O Canto do Violino

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Vi olino O

canto

do

E OUTROS ENSAIOS INÉDITOS SOBRE MÚSICA (1948 - 1958)

Otto Maria Carpeaux

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FICHA CATALOGRÁFICA Carpeaux, Otto Maria. 1900-1978 O Canto do Violino e outros ensaios inéditos Balneário Camboriú, SC: Livraria Danúbio Editora, 2016. ISBN: 978-85-67801-07-0 1. Música - Apreciação I. Título. CDD – 781.17

Coordenação Editorial: Diogo Fontana Edição e revisão: Eduardo Zomkowski Diagramação: Patricia Martyres Capa: Daniel Carvalho Copyright © do prefácio e notas: Dante Mantovani Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Danúbio Editora Ltda. Avenida Brasil, 1010, Centro. Balneário Camboriú, SC. 88330-045 E-mail: contato@livrariadanubio.com Sítio: www.livrariadanubioeditora.com.br Distribuição: CEDET Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico Rua Ângelo Vicentim, 70, Campinas-SP Imagem da capa: Gerrit van Honthorst, “Musical Group on a Balcony”, 1622 Imagem digital cortesia do Getty´s Open Content Program

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APOIO CORPORATIVO

Chás Naturais Real – desde 1834 Visite: www.matereal.com.br

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Os recursos para esta publicação são de origem privada e foram levantados por meio de financiamento coletivo. Nenhum centavo de dinheiro público — municipal, estadual ou federal — foi usado pela editora.

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Agradecimentos nm

Esta edição não teria sido possível sem o apoio de nossos grandes mecenas: Adriana Bohm André Schaefer Pasold Antonio Abel Pereira Leite Aramis Fontana Bruno de Oliveira Feu Rosa Djalma Perin Eduardo Augusto de Carvalho Belucio Alves Eduardo Fernandes Eduardo Henrique Mafra Eric Primon Fábio Furtado Pereira Gio Fabiano Voltolini Jr Jefferson Zorzi Costa Leonardo Beraldin Leonardo Domingos Fonseca Marcelo Assiz Marina Pessini Mateus Cruz Maurizio Casalaspro Moreno Garcia Rafael Manieiri Silvio José de Oliveira Tharsis Madeira

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Sumário nm Nota do Editor .............................................................................. 1 Prefácio ............................................................................................. 5 Cervantes e Beethoven ............................................................... 9 Música e mentira ........................................................................ 17 Mestre de todos .......................................................................... 25 Bach ................................................................................................ 33 Beethoven ..................................................................................... 39 Música, doce música? ............................................................... 45 Beethoven em Viena .................................................................. 51 Così fan tutte ............................................................................... 57 Dvorák e o folclore musical .................................................... 61 Erik Satie ...................................................................................... 67 Imortal Manon ............................................................................... 71 Óperas novas ............................................................................... 77 Schumann, trágico .................................................................... 83 O outro Mozart ......................................................................... 89 Recital Ivy Improta .................................................................. 95 Um crítico de música ................................................................ 99 Hegemonia musical ................................................................. 107 O Canto do Violino ................................................................. 113 Stendhal e a música ................................................................. 119 Romantismo de Beethoven ................................................... 127 O futuro da música ................................................................. 133 Quarteto Húngaro (III) ......................................................... 139 História da música ................................................................... 143 Recordações de Mahler ......................................................... 149 Miséria e esplendor dos músicos ........................................ 155 O estilo de Gluck ..................................................................... 161 Lista de músicos ....................................................................... 169

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Nota do Editor nm

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história deste livro e meus trabalhos editoriais começaram enquanto folheava um antigo jornal do Paraná: numa única tarde de fins de 2014, munido por acaso de tecnologia que me confirmava o ineditismo, encontrei ali 48 ensaios inéditos de Otto M. Carpeaux, dos quais dei logo notícia ao amigo e editor Diogo Fontana, cujo vivo interesse incentivou-me continuar em pesquisas e a reunir, após trabalhoso mês, outros 311 dispersos em 19 jornais de Norte a Sul do Brasil – quantidade que, a julgar por Carpeaux em Vinte e cinco anos de literatura (1968), representava menos de um terço entre os cerca de 1.300 ainda inéditos em livro. Ante um tal volume de textos encontrados (alguma coisa entre 1.500 e 2.000 páginas, como as de Ensaios reunidos), decidimos selecionar sem demora aqueles que,

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Nota do Editor anteriores à década de 1960, tratavam de música erudita, havendo entre os 26 editados (1948-1958) ensaios musicais propriamente ditos, mas também artigos de crítica a representações musicais do dia, biográficos e, enfim, ensaios “literários-musicais”, em que Carpeaux serve-se ora de formas literárias para desenvolver questões musicais, ora de formas musicais para resolver questões literárias – uma novidade entre textos editados em livro, segundo o prefaciador e comentador Dante Mantovani. Como editor porém, familiarizado com os textos que reli vezes sem conta, sou obrigado a alertar o leitor católico de que, nas palavras de Carpeaux em Vinte e cinco anos, alguns desses ensaios, senão todos nalgum grau, encontram-se “irremediavelmente marcados pela época em que foram escritos”, traço apontado, ademais, em rodapés de nosso prefaciador e comentador, católico apostólico e romano como nós outros, rodapés não só em que o leitor há de prestar a atenção, como no texto mesmo de todos os ensaios. Com exceção dos publicados nos jornais do Rio e, talvez, no de São Paulo, constatei sejam todos republicações/reproduções em jornais de província, de modo que, repetindo-se um ou outro em dois desses periódicos, pude cotejar “versões” e fixar passagens ilegíveis ou truncadas: não havendo outro lugar para informá-lo, aos meus rodapés segue-se a abreviatura N.E. (nota do editor). Jornais, respectivas quantidades e datas são os seguintes: Correio da Manhã (Rio de Janeiro), 7 ensaios, 1955-1957 Diário Carioca* (Rio de Janeiro), 4 ensaios, 1950, 1951, 1954 Diário do Paraná (Curitiba), 11 ensaios, 1955-1958 Diário de Pernambuco (Recife), 1 ensaio, 1956 Jornal de Notícias (São Paulo), 3 ensaios, 1948 *

Na seção do suplemento dominical Letras e artes.

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Por fim: não sendo música erudita nossa área de estudos, convidamos o regente e musicólogo Dante Mantovani para nos traduzir a carga de novidade dos textos, prefaciando-os, e anotando em rodapé atualizações das pesquisas musicais recentes, esclarecimentos, bibliografia complementar e, quando necessário, refutações às passagens que julgasse controversas: seus rodapés são marcados com a abreviatura D.M.; ao prof. Guilherme Zomkowski, cujas notas distinguimos com a abreviatura G.Z., encarregamos da tradução de citações latinas e francesas, como em parte fizera na edição revista de A cinza do purgatório, em 2015; notas do editor Diogo Fontana marcaram-se com a abreviatura D.F., e, para auxiliar o leitor, anexamos nas últimas páginas lista de dados biográficos essenciais de compositores, libretistas e regentes citados no livro. Boas leituras. Mãe do bom conselho, rogai por nós. Eduardo Zomkowski Curitiba, fev. 2016

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Prefácio nm

por Dante Manovani*

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ela influência de sua obra em minha formação pessoal, falar de Carpeaux me parecia ainda há pouco tarefa apenas fácil, porque extremamente familiar: é como se eu falasse de mim comigo mesmo; mas a verdade é que, como músico erudito que se profissionalizou por sua causa, não é lá coisa simples apresentar com isenção e eficácia alguém cuja obra é simplesmente fundamental para a cultura brasileira e para a própria trajetória pessoal de quem o apresenta. Otto Maria Carpeaux foi o nosso crítico por excelência. O europeu que se tornou brasileiro e adotou o português para * Dante Mantovani é maestro, doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Estadual de Londrina, jornalista e apresentador dos programas de rádio Música Universal, pela Rádio Vox, e A Grande Música, pela Rádio Mãe de Deus.

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Prefácio escrever obras máximas como a História da literatura ocidental foi indubitavelmente um fruto perfeito do glorioso Império Austro-Húngaro, assim como o foram Haydn, Mozart e Beethoven, seus conterrâneos e compositores prediletos. Tão vastos e inabarcáveis eram os conhecimentos de Carpeaux, que a sua chegada ao Brasil em 1939 significou novo esplendor à nossa vida cultural, cuja decadência, que ele ajudou a retardar em pelo menos 30 anos, iniciou-se a partir da década de 1960 por ideologização gramscista, ainda hoje causa de frutos nefastos, como o analfabetismo funcional, galopante entre nossas elites universitárias. O próprio Carpeaux foi vítima da atmosfera ideologizante da cultura brasileira, porém apenas no final de sua vida, de modo que a qualidade dos seus trabalhos anteriores não foi comprometida, como o demonstra na introdução dos Ensaios reunidos (vol. 1) o filósofo Olavo de Carvalho, um dos principais responsáveis pelo renovado interesse em torno de sua obra e pelo redimensionamento do seu legado, de modo que, podemos dizer, justiça tem sido feita. O Canto do violino é prova disso. O livro que vos apresento não é um guia de história da música, nem poderia sê-lo, mas é um instigante tratado que convida o leitor a repensar a história da música e o situa no cerne das questões mais importantes dos últimos 15 séculos, sem deixar de lado as polêmicas mais acaloradas. Embora pareçam não se relacionar, estes ensaios de Carpeaux são expressão de sua visão global privilegiada acerca da manifestação artística que mais o assombrava e que considerava a mais elevada forma de arte: a grande Música Universal. Engana-se quem acha que este livro seja privilégio para iniciados ou integrantes do métier musical, porque

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O Canto do Violino é obra indicada a todos os públicos, a todas as idades e para todos os gostos musicais, indicada a quantos queiram abrir-se à ampliação de sua cultura geral e aventurar-se por universos sonoros os mais sublimes. Apesar da linguagem esmerada, Carpeaux sabe dosar seus requintes de expressão com clareza de raciocínio e inigualável capacidade de síntese, tornando o livro um valioso alimento espiritual, porém de fácil e agradável digestão. As notas que redigi para os 26 ensaios têm o intuito de contextualizá-los com informações ainda indisponíveis à época de sua redação (1948-1958) ou que naturalmente escapavam a Carpeaux, como quando se pergunta se Stravinsky teria se arrependido das críticas feitas a Beethoven, das quais o compositor russo se retratou nove anos depois. Para outros trechos, desdobrei questões rigorosamente sintéticas, e poucas vezes, quando nenhuma, procurei esclarecer termos, idéias ou nomes de compositores, motivo pelo qual foi anexado ao final deste volume um índice com dados biográficos dos compositores citados ao longo dos ensaios. O Canto do violino é uma janela não só para a Paidéia da Música Universal, mas também para o estudo da obra crítica de Carpeaux, que aqui revela singularmente muito do seu método crítico e do seu processo de escrita. Estou certo de que o Brasil ganha com esta obra inédita um guia fundamental para percorrermos com segurança o maravilhoso universo da Música Ocidental. Com os ensaios reunidos e editados por Eduardo Zomkowski, a editora que leva a cabo empreitada tão necessária à oxigenação de nosso cenário cultural não poderia ter outro nome: Danúbio, rio que corta a cidade de Viena, a Atenas moderna que deu ao mundo Otto Maria Carpeaux,

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Prefácio celeiro não só do nosso maior crítico literário e musical, como de grande parte dos maiores mestres da História da Música. Que este livro traga a vós leitores a inspiração e o oxigênio que o rio Danúbio oferece à Viena, capital universal da grande música, terra onde floresceram os mais perfeitos fenômenos musicais de todos os tempos! Paraguaçu Paulista, SP, dez. 2015

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Cervantes e Beethoven nm

Jornal de Notícias, 27 jan. 1948

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ontam que outro dia um menino perguntou no colégio ao professor: “Se Gonçalves Dias ressurgisse hoje, ele seria da UDN ou do PSD?”1 A ingenuidade cômica da dúvida infantil transformar-se-ia em absurdo se nós adultos quiséssemos perguntar assim com respeito aos grandes homens do passado: “Shakespeare seria hoje partidário de Churchill ou trabalhista? Rabelais ficaria 1 UDN e PSD, partidos políticos do período democrático entre 1945 e 1964, extintos pelo governo militar através do Ato Institucional n.º 2 de 1965. A UDN (União Democrática Nacional) era um partido conservador e antigetulista, que apoiou a eleição de Jânio Quadros; o PSD (Partido Social-Democrático) era formado por apoiadores de Getúlio Vargas, contava com a maior bancada no Congresso e elegeu dois presidentes: Eurico Gaspar Dutra e Juscelino Kubitschek. (D.F.)

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Cervantes e Beethoven com Bidault ou com Thorez?”2 Na verdade, porém, perguntamos sempre assim. O caso de Nietzsche, reclamado pelos nazistas e pelos antinazistas ao mesmo tempo, é significativo. Todos os regimes políticos gostam de invocar as grandes sombras do passado nacional para enfeitar-se de glórias que não lhes pertencem. Por que faria exceção o nome do grande escritor do qual celebramos hoje o quarto centenário do nascimento?3 Cervantes não é apenas o criador de um dos grandes mitos-símbolos do espírito humano. Também escreveu as Novelas ejemplares, mais magistrais como realizações literárias do que o próprio Don Quijote: cervantina é a graça pérfida dos dois pícaros Rinconete e Cortadillo, e cervantina é a dolorosa e humorística sabedoria dos dois cachorros Cipion e Berganza que meditaram durante a noite sobre o absurdo dos destinos caninos e humanos. E próprio do grande humorista também é a profunda angústia de Persiles y Sigismunda. Já vale a pena possuir como testemunha essa sombra. E, com efeito, é a Espanha oficial de hoje que lhe comemora com festas barulhentas os primeiros 400 anos duma imortalidade sem fim, como se ele fosse um franquista de 400 anos. Mas seria tão absurdo considerá-lo como representante de uma Espanha militarmente reacionária e clericalmente católica? Em todas as obras de Cervantes não se encontra uma só palavra que seja incompatível com o catolicismo mais ortodoxo. Nem ele desaprovou os excessos da 2 Bidault e Thorez, políticos franceses. Georges Bidault (1889-1983) era católico e conservador; Maurice Thorez (1900-1964) foi líder do Partido Comunista da França. (D.F.) 3 4.º centenário em 29 set. 1947. – Este ensaio de Carpeaux foi provavelmente reproduzido no Jornal de Notícias (27 jan. 1948). (N.E.)

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O Canto do Violino Inquisição, espécie de tribunal de segurança que se valeu de aparências eclesiásticas para perseguir os chamados inimigos do Estado. Cervantes foi mesmo servidor leal desse Estado, lutando na batalha de Lepanto como soldado da monarquia espanhola, realizando façanhas como nem os generais. Cervantes, general! No entanto... Existe uma ópera de Beethoven, Fidelio – a única aliás que escreveu – cujo enredo se passa na Espanha: no calabouço sombrio de uma fortaleza, o tirânico governador Pizarro mandou encarcerar o nobre Florestán, que ousara manifestar idéias de liberdade. O infeliz parece perdido. Nem o salvariam os heróicos esforços de sua mulher Leonore que, disfarçada em homem, sob o nome suposto de Fidélio, tentava libertar o marido. Só no último momento, quando na escuridão noturna do cárcere já se preparava o assassínio, ressoam longe as cornetas que anunciam a chegada do ministro e a libertação. Então, pergunta-se: Cervantes preferiria hoje o papel de Florestán ou do carcereiro? Talvez não fosse republicano, assim como não lhe cabe absolutamente o apelido de livre-pensador. Mas foi, sim, um pensador muito livre, um soldado da liberdade. Os comentaristas modernos do Don Quijote já não acreditam tão unanimemente que Cervantes tenha zombado da cavalaria: zombou apenas dos aristocratas degenerados de uma época em que o feudalismo já perdera a razão de ser. Os antigos, os legítimos feudais espanhóis da Idade Média não eram porém tão reacionários como se pensa. Opondo-se obstinadamente aos reis e ao Estado, esses precursores do anarquismo ibérico defendiam, nos seus castelos amurados, idéias de liberdade que seriam depois apanágio do povo inteiro; cada espanhol, um fidalgo!

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Cervantes e Beethoven Vale ler as páginas de Ortega y Gasset, no volume Notas4 sobre as Ideas de los castillos; são hoje ruínas em meio do deserto castelhano, mas ainda gritam ao cinzento céu espanhol que “acima da Lei e do Estado está a Liberdade”. Cervantes, homem nobre, também foi fidalgo assim, e sua cabeça, um verdadeiro castelo de idéias livres. E na obra mais profunda que já se escreveu sobre ele – El pensamiento de Cervantes, de Américo Castro – fica bem demonstrada a origem das idéias cervantinas no humanismo livre de Erasmo. Cervantes erasmiano! No entanto... Em Erasmo havia um céptico, ficando entre ou antes acima dos partidos em luta. E o cepticismo do grande humorista – todos os grandes humoristas são cépticos – também parece permitir conclusões inquietantes de uma neutralidade suspeita. Certa vez Don Quijote investiu com força contra um homem que, montado num burro, trazia consigo um vaso redondo de metal resplandecente; achava que a ele, ao nobre cavaleiro, e nunca a um homem de condição plebéia, pertencia de direito o precioso troféu, o “Yelmo del famoso Mambrino”.5 Aquele pobre homem dizia-se porém barbeiro, precisando para o seu oficio de uma bacia; e aquilo que ao Don Quijote parecia “Yelmo de Mambrino”, apenas seria uma modesta “bacía de barbero”. Quando, então, a luta entre os dois adversários irreconciliáveis se tornou extrema, Sancho Pança pretendeu intervir, dizendo: “Talvez o objeto em causa não fosse yelmo nem bacía, e sim um baciyelmo.” Esse relativismo, esse perspectivismo dos pontos de vista, também é cervantino. Então, Cervantes seria neutro? O seu humorismo céptico serviria de argumento aos que não têm a coragem de 4 5

Notas de vago estío. (N.E.) “Elmo do famoso Mambrino”. (N.E.)

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O Canto do Violino tomar partido? Para rebater esse ponto de vista pretendo escolher um recurso extremo, dir-se-ia esquisito, referindo-me mais uma vez a Fidelio, a ópera de Beethoven. O enredo já foi resumido. Primeiro ato: Leonore, disfarçada em homem, sob o nome suposto de Fidélio, introduziu-se na fortaleza; chega a saber que o tirano Pizarro pretende assassinar-lhe o marido. A primeira cena do segundo ato passa-se na escuridão noturna do calabouço; assistimos à tentativa do crime quando, no último momento, ressoam de longe, atrás do palco, as cornetas que anunciam a chegada do ministro, a libertação. A segunda cena do segundo ato só é uma espécie de epílogo, o coro de júbilo dos prisioneiros, enquanto se levanta o sol da liberdade. É a única ópera de Beethoven. Custou-lhe muito. Escreveu uma ouverture que os amigos acharam insignificante; a peça é hoje conhecida, pouco conhecida aliás, como Leonore n.º 1, porque então a ópera ainda devia chamar-se Leonore. E o “número 1” se explica pelo fato de que Beethoven escreveu logo outra ouverture, a Leonore n.º 2, também desprezada pelos amigos e pelo próprio mestre. Mais um esforço, e saiu a Leonore n.º 3, a ouverture das ouvertures; no fundo, uma grandiosa sinfonia, intensamente agitada como a luta pela liberdade, até ressoar o toque de corneta, tocada fora da sala de concerto, iniciando-se o desfecho jubiloso. É uma sinfonia tão grande, que não serve bem para abrir uma noite de ópera. Então Beethoven escreveu, mudando ao mesmo tempo o título da obra, a ouverture de Fidelio, aquela peça bonita mas pouco significativa que hoje se toca nos teatros líricos antes de se representar a única ópera de Beethoven.6 6 Obra que transcendeu a esfera da ópera, também hoje Fidélio é muito tocada como peça de abertura em concertos sinfônicos. (D.M.)

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Cervantes e Beethoven A Leonore n.º 3 entrou no repertório dos concertos de orquestra. Aconteceu porém que os regentes de ópera não quiseram renunciar ao prazer honroso de apresentar, por sua vez também, a grande obra. Mas como fazer? A solução mais simples seria tocar a Leonore n.º 3 em vez da insignificante ouverture de Fidelio, isto é, antes da representação. Mas é uma verdadeira sinfonia de programa, representando musicalmente o enredo inteiro; as cornetas que na ópera acompanham a peripécia, também voltam para Leonore n.º 3, como auge do desenvolvimento. Depois dessa ouverture singular, já não seria preciso representar a ópera. Por isso, preferiram tocar a Leonore n.º 3 depois da representação, no fim da noite. Mas o público gostaria de ouvir mais uma vez na orquestra o que já ouvira no palco? Como seria, pois, entre o primeiro e o segundo ato? Mas então o público ouviria as cornetas na orquestra antes de tê-las ouvido no palco, no cárcere onde anunciam a libertação; e ninguém compreenderia a sinfonia. Enfim Gustav Mahler, naquele tempo diretor da Ópera de Viena, achou a solução: representa-se a primeira cena do segundo ato, a noite do crime escurece o palco, a tensão dramática chega ao auge, ouvem-se de longe, dos bastidores, as cornetas que anunciam a liberdade, cai lentamente o pano; depois, de repente, ilumina-se a sala escura do teatro, transformada em sala de concerto, e a Leonore n.º 3 se desenrola com brilho enorme, até ressoar o toque das cornetas, repetindo-se no palco ideal da música os acontecimentos da vida real, terminando tudo no coro jubiloso do final; é só o pobre sol dos maquinistas de teatro que então se levanta, mas o sol da liberdade já se levantara antes nos acordes de Beethoven. Que idéia genial, esta de Gustav Mahler! Mas no fundo só foi preciso colocar as coisas nos justos lugares. Só é preciso tomar o justo ponto de vista para ver as coisas como são, para saber o que é na verdade o baciyelmo.

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O Canto do Violino Um vaso redondo de metal resplandecente pode ter, com efeito, vários usos; e o olho insubornável do humorista vê-os todos. Nós outros não somos tão soberanos; este só vê o “Yelmo de Mambrino” e aquele só a “bacía de barbero” – não importa. O que importa é ver o baciyelmo do ponto de vista justo; importa colocar-nos a nós mesmos do lado justo para que o lutador idealista não se arme de uma inofensiva “bacía de barbero” e para que o precioso “Yelmo de Mambrino” não seja colocado em cima da cabeça de um malandro. O problema é como o das quatro ouvertures de Beethoven: problema de colocação justa. Se Cervantes já tivesse pensado inteiramente como nós outros, gozando de plena liberdade no tempo dos Felipes, não seria preciso representar a ópera. Se a ópera fosse representada antes da sinfonia, não se precisava de Cervantes, que é mais e melhor do que um ponto final. Entre o primeiro e o segundo ato da tragédia, ninguém compreenderia a revelação da música e do humorista. Mas colocada no único ponto justo, entre a primeira e a segunda cena do segundo ato, no momento penúltimo, decisivo, então a luz de Cervantes ilumina a sala escura, as cornetas anunciam a liberdade e em nossos corações levanta-se a aurora.

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Música e mentira nm

Jornal de Notícias, 22 out. 1948

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m best-seller de espécie muito particular empolgou recentemente os leitores americanos, conquistando agora o público europeu. O livro chama-se Heritage of Fire7. O autor, Friedelind Wagner, filha de Siegfried, neta de Cosima e Richard Wagner, apresenta revelações sensacionais. Durante os 25 anos passados, Bayreuth e a Casa Wahnfried foram consideradas como fortalezas do nazismo, até como berço do poder de Hitler. Agora Friedelind inverte todos os termos da questão: acusando de nazismo sua própria mãe Sieglinde8, a esposa de Siegfried 7 Ed. americana: (Nova York, Harper, 1945); ed. inglesa: The Royal Family in Bayreuth (Londres, Spottiswood, 1948). (N.E.) 8 Equívoco do A. (repete-se): chamava-se Winifred, a mãe de

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Música e mentira Wagner (que não era, portanto, de sangue wagneriano), revela que todos os outros membros da família sempre foram antinazistas, mal suportando as freqüentes visitas do Führer: este, procurando “apoio espiritual” na casa do pangermanismo musical, teria sofrido as piores humilhações da parte de pai e filha, só para poder passar, aos olhos do povo alemão, como amigo íntimo daquela casa, como herdeiro legítimo do gênio de Bayreuth e executor político das suas idéias filosófico-musicais sobre o “cristianismo heróico” e a “regeneração” da raça teutônica. Daí, Friedelind devia, em 1939, fugir da Alemanha, procurando exílio nos Estados Unidos, publicando agora aquele livro sensacional de memórias. Não, Wahnfried não teria sido o berço do nazismo. Já em 1921, quando certos círculos pediram a expulsão dos não-arianos de Bayreuth, Siegfried Wagner teria escrito uma carta (citada por Friedelind sem indicações exatas), defendendo os franceses, os latinos em geral e até os judeus. E para tanto, Siegfried podia afirmar, com muita razão, que seu pai não era um pangermanista e anti-semita tão terrível como Cosima, genial chefe de publicidade do marido, fazia acreditar ao mundo (mais um caso de um membro da família Wagner denunciar a própria mãe). Com efeito, também existe o Wagner revolucionário de 1848, discípulo de Feuerbach e quase correligionário de Marx; ainda escondeu idéias socialistas nos Nibelungen onde Shaw os descobriu. Enfim, Wagner sai das páginas de sua neta como bom-moço ao gosto de 1945, “liberal” no sentido norte-americano da palavra, fazendo o acompanhamento musical da aliança entre as Friedelind. Carpeaux provavelmente confundiu-se com o nome de Sieglinde Wagner (1921-2003), cantora de óperas, sem parentesco com os Wagner. “Sieglinde” é também o nome da heroína de A Valquíria, ópera de Richard Wagner. (N.E.)

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O Canto do Violino potências ocidentais e a Rússia bolchevista. O “Wagner” que conhecíamos antes teria sido falsificação, mentira – a não ser a situação internacional de 1948, já bastante modificada, exigir novamente um Wagner da Direita. Heritage of Fire inspira vertigem ao leitor. O fogo que Friedelind herdou do grande avô parece o fogo de Loki, deus germânico da mentira; ou então, o próprio Wagner foi o mentiroso. Ou então, mentirosos foram só os membros femininos da família. Cosima, Sieglinde9 – menos, naturalmente, Friedelind que parece mentir porque diz a verdade, uma verdade wagneriana. O nome de Wagner evoca logo associações menos agradáveis: um mundo de rostos pintados e gestos pseudoheróicos, teatro no sentido pejorativo da palavra; Gretchens colossais exibindo porta-seios de aço; Siegfrieds em armaduras resplandecentes, combatendo certos demônios ao som de marchas militares; “cristianismo heróico” para o uso da alta administração prussiana; um palavrório enorme sobre O que é alemão?10, antecipando imediatamente a megalomania hitleriana. Tudo isso já pertence ao reino dos pesadelos de ontem, de anteontem. Ainda existem sujeitos como aquele fanático que achou Wagner maior do que Beethoven e Goethe juntos? Também responderíamos que Wagner fez, sem dúvida, melhores versos do que Beethoven e música melhor do que Goethe. Fazemos um esforço para esquecer tudo isso, botando uns discos na vitrola. E logo o feiticeiro nos fez, com efeito, esquecer tudo isso. Quem não suporta seis horas de conversas musicais dos sapateiros de Nuremberg, e quatro horas de gestos histéricos de uma cantora gorda, 9 10

I.é., Winifred. Cf. nota anterior. (N.E.) Was ist deutsch?, ensaio de Wagner. (N.E.)

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Música e mentira ainda sucumbe (Gide o confessou) no concerto. Nietzsche, antiwagneriano exaltado chamou, no entanto, a ouverture dos Mestres Cantores de “música magnífica, riquíssima, último fruto da nossa civilização”, e os dois primeiros compassos do prelúdio de Tristão e Isolda já lhe pareciam “abrir a porta de mundos transcendentais”. Os violinos do prelúdio ao terceiro ato de Lohengrin elevam-se para alturas celestes em que já não há contradições entre o Wagner revolucionário e o pangermanista, em que nem este nem aquele existe, assim como a luta entre papa e imperador acaba no Paraíso de Dante. A fascinação é irresistível. Sobre a música de Wagner ainda não se dizia a última palavra: o grande obstáculo é o teatro de Wagner. Procurar, nessa música, os famosos leitmotivs e acompanhálos através do “drama musical” inteiro é a delícia dos amusicais, para os quais a música só tem sentido quando corresponde a imagens literárias, gestos e movimentos psicológicos. Nós outros preferimos o critério de Lorenz: os períodos ligados pela mesma tonalidade são os elementos sinfônicos da música de Wagner11, espécie de falsificação da grande arte sinfônica alemã por um gênio errado – “L’Allemagne e le génie de l’erreur” (Duhamel)12. Mas é um gênio. Quanto mais curtos aqueles períodos 11 Alfred Lorenz, Das Formproblem in Richard Wagners Musik (Munique, s.ed., 1922). – Carpeaux escreve o seguinte em Uma nova história da música (2ª ed. rev. e aum., Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1968), p. 210: “Lorenz demonstrou que os verdadeiros temas das ‘sinfonias teatrais’ de Wagner não são os leitmotivs, mas os períodos musicais nos quais estão encerrados; exatamente assim como na sinfonia não são as melodias que importam, mas seu desenvolvimento dramático.” (N.E.) 12 “A Alemanha tem o gênio do erro” (citação elíptica de Georges Duhamel, Tribulations de l’espérance (Paris, Mercure de France, 1947), p. 30). (G.Z.)

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O Canto do Violino são, tanto mais rico é o poder fascinante das modulações cromáticas: no Tristão sobretudo, em que “a crise de harmonia romântica”, conforme a expressão de Kurth13, chega ao auge, já se adivinhando “o reino de novas” de Debussy, já se anunciando a atonalidade de Schoenberg e Alban Berg. Mas Wagner não deu esse último passo. Depois de Tristão Wagner recuou, tomou-se musicalmente reacionário. Voltou ao romantismo do seu passado. A oficina do sapateiro Hans Sachs é um “navio fantasma” chegando ao porto da pequena-burguesia. Siegfried é um Tannhaeuser que não perde no monte de Vênus das Valquírias a energia militar de um sargento. Parsifal é um Lohengrin oficializado, ingênuo como um doutor em filosofia que acaba de colar grau e eficiente como um oficial de reserva prussiana. Toda essa última fase de Wagner parece uma mentira enorme. Mas não foi. Foi a própria realidade. O romântico Wagner é o musico oficial do Reich dos Guilhermes e de Hitler porque esse Reich é a realização política dos sonhos poéticos do romantismo. Apenas para nós outros o sonho virou pesadelo. Wagner quis ficar romântico. Antes, sim, fora revolucionário, discípulo de Feuerbach, amigo de Marx e Bakunin, lutando em 1848 nas barricadas de Dresden, exilado na Suíça onde realizou a sua própria revolução, a erótica, da qual Tristão e Isolda é o monumento. Mas depois recuou. Quis ficar romântico. A sua atividade febril de compositor, poeta, escritor filosófico e político, diretor de teatro, tudo ao mesmo tempo, é realização de outro sonho romântico; da fusão de música e literatura, e 13 Ernst Kurth, Romantische Harmonik und Ihre Krise in Wagners “Tristan” (ed. fs. da 3ª ed. 1923, Hildesheim, s.ed., 1985). (N.E.)

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Música e mentira filosofia e vida;14 da confusão entre a obra e o artista. Em vez da arte viva, a vida artística. O vitalismo artístico de Wagner apenas é o reverso daquele romantismo político. – “Acredito – afirmou Wagner – que não precisamos da arte quando temos a vida verdadeira”; sua nação acabará sacrificando a arte e a civilização inteira à “vida verdadeira”, ao poder. A mentira começou na música e terminou nos campos de batalha. A psicologia de Wagner, já esboçada por Nietzsche, é a de um grande ator porque é preciso ser ator para representar na vida o que é da arte. Daí o campo de ação de Wagner é o palco, reunindo-se os recursos da música e da poesia (“Goethe e Beethoven ao mesmo tempo”). Bayreuth é o lugar de um fantástico comício em que o ator subjuga as massas, seja mesmo pelo poder da mentira sempre repetida (os leitmotivs). Na literatura de Wagner até aparece a mentira no sentido cru da palavra: na sua autobiografia de 1842, Wagner confessou que um trecho de Heine lhe fornecera o enredo do Navio fantasma; na segunda edição da autobiografia, de 1871, o mesmo enredo aparece “encontrado por Heine numa peça holandesa”, peça que não existe. De maneira semelhante Wagner chegou a negar as suas relações artísticas com a ópera de Meyerbeer e a Grande Ópera parisiense, que são no entanto os precursores imediatos do “drama musical” wagneriano. A mentira introduzia-se no próprio coração da verdade musical de Wagner, na sua heritage of fire que ele herdara dos Bach e Beethoven: a grande arte sinfônica, a conquista suprema do espirito alemão, transformada pelo mestre de Bayreuth em acessório das suas pompas teatrais, em 14 No original, “... música e literatura e filosofia e da vida” (grifamos). (N.E.)

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O Canto do Violino mero instrumento das falsidades de ópera. Vida falsa, arte falsa, catástrofe certa. Ao Crepúsculo dos deuses, fora mero espetáculo, seguiu-se a realidade do crepúsculo dos ídolos. Agora, o ar parece purificado, mas só parece. Enquanto o nazismo é considerado como fenômeno exclusivamente alemão e portanto extinto pela derrota militar dos alemães, a mentira continua, porque todo mundo é culpado. Todo mundo aceitou o Wagner do “cristianismo heróico” e da “regeneração racial” de Cosima, assim como agora gosta de aceitar o “bom-moço” de Friedelind. E já estão surgindo de novo Siegfrieds, vestidos de armaduras resplandecentes, oferecendo-se para lutar contra certos demônios; mas a música que os acompanha não é boa. Para nós, não importa se Wagner foi um grande ator da Direita ou um grande ator da Esquerda ou de Centro qualquer. Chega de atores. É preciso distinguir nitidamente entre o artista e a obra, desfazendo-se as perigosas confusões românticas. Queremos é música: música sinfônica, verdadeira. Precisamos esquecer Bayreuth e Wahnfried e as marchas, Cosima e os porta-seios de aço, Sieglinde15 e Friedelind e todo o resto: no resto a ouverture dos Mestres Cantores é música riquíssima e os dois primeiros compassos do prelúdio de Tristão e Isolda abrem a porta de mundos transcendentais.16 Eis a verdade.

15 Isto é, Winifred. Cf. nota 8. (N.E.) 16 O ano de estréia de Tristão e Isolda, 1854, é considerado divisor de águas na história da música, porquanto seus acordes iniciais abriram as portas da dissolução da tonalidade. Nesse sentido, Wagner foi mesmo um revolucionário, o equivalente musical de Hegel e sua filosofia da dialética negativa, que por sua vez abriu as portas do porvir revolucionário. (D.M.)

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Mestre de todos nm

Jornal de Notícias, 26 out. 1948

N

a segunda metade do século XVIII operou-se a maior revolução de que se tem conhecimento na história da música: a voz perdeu o primado milenar, cedendo aos instrumentos, reunidos na orquestra e governados pelas leis da forma de sonata; instrumentos, objetos de madeira e metal, mas dotados agora de todos os poderes de expressão da voz humana, da alma humana. Servirão ao romantismo mais desenfreado e ao objetivismo mais exato, igualmente, quando a música moderna, a partir daquela revolução, se encaminhará para descobrir novos espaços invisíveis. Um gigante miguelangelesco parece ter mudado os caminhos da arte, da história íntima do gênero humano. Mas não foi tanto assim. O profeta Elias também esperava ouvir

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