não encontra qualquer paradigma na História do Brasil. E não se parou na transformação da classe trabalhadora em serva eterna não aposentável do Senhor Capital, pretende-se transformar o brasileiro em estrangeiro em sua própria terra natal. Entrega-se a exploração de óleo e gás na camada pré-sal para o capital estrangeiro, vende-se os aeroportos, os lotes de terra, as companhias aéreas e tudo que possa reluzir como ouro. E tudo isso sob suspeito manto batizado por Chico Buarque e Francis Hime como “tenebrosas transações”. Confiscado o caráter de equilíbrio na tábua das leis, restaria a imparcialidade dos seres humanos que receberam a delegação de acusar, defender e julgar os seus semelhantes. Neste campo de atuação Themis teria uma experiência impecável, não permitindo que os julgamentos fossem fundamentados

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segundo critérios de classe social e poder econômico. Mas eis que, repentinamente, das tintas das sentenças judiciais se proíbe o direito de manifestação, a presunção de inocência, o princípio do contraditório, a ampla publicidade dos atos processuais e a igualdade de armas entre a acusação e a defesa. Tudo praticado sob a lógica de que “quem recebe a delegação divina também divino é”, especialmente no que se refere ao dom da infalibilidade, jamais poderia cometer erros graves ou falhas processuais gritantes. O julgamento do ex-presidente Lula reflete a equivocada lógica da sacralidade na delegação implementada por Themis. Inicialmente, quando fora violada a Tábua Constitucional na parte em que refere ao princípio da segurança enquanto direito fundamental, expressamente previsto no caput do art. 5º e no caput do art. 6º. A Tábua brasileira Republicana inverteu a lógica repressiva da investigação, substituindo o conceito de segurança nacional destinada a proteger o regime militar para o de segurança como direito fundamental protetor do cidadão contra o poder de polícia exercido de forma abusiva pelo Estado. Exatamente por isso criou competências específicas para os diversos atores da investigação, indicando um sistema que conjuga autonomia e controle em cada fase apurativa, do inquérito policial até o acatamento da denúncia. O objetivo era impedir que o Estado (polícia, Ministério Público e magistrado), controlasse de forma uniforme todas as fases da apuração criminal, não permitindo a fiscalização dos atos praticados. A chamada Força Tarefa da Lava-Jato misturou todos em um só pacote, não mais se sabendo quem era policial, procurador da República ou magistrado. Os três, agindo como uma única e orquestrada voz, impediram que os freios e os

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contrapesos constitucionais fossem disparados, comprometendo a necessária imparcialidade do que seria depois julgado. Neste campo, como se sabe, tudo era decidido coletivamente, desde o vazamento estratégico de gravações ilegais, passando por coletivas de imprensa sensacionalistas, executando-se conduções coercitivas abusivas, forçando-se prisões para obtenção de liberatórias delações premiadas ou mesmo pelo induzimento como reais de fatos que sequer constavam dos autos. O que realmente importava era a estratégia ter o apoio da opinião publicada para convencer a opinião pública, pouco importando a verdade real ou processual. Era como se estivessem recitando como “grito de guerra” o famoso chavão retirado do célebre livro “Os Três Mosqueteiros”, escrito pelo francês Alexandre Dumas: - Um por todos e todos por um! Não custa lembrar que a acusação, centralizada na “onisciente convicção que dispensa prova”, fez do processo um debate que rendeu holofotes, autógrafos, palestras milionárias, livros autobiográficos ou de biografia autorizada. E neste pacote popular, o próprio julgador fazia do processo uma emocionante novela especial, comunicando no Facebook familiar as cenas dos próximos capítulos, algumas delas anunciadas em concorridas palestras, em viagens internacionais, em audiências parlamentares ou em badaladas entrevistas nas redes televisivas. Tudo sem mencionar a autorização para que fossem produzidos filmes comerciais sobre o próprio processo, quando passariam a ser “vultos históricos” da passarela brasileira. E, sob as luzes dos holofotes, apresentaram uma inovação na milenar indumentária de Themis, agora ela se exibia sorridente, vaidosa e, sobretudo, sem a venda que a impedia de olhar “o quem”.

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E como não esperar outro resultado além da condenação? Como acreditar que a acusação, repentinamente, perderia o apoio do julgador? Como se poderia pensar em julgamento imparcial quando acusador e julgador abandonam os autos para abraçarem, juntos, a escadaria da fama? Como esperar que dissessem que todo processo foi um grave erro, que eram falsos os fundamentos dos livros publicados, que deveriam ser rasgados os autógrafos concedidos e que não mais seriam convidados para palestras, entrevistas e viagens internacionais? Como extrair do acusador e do julgador a sua natureza humana, suas vaidades, paixões políticas ou compreensões ideológicas? As respostas foram dadas em forma de uma sentença inconsistente, não fundamentada nos autos e destinada a desaparecer do currículo de Themis. Se poderia então concluir, que a deusa Themis resolveu abandonar o Brasil nesta quadra do tempo? Algum estudioso do tema talvez chegue à conclusão de que os templos brasileiros trabalham muito, mas os problemas são maiores do que a capacidade organizacional do Estado para resolvê-los. Poderia afirmar, ainda, que a deusa Themis nunca habitou ou construiu templos em terras tupiniquins, também eles vítimas de extermínio. É possível, também, que ele aponte os ferozes inimigos da Justitia como responsáveis diretos pela diária tentativa de se decretar a sua morte definitiva e sem direito à ressureição. Ele dirá, quem sabe, que vândalos atacaram o seu culto, corromperam os sacerdotes, desmoralizam os templos, ameaçaram os devotos e espalharam que ela desistiu da própria santidade. Pode até dizer que ela fora “curada” da venda que a impedia de enxergar “o quem”, tornando-se uma simples mortal que, sem qualquer remorso, julga inaudível “o que” se postula.

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Independentemente da resposta, é necessário dizer que a cidadania brasileira somente se tornará uma das grandes adoradoras da deusa Themis quando a Justitia for efetivamente destinada a todos. Neste dia, certamente para ela rezariam os trabalhadores, os desempregados e os aposentados, suplicando que se torne vitoriosa a compreensão de que nasceram para viver com dignidade, e não apenas considerados custos de produção, estatísticas sociais ou dispêndios orçamentários. Orariam também os camponeses, os excluídos, os abandonados e os que não têm moradia e terra, todos esperançosos de que suas preces seriam ouvidas e, assim, poderiam ser considerados detentores de direitos. Rezariam os pobres, os “pretos” e as prostitutas - os desgastados 3P - para que não mais se tornassem os “compulsórios frequentadores” das delegacias e dos presídios brasileiros. Também por ela clamariam as mulheres, pedindo que não mais sejam vítimas do machismo que mata, violenta e suga qualquer possibilidade de serem tratadas com dignidade, igualdade e respeito. Rezaríamos todos nós, brasileiros e brasileiras que não se cansam de lutar.

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O controle do Judiciário “em cena”22 O debate sobre o ativismo do Poder Judiciário está posto no seio da sociedade. E não apenas no campo da teoria jurídica. Os órgãos e os responsáveis pela efetivação da Justiça são moradores constantes dos lares brasileiros. Eles têm televisão, rádio, Facebook, twitter, mídias sociais e grandes estruturas de comunicação social. As suas ações e decisões são transformadas em manchetes nos noticiários diários, incontáveis como chamadas principais ou capas de revistas. Esta constante exposição aumenta a popularidade dos novos astros televisivos e, agora, anunciados como personagens vivos de futuros projetos cinematográficos. Jornalistas se especializam na linguagem jurídica, sites jurídicos exibem força de notícia e até escritórios de advocacia profissionalizam sua forma de comunicação. Os holofotes, assim, vão se transformando em fontes jurídicas, fundamentos de sentenças que “sentem o clamor das ruas” e acórdãos que rimam com “autógrafos”. Membros do Ministério Público e magistrados se convertem em jornalistas, doutores especializados no “opinamento” público sobre quase tudo, especialmente nos processos em que atuam. Não raro, autos sigilosos são vazados com a finalidade de transformar a opinião publicada em fundamento processual útil a quem os vazou. E nesse ritmo de alucinada publicização, o dever funcional de apenas “falar 22 Congresso Em Foco, 13/07/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/o-controle-do-judiciario-%E2%80%9Cem-cena%E2%80%9D/

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nos autos” vai se tornando obsoleto, pois não gera fama, livros, autógrafos e palestras altamente remuneradas. Goste-se ou não do roteiro, dos autores ou mesmo dos atores, os seus erros e acertos compõem os capítulos mais empolgantes da novela política brasileira. O problema nas cenas dos capítulos exibidos, entretanto, não está na qualidade técnica da produção no talento individual de cada personagem conhecido. A questão está na impossibilidade de abstraírem a condição humana que os caracterizam, pois não estão isentos das paixões políticas, das ideias preconcebidas, da cultura adquirida, do meio em que vivem, enfim de suas convicções pessoais. Embora recrutados via concurso público não estão imunes às virtudes e aos defeitos inerentes à pessoa humana. O Judiciário, como última e irrecorrível voz sobre a vida política e jurídica do país, é importante para a consolidação da Democracia, o que implica reconhecer que o soberano povo deve ser ouvido sobre a forma com exerce os seus muitos poderes, bem assim como recruta os seus integrantes para o seu decisório palco. Algumas medidas já estão sendo debatidas, algumas delas aqui ressaltadas: a) transformar o Supremo Tribunal Federal em Corte Constitucional; b) estabelecer o sistema de mandato para os membros dos tribunais superiores; c) eleição da mesa diretora dos órgãos dirigentes; d) criar a possibilidade de impugnação popular aos indicados; e) ampliar a competência do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, agora para aumentar as suas respectivas composições (com um maior número de representante da sociedade e das entidades representativas dos próprios servidores dos órgãos fiscalizados) e competência (com o poder de demis-

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são); f) estabelecer, nos concursos públicos, critérios que favoreçam a experiência de vida e não apenas a burocrática prática acadêmica; g) coibir os abusos no exercício dos cargos públicos. Tenho, reiteradamente, defendido a Reforma Política como a Mãe de todas as Reformas, pois ela é necessária para que se restabeleça a credibilidade do Executivo e o respeito ao Legislativo. Mas para que não se quebre o elo democrático entre o representado povo e o seu representante em qualquer esfera de Poder, fundamental também se faz incluir na apontada Reforma a democratização do Judiciário, especialmente por não se submeter ao sufrágio universal. Por ser o derradeiro controlador da nação, a compreensão dos limites e dos métodos de atuação dos que administram a Justiça são relevantes para a própria sobrevivência democrática. O Judiciário, quando entrar em nossa casa, via noticiário, novela ou qualquer meio de comunicação, deve nos dar a garantia de que o povo está no controle de sua própria vida e não apenas com o “controle remoto” nas mãos.

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Luzes! Ação! Abram os olhos: a coerência sumiu!23 Nesta semana participei de um animado debate sobre a influência do cinema na formação jurídica dos profissionais do direito. Cada um dos participantes escolhia um filme e explicava a todos como o aplicou em algum caso defendido ou até como inspiração de tese. Não faltaram filmes e exemplos, destacando-se: Doze Homens e uma sentença (1957), Kramer vs. Kramer (1970), O Advogado do Diabo (1977), A testemunha (1985), A firma (1993), Filadélfia (1993), Um sonho de liberdade (1994), O Cliente (1994), O informante (1999), Hurricane – o Furacão (1999), Erin Brockovich: Uma mulher de talento (2000), O Mercador de Veneza (2004) e Terra Fria (2005). Eu ia escolher o imperdível Amistad (1997), quando me lembrei de que já tinha praticado a estratégia utilizada pela advogada Jennifer Park, no filme a Ira dos Anjos (1983). E antes que esperem que eu revele aqui as partes narradas no debate, esclareço que a minha alma de cinéfilo me impede de praticar um spoiler. Mas devo contar a estratégia que fora vencedora, baseado no fantástico filme Tempo de Matar (1996). Incorporando o advogado Jake Tyler Brigance, quando defendia Carl Lee da acusação de homicídio e de lesões corporais graves, em razão de tiros deferidos contra os assassinos e estupradores de sua filha. E também aqui encerram os comentários sobre o filme dirigido por Joel Schumacher. 23 Migalhas, 05/07/2017, http://www.migalhas. c o m . b r/d e P e s o/ 1 6 , M I 2 6 1 4 8 8 ,7 1 0 4 3 - L u z e s + Acao+Abram+os+olhos+a+coerencia+sumiu

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Pois bem! Cuidará esta crônica da narrativa vencedora, como ela fora posta pelo participante do nosso colóquio cinéfilo-jurídico. Pediu-nos ele que fechássemos os nossos olhos e pensássemos em algum órgão público, não importando a esfera ou o tamanho. Pediu, ainda, que imaginássemos como seria a nossa reação jurídica se os fatos narrados fossem verdadeiros e quais medidas judiciais seriam cabíveis. Ainda explicando a necessidade dos olhos cerrados, solicitou a nossa concentração e começou a contar a história aqui transcrita: – Imaginem um órgão público que sempre foi respeitado por sua coerência e zelo com a coisa pública, sendo paradigma para todo o Brasil – instigou o narrador. – Agora pensem que para ele, sem qualquer pré-aviso, um dos seus integrantes propusesse e tivesse aprovado uma resolução extinguindo oitocentos e vinte e cinco (825) cargos efetivos, preenchidos pelo constitucional, impessoal e igualitário concurso público. – Certamente queriam economizar, o que seria coerente – respondeu um dos ouvintes, sem abrir os olhos em sua viagem interpretativa. – Calma, não opinem agora! Ainda fiquemos na imaginação – seguiu, impávido, o narrador. – No mesmo ato, o proponente sugere criar oitocentos (800) cargos comissionados para as mesmas atividades, agora preenchidos pelo livre critério pessoal do gostar, sem observar as cotas para as pessoas com deficiência ou mesmo as recém decididas contas sociais...

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– Aí este órgão não seria sério! – interrompeu outro participante, agora com um argumento jurídico. – Assim a sua premissa inicial estava falsa. – Ainda não acabei todo conteúdo da proposta – ouviu-se o sorriso alto do narrador. – Os valores desses novos cargos e como seriam preenchidos não seriam observados por critérios fixados em lei, mas por normas criadas pelo próprio órgão, sem qualquer controle externo. Agora, ainda sem abrir os olhos, pensem como todos reagiriam. – Eu não deixaria passar nenhum projeto legislativo nesse sentido, pois é inconstitucional – disse o primeiro. – Acho até que nenhum parlamento iria aprovar, mesmo porque não iam querer abrir mão de debater valores e critérios futuros. Eles já foram proibidos de agir assim. Não vão permitir que outros façam. – Eu mobilizaria a sociedade e a entidade sindical deles – complementou outro. – O concurso público é muito importante para a lisura do cargo público, assim como a política de inclusão social pelas cotas. – Eu levaria a questão para a OAB – registraram algumas vozes que pertenciam ao lembrado órgão de classe. – Eu procuraria os promotores e procuradores do Ministério Público local – disseram, coletivamente, a maioria das vozes, em argumentos que se assemelhavam. – Eles têm atuado muito em

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casos como esses. Eles já ingressaram com milhares de ações contra vários governantes municipais, estaduais e federais que tentaram esta manobra ofensiva. Eles têm experiência em ação civil pública e não perdoam a farra com dinheiro público. Eles sempre defenderam os grupos vulneráreis, não deixaram que castas de amigos substituam os que efetivamente merecem ser protegidos. Eu confio na atuação do Ministério Público. Eis que, encerrando o debate, com pausada voz de narrador trailer de filme hollywoodiano, triunfante na escolha do roteiro adaptado, traça o seu grand finale: – Luz! Ação! Abram os olhos! Eu estou falando do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. A coerência sumiu.

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Amigo da Prova ou Amigo da Onça, eis a manchete!24 Eu me propus escrever sobre um tema que, acredito, tem provocado intenso e interminável debate no mundo jurídico e no universo da vida virtual. Queria dissertar especificamente sobre a importância da paridade de armas entre acusação e defesa. Rebelde ao querer do voluntarioso articulista, entretanto, o meu pensamento teimava em pousar na minha infância em Propriá (SE). Recusava-se a escrever sobre o valor jurídico do power point como fundamento acusatório, ou mesmo sobre a imprescindibilidade da prova como requisito de validade da sentença penal. Não queria, sequer, escrever a perigosa transformação do “falar nos autos” em “vazar para os outros”. Não fosse advogado, teria condenado minha própria mente pelo “crime de pensamento disperso”, tão comum nas salas de aula. Concedi, então, um habeas corpus ao meu livre pensar. E ele me conduziu direto a memória propriaense, quando o meu pai chegava a nossa casa, depois do trabalho em Aracaju, portando as revistas O Cruzeiro e Manchete. Logo eu as folheava em busca das páginas que atraiam a minha atenção de pré-adolescente. A primeira, a charge do Amigo da Onça, o irônico, falso, satírico e crítico personagem criado por Péricles de Andrade Maranhão. A segunda, na Manchete, a coluna Criança diz cada uma, criada pelo dramaturgo, médico e escritor Pedro Bloch, em que narrava casos engraçados e 24 CONJUR, 22/06/2017, http://www.conjur.com.br/ 2017-jun-22/cezar-britto-amigo-prova-ou-amigo-onca-eis-manchete

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surpreendentes de crianças, quase sempre enviados pelas mães corujas. Eureka! Disse-me a mente em assumido plágio ao grego Arquimedes. Mostrava-me, de supetão, que não cometera nenhum crime ao lembrar-me da inspiradora Propriá. A mente era inocente do crime que falsamente a acusei. Em verdade, ela queria que eu explicasse o tema sob a ótica de meu sobrinho e afilhado Davi, em versão contada por sua mãe Rosa Helena, no bom e velho estilo Criança diz cada uma. O fato ocorrera quando a minha irmã, mãe de quatro filhos, voltando de uma viagem ao Chile, não encontrou na geladeira um dos ovos de chocolate que presentearia na Páscoa. Imediatamente chamou o filho caçula e personagem-autor na narrativa: – Davi! – gritou Rosa em tom acusador. – Já vou, mãe – disse Davi, defensivamente, correndo ao encontro da voz. –Por que você pegou um dos ovos da geladeira? – seguiu a mãe na sua lógica acusadora. – Não foi eu mãe – replicou, calmamente, o pequeno. – Claro que foi você! – repetiu, braba, a mãe. – Os seus irmãos não fariam isso... – Puxa, mãe! – argumentou, ofendido. – A senhora parece até o Ministério Público! Tem convicção, mas não tem prova. – !!! – calou-se a mãe, advogada, diante do certeiro argumento.

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A reação do Davi acusado diante da golias acusação materna é daquelas instintivas, sem explicação lógica e que brota em nossa mente como verdade absoluta. O filósofo grego Plotino, fundador do neoplatonismo, a descreve como decorrente de um modelo prévio para todas as coisas, razão porque ensinou: “Procurai sempre conjugar o divino que há em vós com o divino que há no universo”. Santo Agostinho confessaria mais tarde que, na verdade, estas ideias decorrem do que recebemos da mente de Deus. Carl Jung a resumiu como arquétipo, uma espécie de “imagem primordial” que se origina de uma constante repetição de uma mesma experiência, durante muitas gerações, guardadas no inconsciente coletivo. De Aracaju a Curitiba, ou em qualquer lugar do Brasil ou do planeta, “até as pedras sabem” que nenhuma pessoa, instituição ou aparelho estatal foram aquinhoados com o “dom da verdade” e o “poder da infalibilidade”. Fincada em nosso inconsciente coletivo, está a certeza já vivenciada de que convicções, moralismos e fundamentalismos são palavras que simbolizam injustiças, intransigências e perseguições. Allegatio et non probatio quasi non allegatio (Alegar e não provar é quase não alegar) é, de fato, um dos arquétipos mais repetidos no avançar da humanidade, pois fruto da luta da cidadania contra o todo poderoso Leviatã. Ele está na base de todo regime democrático, pois serve de controle à tentação absolutista dos que confundem autoridade com autoritarismo. Ele é o coração que mantém vivo e pulsante o próprio processo penal. O Ministério Público é parte, pensa como parte, age como parte e, por ser parte, não pode sentenciar. A ele – e somen-

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te a ele – cabe provar nos autos o que alega, esquecendo as opiniões pessoais, os comentários jornalísticos ou as notícias vazadas das páginas ausentes no processo. E assim também o juiz que, como integrante do aparelho estatal, não pode dispensar a prova produzida nos autos, goste ou não daquele a quem vai julgar. No processo judicial a longa manus do Estado, como já incorporamos no dicionário da vida, “pode muito, mas não pode tudo”. A única manchete admissível é a de que cada um deles – acusador ou julgador – deve ser o Amigo da Prova, jamais o Amigo da Onça.

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Holofotes, autógrafos e a autofagia processual25

Venho registrando em artigos e palestras – anual e repetidamente – que as populares “forças-tarefas” feriam diversas regras constitucionais, especialmente quando integradas por policiais, membros do Ministério Público e magistrados. Esta conformação – segundo penso – viola todo o espírito constitucional protetivo da pessoa humana, especialmente o devido processo legal, o direito de defesa, o contraditório, a igualdade processual e o princípio da segurança, enquanto direitos fundamentais, expressamente previstos no caput do art. 5º e no caput do art. 6º, da Constituição Federal. Exatamente por isso, a CF criou competências específicas para os diversos atores da investigação, indicando um sistema que conjuga autonomia e controle em cada fase apurativa: do inquérito policial, do acatamento da denúncia e do próprio julgamento. O objetivo era impedir que o Estado (polícia, Ministério Público e magistrado), controlasse de forma uniforme todas as fases da apuração criminal, não permitindo a fiscalização dos atos praticados e, com isso, violando o direito de defesa. As revelações publicadas pelos sites The Intercept Brasil e UOL, pela revista Veja e ainda pelo jornalista Reinaldo Aze25 Congresso Em Foco, 23/07/2019, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/holofotes-autografos-e-a-autofagia-processual/

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vedo confirmam o alerta que vários juristas já haviam tornado público. Estas notícias revelam a mistura, em único pacote investigatório-acusatório-julgador, o processo judicial que tramitara na 13ª Vara Federal de Curitiba, tendo como réu o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Comprovou-se que deste pacote processual não se sabia quem era o policial, o membro do Ministério Público ou o magistrado. Todos agiam como se fossem uma única e orquestrada voz, impedindo que os freios e os contrapesos constitucionais fossem disparados, comprometendo a necessária imparcialidade do que seria depois julgado. Parecia que todos recitavam como “grito de guerra” o famoso chavão retirado do livro Os Três Mosqueteiros, escrito pelo francês Alexandre Dumas: - Um por todos e todos por um! Sabe-se agora – por prova e convicção – que o processo fora conduzido coletivamente, desde o vazamento estratégico de gravações ilegais, passando por divulgações sensacionalistas da imprensa, executando-se conduções coercitivas abusivas, forçando-se prisões para obtenção de liberatórias delações premiadas, promovendo a indução para tornar reais fatos que sequer constavam dos autos, com o magistrado indicando provas a serem colhidas pelos acusadores e até mesmo qual seria a melhor testemunha de acusação para determinada inquirição. O que realmente importava era a estratégia de ter o apoio da opinião publicada para convencer a opinião pública, pouco importando a verdade real ou processual. Não custa lembrar que se tornara lugar comum a afirmação de que o famoso processo estava alicerçado na “onisciente convicção que dispensa prova”, fazendo-se da

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demanda judicial um debate que rendia holofotes, autógrafos, palestras milionárias, livros autobiográficos ou de biografia autorizada. E neste pacote popular, alguns personagens – como revelam as mensagens vazadas – faziam dos processos “emocionantes” novelas, comunicavam seus sentimentos e decisões nas redes sociais internas, não raro lucrando em concorridas palestras, viagens internacionais, finais de semana remunerados na companhia de familiares, audiências parlamentares ou badaladas entrevistas nas redes televisivas. Tudo sem mencionar a autorização para que fossem produzidos filmes comerciais sobre o próprio processo, quando passariam a ser “heróis históricos” da passarela brasileira, inclusive deixando-se fotografar emocionados, enquanto comiam pipocas substitutivas da necessária imparcialidade processual. Nestas condições, como não esperar outro resultado além da condenação? Como acreditar que a acusação, repentinamente, perderia o apoio do julgador, ainda mais quando o julgador também comandava a acusação? Como se poderia pensar em julgamento imparcial quando acusador e julgador abandonam os autos para abraçarem, juntos, a escadaria da fama? Como esperar que o processo responsável pela “fama” fosse julgado por eles mesmos como grave erro, que eram falsos os fundamentos dos livros publicados, que deveriam ser rasgados os autógrafos concedidos ou que não mais seriam convidados para palestras, entrevistas e viagens internacionais? Como extrair do acusador e do julgador a sua natureza humana, suas vaidades, paixões políticas ou compreensões ideológicas? As respostas estão sendo reveladas, pouco a pouco, para a sociedade. Sabe-se, agora, que o magistrado desnudou-

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-se da toga, assumiu o seu uniforme ideológico e serve, ministerialmente, ao presidente que se elegeu em razão da condenação do réu que julgara, afastando-o da disputa eleitoral. Na mesma toada, descobriu-se que dois dos acusadores lucravam e pretendiam criar um empreendimento comercial para ampliar os lucros obtidos em razão da “fama”. Em 2012 – antes mesmo de iniciado o processo agora vazado em seu ilícito bastidor – eu já advertia em livro (140 Curtidas), que “Ao elevar o holofote à condição de fonte de direito, não percebeu o magistrado que trouxe escuridão ao processo”. Na mesma edição, registrei que “Quando sentenciar é confundido com autografar nasce o artista aplaudido. E morre o magistrado vocacionado”. Infelizmente para a democracia, as previsões se confirmaram, tornando autofágica a condenação firmada no processo em que os investigadores-acusadores-julgadores, camufladamente, sabiam que estava mortalmente viciado na sua origem.

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Sobre o que falou Lula26

Tive o prazer de ser testemunha ocular da primeira entrevista do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após ter sido condenado ao silêncio por decisão judicial, desde 07 de abril e 2018. Estava ali, na sala improvisada da Superintendência Regional de Polícia Federal do Paraná, na condição de advogado do EL PAÍS e do jornalista Florestan Fernandes Júnior, autores da Reclamação Constitucional 31.965/ PR, que ingressamos no Supremo Tribunal Federal (STF), em 21 de setembro de 2018, para que fosse respeitada a liberdade de imprensa no país e, simultaneamente, a liberdade de pensamento do cidadão que presidira o Brasil entre 1º de janeiro de 2003 a 1º de janeiro de 2011. A entrevista, concedida também à jornalista Mônica Bergamo, do jornal Folha de São Paulo, era aguardada por admiradores e adversários do entrevistado, certamente uma das mais importantes da imprensa brasileira. Mas, antes de escrever sobre a entrevista em si, não posso deixar de registrar que me impressionou o tratamento aplicado ao cidadão de 73 anos, nascido no sertão pernambucano e que, inimagináveis anos depois, se tornou o primeiro retirante nordestino a presidir o Brasil. Confesso que, nos meus 34 anos de advocacia militante, não havia testemunhado um aprisionado ser tratado com tanta rigidez, insensibilidade e constrangimento. Da chegada até a saída do pe26 El País, 06/05/2019, https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/02/opinion/1556821960_083029.html

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queno e cercado birô em que sentara —sempre escoltado por policiais armados— não fora permitido ao entrevistado qualquer interação com as pessoas que se encontravam na sala, desde um abraço amigo ou mesmo simples e educado aperto de mão. Nada, além do distanciamento compulsório. A cena de isolamento testemunhada pelo Brasil quando da presença de Lula no sepultamento de seu neto Arthur —guardadas as devidas proporções— era também repetida na ambiência interna da superintendência curitibana. Deu-me a impressão de que tratavam o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva como uma espécie de criminoso de altíssima periculosidade. O que acentuava a contradição da própria autoridade policial, pois no dia anterior, não fosse o firme posicionamento do ministro Ricardo Lewandowski, manobrara para encher a sala de entrevista com jornalistas por ele próprio escolhido, desrespeitando a decisão judicial e o direito constitucional de recusa do próprio entrevistado. Ultrapassada esta fase, as câmaras passaram a registrar, depois, o que muitas outras fingiam não saber: que Lula — ainda com condenação não transitada em julgado e preso antes da formação definitiva da culpa— era o único brasileiro censurado previamente por decisão judicial, pelos próprios órgãos de imprensa, pelos contumazes defensores da liberdade de imprensa e até mesmo pelas associações que sempre repelem com veemência qualquer ataque a esta mesma e fundamental liberdade. Não era crível acreditar que a um único brasileiro, isolado fisicamente em uma sala da Superintendência da Polícia Federal de Curitiba, não se aplicava a Constituição Federal e todas as decisões judiciais que contavam.

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Afinal, como destacado em grandes manchetes no recente episódio envolvendo o site O Antagonista e a revista Crusoé, a liberdade de imprensa é direito universal, fundamental para a preservação do Estado Democrático de Direito. Direito que, inclusive, já havia sido concedido a pessoas condenadas em decisões transitadas em julgado, alguns em presídios de segurança máxima, como atestam os diários programas de puro sensacionalismo policial e até mesmo as grandes empresas de comunicação em seus horários tidos como comercialmente nobres. Direito já exercido por Fernandinho Beira Mar, Marcola, o chamado Maníaco do Parque, Bruno do Flamengo, Guilherme de Pádua, Suzane Richthofen, Farah Jorge Farah, Hosmany Ramos, Alexandre Nardoni, Anna Carolina Jatobá, dentre tantos outros entrevistados, perigosos ou não. Assim, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ingressou, no dia 26 de abril de 2019, na pequena sala instalada na Superintendência Regional de Polícia Federal do Paraná, não apenas se quebrou o isolamento físico a ele imposto, inclusive no seu ato rebelde de cumprimentar os jornalistas que iriam exercer o seu trabalho por aproximada duas horas de entrevistas. Quando o entrevistado começou a falar diante das câmaras previamente instaladas, quedava-se parte da Bastilha que o fazia ser o mais desigual dos brasileiros. Naquele momento, não mais era ele o único cidadão, aprisionado ou não, judicialmente amordaçado e previamente impedido de exercer o constitucional direito de exprimir o seu pensamento. O silêncio compulsório imposto ao brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva estava rompido, reconhecendo-o —mesmo com injustificável retardo— como cidadão

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comum, detentor dos mesmos direitos e de idênticos deveres dos demais. E quando Luiz Inácio começou a falar, compreendeu-se a razão do silêncio imposto ao ex-presidente Lula, do aparato policial que o isolava do mundo, da cumplicidade dos “notórios defensores da liberdade de imprensa” e do tratamento marginalizado. É que a sua maior arma nunca foi o conhecido instrumento bélico que mata corpos e assassina, diariamente, os excluídos de direitos e desprovidos de bens materiais. A sua arma sempre foi a palavra —goste-se ou não do seu conteúdo. A palavra que não pode ser negada a quem quer que seja, mesmo quando dela se diverge, pois assim exige a democracia brasileira. Afinal, como um dia falou Frei Caneca: Que liberdade é essa, se a língua é escrava?

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Quem é essa OAB?27

O presidente da República, Jair Bolsonaro, lançou ao público a pergunta título deste artigo, acrescentando mais uma: Qual a intenção da OAB? No seu estilo autoritário e descompromissado com a verdade, carregou nas indagações o pacote de maldades que tem caracterizado o seu mandato, desta vez em perigoso flerte com o crime de responsabilidade. É que, querendo intimidar o atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a própria Casa da Advocacia, o governante de plantão confessou saber do cometimento de graves crimes contra a humanidade – tortura, assassinato e desaparecimento forçado de Fernando Santa Cruz, pai do mandatário da OAB – sem adotar qualquer medida para apuração dos delitos e permitir que uma família possa enterrar com dignidade o ente querido. A virulência presidencial fez-me lembrar que a História narra o episódio em que o imperador Napoleão Bonaparte mandou fechar o Barreau de Paris – a maior organização da advocacia francesa – e cortar a língua dos advogados que lhe faziam oposição. Trouxe-me à memória o autoritarismo sanguinário de Adolf Hitler quando proibiu os judeus de serem assistidos por advogados e, com isso, impediu que fosse denunciado o holocausto que iniciava o seu trajeto criminoso nos campos de concentração de Auschiwitz, Treblinka, Sobibó. Nesta mesma linha estava o fascista italiano 27 Congresso Em Foco, 15/08/2019, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/quem-e-essa-oab/

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Benito Mussolini, quando, em uma só noite, mandou incendiar quarenta escritórios de advocacia. E não se pode esquecer, também, do ditador brasileiro João Figueiredo, quando desabafou que queria alugar o Maracanã para prender os advogados que desafiavam da ditadura civil-militar e o seu patrimonialista plano econômico. Ao tempo da ditadura, a advocacia enfrentou a truculência política do Estado, indo aos porões em busca de contato com os seus clientes, vítimas da ilegalidade. Vários advogados e advogadas sofreram agressões, ameaças, danos à integridade física, tendo a OAB, inclusive, sofrido um atentado à bomba pelo terrorismo estatal que resultara no assassinato de Lyda Monteiro. Foi assim quando enfrentou a ditadura civil/militar, quando exigiu o fim das torturas, o retorno do habeas corpus, a aprovação da Lei da Anistia, a convocação da Assembleia Nacional Constituinte, o fim das medidas provisórias, pregou a Reforma Política, defendeu o patrimônio nacional, ingressou com o pedido de impeachment que corretamente afastou o ex-presidente Fernando Collor de Mello, denunciou as escandalosas transações que resultaram nas vendas das estatais brasileiras, impediu o financiamento empresarial das campanhas eleitorais, aliou-se à causa dos povos nativos, dos negros, das mulheres e dos mais diversos grupos de vulneráveis. Estes e outros apontamentos históricos registram a razão do ódio dos ditadores e dos que confundem autoridade com autoritarismo para com a advocacia e com seus governados e simbolizam as respostas para as perguntas introdutórias deste artigo. Sabem que a advocacia e a OAB têm o compromisso ético de zelar pelo direito de defesa, fruto da evolução da sociedade, direito humano por exce-

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lência e antídoto natural ao Estado policialesco. Sabem que a intenção da OAB é defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático de Direito, os direitos humanos, a justiça social, e pugnar pela boa aplicação das leis, pela rápida administração da justiça e pelo aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas. Sabem que a intenção da Constituição Federal foi a de colocar, por meio da advocacia, o cidadão comum no Poder Judiciário. Sabem e exatamente por isso odeiam. Hoje, um dos grandes desafios da democracia moderna é fazer com que a Justiça seja aplicada segundo as regras democráticas estabelecidas na própria Constituição Federal, já incorporadas ao patrimônio da humanidade há várias gerações. Direito significa a legitimidade do poder estatal, a vinculação do poder do Estado ao direito, o reconhecimento e proteção da pessoa humana, como também a vinculação dos poderes às leis vigentes e a existência de controle dos atos e decisões por um Judiciário independente. Afinal, o Brasil rejeitou a máxima medieval que afirmava que “Diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar”. Tampouco aceitou a ideia do processo secreto e inacessível ao acusado, como previsto no Édito de Nantes de 1598 e nas Ordenações de 1670. Sobral Pinto exigia coragem da advocacia, doa a quem doer, desagrade a quem desagradar. É o que já também advertiu Rui Barbosa: “O advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresentando perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres”.

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Exatamente por isso, todos os presidentes nacionais que integraram a OAB assumiram a defesa judicial e política do atual bastonário da Casa da Cidadania e da Liberdade, ingressando com pedido de explicação preparatória de ação penal em face do chefe do Poder Executivo. Em gesto unânime e inédito, os antigos presidentes da OAB assinaram a interpelação contra Jair Bolsonaro apresentada no STF pedindo que explicasse o que sabia sobre a morte de Fernando Santa Cruz, pai do atual presidente da Ordem. Os 12 ex-presidentes reafirmaram que essa é a instituição que sempre acreditaram, intenção que ainda persiste no resistente coração da advocacia brasileira.

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O dia-a-dia da classe trabalhadora28 A recente aprovação da Lei Ordinária Trabalhista, também conhecida como “reforma Trabalhista” ou “Consolidação das Lesões Trabalhistas”, gerou diversos convites para participação em conferências, palestras, debates, comentários ou mesmo elaboração de artigos sobre o tema. E esta demanda reflexiva aumentou nos últimos dias, especialmente em razão do mês de maio iniciar o seu cronômetro temporal com o Dia Internacional do Trabalhador. Em todas as solicitações, quase sem exceção, uma indagação se tornou lugar comum. Buscavam saber minha opinião sobre o caráter comemorativo do 1º de Maio, especificamente se o trabalhador tinha algum motivo para festejar neste dia a ele dedicado. Mas não se pode falar de um assunto sem conhecer a sua origem. A data não fora escolhida ao acaso, tampouco simboliza mais um feriado a inflacionar o calendário oficial. Ela simboliza o desfecho trágico de um movimento grevista que reuniu mais de cento e oitenta mil operários na cidade de Chicago, no distante ano de 1886. Naquela longínqua época, os trabalhadores reivindicavam a implantação da jornada de trabalho de oito horas. Como resposta, o governo estadunidense promoveu uma irracional repressão, que resultou em seis trabalhadores mortos e cinquenta feridos. Irracionalidade semelhante àquele que motivara a criação do Dia Internacional da Mulher. 28 Congresso Em Foco, 01/05/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/o-dia-a-dia-da-classe-trabalhadora/

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Naqueles distantes tempos, a brutal exploração da classe trabalhadora se mostrava natural e derivada da absurda lógica de que “determinadas pessoas e grupos econômicos foram aquinhoados com o direito de ter a propriedade das riquezas e das pessoas que as produzem”. A lembrança anual do apogeu da insensatez fora a razão de ser da criação do Dia Internacional do Trabalhador, pois, a irracionalidade do crime praticado contra a classe trabalhadora, caso publicamente discutida, evitaria que fosse repetida. Não poderia existir, portanto, melhor data para simbolizar a necessidade da sociedade refletir sobre a importância do trabalho e da perspectiva de sobrevivência com dignidade daqueles que trabalham na construção de um mundo mais justo e igualitário. Mas também fora o tempo do surgimento das ideias socialistas como contraponto ao fortalecimento do poder econômico pela Revolução Industrial. Deste enfrentamento nascera o movimento sindical, geralmente tratado como caso de polícia, e a resistência que conquistava direitos trabalhistas. A própria Igreja Católica, com a Encíclica Rerum Novarum, assinada 15 de maio de 1891 pelo Papa Leão XIII, tivera papel importante para condensar a política de redução da exploração do capital, estimulando a concessão de direitos sociais e trabalhistas. Lutas, concessões, avanços e recuos que resultaram, no dia 1º de maio de 1943, por decreto de Getúlio Vargas, a antiga Consolidação das Leis do Trabalho. O 1º de maio de 2018, setenta e cinco anos após o anúncio da CLT, transformou o Dia de Reflexão e Luta da classe trabalhadora em Dia de Repetição e Exploração. A coisificação da pessoa humana, a servidão, o trabalho análogo

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ao de escravo e a terceirização, séculos depois, voltaram a ser regulados como direitos naturais de “determinadas pessoas e grupos econômicos que se julgam aquinhoados do direito de ter a propriedade das riquezas e das pessoas que as produzem”. Descobre-se, outra vez, que os ideólogos pato-amarelos que traduziam a palavra “trabalho” como sinônimo de “castigo” não caíram em desgraça. Ao contrário, são agora louvados como modernistas, mesmo quando sequer disfarçam nas notas de rodapés de suas propostas que apenas pretendem retornar as relações de trabalho à quadra da história conhecida como Idade Moderna. A Lei Ordinária Trabalhista símbolo do governo plantonista, violando direitos fundamentais e sociais inscritos na Constituição Federal, desandou ao permitir a agressão, a exploração e a apropriação do trabalho enquanto bem da vida. O retrocesso na política de concessão de direitos e o não reconhecimento do trabalho como fator de dignidade e distribuição de riquezas retornaram ao dia-a-dia da classe trabalhadora brasileira. Cento e trinta e dois anos após o 1º de maio de 1886, a classe trabalhadora brasileira volta a reivindicar condições e jornadas de trabalho dignas, pautas que pareciam superadas no avançar da humanidade.

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Contrato de trabalho X contrato de capital29 Ainda tenho nos programas de rádio uma importante fonte de conhecimento e diversão. Antes que me acusem de ser um confesso dinossauro, esclareço que gosto de mesclar os diversos saberes quando se trata de colher o conhecimento, não desprezando quaisquer dos meios de comunicação ou mesmo o uso dos sentidos. Aliás, miscigenar as diversas formas de informação é, certamente, o melhor jeito de relativizar o efeito destrutivo causado pelo volúvel, facilmente manipulável e fértil mundo virtual. Não sou daqueles que entendem que a verdade pode ser obtida através do “caminho único”. E foi exatamente a mensagem transmitida por um destes “colunistas que são detentores da verdade, sabem de tudo e opinam sobre todas as coisas” que confirmou em mim a necessidade da mistura, também pondo em dúvida a sinceridade da radiodifusão como fonte autentica de saber. É que ele, verborrágica e preconceituosamente, externava o seu rancor para com o Tribunal Superior do Trabalho, em razão deste órgão judicante ter convocado sessão pública para análise de um pacote de decisões sumuladas quando da anterior Consolidação das Lesões Trabalhistas. Vociferava o colunista que achava um absurdo o Poder Judiciário admitir a possibilidade de não aplicação de regras prejudiciais aos trabalhadores aos contratos de trabalho assinados segundo as normas da legislação anterior. 29 Congresso Em Foco 18/02/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/contrato-de-trabalho-x-contrato-de-capital/

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O jornalista praticava, ali, um verdadeiro atentado ao direito enquanto princípio fundamental e regulador democrático entre as pessoas e como estas se relacionam como aparelho estatal. Atentava ele contra uma regra extremamente importante para a preservação da segurança jurídica das pessoas, conquista da humanidade e elo comum em todos os ramos do direito. É que uma lei nova não pode atingir qualquer contrato assinado até a data da vigência do novo marco regulatório, sob pena de ferir aos constitucionais direitos adquiridos e ato jurídico perfeito (inciso XXXVI, art. 5º, CF). E não apenas o colunista feria de morte a Constituição Federal, demonstrava desconhecera imortal e atualíssima Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, quando aponta a impossibilidade de revogação de ato já consumado segundo a lei vigente ao tempo em se efetuou (§ 1º, art. 6º, do Decreto-Lei 4.6574/42) e que já poderia ser exercido pelo empregado (§ 2º, art. 6º, do Decreto-Lei 4.6574/42). O grave não estava no direito de qualquer jornalista ou outra pessoa externar um pensamento, ainda que juridicamente equivocado. Eu sou daqueles que defende a liberdade de expressão enquanto direito democrático de primeira grandeza, ainda que o interlocutor discorde do meu livre pensar. O problema estava na sensação de que o jornalista tinha a clara consciência da falsidade de sua argumentação e, assim, verberava com ar professoral o seu preconceito explícito contra a classe trabalhadora, que, segundo ele, não era merecedora de qualquer proteção jurídica. Certamente defenderia a segurança jurídica dos contratos, caso eles fossem de natureza civil, comercial, financeira, empresarial ou de proteção ao capital privado. Mas, infelizmente, o jornalista não está sozinho na descaracterização do Direito ao Trabalho como princípio funda-

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mental inerente à dignidade da pessoa humana. Integra ele o velho grupo que compreende o ato de trabalhar como tarefa dedicada, histórica e sucessivamente, aos escravos, aos servos, aos trabalhadores e trabalhadoras que integram uma sociedade excludente e fundada na “certeza da supremacia de alguns nobres segmentos sociais e na força econômica de abastados senhores das riquezas e dos meios de comunicação”. Ainda pregam a “coisificação do trabalho” onde a palavra de ordem é “o empregador pagar menos para ganhar mais”. Daí o porquê de se atacar o “contrato de trabalho” enquanto ato jurídico perfeito, firmado na segurança jurídica do direito adquirido às cláusulas benéficas pactuadas segundo a legislação então vigente. Também aí a razão de se atacar a proteção constitucional ao trabalhador, da recente aprovação da já apelidada Consolidação das Lesões Trabalhistas e da destruição de uma Justiça Trabalhista especializada no conflito capital-trabalho. Aliás, o que já se tentara em novembro de 1998, quando o então presidente Fernando Henrique Cardoso, assinando mais um termo de ajuste fiscal, fez constar o seu compromisso de implementar a política neoliberal, fundada na necessidade de flexibilizar a legislação trabalhista e extinguir, paulatinamente, a Justiçado Trabalho. O que se pretende, através da opinião daquele porta-voz matinal, é que o direito brasileiro admita substituir o “contrato de trabalho” pelo “contrato de capital”. Neste, as cláusulas de proteção ao “direito de ter a propriedade das pessoas” prevalecerão sobre o “direito de ser pessoa humana”. E se o Capital vale mais do que o Trabalho enquanto cláusula contratual, não poderia a Justiça do Trabalho atrever-se a aplicar as regras constitucionais aos

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contratos vigentes quando da legislação anterior. Afinal, segundo eles, seria mais coerente que aprendêssemos a chamar este ramo do sistema judicial como Justiça do Capital e Tribunal Superior do Capital.

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O Parlamento e o direito à reciprocidade30 A nova legislação trabalhista brasileira, agora rebatizada de Consolidação das Lesões Trabalhistas, tornou-se uma das mais perversas do mundo, pois está centrada na compreensão de que o trabalho é “mero” custo de produção, uma “coisa” a ser apropriada pelo menor preço. A Reforma Trabalhista, por seu conteúdo demolidor de direitos, não fora aprovada por obra e graça do Divino Espírito Santo, tampouco nascera da vontade altruísta da classe trabalhadora de sacrificar-se em sofrimento temporal na busca da “salvação eterna”. Ela nada mais é do que a cria nefasta do grupo patrimonialista que manda na política brasileira desde tempos imemoriais. Ou, em termos mais precisos e atuais, a legislação trabalhista é o produto final da “relação amorosa” do Congresso Nacional com o poder econômico financiador da imensa maioria dos parlamentares. Não é preciso grande esforço reflexivo para se chegar a esta triste e óbvia compreensão, basta que se observe a composição do atual parlamento, como tem votado cada parlamentar e o seu relacionamento íntimo com as propostas impostas pelo governo representante dos patos amarelos, dos ruralistas desbotados e do capital multicolor.

30 Congresso em Foco, 14/11/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/o-parlamento-e-o-direito-a-reciprocidade/

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Crueldade, compromisso ou caridade – conforme o credo abraçado – é do Congresso Nacional a competência de cada parlamentar federal fazer nascer um direito para o trabalhador ou determinar a morte de outro considerado mais injusto. É dele a iniciativa ou aprovação final de todo projeto de lei destinado a criar, regulamentar ou disciplinar o direito ao trabalho digno, assumindo a política que André Rebouças definiu como “Aviltar e minimizar o salário é reescravizar”, ou o conceito de trabalho como honra em que, se ela, no dizer de Gonzaguinha, “Se morre, se mata, não dá pra ser feliz”. Mas não custa lembrar que fora este mesmo parlamento quem suspendera a parte social da Constituição Federal por vinte anos, bem assim que fora o governante a ele vinculado quem editara a judicialmente suspensa portaria ministerial que reabrira os portos brasileiros para que neles atracassem os navios negreiros e toda espécie de mentalidade escravista. Foram os parlamentares quem estabeleceram, por exemplo, a permissão de se demitir o trabalhador por justa causa quando comentem crimes, faltam ao trabalho, maculam a imagem da empresa ou desrespeitam o superior hierárquico. Também autorizaram a demissão imotivada, a quitação anual de direitos não pagos, a possibilidade de mulheres grávidas trabalharem em ambientes insalubres, a supressão de direitos fixados em lei, o não pagamento de horas extras trabalhadas, a quebra da isonomia, dentre outras lesões. Enfim, tem sido o parlamento um dos protagonistas da política de retrocesso de direitos sociais, fazendo certeira, infelizmente, a constatação de José Lins do Rego: “O pior não é morrer de fome num deserto: é não ter o que comer na Terra Prometida”.

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O Congresso Nacional apenas “esqueceu” de aplicar estas regras aos próprios parlamentares, praticando o vergonhoso lema do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Neste sentido, paradoxalmente, manteve intacto o “contrato de trabalho”, sem afastamento ou demissão por justa causa, do senador que o STF apontou como praticante de falta grave, no mesmo compasso em que se recusou suspender o contrato do dirigente presidencial acusado de chefe de quadrilha e obstrução à Justiça. Continua-se pagando os vencimentos de parlamentares afastados, além de horas extras, diárias, liberações de emenda milionárias e mimos indenizatórios de esdrúxulas definições. E permanecem sem abrir processo disciplinar contra o “empregado do público” que, sem remorso, se apropria do patrimônio público. Quebram, assim, a regra simples tão bem sintetizada por Salvador Allende: “Não basta que todos sejam iguais perante a lei. É preciso que a lei seja igual perante todos”. Talvez seja esta a grande oportunidade para se estabelecer uma nova regra de direito do trabalho ou direito administrativo, condição essencial para a tramitação de qualquer projeto de lei: direito à reciprocidade de tratamento. Destinar ao parlamentar o mesmo tratamento por ele fornecido ao cidadão, aos trabalhadores e aos servidores públicos. Aplicar no parlamento o que Gandhi chamou de o melhor argumento: o exemplo. Ou, na ausência, aprovar a proposta de Capistrano de Abreu para assim inscrever: “Constituição Brasileira, artigo único: todo brasileiro fica obrigado a ter vergonha na cara”.

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O admirável mundo que não queremos31 A nossa geração, influenciada pela visão futurista do cineasta Stanley Kubrick, acreditava que o ano de 2001 significaria o triunfo da raça humana, o início da conquista do infinito. Acreditávamos que o ser humano, sem as costumeiras pressões terráqueas, não mais teria tempo para as guerras ou para as disputas por um poder sempre sedento de mais poder. Predizíamos que a Era da Opressão não encontraria moradia no futuro, pois o Universo era grande demais para justificar as picuinhas e as futricas que impediam uma justa distribuição das riquezas, das terras e da felicidade. A corrida espacial seria o novo e definitivo sonho dourado de conquista, como comparavam animadamente os entusiasmados amantes dos faroestes italiano-estadunidenses, também em moda nas animadas rodas de proveitosas divagações. Lembrei-me, confesso, dessa viagem geracional inacabada quando li o PL 6.442/2016, de autoria do deputado Nilson Leitão (PSDB-MT), o mesmo parlamentar escalado para relatar a CPI da Funai/Incra. Exatamente aquela comissão que criminalizou a reforma agrária e retroagiu a questão indígena ao tempo da morte autorizada em “caça santa”, entendido como revogado por alvará de 1755, subscrito pelo rei José I, “o Reformador”, quando o Brasil ainda era colônia do Reino de Portugal e Algarves. Acredita-se, tal era 31 Congresso Em Foco, 15/06/2017, http://m.congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/o-admiravel-mundo-que-nao-queremos/

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a sanha punitiva da CPI, que o soberano português só não foi incluído no extenso rol de indiciados pelo “grave crime de compreender o índio como pessoa humana portadora de direitos inalienáveis”, por ter morrido em 24 de fevereiro de 1777 e já ter havido a independência brasileira em 07 de setembro de 1822. É que constava do alvará assinado pelo rei que flertava com a modernidade pombalina a premissa de que “os índios são iguais a seus descendentes e colonos”, não podendo ser escravizados. Exatamente aí a minha torre de observação. A base de pouso da teoria do parlamentar mato-grossense fora cimentada, tanto na CPI quanto no projeto de lei, na ideia de que os índios e os trabalhadores rurais não são pessoas humanas iguais aos demais brasileiros, não podendo embarcar na mesma nave que transporta o sistema jurídico de proteção à cidadania. Este pensamento medieval decola livre já na exposição de motivos que abastece o projeto legislativo proposto, especialmente quando anuncia que o manual de voo da atual legislação rural fora elaborado “com fundamento nos conhecimentos adquiridos no meio urbano, desprezando usos e costumes e, de forma geral, a cultura do campo”. E o deputado não mediu esforços para pilotar o seu intento. Pousando o olhar sobre os cento e dezesseis (116) artigos do PL proposto pelo deputado que pretende “louvar a cultura do campo”, logo se descobre o combustível utilizado para movimentar a máquina legislativa reguladora dos usos e costumes praticados na ambiência rural. Diz-se, ali, que é usual prender o campesinato ao querer absolutista do senhorio, dentre eles o de exigir jornada de trabalho desgastante, sol a sol, domingo a domingo.

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Autoriza-se que o mínimo salário legal seja transformado em ínfima migalha remuneratória, sinônimo do que sobrará após os descontos de moradia e alimentação. Admite-se hipótese em que não é obrigatório fornecimento de um local decente para o exercício do trabalho, inclusive água potável e banheiro. Em resumo, apenas enxerguei no projeto – certamente turvado pelo meu urbano vício civilizatório – o velho costume de garantir privilégios aos barões, aos coronéis, aos latifundiários, aos fazendeiros e a todos aqueles que acham ser “moderno” voltar ao tempo da “coisificação da pessoa humana”, onde o grande “barato” é comprar barato o trabalho alheio. Definitivamente não era essa a Odisseia que, comandada por Dave Bowman, partira no ontem para pousar no ano de 2017. O embarque simultâneo do relatório da CPI Funai/Incra e o do PL 6.442/2016 na mesma nave parlamentar soa como símbolo do fracasso da jornada espacial projetada no passado infantil, pois nos faz lembrar de que o sistema de servidão não foi destruído pelos canhões da história, como um dia acreditou Napoleão Bonaparte. Mostra-nos que permanecem vencedores aqueles que entendem ser a pessoa humana parte integrante da gleba destinada ao senhorio, assim como são os rios, os solos, as plantações, os frutos, as máquinas e os animais. E que vencidos continuam aqueles que seguem impossibilitados de acumular a sobra de sua própria produção, permanentemente empobrecidos e impedidos de buscar um pedaço de chão para cultivar a felicidade. Mas se é verdade que a esperança é a última a embarcar na aeronave da vida, devemos por ela teimar lutar. Ainda há tempo para interromper a contagem regressiva do insensível foguete, até porque não aprovados os planos de voo

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pela Câmara dos Deputados. É nossa missão impedir que a nossa tomjobiana Terra Brasilis seja abduzida do mapa, substituída pela Londres imaginada pelo escritor Aldous Huxley. Afinal, o Brasil não pode ser o mundo real que reproduz O Admirável Mundo Novo em que as pessoas são divididas em castas, criadas em laboratórios ou condicionadas no avançar do tempo, como alfas, betas, gamas, deltas e ipsilons. Índios e trabalhadores rurais não são letras do alfabeto grego, máquinas, utensílios ou experimentos sociais. Eles são pessoas, pessoas como cada um de nós!

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E o senador assassinou o barão32 Calma! Não vou lançar uma nova versão do divertido jogo “Detetive”. Não estou, portanto, plagiando o advogado inglês Anthony Pratt que, em 1949, criou o jogo de tabuleiro por onde desfilavam os suspeitíssimos Sr. Marinho, Prof. Black e Cel. Mostarda, acompanhados das imperdíveis Dona Violeta, Srta. Rosa e Dona Branca. Não estou afirmando que um ferraço é mais eficiente como instrumento mortífero do que o castiçal, cano, chave inglesa, corda, revólver ou faca. Tampouco que o Senado tem uma ambiência propícia para que crimes sejam ali praticados, notadamente em seus gabinetes, salas de reunião, chapelaria, plenário, biblioteca, restaurante, comissões ou sala de cafezinho. Esclareco, assim, que este artigo não tem como finalidade refletir sobre o jogo da Waddingtons, mesmo porque criado para inocente e coletivo entretenimento. E mesmo que o título possa assim insinuar, não discutirá qualquer morte havida no Senado, como a do senador José Kairala (PSD-AC), vitimado pelo disparo que brotara da ira do senador Arnon de Mello (PDC-AL), na sessão parlamentar de 04 de dezembro de 1963. Até mesmo a saga do filósofo-político francês Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu, não será aqui narrada, ainda mais quando o iluminista que abalou o absolutismo da Idade Moderna e serviu de farol para a Revolução Francesa, morreu de febre no distante 10 de fevereiro de 1755. 32 Revista Carta Capital, 06/06/2017.

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O assassinato em que se interroga no título é de outra monta, especificamente o delito anunciado na sala da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, no dia 30 de maio de 2017, quando da leitura do relatório da chamada Reforma Trabalhista (PLC 38/2017). O ato preparatório do crime apalavrado foi descrito por seu próprio autor, o senador Ricardo Ferraço, quando apontou graves lesões à classe trabalhadora no projeto originário da Câmara dos Deputados, dentre elas o trabalho de gestante e lactante em ambiente insalubre; os serviços extraordinários da mulher; a possibilidade de acordo individual para jornada 12x36; as questões referentes ao trabalho intermitente; a representação de empregados e a negociação do intervalo intrajornada. O crime que revelou querer praticar, confessando-o, é o de lesa-república, tipificado na proposta do Congresso de renunciar à sua função constitucional de legislar (arts. 48 e 59, CF), transferindo esta missão ao Executivo que, em prévio exame de corpus delicti, patrocina a própria lesão. A inédita proposta de renúncia ao dever de legislar fere cláusula pétrea da Constituição Federal (art. 60, § 4º, III), causando grave ferimento ao princípio da separação dos poderes, imodificável até por emenda constitucional. Ao apontar que determinados temas do PCL 38/2017 continham ilegalidades ou injustiças, sabendo-se bicameral o parlamento brasileiro (art. 44, CF), deveria rejeitar o projeto com arquivamento (art. 65, caput, CF) ou devolvê-lo para que a Câmara dos Deputados exerça o seu direito de correção ou ratificação da proposta originária. Nunca encaminhar para sanção presidencial o projeto de lei que confessou ser merecedor de rejeição ou, mais grave, pedindo o próprio parlamento que seja ele vetado ou corrigido via medida provisória.

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O senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES), naquele fatídico dia, ao ferir de morte o princípio da separação dos poderes, disparou contra Montesquieu. E ao atingir o criador do princípio da separação dos poderes, o senador brasileiro recolocou o célebre “Do Espírito das Leis”, outra vez, no índice dos livros proibidos – o Index Librorum Prohibitorum. Retirando de circulação o espírito que ilumina o poder de legislar do Congresso Nacional, na mesma tentativa, atingiu-se o coração republicano da Constituição Federal. É bem verdade que o plenário do Senado ainda pode rejeitar a proposta parlamentar em que o Congresso se autolesiona, arquivando ou devolvendo para a Câmara dos Deputados a proposta que fará a legislação laboral receber a alcunha de Consolidação das Lesões Trabalhistas. Ou mesmo poderá o senador Ricardo Ferraço externar o arrependimento eficaz, desistindo, voluntariamente, de matar o espírito de Montesquieu, sendo absolvido pela tentativa de eliminar a Constituição Federal. O que se espera dos senadores brasileiros é que também sejam detetives encarregados da prevenção de crimes constitucionais, afinal, como ensinou o iluminista francês: “Uma coisa não é justa porque é lei, mas deve ser lei porque é justa”.

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A “modernização” da legislação trabalhista é o renascimento da Idade Moderna (1453-1789)33 Modernizar se tornou a palavra da moda, aquela em que todos se arvoram na condição de defensor, apóstolo ou praticante. Certamente por “desapego ao passado” ou simples marketing político, não mais se usa o vocábulo mudança, pois ele se confunde com o termo oposição, ambos conhecidos nos debates, propagandas e comícios eleitorais. A sedução substitutiva vocabular é justificada, assim, pelo simples fato de que a expressão modernização está intimamente vinculada à essência evolutiva da própria humanidade, a motivação que a conduziu para fora das cavernas e descobrir o mundo. Reconheço que quem não está afeito às coisas da política, ou mesmo ao uso da gramática, fica confuso diante dos exemplos contraditórios apontados como sinônimo de modernização, especialmente quando o grito retumbante que a alardeia brota da boca da elite que sempre usufruiu o que agora acusa de velho e desbotado pelo tempo. Nesse caso, então, vale a pena ser mais precavido, pois a nova expressão pode ter como significado fazer com que o combatido passado se torne o presente recauchutado. É o que também se conhece como mudança involutiva, aquela em que 33 Congresso Em Foco, 01/06/2017, https:// c o n g r e s s o e m f o c o . u o l . c o m . b r/o p i n i a o/c o l u nas/a-%E2%80%9Cmodernizacao%E2%80%9D-da-legislacao-trabalhista-e-o-renascimento-da-idade-moderna-1453-1789/

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se regride às condições críticas do ontem, ressuscitando crises ou teses já superadas no avançar da história, várias delas quedadas na Bastilha de 1789. A proposta de reforma trabalhista que tramita no Senado Federal é o exemplo pronto e acabado da modernização como significado de mudança involutiva. Ou, em outras palavras, o renascimento da Idade Moderna (1453-1789). Ela não pretende modernizar o Direito brasileiro, aproximando-o do Direito Social europeu ou do sistema protetivo japonês. Não pretende revogar o nativo poder patronal de demitir o seu empregado, retirando-lhe, em consequência, o seu único mecanismo de sobrevivência. Tampouco busca estabelecer regra que coíba a lucrativa política de desrespeito à legislação trabalhista, notadamente o fim da prescrição que traga direitos não pagos e a proibição de acordos judiciais que reduzem as parcas verbas restantes. Não! A malsinada reforma trabalhista retroage ao tempo da coisificação da pessoa humana, denunciado na Revolução Francesa, praticado na Revolução Industrial do século 18, condenado na Encíclica Rerum Novarumde 15 de maio de 1891 e combatido nas barricadas e revoluções do século 19 e início do século 20. Ela revoga as conquistas da classe trabalhadora, fazendo página rasgada da história o dia 8 de março de 1857, quando 126 tecelãs de Nova York foram assassinadas porque reivindicavam melhores condições de trabalho. Também joga na lixeira do tempo o 1º de maio de 1886, quando na cidade de Chicago a repressão policial resultou na morte de seis trabalhadores e incontáveis feridos. E no mesmo saco do esquecimento, os assassinatos de bravos brasileiros que defenderam o trabalho digno, como o sapateiro Antônio Martinez, em julho de 1917, e o tecelão Constante Castelani, em maio de 1919.

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Apenas para exemplificar o desejo de retorno à Idade Moderna, se faz necessário apontar, em sequência alfabética e sem maiores comentários, os primores neomodernistas: a) extinção da finalidade social do contrato laboral, fazendo valer a “autonomia da vontade patronal” na celebração e interpretação da relação trabalhista; b) restrição do conceito de grupo econômico como responsável pelo ressarcimento da lesão trabalhista; c) possibilidade de a negociação coletiva revogar ou reduzir direitos trabalhistas assegurados em lei; d) ampliação dos casos de terceirização, desobrigando a observância do princípio da isonomia entre os empregados de ambas empresas; e) eliminação das horas in itinere, não mais integrando o deslocamento no conceito protetivo do contrato de trabalho; f) restrição das horas extras para após 36a hora semanal em regime parcial, permitindo a sua compensação e o banco de horas individual; g) eliminação do intervalo de 15 minutos para as mulheres empregadas; h) eliminação do intervalo mínimo de uma hora para descanso e refeição; i) regulamentação do teletrabalho com direitos inferiores aos demais empregados e ausência

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de pagamento por horas extras; j) permissão de fracionamento de férias; k) tabelamento dos danos morais em valores irrelevantes e em parâmetros em que a moral dos pobres vale menos do que as dos ricos, no velho estilo das Ordenações Filipinas; l) permissão do trabalho de gestantes em atividades insalubres, salvo com atestado; m) admissão da fraude do empregado maquiado de prestador de serviços autônomos; n) criação do trabalho intermitente, também conhecido como “trabalhador de cabide”; o) limitação da responsabilidade patronal em caso de sucessão; p) descaracterização de diversas verbas de natureza salarial, não as incorporando mais ao contrato de trabalho; q) limitação da possiblidade de equiparação salarial, substituindo localidade por empresa, além de acabar com a promoção alternada de mérito e antiguidade; r) relativização do princípio da inalterabilidade contratual lesiva, eliminando a incorporação de gratificação por tempo de serviço; s) revogação da obrigatoriedade de assistência do sindicato na rescisão, deixando à mercê daquele que o demite o empregado que ainda precisa das verbas rescisórias para sobreviver ao desemprego anunciado;

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t) fim da necessidade de negociação coletiva para demissão em massa; u) autorização da rescisão por mútuo consentimento; v) possibilidade de arbitragem para determinados empregados; w) permissão de representação do trabalhador por empresa, sem participação de sindicato; x) determinação do fim da contribuição sindical obrigatória; y) fim da obrigatoriedade de o Ministério do Trabalho atuar no estudo da regularidade dos planos de carreira; z) criação da quitação anual de todos os direitos, pagos ou não, sob a lógica, no país dos desempregados, do “quitar ou ser demitido”.

O esgotamento da ordem alfabética, entretanto, não implica no esgotamento das lesões trabalhistas. Seguem outras pérolas: a) eliminação da constitucional ultratividade da norma coletiva; b) responsabilização do empregado por dano processual; c) ameaça ao empregado com possiblidade de se tornar devedor, mesmo quando vitorioso em alguns dos seus pedidos, desde que sucumbente noutros;

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d) restrição do alcance de súmulas do TST; e) estabelecimento de prescrição intercorrente; f) modificação do ônus da prova, transferindo para o empregado novas responsabilidades probatórias; g) obrigação de liquidação prévia da ação trabalhista, determinando a prévia contratação de uma perícia contábil; h) limitação dos efeitos de revelia em direitos indisponíveis e impedimento de ajuizamento de nova demanda antes de quitação de custas; i) retirada do protesto judicial como instrumento hábil à interrupção da prescrição; j) admissão de prescrição total dos direitos lesionados; k) estabelecimento da prescrição quinquenal para os trabalhadores e trabalhadoras rurais; l) autorização de homologação de acordo extrajudicial pelo Judiciário, sem a plena garantia do direito de defesa; m) eliminação da execução de ofício pelo juiz; n) utilização do pior índice de atualização dos créditos trabalhistas (TR); o) relativização do instituto da Justiça gratuita para os empregados, inclusive para fins de pagamento de honorários periciais e advocatícios;

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p) eliminação da viabilidade jurídica da acumulação de pedidos; q) permissão para que os créditos trabalhistas de empregados fixados em outros processos sejam penhorados para garantir pagamentos de honorários; r) restrição do número de entidades que necessitam garantir o juízo para fins de defesa; s) exigência de transcrição de ED, de acórdão e até das notas de rodapé para se admitir recursos de revista; t) inauguração da segregatória transcendência, permitindo inclusive que a decisão judicial a respeito seja escassamente fundamentada; u) término da uniformização de jurisprudência em TRT; v) possibilidade de decisões monocráticas irrecorríveis em sede de agravo de instrumento; w) eliminação da exigência de depósito recursal, substituindo-o por fiança bancária ou seguro; x) inclusão do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, mais restrito do que o novo Código de Processo Civil (CPC); y) aceitação da arbitragem e dos planos de demissão voluntária ou incentivada (PDVs e PDIs) como institutos de quitação de direitos; z) aniquilamento das bases fundantes da Justiça do Trabalho.

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Não sendo as letras do alfabeto latino, ainda que duplamente repetidas, suficientes para apontar todas as violações propostas, encerro por aqui os apontamentos. Não antes sem deixar de concluir que “modernizar tudo e todos” – o novo grito retumbante da elite brasileira – não passa de mera propaganda nascida, financiada e defendida por aqueles que compreendem o Direito do Trabalho como inimigo a ser vencido, pois empecilho ao lucro fácil e não distributivo da riqueza entre todos aqueles que a produzem. Afinal, a mudança involutiva proposta na reforma trabalhista tem o sabor da perda de direitos historicamente adquiridos e o gosto amargo da supressão do conceito de trabalho como fator de dignidade da pessoa humana. O projeto que cria a nova Consolidação das Lesões Trabalhistas faz-nos lembrar que a coisificação da pessoa humana, séculos depois, ainda encontra moradia no gélido coração do capitalismo brasileiro. Os neomodernistas do século 21, assumidamente, querem o renascimento da Idade Moderna.

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A utopia e a Justiça do Trabalho34 Aguardava, pacientemente, o início da minha audiência na 18ª Vara da Justiça do Trabalho de Brasília, quando, de supetão, escutei uma voz que brotava dos microfones plantados nos corredores do prédio judicial. Era o serventuário da vara convocando a “Utopia” para comparecer à sala de audiência. Cumpria ele a sua função de apregoar as partes, avisando-as do início da sessão de julgamento. Curioso, fiquei no aguardo. Final, pensei eu, como entraria a “Utopia” na Justiça do Trabalho? Estaria em frangalhos após a transformação da CLT em Consolidação das Lesões Trabalhistas? Estaria deprimida após o Supremo Tribunal Federal ter terceirizado o Tribunal Superior do Trabalho e liberado a classe trabalhadora para ser apropriada, como “coisa”, pela ganância do Mercado? Estaria disposta a propor algum acordo judicial ou se defender do engano corporificado em uma injusta ação trabalhista? Estaria receosa em ser extinta pelo novo governante de plantão e sua turma privatista? Conservaria, ainda, a esperança do Constituinte de 1988, quando projetou um Brasil mais inclusivo, justo e que tinha no trabalho um fator de dignidade humana? Continuaria altiva e ativa a nos ensinar de que não devemos desistir de lutar por um Poder Judiciário protetivo, plural e inclusivo? 34 Congresso em Foco, 29/11/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/a-utopia-e-a-justica-do-trabalho/

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Nunca saberei! É que a “Utopia” não entrou na sala de audiência, tampouco apresentou qualquer justificativa para a sua ausência. A “Utopia”, desatendendo ao chamado judicial, confessara que desistira da Justiça do Trabalho. E a consequência de sua inércia restou em ato imediatamente praticado pelo magistrado. Não sei se tão frustrado quanto eu, ou já acostumado com atos semelhantes, o juiz aplicou à fugidia “Utopia” a pena de revelia. Logo depois descobri que aquela “Utopia” não passava de uma empresa terceirizada, uma fugitiva contumaz da própria Justiça do Trabalho. A não utópica empresa era uma das infinitas outras nominações criadas para, diariamente, transformar em apropriação ilícita a riqueza produzida com o sangue e o suor da classe trabalhadora. A sua ausência, no entanto, significava que mais um trabalhador ficaria sem receber as verbas rescisórias legalmente devidas, tão necessárias diante da crise econômica, do desemprego galopante e da impossibilidade de se adiar a fome. Aquele trabalhador será transformado em mera estatística da vergonhosa inadimplência patronal que habita os arquivos zumbis da Justiça do Trabalho, trágica e ironicamente, utilizada pelos próprios inadimplentes que pregam a morte da própria Justiça do Trabalho. O grave é saber que a “Utopia” e suas irmãs seguem pregando a ilusória tese de que a gênese da questão está no “pecado original de nascer trabalhador ou trabalhadora no Brasil”, pois se recusam a compreender os “modernos e supremos tempos”. Escrevendo em outras palavras, tempos

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em que: os que não pagam os direitos trabalhistas também não querem ser obrigados a pagá-los. Consola-me saber que a “Utopia” ausente naquela fatídica audiência não é a minha Utopia. E muito menos a Utopia que ainda resiste nos corações da classe trabalhadora, da advocacia militante, da magistratura consciente da sua função, do Ministério Público do Trabalho vigilante e de todos e todas que acreditam. A Utopia que acredito segue firme na busca da Justiça negada aos trabalhadores da (des)Utopia revel. Até porque, como bem ensinou Eduardo Galeano: Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.

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Como nossos pais35 Eu fui convidado, via WhatsApp, para participar de evento promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rio de Janeiro, OAB/RJ, tendo como tema o impacto do avanço tecnológico e o uso da robótica no mundo do trabalho. Aceitei o convite, não antes de tirar minhas “dúvidas” pelo mesmo meio de comunicação virtual, inclusive enviando para os organizadores o print da minha agenda também virtual. Era preciso sincronizar o meu tempo com o dos demais palestrantes. Dias depois, o celular me notificava do card do evento, pedindo que o compartilhasse com os meus contatos reservados e nas redes sociais em que participo. Cumpri a missão via um “tocar dos dedos”. Ainda virtualmente, testei um app pré-instalado no celular que prometia uma transcrição simultânea da fala a ser gravada. E, para minha surpresa, parte considerável do que seria a minha reflexão se transformara em texto escrito. Texto que, imediatamente, enviei via wi-fi para o computador da sala, que “adora trabalhar nas nuvens”. A narrativa introdutória indica que o mundo virtual integrou-se, imperceptível ou não, ao cotidiano do mundo do trabalho, agilizando as comunicações, facilitando as pesquisas e diminuindo o tempo para a elaboração de um artigo. Esta visão inicial permitiria ao intérprete, de logo, concluir que o avanço tecnológico é imprescindível, inexorável e inerente ao processo histórico. Afinal, como propagandeado, 35 Congresso em Foco, 02/07/2019, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/como-nossos-pais/

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no preciso mundo tecnológico as doenças serão curadas através da inteligência artificial, com os dados pessoais dos pacientes colhidos, repassados e diagnósticos para os robôs-médicos via smartpfones. Alexa, Bia, Bina, Han, Philip, Sophia, Victor, Walter e outros computadores mais íntimos encontrarão a solução para cada um dos enigmas mais complexos da vida diária, fazendo obsoletos os livros, as universidades e os infindáveis debates interpessoais para a obtenção da buscada pesquisa. Neste “admirável mundo novo” – utilizando-se a nomenclatura em que Aldous Huxley narra a distopia futurística que imaginou – a vida será mais confortável nas casas digitais, que calcularão a temperatura, a sonoridade, a luminosidade e todos os mimos domésticos que possam garantir o conforto ambiental para os moradores. Até mesmo os alimentos, adquiridos em porções previamente preparadas com rigores nutricionais, serão apresentados como vencedores genéticos das pragas causadoras da fome. As distâncias serão encurtadas em tempo real, não raro através de meios de locomoção que observarão a proteção ao meio ambiente. A paz social será finalmente alcançada, com as rápidas e eficazes prisões de criminosos, identificados em aparelhos faciais ou através de dados automaticamente colhidos das redes sociais pelos robôs-policiais. Aliás, os benefícios decorrentes dos avanços sociais já são sentidos e multiplicados na velocidade da luz, com as redes sociais aproximando pessoas, conhecidas ou não, pelo critério da afinidade e interesses comum. Louvam-se que os trabalhos de riscos não mais são destinados às pessoas humanas, deixando as tarefas mais comprometedoras da vida aos robôs. Tudo isso compartilhado, acompanhado,

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acessado e executado, individual e democraticamente, por bilhões de computadores portáteis que também servem para telefonar. E sem falar ainda, que se poderia acrescer os melhoramentos provocados no meio ambiente, poupando-o da destruição de milhares de árvores que, convertidas em papéis, lotariam arquivos-mortos, aterros não-sanitários, rios, mares e a já poluída ambiência pública. É como se fosse válida a profecia musical cantada por Belchior, quando, diante da polêmica entre o velho e novo, vaticinou: “Mas é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem”. Um olhar mais atento ao exemplo apresentado na parte introdutória deste texto revelaria, entretanto, o desaparecimento de pessoas, instituições e instrumentos coletivos incorporados ao conceito de essencialidade no mesmo avançar da sociedade. Todos quedados, invisíveis, ao “novo que sempre vem”. Telefonistas, empresas de telefonia, datilógrafos, secretárias, estagiários, carteiros, ECT, marqueteiros, agências de propaganda e eletricitários se fizeram desnecessários nos rápidos toques tecnológicos preparatórios deste artigo. E, por serem invisíveis, sem qualquer sentimento de dor ou culpa, mesmo sendo óbvio que quanto mais a tecnologia avança mais desaparece ou é relegado ao obscurantismo o trabalho por ela tornado obsoleto ou inimigo. Não é novidade que os maquinários do campo aprofundaram o êxodo rural e os robôs industriais geraram desempregados e desalentados em proporções geométricas, vários deles sem qualquer perspectiva inclusiva de habitar no mundo da boa aventurança tecnológica. No mesmo ritmo estão ficando desatualizados e condenados ao desaparecimento os bancários, os agentes de seguro, os taxistas, os hotéis, os restaurantes e comerciantes que não estão vinculados aos

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serviços de entrega virtuais e milhões de outras profissões e incontáveis empreendimentos. A advocacia e os juízes já estão sendo trocados pela inteligência artificial, assim como já começou o processo de extinção de cargos como os de taquígrafos, oficiais de justiça e escreventes. Também não é segredo que as profissões e empreendimentos extintos não estão sendo substituídos por novas fórmulas profissionais mais adaptadas ao tempo tecnológico. É que o número de pessoas contratadas pelas novas tecnologias é infinitamente inferior ao número de pessoas que serão descartadas como “inaproveitáveis pelo mercado”. O terrível efeito colateral dos “novos tempos”, paradoxalmente, é o de não se encontrar uma solução inteligente, socialmente aceitável e economicamente digna para a “velha massa de pessoas” excluída dos benefícios propagandeados pela Era Digital. O que se afirma é que os excluídos são os verdadeiros culpados da própria exclusão, pois, ao não se prepararem adequadamente para o “tempo nascente”, não merecem um lugar ao sol. É preciso ficar alerta aos sinais, fatos e constatações de que as máquinas e os avanços tecnológicos continuam, única e exclusivamente à disposição do direito de ter. A “nova regulação do trabalho” proposta pela Quarta Revolução Industrial para os “trabalhadores sobreviventes”, conhecida como “uberização do trabalho”, retoma e amplia a exploração originária da primeira Revolução Industrial, afastando todo o sistema protetivo conquistado e posto nos avançar do tempo. A “coisificação” do trabalho segue presente na compreensão de um mundo centrado na lógica da proteção do ter e na cumulação de poder e de riquezas materiais. Não choca à sociedade dominante a simples consta-

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tação de que os “modernos trabalhadores uberizados” têm jornadas de trabalho imensamente superiores à histórica e conquistada oito horas diárias, que os riscos e os instrumentos de trabalho são dos próprios “urberizados”, que não controlam ou sabem como são arrecadados ou distribuídos os lucros do trabalho por eles produzidos e, igualmente grave, que podem ser demitidos por um simples comando virtual, sem qualquer motivação ou indenização. Ao contrário, a sociedade exige mais exploração, fiscalizando e punindo os “urberizados” com avaliações e pontuações, não raro cobrando a pressa que sabe mortal para os motorizados. Acredito, assim, que a questão mais adequada para analisar o tema não guarda relação direta sobre a importância inexorável de qualquer avanço tecnológicos na consolidação do processo histórico. A tecnologia foi, é e sempre será fundamental, imprescindível até... O que se faz relevante é saber quem é o seu proprietário, quem nela investe, a quem se destina e com que finalidade é utilizada. Quem eram os donos das caravelas? Quem investiu no vapor e na eletricidade? A que se destina as armas bélicas? Qual a finalidade real dos computadores? Ao compreendermos que a quase totalidade da tecnologia é patenteada, propriedade privada do seu investidor, destinada a poucos e utilizada para o fortalecimento dos que se julgam no direito de ter a propriedade das coisas, da natureza e das pessoas, encontraremos uma luz no túnel das respostas. A humanidade já apontou caminhos que trilham por lógicas diversas, apostou na pessoa humana com razão de ser da política, falou a língua da solidariedade e pregou que somente através da ação se pode coibir a exploração. Somente a visão humanista do avanço tecnológico é que

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poderá alterar o seu uso excludente do poder econômico, político e social. Este desafio é mais importante do que o duelo entre o velho e o novo. Até porque, como também esclareceu Belchior no refrão seguinte da genial canção já mencionada, a humanidade não pode concluir, outra vez, que “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo, tudo, tudo o que fizemos, nós ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos, ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.

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Os imigrantes e a hipocrisia europeia36 A xenofobia nunca fora forasteira em solo europeu. Ela sempre esteve presente nas guerras, nos holocaustos, nos genocídios e toda a espécie de crime praticado em defesa da superioridade racial, da pureza religiosa, da infalibilidade ideológica ou do simples desejo de conquista. Discursos fascistas, nazistas, racistas, segregacionistas e autoritários ganham adeptos em ritmos assustadores. Eles ganham corpos, votos e cores nos sentimentos externados nas campanhas e urnas eleitorais, como se observou nas últimas eleições na Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Holanda, Hungria, Itália e Polônia. No Reino Unido, eles fundamentaram o Brexit, comprometendo a política de um mundo livre de fronteiras. E quem são estes imigrantes que causam tanto horror, ódio e repulsa aos europeus? Por que fogem de suas terras, largam suas famílias, abandonam os seus bens e apagam as histórias que escreveram em suas terras de origem? Qual o motivo de se aventurarem em frágeis e lotadas embarcações, sabendo da morte possível e muitas vezes, inevitável? O que eles buscam no “rico solo civilizado”? Não ficam angustiados por se saberem não queridos? Qual a razão de serem deixados à míngua, mesmo quando fugidos da morte certa pelas bombas europeias/estadunidenses, assassinados por terroristas ou massacrados pela insensibilidade 36 Congresso Em Foco, 25/04/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/os-imigrantes-e-a-hipocrisia-europeia/

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de governantes protegidos pelos palácios construídos com as riquezas amealhadas em guerras e confiscos? É preciso lembrar, de logo, que o relacionamento dos europeus com os africanos por exemplo, não é de passado bem recente. Não custa registrar, escolhendo-se palavras mais reais, que a violência imposta pelos europeus aos nascidos na África é de tempo secular. Ela decorre desde o achamento do continente africano pelas caravelas europeias, quando se consolidou, em escala inimaginável, a criminosa prática da escravidão, do estupro, do genocídio e da transferência compulsória de milhões de acorrentados seres humanos para terras desconhecidas e de impossível retorno. Ainda significou a destruição de estruturas sociais consolidadas, o deliberado roubo das riquezas naturais e o sequestro de qualquer perspectiva de uma sobrevivência digna. Como se não bastasse a exploração criminosa e predatória por séculos, em tempos mais “modernos” o saque ao continente africano ganhou formas mais explícitas através do que a história registrou como “A Partilha de África”, ocorrida a partir da Conferência de Berlim de 1885. Naquele espaço do tempo, também conhecido como a “Corrida a África” ou a “Disputa pela África”, os países europeus saíram do “imperialismo informal”, em que exerciam o controle através da influência militar e da dominação econômica, para uma pilhagem mais direta. Sem disfarce ou qualquer resquício de humanismo, dividiram entre si o território africano. E não levaram em consideração, sequer, as diferenças étnicas, históricas e culturais existentes no continente africano. Repentinamente, sem qualquer aviso prévio, famílias, grupos étnicos, histórias e territórios africanos passaram a

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pertencer a algum império europeu. E não era uma lista pequena, a exemplo da seguinte repartição: Inglaterra (Egito, Sudão Anglo-Egípcio, Nigéria, Costa do Ouro, Serra Leoa, Uganda, Gâmbia, África Oriental Britânica, Somália Britânica, Rodésia do Norte, Niassalândia, Rodésia do Sul, Bechuanalândia, Transvaal, Suazilândia, Orange, União da África do Sul e Basutolândia); França (Marrocos, Argélia, Mauritânia, Sudão Francês, Níger, Senegal, Guiné, Costa do Marfim, Alto Volta, Daomé, Chade, Gabão, Tunísia e Madagascar); Alemanha (Camarões, África Oriental Alemã, África do Sudeste Alemã e Togo); Bélgica (Congo Belga); Espanha (Marrocos Espanhol, Rio de Ouro e Rio Muni); Itália (Líbia, Eritreia e Somália Italiana); e Portugal (Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde, Angola e Moçambique). Esta perversa divisão entre nações e povos irmãos, empobrecidos pela histórica e ininterrupta pilhagem, está na base das diversas guerras civis e disputas territoriais, sempre “controladas” pelo poderio bélico de cada império europeu e do parceiro EUA. E elas se tornaram acentuadas nos dias atuais, quando, a pretexto de defender a população civil, destruiu-se o Iraque, a Tunísia, a Líbia e, por último, a Síria. Nestes países, as “humanitárias armas de assassinato em massa” completaram a perversidade vivenciada em terras africanas e asiáticas, arrasando vidas, quedando instituições e explodindo estruturas vitais à sobrevivência de comunidades inteiras. A África e o Oriente Médio segue, assim, morrendo à míngua, desencantados, sem conseguir seduzir os belos olhos estadunidenses/europeus que sempre lhes sugaram a beleza. Estes são os refugiados e imigrantes que são recusados em terras europeias, humilhados em discursos e ações,

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abandonados na travessia incerta do cemitério marítimo e desprezados pelos destruidores de suas terras natais. Eles não perceberam, salvo quando pisaram no solo europeu, que, para os governantes e parte da população, as mortes afegãs, sírias, iraquianas, palestinas e milhões de outras não têm rostos, donos ou digitais, pois são consideradas apenas estatísticas nos jornais diários ocidentais. Na verdade, eles revelam a hipocrisia dos bombardeadores que professam o paraíso terreno para todos, desde que nascidos em solos europeus ou estadunidenses. Assistimos diante dos nossos olhos a um holocausto todo dia, resta saber por quanto tempo permaneceremos insensíveis àqueles que nos são diferentes?

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Por que esse povo safado quer reduzir a idade penal?37 Eu estava em uma festa comemorativa do encerramento do ano letivo de meu filho caçula, quando, repentinamente, fui interrompido por uma voz bêbada, deselegante e incrivelmente alta. Chamava-me, insistentemente, de “presidente”. Confesso que fico desconfortável quando sou identificado por este apelido substitutivo de meu real nome, especialmente em uma ambiência informal e sem qualquer relação com a advocacia. Este nome apenas perde em termo de razoabilidade para a alcunha “doutor”, esta somente “justificável” quando pronunciada em razão do trabalho e apenas durante este lapso temporal. Mas vá explicar a um ébrio esta regra de etiqueta tão pessoal de um pai que, como qualquer outro, queria apenas curtir o sucesso do bruguelo. Percebendo o meu silêncio em relação ao “chamado presidencial”, cuidou o bêbado de explicar a razão de sua insistência, agora formulando a pergunta título desta crônica: “Presidente, o senhor sabe por que esse povo safado quer reduzir a idade penal?” Reconheço que o tema atraiu a minha atenção, pois frequentemente voltamos à fase jornalística de “milicianíssimo” apelo popular, principalmente quando um novo crime ganha repercussão. Nestes momentos de puro sensacionalismo, aponta-se que a “solução” para se combater a violência estaria no quarteto punitivo: 1) pena de morte; 37 Socialista Morena, 11/12/2017, http://www.socialistamorena.com.br/por-que-esse-povo-safado-quer-reduzir-idade-penal/

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2) redução da maioridade penal; 3) aumento do rol dos crimes tidos como hediondos; 4) criminalização do direito de defesa. Mas preferi não dar seguimento ao insistente bêbado, pois é arriscado alimentar uma boa conversa quando o precioso líquido, paradoxalmente, provoca uma espécie de jejum de responsabilidade argumentativa. E naquele ambiente escolar, não seria prudente alimentar um assunto sólido com um personagem de responsabilidade fluida. Esqueci, entretanto, de “combinar com os russos” ou, escrevendo através de outro gole vocabular, nada acertei com o instigante personagem embriagado. E ele seguia a perguntar: “Presidente, o senhor sabe por que esse povo safado quer reduzir a idade penal?” E foi assim na fila da pipoca, dos brinquedos, da entrega dos diplomas e até mesmo do banheiro. Percebi então que a única forma segura de sair impune daquela forçada peleja era justamente ouvir a revelação da “safadeza política anunciada”. Cuidei, antes, de procurar um lugar reservado para receber a valorosa resposta insistentemente ofertada. E ela se fez de forma surpreendente. Disse-me ele: – Esses políticos safados querem reduzir a maioridade penal para poderem, impunemente, “comer” as nossas filhinhas.

Confesso que fiquei confuso com sua inusitada conclusão. Eu nunca havia escutado tão esdrúxulo diagnóstico. É que o debate sobre a redução penal tem como foco a figura “cruel e irrecuperável do adolescente agressor”, geralmente exposto nos discursos fundamentalistas dos amantes do moralismo capenga, nas sensacionalistas antenas te-

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levisivas, nos programas policialescos que lucram com os dramas alheios, nas sanguinolentas páginas de folhetins impressos com as tintas do escárnio ou nas promessas eleitoreiras dos justiceiros de ocasião. Não é incomum, também, arrostarem-se argumentos que apontam que são irrecuperáveis e, por isso mesmo, merecem ser executados ou perpetuados em cárcere os “champinhas”, os “lambrosianos”, os papas-figos e todos aqueles que substituíram os livros pelas armas. Ultrapassada a fase do espanto pela novidade argumentativa, percebi que bêbado estava o personagem desta crônica, mas jamais o seu certeiro raciocínio. Eu sempre apontei que implantar para valer a proposta inscrita no Estatuto da Criança e do Adolescente era uma das melhores ideias sobre o tema, pois a educação é instrumento mais eficaz do que a prisão. Nunca descartei a hipótese de que a sociedade, ainda que egoisticamente pensando, estaria mais segura em seu futuro quando, no dia da soltura do seu aprisionado “inimigo”, não recebesse em seu protegido seio patrimonial mais um afinado e recrutado aluno da Escola Carcerária do Crime que funciona, livremente, nos presídios e penitenciárias do Brasil. Mas o sóbrio debatedor, ao retirar o adolescente tido como agressor do foco de sua análise, desprezando o tema relacionado à plausibilidade de sua reinserção social, apontou um dos graves e nunca discutido efeito colateral que será provocado pela redução da idade penal. Os crimes de estupro (art. 213 § 1), violação sexual mediante fraude (art. 215), assédio sexual (art. 216-A, § 2), favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput), prática de conjunção

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carnal ou outro ato libidinoso com adolescente (art. 218-B, § 2), mediação para servir a lascívia de outrem (art. 227, § 1) e rufianismo (art. 230, § 1), todos do Código Penal, sofreriam profundas modificações, não mais se aplicando aos adolescentes, independentemente do gênero, com idade igual ou superior a 16 anos. Da mesma forma não estaria em vigor a agravante do art. 149-A, § 1, do Código Penal, que, a pretexto de estabelecer uma política de “prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas” (Lei 13.344/16, art. 13), aumentou em um terço a pena daquele que agenciar, aliciar, recrutar, transportar, comprar, alojar ou acolher pessoa, para fins de remover órgãos, tecidos ou parte do corpo, submeter à condição de escravo ou servidão, adoção ilegal ou exploração sexual de adolescente com idade igual ou superior a 16 anos. É que, aplicando-se a “lógica punitiva” dos que pretendem reduzir a idade da maioridade penal, o adolescente ou a adolescente, podendo ser alvo de ação penal por compreender integralmente o caráter delituoso do ato praticado, saberia, conscientemente, resistir aos crimes cometidos pelo agressor ou agressora que frequenta o lar, a família, a vizinhança, a escola ou a ambiência política brasileira. A modificação da idade penal seria, portanto, o passe livre para tornar impune a “turba safada” que se alimenta de crimes praticados contra a adolescência brasileira. Assim, eles se envergonhariam do relatório publicado pela Unicef no dia 31 de outubro de 2017, intitulado Um Rosto Familiar, pois, retirando das estatísticas penais os crimes cometidos contra adolescente, o Brasil deixaria de ocupar o desonroso posto de sétimo país mais perigoso e mortal do mundo para crianças e adolescentes de 10 a 19 anos,

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ganhando até para o Afeganistão: a cada 7 minutos, uma criança ou um adolescente morre em nosso país vítima da violência. Que desolador saber que, infelizmente, o lúcido homem era detentor de uma razão não bêbada!

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O navio negreiro retorna à Terra Brasilis38 Um navegar mais atento pelas páginas da história revelará ao viajante os sussurros de tempos pousados em notas escritas com sangue, dor e intolerância. Desvendará tempos em que a barbárie, a dominação, a opressão e várias formas de exploração da pessoa humana eram compreendidas como consequência natural da hegemonia de um grupo “mais apto” sobre o outro tido como incapaz. Mostrará o tráfico de pessoas humanas, os navios negreiros e o direito de propriedade sobre homens, mulheres e crianças. Continuando a sua excursão nas linhas anotadas no pergaminho do tempo, o navegante perceberá que as guerras sempre foram abundantes nos vários rincões do planeta, quase sempre realizadas para alimentar egos, conquistar territórios ou acumular riquezas materiais. Entenderá que pessoas humanas foram denominadas escravas e forçadas a trabalhar na construção dos sonhos e ambições desmedidas dos chefes tribais, dos reis e dos governantes da ocasião. Compreenderá que seres humanos foram sequestrados e partilhados entre os detentores das fortunas e das terras no mesmo patamar de coisa apropriada e destituída de direitos. O Egito, a Mesopotâmia, a Índia, a China e os hebreus autorizaram no direito posto a propriedade de pessoas huma38 Congresso Em Foco, 19/10/2017, http:// congressoemfoco.uol.com.br/noticias/o-navio-negreiro%E2%80%AFretorna%E2%80%AFa%E2%80%AFterra%E2%80%AFbrasilis/

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nas através do instituto da escravidão. A civilização grega admitiu o trabalho escravo e a desigualdade de gênero no seu direito posto. Em Roma, também escravista, a plebe somente era considerada como elemento importante na definição da política do panem et circenses. A aristocracia, os traficantes de escravos e os ricos comerciantes lucravam com o direito posto durante o mercantilismo, assim como os escravistas proprietários de terras na Independência dos EUA, os burgueses na Revolução Francesa, os industriais na Revolução Industrial, os proprietários de escravos no Império do Brasil e os barões do café na Velha República. E, ao final de sua turnê pelo mundo da insensibilidade humana, concluirá que o direito de ter a propriedade das coisas e das pessoas era um velho conhecido dos códigos e das jurisprudências dos tribunais. A ele será revelado que a escravidão se perpetuou como plenamente “aceitável” em todos os recantos do planeta, até mesmo para as instituições religiosas, que também se faziam proprietárias de seres humanos. Certamente, por isso se excluía do conceito de crime ou pecado a coisificação do trabalho humano, mesmo porque, segundo se pregava à época, os índios, as mulheres e os negros não nasceram aquinhoados com o sacro atributo da alma. Entretanto, caso o venturoso viajante concorde em arrumar outra vez a bagagem do seu pensamento, embarcando nos últimos dados revelados pela ONU, que aponta para a existência de mais de 45 milhões de pessoas vítimas de trabalho escravo espalhados pelo mundo, sendo mais de

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100 mil no Brasil, certamente perceberá que o “direito de ter a propriedade do ser” permanece sendo praticado, embora camuflado em notas de rodapé da história, em legislações redigidas com regras ocultas ou decisões judicias disfarçadas em justas. O escravo de hoje, embora não mais acorrentado e aprisionado em senzala, carrega em seu corpo a mesma brutalidade imposta pelos feitores, capitães do mato e traficantes de pessoas, transmutados em exploradores, aliciadores, “gatos” e pessoas tidas como “de bem”.  Afinal, a cor azul que outrora irrigava o sangue do governante fora apenas substituída pela cor dourada do poder econômico. Esta cruel visão escravista mostrou o seu lado mais visível no dia 16 de outubro de 2017, quando publicada a Portaria 1.129/2017, do Ministério do Trabalho e Emprego. O governo plantonista,  como  já expusera na  reforma que pretendeu rebatizar a legislação trabalhista com o nome de Consolidação das Lesões Trabalhistas, outra vez persistiu na ideia de que o trabalho é “coisa” a ser apropriada pelo detentor das riquezas e do poder. A portaria escravista, ao relativizar o conceito de trabalho análogo ao de escravo, pretende naufragar a nau da Constituição Federal de 1988 e, com ela, mergulhar no mundo submerso da insensibilidade a proa da dignidade da pessoa humana, a bússola da liberdade e o leme do direito fundamental consagrado na ideia de que ninguém será submetido à tortura, tampouco a tratamento desumano ou degradante. O novo navio negreiro joga ao mar, como cargas inúteis, o art. 149, do Código Penal e as Convenções 29 e 105, da

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OIT, que definem o crime de redução à condição análoga à de escravo como caracterizado pela coação moral, psicológica ou física exercida para impedir ou de sobremaneira dificultar o desligamento do trabalhador de seu serviço. Faz desembarcar da legislação brasileira a consolidada compreensão de que há trabalho degradante quando ocorre abuso na exigência do empregador, tanto no que diz respeito à quantidade, extensão e intensidade, quanto em relação às condições oferecidas para a sua execução. E, na mesma remada, afunda a compreensão jurídica de que a jornada exaustiva pode se caracterizar tanto pelo critério quantitativo, quanto pela superação do limite legal de dez horas ou então, pelo critério qualitativo, quando houver pressões físicas e psicológicas ao trabalhador. A trágica caravela conduzida pelo timoneiro plantonista, infelizmente, demonstra que a cultura escravista sobreviveu ao tempo, furtando a proposta constitucional que pretendia fazer do Brasil um país livre, igual e solidário. Indica, ainda, que o tráfico de pessoa humana pretende voltar a navegar livremente protegido, como se fazia antes da vigência Lei Eusébio de Queirós, no distante 04 de setembro de 1850. Daí porque permanece atual a bela reflexão do advogado Luiz Gama, com a sua experiência de maior combatente das correntes que escravizam a nossa História: ”E se os altos poderes sociais, toleram estas cenas imorais; se não mente o rifão, já mui sabido: Ladrão que muito furta é protegido”.

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Os nordestinos e o preconceito nosso de cada dia39 Certa vez, ao terminar uma palestra na XVIII Conferência Nacional da Advocacia, na baiana Salvador, fui procurado por um entusiasmado advogado catarinense. Queria me cumprimentar pelo conteúdo e pela forma com que eu expusera sobre o delicado tema das opções econômicas ou sociais na efetivação da Constituição. Olhando-me com a admiração refletida no forte aperto de mão, soltou sua elogiosa pérola: – Parabéns, Britto, o senhor mudou a minha opinião sobre os nordestinos. É que eu não sabia que havia pessoas inteligentes no Nordeste. Vou contar ao pessoal sobre o senhor e eles também irão mudar de opinião. Ele externava, com sinceridade ímpar, o preconceito que guardava tão oculto em seu coração que sequer era percebido por ele mesmo. Diferentemente do que ocorrera em outro episódio catarinense, agora na bela cidade de Balneário Camboriú. Naquela época eu acabara de ser eleito presidente nacional da OAB e estava iniciando o meu périplo pelo Brasil, conclamando a advocacia a combater o resistente Estado Policial. O evento da OAB em que falaria iria acontecer no próprio hotel em que me hospedara. Consciente do meu dever de anfitrião, desci 39 Socialista Morena, 10/10/2017, http://www.socialistamorena.com.br/os-nordestinos-e-o-preconceito-nosso-de-cada-dia/

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para o auditório 20 minutos antes da abertura. Sempre aproveitei este tempo para conhecer, aprender e interagir com outras vozes. Neste dia, entretanto, o seguinte fato me servira como grande lição: – Pegue água para mim! – era a ríspida voz de uma senhora advogada, elegante e ricamente trajada, confundindo-me com o garçom. – Pois não, minha senhora! – respondi, gentilmente, dirigindo-me à copa do hotel em busca do objeto de desejo daquela desavisada pessoa. – Fique aqui! – disse-me ela, sem qualquer gesto de agradecimento ao receber o seu copo d’água, para depois continuar. –Não saia daqui, pois acho que tudo vai demorar para começar. É sempre assim com esses nordestinos preguiçosos, acho que esse tal presidente sergipano deve ainda estar dormindo no quarto. – Pois não, minha senhora! Estou aqui exatamente para servir a senhora e a todos vocês – continuei, calmamente, ao seu lado. E assim permaneci todo tempo, sendo vigiado pelo seu agressivo olhar, até que me convidaram para compor a mesa na qualidade de presidente nacional da OAB. Não sei se meu gesto de assumida simplicidade serviu de lição àquela advogada que, simultaneamente, destilava preconceito de classe e aos nordestinos. Até porque ela

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saiu em transloucada disparada, não escutando meu improvisado discurso sobre o dever de servir ao outro como condição essencial ao exercício da advocacia. Eu tinha a esperança de que minha ação pacífica, mas não passiva, a fizesse entender que nossa profissão exige que sejamos o outro na busca por Justiça, e que não se luta eficazmente na defesa do outro sem senti-lo como nós. Ou, como ensinou o advogado Mahatma Gandhi: “O melhor modo de encontrar-se a si mesmo é se perder servindo aos outros”. Nunca saberei, até porque não mais a encontrei. Eu sei apenas que outras de reação reflexiva também são válidas, a exemplo daquela vivenciada por Gerciane Silva, que trabalha comigo há mais de oito anos. Contou-me ela que estava na sala de aula, ainda no início do curso universitário de administração, na “cosmopolita” Brasília, quando o professor passou a explicar a razão principal que entendia ser determinante na vitória da presidenta Dilma Rousseff no segundo turno. Em tom sério e eivado de “verdade”, afirmara que Aécio Neves perdera em decorrência dos analfabetos nordestinos, abduzidos pelos programas assistencialistas dos governos petistas. Ao término da sua prolação, tão comum naquela época, Gerciane pediu a palavra e, para alegre espanto dos colegas, disse: – Professor, eu queria dizer ao senhor que sou nordestina, empregada doméstica e estou aqui na universidade em razão dos programas que o senhor está condenando. Também queria dizer que se a minha presença incomoda o senhor é problema do senhor, pois não vou sair daqui.

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O Brasil tem uma das mais eficientes legislações de combate ao crime de racismo, ao preconceito e à violência contra a mulher. Mas os que têm a raça, a cor, o gênero ou o local de nascimento do preconceito sabem que o Brasil não é o paraíso da igualdade que costuma declamar em versos e prosas. Os símbolos nazistas que voltam às ruas, a apologia ao estupro que recebe milhares de apoio, os nordestinos que são atacados e responsabilizados pelos resultados negativos do país, a homofobia assassina que estampa as manchetes policiais, o feminicídio que segue desenfeitando as estatísticas oficiais e os negros que permanecem tratados como desiguais desmontam qualquer mito ufanista do Brasil justo. O enfrentamento da questão, portanto, não está restrito ao campo da lei, até porque, como nos adverte a história, é mais fácil mudar uma lei do que a cabeça do homem. Daí porque os episódios aqui narrados têm em comum o preconceito extralegal que teima em permanecer ativo no coração brasileiro, ainda quando disfarçado em involuntário elogio. Preconceitos que, repetidamente, são ensinados em chavões nada inocentes, como: “negro de alma branca”, “negro de primeira estirpe”, “futuro ou passado negros”, “ela é inteligente, apesar de mulher”, “ela não merece ser estuprada”, “só podia ser essa gorda e feia”, “o seu sotaque é engraçadinho”, “os nordestinos entendem mesmo é de festa”, “apesar de pobre é limpinho”, “até que ele não é um índio preguiçoso”, “eu até tenho um amigo gay”, “pobre é tudo igual”, dentre outras. Preconceito expostos como vísceras depois que tantos resolveram se esconder atrás dos toques digitais das redes sociais. Preconceito que toma conta, sem disfarce, daqueles que praticam a

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idolatria a um pré-candidato à presidência do Brasil que destila seu ódio sem qualquer cerimônia. É o que bem observou, assertivamente, o advogado Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou por sua religião. Para odiar as pessoas precisam aprender”. Não que as leis sejam desnecessárias para se combater o preconceito. Elas são fortes aliadas. A guerra ao preconceito se torna complexa por ele se entrincheirar em nossa mente, como se fosse um vírus oculto, insensível à vacina da consciência. Mesmo quando os gestos e as palavras revelam os sinais da grave doença, seu portador não se percebe doente. Ao não perceber a doença que contamina até sua alma, ele a repassa para as outras pessoas, tranquilamente, sem qualquer remorso pela sensação de cometimento de um crime. E assim espalhamos o nosso preconceito, dia a dia, fazendo valer a máxima de Bob Marley: “Que país é esse onde o preconceito está guardado em cada peito? Que país é esse onde as pessoas não podem ser iguais, devido a suas classes sociais?”

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Os generais Bush, Trump, Kim e os filhotes da violência40 Quando da invasão estadunidense ao Iraque escrevi aquela época que o maior legado que o general Bush deixaria para a história seria a sua obsessiva ideia de solucionar o conflito mundial através da violência de uma guerra. O general não enxergava, por exemplo, qualquer contradição em invadir o Iraque para exigir o cumprimento de Resoluções da ONU, ao mesmo tempo em que apoiava Israel no seu assumido desrespeito à própria ONU, quando manteve a insana política de massacrar palestinos e de praticar o terrorismo estatal. Não enxergava qualquer ironia no fato de possuir o maior armazém de armas químicas e de destruição em massa da história, mas querer justificar uma guerra porque aquele pequeno e pobre país supostamente possuía um “titica” dessas mesmas armas, outrora fornecidas pelos próprios estadunidenses, quando o inimigo morava no vizinho Irã. Naquela época de nefasta memória, registrei a hipocrisia do império que sempre apoiou e ainda apoia ditaduras em todo o mundo, inclusive estimulando golpes de Estado, ter retirado o apoio ao seu ex-aliado Saddam Hussein, alegando que, repentinamente, deixara de ser um “bom mocinho”. Pouco importava se as pessoas se convenceram de suas proposições, o que apenas lhe interessava era fazer valer a sua ditatorial vontade, a sua incontrolável arrogância e o 40 Congresso Em Foco, 08/09/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunistas/os-generais-bush-trump-kim-e-os-filhotes-da-violencia/

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seu compromisso com o desenfreado lucro das indústrias bélicas. O tempo mostrou que os seus críticos estavam corretos, bem assim que a sua violência somente serviu para desestabilizar a região, provocando guerras civis, terrorismo em larga escala, genocídios generalizados, países destruídos e multidões de imigrantes vagando sem a esperança de um dia pousar em um porto seguro. Os recentes e gravíssimos pronunciamentos dos generais Trump e Kim mostram que ambos foram reprovados em todas as disciplinas que falavam de paz, de humanismo, de amor à vida e de respeito às diferenças entre os povos. Não estudaram as consequências das recentes Guerras do Golfo sobre o planeta e as pessoas, tampouco das guerras mundiais, do Vietnã, da Coréia, Afeganistão e das incontáveis tragédias militarizadas que apenas geraram as mortes de milhões de pessoas, holocaustos, países desfigurados e histórias desaparecidas. Certamente esqueceram do crime contra a humanidade praticado nos dias 6 e 9 de agosto de 1945, quando os EUA utilizaram, pela primeira vez na história da humanidade, bombas atômicas, sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. No velho estilo Calígula, quando humilhou Roma nomeando seu cavalo Incitatus Cônsul de Roma, os generais Trump e Kim fazem do mundo uma insignificante baia, a abrigar garbosamente suas selas, suas ferraduras, suas esporas e seus domesticados animais. E cada um, como qualquer imperador que acredita ser possuidor do privilegiado e sacro dom da infalibilidade, criando a sua própria cruzada santa, uma guerra contra o eixo do mal ou mesmo uma guerra contra o terror. Não sem ambos, apenas em sotaques e vocábulos diferentes, dizem que as fardas estadunidenses ou

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norte-coreanas são superiores, impiedosas e indestrutíveis, ou, como dizem em propagandas nacionalistas e twiters incendiários, “quem não está com eles está contra eles”. E nós – os eles nesta história que não promete um final feliz – seguindo a vida sem olhar para o céu atômico ou misseis de hidrogênio que se gabam do poder de destruir toda a humanidade. Diante deles, lembro sempre a certeira frase de La Rochefoucauld: “Ninguém deve ser elogiado pela sua bondade quando não tem forças para ser mal”. O pior para a humanidade é que diariamente nascem, dentre outros, vários filhotes e seguidores das ideias de Baby Doc, Batista, Franco, Herodes, Hitler, Idi Amin, Médici, Mussolini, Milosevic, Nero, Pasha, Pinochet e Pol Pot na vida pública, sempre posando de bonzinhos e defensores de valores elevados, até que se revelem no momento em que adquirem o poder, ocasião em que assumem a prepotência e a violência que sempre esconderam. Aliás, todos eles eleitos, idolatrados e seguidos por pessoas que, igualmente disfarçados, têm uma sádica tara pela violência e consideram saudável a superioridade racial, econômica e social. Eles estão, em abundância preocupante, nos governos, nos parlamentos, nas ruas, nos ônibus, nos lares, nas redes sociais e em todas as conversas que fazem da violência o maior de seus argumentos. E é assim que eles, filhotes de ditadores, vencem e derrotam a humanidade, pois, como advertiu Sartre: “A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”.

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Um rosário para o machismo41 O Superior Tribunal de Justiça, através da lúcida voz da ministra Nancy Andrighi, disse que: “Ao afirmar que a recorrida não “mereceria” ser estuprada, atribui-se ao crime a qualidade de prêmio, de benefício à vítima, em total arrepio do que prevê o ordenamento jurídico em vigor. Ao mesmo tempo, reduz a pessoa da recorrida à mera coisa, objeto, que se submete à avaliação do ofensor se presta ou não à satisfação de sua lascívia violenta. O “não merece ser estuprada” constitui uma expressão vil que menospreza de modo atroz a dignidade de qualquer mulher”. Referia-se ela ao deputado federal Jair Bolsonaro, condenando-o pela violenta, fria e premeditada agressão à deputada federal Maria do Rosário. O Poder Judiciário, com esta resposta, pretendeu escrever nos anais do tempo que a violência contra a mulher, a apologia ao estupro ou que o homem fora aquinhoado com o “merecedor direito de escolher a quem violentar” não mais poderiam ser tolerados no Brasil contemporâneo. Não se estava em debate, portando o valor econômico em que o parlamentar fora condenado, até porque este será objeto de doação, como sempre anunciou a deputada Maria do Rosário e consta expressamente da própria ação. O que se fixava, ali, era a mensagem de que ninguém, por mais poderoso que seja, tem imunidade para “livre agredir” ou ser de 41 Congresso Em Foco, 25/08/2017, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/um-rosario-para-o-machismo-um-adversario-de-dificil-combate/

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“franco atirador” de petardos da virulência que estimulam mais violência contra as mulheres. E sobre esta questão esclareceu Nancy Andrighi: “Na hipótese dos autos, a ofensa perpetrada pelo recorrente, segundo a qual a recorrida não mereceria ser vítima de estupro, em razão de seus dotes físicos e intelectual, não guarda nenhuma relação com o mandato legislativo do recorrente”. Mas não pretendo, aqui, tratar da condenação do parlamentar agressor, até porque esta tarefa pertence ao Poder Judiciário. Tampouco vou discutir o equívoco involuntário das pessoas que reproduzem como verdade que houve um pequeno entrevero parlamentar, em que ambos se excederam. É que este fato não é verdadeiro, pois nunca o deputado Jair Bolsonaro fora chamando de “estuprador” pela deputada Maria do Rosário, como comprovado nos autos do processo. Nem no dia em que, fora agredida da tribuna parlamentar, nem, tampouco, no vídeo divulgado pelo próprio parlamentar, em que registra fato ocorrido onze anos antes. Aliás, o vídeo que completara mais de uma década, apenas comprova que a agressão fora premeditada, inclusive na escolha da cruel palavra que atinge as incontáveis mulheres vítimas de estupro: “Ela merecia”. A reflexão que trago decorre da repetição, divulgação, incentivo e apoio ao gesto agressivo praticado contra a mulher batizada Maria do Rosário. Nas redes sociais, nos debates etílicos ou em ambientes regados pelo moralismo machista, encontram-se milhares de pessoas afirmando que a deputada, por dela não se gostar, por discordar de sua atuação ou do partido político em que é filiada, merecia ser estuprada, violentada ou até mesmo assassinada. E nas vozes estimuladoras da prática que faz uma (01) mu-

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lher ser violentada a cada onze (11) minutos no Brasil, escuta-se os ruídos raivosos de milhares de mulheres. E nos gritos que procuram “justificar” o crime que ceifa a vida, física e psíquica, de infinitas crianças e adolescentes brasileiras, ouve-se vozeares de mães. E assim, Marias, Penhas, Anas, Fernandas, Adrianas, Josefas e milhões de mulheres são, diariamente, acusadas do crime de merecimento. Este é o rosário que faz do machismo um adversário de difícil combate, até porque fecundado, gerado e criado por homens e mulheres que acreditam na superioridade natural do gênero masculino. Este é o rosário que, como série que teima em não se interromper, frequenta lares, locais de trabalho, ônibus, vans, igrejas, parlamentos, sindicatos e infinitos cantos e recantos que não cantam o respeito à pessoa humana nascida mulher. Este é o rosário que transfere para a mulher a merecida culpa de ter sido assassinada, estuprada, violentada, humilhada ou subjugada pelo machismo que ousa se dizer vítima inocente dos costumes. Este é o rosário que fez Brasil ser forçado, por sua confessa ação-omissiva no combate à violência contra a mulher, a aprovar a Lei Maria da Penha, apontando que “tapa de desamor dói e dá cadeia”. Eis porque a decisão de Rosário de processar o seu contumaz agressor, mesmo sendo agredida pelo violento séquito que o segue, é de importância vital para reafirmar que o grave crime de estupro não pode ser tolerado, estimulado por palavras ou reconhecido como direito natural do homem. O seu corajoso gesto, não desistindo da árdua luta, mesmo quando agredida pelas mulheres e mães que diariamente defende em sua atividade parlamentar, fez-me lembrar de Harriet Tubman, a primeira mulher a lide-

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rar uma expedição armada na Guerra de Secessão, quando comandou mais de setecentos soldados na abolicionista e humanitária estadunidense. É dela a frase como registro do rosário que se recusa a rezar o machismo: “Libertei milhares de escravos. Poderia ter libertado outros tantos milhares, se eles soubessem que eram escravos”.

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08 de Março e as escolhas: de que lado você está?42 A evolução da humanidade guarda relação direta com as nossas escolhas. A humanidade já escolheu a barbárie, a dominação, a opressão ou qualquer outro tipo de imposição como se fossem consequência natural da hegemonia de um grupo mais apto sobre o outro. Também já escolheu em sua História o tráfico de pessoas humanas, os navios negreiros e o direito de propriedade sobre mulheres, homens e crianças. Escolhas foram feitas para que se fizesse da intolerância religiosa um dogma, corpos queimados em fogueira uma manifestação divina e conflitos entre religiões simples guerras santas. Escolhe-se, diariamente, a supressão do direito à infância, a prostituição, o abandono educacional e o trabalho infantil. Escolhas ainda são feitas para que mulheres sejam consideradas meras reprodutoras de seres humanos, sem qualquer direito, objeto de prazer e adorno dos homens. Escolhas em que nações subjugam nações e desumanos dominam humanos. Mas a humanidade também testemunhou escolhas em que palavras como direitos humanos, liberdade, igualdade, fraternidade e Justiça fossem proferidas e exigidas. Escolhas que romperam o silêncio, sussurraram novas melodias, quebraram estruturas e inspiraram reações. Escolheu-se a paz e não a guerra; a sensibilidade como alternativa à frieza; a construção do amor para implodir castelos de ódios. 42 Socialista Morena, 08/03/2018, http://www.socialistamorena.com.br/o-8-de-marco-e-as-escolhas-de-que-lado-voce-esta/

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Escolhas ainda que não foram integralmente vividas, mas escolhas também ainda não desistidas. No dia 20 de fevereiro de 2018, a Corte máxima do país escolheu, corretamente, proteger a mulher e a maternidade. Através de um habeas corpus coletivo, garantiu que quase 5 mil mulheres em todo o Brasil, grávidas ou que já deram a luz a seus filhos com idade até 12 anos, e que estavam sob o regime fechado do sistema carcerário, fossem transferidas para a prisão domiciliar. Também têm direito ao benefício quem tem filhos deficientes. A decisão beneficia mulheres em prisão provisória, ou seja, que ainda não foram condenadas. Efetivamente, viver é fazer escolhas sobre todos e tudo. Até mesmo o ato de não escolher é uma escolha, uma forma de decidir. A escolha pela ação, omissão ou o simples acomodamento é a tarefa que a vida nos impõe diariamente. No dia 25 de março de 1911, em Nova York, mulheres trabalhadoras ousaram escolher melhores condições de trabalho para suas vidas. Como resposta, o patronato escolheu impor a elas um cruel massacre, ateando fogo à fábrica e assassinando covardemente 129 delas. Não se sabe a origem exata do 08 de março como dia internacional da mulher, mas a morte destas trabalhadoras é sempre lembrada como um dos eventos que motivaram sua criação. Um dia de luta e reflexão. Neste 08 de março de 2018, devemos lembrar das pessoas que escolherem romper as estruturas conservadoras, preconceituosas e excludentes dos direitos humanos das mulheres. Neste lapso de tempo, necessário se faz louvar aquelas que incorporaram em suas almas inquietas o direito de resistir a qualquer tipo de opressão, sem temor diante dos

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mais cruéis adversários, sem medo da morte possível. Nesta quadra da vida, é o momento de agradecer às mulheres que, em razão de suas lutas diárias e perseguições sofridas, continuaram ousando escolher sonhar as mesmas utopias, lutar idênticas batalhas e resistir, resistir e resistir.

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Reinventando o Natal43 O apaixonante exemplo do destemido Jesus Cristo, animado pelo carisma do bom velhinho Noel, faz o mês de dezembro fervilhar ao sabor da solidariedade. Campanhas, gincanas e quermesses destinadas aos “sem” destacam-se nos mais diversificados cantos e recantos das cidades. A promessa de um Natal sem fome é retomada em bonitos cartazes, assim como o compromisso de que não mais existirão crianças sem carências ou sem a tristeza pela ausência de um presente. Os anônimos e os exageradamente assumidos, mesmo que com visões de mundo distintas, unem-se no mesmo ideal fraterno. Até os amigos secretos são revelados nas milhares de não ocultas festas de confraternizações, em que amizade e solidariedade são embrulhadas nos presentes, conferindo um toque especial ao já especialíssimo dia. Não sem razão, portanto, a comovente, contagiosa e mágica comoção coletiva se espelha durante todos os dias do mais vermelho mês do calendário mundial. A fração do tempo em que, a cada dia, recebemos emocionantes mensagens de amor ao próximo e somos convidados a participar de fraternais caixinhas de doações que ressaltam a importância de dezembro para o compartilhamento do espírito natalino com os destituídos de bens, materiais ou não.

43 Congresso Em Foco, 23/12/2017, http://m.congressoemfoco.uol.com.br/noticias/reinventando-o-natal-vinte-e-quatro-horas-por-ano-sao-dedicadas-ao-esforco-de-amar-o-proximo/

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Afinal, quando o dia 25 de dezembro chegar, entre perus, panetones e outras guloseimas esparramadas na ceia comemorativa do nascimento de Cristo, poderemos, finalmente, recitar, Djvaneando, que nas esquinas natalinas da vida e nos arredores do amor, destinamos o nosso Natal para aqueles que sabem o que é não ter e ter que ter pra dar. Ironia ou premonição, o mês de dezembro faz também renascer em nossas vozes e mentes a sua canção favorita, exaustivamente servida em toda ambiência preparatória da grande noite de Natal. Nesta, o mantra natalino será outra e outras vezes recitados, como se antecipadamente soubéssemos que o anoitecer sempre revelará que a prometida felicidade do outro é uma brincadeira de papel ou mesmo um tipo de brinquedo que não tem. É que, por experiência repetida de outras eras, a humanidade sabe que dois mil e dezessete dias de Natal não serviram para criar um sentimento permanente de solidariedade entre as pessoas. Os que têm e os sem continuarão, no amanhecer do dia 26 de dezembro, vivendo esperanças e mundos distintos, pois a magia natalina sempre tem dia e hora para começar e acabar.

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Infelizmente, o calendário social parece apontar que apenas e exatas vinte e quatro horas por ano são dedicadas ao esforço universal de amar o próximo. Nos demais dias, cada sem-teto seguirá buscando abrigo nas marquises dos palácios, sonhando que seus moradores despertem do sono eterno provocado por uma apatia proposital. O sem-terra, que não mais sonha em ver a terra dividida, continuará gritando palavras surdas, pois nunca ouvidas no latifúndio da insensibilidade econômica. O sem-trabalho e o sem-CLT dedicarão parte de sua vida a garimpar, inutilmente, os classificados e as agências de emprego em busca do trabalho digno que fora extinto no mercado do lucro fácil. O sem-escola continuará excluído do libertador saber, pois, após a suspensão por vinte anos da parte cidadã da Constituição Federal, não poderá contar com os programas de inclusão educacional. São tantos os sem que seguirão sem que fico até sem espaço para apontá-los aqui, até mesmo o sem-aposentadoria, nova categoria que o governo plantonista quer criar, certamente inspirado no secular e inaposentável velhinho Noel. Mas ainda temos tempo para fazer este Natal diferente dos demais, quem sabe até o 25 de dezembro da virada, aquele que, por ser tão bom, se tornou eterno. É só acreditarmos no poder de reinventar o calendário oficial, inscrevendo na folhinha que todo dia é Natal e que, nele, a humanidade será despertada com gestos de amizade que se dá, espalhando a solidariedade sem papel no avançar das horas, para, à noite, dormir embalada pelo sono da felicidade que vem.

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Afinal, Natalizar diariamente o Natal, é reinventar a vida, pois, como nos presenteou Cecília Meireles, “a vida, a vida, a vida, a vida só possível reinventada”. Não tenho dúvida, assim, que o ter-compartilhado seria o grande presente de Natal concedido à humanidade, pois, como cantou Beto Guedes, “já choramos muito, muitos se perderam no caminho, mesmo assim não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera”. Feliz Natal para todas e todos, diariamente!

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A consciência negra tem dia, história e luta44 A História tem revelado que a Lei Áurea, de 13 de maio de 1888, foi aprovada em razão da luta abolicionista e da vitoriosa e crescente “desobediência civil” praticada por escravos rebelados. Basta que se observe que, na época, apenas 5% dos descendentes de africanos eram fisicamente livres, embora, como agora, ainda aprisionados pelo preconceito racial e a desigualdade socioeconômica. O “apenas” está escrito por força da gramática, pois basta um homem ser escravo para que permaneça o grave crime praticado contra a humanidade. O que se afirma atualmente é que, ao contrário do chancelado em vários livros escolares, a redução ou a eliminação oficial da escravatura não se deu apenas em função do “humanismo comercial dos ingleses”, da piedade de algum senhorio ou mesmo da atuação caridosa do imperador Pedro II e sua filha Isabel. Ela se deu, sobretudo, em função de complexos fatos e atos diversos, isolados ou não. E não poderia ser diferente, pois a semente escravista estava enraizada na sociedade brasileira, especialmente nos resistentes e poderosos barões do café do Vale do Paraíba (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais).

44 Socialista Morena, 20/11/2017, http://www. s o c i a l i s t a m o r e n a . c o m . b r/c o n s c i e n c i a - n e g ra -tem-dia-historia-e-luta-20-de-novembro/?fbclid=IwAR3AF9sM0Vbydw1w1PudBeyePkQ2u315Qkfa90S_QqVkfpGmqh7xSqK0MlA

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Mesmo antes da abolição oficial, outras medidas legais reduziram a presença de escravos, a exemplo da Lei Eusébio de Queiroz, que proibiu o tráfico de escravos, ainda que tenha ele permanecido ativo e oficiosamente por vários anos. A Lei do Ventre Livre, que determinou a liberdade para os nascidos a partir do dia 28 de setembro de 1871, também contribuiu para a redução do número de escravos, embora, na prática, a liberdade só ocorreria com os vinte e um anos de idade, pois o “nascido-livre” tinha que “indenizar” o senhorio pela liberdade e alimentação. Embora em menor proporção, a Lei Saraiva-Cotegipe ou dos Sexagenários de 1885 teve papel importante, vez que libertou os escravos com mais de 60 anos, ainda assim quando completasse mais cinco anos de “trabalho indenizatório”. A resistência quilombola é um dos maiores exemplos de luta pela liberdade e redução do número de escravos, pois não podiam aceitar a insana lógica da escravidão, em que uns são melhores do que os outros em função da cor. Ganga Zumba, Zumbi, Diogo, Ramil, James, Cornélio e João Mulungu são alguns dos homens-livres que contribuíram para o estimulo à “desobediência civil” e o nascimento de cidades-livres como Palmares (Alagoas), Jabaquara (Santos) e Leblon (Rio de Janeiro). Revoltas e rebeliões, a exemplo da Revolta dos Malês, em 1835, na Bahia, foram decisivas nas lutas de libertação, além de servirem para alimentar a resistência dos que sonhavam com um Brasil igual. A Guerra do Paraguai também foi responsável por grande número de libertos, pois seriam considerados livres todos aqueles que voluntariamente ingressassem no Exército Brasileiro, inclusive aqueles que foram compulsoriamente convocados em substituição ao proprietário branco. Eram

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tantos os negros e pardos “convocados” que os soldados brasileiros passaram a ser chamados de macaquitos pelos aliados argentinos e de los cambás (os negros, em guarani) pelos “inimigos” paraguaios. O próprio conde d’Eu, quando assumiu o Governo Provisório do ocupado Paraguai, reconhecendo o valor dos escravos para a vitória, determinou que seria “igualmente livre todo o indivíduo, qualquer que seja a sua condição anterior, pelo único fato de ter pisado o território paraguaio.” O Brasil, em função da Guerra do Paraguai, se viu também obrigado a reconhecer que, no bom dizer do príncipe d. Obá II, seria “justo que a pátria escute a voz do defensor da pátria como soldado”, pois, concluía ele, “será que os negros e miscigenados, no Brasil, só servem para cornetas e soldados?” Aliás, d. Obá II é um personagem fantástico, fruto da própria Guerra, mesmo porque dela saiu como oficial honorário do Exército, por bravura. Seu título de nobreza advinha do fato de ser neto do rei africano Alafin Abiodun, unificador do império ioruba, nascido no Brasil em razão de seu pai ter sido vítima do tráfico. Não se pode esquecer, ainda, que contribuíram para a posterior abolição, dentre outras, as ideias liberais e republicanas que esquentavam o Império, a exemplo da correta bandeira de luta: “igualdade entre todas as cores”. Eram portadores destas ideias, por exemplo, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, a Confederação Abolicionista e Caixa Emancipadora Luiz Gama, além de humanistas como Joaquim Nabuco, Castro Alves, André Rebouças, José do Patrocínio, Luiz Gama e Francisco de Paula Brito, sendo os quatro últimos filhos de mulheres negras. Jornais como a Gazeta de Notícias, Gazeta

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da Tarde, O Cabrito, O mulato e O homem de cor foram igualmente importantes nas lutas de libertação. Assim, embora admirável como documento e marco legal do princípio da igualdade racial no Brasil, não se pode afirmar que a abolição dos escravos foi um áureo presente imperial, como bem registrou a professora Hebe Maria Mattos (in Das cores do silêncio: significados da liberdade no Sudeste escravista). O Brasil-escravista oficialmente deixou de existir a partir de 13 de maio de 1888, mas não se pode, jamais, negar que a liberdade fora conquistada com luta, sangue, coragem e dor. O Brasil-desigual continua em pleno vigor com demonstrações de ódio e intolerância a navegar nas redes sociais. Este Brasil continua a esperar dos governantes brasileiros e de todos que aqui habitam, a contínua luta pela efetiva igualdade. E é assim que devemos entender este dia 20 de novembro, dedicado nacionalmente à Consciência Negra.

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Um urgente resgate a nossa brasileira Homoafetividade Nativa45 A Unesco, através do seu Comitê Nacional do Brasil do Programa Memória do Mundo, entregou ao Supremo Tribunal Federal o prestigiado Certificado MoWBrasil 2018 em razão da histórica e importante decisão que reconhecera a união estável homoafetiva como entidade familiar, sujeita às mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva. O certificado teve como objetivo reconhecer, promover e facilitar o acesso à decisão unânime proferida em maio de 2011, quando do julgamento conjunto da Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF 132, agora registrada como patrimônio documental da humanidade. No mesmo patamar de importância, o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão - ADO 26 e do Mandado de Injunção - MI 4733, quando o STF reconheceu que havia omissão inconstitucional do Congresso Nacional por não editar lei que criminalize atos de homofobia e de transfobia. Esperava-se, assim, que a ratificação e a pacificação do tema pela Corte Superior brasileira – por possuir efeito vinculante de caráter obrigatório e eficácia erga omnes – constituiria precedente a ser seguido por toda e qualquer autoridade, judiciária ou não. Ledo engano! É o que demonstrou 45 Congresso em Foco, 16/09/2019, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/um-urgente-resgate-a-nossa-brasileira-homoafetividade-nativa/

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o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, quando mandou censurar e recolher a história em quadrinho intitulada Vingadores: A Cruzada das Crianças, da editora Marvel, por conter a imagem de um beijo entre os personagens ficcionais Wiccano e Hulkling. A Bienal do Livro do Rio de Janeiro estava, assim, compulsoriamente envolvida em mais uma peleja judicial que evidenciava, na mesma borduna municipal, cenas de autoritarismo, homofobia, fundamentalismo, preconceito, censura e atentado ao Estado Democrático de Direito. Somente após a reação firme da sociedade, o STF suspendera a ilegal ordem do alcaide carioca, afirmando-se, nos autos da Suspensão Liminar - SL 1248, que a censura “fere frontalmente a igualdade, a liberdade de expressão artística e o direito à informação”. A revista fora exposta e a Bienal do Livro cumpriu o vaticínio poetizado por Castro Alves: “Bendito aquele que semeia livros e faz o povo pensar”. A polêmica fez-me lembrar dos livros escritos pelo historiador católico português Pero de Magalhães Gandavo, apresentados com os títulos: Tratado da Província do Brasil e História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. Eles não foram censurados ou incluídos no Index Crivelliano, por duas razões básicas: não estavam expostos na Bienal do Rio e foram editados no distante 1576, na cidade de Lisboa. A lembrança decorre do repentino tino repressivo do governante carioca, quando decidiu transformar em autoritarismo concreto a estranheza narrada pelo puritano historiador ao anotar a vida nativa século XVI. Gandavo esteve no Brasil no tempo das capitanias hereditárias e do governo-geral de Mem de Sá, provavelmente en-

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tre 1558 e 1572. Segundo Capistrano de Abreu, prefaciador da edição brasileira que reuniu os dois livros (Ed. Obelisco, 1964), o projeto do historiador era “mostrar as riquezas da terra, os recursos naturais e sociais nela existentes, para excitar as pessoas pobres a virem povoá-la: seus livros são uma propaganda de imigração.” E, de fato, neles encontramos surpreendentes descrições do Brasil que ainda engatinhava no seu achamento ocidental, com detalhes importantes sobre a fauna, a flora, as pessoas e a vida que pulsava na Terra de Santa Cruz. Eis o trecho contado pelo historiador do Brasil do século XVI: “Algumas índias há que também entre eles determinam de ser castas. As quais não conhecem homem algum de nenhuma qualidade, nem o consentirão ainda que por isso as matem. Estas deixam todo exercício de mulheres e imitam os homens e seguem os seus ofícios, como se não fossem fêmeas. Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e vão à guerra com seus arcos e flechas, e à caça, perseverando sempre na companhia dos homens, e cada uma tem mulher que a serve, com quem diz que é casada, e assim se comunicam e conversam como marido e mulher.” A história real narrada pelo católico português revelara – cinco séculos antes da festejada certificação outorgada pela Unesco ao STF – que a união homoafetiva era nativa e livre nas primeiras comunidades nativas brasileiras. Assim como também eram absolutamente normais que os homens cuidassem dos filhos recém-nascidos, que as crianças fossem criadas “sem nenhuma maneira de castigo”, e mamassem “até a idade de sete, oito anos”, que vivessem “livres de toda cobiça e desejo desordenado de riquezas”, “porque todos são iguais e em tudo tão conformes nas con-

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dições, que ainda nesta parte vivem justamente, e conforme a lei da natureza”. O efeito temporal provocado pelo esquecimento secular sobre o conteúdo do que fora narrado por Pero de Magalhães Gandavo – agravado pela amnésia voluntária dos moralistas vindouros – apagaram da história o registro civilizatório da homoafetividade, da licença maternidade, da licença paternidade, da não-violência como fundamento da criação, da igualdade, da solidariedade, da liberdade e da função social da propriedade entre os povos nativos. A censura ou a autocensura impediram e ainda impedem que conheçamos a nossa própria História. Os apontamentos registrados por Gandavo – como testemunha ocular da vida do povo originário que se integrou no que é hoje o povo brasileiro – merecem estudos mais aprofundados e isentos. Mas não se pode negar que os regramentos vividos pelas comunidades originárias – hoje celebrados como conquistas ocidentais da Era das Constituições Sociais – precisam se tornar reais, até mesmo para que sirvam como antídotos aos ataques moralistas ao mundo ficcional. Afinal, os acontecimentos da Bienal do Rio de Janeiro servem de alerta para que compreendamos que é mais fácil mudar um ordenamento jurídico do que a mente viciada pela recusa em aceitar a afetividade como qualidade intrínseca. É urgente que resgatemos nossa brasileira homoafetividade nativa!

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Pink Floyd, a turnê brasileira e o fascismo nosso de cada dia46

Conheci o rock progressivo de Pink Floyd através do álbum The Wall, lançado em 1979. Eu pertencia à jovem geração universitária que combatia a ditadura civil-militar instalada em nosso país e sonhava com uma sociedade livre, que fugisse da lógica autoritária fascista: excludente e violenta. Não sem razão, em tom de rebelde e alegre protesto, cantávamos a versão Pink Floyd da cantiga popular “Atirei o pau no gato”, pedindo que dona Chica deixasse o gato em paz, pois ele era bom demais. O fascismo, estatal ou não, era o adversário a ser vencido e contra ele caminhávamos, “sem lenço e sem documento”, acreditando “nas flores vencendo o canhão”. No dia 1º de abril de 2012, realizei o velho sonho de assistir ao show The Wall, comandado pelo incansável Roger Waters. Eu era uma das 70 mil pessoas que lotavam o Estádio do Morumbi cantando, dentre outras, as antifascistas músicas Another Brick in the Wall e Comfortably Numb. E, confesso, a minha emoção se tornou mais forte quando, projetado no enorme muro de 424 tijolos, apareceu o nome a imagem de Jean Charles de Menezes, a quem Roger Waters dedicou a sua apoteótica apresentação, que fora assassinado pelo preconceito da polícia estatal ingle46 Congresso Em Foco, 23/10/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/pink-floyd-a-turne-brasileira-e-o-fascismo-nosso-de-cada-dia/

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sa. Nesta mesma sintonia de protesto, sobre nós desfilava o enorme porco-balão que, na versão brasileira, levava o nome do recém-aprovado Código Florestal. Ao sairmos do show, comentávamos que o muro de 137 metros de largura, 11 metros de altura e 5,5 de profundidade, ainda guardava a mesma energia de resistência daquele que, no lugar ocupado pelo injustificável Muro de Berlim, fora assistido, em 1990, por mais de 350 mil pessoas. Desde então o álbum The Wall toca, diariamente, em meu carro. Um acertadíssimo presente que ganhei de minha nora Bia. Ele me serve de conselheiro ao ensinar que devemos combater todas as formas de autoritarismo, inclusive aquelas que, camufladas, habitam em nossas mentes. O que esperar, então, do show de Roger Waters em sua nova rodada pelo Brasil? Como estar surpreso quando ele exerce o seu direito de protestar contra o estadunidense Donald Trump, o húngaro Viktor Orbán, a francesa Marine Le Pen, o austríaco Sebastian Kurz, o britânico Nigel Farage, o polonês Jaroslaw Kaczynski, o russo Vladimir Putin e o brasileiro Jair Bolsonaro? Como acreditar que ele deixaria de fazer o seu tradicional protesto contra o nazismo que matara sua família e milhões? Como ele não reagiria ao fascismo que se apresenta diante de nosso olhar? Como impedir que ele e todas as pessoas que amam o seu semelhante cantem, falem e protestem? Talvez possamos encontrar as respostas na música Blowin’In The Wind, de Bob Dylan e seu atemporal rock de protesto. Afinal, “quantos anos algumas pessoas podem existir até que permitam ser livres? Sim, e quantas mortes ele causará até saber que outras demais morreram? E

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quantas vezes um homem pode virar a sua cabeça e fingir que ele simplesmente não vê?” Roger Waters, em sua turnê pelo Brasil, no velho estilo Bob Dylan, nos diz que “a resposta, meu amigo, está soprando ao vento. A resposta está soprando ao vento”. E o vento nos sopra que combater o nazismo, o fascismo e toda forma de violência ainda é preciso, urgente e imprescindível, pois a paz ainda não venceu a guerra. A cada instante, em todo lugar do mundo, surgem propostas que transformam a violência, o racismo, a misoginia, o preconceito, a homofobia e outras formas de ódio em votos eleitorais depositados em urnas que espelham o que cada eleitor guarda na urna secreta do seu próprio coração. Roger Waters, com o seu rock rebelde, sopra para a nossa consciência e nos pergunta, corajoso, desafiador e confortavelmente entorpecido: “Olá, tem alguém aí? Apenas acene se puder me ouvir. Tem alguém em casa?” E ao falar para o “eu” escondido em cada um de nós, faz um alerta: “Nós não precisamos de nenhuma lavagem cerebral”, pois, “em suma, tudo era apenas tijolos no muro. Em suma, todos vocês eram apenas tijolos no muro”. O muro que cada um constrói ou destrói a partir do primeiro “eu-tijolo”.

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Sobre eleições, corporações, tiranos e a placa de Auschwitz: “O trabalho libertará”47 Impressionou-me a ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho contra a empresa Havan, aquela que assume em sua fachada a Estátua da Liberdade estadunidense e tem sua sede em Santa Catarina. Acusava-se a empresa da prática de assédio moral e conduta abusiva, por obrigar seus empregados e empregadas a votarem no candidato Jair Bolsonaro. O juiz da 7ª Vara do Trabalho acatou o pedido ministerial, fixou uma multa de R$ 500 mil e determinou que a empresa infratora publicasse o conteúdo da decisão que reconheceu a gravidade da prática ilícita. Noticia-se que a Havan não agiu de forma isolada. Assim como ela, várias empresas cometeram assédio moral contra seus empregados e empregadas, ameaçando-os de punições, demissões ou com prêmios caso votassem no candidato do PSL. Certamente esse inusitado, violento e coletivo gesto tinha como razão o compartilhar das ideias dos infratores com aquelas defendidas pelo presidenciável escolhido como porta-voz dos interesses patronais em debate. Ou, escrevendo em outras palavras, os assediadores queriam eleito um candidato que tem um histórico de defesa dos interesses patronais. Como noticiado ao votar no Par47 Congresso Em Foco, 18/10/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/sobre-eleicoes-corporacoes-tiranos-e-a-placa-de-auschwitz-o-trabalho-libertara/

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lamento contra os direitos dos empregados domésticos e, depois, seu voto favorável à nefasta “deforma” trabalhista que transformou a CLT na Consolidação das Lesões Trabalhistas – e, em razão dela, os trabalhadores em “coisas” a serem apropriadas pelo menor preço imposto pela ganância do “mercado”. E não só! Queriam o candidato que prometeu aprofundar a exploração, extinguindo a Justiça do Trabalho e ampliasse a política de restrições a direitos, como o fim da gratificação de férias e do 13º salário. Mas não é a primeira vez na história em que empregadores, banqueiros, industriais e grandes empresários apoiam governantes que prometem destruir direitos trabalhistas, organizações sindicais e escravizar a classe trabalhadora. Não é a primeira vez, também, que financiam projetos que, sabidamente, sabiam exploradores, criminosos e atentatórios à dignidade da pessoa humana. Tampouco é a primeira vez que buscam o lucro fácil às custas das tragédias sociais que seus dinheiros financiam. Todos, evidentemente, disfarçados em despretensiosos interesses moralistas, religiosos, anticorruptos e patrióticos. A historiadora Patrícia Agosto, em seu livro El Nazismo: La otra cara del capitalismo, afirma que foi exatamente assim o relacionamento aberto da classe patronal com o nazismo de Hitler. A IBM, por exemplo, ajudou, via holerite, a cruzar dados, nomes, direções, genealogias e contas bancárias para identificar os adversários do nazismo e, assim, terem seus bens confiscados, deportados ou condenados à morte em guetos e campos de concentração. E, devido a esse “feito”, o fundador da IBM recebeu, em 1937, a Cruz do Mérito da Alma Germana.

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Condecoração nazista também recebida por Henri Ford, admirado por Hitler – que, aliás, tinha na sua sala de despacho uma foto do ídolo estadunidense. A subsidiária alemã da Ford era a fornecedora dos motores dos aviões de guerra da Luftwaffe, utilizando, para aumentar seus lucros, a mão de obra escravizada dos prisioneiros do ódio nazista. Lucrar com o governo nazista era regra geral para o ambicioso poder econômico, pouco importando a tragédia humanitária anunciada, sem disfarce, por Hitler e seus asseclas. Os bancos Union Banking Corporation, Brown Brother Arriman (dirigindo pela família Bush), Chase Manhattan Bank (da família Rockfeller), Dresdner Bank (principal acionista da empresa encarregada de fazer os fornos onde se queimavam os cadáveres), Reichsbank, os bancos suíços, a companhia de seguro Allianz e tantas outras instituições financeiras lucraram com o nazismo e, vários deles, com o confisco das propriedades judias e as vendas forçadas para os próprios alemães. A indústria química I.G. Farben, a poderosa empresa de comunicação ITT, a German Steel Trust confessaram que sabiam e lucraram com o holocausto nazista. Da mesma forma a Texaco, a Standard Oil of New Jersey, a General Motors, a Volks e infinitas empresas que investiam no ódio nazista aos comunistas e sindicatos para, destruindo direitos, ampliarem seus lucros. A anglo-holandesa Shell, inclusive seu diretor Henry Deterding, patrocinava as publicações nazistas e emprestou altas fortunas diretamente a Hitler, com a promessa de receber, quando eleito, o monopólio do petróleo das áreas alemãs e anexadas. Estima-se que os campos de extermínios, os trens da morte, os guetos e as balas nazistas mataram milhões de ju-

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deus, cristãos, comunistas, ciganos, negros, homossexuais e outros tantos que se opuseram ou estavam na mira dos ódios nazistas. Sabe-se que grande parte da classe empresarial financiou, lucrou e utilizou mão de obra escrava dos campos de concentração. Essa parcela do poder econômico concordara e fora cúmplice das ideias nazistas que “coisificavam” a pessoa humana. Certamente por isso não se chocava quando, ao adentrar o genocida campo de concentração de Auschwitz, lia a irônica placa pendurada na sua porta de entrada: “O TRABALHO LIBERTA”!

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A Europa foi Hitler e Mussolini. E o Brasil?48 Muitos livros têm o péssimo hábito de nominar, elogiar ou responsabilizar uma única pessoa por acontecimentos históricos, mesmo quando eles são praticados coletivamente ou por meio de um emaranhado de infindáveis atos e múltiplas ações. É como se toda a complexidade da vida em sociedade pudesse ser definida por uma só pena escritora, independentemente da criação coletiva que inspira, motiva, ensina ou colabora com o artista eleito condutor da narrativa anotada. Assim, apontam Hitler e Mussolini como escritores exclusivos das páginas mais violentas, genocidas, intolerantes, racistas e obscuras da história contemporânea. Esses personagens são registrados no “túnel do tempo” como desprezíveis espécimes que impuseram o nazifascismo no dicionário político internacional. Indica-se que eles, por exclusivos predicados individuais, conquistaram o cobiçado “Cinturão do Terror”, especialmente por terem promovido, em suas respectivas categorias, o extermínio, o assassinato, a perseguição, a intolerância e a propaganda da supremacia racial à milhões de judeus, comunistas, trabalhadores, religiosos, negros, gays e opositores às suas ideias. Além de terem patrocinado a Segunda Guerra Mundial. A pessoalidade pela conquista do repugnante título, entretanto, não encontra amparo na leitura mais aprofundada dessas mesmas páginas. No mundo coletivizado alemão 48 Congresso Em Foco, 25/09/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/a-europa-foi-hitler-e-mussolini-e-o-brasil/

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e italiano, Hitler e Mussolini conquistaram aliados, reuniram conluiados dos mesmos pensamentos, arrebanharam ódios comuns, arremataram a paixão de milhões e milhões de eleitores, motivando-os a também entrarem no ringue do desprezo à pessoa humana tida como diferente. Esses cúmplices, não raro, transformaram os seus punhos e garras sem qualquer pudor ou remorso, em armas postas à disposição dos ditadores que tanto amavam. E amavam porque também professavam os mesmos quereres, os ódios propagandeados e a supremacia racial declamada em versos e prosas. O Brasil, repentinamente, como no prelúdio da tragédia europeia, se vê inundado por mensagens de ódio, machismo, racismo, homofobia, misoginia, preconceitos regionais e toda forma de intolerância para com aqueles ou aquelas que consideramos “diferentes”. Inimigos imaginários são criados e mentiras são repetidas como verdades, fazendo ruborizar até mesmo Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista. Essas mensagens são criadas ou repassadas por vários moralistas assumidos, religiosos ativistas, pessoas comuns tidas de bem, membros de famílias respeitáveis, parte da classe trabalhadora e desempregados, fardados e não fardados, profissionais que integram a advocacia, medicina, engenharia, economia e diversos outros ramos, enfim, grande parcela da população brasileira. Não raro, a essas mensagens são acrescidos comentários pessoais, concordantes ou até estimuladores de mais ódio. Hoje, o povo alemão reconhece que Hitler não implantou o nazismo sozinho, assim como os italianos compreendem que Mussolini não espalhou o fascismo pelo mundo

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comandando um exército em que era simultaneamente o único oficial-soldado. Sabem que todos eles foram eleitos, apoiados e estimulados pela maioria dos homens e mulheres de seus países. Aceitam que, embora os livros, diplomaticamente, escrevam sobre a culpabilidade dos dois vilões pelos graves crimes cometidos contra a humanidade, o nazismo e o fascismo não teriam prosperado se não tivessem habitado os corações de milhões e milhões de congregados nazifascistas. Conhecem, sabem, compreendem, aceitam e lutam para que a tragédia humanitária nunca mais se repita. Agora o que nazismo e o fascismo voltam a bater em suas portas, os europeus os têm enfrentado, relembrando o holocausto, denunciando os saudosistas e não hesitando em promover frentes de resistência democráticas. Eles não mais aceitam a teoria da “delegação da responsabilidade pelo crime” ao líder autoritário e dizem, sem pestanejar, que os novos nazifascistas são e serão responsáveis pelos atos praticados pelo “escolhido”. Não querem mais sofrer, em consequência da permissividade ou omissão, qualquer complexo ou sentimento de culpa por terem escolhido mal. Tampouco querem ser outra vez lembrados por terem apoiado ou concordado com o governante enquanto a “prosperidade” sorria para cada um deles, mesmo quando sabiam ou suspeitavam de que outros morriam, sofriam ou eram agredidos para que fossem “felizes”. E o Brasil?

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Meninos, eu vi!49 O poeta maranhense Gonçalves Dias, patrono da cadeira 15, da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Olavo Bilac, é daqueles personagens históricos que, simultaneamente, imortalizou-se e fez imortal a palavra. Indigenista de cocar cheio, fez da poesia I-juca-pirama, um dos mais belos escritos sobre as coisas nativas do Brasil. Nessa sua inesquecível peça, contou-nos que “Juca Pirama”, um velho Timbira, coberto de glória, guardou a memória do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava do que ele contava, dizia prudente: – Meninos, eu vi!” Naqueles tão distantes tempos, televisões, rádios, internet, satélites, redes sociais, telefones e celulares eram expressões estranhas entre as pessoas, até porque sequer imaginados como futuras invenções. Não se poderia pensar que as informações chegariam dentro das casas por ondas invisíveis ao olhar, estabelecendo formas de pensar, padrões culturais, manias sociais ou condutas morais vinculadas e monopolizadas por mãos marionetistas bem conhecidas. Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Machado de Assis, Luiz Gama e tantos outros que viveram na plenitude da monarquia brasileira tinham na tradição da palavra, escrita ou verbal, o melhor dos meios de comunicação. E para eles, quando duvidavam da palavra exposta, bastava-se dizer: – Meninos, eu vi!

49 Congresso Em Foco, 13/11/2018, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/meninos-eu-vi/

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Hoje o povo timbira e milhões de outros nativos brasileiros não têm no velho Tupi ou no seu Deus Tupã os avaliadores das palavras que serão ditas. Tampouco invocam os testemunhos dos deuses e deusas Açutí (escrita), Arapé (dança), Aruanã (alegria), Caramuru (trovão), Caupé (beleza), Curupira (mata), Graçaí (eloquência), Guaipira (história), Guaraci (sol), Jaci (lua), Parajás (honra e justiça), Picê (poesia), Piná (simpatia), Polo (mensageiro de Tupã), Rudá (amor) e Yara (lagos). Alguns dizem, entretanto, que apenas sobreviveram os cultos de adoração à sacralidade de Anhangá (trevas), de Pirarucu (mal), das Tiriricas (deusas do ódio, da raiva e da maldade) e de Xandoré (ódio), pois são os incontáveis testemunhos de pessoas que, vítimas doutras tantas, gritam, diariamente: – Meninos, eu vi! O certo é que as modernas “deusas TV” e “Rede Social” confiscaram as prerrogativas do depoimento da veracidade dos fatos vividos ou escondidos do olhar, sendo invocadas quando duvidam das palavras espalhadas por seus seguidores. É que especialistas indicam que a maioria da população brasileira obtém as informações através dos canais televisivos e, mais recentemente, via mensagens virtuais. Estas informações são colhidas com ares de veracidade e repassadas no mesmo tom de autenticidade, mesmo quando visivelmente falsas. Não sem razão as notícias falsas foram decisivas no processo eleitoral que apontou a vitória do candidato Jair Bolsonaro, sempre repassadas por fiéis seguidores como se dissessem: – Meninos, eu vi! As deidades da pós-modernidade têm no Poder Judiciário um concorrente informativo de peso considerável, pois aquinhoado do poder constitucional da imparcialidade. Certamente por isso a notícia que dele brota, mesmo que

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emitida por pessoas compreensivelmente falíveis, ideologizadas e portadoras de conceitos e preconceitos típicos dos que convivem em sociedade, tem o mesmo poder de convencimento que o povo timbira atribuía a todos os deuses já reverenciados em terras tupiniquins. Diante de uma decisão judicial os contadores de causos e causas, quando desafiados por seus interlocutores, logo dizem para aceite de todos: – Meninos, eu vi! E viram, incrédulos, que um magistrado goiano, amigo dos inimigos da democracia, tinha orquestrado uma armação para impedir que as eleições de outubro ocorressem, somente frustrado no seu intento ilegal de mandar o Exército recolher as urnas por ação do CNJ. E viram, ainda descrentes, que outros magistrados, coletivamente articulados, atacaram a liberdade de cátedra, de reunião e de opinião das universidades brasileiras, em gesto eleitoral apontado pelo STF como autoritário, desprezível e inconstitucional. E viram, seguindo agnósticos, que um juiz, famoso por morar em sua ação judicial um indisfarçado ativismo político, trocara a toga pelo cargo ministerial oferecido por quem ajudara a eleger, especialmente quando afastou da disputa o favorito do povo e, após confessada visita eleitoral, divulgou peças processuais sigilosas com a intensão de interferir nas eleições presidenciais. Estes, apesar do que viram, quando escutam que setores da magistratura não foram neutros e interferiram no resultado das urnas, preferem acreditar nas divas informativas e delas retirarem a defesa, orgulhosamente proclamando o auto-de-fé: – Meninos, eu vi! Entre vistos e não vistos, divindades e pessoas, a vida segue no Brasil pós-eleitoral! Arautos do apocalipse anun-

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ciam que teremos escolas sem história e saber, livros travestidos em armas mortais, imprensa escrevendo o nada, trabalhadores sem partidos ou ministérios, magistraturas extintas no dever de decidir, legislações desconstituídas na missão de proteger, negócios que plantam a destruição da natureza, democracia embrulhada em papel descartável e outros sacrilégios não disfarçados nas promessas eleitorais. Outras vozes, entretanto, apregoam que a resistência será a tônica do amanhã desperto, pois da vida e da trintenária Constituição Federal poderemos extrair que “ninguém solta a mão de ninguém”, já que todas e todos são partes indivisíveis de um mundo plural, livre, igualitário, solidário, democrático e que acredita, invocando Gonzaguinha, ser possível asseverar: – Meninos, eu vi o povo nas ruas, querendo dar à luz para quem quisesse ver, para quem quisesse ganhar o brilho da luz... bebi com eles a coragem das cores, na avenida Brasil, aprender a colorir.

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Dienekes, a Democracia e a Batalha da Esperança50 Esta semana reencontrei um querido amigo que comigo militava no movimento estudantil, no distante iniciar dos anos oitenta. Ele acabara de participar de um ato político em defesa do direito do ex-presidente Lula apresentar a sua candidatura ao crivo popular. Lembramo-nos, naquele memorável instante ressuscitador do tempo, da nossa luta pela redemocratização do Brasil, da reconstrução do Centro Acadêmico Sílvio Romero, das disputas pela representação estudantil e dos espaços libertários e de solidariedade que frequentávamos. Eu sempre falo que hoje sou advogado em razão do que aprendi naquelas lições que moldaram a nossa geração. Eu sou advogado, porque assim me ensinou o movimento estudantil. Como já anotei no livro Fiz-me advogado na luta: “Nascido de uma família repleta de juristas, eu pensava em ser psicólogo. Tímido, jamais poderia me imaginar discursando ou enfrentado a injustiça com a arma da palavra”. Gostei de saber que ele permanecia com as mesmas utopias do passado e, mais do que isso, seguia firme na defesa de um mundo igualmente justo, solidariamente engajado, livre de preconceitos e comprometido com a inclusão de todos e todas, independentemente das convicções políticas, filosóficas, ideológicas e religiosas. Além de fazer da advocacia uma tribuna altiva e ativa na defesa dos excluí50 Congresso Em Foco, 26/01/2018, http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/dienekes-a-democracia-e-a-batalha-da-esperanca/

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dos, combatendo a criminalização do movimento social, ele era membro fundador e integrante de movimento de resistência batizado Advocacia pela Democracia. Disse-me ele, em brilhante resumo justificador de sua resistência, que ela “tem a força das águas do grande rio que arrasta os entulhos e garranchos disformes das mentes e dos corações das pessoas, para que se percam ou se achem na imensidão do oceano da humildade”. Ele é um desses que ainda teimam em lutar e, rompendo a sólida barreira do silêncio, enfrentam a cruel realidade do hoje. E não está sozinho nesta luta diária. Encontro-os nos vários cantos e recantos em que a minha vida andarilha me leva. Eles nos lembram, que resistir ao autoritarismo, ainda quando o poder do governante se mostra gigantesco, é a melhor opção quando se luta por um ideal, quando se defende uma nação ou quando se deseja um sistema jurídico que preserva os direitos fundamentais da pessoa humana. Lembram-nos, também, que devemos ser os soldados das nossas próprias lutas, buscando em nós mesmos a coragem necessária para a ousadia de vencer. E não desistem diante do poderio demonstrado pelo Estado, mesmo quando vencidos em decisões judiciais injustas, politizadas ou reprodutoras do pensamento elitista e patrimonialista que marca a História do Brasil.

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Talvez eles participem de uma batalha semelhante àquela contada pelo célebre historiador Heródoto (484-425 a.C.), quando a Grécia foi invadida pelo poderoso exército do ditador-rei Xerxes I (486-465 a.C.), até então comandante da maior e mais equipada máquina de guerra já vista na terra. É que foi o diminuto exército de trezentos hoplitas, liderado por Leônidas I (490-480 a.C.), o rei de Esparta, quem resistiu por quatro dias em Termópilas, causando tantos danos ao exército persa que não se poderia afirmar que fora vitorioso. Realmente era difícil imaginar que aproximadamente oito mil gregos e espartanos pudessem opor qualquer resistência a um exército integrado por mais de trezentos mil soldados. Somente o batalhão conhecido como os “Imortais”, com seus dez mil soldados considerados de elite e invencíveis, era bastante superior à tropa integrada pelo valente Dienekes. Esta inesperada resistência motivou as demais cidadãs gregas, fazendo-as acreditar que era realmente possível sonhar com a vitória. Motivadas pelo exemplo de resistência, nenhuma das cidades gregas se rendeu. Mesmo quando Atenas caiu devastada pelas poderosas tropas invasoras, continuaram os gregos acreditando que a vitória ainda era possível. Tão possível que o humilhado e cruel Xerxes foi posteriormente derrotado na Batalha de Salamina, abandonando definitivamente o seu desejo de conquistar a Grécia, caindo em seguida assassinado nas mãos de seus aliados. Ainda hoje, quando uma batalha parece impossível de ser vencida, lembramo-nos da importância da coragem, da perseverança e da resistência dos heróis de Termópilas. Lembrança que agora exalto para os que fazem o combate de hoje ser urgente e necessário, pois eles sabem que

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o “Brasil do Amanhã” depende do que fizermos no “Brasil do Hoje”. A todos eles dedico este artigo, pois, diariamente, resolvem o dilema que a vida nos cobra a cada momento, e são estes anônimos heróis que nos dizem o tempo todo: Ou aceitamos a vitória do Xerxes brasileiro, silenciando-nos; ou resistiremos, ainda que a conquista pareça ser impossível. E, para eles, deixo a histórica mensagem do rei espartano Leônidas I ao ser avisado por Dienekes de que as flechas dos arqueiros do rei persa, se lançadas de uma vez cobririam o sol: “Melhor, combateremos à sombra”.

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Os saberes não tiram férias51 Brasil escolheu o mês de janeiro para, tradicionalmente, dedicar um espaço no calendário para as férias escolares. Esses encontros anuais, mesmo quando interrompidos nos desgastantes momentos de garimpagem dos caríssimos livros escolares, são aguardados com certa ansiedade. Viajando ou não, os pais e as mães recebem de volta as suas crias, dando uma pausa na terceirização da transmissão dos saberes. Em tese, os educadores originais reencontram, por livres quereres ou impostos deveres, a filharada e reassumem as tarefas antes, em parte, delegada aos professores e às professoras. E assim, como ocorrera no período letivo, as férias escolares servem de aprendizado coletivo e mudança no patamar de relacionamento. As atuais férias têm sido especiais fontes de conhecimento e mudança. O Brasil, entre discursos, multidões, soldados, armas, gestos e ameaças de sangrar o verde-oliva da bandeira, anotou no Livro de Posses o nome do seu 38º presidente. Neste ato, sob o pesado esquema de segurança, entre gestos de mãos simbolizando tiros, a cidadania brasileira aprendeu, via delicados movimentos emanados da tradicionalíssima figura da primeira-dama, a importância educacional e inclusiva da Linguagem Brasileira de Sinais – Libras. Michelle Bolsonaro divulgara, de forma inédita, a Lei 10.436/2002 e o Decreto 5.626/2005, assinados pelos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula 51 Congresso Em Foco, 15/01/2019, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/os-saberes-nao-tiram-ferias/

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da Silva, subscritos pelos seus respectivos ministros da Educação Paulo Renato e Fernando Haddad. A surdez governamental que se prendia modificada, entretanto, não entrou em férias. A notícia da extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, uns dos primeiros atos anunciados pelo atual encarregado da política educacional brasileira, exemplifica o que a estudantada encontrará na volta às aulas. Estranhará, certamente, que os novos livros didáticos não terão mais compromisso com a pluralidade que integra a alma brasileira em suas diversas manifestações culturais, sociais, éticas, étnicas e regionais, tampouco com o combate à violência contra as pessoas vulneráveis. A linha educacional será única: a imposição ideológica do pensamento de que todas ideologias são pecaminosas, salvo a própria ideologia dos governantes. Daí a razão da verberação contra os livros de História e de Ciência. Afinal, para os “novos ideólogos” não há sentido ensinar que a “terra gira em torno do sol”, que “São Jorge não mora na lua”, que a ciência descobre ou que a evolução da espécie é fenômeno científico natural. Pregam a morte de Caio Prado, Capistrano, Carlos Chagas, Copérnico, Celso Furtado, Oswaldo Cruz, Dante de Alighieri, Darcy Ribeiro, Darwin, Descartes, Diderot, Erasmo de Roterdã, Galileu, Giordano Bruno, Hobbes, Kant, Kepler, Lattes, Locke, Lutz, Milton Santos, Pascal, Paulo Freire, Rousseau, Sêneca, Sócrates, Voltaire, Zerbinie, todos aqueles que têm no saber a melhor forma de ensinar a vida. Pretendem, ao que se percebe, um remasterizado Index Librorum Prohibitorum, Edição MEC 2019. Mas não apenas no campo dos livros e das disciplinas os estudantes poderão encontrar mudanças no retorno às aulas. O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos

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Humanos advertiu que prefere as vestimentas azuis ou rosas, pois entende que deve ser banido para o “Mármore do Inferno” o “pecaminoso pensamento colorido, plural ou simplesmente diferente”. Lembrei-me, entristecido, de Catarina, filha da minha amiga Ana Paula Barreto, que poderá ser convidada a “jogar” na medieval fogueira da “nova ideologia” a camiseta vermelha, o short colorido e a bola de futebol que, orgulhosamente e em pose campeã, exibia em pura força feminina e feminista na foto enviada a mim pela mãe. Aliás, a bola que exibia na foto, mesmo rosinha, será um objeto de museu, pois, segundo os “novos ditames educacionais”, os únicos passatempos permitidos às meninas serão os famosos fogõezinhos, panelinhas, bonequinhas e outros brinquedinhos bonitinhos destinados a transformá-la em uma eficiente dona do lar. Paulo Freire, um dos condenados a padecer no fogo ministerial, certa vez disse que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. O mês de janeiro de 2019 começou criando várias dessas possibilidades de ensino, desde aquelas repassadas em família, reveladas nos livros não proibidos, adquiridas dos mestres, vividas em aprendizados próprios ou as conquistadas nos saberes mediatizados pelo mundo. Também trouxe dessaberes já impostos em trevas, destruições de histórias produzidas e desconstruções de conceitos evolutivos. Mas nesta equação de avanços e recuos já esparramada na prancheta do tempo, já aprendemos, precocemente, que quando cessarem as folgas escolares, ressurgindo os matulões estudantis, os saberes seguirão e estarão em disputa, até porque eles nunca tiraram férias.

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O degredo da transparência no Brasil52 Não é segredo que as eleições presidenciais provocaram um grande racha na sociedade, no trabalho, nas famílias e em toda espécie de agrupamento social. O mês natalino serviu para amenizar várias das desavenças, especialmente aquelas em que as diferenças ideológicas não descambaram para a violência, física ou não. Mas o curto lapso temporal entre a posse do eleito e os atos presidenciais por ele já externados parece ter interferido na rápida harmonia presenteada pelo bom velhinho. Talvez porque Noel – como escutei de alguns – gere algum tipo de desconfiança na sua persistência pelo uso do traje vermelho. Talvez até – como ouvi de vários outros – porque não se poderia esperar mensagens de paz da metralhadora ideológica do governante de então. Não há vidente que possa antever qual será o resultado final de um país que faz da arma de fogo a melhor forma de resolver querelas, no mesmo tiro em que pretende abater a Justiça do Trabalho e o seu histórico papel solucionador dos conflitos sociais. Não se sabe o que esperar do habitat em que vivemos, quando a mineração é apontada como exemplo de “desenvolvimento sustentável” para Minas Gerais, Amazônia e demais cantos do país, mirando-se as pessoas humanas nascidas nas florestas como inimigos do “novo modelo nacional”. Como entender que Ulysses 52 Congresso Em Foco, 07/02/2019, Congresso Em Foco, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/ colunas/os-saberes-nao-tiram-ferias/

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Guimarães falhou em seu prognóstico ao querer, com a sua Constituição de 1988, “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”. E assim, entre polêmicas e disputas, o Brasil dividido segue sem ter clareza do que será feito do seu futuro. É bem verdade que alguns já desenvolveram métodos antecipatórios dos resultados pretendidos, não os compreendendo como polêmicos ou incertos. Um conhecido de velhos tempos, defensor ferrenho da moralidade pública, anticorrupto de primeira panela, adotou uma fórmula mágica para assegurar a si mesmo que não mudara no seu rumo em defesa de um Brasil ético. Diante das graves acusações contra o senador Flávio Bolsonaro – que ardorosamente defendera durante o pleito eleitoral – resolveu a parada proibindo que todas as pessoas de sua casa assistissem aos noticiários, inclusive escondendo os controles remotos. Assim, desconhecendo a realidade exposta ao seu olhar, seguirá de consciência limpa no seu impoluto combate aos crimes atribuídos às pessoas alheias ao seu gostar. O esdrúxulo método individual de auto alienação consciente é daquele que costuma render animada e divertida conversa de mesa de bar. O problema é quando o alheamento sobre a política ganha ares de artifício governamental, retirando da população o direito de escolher entre o saber ou a própria amnésia espontânea. É o que fez o novíssimo Decreto 9.960, de 23 de janeiro de 2019, publicado no auge das investigações

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“esquecidas” pelo citado conhecido, que permite aos servidores comissionados e de confiança dos governantes tornarem ultrassecretos ou secretos, respectivamente por 25 ou 15 anos, documentos públicos por eles próprios assinados ou executados. O Banco Central não tardou a seguir o péssimo exemplo ao propor que o Coaf não mais seja notificado das transações superiores à 10 mil reais ou monitore os parentes dos políticos eleitos para o Executivo e Legislativo federais, membros da alta corte do Judiciário, governadores, prefeitos e presidentes de tribunais de Justiça e de Contas estaduais. Conscientemente a normativa presidencial tornou ineficaz a Lei 12.527/2011 – conhecida como Lei de Acesso à Informação – e o Decreto 7.724/2012 que a explicitava, especialmente na parte que vedava delegação de esconder do olhar público o destino das coisas públicas. Sabe-se que a constitucional publicidade dos atos públicos tem sido importante mecanismo de combate à corrupção posto à disposição da cidadania e da imprensa investigativa. Conhece-se, ainda, que as relações de parentesco e o compadrio são portas abertas para o ingresso dos corruptores e instrumentos de camuflagem do dinheiro público privatizado. Daí porque as medidas divulgadas, salvo para amnésicos, significam que a transparência no trato da coisa pública começa a ser uma degredada no solo brasileiro. Tanto quanto a moral na velha e conhecida forma de “fazer política”.

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Crônica do avesso do mesmo lugar53 Luís Fernando Veríssimo nos ensinou que “a principal matéria-prima para a crônica são as relações humanas. O modo como as pessoas se amam, se enganam, se aproximam ou se afastam num ambiente social definido. Ou qualquer outra coisa”. Seguindo a lógica do genial escritor gaúcho, escrever crônica seria uma tarefa extremamente fácil, mesmo porque as relações entre as pessoas são exercidas no modo automático, assim como é o pulsar do coração na manutenção da vida corpórea. Ama-se, engana-se, aproxima-se, afasta-se ou se faz alguma coisa a todo instante, queria-se ou não. Esqueceu-se de dizer que para o cronista, especialmente aquele que tem a obrigação de escrever com regularidade, o problema está exatamente na fartura do material a ser escolhido como tema. Não é tarefa simples pinçar o assunto que, convertido em palavras amontoadas em único texto, possa servir de moldura narrativa dos fatos vividos em determinado lapso temporal. Ainda mais quando o hiato entre as crônicas produzidas é quinzenal e o período a ser abordado é fértil em acontecimentos que extrapolam qualquer raciocínio lógico. Afinal, como dizer que não merece uma crônica a birra pública entre um presidente da República e um de seus mais íntimos ex-ministro, em que ambos, comprovadamente, 53 Congresso Em Foco, 13/03/2019, Congresso Em Foco, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/ colunas/cronica-do-avesso-do-mesmo-lugar/

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acusam-se de mentirosos e chantagistas, ameaçando-se em diálogos reciprocamente gravados? Como dizer que é irrelevante o ministro da Educação, deseducada, ilegal e inconstitucionalmente, mandar gravar crianças em compulsória propaganda do mote da campanha eleitoral que o tornou encarregado de educar aqueles em que acusou serem filhos de “canibais”? Como não entender importante as redes sociais privadas interferirem nas escolhas e exonerações públicas, como admitiu o ministro da Justiça ao recuar na nomeação de uma suplente para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária? Como se recusar a escrever sobre o vídeo de conteúdo restrito postado pelo próprio presidente, em que acusa a maior festa popular brasileira de ser o “apogeu fetichista da chuva dourada”? Realmente é de extrema dificuldade trazer para esta coluna o assunto eleito como tema principal, até porque quase estivemos em guerra fratricida contra os hermanos venezuelanos, apenas para agradar os plantonistas que governam nos EUA. Neste mesmo período, os militares foram indicados guardiões-mor da democracia e o vice-presidente se tornou o mais abalizado intérprete do pensamento presidencial, o Itamaraty voltou-se para a cela escura das perseguições internas, a imprensa foi outra vez ameaçada e se tornou pública a nomenclatura “olavetes” para designar a posse privativa de vários cargos importantes no governo. Eleger o campo legislativo como assunto também é tarefa árdua, pois também nesta área reina a fertilidade de eventos à disposição do cronista regular. De logo, teria que se dedicar ao projeto que pretende retirar da Constituição Federal o instituto da aposentadora digna ou mesmo um dia alcançável para homens e mulheres. Teria que se dedicar

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ao projeto de lei que criminaliza os movimentos sociais e suaviza a vida dos que praticam caixa 2 e irrigam seus queridos laranjais. Em medidas ainda provisórias, não poderia deixar de registrar a assumida pretensão de se castrar as organizações não governamentais e matar por inanição financeira as entidades sindicais, salvo no que se refere ao Ministério Público Federal, que planeja criar uma esdrúxula fundação privada com o dinheiro público da empresa brasileira que se diz proteger contra ataques externos. Entre trancos e barrancos, reconheço que preciso decidir o assunto que servirá de matéria-prima, sem correr o risco de ser tentado a plagiar o Barão de Itararé, quando nos contou que “este mês, em dia que não conseguimos confirmar, no ano 453 a.C., verificou-se terrível encontro entre os aguerridos exércitos da Beócia e de Creta”. Segundo relatam as crônicas, venceram os cretinos, que até agora se encontram no governo. Então escolho a Estação Primeira de Mangueira, para esclarecer que crônica quer “contar a história que a história não conta, avesso do mesmo lugar, pois é na luta é que a gente se encontra”.

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A Reforma da Previdência e a catástrofe dos argumentos catastróficos54 Tive a honra de ser convidado, integrando um pequeno grupo de seis juristas, para participar da audiência pública promovida pela CCJ – Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, da Câmara dos Deputados. A ideia era apresentar a minha opinião sobre a constitucionalidade da PEC 06/19, apresentada pelo governante atual e que trata na Reforma da Previdência e outros assuntos “jabutis”. Não querendo desmerecer o charmoso réptil, “jabuti” é o jargão político utilizado quando se tenta incluir em uma norma em debate regras estranhas ao tema principal, aprovando-as sem grande aprofundamento. Durante mais de seis horas de debates, entre argumentos jurídicos, posições políticas predefinidas e agressões pessoais – das quais não escapei enquanto alvo – escutei, repetidamente, que a Reforma da Previdência era fundamental para o Brasil, sob pena de comprometimento definitivo do nosso futuro enquanto país, sobretudo no que se refere à sobrevivência digna das gerações ainda por nascer. O mesmo argumento apocalíptico repetido por empresários e banqueiros, além de grande parte da chamada grande imprensa e das pessoas repetidoras das ideias preconcebidas. A “verdade real” espelhada é, portanto, de 54 Congresso Em Foco, 26/04/2019, Congresso Em Foco, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/ colunas/a-reforma-da-previdencia-e-a-catastrofe-dos-argumentos-catastroficos/

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conteúdo simples: ou se aprova a Reforma da Previdência, ou se quebra o Brasil. Não quero – ao menos agora – afirmar que a “pós-verdade” que se espalha é uma cópia fiel da célebre máxima da propaganda nazista de Joseph Goebbels, sobre as mentiras repetidas que se tornam “verdades”. Mas posso afirmar que não é a primeira vez que estes mesmos grupos econômicos espalham argumentos apocalípticos – sabidamente falsos – para convencer a sociedade a abrir mão de direitos fundamentais, especialmente a classe trabalhadora e os mais pobres. Afinal, como se diz popularmente, “o uso do cachimbo deixa a boca torta”. Quem não lembra que o Estado, argumentando que queria evitar uma crise sistêmica, bancou os bancos, autorizando-os, inclusive, a praticar juros extorsivos e até cobrar pelas tarifas e custos de suas atividades? Quem não se recorda que, propagandeando ser a única forma de baixar os juros cobrados das empresas e evitar que falissem, deu-se ao crédito dos bancos o direito de preferência sobre quase todos os créditos (Lei 11.101/2015)? Quem não carrega na memória a pregação de que uma Reforma Trabalhista, que revogasse os direitos dos trabalhadores, era a única forma de combater o desemprego e aumentar a produtividade empresarial? Ou que as empresas aéreas brasileiras quebrariam se não cobrassem pelas comidas, bagagens e assentos? Sabe-se agora, que as passagens aéreas no Brasil continuam sendo uma das mais caras do mundo e que os bancos bancados pelo Estado seguem, sem qualquer reciprocidade social, defendendo e praticando o que se pode

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denominar “Capitalismo de Seguro Estatal”. Descobriu-se, anos depois, que os bancos não aliviaram as empresas da falência anunciada, que a mudança legislativa apenas serviu para que se revogasse a histórica e total proteção dos créditos trabalhistas, pois os trabalhadores não poderiam ser punidos pela má-gestão, má-fé ou desvios patronais, bem assim tornando inexequível os créditos trabalhistas, a exemplo da Vasp e da Varig. Constatou-se que a Reforma Trabalhista, ao transformar a CLT na “Consolidação das Lesões Trabalhistas”, aumentou o números de desempregados e desalentados para trágicos 12,7 milhões e 4,7 milhões de brasileiros e brasileiras, respectivamente. Outra vez o argumento da catástrofe é utilizado para retirar da sociedade o direito a uma aposentadoria digna para aquele que, durante toda a vida, contribuiu para o crescimento das riquezas patronais e do Brasil. Na caneta legislativa é revelada a misoginia governante, pois às mulheres – já vítimas históricas do patriarcado que impõe a dupla jornada, a remuneração inferior e a informalidade compulsória – determina-se o aumento simultâneo do tempo de contribuição e da idade de aposentação, fazendo com que, na prática, apenas se aposentem por idade e com valores reduzidos. A mesma perversidade imposta aos trabalhadores rurais, professores, pessoas com deficiência e aqueles que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC). A proposta não garante o reajuste compensador da inflação, permite a redução do projeto de vida das pessoas, amplia a base de cálculo definidora do valor final, dificulta a aposentação das pessoas com deficiência, prejudica os anistiados políticos, reduz em milhões os trabalhadores

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que têm direito ao PIS/PASEP e não observa o direito adquirido daqueles que já estavam no regime de transição. Mais ainda, retira a obrigatoriedade do orçamento constitucional que faz superavitária a seguridade social e, tão grave quanto, retira da Constituição Federal qualquer debate qualificado sobre o direito à aposentadoria decente. Certamente por saber do retrocesso social provocado por sua proposta, ousou-se propor, a exemplo dos Atos Institucionais da ditadura civil-militar, que as injustiças provocadas não poderão ser corrigidas pelo Poder Judiciário. A exemplo da que transfere para os bancos a gestão pública das futuras aposentadorias, via uma esdruxula capitalização exclusiva dos recursos individuais da classe trabalhadora, modelo de privatização que faliu em mais de 16 países, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, OIT. Assim, como se vê, a catástrofe anunciada não passa da velha e lesiva catástrofe argumentativa.

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Por que caminhar em defesa das universidades?55 O ano letivo de 2018 ainda não havia concluído o seu papel inclusivo quando, desavisada e supreendentemente, uma deputada estadual catarinense recém-eleita vociferava que o alunato deveria fiscalizar, denunciar e gravar o conteúdo das aulas dos professores. Era a senha do que seria a “nova política” do “novo” governo eleito que acredita na força do canhão vencendo os livros da educação. Foi o que se revelou nos refrãos governamentais seguintes, especialmente quando o próprio presidente e o já exonerado primeiro ministro da área começaram a caminhar e a cantar as rimas dessa “nova lição”. E foi assim que a “balburdia” se tornou a nova política educacional brasileira, do inicial novelesco conflito “olavetes x militares”, passando pela deseducada, ilegal e inconstitucional ordem de se mandar gravar crianças em compulsória propaganda do mote da campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro, terminando com a “canibalização” de vários secretários e do próprio primeiro ministro da Educação empossado. E é assim que segue marchando o segundo ministro da pasta, que de pronto já assumiu declarando o seu desprezo pelo saber produzido nas universidades públicas, condenando-o assim à morte por inanição, em processo acusatório digno de Franz Kafka.

55 Congresso Em Foco, 28/05/2019, Congresso Em Foco, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/ colunas/por-que-caminhar-em-defesa-das-universidades/

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As escolas, as ruas, os campos, as construções e os vários cantos e recantos do país felizmente reagiram e caminharam em defesa do saber, recusando-se a viver sem razões. Estudantes, professores, professoras, trabalhadoras e trabalhadores da educação, pais, mães e amantes do conhecimento, em iguais braços dados, não esperaram acontecer o prometido caos educacional. O dia 15 de maio de 2019 fez-se hora, aprendeu e ensinou que a História estava à frente, nos amores da mente e na mão da cidadania que voltava a dizer, em decididos cordões: “NÃO!”. Os que marchavam tinham e têm a certeza de que o saber igualiza as pessoas, torna-as resistentes à exploração, quebra o preconceito que provoca o isolamento de uma classe que não nasceu em “berço esplêndido”. Sabem que somente através de uma educação para todas e todos é possível falar em ascensão social, liberdade competitiva, igualdade e Justiça Social, ainda que dificultadas pela desigualdade econômica que insiste e se recusa a deixar o Brasil. Compreendem que educar é palavra que rejeita tiranias, mitos, imbecilidades, misoginias, racismos, homofobia e toda forma de opressão. A caminhada em defesa das universidades fez-me lembrar de um provérbio árabe que bem define o estado de espírito dos que se dedicam à tarefa de educar, confirmando a vocação pela doação ao outro, independentemente das condições adversas que lhes são impostas. Diz o provérbio: não declares que as estrelas estão mortas só porque o céu está nublado. O nublado céu que queria impedir a cidadania brasileira de receber integralmente a luz da igualdade, o calor da liberdade e o amor da solidariedade, felizmente, não foi suficientemente denso para deter o ímpeto dos

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caminhantes de 15 de maio, tampouco que abandonasse a ousadia de lutar para que o sol um dia brilhe e nasça para mulheres e homens. Não tenho dúvida de que quando este dia chegar, e torço para chegue logo, perceberemos que foram os combativos caminhantes do 15 de maio os principais responsáveis pelo despertar desse novo tempo. Os que caminharam e os que seguirão caminhando nos próximos decisivos dias, fazendo da defesa das universidades o mais forte bordão. Eles poderão se orgulhar da História que irão deixar para esta e várias gerações. Eles poderão dizer, como já cantou Geraldo Vandré, que deixaram os saudosistas do obscurantismo perdidos de armas na mão, pois caminharam porque queriam viver com razão, apostando nas flores e nos livros que hão de vencer as armas e os canhões.

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Recordai-vos das fogueiras do Bonito56 Em manifesto dirigido aos “povos do Reino”, o príncipe regente Dom Pedro, no distante 1º de agosto de 1822, lançava histórico grito em que conclamava “a união dos habitantes do Ceará, do Maranhão, do riquíssimo Pará, dos ilustres baianos, dos valentes mineiros, dos intrépidos pernambucanos defensores da liberdade brasileira, das Províncias do Sul do Brasil, do Amazonas ao Prata”. No manifesto preparatório da Independência, que logo ocorreria no dia 7 de setembro de 1822, anotou o “viveiro de fardados lobos, que ainda sustentam os sanguinários caprichos do partido faccioso”, bem assim fazendo recordar aos pernambucanos “das fogueiras do Bonito e das cenas do Recife”. Referia-se o futuro imperador do Brasil ao massacre ordenado pelo capitão-general Luís do Rego Barreto – último governador pernambucano designado pelo Rei de Portugal – contra um ajuntamento de sem-terra no Sítio da Pedra do Rodeador, em Bonito (PE). O militar confundira o movimento religioso sebastianista liderado por Silvestre José dos Santos – um desertor das milícias locais – com os agitados republicanos da Revolução Pernambucana de 1817. Sabe-se que as tropas leais ao rei português Dom João VI, diante da grande quantidade de feridos e de mortos em razão do massacre, juntaram os corpos dos vencidos – vivos e mortos – formando uma imensa e insana fogueira hu56 Congresso Em Foco, 30/01/2019, https://congressoemfoco.uol.com.br/opiniao/colunas/recordai-vos-das-fogueiras-do-bonito/

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mana. Daí a frase do jovem regente, denunciando o crime praticado em nome do Rei, estimulando os movimentos que lutavam pela Independência do Brasil: “Recordai-vos, pernambucanos, das fogueiras do Bonito”. O município de Bonito – no final do século 18 – destacava-se pelas imensas florestas e por integrar área abrangida pelo importante e simbólico Quilombo dos Palmares. Ambos vitimados pela insana lógica patrimonialista dos que se julgam no direito de ter a propriedade das pessoas, das terras e das riquezas naturais. Massacres que – a exemplo de Bonito e Quilombo – o avançar da história, o aperfeiçoamento da vida em sociedade e a Constituição de 1988, passaram a considerar “crimes contra a humanidade”. Recordei-me das fogueiras do Bonito diante das fogueiras da Amazônia. É que, mais uma vez, o patrimonialismo externou – agora em pleno século 21 – o seu desprezo pela natureza, pelo desenvolvimento sustentável e pelos povos originários. Outra vez a ganância dos que querem transformar o planeta Terra em produto apropriável e disponível ao insaciável mercado. Novamente a devastação dos métodos, dos valores e da vida nascida nas florestas enquanto bens inalienáveis da humanidade. A Amazônia e todas as florestas do mundo não podem ser massacradas pelo ambicioso fogo da ideologia do lucro e dos governantes que a professam. Os povos amazônicos e todos os povos do mundo não podem ser massacrados pela ideologia da coisificação da pessoa humana. A Amazônia e todas as riquezas do mundo não podem ser massacradas pela ideologia da apropriação privada do bem público e comum.

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No manifesto em que o príncipe regente conclama e proclama a nação a lutar pela Independência do Brasil, também por ele foi registrado: “Está acabado o tempo de enganar os homens. Os governos que ainda querem fundar o seu poder sobre a pretendida ignorância dos povos, ou sobre antigos erros e abusos, têm de ver o colosso da sua grandeza tombar da frágil base sobre que se erguera outrora”. As fogueiras da Amazônia mantêm-se ardentes, devastadoras e impiedosas com a vida que sempre se protegeu nas frondosas árvores da floresta. E sem perspectivas de serem apagadas, pois nutridas pela criminosa mão humana dos que enxergam na floresta-viva o maior empecilho à ambição insaciável de mineradoras, madeireiros, garimpeiros, fazendeiros, grileiros e traficantes de trabalho análogo à escravo. Mãos que agora encontram apoio nos governantes que se recusam a “acabar o tempo de enganar os homens”.

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Este livro foi produzido com a família tipográfica EXO (Open Font License), um tipo de letra sans serif geométrico contemporâneo bem resolvida para impressos e para web, desenvolvida pelo designer Natanael Gama. As colagens, técnica contemporânea de produção de imagens, incorporadas pela página que separa os capítulos, foram configuradas pelos designers Antonio Ferreira Marinho e Isabella de Sousa Melo.

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Sabe-se que o Tempo da História é diferente do tempo que se olha no presente. Como igualmente é sabido, a escrita altiva e ativa do hoje é quem determina que será contado no futuro. Daí a razão do esclarecimento inicial de que esta compilação, dividida em cinco tomos (democracia, Justiça, direitos trabalhistas, direitos humanos e futuro), não tem a pretensão de simbolizar, em palavras e reflexões, a finitude de um tempo que já passou. O que se quer é apontar para o tempo que ainda está em plena construção, dependente apenas da nossa ação ou omissão. O período que apelido no título: Não é tempo para silêncios!


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