ideia de escrever este livro surgiu a partir das perguntas mais comuns que
foram formuladas pelos alunos do Curso de Investigação Psicanalítica das Psicoses do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, do qual o autor foi colaborador durante alguns anos. No afã de organizar as leituras dos diferentes autores psicanalíticos e as distintas abordagens que a obra freudiana possibilita, os alunos acabam vítimas de malentendidos e de confusões teóricas. O autor acredita virem daí as críticas mais comumente feitas a Freud na área do estudo das psicoses. O leque de exemplos é amplo e vai desde o lamento (ressentido) por Freud não ter construído uma teoria para as psicoses, como teria feito para as neuroses, até desconfianças quanto ao conhecimento de Freud acerca do fenômeno psicótico. Como veremos, a teoria freudiana das neuroses foi, desde sempre, a mesma para todas as doenças mentais. Conforme o título que deu a um de seus primeiros trabalhos, catalogava essas doenças como neuropsicoses de defesa, e as psicoses nunca deixaram de fazer parte dessa categoria. De qualquer forma, não há nenhum fundamento epistemológico em esperar duas teorias psicanalíticas para fenômenos mentais. Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, essas e outras questões serão aprofundadas ao longo do livro.
Investigando Psicanaliticamente as Psicoses
A
2 a edição
OUTROS TÍTULOS DE INTERESSE Analice Gigliotti / Angela Guimarães Dependência, Compulsão e Impulsividade
Decio Tenenbaum
Analice Gigliotti / Angela Guimarães (ABEAD) Diretrizes Gerais para o Tratamento da Dependência Química Gustavo Henrique Teixeira Drogas – Guia para Pais e Professores Gustavo Henrique Teixeira Transtornos Comportamentais na Infância e Adolescência Gustavo Henrique Teixeira O Reizinho da Casa – Entendendo o Mundo das Crianças Opositivas, Desafiadoras e Desobedientes Abram Eksterman Interlúdios em Veneza – Os Diálogos Quase Impossíveis entre Freud e Thomas Mann Saiba mais sobre estes e outros títulos em nosso site: www.rubio.com.br
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Investigando Psicanaliticamente as Psicoses
Investigando Psicanaliticamente as Psicoses
2a edição Decio Tenenbaum
Investigando Psicanaliticamente as Psicoses Copyright © 2010 Editora Rubio Ltda. ISBN 978-85-7771-061-4 Todos os direitos reservados. É expressamente proibida a reprodução desta obra, no todo ou em partes, sem a autorização por escrito da Editora. Produção e Capa Equipe Rubio Editoração Eletrônica Redb Style Produções Gráficas e Editorial Ltda. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tenenbaum, Decio Investigando psicanaliticamente as psicoses / Decio Tenenbaum. -- 2. ed. -- Rio de Janeiro : Editora Rubio, 2010. Bibliografia ISBN 978-85-7771-061-4 1. Psicoses 2. Psiquiatria 3. Saúde mental I. Título. 10-00921
CDD-616.891721 Índices para catálogo sistemático: 1. Psicoses : Psiquiatria : Medicina 616.891721
Editora Rubio Ltda. Av. Churchill, 97 sala 203 – Castelo 20020-050 – Rio de Janeiro – RJ Telefax: 55 (21) 2262-3779 2262-1783 E-mail: rubio@rubio.com.br www.rubio.com.br Impresso no Brasil Printed in Brazil
Sobre o Autor
É médico formado pela Escola Médica do Rio de Janeiro – Universidade Gama Filho (UGF) em 1976, com residência médica no Serviço de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1977-1978). Full-member da Associação Psicanalítica Internacional. Membro efetivo, com funções didáticas, da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. É autor de trabalhos apresentados em congressos nacionais e internacionais e artigos publicados em revistas especializadas. Foi representante do Brasil na Standing Conference on Psychosis of the International Pshychoanalytical Association entre 1996 e 2002. Foi professor voluntário da cadeira de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques durante o ano letivo de 1998 e professor da disciplina Psicologia do Desenvolvimento da cadeira de Psicologia Médica na Faculdade de Medicina da Universidade Estácio de Sá no período de março de 1999 a dezembro de 2000. É médico psiquiatra do Ministério da Saúde, lotado no Instituto Phillippe Pinel (RJ) desde 1982, onde já exerceu vários cargos de chefia. Dedica-se voluntariamente ao Centro de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro desde 1998, onde supervisiona as equipes de psicologia médica associadas à 23a enfermaria (Serviço de Cirurgia Geral do prof. Dr. José Geraldo Loures Pereira) e à 29a enfermaria (Serviço de Dermatologia do prof. Dr. David R. Azulay).
Para Betina Seu brilho nos olhos ao ver o pai escrevendo foi sempre o estĂmulo a que recorri para conseguir concluir este desafio.
Prefácio à 2 a Edição
A Psicanálise e a Loucura
“Desde há muito tempo o louco é aquele indivíduo que se retirou, fugido ou saído, da realidade para um mundo próprio ou para o mundo da lua, isto é, da noite, ou melhor, dos sonhos; e o fez por alguma frustração ou por alguma dificuldade em lidar com a dita realidade.” Assim se expressa o autor deste magnífico livro, agora em sua segunda edição, ao iniciar o capítulo “Psicose como regressão egoica”. Poderia igualmente ter iniciado o próprio livro desta maneira, porque acentua a essência e a importância do texto diante de um dos mais intrigantes desafios ao conhecimento humano: o que é um louco e como nos tornamos um. Tentando explicar o enigma da loucura, também atribui, no trecho citado, a cada pessoa a autoria de sua insanidade. Será mesmo assim? Como psicanalista, e com larga e profícua trajetória profissional, inspira-se nessa afirmação nas diretrizes implícitas na dinâmica do inconsciente, cujo conhecimento, aberto por Sigmund Freud, criou a Psicanálise. Com efeito, dentro da ótica psicanalítica, para a saúde e para a doença, para a normalidade e para a loucura, somos o sujeito dos eventos biográficos que nos modelam para um ou outro desses destinos. Não por conta desse nosso eu que podemos contemplar no espelho de nossa consciência; mas daquele outro que borbulha no cadinho aquecido por nossos afetos, que constitui o âmago de nossa intimidade, oculto e desconhecido, imerso na obscuridade de um mundo sem palavras e que,
no entanto, por sua força cega em busca dos objetos da realidade, tenta se impor como nosso destino. É o que foi batizado por Freud, em alemão, como das Es, traduzido para o português, a partir do inglês, como o ID. É assim, então, que Decio Tenenbaum, usando o instrumento psicanalítico criado pelo sábio austríaco, nos lembra mais uma vez que somos autores de nossa sanidade, ou de nossa loucura, e, ao mesmo tempo, nos mostra como podemos nos recuperar usando esse instrumento. Não tem respostas finais; tem contribuições preciosas. Loucura, na época de Freud, era ou o resultado de uma disposição herdada, ou a consequência de uma lesão funcional ou anatômica do cérebro. Se no Renascimento a Igreja chegou a um acordo com os anatomistas no sentido de lhes permitir o estudo da anatomia nos cadáveres – desde que respeitassem o espírito, exclusividade da Religião –, agora o Conhecimento do Homem e de sua Psiquê, varridos os preconceitos espirituais pelo Iluminismo, procurava essa Psiquê no corpo. Freud, ele próprio, era um fisiólogo e neurólogo de formação. A Psicanálise nasceu do estudo da “afasia funcional” e a loucura fazia parte de um estudo abrangente de uma Neuropsiquiatria. A Psiquiatria estava nascendo como disciplina autônoma. O grande mérito da Psicanálise, em seu nascedouro, e o prestígio imediato que adquiriu em alguns renomados centros de tratamento de doentes mentais, foi simplesmente a proposta que Freud desenvolveu sobre uma concepção psicogenética da loucura (independente de essa loucura ser uma neurose ou psicose – discriminação que ainda não se havia firmado). Particularmente no Hospital de Burghölzli, localizado em um distrito de Zurich, clínica fundada no início da década de 1860 e que fazia parte do ensino de Medicina na Universidade dessa cidade do cantão alemão da Suíça. Em 1898 assumiu sua direção Paul Eugen Bleuler (18571939), sucedendo a outro grande nome da psiquiatria mundial:
Auguste-Henri Forel (1848-1931). Forel praticava hipnose e interessou-se pelos escritos de Freud, embora não lhe desse apoio. Era um humanista e espiritualista, chegando a se filiar à fé Bahá’í, que apregoava a unidade espiritual de todas as religiões. Bleuler, ao contrário, era um entusiasta pelos escritos de Freud, justamente porque esses escritos esclareciam a loucura através da uma perspectiva psicológica. Na época do nascimento da Psicanálise não era nítida a distinção entre neurose e psicose, como veio a ocorrer com a classificação de Kraepelin e logo a seguir com a de Bleuler. Emil Kraepelin (18561926) classificou em 1896 um grupo de doentes mentais, que hoje conhecemos como distúrbio paranoico, os mesmo que por volta de 1908 Bleuler acunhou para eles o termo “esquizofrenia”, mais específico para descrever o clássico louco. Foi também Bleuler, talvez um dos mais talentosos psiquiatras de todos os tempos, quem criou os termos “ambivalência” e “autismo”. Além de notável como médico psiquiatra, especialidade que começou a se firmar separada da neurologia no início do século XX, Bleuler exerceu liderança ímpar entre os que buscavam formação nessa área terapêutica. O sanatório de Burghölzli foi, nesse período de ouro para a Psiquiatria, um dos principais centros do mundo, pelo qual passaram personalidades como: Karl Abraham (1877-1925), Ludwig Binswanger (1881-1966), Hermann Rorschach (1884-1922), Franz Riklin (1878-1938), Constantin von Monakow (1853-1930), Adolf Meyer (1866-1950), Abraham Brill (1874-1948), Emil Oberholzer (1883-1958), e aquele que se tornou, no movimento psicanalítico, figura exponencial e herdeiro preferido de Freud, embora dez anos depois tenha se convertido em seu principal dissidente: Carl Gustav Jung (1875-1961). Rorschach, que praticou psiquiatria e psicanálise em Herisau, na Suíça, aficionado desde a juventude em borrões de tinta, tentou utilizá-las como teste projetivo até escrever o livro “Psicodiagnóstico” (1921), que se imortalizou como clássico na história da Psico-
logia. Karl Abraham tornou-se um dos principais continuadores de Freud e um dos mais importantes intelectuais da Psicanálise. Ludwig Binswanger desenvolveu o que ficou conhecido como “Psicanálise Existencial”. Riklin ocupou o cargo de primeiro secretário da recém-fundada International Psychoanalytical Association e tornou-se o principal colaborador de Jung em seu teste com associação de palavras. Von Monakow tornou-se eminente neurofisiologista. Adolf Meyer emigrou para os Estados Unidos e adquiriu o mérito de ser um dos principais mestres da Psiquiatria mundial, fundando o que chamou de Psicobiologia, dando relevo aos aspectos biográficos do paciente na formação do médico geral. Abraham Brill foi o tradutor das principais obras de Freud nos Estados Unidos, bem como do Tratado de Psiquiatria de Bleuler, além de ser um dos mais influentes psiquiatras e psicanalistas nesse país. Oberholzer fundou com a esposa e Oscar Pfister a Sociedade Psicanalítica Suíça (1919) e colaborou com Rorschach no desenvolvimento das placas para psicodiagnóstico, tendo, posteriormente, introduzido o teste nos Estados Unidos. Jung, depois da dissidência com Freud, fundou sua própria instituição e se tornou um dos nomes mais importantes do estudo da Psicologia Profunda. O que havia de comum entre esses notáveis psiquiatras? Sua excepcional cultura humanística e, consequentemente, sua capacidade de amalgamar as descobertas de Freud e da Psicanálise com a tradição neuropsiquiátrica de Wilhelm Griesinger (1817-1868). Aliás, fundador do sanatório. Burghölzli é, até hoje, um dos mais importantes centros psiquiátricos mundiais. O impacto da descoberta psicanalítica veio ao encontro da esperança humanística desses notáveis e cultos inovadores. Desde Bleuler, esperavam encontrar no modo de ser humano, em sua intrincada trama psíquica e em sua inesgotável capacidade de criar símbolos, muito além das façanhas da Biologia, particularmente da Neurobiologia, uma melhor explicação para a loucura que, até então, estava inserida no território exclusivo do corpo. Não bus-
cavam uma “alma”, no velho sentido religioso, nem de uma Moral no sentido de Philippe Pinel, mas uma melhor explicação da natureza humana, daquilo que pudesse definir a própria condição do existir como ser humano. Enfim, o res cogitans de Descartes. Freud, embora ele próprio um neurobiólogo e comprometido com a estrita explicação natural, trazia em suas teorias do inconsciente uma nova perspectiva da natureza humana: uma perspectiva simbólica, origem da racionalidade e da cultura. Aquilo que não estava exatamente dentro do corpo de ninguém, mas que transita nos interstícios das relações humanas e que permitia pensar-se em uma Humanidade. Ficou esquecida a importância da disseminação da Psicanálise realizada por esses pesquisadores da loucura na medida em que seus discípulos e continuadores, principalmente seus terapeutas, progressivamente foram se desviando de sua função de mitigar, ou mesmo curar, o sofrimento mental desses perturbados graves para ir ao encontro do quotidiano humano e de suas mazelas, como novos orientadores do bem-viver. Abandonaram-se expressões como “tratar” e “curar”, em favor de “integrar” e “desenvolver”, mais pretensiosas e, infelizmente, ambíguas. Um retorno à preocupação original da Psicanálise com a loucura, principalmente nos dias atuais de supersimplificação biológica da patologia mental, é tarefa necessária e urgente. E a Psicanálise ainda é – e dificilmente será superada nessa missão – o melhor instrumento de investigação e abordagem terapêutica dos sutis desvios da trama de representações que constituem o cerne de nossa vida mental. É impossível abandonar a vasta bibliografia sobre estados primitivos, regressivos, borderlines, além do universo de observações preciosas sobre sintomas delirantes; e sobre luto, perdas e lesões do ego, que constituem a base do estudo psicodinâmico das depressões. E nunca esquecer a riqueza das projeções, igualmente psicodinâmicas, sobre as demais relações terapêuticas na área de saúde, sobre as terapêuticas adaptativas das comu-
nidades terapêuticas e sobre as funções das famílias na gênese e recuperação de distúrbios psicóticos. Se há, inegavelmente, evidências de graves distúrbios perceptivos e estados de ânimo decorrentes de alterações bioquímicas e fisiológicas, principalmente no funcionamento do sistema nervoso central, além de sofrimentos consequentes a estresse incontrolável gerando angústia, também é verdade que as vicissitudes por que passam as informações até se transformarem em representações, símbolos e, finalmente, consciência, formam um conjunto de eventos que pertencem aos estudos meticulosos principalmente da Psicanálise. Assim como na composição do funcionamento dos modernos computadores, há que considerar o hardware e o software como componentes de uma mesma estrutura funcional. Um não pode – nem deve – ser reduzido ao outro. E quando o são geram conflitos capazes de dissolver em irracionalidade anos de conquistas no campo do Conhecimento, levantando de túmulos esquecidos falsos saberes e mitos ultrapassados. Foi assim que se criou uma antipsiquiatria, como a condenar um século e meio de pesquisa pós-Pinel, que definitivamente integrou o doente mental à preocupação médica e deu-lhe a dignidade de doente, diferentemente da tradição que o considerava um estranho, bisonho, anormal, a-social, um tomado por espíritos malignos, ou degenerado de nascença. É verdade também que o hospital psiquiátrico continuou o modelo do antigo asilo de alienados, com fracas e, em geral, inócuas tentativas terapêuticas, algumas lembrando as contenções e as torturas encontradas pelo mestre francês em Bicêtre e no hospital de La Salpêtrière. Assim foram os banhos gelados, o coma hipoglicêmico induzido por insulina, as convulsões induzidas por cardiazol e pelo método de Cerletti, ou seja, choque elétrico, ainda utilizado nos dias atuais, sem mencionar as lobotomias frontais. Acrescente-se a tudo isso, apesar de Pinel, as hospitalizações por conveniência social, autorizadas por familiares ou por autoridades constituídas, atropelando todos os princípios de
direitos humanos, aqueles que foram desfraldados depois da queda da Bastilha com os dizeres: Liberté, Egalité, Fraternité, e que permitiu Philippe Pinel declarar que os doentes mentais poderiam ser “como nós...”. A antipsiquiatria foi uma exagerada reação contra a exagerada medicalização e contenção do chamado louco. O chamado movimento da antipsiquiatria foi inspirado nos escritos de Michel Foucault, em seus estudos críticos sobre a história da loucura. O termo antipsiquiatria foi criado por David Cooper em 1967, época dos muitos movimentos questionadores do establishment, todos designados como “contracultura”, resultado de uma juventude exausta da estupidez das guerras, das ameaças de destruição, da mentira social e da desintegração dos mais importantes valores éticos, corrompidos pela voragem do poder econômico. É a época da “revolução e das barricadas de 1968”; é também a época dos Beatles, de Woodstock, e da reação da extrema direita impondo ditaduras, torturas e todo tipo de violação dos direitos humanos. O mundo parecia virar pelo avesso. A mulher adquiria plena inserção social e a criança começou a ser respeitada como criança e não apenas como um futuro adulto. Os pobres não se conformaram mais em ser pobres e os países colonizados não admitiam mais senhores, assim como as minorias raciais. Desta forma tomava corpo a Liberdade como direito de Ser; a Igualdade como direito de estabelecer espaço de existência; a Fraternidade como uma Humanidade pelo menos pensando em Cooperar, ao invés de Dominar. A Revolução Francesa tornava-se universal. Seguindo Michel Foucault, dominaram o cenário da antipsiquiatria Ronald David Laing, Thomas Szasz e o italiano Franco Basaglia, que fez passar a histórica Lei nº 180, de 1978, que abolia os hospitais psiquiátricos. Este último inspirou muito das reformas psiquiátricas no Brasil. O movimento da antipsiquiatria inspirou muita literatura e filmes premiados, como “THX 1138”, de George Lucas (1970), e
o mais conhecido, “Um estranho no Ninho” (“One flew over the Cuckoo’s Nest”), de Milos Forman (1975). Erving Goffman (1922-1982), importante professor e sociólogo americano, bem como Gilles Deleuze (1925-1995) e Pierre-Félix Guatarri (1930-1992), importantes filósofos franceses, este último também psicoterapeuta, foram críticos associados às ideias da antipsiquiatria. A questão óbvia não é o conhecimento psiquiátrico, mas o uso perverso que se tem feito desse conhecimento, bem como das instituições patrocinadas pela Psiquiatria, com finalidades espúrias de dominação e de promover interesses econômicos. Esses questionamentos continuam dentro da própria especialidade. Hoje em dia, com o reducionismo ao biológico de praticamente toda Psiquiatria, surgiram críticos importantes e até associações para proteger os usuários dos excessos praticados. Com razão, um presidente da Associação Psiquiátrica Americana, Steven S. Sharfstein, M.D., em um artigo de agosto de 2005, cujo sugestivo título é “Big Pharma and American Psychiatry: The Good, the Bad, and the Ugly”, comenta: “In a time of economic constraint, a ‘pill and an appointment’ has dominated treatment.” A loucura nem pode ser compreendida, nem tratada pela ciência, salvo aquela que puder penetrar na intimidade da existência humana, e salvo se alguém puder enquadrar a subjetividade em uma formalização científica. A Psicanálise, embora todas as críticas quanto à sua precariedade como exposição científica, ainda é o instrumento que nos aproxima dessa experiência, tão singular e tão difícil de comunicá-la. Vistos de fora, os sintomas podem ser classificados e reunidos em grupos e categorias. Mas eles, os sintomas, contêm uma intimidade que só a experiência empática consegue apreender e efetivamente compreender. Poderia haver uma ciência de tais complexidades e de tais singularidades? A Psicanálise abriu as portas com o instrumento técnico conhecido como relação transferencial. Permite ao observador estar dentro do cenário mental do paciente e perceber e compreender seus sig-
nificados. Além disso, só resta diluir-se em estereótipos. Portanto, a aventura iniciada por Sigmund Freud mal começou. Bem faz o psicanalista Decio Tenenbaum em continuá-la. Abram Eksterman Médico-Psicanalista. Membro Titular do International Psychoanalytical Association e do International College of Psychosomatic Medicine. Professor Aposentado de Psicologia Médica das Faculdades de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques (FTESM) e da Universidade Estácio de Sá (UNESA). Fundador e Ex-Presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática (ABMP). Diretor do Centro de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro.
Apresentação à Primeira Edição
A ideia de escrever este livro surgiu a partir das perguntas mais comuns que foram formuladas pelos alunos do Curso de Investigação Psicanalítica das Psicoses do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, do qual fui colaborador durante alguns anos. No afã de organizar as leituras dos diferentes autores psicanalíticos e as distintas abordagens que a obra freudiana possibilita, os alunos acabam vítimas de mal entendidos e de confusões teóricas. Creio vir daí as críticas mais comumente feitas a Freud na área do estudo das psicoses. O leque de exemplos é amplo e vai desde o lamento (ressentido) por Freud não ter construído uma teoria para as psicoses, como teria feito para as neuroses, até desconfianças quanto ao conhecimento de Freud acerca do fenômeno psicótico. Como veremos, a teoria freudiana das neuroses foi, desde sempre, a mesma para todas as doenças mentais. Conforme o título que deu a um de seus primeiros trabalhos, catalogava essas doenças como neuropsicoses de defesa, e as psicoses nunca deixaram de fazer parte dessa categoria.1 De qualquer forma, não há nenhum fundamento epistemológico em esperar duas teorias psicanalíticas para fenômenos mentais. Sem ter a pretensão de esgotar o assunto, essas e outras questões serão aprofundadas ao longo do livro. 1 cf. vol. VII, p. 165; vol. VIII, p. 195 n 3; vol. XI, p. 32-3; vol. XII, p. 400; vol. XIII, p. 208.
Inicialmente pensei em responder às perguntas por meio de um roteiro das ideias de Freud a respeito dos fenômenos psicóticos. Pesquisei na obra completa de Freud todos os verbetes que guardassem alguma relação com o tema, além de, óbvio, reler todos os artigos mais diretamente relacionados com o assunto. Pude notar como o uso de verbetes e conceitos ligados às psicoses é maior nos vols. I e II, diminuindo progressivamente até se tornar mínimo nos vols. VIII, IX, X e XI. Volta a aumentar no vol. XII (Caso Schreber) para, então, diminuir novamente até o final. Nesse caminhar fui percebendo que as diversas perguntas coletadas nesses anos como colaborador do curso podiam ser reduzidas a três fundamentais: a) Para a psicanálise, qual é o fenômeno psicodinâmico básico das psicoses? b) Como ele foi teorizado por Freud? c) Quais são as consequências da ocorrência desse fenômeno para o funcionamento mental? A partir desse ponto mudei o plano inicial. Resolvi não mais apresentar um manual de estudo sobre as ideias de Freud a respeito dos fenômenos psicóticos, embora o capítulo sobre o texto freudiano também possa ser utilizado dessa forma. Vou me aventurar a responder a essas três perguntas sem me preocupar muito em buscar em outros autores justificativas para as opiniões que vou apresentar. Como outros escritores já disseram, o leitor deve, antes de tudo, estar ciente de que qualquer texto é uma parte do diálogo no qual o autor expõe sempre (até mesmo Freud) uma abordagem exploratória com apresentação de hipóteses, e não de certezas absolutas. Muitos pontos que serão apresentados, principalmente no segundo capítulo, foram desenvolvidos com base em conversas que tive a satisfação de ter com o Dr. Abram Eksterman, guia e mestre maior nos saberes sobre o funcionamento mental e de quem me
considero um discípulo. Pude também contar com a ajuda da Dra. Monica Marques Tenenbaum, sempre disposta a discutir comigo minhas ideias usando sua argúcia e experiência clínica com esse tipo de paciente. O resultado dessas conversas foi sempre a maior objetividade no que eu estava escrevendo. Mas, é importante ressaltar, as opiniões que aqui serão desenvolvidas são da minha inteira responsabilidade. Infelizmente serei repetitivo em muitos momentos, e de antemão peço desculpas, mas isso se deve ao fato de que nosso tema esteve presente na obra de Freud em diferentes vértices, mas quase sempre apontando para o mesmo ponto. O primeiro capítulo do livro será dedicado à apresentação do que Freud considerava ser o fenômeno fundamental na psicose. Para isso seguirei cronologicamente o texto freudiano, mas balizado por seus casos clínicos de psicose. Os textos freudianos serão citados pelos títulos que receberam na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, publicada pela Editora Imago. E para que nossa conversa seja proveitosa precisarei, como uma introdução, situar a evolução do conceito de psicose, já que na época em que os textos freudianos foram escritos a sistematização do assunto era muito pequena (os estudos freudianos também tinham a sistematização dos fenômenos mentais como um objetivo, daí a tentativa nosográfica de Freud). No segundo capítulo, exporei minhas opiniões sobre o acontecer psicótico e suas consequências para o funcionamento mental. O terceiro capítulo será dedicado a exemplos clínicos oriundos de minha experiência com a intenção de indicar uma estratégia de tratamento psicanalítico para as psicoses fundamentada no que foi discutido nos dois primeiros capítulos. Finalmente, o quarto capítulo tenta apontar áreas em que existem perspectivas de ampliação do conhecimento psicanalítico das psicoses. Rio de Janeiro, abril de 1999.
Apresentação à Segunda Edição
Nestes últimos 10 anos me dediquei ao estudo da psicologia e da psicopatologia dos vínculos básicos (diádico e edípico) e, trabalhando com pacientes orgânicos no Centro de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, pude ampliar a observação que já vinha fazendo sobre as repercussões das vicissitudes da organização desses vínculos, não só na mente (psicose) como também no corpo (doenças psicossomáticas) dos pacientes. Embora tenha sido Ruth Mack Brunswick (1897-1946), psiquiatra e psicanalista interessada no tratamento de pacientes psicóticos, quem, por volta do início do século XX, relacionou, pela primeira vez, a psicose com a patologia do vínculo com a mãe, por ela chamado de relação pré-edipiana, 2 o estudo psicanalítico desse tipo de vínculo começou, não com esse nome, com Otto Rank (1884-1939) em seu trabalho sobre o trauma do nascimento.3 Infelizmente, Rank pagou o preço de sua exclusão ao deslocar a ênfase do vínculo edípico para o diádico, como passarei a chamar o tipo de vínculo que é estabelecido em uma relação maternal. Curiosamente, essa mesma situação se repetiu outras vezes, nem sempre com o mesmo desfecho (vide a obra e o percurso de Melanie Klein), com outros psicanalistas que ao longo do movimento psica-
2 Roazen (1978). 3 Rank (1929).
nalítico tentaram ampliar, deslocar ou mesmo relativizar as ideias freudianas. Jacques Lacan (1901-1981), outro excluído mas não por esse motivo, foi o primeiro a relacionar a psicose com problemas no desempenho da função paterna, isto é, o exercício dos papéis, psicológico e social presentes em uma relação paternal e regidos pelo vínculo edípico. Michael Balint, que também se dedicou ao estudo desses vínculos primitivos, foi o primeiro a estudar a patologia e a patogenia deles, que chamou de falha básica. Abram Eksterman tem se dedicado ao desenvolvimento desse estudo e à aplicação desse conhecimento na criação e manutenção da relação terapêutica, crucial para um trabalho eficaz e eficiente de médicos e psicólogos. Apesar das baixas, o estudo psicanalítico desses vínculos continuou e, dependendo do aspecto realçado pelo autor, recebeu diferentes nomes: “primitivos”, “básicos”, “diádicos”, “apego” ( J. Bowlby), “narcísicos” (S. Freud), “pré-edípicos” (R. Brunswick), “primary love” (M. Balint), “rêverie” (W. R. Bion), “holding” (D. Winnicott), “unidade básica” (M. Little), “mãe-bebê” (M. Klein), “the need-satisfying object” (A. Freud), “the average expectable environment” (H. Hartmann), “extra-uterine matrix” (M. Mahler), “mediator of the environment” (R. Spitz), “relação self-objetal” (H. Kohut), “relação especular” e “função paterna” ( J. Lacan) etc. Após esse primeiro momento caracterizado pelo estudo de diferentes aspectos dos vínculos humanos, a integração do conhecimento sobre a psicologia e a psicopatologia dos vínculos se fez necessária e surgiu o estudo sobre as funções materna e paterna. Desde então o trabalho psicanalítico com pacientes psicóticos e psicossomáticos só tem confirmado a suposição desses grandes mestres, entre os quais incluo Arnaldo Rascovsky com seu trabalho sobre o filicídio.4 Esse estudo me ajudou a desenvolver um pouco mais o item sobre a psicodinâmica das relações intersub4 Rascovsky, A. (1974).
jetivas na desorganização mental, o Capítulo 17, Relações Interpessoais e Desenvolvimento Mental. Mas não foi só aí que a parte final do livro sofreu ampliações. Também o estudo sobre a relação da consciência com a desorganização mental (Capítulo 16, Consciência e Desorganização Mental) foi ampliado e aproveitei para introduzir mais algumas palavras sobre o uso da medicação no tratamento psicanalítico de pacientes psicóticos (Capítulo 18, Perspectivas para o Tratamento Psicanalítico de Pacientes Psicóticos). Assim, a quarta parte foi a que sofreu maior ampliação. A primeira e a segunda partes do livro permaneceram praticamente inalteradas, porque ainda considero atual a análise crítica da concepção freudiana sobre o fenômeno psicótico e porque as ampliações referentes à segunda parte apresentavam uma relação direta com os itens da última parte deste livro, e lá foram inseridas. Na terceira parte, a história do tratamento da paciente “B.” foi atualizada e acrescida de uma discussão sobre o fim da análise. Espero que as ampliações feitas justifiquem a elaboração desta segunda edição e ajudem a trazer um pouco mais de luz sobre o imenso campo da compreensão e do tratamento de pessoas que passaram por uma desorganização mental.
Sumário
PRIMEIRA PARTE
A Teoria Freudiana para as Psicoses Capítulo 1 Introdução.................................................................................................. 3 Capítulo 2 Evolução do Conceito de Psicose...................................................... 9 Capítulo 3 Os Primeiros Anos.................................................................................13 Capítulo 4 O Fenômeno Psicótico na Revisão Metapsicológica...............39 Capítulo 5 Os Últimos Anos: Ego e Realidade..................................................65
SEGUNDA PARTE
Afinal o Que É a Psicose? Capítulo 6 Introdução................................................................................................75 Capítulo 7 Psicose como Regressão Egoica......................................................91 Capítulo 8 Psicose como Desorganização Egoica...........................................97 Capítulo 9 Fatores Desencadeantes da Desorganização Egoica............ 107 Capítulo 10 Sobre o Ego.......................................................................................... 119
TERCEIRA PARTE
A Clínica Capítulo 11 Introdução............................................................................................. 153 Capítulo 12 S. .............................................................................................................. 163 Capítulo 13 B................................................................................................................ 179 Capítulo 14 C................................................................................................................ 213
QUARTA PARTE
Três Questões Capítulo 15 Introdução............................................................................................. 223 Capítulo 16 Consciência e Desorganização Mental...................................... 227 Capítulo 17 Relações Interpessoais e Desenvolvimento Mental.............. 243 Capítulo 18 Perspectivas para o Tratamento Psicanalítico de Pacientes Psicóticos........................................................................... 251 Referências ...................................................................................................................... 269 Índice Remissivo............................................................................................................ 265
Primeira Parte A Teoria Freudiana para as Psicoses
Capítulo 1 Introdução Capítulo 2 Evolução do Conceito de Psicose Capítulo 3 Os Primeiros Anos Capítulo 4 O Fenômeno Psicótico na Revisão Metapsicológica Capítulo 5 Os Últimos Anos: Ego e Realidade
Capítulo um
Introdução
Sei que o estudo das psicoses não é propriedade da psicanálise; aliás, muito antes do advento da psicanálise os fenômenos mentais já eram, e continuam sendo, estudados por diferentes saberes. Como a psicanálise já é uma jovem ciência de cem anos, acredito estar madura para cair na vida do diálogo científico sem medo de perder sua identidade. Para esse diálogo se tornar possível, à psicanálise cabe o desafio de abrir mão definitivamente das concepções físicas (energéticas) e biológicas (lamarckistas) usadas por Freud e há muito ultrapassadas, guardando apenas o que realmente ajuda na compreensão dos fenômenos mentais. Por esse motivo, ao longo do livro e, principalmente ao abordar a concepção de psicose que pode ser retirada do texto freudiano, não darei maior importância às ideias de cunho econômico e topográfico. Junto a outros autores, considero a concepção dinâmica iniciada com a Interpretação dos Sonhos1 como a chave do conhecimento sobre o funcionamento mental. Conceitos dinâmicos como conflito, defesa, elaboração, compulsão à repetição (da primeira tópica), processos primário e secundário de pensar, entre outros serão articulados com conceitos mais atuais da física (teoria dos sistemas, objeto complexo), 1 Vols. IV e V.
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da biologia (darwiniana) e da etologia humana (Bowlby) para tentar obter visão mais abrangente do fenômeno psicótico. Mas, exatamente por considerar a articulação entre conceitos de diferentes ciências algo que deve ser feito com o devido cuidado epistemológico para se evitar as confusões nas respectivas aplicações sociais das ciências (clínicas, sociológicas, políticas etc.), este livro tem também a intenção de ajudar a estabelecer os fundamentos da teoria psicanalítica para esse debate que já está mais do que atrasado. Para esse fim, será necessário mostrar certos equívocos que Freud cometeu principalmente ao teorizar sobre as funções do aparelho mental e sobre as causas e as consequências dos fenômenos psicóticos para o funcionamento mental. E não foi apenas aí que Freud se enganou. Por ter encontrado em alguns fenômenos sociais os mesmos elementos psicológicos em ação nos indivíduos, ele julgou, erroneamente, que as bases dos fenômenos sociais eram apenas, ou fundamentalmente, as mesmas da psicologia individual. Vários exemplos desse tipo de analogia expansionista podem ser encontrados em sua obra. Em Neuroses de Transferência: Uma Síntese, 2 Freud procura estabelecer uma relação, nitidamente de influência iluminista, entre as formas de apresentação das doenças mentais e a evolução do pensamento científico ocidental. Outro exemplo é sua consideração da religião como uma psicose coletiva em O Futuro de uma Ilusão e em Mal-estar na Civilização.3 Nesses dois textos apresenta a religião como uma psicose coletiva, um “delírio de massa”,4 para ele um exemplo vivo de que a loucura é a fuga de uma realidade frustradora e o delírio, a (re) criação da realidade mais de acordo com o princípio do prazer. Sem querer antecipar o que será discutido mais tarde, é no mínimo exagerada esta afirmação de Freud. Não é possível desconsiderar os diversos fenômenos sociais também envolvidos na 2 Freud (1987). 3 Ambos no vol. XXI. 4 Idem, vol. XXI, p. 100.
Segunda Parte Afinal, O Que É A Psicose?
Capítulo 6 Introdução Capítulo 7 Psicose como Regressão Egoica Capítulo 8 Psicose como Desorganização Egoica Capítulo 9 Fatores Desencadeantes da Desorganização Egoica Capítulo 10 Sobre o Ego
Capítulo seis
Introdução
Muitos anos já se passaram desde os estudos de Freud, e a ciência deu mais alguns passos confirmando algumas teses psicanalíticas e refutando outras. Iniciarei este capítulo tentando situar nosso tema no conhecimento contemporâneo e, para esse fim, utilizarei o livro de François Jacob,1 prêmio Nobel de fisiologia e medicina de 1965. Segundo Jacob: “Todo mundo está de acordo em ver uma direção na evolução. (...) Mas é difícil descrever a orientação imposta ao acaso pela seleção natural. (...) As palavras progresso, progressão, aperfeiçoamento são inadequadas. Evocam demasiadamente a regularidade, o desígnio, o antropomorfismo. Os critérios não estão definidos. Se o critério é a adaptação à sobrevivência, o colibacilo está tão bem adaptado a seu meio quanto o homem ao seu. (...) O que talvez caracterize melhor a evolução é a tendência à flexibilidade de execução do programa genético; é sua ‘abertura’ em um sentido que permite ao organismo aumentar constantemente suas relações com seu meio e expandir seu raio de ação. Em um ser tão simples quanto uma bactéria, a execução de um programa é muito rígida. É fechado no sentido em que o organismo, por um lado, só receber do meio uma informação muito limitada e, por outro, reagir de maneira rigorosamente determinada.”
1 Jacob (1983).
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Inquestionavelmente, entre os seres vivos, o ser humano é o que apresenta a maior flexibilidade na execução do programa genético. Ainda segundo Jacob, “(...) os ‘sucessos’ da evolução acabam por aumentar correlativamente a capacidade de perceber e de reagir. Para que o organismo se diferencie, para que aumentem sua autonomia e suas trocas com o exterior, é preciso que se desenvolvam não somente as estruturas que ligam o organismo a seu meio, mas também as interações que coordenam os componentes do organismo. Ao nível macroscópico, a evolução baseia-se, portanto, na constituição de novos sistemas de comunicação, tanto no interior do organismo quanto entre ele e o que está à sua volta. Ao nível microscópio, isto se traduz pela modificação qualitativa e quantitativa dos programas genéticos.”
Para esse autor, duas “invenções” foram cruciais no processo evolutivo das espécies: “O tempo e a aritmética negam que a evolução se deva exclusivamente a uma sucessão de microacontecimentos e a mutações acontecidas ao acaso. (...) Se uma evolução tornou-se possível, é só porque os próprios sistemas genéticos evoluíram. À medida que os organismos se complicam, sua reprodução também se complica. Aparecem mecanismos que, baseando-se sempre no acaso, concorrem para misturar os programas e obrigam à mudança. (...) Mas as duas invenções mais importantes são o sexo e a morte.” “A sexualidade parece ter surgido cedo na evolução. Representa antes de tudo uma espécie de auxiliar na reprodução, um supérfluo: nada obriga uma bactéria ao exercício da sexualidade para se multiplicar. A necessidade de recorrer ao sexo para se reproduzir transforma radicalmente o sistema genético e as possibilidades de variações. A partir do momento em que a sexualidade é obrigatória, cada programa genético é formado não mais por cópia exata de um só programa, mas por combinação de dois diferentes. Um programa genético não é mais então propriedade exclusiva de uma linhagem. Pertence à coletividade, ao conjunto dos indivíduos que se comunicam através do sexo. (...) A sexualidade obriga os programas a examinarem a possibilidade da combinatória genética. Portanto, ela obriga à mudança. Para convencer-se de que o sexo desempenha este papel na evolução, que ele mesmo é objeto de evolução, que não para
Terceira Parte A Clínica
Capítulo 11 Introdução Capítulo 12 S. Capítulo 13 B. Capítulo 14 C.
Capítulo onze
Introdução
Meu primeiro contato profissional com a psicose ocorreu em 1973 quando cursava a cadeira de semiologia médica. Cadeira básica para o início da atividade clínica, é onde o estudante aprende as bases do exame clínico e tem seu primeiro contato com o doente. Por razões que a própria razão desconhece, nosso país autoriza o funcionamento de escolas médicas sem hospitais próprios. A minha, na época, supria essa deficiência utilizando o bloco médicocirúrgico do Centro Psiquiátrico Pedro II, mais conhecido como o hospício do Engenho de Dentro (subúrbio do RJ). No primeiro dia de aula, uma assistente dessa cadeira, que estava orientando os estudantes, disse-me para fazer a anamnese da paciente que estava no leito 4 da enfermaria 9. Estreando meu uniforme branco, nervoso como não sei o quê, entrei na enfermaria procurando minha paciente. Voltei da porta ao ver uma mulher nua, acocorada sobre uma comadre, em uma cama imunda e falando alto com ninguém, em uma enfermaria escura e esquecida. Já não fujo dessas situações sem saber o que fazer. Há muitos anos trabalhando no setor de emergência de um hospital psiquiátrico do serviço público, tenho lidado com essas situações com muita frequência. Dois exemplos. Há alguns anos, estava uma noite de plantão quando fui acordado para fazer um atendimento. Ainda sonolento pela
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interrupção do sono lá pelas tantas da madrugada, encontrei uma família desperta como se fossem cinco horas da tarde. É curiosa a sensação de ser chamado para atender alguém e, ao encontrar as pessoas, não saber para quem é o atendimento. Sempre indago para quem é o atendimento, como se ele pudesse ser para qualquer um e assim observar a dinâmica grupal (geralmente familiar). Quando então perguntei, alguém falou ou mostrou de alguma forma que o atendimento era para um rapaz de mais ou menos 16 anos, trazido à emergência pelos pais. Entro com o rapaz no consultório, pergunto seu nome, digo o meu e tento entabular uma conversa como se ele não tivesse sido levado à minha presença para ser atendido por um domesticador de loucos, comumente chamado de psiquiatra de plantão. O rapaz, muito saudavelmente (alguns diriam espertamente), tentava mostrar-se normal, dissimulando seu estado mental, mas uma ponta de arrogante indiferença com a situação o traía. Aos poucos, fui conseguindo ajudá-lo a deixar que me aproximasse dele e de seu sofrimento. A razão óbvia para essa atitude era tentar, junto com ele, entender o que teria acontecido em sua casa para acabarem todos ali àquela hora. Interiormente me perguntava por que não deixava de sentir certo mal-estar, culpa, provavelmente, quando pensava o que eu poderia fazer quando ele me revelasse seu sofrimento. Medicar e internar? O que mais se pode fazer em uma emergência psiquiátrica cuja rotina de atendimento foi estabelecida há mais de 30 anos e que, apesar das (poucas) tentativas, nunca foi modificada? Mesmo assim, segui no meu papel. Fomos nos aproximando, mas aí o clima se transformou em plantão policial. Passei a escutar acusações sobre seus pais, principalmente contra o pai. Por causa de maus-tratos e, principalmente, pela indiferença do pai em relação a ele (“ele só quer saber de comer a mulher dele”, no caso, sua mãe), avançou contra o pai armado com uma faca. Esse é o resumo da história, o motivo do atendimento ou a queixa-crime, dependendo do ângulo de observação.
Quarta Parte Três Questões
Capítulo 15 Introdução Capítulo 16 Consciência e Desorganização Mental Capítulo 17 Relações Interpessoais e Desenvolvimento Mental Capítulo 18 Perspectivas para o Tratamento Psicanalítico de Pacientes Psicóticos
Capítulo quinze
Introdução
Durante muito tempo, Freud foi otimista em relação às possibilidades terapêuticas da psicanálise relacionadas às psicoses.1 Ficou particularmente muito otimista com o conceito de libido narcísica, 2 mas mudou de opinião. Não sei se influenciado pelos fracassos terapêuticos ou se por mais alguma coisa, acabou acreditando que os pacientes psicóticos seriam psicanaliticamente inabordáveis por se caracterizarem, ao contrário dos demais psiconeuróticos, pelo afastamento dos objetos, ou seja, das pessoas.3 Em seu esforço metapsicológico de adequar suas descobertas psicológicas ao conhecimento científico de sua época, acabou aplicando o golpe de misericórdia no emprego da terapêutica psicanalítica às psicoses, embora mantivesse a esperança quanto ao emprego da teoria psicanalítica na compreensão do fenômeno psicótico. Ao considerar, em seu texto O Inconsciente,4 o delírio como um fenômeno préconsciente, sem vínculo com o inconsciente, representaçõespalavra sem as respectivas representações-coisa, transformou o delírio em uma construção praticamente aleatória, qual1 Cf. vols. III, p. 203, e XVI, Conferência XVI. 2 Cf. vol. XVII, p. 261. 3 “Se está na própria natureza de qualquer neurose afastar-se da ‘outra pessoa’ – e isso parece ser uma das características dos estados agrupados sob o nome de demência precoce –, então, por essa razão tal estado será incurável por quaisquer esforços de nossa parte” (Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, vol. X, p. 112). 4 Vol. XIV, p. 232 e seguintes. Esse ponto foi abordado na primeira parte do livro ao comentar a revisão metapsicológica que Freud fez de sua compreensão do fenômeno psicótico.
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quer palavra podendo ser usada para representar qualquer coisa ou ideia. Esquecido da própria proposta revolucionária de um aparelho de linguagem não diretamente relacionado com estruturas neuroanatômicas, retomou o conhecimento neurológico de sua época, o qual ele próprio havia questionado em seu estudo sobre as afasias5 e acabou formulando o seguinte raciocínio: se o lastro psiconeurológico (representação-coisa) dos significados é perdido, qualquer significado vale. Por incrível que pareça, esse raciocínio serve de base até hoje para a crítica dos psicanalistas à análise de psicóticos. Serve também para alguns psicanalistas poderem dizer que nas psicoses tudo é significativo mas nada tem significado. Na psicose tudo é significativo, mas nada tem significado. Tenho que concordar que é uma bela frase de efeito e, de todas as opiniões que escutei a respeito da tentativa de empregar a psicanálise no tratamento de psicóticos, essa é a que melhor condensa as críticas mais comuns ao tratamento psicanalítico desses pacientes. Ao examinar mais de perto essa opinião, podemos ver que, em um tom bastante cético, ela propõe uma articulação entre o comportamento do paciente em atribuir significados peculiares a fatos e coisas de alguma forma com ele relacionados, com o insucesso terapêutico de tentar encontrar significados, sentidos, que mudem a situação psicológica deles. Para questionar esse tipo de argumentação, que atualiza uma visão muito antiga e pessimista do fenômeno psicótico, já não mais uma degeneração ou uma deficiência orgânica, mas psicológica, faz-se necessário, em primeiro lugar, separarmos os dois termos da oração, pois se é verdade que para os ditos pacientes psicóticos tudo ou quase tudo tem uma explicação peculiarmente própria, a conclusão que esses autores proclamam não decorre, como veremos, desse peculiar estado mental. Observando-se o ser humano sem (muitos) preconceitos, acabaremos nos perguntando em que a situação de dar significados pecu5 Freud, S (1953).
Perspectivas para o Tratamento Psicanalítico de Pacientes Psicóticos | 261
Essa é uma contribuição ao que García Badaracco chamou de “presença enlouquecedora”;11 3) A realização, cultural ou biológica, por desencadear ampliação e/ou mudança na identidade.
Figura 18.1 Experiências básicas e desorganização mental
Considero-as fundamentais porque estão relacionadas com elementos básicos da biologia, da cultura e do desenvolvimento psicológico. A inclusão de qualquer uma dessas três experiências no espaço mental dependerá da capacidade elaborativa do ego e, certamente, provocará alterações significativas em alguns dos mais importantes sistemas e programas em funcionamento na mente. Elas, portanto, têm a capacidade potencial de provocar a desorganização de um ou mais desses sistemas e programas. Dizendo, mais uma vez, se as psicoses são expressões da desorganização da mente nas quais os processos afetivos ocupam e preenchem as lacunas dos processos cognitivos, não devemos tratar psicanaliticamente os psicóticos tentando descobrir e/ou revelar 11 García Badaracco (1994), p. 47.
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