Abertura da Alma

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ABERTURA DA ALMA Ensaios sobre Literatura

TIAGO AMORIM 1ª edição ampliada

Livraria Danúbio Editora Santa Catarina, 2015

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Copyright © Tiago Amorim, 2015 FICHA CATALOGRÁFICA Amorim, Tiago. 1983Abertura da alma Balneário Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora, 2015. ISBN: 978-85-67801-01-8 1. Literatura e retórica. I. Título. CDD – 800

Edição Diogo Fontana Revisão Eduardo Zomkowski Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Danúbio Editora Ltda. Avenida Brasil, 1010, ap. 202, Centro. 88330-045. Balneário Camboriú, SC. Distribuição: CEDET Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas/SP Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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À Elza Rodrigues (in memoriam): bisavó e primeira contadora de histórias.

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Introdução A PRIMEIRA OBRA literária que li, depois das escolares obrigatórias, foi Tonio Kroeger, de Thomas Mann. Contava eu vinte e três anos. Do final do Ensino Médio até aquela data, passei por uma faculdade de Direito sem ler um livro sequer, apoiado apenas em resumos de textos técnicos exigidos pelos professores. O meu caso, para piorar o cenário, era apenas mais um dentre vários: meus colegas, na maior parte, destinavam as pouquíssimas horas de estudo aos códigos legais, tomados pela iminência das avaliações bimestrais. Não recordo de um só professor, durante os cinco anos do bacharelado, que tenha citado algum clássico da literatura em aula ou nos indicado algum título para realização de debates ou seminários. Antes da experiência de leitura do romance de Mann, no entanto, é preciso que eu volte à época da escola, para que o leitor entenda o que direi em seguida. Consegui chegar à conclusão do ensino básico tendo lido, na sexta série, as primeiras e últimas páginas de Pollyana, de Eleanor Porter. Nada mais. Nem Machado, nem Lima Barreto, muito menos Senhora, de José de Alencar (exigido pela professora de língua portuguesa certa vez). A exceção fora a adaptação infantojuvenil de Robinson Crusoé, lida ainda no Ensino Fundamental, e que despertara em mim um desejo de

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aventuras e algum tipo de atração pela escrita (lembrome que, terminada aquela leitura, comecei a redigir a “minha versão” da história, com novas paisagens e viagens para o protagonista). Por isso, salvo por este episódio, posso dizer que até os meus vinte e três anos eu não havia realmente despertado para o universo literário; sendo eu, até então, completamente avesso ao tempo perdido com esta arte. Antes de me casar, em 2008, aos 25 anos, dois amigos deram-me uma grande caixa de livros como presente. Quando abri, ávido de encontrar uma variedade de títulos de Filosofia e História, não foi pouca minha surpresa quando dei de cara com um amontoado de obras literárias; obras que ― lembro-me bem ― não me causaram boa impressão, muito pelo contrário. Pensei em desperdício de dinheiro, pensei que poderiam ter comprado muitas coisas mais interessantes... Mas talvez eu não fosse um completo idiota aos vinte e três anos, talvez algo já me salvasse. Eu já lia Santo Agostinho, Olavo de Carvalho e Titus Burckhardt; já havia começado um processo de acompanhamento vocacional e até mesmo me julgava, confesso, uma espécie de “promessa” intelectual. Por isso o leitor não deve se enganar quanto à minha ignorância a respeito da literatura. Já tinha escutado dos meus mestres ― Olavo de Carvalho e Luciane Amato ― sobre a importância dos clássicos

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para a educação pessoal. Ouvi muitas aulas e li muitos textos nos quais, reiteradamente, era feita a mesma advertência. Não se tratava, portanto, de ignorância. Eu sabia, intelectualmente, que aquilo era o certo. Porém, alguma coisa em mim resistia, legando para depois ― sempre o depois ― a abertura daqueles livros na estante. Tonio Kroeger, O eterno marido, O vôo noturno, Os noivos e tantos outros títulos continuavam me espiando, à espera de alguma abertura. Abertura: era exatamente o que me faltava. A literatura ― e a arte em geral ― comunica-se com aqueles que têm alma aberta, já diria Bergson. Se eu padecia de alguma coisa até meus vinte e poucos anos, era de um fechamento interior ou, como ensina Olavo de Carvalho, de uma espécie de apeirokalia (falta de amor pela beleza). As raízes deste erro existencial, deste empobrecimento tão caro à dignidade humana, encontravam origens na história nacional, familiar e biográfica. A cura, desta forma, só seria possível pelo processo inverso: da vida individual para a cultura brasileira. Por isto, admitida minha mediocridade ― tanto herdada quanto escolhida ― era preciso recontar a minha história pessoal com a ajuda dos clássicos, buscando neles o auxílio para despertar uma alma insensível. O que aconteceu comigo, no que diz respeito à literatura, foi o desenvolvimento de um amor. Toda a minha trajetória, desde as primeiras páginas de Tonio

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Kroeger, foi no sentido de cultivar algo inédito, muitas vezes apegado à única certeza de que aquilo, com o passar dos anos, faria algum bem. Li, desde então, vários romances, contos e novelas. Algumas vezes, devo ser sincero, nada ou pouco entendia. Sentia, durante a leitura, a dor de um burro que tem nas costas uma carga que quase não suporta. Foi assim com alguns livros de Dostoievski ou James Joyce, por exemplo. Certos autores fizeram-me tocar a miséria do embrutecimento, da falta de educação e da insensibilidade. Outros mostraram minha afeição pelo feio e vulgar. Todos, como num processo silencioso de confirmação real, paulatinamente me resgataram de um estado de torpor, abrindo pequenos espaços para possibilidades imaginárias antes desconhecidas. Com algum tempo, as leituras ficaram menos “pesadas”. Acabei descobrindo um prazer na atividade e fazendo da minha biblioteca pessoal um nicho literário. A Filosofia, a Sociologia e a História ― áreas de contínuo interesse ― passaram a ocupar os espaços deixados pelos clássicos, que agora, somam maior número. Se verdade conhecida é verdade obedecida, nisto eu me fiz testemunha: a arte salva, como disse Fernando Pessoa ao justificar sua vocação para a escrita. E a salvação que a arte possibilita, em especial a literatura, veio ao encontro de uma série de inteligibilidades que, pela leitura de obras filosóficas e sociológicas,

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eu tinha vivido. Títulos como O homem medíocre, de José Ingenieros, A rebelião das massas, de Ortega y Gasset, Os homens contra o humano, de Gabriel Marcel e A abolição do homem, de C.S. Lewis, já haviam me despertado para o aviltamento do ser humano que, em última análise, se expressa no fechamento para tudo o que é superior à sua contingência existencial. Com a ajuda destes e tantos outros pensadores, o cenário cultural e existencial do homem me parecia claro: a modernidade da massificação havia nos tornado medíocres por nosso próprio desejo. Foram pessoas de carne e osso, para aludir a Unamuno, que engendraram os piores projetos sociais que nos trouxeram até aqui. Do mundo para o Brasil. Se minha consciência do estado de coisas, ampla e universalmente falando, era relativamente aguda aos vinte e poucos anos pelos motivos expostos, o drama nacional aos poucos também se esclarecia para mim. Neste ponto, as inúmeras aulas a que assisti de Olavo de Carvalho, além de leituras recomendadas por ele (Gilberto Freyre, Ângelo Monteiro e seu Tratado da lavação da burra, Sérgio Buarque de Holanda, Oliveira Viana, Paulo Prado e outros) serviram para me instalar, de maneira mais radical, na realidade brasileira. Mas no nosso caso, o caso brasileiro, percebi que lidar com todo o fechamento e pobreza cultural que conhecemos em maior ou menor profundidade se

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tratava de, ao fim e ao cabo, olhar para mim mesmo. Eu era um homem moderno brasileiro, pensei. Carregava dentro de mim, portanto, todos os elementos necessários para compor, não sem alguma tristeza, a forma típica do ignorante. E foi um momento de lucidez sobre minha própria realidade que me fez aderir à literatura como quem precisa realmente salvar a vida e a circunstância. Afinal, como eu já disse outras vezes, em meus cursos e em meu blog, falar do Brasil é falar de si mesmo. O abismo cultural em que nos lançamos, sejam quais forem as explicações, só pode ser redimido por um laborioso e sincero processo interior, individual, no núcleo pessoal de cada brasileiro consciente do estado de coisas em que está imerso. Este reconhecimento ― ou confissão ― foi para mim o mote para uma espécie de reordenação dos meus estudos, aliando às leituras já citadas, as investigações sobre a alma nacional e tudo o que toca minha realidade radical. Também por isto, e a convite de alguns amigos, tenho proferido cursos de História do Brasil há alguns anos, como o de História Colonial e Imperial (2010) e posteriormente o de História da República (2014), ambos no Centro Landmark de Estudos, em Curitiba. A abertura operada pela literatura deu origem, em 2012, ao Clube do Livro. Para um grupo que variava de dez a 15 alunos, passei a promover encontros que tivessem a característica essencial de incentivar cada participante a tomar posse de si mesmo com ajuda das

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grandes obras literárias. Todos os meses indico um livro que deve ser lido pelos integrantes do grupo. Profiro uma aula inspirada na história da vez e indico a obra seguinte. Foi assim com Crime e castigo, Retrato de um artista quando jovem, Memórias póstumas de Brás Cubas, A estrela sobre, O pai Goriot e Os noivos. A cada nova leitura, compartilhamos sentimentos, impressões, dúvidas e problemas que temos com a obra da vez. Esforçamo-nos, com ajuda de mestres como Otto Maria Carpeaux, Rodrigo Gurgel e Olavo de Carvalho, para apreender o tema central da narrativa e, com isso, fazer as analogias possíveis com a nossa vida individual, numa espécie de lance de luz sobre quem somos. A idéia, repetida tantas vezes em nossos encontros, é crescer, crescer, crescer sobre os ombros dos artistas. Não sou um crítico literário; idéias como esta, a de crescer, crescer, crescer são por mim empregadas com base em uma série de aulas e leituras que fiz: aprendi com F.R. Leavis, Susanne Langer, Massaud Moisés, Afrânio Coutinho, mas também com amigos professores, especialmente Luciane Amato e Eduardo Dipp, colegas do Centro Landmark. A estes e a tantos outros mestres consagrados devo meus conhecimentos de Literatura. Mas, não; não sou um crítico. Sou um professor que ardentemente deseja uma forma melhor para si mesmo e para os alunos que fielmente me acompanham em aulas, cursos e palestras. Comigo e com os que vêm se aproximando, tento aplicar a

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mesma metodologia de abertura da alma contra o aviltamento, o torpor e a escuridão em que a grande maioria de nós vive. Em virtude do meu trabalho, tenho comprovado que o inferno é a admissão pessoal de uma existência inferior, indigna da espécie a que pertencemos. É por lutar contra isto, e por promover um tipo de atualização da condição humana, que tenho trabalhado e usado a Literatura. Assim, os ensaios que fazem parte desta publicação ― que foram lidos nas respectivas aulas do Clube do Livro, com poucas diferenças ― não são sobre as obras literárias, mas sobre a vida que emana de suas leituras. Distingo, aliás, leitura de leitura viva. Como aprendi com D. H. Lawrence, é preciso na vida comprometer-se intimamente, avalizando tudo o que fazemos com a baliza do sangue, ou seja, o conjunto genuíno das emoções. Entendida como um movimento da alma, a emoção é sinal de entrega e passividade fecunda; um processo que sempre desperta para mais vida. Neste sentido, os textos aqui reunidos foram concebidos para ajudar o leitor a enxergar a vida que da obra jorra e que sacia, em alguma medida, uma sede interior. As novas possibilidades de existência, que a partir da experiência da leitura chegam ao quem do leitor, é o que considero o radical fruto da devoção literária. Não sendo especialista em qualquer fase, movimento ou autor, o que ofereço são análises feitas nestes termos e com vistas a este objetivo.

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Ao longo dos ensaios, alguns nomes se repetirão: Julián Marias, Ortega y Gasset, Olavo de Carvalho, Louis Lavelle. Nada mais normal. Eles são os meus mestres e deles herdei as grandes perspectivas pelas quais tenho lidado com o mundo. Por fim, esclareço que o critério de conhecimento do livro é seu, leitor. Você pode ler as obras que inspiraram os ensaios primeiro, depois os respectivos ensaios. Ou, fazer o trajeto contrário, indo em direção dos romances já com o conteúdo dos ensaios. Se me permite opinar, a primeira opção talvez seja mais interessante. Seria uma forma de, analogamente, viver a experiência dos alunos que integram o grupo que deu origem a este livro. O autor.

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Sobre o rebaixamento das possibilidades humanas O vermelho e o negro de Stendhal Clube do Livro, mar. 2014

I UM ROMANCE é uma vida. Não em todos os detalhes, mas numa forma inteligível, que tomamos por destino. Quando narramos a vida de alguém já falecido, estamos preocupados em contar fatos que darão uma impressão correta de quem era esta pessoa. Fazemos uma eleição de episódios que, sendo verídicos, ajudam o ouvinte a captar em retrospectiva o destino que queremos comunicar. Um necrológio, o relato da vida de alguém recém falecido, quando bem feito, é basicamente isto. Para expressar o quem não podemos nos apegar a este ou àquele aspecto da vida desta pessoa (sua profissão ou sua vida amorosa, por exemplo) ― ainda que tenham sido muito importantes na biografia em questão.

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É preciso perceber a tensão vital, aquilo para o qual toda a vida do sujeito se voltava, numa espécie de sol interior ; para usar a expressão empregada por Ortega y Gasset. Esta tensão máxima é revelada, sim, nos aspectos da vida; porém, o caminho para captá-la deve ser percorrido no sentido da forma integrada (final) para as expressões fragmentadas, ou seja, do todo para as partes, e não no sentido contrário. Cabe ressaltar, que mesmo com vetores numerosos, com setas que apontam para diversos rumos, uma biografia é uma vida, com um destino apenas: a vida de um eu substancial 1 que, ao fim e ao cabo, quer uma coisa só. Um romance é uma representação artística de um destino, que captamos justamente pela forma que o artista alcançou ao selecionar os eventos e circunstâncias que entregam, a nós leitores, aquela tensão vital. Por isso somos capazes de discutir personagens e apontar falhas na realização pessoal dos mesmos: porque compreendemos o destino subjacente aos episódios conhecidos. Um romance é grande, sobretudo, quando também é grande a vida que está sendo apresentada No curso “A Consciência de Imortalidade”, de Olavo de Carvalho (proferido em Colonial Heights, VA, EUA, de 11 a 16 de outubro de 2010), o professor expõe a diferença entre o que ele chama de “eu narrativo” e o que aponta como “eu substancial”. Este último seria o eu criado e, de certa forma, ininteligível em si mesmo, sendo a realidade essencial de cada um conhecida e “contada” pelo “eu narrativo” (ou porção histórica da realidade individual). Em outras palavras, o “eu substancial” é o “eu mesmo”. (N.A.) 1

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(vida de personagens não irônicos)2. Num grande romance a história contada oferece ao leitor o vislumbre de uma nova possibilidade existencial, planta na imaginação a semente de um novo modo de se viver. Quando se conta a história de uma vida, emergem questionamentos fundamentais. Pense na sua própria vida, leitor, e se pergunte: quais fatos você dispensaria e quais entenderia como indispensáveis para narrar a história de sua vida? O que poderia ser deixado de lado? Para que outras pessoas o conhecessem realmente bem, quais acontecimentos não poderiam ficar de lado de jeito nenhum? Entretanto, você e eu não somos personagens de romance. Estes seres fictícios foram concebidos pelo gênio do escritor e, portanto, já tinham desde o início sua forma final conhecida pelo autor. Por isto mesmo, suas vidas puderam ser contadas literariamente. Nós, humanos de carne e osso, que estamos vivendo agora ― no gerundismo inexpugnável da vida: vivendo, amando, sendo ―, não temos consciência da forma completa de nossas biografias, não sabemos ao certo para onde estamos caminhando, tampouco temos a 2 Segundo o teórico canadense Northrop Frye (1912-1991), as narrativas literárias podem ser classificadas em modos, conforme a relação do protagonista com o ethos, o ambiente social em que está inserido. Nas tragédias, quando a narrativa apresenta um protagonista impotente diante dos obstáculos interpostos pela humanidade que o circunda, temos o modo irônico. Cf. Northrop Frye, Anatomia da crítica (trad. Marcus de Martini, São Paulo, É Realizações, 2014). (N.E.)

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noção exata de onde vamos chegar. E é nisto, nesta incompletude, que se revela a tensão existencial em que nos encontramos: esforçamo-nos em narrar nossas vidas, mas não conhecemos sua imagem eterna, seu formato último, seu ponto final. Vamos vivendo e vamos narrando; e assim, aos poucos, vamos tomando posse de nós mesmos, buscando algum “fio da meada” que integre nosso passado, presente e futuro. Concretizemos. A bio-iatria 3, por exemplo, é uma terapêutica que pretende auxiliar a pessoa a encontrar este fio da meada, ainda que tênue, para que acolha um dentre os vários destinos que se lhe apresentam. A leitura de romances, além de experiência estética, é uma das melhores maneiras de apreender destinos, de vislumbrar possibilidades de vida que possam nos ajudar a conceber opções e caminhos mais luminosos; caminhos que nos tornariam, pelo paradoxo da imitação, seres humanos autênticos. Como o romancista expressa o enigma de uma vida na sua inteireza, nós, em poder disto podemos iluminar os elementos escuros em nossas próprias vidas. O homem tem história, dizia Ortega y Gasset. Para o pensador espanhol, este é o nosso substancial distintivo no mundo. Por isto temos que contar nossa história, para que correspondamos à dignidade de nossa Técnica terapêutica desenvolvida por Luciane Amato que visa a conquista da autoconsciência a partir da acurada narrativa da própria história de vida (não sem auxílio da Literatura). (N.E.) 3

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espécie. O problema de nosso tempo é que nos atemos a esquemas narrativos prontos, esquemas da massa: destinos comuns que atingem a maioria de nós. A vida humana contemporânea é a encenação contínua de uma mesma peça, com o mesmo roteiro, com o mesmo final. Uma peça conhecida por todos, mas que ainda continua a atrair público, por uma espécie de trabalho de ilusionismo que nos avilta e que faz com que até os demônios percam interesse por almas tão insossas. Não é outro o sentido da “formatura” dos demônios no livro de C.S. Lewis Cartas do diabo a seu aprendiz : a cena em que todos eles brindam porque estão aptos a tentar as almas humanas, mas logo lamentam o fato de as almas humanas não terem mais sabor. Sequer os pecados são grandes. Tudo é medíocre. E foi talvez durante o alvorecer deste mundo mediano, regido pela vulgaridade, que Stendhal escreveu O vermelho e o negro. .

II A história da França, no século XIX, é rica em contextos políticos; há mudanças de regime e estremecimento social. Após 1789, os revolucionários alteraram a forma de governo para a república, e perseguiram a velha aristocracia de raízes medievais, afeita à monarquia centralizadora. O processo revolucionário, e o subseqüente capítulo imperial protagonizado por Napoleão, trans-

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formou a nobreza ― ou o que sobrou dela ― e preparou para as décadas seguintes uma classe muito mais aburguesada, com espírito mais capitalista que a haute societé francesa de outrora. Quando do advento da restauração monárquica em 1824, esta nova classe já se tornara algo híbrido e moderno, oscilando seu respeito entre a tradição e o dinheiro. Foi esta nova classe, por assim dizer, que de fato governou a França enquanto a monarquia dava seus últimos e esperançosos suspiros, antes de ser substituída, mais uma vez, por uma nova república, em 1870. É esta França de transição, mescla de aspectos conservadores e vanguardistas, que Stendhal tipifica no romance, no qual as famílias de Renal e De La Mole são os maiores símbolos desta nova realidade social. Mas e quanto a Julien Sorel, o protagonista que não é nem burguês e nem aristocrata? O que ele é? Que papel ocupa nesta nova França? Sorel é o arrivista, o aspirante a parvenu. O homem de origem camponesa que sonha em fazer parte da alta sociedade. Para tal, vislumbra as duas carreiras que imagina as mais promissoras de seu tempo, duas possíveis soluções para seu drama de juventude: de um lado vê o vermelho do uniforme do exército e, de outro, o negro das vestes do clero. E é apostando num destes destinos ― às vezes simultaneamente nos dois ― que Julien entrevê os degraus que podem conduzi-lo à ascensão que considera legítima para si. Quando veste

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a farda para o desfile em Verrières, envaidecido, sentese o sucessor de Napoleão, aquele pequenino homem nascido na Córsega, nas franjas da nação francesa. Um homem como ele, que também viera “do nada”, sem nada, mas que chegara à Imperador. E quando Sorel admira um bispo, brilhando em toda sua ostentação, acredita ser através da hierarquia da Igreja o caminho mais rápido para alcançar o prestígio e a riqueza desejados. Durante esta busca pelo sucesso, mesmo a arte da sedução, que Julien emprega amiúde na conquista de mulheres, não se dá sem o interesse em se firmar no caminho de vida escolhido. Suas vítimas são usadas não para desfrute, mas para seu próprio autoconhecimento, enquanto testa os limites e as condições para jogar na alta sociedade. Seus solilóquios são repletos de reflexões nestes assuntos, num processo de luz e sombra sobre si mesmo, do qual emerge o grande tema da conquista social. Como subir na vida, por onde, por que caminho, por que meios: é esta a tensão vital de Julien Sorel. Este tema, que nos parece tão familiar, era contudo uma inovação da ficção de Stendhal. O destino aspirado pelo protagonista tipifica uma trajetória de vida que se tornou desejável apenas a partir da Modernidade e que é fruto das profundas mudanças sociais pelas quais passou o Ocidente e, particularmente, a França pós-revolução. É a ambição irônica, o ardente desejo de subir na vida a fim de ocupar uma

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posição social e existencial que, no fim das contas, é medíocre. Julian Sorel encarna as aspirações de ascensão dos jovens franceses do século XIX, que, desprovidos de bom nascimento e dinheiro, queriam apenas ascender socialmente, sem que para isso precisassem provar algum talento ou demonstrar méritos. A possibilidade de destino revelada artisticamente por Stendhal é a do homem moderno ambicioso por fama e status sem qualquer qualificação ou merecimento para tal. Quando vemos os alpinistas sociais do Brasil de hoje, toda aquela caterva de aspirantes à celebridade, vislumbramos a nova possibilidade existencial que foi aberta nos últimos séculos no Ocidente. Este novo caminho de vida só ganhou expressão literária porque antes se manifestou concretamente na História. O impensável aconteceu. Um soldado obscuro de uma ilha distante ganhou o mundo, conquistou a Europa, fez-se Imperador, foi coroado pelo Papa! Se Napoleão foi capaz, por que meu vizinho também não seria? Por que eu não seria capaz? É de sua sociedade ― nova em muitas medidas ― que Stendhal fala em sua obra realista (do mesmo modo que Balzac). Julien Sorel quer a ascensão pela ascensão, sem qualquer preocupação com o desenvolvimento de habilidades interiores que a justifiquem. Sua pretensão é mais modesta e, pelos motivos expostos, mais medíocre que a de muitos outros personagens de romance.

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Por isso Julien Sorel ― para a humilhação de nosso tempo ― encontra eco em tantas vidas atuais. Há milhões de homens e mulheres como ele, incapazes de julgar séria e sinceramente seus atos e suas ambições; incapazes de confrontar seu desejo de destino com a realidade (menos ainda com sua dimensão metafísica). Um destino de Big Brother não é um destino em muitos sentidos. Se o humano admite graus, como disse Ortega y Gasset, um argumento biográfico como o do personagem de Stendhal ocupa o grau mais baixo, e é preciso confessá-lo. Desejar o que é baixo foi uma “conquista” da sociedade de massa, que infundiu como possibilidades de vida ser cantor de funk ou estrela pornô. O fio da meada, nestes e em tantos outros casos, não é bem um fio, mas uma cola de ilusões corroborada pela falsidade do dia. No momento em que pesquisas científicas começam a apontar que a diferença do homem em relação aos animais é simplesmente biológica ou circunstancial, a noção de dignidade, altura e profundidade da existência já se perdeu por completo. Se as baleias não podem compor a 9.ª Sinfonia é porque o que nos diferencia é mais do que fisiologia ou evolução. Quando dominados pelos instintos, vale ressaltar, nos desinstalamos da verdadeira raiz de nossa espécie; perdemos, em alguma medida, nossa humanidade. Foi o filósofo Xavier Zubiri quem ensinou: o homem tem faculdades semelhantes às dos animais, mas quando as exerce, o

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