Revista do festival de Cinema MoV.Cidade 2020

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revista mov. n. 01

Colagem manual. 2020, de Danielle Menezes.

POR Elisa Lucinda Suely Bispo CaĂŞ GuimarĂŁes Maria Rezende e Amara Moira


Revista MoV.Cidade nยบ 01 - O Vazio

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio

SETEMBRO 2020

BEM-VINDX! Esta é a Revista Collab do MoV.Cidade, uma publicação que conta com o trabalho visual e textual de 21 artistas, escritores, fotógrafos, ilustradores ou jornalistas de diferentes regiões do Brasil. Esta leitura é um mergulho na subjetividade do outro sobre a compreensão da complexidade das relações humanas nos (ou em contraponto com os) espaços públicos. É o encontro do que vem de dentro com o que é posto (ou construído?) fora. O encontro do indivíduo com a coletividade. E a complexidade dos desencontros. Em tempos de pandemia, com velhas novas feridas das cidades em evidência, como violências e desigualdades, convidamos a arte como uma aliada para resistir e criar novas formas de ser. Essa é uma publicação não linear e diversa. BOA LEITURA! AQUI TEM: ARTE

CIDADES

CORPO

DIVER sCIDADE

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ilustração fotografias crônicas poemas memórias

prosa

artigos

divagações

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Ensaio do Isolamento

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Jadroplou

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Na Periferia com César MC

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Não Houve Pausa

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Bordando Memórias do Corpo-espaço

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Aforismo do Corpo

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Sobre o Vazio

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A Ausencia que Andar Faz

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Os Traumas e as poéticas do Corpo-cidade

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Luxo e o Lixo

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Intervenção Urbana

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Travomantra

por Bruno Alencastro

por Saskia Sá

por Luanna Esteves

por Chama.Amanda

por Rick Rodrigues

por Natalie Mirêdia

por Amara Moira, Caê Guimarães, Elisa Lucinda, Maria Rezende e Suely Bispo

por Samuel Brandão Barros

por Lívia Rangel

por Tarantinas

por Made in China

por Noá Araujo Prado

Faces do Isolamento Violento por Brenda Lima

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MoV.Cidade

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio

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CIDADES

ARTE

obs-cu-ra

“Um ensaio do isolamento sob o olhar de 12 fotógrafos brasileiros” Por Bruno Alencastro

Ancestral da câmera fotográfica, o princípio da câmera obscura como dispositivo ótico é uma caixa ou sala completamente escura e com uma pequena entrada de luz projeta, na parte oposta a essa abertura, uma imagem invertida da cena externa - técnica que passou a ser usada no Renascimento para as mais variadas finalidades. A visualização de eclipses solares sem colocar em risco a visão; o auxílio a pintores em busca de uma representação mais fiel e bidimensional do mundo; até servir de inspiração para a obtenção da primeira fotografia da história, “View from the Window at Le Gras”, produzida ao longo de oito horas de exposição desde a janela do inventor francês Joseph Nicéphore Niepce, em 1826, na cidade de Saint-Loupde-Varennes, na França. Não por acaso, a janela como ponto de vista é um motivo recorrente ao longo de toda a História da Arte. De “Woman at a Window” (1822), do alemão Caspar David Friedrich,

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a Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock (1954). Da espera ao voyerismo, as referências são muitas e passam ainda por Dalí, Picasso, Matisse, Magritté, até a inspiração mais recente na obra do fotógrafo cubano Abelardo Morell, que transforma ambientes ordinários em cenários surreais em sua série Camera Obscura. Nos dias de hoje, a janela passa a representar a fronteira e o abismo entre o mundo exterior e o interior. A liberdade e o confinamento. Obscu-ra é a soma de tudo isso. Um ensaio fotográfico caracterizado por uma atmosfera sombria e enigmática, tal como o indecifrável futuro que ninguém sabe ao certo como será. Uma série concebida pelo fotógrafo Bruno Alencastro que convidou mais 12 fotógrafos(as) brasileiros(as), que aceitaram transformar suas casas em câmeras obscuras de grande formato e capturaram a vida em tempos de pandemia.

1- BRUNO ALENCASTRO RIO DE JANEIRO, BRASIL – 24/04/2020: Bruno Alencastro, diretor de fotografia, 35 anos, e sua mulher Greyce Vargas, jornalista, 35 anos, posam para autorretrato em seu apartamento, no bairro Copacabana, Rio de Janeiro. Desde o início da quarentena, estão isolados em casa e trabalham de home office. Nesse período, Bruno criou a série Obs-cu-ra, em que dirigiu um grupo de fotógrafos, também isolados.

Bruno Alencastro é especialista em narrativas visuais com experiência em fotografia, vídeo e produção de conteúdo digital. Mestre em Comunicação ele é diretor de fotografia na Canarinho - Agência de Conteúdo (RJ).

+ SAIBA MAIS SOBRE O PROJETO NO SITE: WWW.BRUNOALENCASTRO.COM.BR/


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2 - BEATRIZ GRIECO NITERÓI, BRASIL – 24/04/2020: Beatriz Grieco, 21 anos, é estudante de Cinema. Está isolada em seu quarto, onde trabalha e estuda. Beatriz vedou completamente seu quarto de modo que a entrada de luz se deu por um único e pequeno orifício aberto na janela, gerando uma projeção que corresponde ao mundo exterior de cabeça para baixo, uma analogia às consequências causadas pelo Covid-19.

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3 - CAROLINE MULLER SAO LEOPOLDO, BRASIL – 02/05/2020: Caroline Muller, 24 anos, é fotógrafa e bailarina. Está isolada em casa com o namorado, que é estudante de medicina e trabalha na linha de frente ao combate ao Covid-19. Na foto, vemos a imagem da rua projetada em um espelho.

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4 - EDUARDO SEIDL PORTO ALEGRE, BRASIL – 03/05/2020: Eduardo Seidl, 41 anos, é professor universitário. Está isolado em casa com a mulher e os dois filhos, de 7 e 4 anos. Para ele, “o habitar provoca olharmos para nós. Quando olhamos para fora, vemos metaforicamente um mundo completamente de cabeça para baixo”.

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5 - EVELINE MEDEIROS CACHOEIRINHA, BRASIL – 25/04/2020: Eveline Medeiros, 25 anos, é fotógrafa de família e terapeuta holística. Vive com os pais idosos. Os três são do grupo de risco e mesmo vivendo juntos não podem se tocar. Ela sabe que, por isso, faz parte do último grupo que poderá retomar a vida normal. Na foto, projeta a imagem da rua sob sua faceta holística.

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6 - LEO SAVARIS NOVO HAMBURGO, BRASIL – 03/05/2020: Leo Savaris, 37 anos, está isolado em casa com o filho e a mulher. Na imagem, a família reflete sobre a nova rotina, agora sempre juntos, sob a projeção da imagem da rua nas paredes do quarto.

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7 - PEDRO ROCHA TRES COROAS, BRASIL – 01/05/2020: Pedro Rocha, 39 anos, vive em uma cidade do interior com a mulher e os dois filhos. Com a família, montou uma câmera obscura no pátio de casa para registrar a rotina da quarentena em um espaço já isolado em que mistura a natureza com o reflexo da paisagem.


www.movcidade.com.br 8 - RICARDO WOLFFENBUTEL FLORIANOPOLIS, BRASIL – 10/05/2020: Sofia Wolffenbutel, 13 anos é retratada em seu quarto, no apartamento onde mora com seus pais em Florianópolis, Brasil. Desde o início da quarentena, ela vive isolada dos amigos. A rotina virtual dela não mudou muito segue conectada com eles. Estuda remotamente todas as manhãs faz aulas de pilates por videoconferência, assiste séries, ouve música e lê.

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9 - RODRIGO BLUM SAO LEOPOLDO, BRASIL – 15/04/2020: Rodrigo Blum, 31 anos, é fotógrafo e teve seu trabalho suspenso durante a quarentena imposta pela Covid-19. Na imagem, apaga a vela do que foi a única forma de comemorar seu aniversário, isolado, pela primeira vez em sua vida.

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10 - URSULA JAHN MONTENEGRO, BRASIL – 08/05/2020: Ursula Jahn, 26 anos, é artista e teve todos seus trabalhos suspensos em função da pandemia do covid-19.

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11 - GUILHERME SANTOS PORTO ALEGRE, BRASIL – 03/05/2020: Guilherme Santos e Gabriela Thomaz, ambos 32 anos, e o filho Joaquim, 7 anos, estão isolados em casa. Gabriela, instrutora de yoga, tentar seguir com aulas através de videochamadas. Na foto, a família vê a imagem da rua projetada sobre si enquanto repensam sobre a possibilidade de mudar todo o estilo de vida, da cidade ao trabalho, assim que a quarentena chegar ao fim.

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12 - JOSUÉ BRAUN FELIZ, BRASIL – 14/04/2020: Josué Braun, 36 anos, é músico e fotógrafo. Perdeu as duas fontes de renda com os trabalhos que foram suspensos pela pandemia do coronavírus. Na imagem, retrata a solidão imposta pela quarentena.

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CRÔNICA

Jadroplou era o nome do navio. E ela quase perdeu o ônibus. Distraída para a vida, olhava para o porto e se perguntava qual a origem do misterioso nome que remetia a mares distantes deste, cujo cheiro fétido da maré, extremamente baixa naqueles dias de escassez na cidade industrial, envolvia uma ilha murada, de onde só se avistavam as engrenagens da máquina de moer gentes e a lua pálida sobre os prédios decadentes do centro. Mas ela sabia, era uma lua que veio de onde ela queria ir para. Ela queria partir para Jadroplou, a ilha virgem, livre das fissuras provocadas pelo metal que fura a carne da terra e sangra seu ventre árido, que traz a morte e a ânsia pelo pau dele rodeado de cachos ruivos derramados sobre suas feridas dóceis de amor velho e cansado de errar. Encontrou o papel laminado do cigarro de prata na bolsa e escreveu nele o nome Jadroplou, feito uma mandinga da ilha incrustada na esmeralda dos sonhos para além das águas podres da baía murada, que lhe impede o acesso à fuga pelo mar da cidade dos homens. Exilada na ilha sem mar. Só mesmo em Jadroplou se sentirá em casa, embalada por suaves brisas nas noites imemoriais da era da inocência. Decidiu ser levada até lá pelas mãos de suas ancestrais. Olhou pro asfalto, saltou pro ônibus. Deixou Jadroplou e seus devaneios presos nas amuradas do cais.

Saskia Sá é escritora e artista visual, diretora e roteirista de audiovisual, sempre com mulheres protagonistas em suas obras. No momento, está produzindo o longa documentário Garotas do Game pela sua produtora Horizonte Líquido.

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Ilustração “Jadroplou”, por André Ramos


Ilustração por André Ramos Almeida

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André Ramos Almeida é capixaba, morador de Serra, tem 25 anos, estudante de cinema e audiovisual e ilustrador desde 2015. Na maior parte de seus trabalhos utiliza meios digitais para criação, pensando temas que atravessam sua vivência.

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“E U S O U F A V E L A” César Resende Lemos, o César MC, nasceu e vive no Morro do Quadro, periferia de Vitória. Filho de funcionário público e professora de português, campeão de rima, aos 22 anos explodiu na música brasileira com o videoclipe de Canção Infantil, sua composição que já registra quase 30 milhões de plays e retrata a desigualdade e os desafios da livre infância com a violência policial nas favelas.

“Nasci no berço da violência, então é óbvio que falar de amor é resistência”

créditos a @rodrigosoadxp

Enquanto estava no Rio de Janeiro, no final de Agosto para a gravação do clipe de sua nova música “Eu sou Favela”, com VKMac e MC

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Cabelinho, César compartilhou seus sonhos e sua visão sobre a relação das pessoas com as comunidades.

valida é o juiz! E nesse jogo de regras mal feitas nós sabemos que a favela tende a ficar sempre do prejuízo.

Seu trabalho valoriza a favela. É seu interesse aproximar periferia e centro? Busco dar voz a toda preciosidade que é produzida na favela para que seja vista com sensibilidade e inclusão, promovendo a reflexão da urgência de conectar os acessos da vida urbana à periferia.

O seu trabalho e o seu alcance trouxeram o que pro seu bairro, o Morro do Quadro, em Vitória? O que eu me tornei trouxe um significado muito precioso para as pessoas ao meu redor e isso me torna muito grato. O resgate da autoestima, o estímulo a quebrar barreiras, a busca por reafirmar a nossa identidade. A favela sempre vence no plural.

O que é preciso para a periferia ter protagonismo? A favela já tem voz, representatividade e tem protagonismo. O que falta é que essa voz seja escutada, para que os representantes ganhem força e esse protagonismo não seja apropriado. Nossos gols de placa têm que gerar impacto, pois ainda que a gente não se canse de abrir o placar, quem

Qual é o seu sonho para sua comunidade? Eu sou um sonhador. Mas confesso que como favelado e preto, sonhar se torna imensamente doloroso. O meu sonho é a garantia da oportunidade da favela sonhar de forma saudável, com condições honestas de realizar seus objetivos.


NÃO HOUVE PAUSA Por Chama.Amanda palavra futuro, no planejamento do presente-corpo-cidade, gera ansiedade. corre! abafa depressa os gritos da mente para uma sensação insuportável agora - e antes. o com-texto de pandemia aparece como uma nova preocupação mas traz em todos os seus registros corporais-citadinos os velhos esquemas de contágio-egoístico preocupantes a nós, habitantes das artes, da cultura, da educação e da transformação. habitantes dos corpos não hegemônicos e não privilegiados. habitantes dos estudos e práticas da diver-cidade como caminhos para a transformação da cultura da desigualdade e da competição. trabalhar com imagem e arte é trabalhar com imaginário. com criação de possibilidades. muitas vezes, por criar cenários, nos transformamos em cordões de brilhantes, anéis, jóias penduradas nos pescoços dos diretorescidades. nos solicitam, muitas vezes, a pintura ou a escrita de uma paisagem bonita para abrilhantar os prêmios, aparecer nas fotos e nos dar o sabor do que seria valorizar a arte e a cultura como potência de transformação social. em nossa humilde liberdade criativa, traçamos um paralelo entre o que nos faz viver e o que vendemos para poder existir. mas, há de se ter cautela ao tratar sobre o assunto, afinal, é possível comprar uma ideia de sustentabilidade que não passe pelos brilhos do consumo?

www.movcidade.com.br de todas as cestas básicas e do trabalho comunitário que aconteceram nesses últimos meses, sem pensar em fotos ou registros - apenas em continuidade da vida. a continuidade do corpo-cidade alimentada pela re-existência de pessoas comuns. enquanto escrevo esse texto, recebo a notícia de que uma pessoa foi queimada viva em uma rua do corpo-cidade-vitória, em frente a um mural de arte urbana que realizei com uma companheira, a artista ione reis. pergunto: qual linearidade histórica de passado, presente e futuro pós-pandemia estamos propondo aos corpos-cidades? quais práticas de nós, pessoas que ainda permanecem em movimento, legitimam ou criam as possibilidades para a permanência da paisagem cotidiana de violência? o que transforma a paisagem corpocidade-violenta em natural? o tempo, o coração do vazio, passa, não linear. o fio do destino se tece a cada dia e escancara, evidencia, o que as camadas de jóias e belezas exageradas em telas e redes sem fio tentam esconder. quais corpos permanecem a salvo? a troco de que(m) naturalizamos a permanência de uma paisagem de violência? me parece que o concreto se estabelece como o sangue nos corpos dos diretores-cidades, que por meio de seus nomes, transformados em nomes de ruas, edifícios, praças, estátuas, constroem suas histórias de honra,

beleza e triunfo. concreto. as estátuas estão sendo derrubadas nestes últimos tempos. talvez essa destituição simbólica manifeste a relação de desejo e ideal futurístico das pessoas com o corpo-cidade. que a queda venha, e junto dela venham os ouvidos a quererem escutar verdadeiramente as outras vozes das pessoas que habitam o corpo-cidade. as estátuas caídas, o muro rabiscado, chocam mais os diretores-cidade do que um corpo, literalmente, em chamas. chocam mais do que corpos sem ar. chocam mais do que corpos em cárcere. chocam mais do que corpos amontoados em cemitérios. chocam mais do que assassinatos de inocentes. chocam mais do que corpos violados - física e psicologicamente, há anos. uma dúvida agora me surgiu: de qual dessas pandemias estamos falando e para quais ouvidos-ocos continuaremos gritando? não houve pausa. meus desejos de mudança continuam se acumulando. se acumulando feito trabalho doméstico sobre nossos corpos. e fica, então, todo o desejo para depois. mas depois já é tarde, e preciso descansar. por aqui tem sido, e será, um dia de cada vez. ainda me acredito semente. Referências: - Mo Maie - escrita sobre o tempo, postagem em 6 de junho de 2020 em seu instagram @mo.maie. - Bayana System - Lucro (descomprimindo), acesso livre no Youtube.

Chama.amanda é artista visual, comunicadora e educadora social. Desenvolve projetos culturais, artísticos e sociais desde 2010 na Grande Vitória. Realiza intervenções urbanas a partir de suas vivências - direitos humanos e políticas públicas, culturas, desigualdades, LGBTQIA, filosofia, espiritualidade e territorialidades.

o presente-pandemia se alimenta de espera e crença. acredito que o que pintamos em cenários esperançosos sai do que vemos nas parcerias cotidianas que estão ao nosso lado e absorvendo a força dos que vieram antes de nós nos trouxeram até aqui. o presente-pandemia se alimenta de fé e revolta. economia criativa é a materialização Acervo pessoal Chama.Amanda, foto de Ione Reis, 2019

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CIDADES

ARTE

Instalação “Para Manoel...”, 2019 . Bordados, desenhos, brinquedos, objetos e carimbos. Trabalho produzido durante a Residência Artística “Territórios”, no Sesc Teresópolis/RJ. Fotografia: Emmanuel Chaves.

Miudezas, bordados, casas, causos e outras coisas Por Rick Rodrigues

Toda minha obra é criada em João Neiva, interior do Espírito Santo, onde nasci, cresci e vivo. Essa produção tenta abarcar as memórias da infância, familiares e cotidianas, histórias de chão, sonhos, desejos, perturbações, forças, fragilidades e afetividades; na tentativa de cada vez mais extrapolar as fronteiras do meu lugar de origem – mesmo permanecendo nele.

A CASA

A casa é o signo que permeia toda a poética visual, seja nos desenhos, gravuras, fotografias, bordados, palavras e frases suspensas, miniaturas, dobraduras de papel, brinquedos e objetos garimpados e de colecionismos, que são os principais meios pelos quais me expresso. No ensejo de desvelar as diversas narrativas e simbologias das casas, permito-me mergulhar nas lembranças das residências dos meus avós, dos quintais da primeira infância e os mundos oníricos

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construídos em meus retraimentos do mundo real. Atravessadamente, nessa busca, encontro coisas que são casas de outras coisas (caixas, cofres, armários, cômodas, gavetas, bolsos, sacolas...); também as casas móveis (caracol, tartaruga, etc.); casas que lidam com a metamorfose, como o casulo que abriga a lagarta e que, posteriormente, vira uma borboleta; as casas fantásticas, aquelas idealizadas pelas crianças e de direito universal; e os corposabrigos-casas. Tem casa vazia. Tem casa cheia. Tem um vazio aqui dentro e lá fora. Tem muita gente sem casa. E o que mais tem é casa sem gente. Tem quem more no próprio corpo. Tem quem não habite o próprio corpo. Ser a própria casa. Ser o próprio mundo. Casa é um direito. Casa é um privilégio. O termo casa está em voga. De

repente, em escala mundial, foi preciso, obrigatoriamente, reinventar os espaços, afetos, moradas, corpos, encontros, abraços, quartos, varandas, jardins, ruas, praças, cidades, amanhecer, anoitecer... quem instituirá o novo mundo? A casa será garantida a todos? E no velho mundo, quem tem casa? É tempo de habitar! É tempo de habituar. Habitar-se.

Rick Rodrigues (João Neiva/ES, 1988) é artista plástico e mestre em artes, pela UFES. Faz parte do coletivo artístico Almofadinhas. Já esteve em mais de 50 exposições coletivas e 8 individuais.


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Série [quase] um lar para habitar, 2017. Bordado sobre tecido de algodão. Dimensões: 28,5 cm x 18,5 cm. Fotografia: Junior Luis Paulo.

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio Série [quase] um lar para habitar, 2017. Bordado sobre tecido de algodão. Dimensões: 23 cm x 09 cm. Fotografia: Junior Luis Paulo.

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Tem um projeto cultural e não sabe como inscrever na Lei Federal de Incentivo à Cultura? A gente dá uma força.

Acreditamos na cultura como expressão genuína das tradições do nosso país. Por isso, lançamos uma jornada de aprendizado para incentivar artistas e produtores culturais a formatarem e cadastrarem seus projetos na Lei Federal de Incentivo à Cultura. Acesse o treinamento on-line no nosso site. É grátis!

Para mais informações:

vale.com


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Corpo Nuvem, performance na Galeria Homero Massena 2020, por Natalie Mirêdia

CORPO

ARTE

aforismos poéticos reflexões sobre o corpo Por Natalie Mirêdia

Do Fragmento e do Desejo É dada, como pressuposto, a repartição do conhecimento e de suas práticas. Porém, percebem-se movimentos – independentes e ainda assim afins – para reconectar esses saberes separados. Os modos de existência partilhados não são expressões da natureza, mas sim criações culturalmente fabuladas. Existe uma alegria imanente ao desejo, como se ele fosse completo, recheado de si mesmo; ao desejo nada falta, ele preenche-se de si próprio e erige seu campo de imanência. O desejo é potência de agenciamento, seja ele artístico, científico, místico, político, seja de que natureza for, será construído pedaço a pedaço, em lugares, condições e técnicas que não se deixam reduzir umas às outras e pela coletividade.

Dos territórios internos O conceito de território é utilizado para delimitar e evidenciar a hierarquia existente nos espaços imaginados geograficamente, ou seja, no contexto geopolítico. Territórios, quando internos, se tornam metáforas para aludir ao que é subjetivo e pertencente ao próprio indivíduo. Dessa forma, gera-se fricção sobre questões relacionadas à identidade, à tolerância e à ideologia dos corpos e seu uso no âmbito artístico. Vivenciar o corpo em situações não convencionais expande a nossa percepção sobre a existência humana, levando-nos a sensações até então nunca experimentadas. O corpo na arte e na vida se torna potência expressiva quando das interações e trocas com o entorno social, político, histórico, familiar, subjetivo, poético, cotidiano e urbano.

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Natalie Mirêdia é mestranda na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo em Artes Visuais. Possui pesquisa na área de Teoria e História da Arte Moderna e Contemporânea e Processos Criativos. Trabalha com performance, fotografia, vídeo, objeto e instalação.


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Das mutações da corporeidade Corpo-enfrentamento: Há muitos debates sobre as relações que o corpo trava com o seu entorno social e político. Dessa maneira, cria-se um microterritório que lida com questões relacionadas a constructos sociais provenientes de suas vivências e potências. Esse corpo se constrói pelo embate entre a sua negação e o seu desejo de afirmação político-afetiva. Corpo-instalação: Corpo que pode ou não abraçar o excesso material para definir a si próprio na condição de microterritório em transformação com as possibilidades entre corpo e material, estendendo suas vivências através de formulações físicas e espaciais que absorvem e desconstroem o entorno e o corpo funcional. Corpo-paisagem: Apresenta a experiência entre arte e vida através do corpo que se mescla com as paisagens, sejam elas cinzas ou verdes. Esse corpo investiga a hibridização entre corpo e paisagem, ambos fundidos como matérias diversas, numa transformação do ser diante da natureza e da natureza diante do ser; um atravessamento dos modos de existência partilhados.

Corpo Nuvem, performance na Galeria Homero Massena 2020 Por Natalie Mirêdia

Do corpo neolibidinal O indivíduo não é o outro do poder, realidade exterior por ele anulado: ele é um de seus mais importantes efeitos. O adestramento do corpo, o aprendizado do gesto, a regulação do comportamento, a normalização do prazer, a interpretação do discurso, tudo isso é produção de poder e ninguém está isento. Não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, e todo saber constitui novas relações de poder. Houve um tempo em que o poder se exercia na repressão sobre o corpo; hoje ele pode trazer a sensação de liberdade, a qual é muito fácil de ser adquirida sob a forma de aquisições materiais, supérfluas ou necessárias. Corpo Nuvem, performance na Galeria Homero Massena 2020 Por Natalie Mirêdia

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Lugar de Pertencimento, Pedreiras em Vargem Alta, 2015, Por Natalie Mirêdia

Da enunciação da transgressão e da norma Quais as contra narrativas o corpo pode produzir nos espaços em que transita? Tratam-se de discursos e práticas que surgem devido à necessidade de ruptura de paradigmas, pois esses já não refletem e constituem a realidade a partir da ideia de um todo unificado e universal, como forçosamente ocorria em outras épocas. As contra narrativas incitam a questionamentos por outras perspectivas, que não sejam romantizadas e idealizadas, e que ocorrem no mundo prático, muitas vezes de forma ríspida, irrompendo-se em necessárias verdades sórdidas. Dos corpos e anticorpos O que pode um corpo na paisagem urbana? O fato de que a nossa expressividade corporal esteja estritamente associada a um tipo de comunicação funcional - a qual por vezes se torna uma ferramenta de alienação para uma compreensão mais profunda do outro - dificulta compreendermos o corpo como potência de transformação social. O corpo na arte é exatamente a quebra de sintaxe de sua codificação funcional nos espaços coletivos. A relevância do discurso que o corpo propõe no contexto artístico está justamente na ruptura entre significado/significante. Proponho um experimento pós-pandêmico: Escolha um local de uma avenida ou rua movimentada, pare no ponto escolhido e fique pelo menos cinco minutos olhando para o “nada” ou um ponto fixo. O desconforto dos passantes será geral, pois o corpo na cidade é um corpo com urgência; não há curiosidade em descobrir o vazio na urbe; vazio repleto de novas possibilidades de existência, da calmaria no caos. Corpo, logo existo.

Da desimportância do afeto Deslocavam-se os corpos. Para qualquer lugar. Já não importa muito por onde andeja se você se tornou um morto-vivo social. Cadáveres sociais. Nascem assim ou são frutos do meio? Todo o meu horror reside justamente no fato de compreender tudo. Estamos tentando estimular os afetos sem a mediação do contato. Vemos um ninho de pássaro como quem vê um ônibus passar. Deveria haver honoris causa para quem enxerga a beleza no ínfimo. Se lembrássemos, todos os dias ao acordar, que os homens sabem fazer tudo menos os ninhos dos pássaros, exterminaríamos os arrogantes em série. Dos Vínculos com a Paisagem No interior há muitas fronteiras. Me dou conta de que sou o espaço onde estou. Nesse contexto, sujeito e paisagem não têm existências prévias: eles se constituem mutuamente na interação, se constroem como numa cosmovisão heraclitiana, na qual distintos fenômenos naturais constituem um devir em si mesmo. Espero que um dia os corpos deixem de ser concebidos como limites. Os processos pelos quais eles atravessam são realidades humanas, não basta referir-se a impressões para explicálos, é preciso vivê-los. Corpo, logo experimento.

Corpo Placentário, 2016, Galeria Península, Porto Alegre Por Natalie Mirêdia

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Das pedras no caminho. Colagem manual. 2017, de Danielle Menezes.

Danielle Menezes é cineasta e artista visual. Cativada pela criação de espaços imaginários, pelo tempo e a memória, seu trabalho gira em torno das minuciosidades cotidianas. Graduada em Artes e Design, dirigiu o documentário Vozes da Memória. Atualmente mora em Juiz de Fora.


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ARTE

CIDADES

CORPO

A palavra “Vazio” é um adjetivo que nos afeta. Em tempos de pandemia, até se transfigura e ganha outras caras e formas: o vazio não está apenas nas ruas e na cidade. Com o excesso de informação, explosão de lives e de conteúdo online, filmes e noticiários, há uma ausência também, há um vazio dentro de casa, há um vazio dentro de nós.

O MoV.Cidade, em parceria com a Festa da Palavra, projeto cultural e literário que será realizado em Itaúnas, em Conceição da Barra no Espírito Santo, convidou artistas, filósofos e poetas para refletirem sobre este tema tão profundo e atual.

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Amara Moira é travesti, feminista, doutora em teoria e crítica literária (com tese sobre as indeterminações de sentido no “Ulysses” de James Joyce) e autora do livro autobiográfico “E se eu fosse puta” (hoo editora, 2016).

Caê Guimarães nasceu no Rio de Janeiro em 1970, tornou-se capixaba em 1975 e atualmente vive em Vitória. É escritor, poeta, jornalista e roteirista. Seu romance Encontro Você no Oitavo Round foi o vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2020.

“No encuentro nada más valioso que darte nada más elegante que este instante de silencio” (Jorge Drexler) Elisa Lucinda é poeta, atriz, jornalista, professora e cantora. Nasceu em Vitória/ ES, em dia de Yemanjá. Possui dezessete livros publicados, dentre os quais a Coleção Amigo Oculto, de livros infanto juvenis, que lhe rendeu, em 2002, o prêmio Altamente Recomendável (FNLIJ) por A menina transparente.

Maria Rezende é carioca de 78, poeta, performer e montadora, tendo assinado quinze longas-metragens, séries de televisão e pílulas de videoarte. É também celebrante de casamentos. Publicou quatro livros, cds de poesia e realizou espetáculos e recitais no Brasil e no exterior.

Suely Bispo é atriz e poeta. Pela UFES, é formada em História e Mestre em Estudos Literários, em que realizou o primeiro trabalho acadêmico sobre o poeta Solano Trindade no Espírito Santo (2012). Tem diversos trabalhos na área de História e Literatura e livros publicados.

Uma questão de perspectiva. Uma sensação. Vazio. Cheio. O copo, o peito. Onde parece não ter nada, e basta uma gota pra transbordar. Vazio: falta, abismo, nada. Vazio: alívio, amplitude, aconchego. “A ausência não é falta, a ausência é um estar em mim”, Drummond disse e eu nunca mais deixei de saber. “Nada do que amei na vida se acabou e mal consigo andar tanto isso pesa”, confirmou Gullar. Sabedorias que é bom carregar. Vazio bom é a sala quieta com uma réstia de sol. É o silêncio da meditação. O preenchimento sem aglomeração. Vazio ruim é o das barrigas e dos bolsos. De quem se foi sem volta. “Socorro eu não estou sentindo nada”, diz Alice Ruiz na voz do Arnaldo. Vazio de sentir, precipício sem engravidamento possível, oco do mundo. Vazio que só se cura por dentro. “Não se trata de tapar buraco, mas ao contrário, cavar mais e mais como quem cava a própria cova”, sugere Leticia Bassit. “Não haveria som se não houvesse o silêncio”, disse Lulu transformando fato em melodia. O vazio é de onde tudo nasce. O big bang que o diga. Todos os úteros também. Salões de baile sem dançarinos até que um dia a explosão, a ocupação. O cheio, os mil cheiros, a humanidade, multidão. As ruas também sabem bem. Madrugadas renovando as calçadas pros mil passos das manhãs. No momento, dos amanhãs. Ruas desertas de repente símbolos de empatia. A distância é o novo abraço. O vazio como cuidado. Já as casas não aguentam mais tanta presença, clamam por um pouco mais de solidão. Reclamam em coro as privadas, as portas, as pias. Não fui feita pra tanta presença, dizem. Me deixe quieta que eu paro de ranger, que eu deixo de pingar, me deixe só estar. Dizem o mesmo muitos peitos e muitas cabeças. Não me inunde de tantos fatos, imagens, sons. Não me abarrote, não me complete até o talo. Se até os hds eletrônicos precisam de espaço pra rodar, que dirá o ser humano? Me ofereça menos, diz a cabeça, diz o peito. Celebre meus vazios, respeite meus silêncios. Deixe que o que há dentro possa dançar mexendo os braços, que o vazio te mostre tudo o que de fato te preenche. Se ofereça ventos que inflam as paredes, se ofereça raios de sol pra que você enxergue o que já tem dentro. Nem cheio nem vazio. Peito pleno.

Por Maria Rezende

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DESEJO DE EXISTIR Vamos pensar numa paisagem sem horizontes, numa estrada sem possibilidades, sem saídas, um porvir sem esperança. Era essa a peça que o destino havia pregado à Prudência. Mas não. Com ela não seria assim. Chega. O passado de pertencer a outros, a vida de ser mercadoria transportada em trágicos negreiros no atlântico, tudo isso tinha que ficar definitivamente para trás. Agora ela ia aproveitar então que Hilário, seu patrão, a havia chamado para pôr na mesa suas intenções e desejos. Prudência caminha no grande corredor da casa de fazenda sobre o piso de madeira corrida, o sol entrando cor de poente como uma luz que acompanhasse. Tudo dentro de um latifúndio de perder os olhos. Ali, na fazenda, quase não havia castigo, vale dizer. E caso castigo houvesse, era prudente que Hilário não soubesse, uma vez que era um homem bom, apesar de branco. Prudência respondia ao chamado do seu senhor, ainda trazendo no corpo, por debaixo da roupa, o frescor do banho de rio tomado na mesma tarde, toda nua dentro daquele corpo firme e reluzente. - Queria falar com vosmecê, Prudência. Não tive filhos, vosmecê sabe, não me casei, vosmecê também sabe. Por isso, o que eu quero é fazer em vida o que eu puder pelos que me ajudaram a construir este império e me ajudam a triunfar. Portanto, quero realizar um desejo seu. Escolha dois presentes. Prudência parou, olhou firme nos olhos dele e disse: - Do senhor eu quero duas coisas. A primeira delas, terras. Quem possui a

terra possui o homem que mora nela, e eu não quero mais pertencer a ninguém. Hilário ficou calado olhando pra ela. Sorriu levemente e disse: - Até aqui não estamos pensando diferente. Quero te dar, Prudência, para vosmecê e para os seus, um bom bocado desses hectares todos meus. Até depois do rio, até beirar a cerca do coronel Bartolomeu. Tudo assinado, tudo seu. Prudência sorriu: - Acho que nem vou estranhar porque desde que eu me entendo por gente que eu labuto nessas terras, parece até que o senhor está me dando o que é meu. Mesmo assim eu sinto gratidão, o senhor compreendeu? - Deixa de prosa, mulher, e me diga logo a segunda coisa que vosmecê quer. - Agora o senhor pode rir de mim até, se quiser, mas preciso pedir uma coisa diferente, e também é um pedido que só interessa à gente. Não serve para outro tipo de bicho. - Prudência, estou ficando curioso. É um pedido ou é um segredo que vosmecê esconde? - Não, seu Hilário, vosmecê vai me entender: o que quero agora receber é um sobrenome. - Sobrenome? Tudo bem! Serve Silva, Cruz, Gomes? Prudência ficou calada. - Escolha, mulher! Fale algo. - Já escolhi: Fidalgo.

- Fidalgo? Mas Fidalgo não é nome de gente, Prudência, é uma atribuição, é uma categoria da nobreza, como Conde, Visconde, vosmecê entende? - Entendo, mas não aceito. Entendo mas não estou nem aí. Se quer dizer realeza, é comigo mesmo, é com a mamãe aqui! Se é isso que quer dizer, o nome é meu de direito. Escravizaram mãos, escravizaram pés, acorrentaram o corpo todo, mas ninguém tira de nós a fidalguia de berço, ninguém tira o ancestral cantado de boca em boca, que no livro da história ninguém contou. Já vi muito rei, já vi muito príncipe morrendo no tronco. Sua realeza ninguém matou. - Pois bem, então, Prudência Fidalgo a partir de agora, será seu nome, sem dever nada a ninguém, nem dinheiro, nem favor.

Prudência abraçou o senhor no silêncio da tarde. Era um homem que gostaria muito de ter nascido mulher. Um homem que passou a vida na falta de poder realmente ser o que ele realmente é. Seu Hilário, divertido, alegre, e sempre apaixonado por outro homem, escondido do mundo. Sempre atormentado, ocupado em esconder sua natureza. Esse era o vazio dele. A tristeza. O preço de ser da alta sociedade. Sob a última luz do poente, Prudência agora anda rainha completa, no mesmo corredor por onde passara há pouco, deixando pra trás a porta pela qual havia entrado quando não tinha nem sobrenome, nem terra, nem nada. Quando era o vazio.

Por Elisa Lucinda

AS AVENIDAS NAVALHAS AZUIS Para o Poeta Sergio Blank (1964/2020) Ei. Percebam. Parece que não há mais nada a ser escrito. E muito provavelmente por um simples motivo acabou tudo, e ninguém percebeu quando tudo acabou. Os cachos robustos da pulsão e da troca. As elipses humanas, as fricções e os sentidos em riste, na hipótese da hipófise dançar descalça. Tudo suspenso, vau arredio, veludo áspero vazio. Nos ataram treliças aos olhos. Observamos por detrás delas. Há atropelos nas avenidas da alma onde antes deslizávamos. E desvãos que insistem em dizer a todos, com frieza, que parem de se ater às próprias grandezas. Lá fora, um vazio toca e torna o ar metalizado. Aqui dentro, um ferrolho gira e avisa que não há dentro e fora. Agora tudo é dentro, e estamos todos dentro da jaula: “tanto riso / oh, tanta alegria / foram estraçalhados nos salões / Arlequim, Pierrot e Colombina atordoados / emulados nas multidões”. A paródia surge. Mas estanca, perde a graça. A alegoria perde a praça. Saudade é um caroço que nasce na avenida de nome desconhecido. Do nosso zelo soçobrou o desmantelo. Cheguem. Acomodem-se em qualquer canto. Não há

o que temer. Tampouco há que requerer conforto e calma. São simetricamente iguais as grades oxidadas da jaula. Estamos irmanados e sós como nunca. Somos todos nós. Atados a uma vaga ideia de corpo que range ao tentar ordenhar o sonho, azeite do espírito. É horrível pensar que o medo se tornou a chave da calma. Pois, pensem. Assim é. Uma penosa e inarredável pira nos incinera, sombra e ferida. Mas incêndio algum acontece em silêncio. E cicatriz copula com a palavra tristeza, mas contém a palavra veloz: triz. Espiem. Espreitem. A tela vai mostrar o carnaval das dores. O luzir desesperado das cores. A colheita. A verdade é uma cosia aflita, irmão. Ela arranha até o osso. Abre as asas escuras e potentes e dita a marcha daquilo que liberta. A tela. Um sorriso tatuado na boca não deveria ser meta: “devias vir / para ver os meus olhos insones / espantados, castanhos incômodos / por fim.” Vazio .

& Vírgula

Por Caê Guimarães


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VAZIOS Se “um copo vazio está cheio de ar”, Onde está o vazio? Vazios são tantos O vazio de fora O vazio de dentro. O vazio das ruas O vazio do peito O vazio das palavras O vazio das relações O vazio espiritual Vazio, vazio... Como preenchê-los? O vazio no peito Alma faminta O que sinto? O vazio do corpo Braços vazios. O vazio do sexo Corpo faminto O vazio da fome Estômago vazio. Soco. O vazio coletivo das injustiças sociais O vazio do abandono e destruição dos espaços culturais. O genocídio dos povos

Indígenas e negros A enorme dívida ancestral Quem quer enxergar? Quem quer transformar? Quem vai pagar? Tantas palavras Interesses espúrios Ações ignóbeis Quem poderá expressar Esses vazios tantos? Falas excessivas de opiniões: Preconceitos, racismo, machismo, Xenofobia, notícias falsas, Pensamento único? Negação da alteridade Tempos autoritários Facismo. Novo normal O que é isso? Saúde, educação e cultura: O vazio dos ministérios A economia é mais importante Do que a vida, Do que a arte. Artistas sentem falta Do corpo a corpo No palco e na plateia Presença. Teatro vazio

Corpos ausentes Platéia deserta Distância. A atriz tem fome O público também. O vazio se preenche No ciberespaço? Live. O vazio de dentro Buraco no peito De onde vem? Angústia e medo Tédio e solidão Sensação Ausências Saudade. Perguntas... Respostas? Talvez fé... Sonhos, pesadelos A minha alma tem fome. Vazios são buracos No corpo, na alma E na cara da sociedade. Os buracos estão à espera. O vazio tem fome: Poesia, corpo e amor.

¹Trecho da música Copo vazio de Gilberto Gil.

Por Suely Bispo

“(...) mas a quarentena vem aguçando em mim o desejo de ir atrás desse vazio de certezas (...)” Amara Moira

CREDO Uma promessa que a pandemia tem me feito levar a sério: em 2020, ser mais escritora do que militante. Me perguntam se não é possível ser as duas coisas juntas e a minha dúvida é se, uma vez travesti, seria possível separá-las. Não importa o que eu faça, aonde eu vá, ali nunca é somente eu, mas uma travesti: o peso de representar, quer se queira, quer não se queira, um coletivo todo, o medo de errar e saber que o erro não será só seu. Como não errar? Apegando-se ao que já se sabe seguro e é de alguma forma consenso, evitando os riscos de se aventurar por um caminho ainda a ser inventado, imaginado. A militante acha que sabe exatamente o que busca e vai martelar consciências até que se transmita essa sua verdade. A escritora, por sua vez, sabe que busca exatamente o que acha e vai martelar verdades até que se transmita essa sua consciência. O trabalho de ambas é agora, mas o daquela é com pressa, pra ontem (amanhã pode ser tarde demais), o desta é pra sabe-se quando e nem dá pra dizer se fará sentido (ou que sentido fará). Ambos têm seu papel e valor, óbvio, mas a quarentena vem aguçando em mim o desejo de ir atrás desse vazio de certezas, desse incessante buscar que constitui a literatura.

“Artistas sentem falta Do corpo a corpo No palco e na plateia Presença. Teatro vazio Corpos ausentes Plateia deserta Distância.” Suely Bispo

Por Amara Moira

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A CADA DIA PERCEBO MAIS A AUSÊNCIA QUE ANDAR ME FAZ Por Samuel Brandão Barros

Busco rever, sempre que possível, as fotos aleatórias que compõe os arquivos que acumulo sem qualquer critério. Um eterno abrir e fechar pastas lotadas de imagens, embaralhadas de acordo com o último momento em que dei um basta e depositei tudo que transbordava. Ou faço isso ou travamos (eu e o dispositivo).

um posto de mero espectador que sequer é sensibilizado.

De tempos em tempos tenho percebido que esse exercício tem se tornado mais constante apesar de seguir me perdendo. Diferente da rua, que basta uma mirada já memorizo, pastas e números não me apetecem. São estáticos.

Essa dinâmica nunca se fez presente no meu cotidiano. Pra mim cidade é movimento, cidade é gente, é fogo, é toque, é furto de ares e carteiras, é passado, é presente, é futuro, é grade, é chão, é pasto, é muro.

É negar qualquer tipo de relacionamento. É em suma se abster. Deixar que os outros passem e não deixem nem levem nada de você ou para você.

Sem pretensões eu uso o pouco que sei pra somar ao que posso ser. Eu anoto, rabisco, rasgo e colo. Cada vez que eu revejo fotos de outros tempos, bate saudade. Às vezes, quando bate direito, num tira sangue não, mas tira uma água que cisma em ficar empoçada em meu olho. Deixa o que era nítido turvo. Então pra mim tanto faz. No fim das contas foto que emociona tu não enxerga, tu sente.

“Sem títulos, apenas sentidos”, de Samuel Barros

Não gosto de ficar parado, a inércia me consome. Inércia, tanto fisicamente quanto quimicamente, define minha aflição: em um define a resistência que a matéria oferece à aceleração, em outro diz que é a propriedade de uma substancia em não reagir com outra. Não resisto à aceleração. Da janela do carro ou do coletivo, sempre estou à postos. Angústia bate quando a vida tá acontecendo lá fora e nem coadjuvante me permitem ser. Frustração danada sentar em corredor (uma sacanagem sem tamanho o lugar mais sem graça do ônibus desprovido de qualquer tipo de movimento ter esse nome aliás).

Samuel Brandão Barros. Nascido em Minas, morou no Espírito Santo e depois Bahia. Acredita esta movimentação o fez perceber o quão pequenos somos e quão múltiplos também. Arquiteto de formação e inquieto de nascença, também é fotógrafo, barista, marceneiro e um bom contador de histórias.

Atento eu observo tudo que acontece, em velocidades variadas. Placas, pessoas, cachorros, motoristas, casas, matos. Tudo me instiga. Mesmo parado estou em deslocamento. Registro, fotografo. Imagens sem foco pra alguns, eu me acostumei a enxergar os vultos e dar os devidos créditos ao acaso. Não me apego. Quimicamente, inércia é em livre interpretação “a propriedade de ser blasê”. De não interagir, de assumir

“Sem títulos, apenas sentidos”, de Samuel Barros

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Os traumas e as poéticas do Corpo-cidade (na pandemia) Nenhum corpo confinado é por definição um corpo sem liberdade. Por Lívia Rangel Lívia Rangel é historiadora e escritora, nascida nortefluminense, crescida e amparada em terras capixabas e estudante por alguns anos nas paragens mineiras e paulistas. Estudiosa das temáticas feministas na cultura, na política e nas artes. Publicou livros, como “Um capixaba entremundos” (2018), “Intelectuais fronteiriços” (2019), dentre outros.

A pandemia que confinou corpos também libertou mentes. Esse não é um fenômeno de métrica fácil. Para não parecer uma ideia leviana, há muito a ser considerado quando unimos as palavras corpo e liberdade. De quem é esse corpo, onde ele habita, por onde transita, quais suas marcas sociais e culturais? A liberdade é a da lei objetiva ou a da condição subjetiva da existência?

“A pandemia libertou mentes ao mesmo tempo que obrigou o confinamento dos corpos” Os corpos que seriam mais sacrificados se sabiam sentenciados à morte tão logo o isolamento entrou em vigor. Afinal, Brasil com ou sem pandemia não deixou de ser o país dos piores rankings no quesito direitos humanos: o que mais mata mulheres e homens negros, o que mais extermina povos indígenas, o que mais oprime e mata lgbtqia+, o campeão em feminicídio - o mesmo elitista e violento país. Há, portanto, dois desfiles acontecendo: o dos corpos que podem ser observados pelos calçadões das praias, pelos shoppings recém-abertos, pelos bares e restaurantes abarrotados; e o dos corpos marginalizados. Estes protagonizam um desfile menos glamouroso, esbarrando-se pelas coxias, num corre para lá e para cá invisível, obrigados a fazerem o luxo

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supérfluo e o estritamente essencial funcionar, a despeito da sua própria segurança e a de sua família. No entanto, gosto de pensar que o fenômeno das mentes libertas pela fenda aberta pela pandemia tem sido o efeito poético desse trauma, se é que pode haver algum. A possibilidade inimaginada ou adiada de reinvenção toma lugar. As pessoas acabaram encontrando, por esforço contínuo ou acaso, o caminho da exuberância criativa, da exuberância solidária, da exuberância implícita, da poética que se transforma em revelação de todo o olhar para dentro. O silêncio faz a gente prestar atenção.

“quando calam os ruídos de fora é que borbulham os ecos de nós mesmos. Isso porque não somos nem máquina, nem alma penada, mas Gente” Em campo aberto - comunitário, militante, social -, a inventividade sem fins lucrativos doou toneladas de alimentos orgânicos, criou nas favelas dinâmicas próprias de contenção da pandemia, acionou a extrema urgência das pautas antirracistas, mobilizou ações

independentes pela cultura, conectou pequenas editoras e leitores e colocou acento na crítica aos modos esgotantes e esgotados com que temos levado a vida. Numa escala mais subjetiva, muitas pessoas também estão recriando suas possibilidades. Desde esse lugar inusitado do não-sair, do não-encontrar, do não-viajar, do não-consumir, interpretado como um parêntese no estado de “normalidade” das coisas, muita gente começou a se livrar de alguns resíduos. Justo nesse nó abriram, na marra, uma espécie de terceira via (escrevem, leem, fotografam, arriscam versos, ampliam diálogos, cozinham, estudam, cantam). O que me faz pensar que nenhum corpo confinado é por definição um corpo sem liberdade.

“Enquanto a pandemia for um trauma, a cidade será a fratura, tão menos exposta quanto mais as pessoas se derem conta de que, ao invés de máquinas e almas penadas, são Gente.”


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“Sem títulos, apenas sentidos” de Samuel Barros - Centro de Vitória (ES)

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Berna Reale, Cantando na Chuva, 2014

NÃO HÁ TEMPO PARA O EQUÍVOCO um manifesto pela ação coletiva Sobre o lixão de Belém é estendido um belo tapete vermelho por onde Berna Reale caminha em terno e máscara. Dourados! Em entrevista, a artista ironiza: “é chique morar à beira do esgoto”¹. Por Tarantinas

O Luxo e o Lixo Nesta breve parte da história do capitalismo que calhou o destino pudéssemos testemunhar, vivenciamos a intensificação da globalização, o pulsar da circulação comercial, a incomparável flexibilização comercial das fronteiras, o avanço tecnológico exponencial, o crescimento desenfreado do consumo, a expansão das necessidades e dos horizontes de novidades. E convivemos com a reiteração de uma promessa de Luxo, seguida da dissimulação do Lixo. O que é chamado desenvolvimento talvez pudesse ser mais bem descrito como “inflação desigual”. Os excessos são sempre

acompanhados de desigualdade. Na modernidade, demos conta de expandir espaço e tempo em nossas almas, e poderíamos concordar com Zweig no sentido de que “sempre que o espaço se amplia, a alma se abre”²; mas esse pensamento por ora nos parece incompleto, pois ainda nos falta perguntar e entender para quê nossas almas se abriram. Há muita riqueza e muita pobreza. Muito Luxo e muito Lixo. Mas sabemos, ao menos, diferenciar Luxo de Lixo? O Luxo nos presenteia com liberdade de consumo e promessa de liberdade de ir e vir. Liberdade de consumo e promessa de liberdade de informação. Liberdade de consumo e promessa de liberdade de pensamento. Além da liberdade de consumo, não temos mais que

promessas. Mas aí nos deparamos com o problema de que, em um sistema meritocrático, nem todos são materialmente dignos dessa liberdade. A “liberdade” também foi inflacionada desigualmente. Não por acaso, vivemos uma emergência climática e ambiental em que o ser humano enquanto espécie tornou-se uma força geológica. E parte da catástrofe se ampara justamente nas luxuosas liberdades modernas intensivas em queima de combustíveis fósseis. Nesse cenário, Chakrabarty questiona se não seria o antropoceno³ uma crítica às narrativas de liberdade da modernidade4. E nós perguntamos: seria também a pandemia parte desta catástrofe? Seria, o novo

¹Disponível em: https://m.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/11/1549370-artista-sapateia-no-lixao-e-navega-no-esgoto-em-videos.shtml Acesso em maio de 2020. ² Zweig, Stefan. Montaigne e a liberdade espiritual. In: Zweig, Stefan. O mundo insone e outros ensaios. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. ³ Antropoceno, aqui, no sentido crítico utilizado por Chakrabarty, para referir-se ao alvorecer de uma era geológica dominada por atividades humanas, um momento em que as escalas de tempo humanas e geológicas se colidem

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www.movcidade.com.br coronavírus, o Lixo de nosso Luxo? O Luxo foi inflacionado e o Lixo transbordou. As fronteiras entre um e outro foram realocadas e não temos dúvidas de que se o vírus afetasse apenas o Lixo, a história seria outra. É chegada a hora de nos havermos com nosso próprio Lixo: Quem limpa a sua latrina? E nos havermos com nossa liberdade: A liberdade de quem serve de lastro à sua? Propomos uma espécie de arqueologia do Lixo. Uma cuidadosa arqueologia do Lixo que permita a sobrevivência da espécie humana. Não há tempo para o equívoco. Entremeio ao absurdo, instrumentos de disputa e resistência foram criados e não existe apenas uma forma de vida sobre a Terra. Pensamos que construímos Luxo, mas também informação; Luxo, mas também ciência; Luxo, mas também consciência; Luxo, mas também luta por humanidade. Evidentemente existem saídas que coexistem com os modos de vida dominante. No entanto, elas são sistematicamente sufocadas até esquecermos de suas existências. O Lixo é a realidade. Sob milhares de mortes em virtude do vírus, mas também por conta de múltiplos anos de políticas neoliberais, o que nos resta é extinguir o capitalismo e salvar a espécie. Superar o capitalismo é o único gesto realmente necessário à sobrevivência. ----Berna Reale não poderá caminhar sobre seu tapete vermelho para sempre. Em algum momento o lixo se putrefará por completo e pôr-se-á em movimento em um rio de chorume. O sonho dourado prometido pelo terno e a máscara não resiste aos gases gerados pela decomposição. A performance descobre seu fim. ---------------

Nem Luxo, Nem Lixo A dicotomia Luxo e Lixo é também produto desse processo inflacionário a que nos referimos; um sistema que inverte a relação entre criador e criatura e coloca o Capital acima do homem. O Capital, ou a Grande Máquina, como se refere Carlos Drummond de Andrade em seu poema Elegia 1938, é implacável e tem como porta-voz o relógio: representação mesquinha do tempo que, em sua forma servil, automatiza a vida. Há uma ruptura com os processos de feitura da vida. O fazer humano foi industrializado, a alimentação também. Enquanto a plutocracia vem disfarçada de tecnocracia. E aqui nos aparece o vírus como produto da indústria do alimento, a contragosto5. O vírus é alegoria do mundo que criamos. É tão real quanto o fracasso neoliberal. E algo temos que fazer. Mas o que podemos fazer? Encontrar a cura e continuar trilhando pelo mesmo caminho, à espera de um novo vírus que irá ceifar novas vidas? Agir como se estivéssemos em guerra contra um inimigo invisível e sob esse discurso permitirmos o governo de nossas vidas pela ameaça e pelo medo? Adiar para outro século a felicidade coletiva, tal qual o eu lírico cansado de Drummond6? Ou finalmente “dinamitar a Ilha de Manhattan”, como a imagem de redenção coletiva que o poeta cria? Enfrentar este vírus é enfrentar a nós e nosso individualismo. O vírus, em toda sua letalidade, é metáfora de nosso Luxo e nosso Lixo. Pensamos que a cura verdadeira deve estar além da biologia da vacina. Pensamos que o certo a se fazer é entendermos este vírus enquanto um alerta para extinguir o capitalismo e salvar a espécie - e não o contrário. Mas é imperativo fazer a coisa certa. Quais são os valores de um sistema cujos representantes pregam seguirmos apesar de um

Lara Ovídio, Frase Verde, 2019 Chakrabarty, Dipesh. The Climate of History: Four Theses, Critical Inquiry, vol. 35, n. 2, 2009, pp. 197-222. Dutkiewicz, Jan; Taylor, Astra; Vettese, Troy. The Covid-19 pandemic shows we must transform the global food system, Guardian, Disponível em https://www. theguardian.com/commentisfree/2020/apr/16/coronavirus-covid-19-pandemic-food-animal Acesso em Maio de 2020. 6 Menção ao poema Elegia 1938 de Carlos Drummond de Andrade: “Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota | e adiar para outro século a felicidade coletiva. | Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição | porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”. 7 Editorial Board, Leaders risk lives by minimizing the coronavirus. Bolsonaro is the worst, Washington Post, Disponível em: https://www.washingtonpost.com/ opinions/global-opinions/jair-bolsonaro-risks-lives-by-minimizing-the-coronavirus-pandemic/2020/04/13/6356a9be-7da6-11ea-9040-68981f488eed_story.html Acesso em maio de 2020 4 5

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio número crescente e quase incontável de mortes?7 Qual o valor desses corpos que tombam diante da existência de um vírus indesejado, produto deste mesmo sistema movido pelo trabalho desses corpos? Como chegamos a este lugar onde bestialidades escalonares podem ser ditas com tom de sensatez? Que Grande Máquina é esta que não pode parar e que adia a felicidade coletiva? Que felicidade é esta que pode ser eternamente adiada? Que mundo é este onde uma ida ao supermercado não é menos perigosa que uma viagem à lua? Há uma força que nos expulsa e não temos para onde ir. Há muito a se repensar quando somos expulsos de casa, não como indivíduos, mas como espécie. É inadiável construirmos um mundo viável. Deixar de nos livrar do capitalismo neste momento seria pagar um crime com outro. Seria apenas adiar o momento de nossa extinção. O vírus não termina de nos expulsar, mas a emergência climática o fará. O capitalismo “verde” só adia a catástrofe. É preciso que não restem dúvidas: o agente dessa mudança não é o eu e a cor do capitalismo não é verde, como nos adverte Lara Ovídio em sua Frase Verde. E evocamos unissonante: o futuro será coletivo, ou não será. Dizemos que é preciso resgatar o fazer humano dos processos industriais e o conhecimento da tecnologia. A tecnologia deveria existir para servir ao saber humano, não o contrário. Paz, razão, conciliação, moral, ética, são forças espirituais, não técnicas. O capitalismo tecnocrático é incapaz de entregar essas virtudes ao espírito. Precisamos renunciar à arrogância do indivíduo e entender o coletivo. Deveríamos estar pensando na liberdade da espécie, não do indivíduo. Na história da existência humana, a liberdade individual tem servido para pouco. De qual liberdade carece o espírito humano? Não habitamos a crosta terrestre sozinhos, há muito abaixo e além de nós. E se não há mais segurança para nossas vidas neste mundo, precisamos encontrar um mundo em que nossa existência esteja justificada. Não podemos nos render à insensatez de um sistema que só pensa em produzir, não importa o quê. Precisamos parar! E se antes a pergunta era como sermos livres, agora este vírus nos lembra, ininterruptamente, que a liberdade só é real quando compartilhada com os outros seres que habitam a terra. E aí nos cabe que se fizermos a coisa certa, coletivamente, extinguimos o capitalismo e salvamos a espécie. Há um caminho a ser percorrido que passa por abandonarmos esta liberdade exterior já quase sem sentido, totalmente mediada por criações que já não servem mais aos propósitos da vida, e buscarmos outra liberdade, resgatando a possibilidade do pensamento radical. Como? Pensando coletivamente. Viabilizando uma real conversa, sem mediação. Falamos de humanidade em sentido primevo, e em ação na percepção de Paul B. Preciado: Let us stage a big blackout against the satellites observing us, and let us consider the coming revolution together8. Seria cruel pensar que precisaríamos de um vírus para derrubar o capitalismo. O vírus em si não é

agente de mudança, no entanto, pode criar as condições ótimas para que o câmbio se instaure. Entretanto, criamos nosso próprio algoz, que, além da pena, nos enuncia crueldade maior, sempre presente, mas silenciada: o capitalismo mata. O mundo que criamos perde milhares em um breve período de tempo. O que acontece cotidianamente nos entremeios da vida, agora está escancarado. E não é metáfora. Mas, ao menos, podemos pensar com maior clareza: se fizermos a coisa certa, extinguimos o capitalismo e salvamos a espécie. Mais. Resgatamos o resto de humanismo que ainda há de existir em nós. ----O cotidiano encarcerado nas metrópoles busca adiar para outro século a morte coletiva. Mas, nas entranhas do país, lá onde a natureza é cotidianamente humilhada para dar lastro a este modo de vida genocida, a destruição é acelerada. Nós lutamos, aqui, para não morrer, mas a morte é preparada onde não podemos ver. ---------------

Que Fazer? Ao nos trancarmos em casa, tivemos a triste percepção de que a virtualidade não substitui a realidade. Mas é o que temos no momento e precisamos agir. E aí nos deparamos com determinada ineficácia da ação virtual: nós, especialistas da virtualidade, temos enorme dificuldade de planejar e executar ações políticas efetivas pelas telas. E parecemos ter esquecido como se faz nas ruas, também. Então nos vem ao pensamento que mais do que nunca precisamos de hackers. Onde eles estão? Como é possível se mover neste pântano de algoritmos? Como ser resistência a governos e máquinas, utilizando as redes? Como bugar este modo de sobrevivência que não mais nos serve? O que fazer? Precisamos de um esforço coletivo de ação e entendimento. Há uma mensagem que ressoa no silêncio do vírus. Então cabe a nós recuperar nossas capacidades de escuta. Às vezes é preciso voltar à palavras ditas no passado para reconstruir outro futuro. Precisamos escutar uns aos outros, levando-nos a sério, enxergando no outro uma possibilidade de existência, para nos livrarmos deste vestuário egocêntrico que nos ordena cotidianamente. Necessitamos a compreensão de que condenar a espécie em nome da liberdade do indivíduo não é liberdade, e que ninguém tem razão própria. A razão solitária de nada serve. Liberdade e Razão são projetos coletivos. Ética também. Moral também. Futuro também. Parece tautologia, mas de novo é preciso repetir que o mundo é feito de seres, de pessoas, de ideias, não de dinheiro. Se fizermos a coisa certa, extinguimos o capitalismo e salvamos a espécie. O futuro será coletivo, ou não será. Natal e Rio de Janeiro, maio de 2020 Tarantinas

Bruna Drumond é geógrafa pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ).

Lara Ovídio é artista. Investiga o cotidiano como trincheira anticapitalista e as pequenas estórias como possibilidade de reescrever narrativas oficiais. Mestra em Artes Visuais pela UFRJ e Bacharela em Comunicação Social – Audiovisual pela UnB. Especializou-se em Fotografia Contemporânea pelo Centro de la Imagen (MX).

Fernanda Palhano é engenheira eletricista com duplo diploma: um da Universidade federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e outro da École National Supérieure d’Electrotechnique, d’Electronique, d’Informatique, ENSEEIHT, Toulouse/França. Possui mestrado e doutorado em Neurociências pelo Instituto do Cérebro da UFRN.

Mariam Day é doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ. É também pesquisadora vinculada ao Laboratório de Arte, Ritual e Memória (LARMe) e graduanda em Filosofia pela UNIRIO. Mestra em Políticas Públicas pelo Instituto de Economia/UFRJ e bacharela em Direito pela FGV

“Vamos viabilizar um grande blecaute contra os satélites que nos observam, e nos permitir considerar juntos a revolução que se aproxima” (tradução livre). Preciado, Paul B. Learning from the virus. Disponível em: https://www.artforum.com/print/202005/paul-b-preciado-82823 Acesso em maio de 2020. 8

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Descubra a Reserva Águia Branca Um lugar de natureza protegida e cheio de encantos.

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Visite a Reserva Ambiental Águia Branca nas montanhas capixabas e encante-se com as belezas de 2225 hectares preservados de Mata Altântica. Descubra paisagens que os olhos não se cansam de ver, espécies raras em seu habitat natural e um cenário que inspira tranquilidade. Esperamos por você.

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio

PASSO A PASSO: Baixe o App “Made In China 91”, clique em “iniciar” e mire nesta página para jogar.

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CIDADES

ARTE

INTERVENÇÃO URBANA Made in China

O Made in China é uma crew de intervenção urbana aumentada que, através de graffitis e stickers espalhados pelos espaços urbanos da grande Vitória, expande sua interação através da realidade aumentada. O grupo, formado por Carlo Schiavine, Gabriel Hendrix, Elvys Chaves e Eduardo Jardim, se destaca por ser o primeiro coletivo de arte a criar esse tipo de experiência de forma totalmente independente e aberta ao público. Inicialmente a crew começou com o interesse de interagir com a rua por meio do graffiti. Durante os dois primeiros anos de atuação foram espalhadas pinturas e stickers pelas ruas e no final de 2018 surgiu a ideia de criar uma relação entre as novas mídias e o que já havia sido produzido pelo coletivo. A tecnologia criada para construir essa relação só foi possível através da necessidade dos integrantes de se expressarem de uma forma ainda mais singular dentro da crew. Nosso estado se destaca dentro do setor de inovação e novas tecnologias. São inúmeras startups e laboratórios que, nos últimos anos, vêm desenvolvendo novas ideias e mantendo essa imagem do Espírito Santo. Made in China não se encaixa em nenhum dos exemplos citados, porém assim como esses grupos a crew capixaba, sendo pioneira no cenário contemporâneo pós digital, desenvolve soluções tecnológicas para fornecer novas linguagens que ampliem a relação entre homem, máquina, espaço, artista e público. O aplicativo ‘Made in

China 91’ foi, originalmente, criado pelo coletivo tendo como principal objetivo de servir como uma plataforma, de livre acesso, para proporcionar ao público a experiência de expansão das obras.

Elvys Chaves é um artista multimeios, nascido em Cariacica (ES). Graduando em Artes Visuais Licenciatura pela UFES, onde desenvolve pesquisa sobre instâncias da artemídia no contexto contemporâneo. Faz parte da crew Made in China. Produz trabalhos gráficos no ateliê de serigrafia Um Quarto Escuro.

Carlo Schiavine. Natural de Cachoeiro de Itapemirim (ES), músico, produtor e artista multimeios. Atua no coletivo de realidade aumentada urbana Made in China como ilustrador, grafiteiro, animador e desenvolvedor de trabalhos em serigrafia no ateliê Um Quarto Escuro localizado no Centro histórico de Vitória.

Como na rua os graffitis são feitos com signos de rápida visualização, o app usa uma interface já familiar que remete ao famoso Windows 95, onde o usuário navega de maneira simples e intuitiva.

Eduardo Jardim é formado em designer e iniciou sua trajetória no graffiti em 2005. Sendo uma das figuras mais ativas e conhecidas da cena do graffiti capixaba, integra a renomada C301 crew, fundada a mais de 10 anos por Anderson Moska e Giovanne Arme. Em 2018, junto com Nove e Carlo, deram início a crew Made in China.

Gabriel Hendrix, conhecido como Nove, é natural de Cachoeiro de Itapemirim (ES). É programador, game designer, ilustrador e grafiteiro. Estuda Ciência da Computação (UFES), atua no Laboratório de Computação de Alto Desempenho (LCAD) e na crew Made in China.

Rua 7 - Centro de Vitória - acervo Divulgação Made In China. “Downtown Waves” Informações técnicas do jogo: Publisher - Made in China Animação/ Visual Design - Carlo Schiavine Game Design/ Level Design/ Programação Gabriel Hendrix Sound Design/ Sound Effects - Alessandra Felix

Interface do App Made In China 91

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CIDADES

“Nebulosa”, de Noá Bonoba.

CORPO

T R AV O M A N T R A “Entre o solo da comunicabilidade e a experiência da desorientação” Por Noá Araújo Prado Noá Bonoba é artista multilinguagem, curadora, Mestra em Artes no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará e integrante da V Turma da Escola de Audiovisual da Vila das Artes.

Estamos despertando de um longo desmaio. Estamos nos levantando. Reverencio cada travesti que se levanta [y as que caem também] Travestis são os mundos que precisaram morrer para que aqui estivéssemos

21.

Escrevo em legião. Carrego na escrita a História como descontinuidade. Uma reserva de percurso, uma incompletude fabril. Esfacelada e perdida no Tempo. Em transe ininterrupto. Manifestação do inconsciente. Texto desmontável. Imersa no abismo do desconhecido. Porosa. Saberes ocultos. Pensar o solo comum do monstro.

20.

No começo desse ano eu fui visitada. Não consegui ver quem me visitava, mas tive uma imersão na desorientação. Precisei escutar os sinais diários que me foram enviados para que dali eu conseguisse retomar a falsa ilusão de eixo central da minha cognição humana. Não sei que horas são. Tento acompanhar a minutagem do mundo de vocês, mas é na desorientação que me guio desde o

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nascimento da minha carcaça física.

19.

Logos. Logo essa estrutura, tal-comoconhecemos, deixará de existir. É um desejo que tem como ponto de partida a crença em uma radical mutação planetária. Ou para citar aqui Isabelle Stengers, reinventando modos de produção e cooperação que escapem às existências do crescimento e da competição.

18.

Sonhei com uma rádio pirata que ataca transmissões do governo de Donald Trump como o ataque troll da comunicação de terça pela tarde. Como elaborar o contra-ataque entendendo que estamos envolvidas em uma guerra planetária?

17.

É preciso nomear os nossos responsáveis. Superaquecimento do clima. Incêndios florestais. Seca. Furacões. Desmatamento.


Desertificação. Derretimento das calotas polares. Migração de refugiados climáticos. Aumento do nível do mar. Desaparecimento de ilhas e cidades costeiras. Extinção de outras espécies. Construção de mega estruturas arquitetônicas que barram o vento na cidade de Fortaleza. Confortos ontológicos. Agropecuária. Especulação imobiliária. Indústria da moda. Consumo desenfreado.

16.

Respostas em conjunto com a Terra. Preservação geofísica da memória. Fabricação corpórea. Consciência das camadas de delírio ficcionalizadas pelos nossos responsáveis. Descentralização. Redistribuição. Reencontrar potência na localidade. Maneiras contrahegemônicas de habitação do planeta.

15.

Transição de terráquea para terrana. Entender que há vida em cada mínima fração de tempo. Na localidade do presente. No respiro profundo dos milésimos de segundos. Pensar a permanência em resposta à aceleração. Novos formatos organizacionais. Alteração de rota. Inventar um corpo para si. Inventar um nome para si. Reposicionar. Deslocar o que antes era fixo e rígido. Amolecer a neca ereta da civilização. Um corte no pau duro da ontologia limitada do macho civilizado.

14.

O BRASIL É O PAÍS QUE MAIS MATA AMBIENTALISTAS E TRANSSEXUAIS NO MUNDO. O BRASIL É O PAÍS QUE MAIS MATA AMBIENTALISTAS E TRANSSEXUAIS NO MUNDO.

13.

Quando a película de anestesiamento, outros olhares surgem. É impossível olhar pro mundo da mesma maneira. Algo nos é revelado. Uma rede que se alastre como um vírus. Sair do cansaço. Buscar sair do cansaço. Redes de ventilação das ideias. Fazer desmoronar as certezas. Entender a dimensão de caos na alteridade. Aceitar o fim do mundo tal como conhecemos. Somos capazes de viver de uma maneira diferente. Conseguir acordar. Conseguir reagir.

12.

Onde vocês estão? Como vocês estão? Está tranquilo onde vocês estão?

11.

Olhar não-hegemônico. Zonas intangíveis do sensível. Deslocamento perceptivo. Pele sensível da Terra. Desdramatizar o humano. Terra devastada. A Terra como dimensão política fundamental. Poderes mentais extracerebrais. Expressividade improvisacional do instinto. A autonomia auto expressiva da atividade vital. Redobramento metacomunicacional. Cidade para as pessoas. Viver em escuta. Exercitar o silêncio e a escuta. Fechar os olhos. Descansar os olhos.

10.

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Exercício de escoamento dos excessos. Construção pelos sentidos. Cosmopolítica. Despertar dos sonambulismos disciplinaresinstitucionais. Texto trickster. O acordar do sonâmbulo. A ciência dançante. Dançar o risco. Arriscar-se na experimentação. Suspense experimental. Para Isabelle Stengers, uma ciência triste é aquela em que não se dança. Escrita em transe.

9.

Repensar a temporalidade vigente. “Brincar de desfazer certas ordens cristalizadas no espelho do Tempo”. Possibilidades libertas da obrigação do ter que fazer sentido. Ou ter que significar alguma coisa. Tempo do sonho.Estranhamentos cognitivos. Da ordem do sensível. Do que não se explica. Rita Natálio escreve a Partir de Ailton Krenak: Como um rio em coma que mergulha mais fundo na terra para escapar à poluição na superfície, a possibilidade de continuar a pensar implica encontrar formas de continuar a correr, como um rio, e desenvolver afinidades/alianças com outros agentes, como a terra.

8.

Tive uma noite em que tudo me foi revelado. Como posso falar de novo? Não nos foi dado papel principal no drama cósmico. Estavam todos lá, cada um deles. Sabiam meu nome. Enquanto eu escapava feito um besouro ao longo das costas de suas cadeiras. Um instante de claridade antes da noite eterna. Isso está se tornando minha normalidade. O poço da minha mente imaterial. Eu não devo falar mais. Alcancei o fim desse conto sombrio e repugnante. Estou morta há muito tempo. Afogando num mar de lógica. Esse monstruoso estado de paralisia. Eu vou morrer. Uma morte sub-intencional. Talvez isso me salve. Talvez isso me mate. Dormir: um medo cíclico. Não é a lua, é a terra. Há um trabalho cósmico a ser feito. Com minha atenção errada e minha tolice grave, eu poderia atrapalhar o que está se fazendo através de mim. Eu própria. Eu propriamente dita.

7.

A experimentação é o rompimento da pele. É o retirar da pele. Ou a pele descamada para o surgimento de outra. Talvez ainda a pele com múltiplas texturas. Com escamas. Com fluidos. Terrestre. Marítima. Aérea. Com possibilidades de voo. Com possibilidade de saltos. Desenvolver as paranormalidades.

6.

ELES JÁ TINHAM ESSE PROJETO FAZ TEMPO E, ME ARRISCO A DIZER, ESSE PROJETO DE HUMANIDADE FOI CONSTRUÍDO GRADUALMENTE, DE MANEIRA QUASE IMPERCEPTÍVEL. OBVIAMENTE, OS MAIS ATENTOS ALERTARAM. EM CADA ÉPOCA HOUVE APELOS PARA QUE ACORDÁSSEMOS E PARA QUE ALTERÁSSEMOS OS NOSSOS MODOS DE VIDA. INFELIZMENTE OS AVISOS FORAM INSUFICIENTES.

5.

ACORDEI ASSUSTADA NAQUELA NOITE. EU REALMENTE NÃO ESTOU PREPARADA PARA CONTAR TUDO O QUE VIVI NAQUELE SONHO. SONHEI COM DOIS CORPOS QUE BUSCAVAM FORMAS DE SOBREVIVER A UMA CATÁSTROFE. NO MOMENTO

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio QUE UMA AMEAÇA SURGIU E DIZIMOU PARCELAS DA POPULAÇÃO TERRESTRE. FOI TERRÍVEL ACORDAR. LEVEI UM TEMPO PARA ME RECOMPOR. PASSEI ALGUNS DIAS ENVOLTA DE TUDO O QUE VIVI ALI NAQUELE SONHO. TENTEI ME CONVENCER DE QUE HAVIA SIDO APENAS UM SONHO, MAS COMECEI A PERCEBER QUE O QUE VIVI ESTAVA EM TUDO, ERA REAL. ELES JÁ TINHAM CHEGADO, JÁ ESTAVAM POR AÍ. O QUE VIVI NAQUELE SONHO FOI UMA ESPÉCIE DE REVELAÇÃO. HOUVE ALI UMA ESPÉCIE DE REPOSICIONAMENTO EXISTENCIAL. ELES NÃO ESTÃO INTERESSADOS NO DESLOCAMENTO DOS MODOS DE VER. SÓ INTERESSA A ELES A DESTRUIÇÃO DE TUDO O QUE PODE NOS SALVAR.

4.

HIROSHIMA. NAGASAKI. ACIDENTE NUCLEAR EM CHERNOBYL. LIXOS TÓXICOS DO LOVE CANAL. VAZAMENTO DE AGROTÓXICOS EM BHOPAL. CLORETO DE CÉSIO-137 EM GOI NIA. ACIDENTE NUCLEAR DE FUKUSHIMA. DERRAMAMENTO DE ÓLEO NO GOLFO DO MÉXICO. QUEIMA DE ÓLEO NO GOLFO PÉRSICO.

3.

Possíveis armas terranas: Performatividade da tática defensiva “Black Block” dos movimentos de protesto altermundialistas. Sistemas de parentesco e mapas totêmicos dos aborígenes australianos. Organizações horizontais. Novas formas de produção de subjetividades. Circulação, mobilização e comunicação criadas pelas internet. Eficientes sistemas de transferência financeira extra-bancários do tipo Hawala. Arboricultura diferencial dos indígenas amazônicos. Navegação estelar polinésia. “Agricultores experimentadores” do semiárido brasileiro. Inovações hiper-contemporâneas como o movimento das ecovilas. Psicopolítica do tecnoxamanismo. Economias descentralizadas das moedas comunitárias, do bitcoin e do crowdfunding. Permacultura. Intervenções artísticas que estejam dispostas a romper a barreira arte/ vida e agir diretamente na estrutura modificando-a e minando-a. Ocupações de prédios desativados e abandonados. Hackers engajados. Movimentos sociais. Firma-se como uma maneira de sobreviver ao apocalipse. Ao anestesiamento. A essa paralisia.

2.

Os olhares. Tento esconder a minha pele descamada. Tenho medo que desconfiem. Medo que desconfiem que carrego um ovo dentro de mim. E enquanto o ovo expande sinto dores. O ovo pesa e sinto dores cada vez maiores enquanto ele cresce e rasga as paredes do meu intestino. Ele queima e sinto que aprendo novas capacidades que antes não sabia ter. É como se um mundo totalmente novo me fosse revelado. Percebo que não havia existido até então. Não completamente. Uma aura de morte sempre presente pairava no teto, acima da minha cabeça, do meu corpo. A aura de morte continua aqui comigo, mas resolvi enfrentá-la.

1.

Desvio de uma história única. Uma paisagem anterior ao pré-existente de si. Como montar estratégias poéticas de resistência? É necessário trabalhar o sensível como uma máquina de guerra. Pensando a partir de uma anatomia do político e da co-presença de temporalidades heterogêneas. Uma anacronia. Como criar uma zona de indiscernibilidade onde o trânsito entre terráqueo

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e terrano seria possível? Como seria possível inventar espaços de subversão ou trânsito, fendas ou desvios, infiltrações e cavidades submersas?

Queremos uma nova organização que proponha um impedimento, uma quebra, uma fissura, uma rachadura que mobilize outras possibilidades de desfecho

Uma amiga me disse que se perdeu dirigindo o carro no primeiro dia da quarentena. Aprendi com ela que não seria possível abandonar de uma vez os caminhos já conhecidos. Para não adentrar de vez a desorientação. Ela me disse que eles estavam trabalhando, os agentes superiores. E o trabalho deles estava nos sendo revelado. Houve uma noite em que tudo me foi revelado. Estavam todos lá, cada um deles, sabiam meu nome. Noite eterna. Que aprendamos a lidar com o escuro. Com a sombra. Como um alerta permanente dissolvido em célula psicodélica e alucinógena. Imersa na descontinuidade, enfrentando a imposição de uma linearidade histórica. Clamamos por uma dissolução das dominâncias. Por um deslocamento dos eixos habituais da História. Fabricando uma alavanca de deslocamento desse conglomerado heterogêneo, nesse submundo degradado por uma inarticulada coleta, por uma tendência autodestruidora que acessa o demônio íntimo de cada um.


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“outro país”, de Noá Bonoba.

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“O corpo preto feminino, invisibilizado” por Brenda Lima


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ROMPIMENTO Os retratos repassam mensagem sobre a violência doméstica construída na estrutura social brasileira. Esse silêncio deve ser rompido. Por Brenda Lima A contaminação em massa do novo Coronavírus, trouxe muitos obstáculos e mudanças para a sociedade. Mudanças que vão do estado de saúde física e emocional, de pessoas contaminadas à pessoas não contaminadas. Portanto, através dessa sequência de fotografias, busco evidenciar o impacto dessa mudança social, de mulheres em situação de violência doméstica. Os canais de atendimento em defesa da mulher, antes do processo de isolamento, funcionavam de forma presencial, como visitas e acolhimento das usuárias do serviço. Apesar da existência de políticas públicas de proteção, o corpo feminino ainda se encontra em sua maioria vulnerável ao processo violento de uma sociedade construída pelo processo machistaracista e patriarcal, como no Estado do Espírito Santo. Durante o período de isolamento, canais de proteção à mulher em situação de violência estão efetuando os seus atendimentos via rede social e disque denúncia. Tornando assim, ainda mais distante e com menos qualidade o processo de acolhimento e encaminhamento dessas mulheres. Após o processo de isolamento, esses canais serão retomados de forma mais precavida, com seus atendimentos presenciais e disque denúncias. Porém, essa violência apenas será disseminada ou amenizada se compartilharmos e ensinarmos novas gerações a desconstruir esse tripé que nos ronda, machista- racista- patriarcal.

“ Silêncio, o medo da denúncia” por Brenda Lima

A sequência fotográfica, expressa o processo violento com o corpo feminino. Mostrando como o silenciamento desse corpo se torna mais vulnerável para algumas mulheres que estão em quarentena com seus agressores. Apenas após a desconstrução desse tripé, será possível mudança de libertação deste corpo violentados.

Brenda Lima é mulher preta, ativista social, fotógrafa, artista visual e fundadora do projeto fotográfico Luto por Nós. Reside em Boa vista, Vila Velha/ES. Estudante de Serviço Social pela UFES. Realiza trabalhos sobre o rompimento de estereótipos estéticos da mulher.

“ O corpo sufocado no silenciamento” por Brenda Lima

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Revista MoV.Cidade nº 01 - O Vazio

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“A ruptura, o corpo em processo de liberdade” por Brenda Lima


Todxs as criadores de imagens e textos publicados nesta revista foram remuneradxs e são fruto de uma seleção aberta realizada pelo @mov.cidade*. Os conteúdos das imagens e textos são de inteira responsabilidades de seus respectivos autores e criadores. *com exceção da matéria de capa, que foi realizada através de convite direto, mas também remunerados.

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“Sem títulos, apenas sentidos”, de Samuel Brandão - Ponte da passagem Vitória (ES) ERRATA: Na edição impressa da Revista, na página 23, onde se lê “no mestrado realizou o primeiro trabalho acadêmico sobre o poeta Solano Trindade”, esclarecemos que deve ser lido: “no mestrado realizou o primeiro trabalho acadêmico sobre o poeta Solano Trindade no Espírito Santo (2012)”

Realização: Caju Produções • Coordenação Revista: Léo Alves e Luanna Esteves Produção: Melina Galante • Designer: Elielton Oliveira Curadoria “O VAZIO” David Miguel • Curadoria de conteúdo Léo Alves e Luisa Costa

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