EMRC_10_UL2_Valores e ética cristã

Page 1


r - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Queridos Alunas e Alunos Estimadas Famílias Caros Docentes to co m grande alegria que vos entregam os os manuais de Educa ção Moral e Religi osa Cató lica, que foram preparados para lecionar o novo Programa da disciplina, na sua edição de 2014, O que aqui encontrareis procur a aj udar, cada um dos alunos e das alunas que frequ entam a disci plina , a «posicion ar-se, pessoalmente, frente ao fenómen o religioso e agir com responsabilidade e coerência», ta l com o a Conferência Episcopal Portugu esa defin iu como grande finalidade da disci plina'. Para tal, realizou-s e um extenso trab alho que pretend e, de form a pedagogicament e adequada e cientificament e signifi cat iva, contribui r co m seriedade para a educação inte gral das crianças e dos joven s do nosso Pais.

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

[ I

I I

Esta t arefa, realizada sob a superior orientação da Conferência Episcopal Port uguesa, a responsabil idade da Comissão Episcopal da Educação Cristã e Dout rina da Fé e a dedicação permanente do Secretariado Nacional da Educação Cristã, envolveu uma exte nsa e motivada equipa de t rabalho. Queremos, pois, agradec er aos auto res dos textos e aos art istas que elaboraram a montagem dos mesmos , pelo seu entusiasmo permanente e pela qualidade do resultado f inal. Também referimos, co m apreço e gratidão, os docent es que experimentaram e comenta ram os manuais, ainda durant e a sua execução, e o cont ributo insubst ituível dos Secreta riados Diocesanos responsáveis pela disciplina na Igreja local. E a to dos os docentes de Educação Moral e Religiosa Católica, não só entr egamos estes indispensáv eis instrumentos pedagógicos com o aproveita mos esta feliz ocasião para sublinhar a relevãncia do seu fundamental papel, nas escolas e na formação das suas alunas e dos seus alunos, e testemunhamos o nosso reconhecimento pelo seu extens o comprom isso pastora l na sociedade portuguesa. Do mesmo modo, estamos agradec idos às Famílias, porque desejam o melhor para os seus fil hos e f ilhas e, nesse cont exto , escolhem a disciplina de Educação Moral e Religiosa Cató lica como um importante contributo para a for mação e o desenvolvimento pleno e feliz dos seus jove ns. Os jovens conformam o nosso f uturo comum e o empenho sério na sua educação é sempre uma garantia de uma socied ade mais bondosa, mais bela e mais j usta . Finalmente, queridas crianças e queridos jovens , a Igreja quer ir ao vosso enco ntro , estar convosco , aj udar-vos a viver bem e, nesse senti do, colaborar com o esforço de co nst ruç ão de um mundo melhor a que sois chamados, enraizados e firmes (cf. Coi 2, 7) na proposta de vida que Jesu s Cristo tem para cada um de vós. É esse o horizonte de vida, de missão e de f ut uro, a const ruir co nvosco, que nos propomos realizar com a discip lina de Educação Moral e Religiosa Católica. Em nome da Conferência Episcopa l Port uguesa e no nosso próprio, saudamos toda s as alunas e todo s os alunos de Educaçã o Moral e Religiosa Católica de Portugal com alegria e esperança,

I Comissão Epi scopa l da Educação Cristã e Dout rina da Fé

I

Lisboa, 19 de março de 20 15.

I

Solenidade de S. José. Esposo da Virgem Maria e Padroeiro da Igreja Universal

I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I .. Conferência Episcopal Portuguesa, (2006). Educação Moral e Religiosa Católica - Um valioso contributo para a rcrmccõc do personalidade. n. 6.

1

Valores e Étic a Cristã


--- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ----- - - , t

Educação t.Iorel e Religiosa Ca tó lica

2



-- - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - -- , I

(

I\

Educação Mora l e Religiosa Católica

4


,

Indica --- - - -- - ou- -Inversão --de--- -- - -- - -6 ,-7 - - -1.1.lmoralidadelamoralidade hierarquia de valores?

1. Que valores valem, hoje?

I I

7 9

1.1.1. De Prometeu a Narciso: o f im da ét ica? 1.2. Abuso do t ermo 'ét ica'

I

12

2.2. A verdadeira autonomia

I

15

3.2. O bem, a felicidade, segundo S. Tomás de Aquino

I

19

4.2. As felicidades e a felicidade

I

5.2. As fontes da moralidade 5.1.1. Dados da discussão sobre a relação ent re ética e moral 5.3. Out ra disti nção entre ét ica e moral 5.4. ' ~t i ca' e 'moral': dois termos diferentes, o mesmo conceito

7.2. A crítica à moral cristã - será a moral cristã a moral dos ressent idos?

10

,- - --- - - - -- - -- - - -- -- - - -- -- , 12 2.1. Autonomia e heteronomia moral

13

,- - -3.1. --- - - - - - - -- --- - -- -- - - -, 14 O bem e a felicidade, segundo Aristóteles

17

,- - -4.1. As --- - - - - - - -- - - - - - - - - - - - , 18 fases do desenvolvimento moral- segundo Piaget e Kohlberg

2. Porque não fazer o mal? Porquê fazer o bem? 3. O que é O bem? 4. A importância da formação moral

21

, -22- ---- - --- - - - - - -- - -- - -- --- 5.1 . O Homem é constitut ivamente moral

5. O que deve ente nder-se por 'Etica'? St:rá o mesmo que 'Moral'? Etica e Mora l tem o mesmo significado?

I

23 24 26 26

7. As religiões e a éti ca

1

36

- - - - - - -- - - - - - - - - - - - - -- - 28 , -30- -6.1. A análise das t ipologias de ét icas 6. As t ipo logias de étic as 30 6.2. A crít ica às étic as teleológic as ,- - - - - -- - - - -- - -- -- - -- - -- 7.1. A regra de ouro 33 , 34 39

8. O que faz valer os valores?

42

9. O que é o valor moral?

45

10. As tipologias dos valores

,- - -10.1.-Tipologias - - -de- valores, - - -segundo - - Jo - -hannes - -Hessen - - -- - -- --I 46 I

48 49 50

10.2. Uma síntese 10.3. Dois problemas éticos à luz da tipolo gia dos valores 10.4. A ética como desafio de tod a a humanid ade

56

unidade a respeitar 11 .2. A quest ão do relat ivismo práti co

-- - - -- - - ---- -- --- - - - -- - 52 , -54- - 11 .1. O fulcro : os valor es espirit uais (lógicos, estéticos e éticos) formam uma

11 . Como emerzern os valores no sujeito1 Como se situa diante deles o sujeito humano?

I

,, -57- ----- --- - - - -- -- - -- - -- --- 12.1. Em que crê quem crê? 59 63 65

57

12. O que f undamen ta

a ét ica cristã?

66 67 69 71

12.2. O dec élogo - Dez Manda mentos: mais do que lei, vida' 12.3. As bem-aventura nças 12.3.1. As bem-aventur ança s, em Mateus e Lucas - esta belecime nto do paralelismo entre as duas leituras 12.3.2. As bem-aventura nças, segundo Mateus 12.3.3. As bem-avent uranças, segundo Lucas 12.3.4. O desaf io de nos unirmo s para viver as bem -aventura nças 12.3.5. Que bem -aventuranças, hoje?

- - -13.1.-A-matriz --cristã - - - - - - - - - -- -- - - - - -- 73 ,, 74 I 76 13.2. As virtudes cardea is e te ologais perante o out ro

13. A respo nsabilidade

77 78

e perante o mundo

81

14. Do cuidado do mundo ao cuidado pelo outro

, -82- - ---- - -- - - - - - -- - -- - -- -- - 14.1. A parábola do bom samaritano e o desafio I

Da jus tiça ao amo r

- do amor à justiça

I

92

15. De que ser humano fala a étic a cristã?

99

Anexo

109

Bibliografi a

13.3. Da criação à respon sabi lidade 13.4. A nat ureza e a humanidade em algumas das grandes religiões

83 86 86 87 87 89 90 91

de nos tornarmos próximos dos outros 14.2. O amor ao próxi mo nasce de um amor primeiro: o de Deus 14.3. O amor e a justiça 14.4. A Inj ust iça 14.5. A luta pela just iça e evangelização - o núcleo da revelação cristã 14.5.1. Deus e a j ustiça 14.5.2. O desafi o étic o da justiça 14.5.3. O desaf io de dar mais do que dinheiro 14.6. A singularidade da ética cr istã

93 94 96 96

15.1. A pessoa que se reduz a co nsumido r consome - se a si mesmo 15.2. O homem como ser divid ido e marcado pelo limite e o mal 15.3. O ser humano como alguém feito para algo maior 15.4. O sentido da vida é anter ior ao Homem, que o desc obre

~ - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - -- -


-- - - - ----- - - - - - --- - - - - - - - - - - - - - - - - , I

1. Que valores valem, hoje?

-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - l 'Hoje, já não há valo res', diz-se, com frequência . Será mesmo assim? A af irmação não diz t udo o que se supõe, e exige, por isso, que se clarifiqu e o que ali se subentende. Na af irmação, deixam-se implícitos dois pressupostos: • que os va lores de que se est á a falar são valores 'ético-mo rais' e: • que seja possível o ser humano vive r sem ter em conta valores éti co-mo rais e sem os supor. Trat a-se de pressupo stos que é relevan te prob lemat izar e estudar, pois a frequência da ut ilização dos lugares-comu ns torna- nos desat entos ao que estam os a dizer. Tal pode levar-n os, muitas vezes , a t ransmit ir ideias que, provavel men te , não pretendíamos. Regressando à af irma ção inicial, será mesmo verdade que hoje já não se seguem valores ét ico-morais, que a ética deixou de fazer parte dos cr itérios de atuação? Ou será que deverá opt ar-se por out ra abordagem como modo de ultrapassar a difi culdad e que se tem em interpretar as escolhas e decisões que hoje se fazem? A resposta parece supo r-se na pergunta, mas f ica por saber por onde deve encam inhar-se tal resposta.

Educacao t.tora! e Religiosa Cató lica

6


,-- - - ---- - - - - --- - - ---- - -- - - - - - - - - - I

1.1. Imoralidade/amoralidade ou Inversão de hierarquia de valores? A afirm ação d e que 'hoje, já não há valores ' tem im plícit a a convicção de q ue é possível viver sem qua lque r referên cia moral. Tal conv icção merece ser discutida, pois, é ce rt o que, em abstrato, podem co nside rar-se t rês ce nários , no qu e respeita à relação com a moralidad e: a do s que vive m moralmente, imoralment e (rejeit am conscientemente a moral) ou amora lm ente (vivem em ausência tota l de referências mo rais). Contudo, se é po ssível afirmá-lo, em ter mos abst ratos, na prát ica, deveria co loc ar-se o problema de outro modo. Quando se conclui que alguém vive imoralme nte ou, mesmo, am oralmente, o que af irm amos é que, tendo em con ta a hierar quia de valores que te mo s por referência , os valo res que esse algu ém t em por fun damenta is são, afin al, valores menores. Mais do q ue d e imoralidade ou amoralidade, me lho r seria, ent ão, falar de inversão da hiera rqu ia de valo res. "Na medida em que se pretende absoluto , o amoralismo t ransforma -s e, não raro, num autêntico mo ralism o em q ue simplesm ente se inverte u a tábua de valor es. É que, perante o problema mora l, ess enc ialmente humano, a neutralidade é imposs ível, no domínio da aç ão,' (Roq ue Cabral , 200 3, Temos de Ético, Braga, Publicações da Faculd ade de Filosof ia da UCP, p. 13) E, neste sentido, pode, de facto, ver ific ar-s e que, hoje, em mui t as escolhas que se fazem, deixa- se tr anspa recer uma hierarq uia de valo res em q ue os que são considerados f undame nt ais são , afinal, secundár ios e de importância menor. Se, ainda, tivermos em conta que as hierarq uias de valores que seguimos denunciam uma dete rm inada con ceção do humano, então, po deremos concluir, da ap reciação das escolhas feitas, qual a visão do ser humano qu e ali se denuncia. Luís González -Carvaja l, no seu livro Ideios e crenços do homem otuo/, sintetiza o que aqui está em causa: outros valores, que não os ét icos, mas sim os estét icos , pa recem est ar a oc upar o lugar q ue era devido àq ueles. Para nos conduzir a esta leitu ra, o autor socorre-se dos m itos cl ássicos, como fo rma de permiti r consta tar qu e o qu e está em cau sa não é que os huma nos não se movam por valores, por algo qu e valha, mas que deixaram que o que vale sej a mais valioso do que os valores de outrora.

1.1.1. De Prometeu a Narciso: o fim da ética?

"A cada geração agrada reconhecer-se e encontrar a sua identi dade numa grande f igura mito lógica e lendária que é reinterpretada em função dos prob lemas do momento. Os homens modernos gostavam de se identificar com Prometeu, que, desafiando a ira de Zeus, trouxe para a terra o fogo do céu, desencadeando o progresso da human idade . Em 1800, Fichte esco lheu como símbolo da sua ideologia a figura de Prometeu. Já antes , em 1773, Goethe lhe tinha dedicado uma ode e um fragmento dramático. Quanto a Marx, recordemos a sua afirmação de que «no calendário f ilosófico, Prometeu ocupa o lugar mais distinto ent re os santos e os mártires». Em 1942, Camus sugeriu que o símbolo idóneo não era tanto Prometeu como Sísifo, que foi condenado pelos deuses a fazer rodar sem cessar uma rocha até ao cume de uma montanha, de onde ela voltava a cair por causa do seu grande peso. Ainda que, provavelmente, o mito de Sísifo não tenha chegado a alcançar uma vigência social análoga à de Prometeu, é inegável que expressa muito bem os avatares que viveu a geração do genial literat o franc ês. Tinham dedicado esforços ímprobos a const ruir a Europa, e a Primeira Guerra

7

Valores e I:tica Crista


- - - - - - ---- - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - , I

I

Mundial converteu a sua obra num montão de escombros. Iniciaram animados a reconstrução, mas a Segunda Guerra Mundial arrasoutudo outra vez. Com tenaz esperançavoltaram a começar quando se assinou a paz. E, assim, até quando?, pergunta-se Camus. Pois bem, apesar de tudo, ele mesmo nega-se a claudicar e defende defrontar o absurdo: «Há que imaginar Sísifo feliz», diz. No fundo, Camus continuava a ser um homem moderno que acreditava no futuro . Agora, chegaram os pós-modernos e disseram: «é prec iso ser-se doido para pensar que Prometeu não é Prometeu , mas sim Sísifo, e empenhar-se uma e outra vez em levar a rocha até ao alto da montanha . Deixemo-Ia em baixo e desfrutemos da vidal» Os pós-modernos, esquecendo-se da sociedade, concentram todas as suas energias na realização pessoal. Hoje, é possível viver sem ideais. O que importa é conseguir os bilhetes adequados, conservar-se jovem, cuidar da saúde ... Há tempos, uma agência de viagens encheu de cartazes os muros e autocarros de Paris nos quais se lia: «Num mundo totalmente cínico, uma só causa merece que você se mobilize por ela: as suas férias». Com toda a razão fizeram notar muitos observadores que o símbo lo da pós-modernidade já não é Prometeu nem Sísifo, mas Narciso, aquele que, enamorado consigo mesmo, não tem olhos para o mundo exterior. A pós -modern idade carrega também a morte da ética. Logicamente, eliminada a história, j á não há 'dúvidas' com um passado arquetípico nem 'obrigações' para com um futuro utópico. Quando fica tão -só o presente, sem raízes nem projetos, cada um pode fazer o que quiser. Agora, a estética substitui a ética. Como diz uma canção de Joaquín Sabina, «os entraves consideram o desejo como fatal». Que vou fazer eu, se me agrada o whisky sem gasosa, o sexo sem casamento, as penas com pão...7' Os estudos sociológicos most ram que essas atitudes estão já muito difundidas,sobretudo ent reaj uvent ude.41 ,2porcento dos j ovens de Madrid dos 14 aos 24 anos manifestaram-se de acordo com a frase «vale o que me agrada. Não vale o que não me agrada»; e 27,2 por cento com esta outra; «o princípio ét ico mais importante é 'faz o que qu iseres'», (...] Javier Sábada escreveu: «Entendo por moral a ideia de que há que ser feliz e que não está dito como . (...) 'Vive feliz ' é o único imperat ivo categórico.»" Luis Gonzéle z-Carvajal, 1993, Ideias e crençasdo homem atuaf, Santander, Sal Terree, pp. 161-164 .

o que representam, neste texto, Prom et eu e Sisifo? E o que rep resenta Narciso? Que conceito de 'moral' defende Javier Sábada? Será este o conceit o de 'Moral' que pro p õe o Cristianismo? Impo rta reter, neste pas so do nosso estu do, que o termo 'valor' pode assumi r diversos senti dos, que iremos precisar, mais ad iante, devendo ter-se cla ro que, nem sem pre , ao dizer- se 'valor' nos estamos a referir aos valores ético- mo rais. Acrescente -se a esta discussão um outro dado. Também o te rmo 'ética' tem sido utilizado com grande fr equência. Não há em pre sa ou detentor de poder que não invoque razoe s ét icas para j usti f icar as suas atua ç ões e procedi ment os. Cont udo, mais uma vez o termo é utilizado de modo impreciso, como co nst atou, com pe rtinê nc ia, o Papa Bento XVI, na sua enc íclica Centos in Verito te.

Educação t.tora ! e Religiosa Cató lica

8


r-- - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - -- I

1.2. Abuso do termo 'ética' "Hoje fala-se muito de ética no campo económ ico, fi nanceiro, empresarial. Nascem centros de estudo e percursos formativos de negócios ét icos; dif unde-se no mundo desenvolvido o sistema das certif icações éticas, na esteira do movim ento de ideias nascido à volta da respo nsabilidade social da empresa. Os bancos propõem contas e fundos de invest imento chamados 'ét icos'. Desenvolvem-se as 'finanças éticas', sobretudo através do microcrédito e, mais em geral, de microfinanciamentos. Tais processos suscitam apreço e merecem amplo apoio. Os seus efeitos positivos fazem-se sentir também nas áreas menos desenvolvidas da terra. Todavia, é bom formar também um válido crité rio de discernimento, porque se nota um certo abuso do adjetivo 'ético', o qual, se usado vagamente, presta-se a designar conteúdos muito diversos, chegando-se a fazer passa r à sua sombra decisões e opções contrárias à j ust iça e ao verdadeiro bem do homem. Com efeito , muito depende do sistema mora l em que se baseia. Sobre este argumento, a dout rina social da Igrej a tem um contributo próprio e específ ico para dar, que se funda na criação do homem «à imagem de Deus» (Gn 1,27), um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor tra nscendente das normas morais naturais. Uma ét ica económica que presc inda destes dois pilares arrisca-se inevitavelmente a perder o seu cunho específico e a prestar-se a instrument alizações; mais co ncretamente, arrisca-se a aparece r em função dos sistema s eco nómico-financeiros existe nte s, em vez de servir de correção às disfun ções dos mesmos. Além do mais, acabaria até por justificar o f inanc iamento de projetas que não são ét icos. Por outro lado, não se deve recorrer ao termo 'ético' de modo ideo logicamente discriminatório, dando a perceber que não seriam éticas as iniciativas não dotadas formalmente de tal quaiificação . Um dado é essencial: a necessidade de trabalhar não só para que nasçam setores ou segmentos 'éticos' da economia ou das finanças, mas também para que toda a economia e as f inanças seja m éticas: e não por uma rotul ação exterior, mas pelo respeito de exigências int rínsecas à sua próp ria natureza. A ta l respeito, se pronuncia com clareza a doutrina social da Igrej a, que recorda como a econo mia, em todas as suas extensões, seja um seta r da ati vidade humana." Bento XVI, 200 9, Coritas in Veritote, 45.

Neste excerto, o Papa Bento XVI ult rapassa a mera denúncia do abuso na utilização do termo 'ética', antecipando, já, alguns dados sobre o que deva ser uma ética de matr iz humanista e cristã: aquela que se centra na pessoa humana.A explicitação dos dados que a deverão definir será tarefa para etapas posteriores desta unidade, cabendo, agora, a tomada de consciência de que, quer o ter mo 'valor', quer o adjetivo 'ético' necessitam de maior precisão para que os possamos utilizar devidamente. Antes, porém, é necessária a tomada de consciência de que a pergunta sobre o que seja a moral e a ét ica pressupõ e um dilema inicial com que tod o o ser huma no se confro nta: o que devemos fazer, em cada mom ento? Seguir o interesse imediato, preten der os benef ícios mais evidentes, fazer aquilo que nos dá maior prazer? Est as são, em últ ima instância, as interrogações que dão origem ã discussão sobre o que é a mora l e a ética e sobre como, sabendo -se o que é bem ou mal, ser consequente com tal discern imento. Tais interrogações estão sintetiza das, de modo claro, no livro de Hans Küng que tem servido, ao longo das últimas décadas, para muita da discussão sobre o lugar da ét ica na sociedad e atua l. Síntese • O agir e a teor ia podem definir- se como morais, amorais ou imorais. Contudo, to da a a ção part icipa de alguma moralidade, pelo que, nas situações definidas como amora is ou imorais, melhor será falar-se de inversão da hierarqu ia dos valores. • O homem da modern idade (representado por Promet eu e Sísifo) defi nia-se pela revolta: revolta em relação a Deus, revolt a em relação à moral e à ét ica; o homem pós -moderno (simbolizado em Narciso) defi ne-se como aqu ele que dei xou de lutar e se bast a em inebriar- se co m o hoje, com o imediat o. • A ét ica é matéria omn ipresente, nas socie dades contemporãneas , contudo, o seu uso nem semp re coincide com o conceito correto .

9

Val ores e !:tica Crista


-- -- - - - - - - ---- - --- - - - - - - - - - --- - -- - , I

2. Porque não fazer o mal? Porquê fazer o bem?

As pergunt as que servem de abert ura a este capít ulo colocam-nos diante do grande desaf io que f undamenta a discuss ão sobre a origem e o papel da ética e da moral. Na verdade, elas repercutem, em abstrato, as dúvidas com que se depa ra quem tem de toma r a decisão ent re um benefíc io imediato em preju ízo de um bem maior, ou quem se dec ide pelo cont rário, seja qua ndo o assunto é obter uma classif icação de forma desonesta ou ult rapassar os out ros de modo desleal ou, ent ão, cede r ao convite para aderir a consumos ou hábitos que se sabe serem prej udiciais, mas em que o prazer efémero parece ter voz mais sonante . Porquê decidir-se pelo bem e não pelo mal? Hans Küng, um autor que t em ded icado muito do seu trabalho à discus sào sobre o papel da ética, nas sociedades plurais, concretiza, co m situações que a todos serão familiares, esta s inquiet ações de semp re. As inte rrogações aqui enunciadas podem ser pretexto para a identi ficação de outras, verificadas no contex to escol ar ou social envolvente.

Educação r tora r e Religiosa Cató lica

10


r---- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - ---I

"Porque deve o homem fazer o bem e não o mal? Porque não está o homem 'para além do bem e do mal' (F. Nietzsche), unicamente entregue à sua 'vontade de poder' (êxito, riqueza, prazer)? Costumes, leis e trad ições, muitas coisas que durante séculos pareciam naturais, por contar com o suporte da autoridade religiosa, nos nossos dias já não se dão por supostas em nenhuma parte do mundo . O indivíduo conc reto coloca-se perguntas como estas: - Porque não mentir, enganar, roubar ou matar, quando isso se revela vantajoso e, num caso determinado, não há que temer ser descoberto ou castigado? - Porque deveria um político resistir à corrupção, se tem garantida a discrição dos seus corruptores? - Porque te ria um comerciante (ou um banco) que pôr limite às suas ganâncias, quando se proclama publ icamente, sem a mínima vergonha , a avareza ou o slogan 'enriquece-t e'? - Porque deveria um invest igador em embriões (ou um instit uto científico) renunciar a uma técnica come rcial de reprodução que garanta embriões perfeitos, lançando as sobras para o lixo? - Porque não liquidar de antemão a descendência indesejada (por exemplos, as irmãs), quando o reconhecimento pré-natal perm ite dete rminar o sexo? Mas estas perguntas também se colocam nos grandes coletivos: Porque não há de poder um povo, uma raça, uma religião, se dispõe dos meios necessários, odiar, molestar, ou, em determinados casos , exilar ou liquidar uma minoria de costumes distintos, de distinta fé ou simplesmente 'estrangeira'? Deixemos agora o negativo. Porquê fazer o bem? Também aqui as perguntas se dirigem em primeiro lugar ao indivíduo concreto: - Porque tem o homem que ser amável, tolerante, alt ruísta, em vez de desconsiderado e brutal, ou porque hão de renunciar os j ovens à violência e opta r pela não-violência? - Porque deveria um empresário (ou um banco), se ninguém o controla, compo rtar-se de modo plenamente cor reto , ou um fun cionário sindical, inclusive em det rimento da sua carre ira, at uar não s6 em favor da sua organização, mas sim em benefício do bem-estar geral? - Porque deveriam o cientista, o investigador de genéti ca e os institutos de experimentação e terapia, cons ider ar semp re o homem como sujeito de direito e como fim, e não como objeto de com ercialização e indust rialização (o embrião como artigo mercantil e comercial)? Vejamos, agora as perguntas que atetam os grandes coletivos: Porquê a toler ância, o respeito, o apreço de um povo para com outro, de uma religião para com outra, de uma raça para com outra? Porque hão de alienar-se sempre com a paz e nunca com a guerra os responsáveis das nações e das religiões? De novo, a pergunta é radical: porque deve o homem - como indivíduo, grupo , nação ou religião - comportar-se de um modo humano, verdade iramente humano? E porque tal comportamento há de ser incondicional? Porque nos afeta isto a todos, sem excluir nenhum estrato soc ial, classe ou grupo. Esta é a questão fundamenta l de toda a ét ica." Hans Küng , 1992 , Projeto de uma ética mundial, Madr id, Trott a, pp. 44 ·45.

Uma leitu ra atenta deste excerto deverá levar- nos a explicitar que o auto r enunc ia inte rroga ções para o âmbito individual , mas também para o âmbito coletivo; que nele se formula uma inte rrogaçào de fundo para a qual im porta encontrar resposta - o que é o bem? - e que deve remos t omar consciênci a de que, entre a descoberta do que é o bem e a acão coerente, vai, muitas vezes , grande drst áncie em que infl uenciam fatores nem semp re con trolados ind ividualmente. Este facto confere pertinência à constatação de que a ética não deve confinar-se ao âmbito ind iv id ual, mas conformar-se como moral coletiva . Neste sent ido, o pape l desta discip lina como elemento agregador, no con te xto escola r, f ica sublinhado com veemência .

11

Valores e Ética Cristã


--- - - - - - - - - - -- - - -- - - - - - - - - --------, 2.1. Autonomia e heteronomia moral Ao interrogar-se sobre porque deveremos fazer o bem, mesmo quando não somos controlados , o autor est á a deixar imp lícit a a discussão sobre as motivações que j ustificam a dec isão de o fazer. Fazêmo-Io co nvencidos, interiormente? Ou por mot ivos que nos são exte riores? Este é o prob lema da autonomia e da heteronom ia mora l, que devemos consciencializar. Por heteronom ia deveremo s entend er o co mportamento (ac ão con creta) ou as at itu des (decisões de f undo) de quem age ou decide com base em razões que lhe são fac ulta das por out ros. Et imologi camente, hetero nomia é uma palavra que recol he duas palavras gregas: héteros (quer dizer 'out ro') e nomia (que r dizer 'lei). Poderíamos sintetizar o cont eúdo da palavra dizendo que 'a lei está no outro' , eu não a tenho inte riorizada. ~ o caso de quem cumpre as regras ou leis, não porqu e esteja convencido da sua importá ncia e do dever que tem em cumpr i-Ias, mas que o faz por medo, por receio de ser 'apan hado' ou por temer ser multado. As razões são ext eriores ao suje ito . A lei não está interiorizodo. Esta situação é par ticularmente bem narrada numa curta-metragem cujo t ít ulo é The Block Hole (o buraco negro). Nesta história, um funcionário pret ende fazer uma fotocópia . Ao encetar a sua ta refa, a fot ocopiadora devolveu uma cópia com , apenas, uma bola negra, no centro da fo lha. O funcionário, espantado, verifica que aqu ele bura co negro permit ia atr avessar obje tos . Logo lhe ocorre que, sem ser visto, pode aceder à máquina dos snacks e ret irar um chocolate. Deverá fazê- lo? A história dá- nos a resposta pois a únic a dúvida que o levaria a dar resposta negativa era a que resulta va de saber se seria visto. Ora, ao verifi car que ninguém o co nt rolava, aproxima-se da máq uina e reti ra o bem pret endido. Não contente, ocor re-lhe que, com aquela folha, pode aceder ao cof re do chefe e ret irar o dinhei ro ali conti do. Mais um a vez, o ún ico mot ivo que parece imped i-lo de praticar tal ato é o receio de ser visto. Ass egurando-se de que não o é, abeira-se do cofre e começa a ret irar, com sof reguidão, o dinheiro , ao ponto de ent rar ele mesmo no cofre para retirar algumas notas que esta vam num local mais distante . Neste momento, a folha de papel, que estava colada com fita -cola, na port a do cofre, cai. A única razão que t inha impedido aqu ele homem de fazer o que não se lhe afigurava co rreto revelou-se insuf iciente. Este é um bom exemplo do que é a heteronomia . Aqu ele homem só faria o bem se os outros o obrigassem a tal. Certo de que ninguém veria e que não seria apanhado, não far ia o bem.

2.2. A verdadeira autonomia Por op osição, o verdadeiro autonomia reflete o interiorização do dever morol, do lei. A lei est á no próp rio, não porque este a cr ie, mas porque a assumiu. A palavra 'aut onomia' reún e d uas palavras gregas que, j untas, explicita m a ideia atr ás enun ciada. 'Autós ' que r dizer 'pró pri o'; 'nornia' que r dizer 'lei'. A lei está em si próp rio. Numa perspet iva cristã , o máx imo dest a vivência autón oma é a daqu ele em quem a lei perfeit a está tã o interiorizada que t oda a sua a ção repercut e ess a identificação, como se Deus se refle ti sse no seu agir. A autonomia, numa perspetiva cr istã , é teonomia . No agir humano reperc ute -se o que Deus deseja para a humanidade.

Síntese • A ética deve influenciar a acão individual e o agir coletivo. • A autonomia def ine a ac ão daquele que tem a lei em si próprio, não sendo determinado pelos outros ou pelas circu nst áncias. A het eronomia define a ação daquele que age sempr e determinado pelos outros ou pelas ctrcunstáncías. • A verdad eira autonom ia não cons iste em fazer o que se quer, mas em mob ilizar a vontade na procura do maior bem.

Em www p or dat e.pt analisa os dados sobre a natalidade. o casamento e o divó rcio . Que escolhas indicam?

Educação ' foral e Religiosa Cató lica

12


r -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -I

3. O que é o bem?

r- - - - - - - - - - - - - - - - -- - - -- - -- - -- - - -- Mas, neste passo, importa interroga rmo-nos sobre o que deva entender-se por 'bem'. Tomemos por referên cia alguns textos que se tornaram clássicos, um de um autor pré-c ristão, Aristóteles, e outro de um dos maiores teólogos de sempre, S. Tornas de Aquino. Em ambos os textos, está presente uma ideia fundamenta l, mas que, no segundo, se explicita no registo cristão: o bem é a realização plena, tendo em conta o fim para que se foi feito, o que, pa ra o cristão, se concretiza na reali zação do que Deus deseja para a humanidade.

"Averdade para o homem é aquilo que faz dele um homem." Anto ine de Saint -Exupér y, 1995, Terra dos Home ns, Lisb oa, Vega, p. 124.

13

Valores e Ética Cristã


----- --- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- , I

3.1. O bem e a felicidade, segundo Aristóteles "Toda a perícia e todo o processo de investigação, do mesmo modo todo o procedimento prático e toda a decisão parecem lançar-se para um certo bem. É por isso que tem sido dito acertadamente que o bem é aquilo por que tudo anse ia. [.. .] A vida feliz parece ser a que existe de acordo com a excelência. Uma tal existência só pode ser vivida com seriedade e não no meio da brincadeira. [...] A felicidade não consiste pois em tais formas de passar o tempo, mas nas atividades que se produzem de acordo com a excelência [...] Se, por conseguinte, a felicidade é uma atividade de acordo com a excelência, é compreensível que terá de ser de acordo com a mais poderosa das excelências, a exce lência da me lhor parte do Humano. Seja a melhor parte do Humano o poder de compreensão ou qualquer outra coisa que pareça, por natureza , comandar-nos , conduzir-nos ou dar-nos uma compreensão int rínseca do que é belo e divino - seja isso mesmo divino em si, ou a mais divina das poss ibilidades que existem em nós - , a atividade desta dimensão será de acordo com a excelência que lhe pertence. Tal será a felicidade na sua completude máxima. Uma tal atividade é , como dissemos, contemplativa. [...] se [...] a atividade do poder de compreensão, sendo uma atividade contemplativa, se distingue extraordinariamente em seriedade e não visa at ingir nenhum outro fim último a não ser o que é obtido já com o seu próprio acionamento e tem um prazer que lhe pertence por essência (prazer este que aumenta a intensidade da atividade); se, ainda, a autossuficiência, o tempo livre, e, dentro dos limites humanos, a infatigabilidade, bem como tudo o resto quanto pode ser imputado ao que é bem-aventurado, se manifesta pelo próprio acionamento desta atividade, nessa altura , então, esta atividade é a felicidade hum ana no seu grau de completude, desde que se estenda ao longo de toda a vida, porque nenhum aspeto da felicidade pode ser deixado incompleto. [...J não devemos seguir as exortações segundo as quais devemos enquanto Humanos ter pensamentos humanos e enquanto mortais ter pensamentos mortais, mas tanto quanto possível devemos tentar libertar-nos da lei da morte e tudo fazer por viver ·de acordo com a possibilidade mais poderosa que nos acontece. [...] Poder-se-á então dizer que este é o verdade iro si próprio de cada um, na medida em que é o que em nós existe de mais autêntico e de melhor. E seria completamente absurdo se cada um de nós não escolhesse a existência [autêntica] de si próprio mas a de qualquer outro si estranho. Aqu ilo

Educação Mora l e Religiosa Cató lica

14


, - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - -- I

que foi apurado primeiramente é ainda agora adequado, porque aquilo que pertence a cada si próprio pela sua própria natureza é o que há de mais poderoso e que dá maior prazer. Desta forma , para o Humano, isso é a existência humana de acordo com o poder da compreensão do sentido, porquanto é este tipo de existência que corresponde à possibilidade extrema do próprio si Humano e essa existência é também a mais feliz de todas. [...] o sábio será quem existe de um modo extremamente feliz." Aristóte les, 2004, ~tic a o Nicómaco , Lisboa, Ouetzal, p p. 19 e 244 -24 5 (1094a1, 1177a1-1178a10, 1179a33-34).

3.2. O bem, a felicidade, segundo S. Tomás de Aquino

15

Valores e Ética Cristà


- - - - - - - ----- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- , I

I

"Sem dúvida, S. Tomás possuiu, no máximo grau, a coragem da verdade, a liberdade de espírito quando enfrentava os novos proble mas, a honestidade intelectual de quem não admite a contaminação do cristia nism o pela f ilosofia profana, mas tã o pouco defende a rejeição aprior ístic a desta . Por isso, passou à história do pensamento cristão como um pion eiro no novo caminho da f ilosofia e da cultura universal. O ponto central, e como que a essência da solução que ele deu ao pro blema novamente posto da contraposição entre razão e fé, com a genialidade do seu int uito profético, foi o da conc iliação entre a secularidade do mundo e a radicalidade do Evangelho, evitando, por um lado, aque la tend ência anti-natura l que nega o mundo e seus valores, mas, por outro, sem faltar às exigências supre mas e inabaláveis da ordem sobrenatural." Papa Paulo VI, Carta op. Lumen Eccles;re (20 de novembro de 1974).

"[...] a bem-aventurança do homem não pode estar nas riquezas naturais, pois elas são procuradas em ordem a out ra coisa ; para sustentar a natureza do homem e, por isso, não podem ser o f im últ imo do homem, mas sim ordenam-se para ele como o seu f im. Por isso, na orde m da nature za, todas as coisas estão subordinadas ao homem e foram feitas para o homem, como diz o Salmo 8,8: «Tudo submetestes a seus p és .» [...] É impossível que a bem-aventurança do homem esteja em algum bem criado. Porque a bem-avent uranca é o bem perfeito que acalma (satis faz) totalmente o apet ite, de cont rário não seria f im últi mo se ainda fi casse algo apet ecível. Mas o objeto da vontade, que é o apetite humano, é o bem universal. Por isso, está claro que só o bem universal pode conceder calma à vontade do homem. Pois bem, isto não se encontra em algo criado, mas sim só em Deus, porque toda a cr iatura tem uma bondade participada. Por isso, só Deus pode encher a vontade do homem, como se diz no Salmo 102,5: «o que cumula de bens o teu desej o». Logo, a bem-aventu rança do homem consis te só em Deus." 5, Tomá s de Aquino. 20 14, Su mo Teológica Mínima, Ma drid, Te cnos, pp. 141, 15 6.

De acordo com o q ue dizem os te xtos de S. Tomás e Ar istóteles sobre o que é o bem, como deverá pe nsar-se, entã o, o mal mo ral? O que ser á 'não fazer o bem '? Tendo em conta S. Tomás de Aq uino, deverão pensar-s e os valo res económicos co mo supe riores aos bens morais? Porquê? Que razão fund amental j ustifica que se def ina essa hierarquia? Neste passo, impo rt a, ainda, ter em conta uma interrogação im porta nte : será possível ed ucar-se algué m para a realização do be m? Esta é, aliás, uma per gunta frequente entre os que discu tem se deverá exist ir uma disciplina q ue se proponha educar para o bem e para a sua realização. A resposta já se supõe, co ntudo, é bom atender a um aspeto que Ar istó teles recorda, no te xt o que recup eramos, de seguida: a educa ção para o bem não se faz, apenas, pela enunci ação de pri ncíp ios e pelo reconhecimento da bondade e da maldade - ela opera-se com toda uma cultu ra de envolvimen to que gera habituação , isto é, que faz emergir a nat uralidade da acão bond osa. Não se age correta mente apena s porque se sabe. ainda que seja condiçã o nece ssár ia e tarefa nunca concl uída, mas principalmente porque se fo i realizando o 'treino', como se se tratasse de uma "t erra que é prepa rada para receber uma semente e a fazer fomentar". Síntese • O bem, segundo Aristóteles, consiste na realização da maior fel ic idade, que se iden ti fica com a excelência . • O bem , segundo S. Tomás, é a realização do que é próprio da natu reza de algo ou alguém, no caso do ser humano, aqu ilo para que Deus o criou: a sua máxima realização.

Ed ucaç ã o r.1oral e Religiosa Cat ólica

16


r - - - - - - --- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - --- - -I

4. A importância da formação moral

-- -

I

- -- - - -

-

- - -

-

-

-

-

-

- - - - - - -

- -

-

- -- -- -

Existem áreas do pensamento e da cultura que são negligenciadas , nas soc iedades co ntem porà neas , marcadas pela prevalência da técnica e da eficác ia. Muitos são os que cons ideram que o que não t iver resultados visíveis e não puder ser mensurado, não merece ser ref let ido e não vale o dispêndio de tempo. Assim acontece com a ref lexão sob re a ét ica e sobre a moral. Para muitos , como a ética é reduzida a opin iões e à mera subjet ividade, ref let ir, de forma organizada e sistemática, fazendo o «esforço do conceito» (K. Rahner), é perda de t empo. Tal, não só não é verdadeiro, como está na origem da inversão e perversão da hierarqu ia de valores que favorece a desumanização da sociedade. Em oposição a esta visão, é import ante sub linhar que a ét ica e a mora l.são àrnbitos que exigem ref lexão, t omada de consciência racional sobre o que deve esco lher-se e, consequentemente, desenvolvime nto de hábitos que mantenham acordada a sensibi lidade ética . Neste registo , a ref lexão a desenvolver, ao longo deste capítulo deve cont ribuir para a descober ta de que presumir que a ética deve deixar-se ent regue à subjetividade individual é uma ilusão que favorece o relat ivismo e redunda em risc o para a construção de uma soc ieda de que se pretende humana e huma nizadora. Propomos, a iniciar, a análise atenta de dois textos de época s bem diferentes [o primeiro escrito no sécu lo IV a.C. ; o segundo é de 2013), que desa fiam à fo rmação mora l como um projeto de const rução do que de mais nobre o ser humano tem: o seu olhar ét ico, ,atent o e espe rançoso , diante da vida .

17

Valores e Étic a Cristã


-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , I I

"Alguns pensam que os hom ens se to rnam homens de bem por disposição natu ral, out ros por habit uação, outros ainda, por apren dizagem. [...] A palavra e o ensinamento não têm a mesma força j unto de todos, mas a alma do que escuta tem de ser preparada de antemã o pelo traba lho através de diversas formas de habituação para poder senti r alegri a e abjeçã o de um modo corre to - do mesmo modo que uma terra é preparada para receber uma semente e a fazer fomentar. [...] Se, por conseguinte, tal como fo i dito, para que alguém se torne numa pessoa de bem tiver que ser corretamente educada e formada nos bons hábitos, e seguir a sua vida de forma a preenchê-Ia com ocupações úte is e não prat icar ações vis, voluntária ou involunt ariamente, ta l é poss ível que venha a acontecer, se os homens projetarem as suas existências de acordo com uma certa forma de compreensão e segundo uma ordem correta que tenha força para prevalece r." Aristóteles. 2004, Ético o Nicómoco, Lisboa, Quetzal, p. 249, 250 (1179b2D, 11 80a15).

"Relativamente à propost a moral [da catequese], que convida a crescer na f idelidade ao estil o de vida do Evangelho, é oportun o indica r sempre o bem desejável, a proposta de vida, de maturidade, de realização, de fecu ndidade, sob cuja luz se pode enten der a nossa denún cia dos males que a pod em obsc urecer. Mais do que como peritos em diagnósticos apoca lípt icos ou ju ízes sombrios que se comprazem em detetar qualquer perigo ou desvio, é bom que nos possam ver como mensageiros alegres de prop ostas altas, guardiões do bem e da beleza que resplandece m numa vida fiel ao evangelho." Papa Francisco, 2013. Evongelii Gaudium, 16B.

4.1. As fases do desenvolvimento moral - segundo Piaget e Kohlberg liA fase da dependência mora l

Este é um tempo em que as crianças aprendem os seus valores através do exemplo de adultos importantes nas suas vidas. Nas áreas da consciencialização da natureza e do amor pelo nosso planeta, é necessário liderar para as cr ianças imitarem. Os prime iros anos 1. Do nasc imento aos dois anos Agem de acordo com os seus desejos. 2. Dos dois aos seis anos Obedecem às regras para evit ar o castigo e para obterem recomp ensas (regras dos pais).

Educação t.to ra t e Religiosa Católica

18


r - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - I I

3. Dos sete aos nove anos Obedecem às regras para evitar a desaprovaçã o dos que respeitam (pais e professores) . 4. Dos nove aos onze anos Obedecem às regras para evitar a desaprovação de figuras com autoridade (pais e professores).

A f ase da independência moral O jovem está a desenvolver um código de ética e um sistema de valores independentes. [...] 5. Doze anos e mais Obedecem a regras escolhidas portodos para o bem-estar da comunidade (fase de forte inf luência dos pares)." Frank Opie. 1994. Escute iro global: um escutismo poro a natureza e o amb iente, a.l., Corpo Na ciona l de Escut as. pp. 95-96.

Tendo em conta o que Aristóteles af irma no excerto do seu livro ~tico o Nicóma co, que papel deve re conhecer- se às escolhas indi vi duais sobre o que faze r, o que ver, o que ler, no que respeita à fo rmaç ão moral? Poderão considerar-s e irrelevantes os háb itos juv enis de leitura e convivê ncia co m a violência, no cinema, na música, na literatu ra? Que discussão suscitam estas int errogações que aqui enunciamos? Segundo o Papa Francisco, como deve processar-se a formação moral dos cristãos?

4.2. As felicidades e a felicidade "Todos procuramos a felicidade, porém são poucos os que a conseguem. É a meta máxima da nossa conduta. Para ser feliz, é preciso que a vida seja argumentativa e coerente. E também que albergue no seu seio uma série de elementos que relacionem intimamente as ideias e as suas acões . Cada ser humano é insubst it uível, cada um de nós é uma promessa de futuro. A felic idade consiste em encontrar um program a de vida que nos encha o suficiente de modo a motivar a nossa trajetória. Quando sabemos que meta desejamos, o caminho inicia-se e as dificuldades superam-se. É então que entra a vontade, que deve ser mais forte do que as adversidades. Deste modo, podem aprisio nar-nos, amordaçar-nos, colocar-se contra a linha por nós traçada, mas nunca derrotar-n os. Numa palavra: coragem , espírito de luta, constância, firmeza nos objetivos, consistência nas linhas mestras do projeto pessoal. A felicidade nunca é uma oferta, há que conquistá -Ia e moldá-Ia com empenho. Sempre, antes ou depois, acontece termos de lut ar contra a corrente, devendo experimentar o senti mento de fazer algo út il, valioso, pelo qual os combates e desvelos f iquem ju stif icados pela nossa peleja. O esforço, a alegria, a coerênc ia e a fel icidade

19

Valores e Ét ic a Cristã


---- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , I

nutrem-se das mesmas raízes. Dizia Julian Marías que «a vida no seu conjun to tem uma tonalidade, atra vés da qual uma pessoa se sente bem ou mal. ..» Ao pr imeiro é ao que chamamos felicidade. Entendida, claro está , como balanço, como exame e resulta do f inal num determinado momento vital . É necessá rio manter os velhos ideais, mescla dos com as novas ilusões e os pequenos objetivos, donde surgirá um estilo próp rio, uma forma peculiar de nos mostrarmos. Assim se desenrola a meada de todas as pretensões que circula ram pela nossa cabeça. Não confundi-Ia, porém, com as f órmulas atuais, que para mu itos são sucedâneos da autêntica felic idade: bem-estar, nível de vida, prazer, satisfação pessoal e sem problemas, ou triunfar na profissão ou nos negóc ios ou em qualquer âmb ito da vida . Mais ainda, muitos t riunfadores, no seu foro interno, não são felizes . Indagando nos subterrâneos da felicidade vamos encontrar- nos com a fidel idade; quer dizer, lealdade aos princípios, perseverança nos ideais nobres, persistência em manter os critérios de conduta, apesar da agitação e vaivém de tantas circunstâncias. Alinham-se, assim, na f elicidade verdadeira, a coerência, a vida como argument o, o esforço para que se manifeste o melho r que carregamos dentro de nós e a f idelidade. Cada ingredient e f ixa e sustém o que para mim é a chave que a alimenta, essa trilogia composta de amor, traba lho e cul tu ra. E o seu invólucro: ter uma personalidade com um certo grau de maturidade e equilíbrio psicológico." Rolas. Enrique, 1994, O homem light, Coimbra, Gráfica de Coimbra, pp. 139-140.

De que noções de felicidade fala o autor? Que condimentos afirma serem necessários para construir a verdadeira felicidade? Olhando em redor, que modelos de felicidade se defendem e

seguem? _ _

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

_

J

Síntese • A ét ica e a moral devem ser discutidas , refletidas e int eriorizadas pela via da formação mora l, que criam hábitos e des perta a sensibilidade ét ica. • A fe licidade que se deve procurar não é a que se esgota no imediato : é a que permite o máximo desenvolv imento da pessoa humana.

Educacão r torar e Religiosa Católica

20


r -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -I

;

5. O que deve entender-se por 'Etica '? Será o mesmo que 'Moral'? Ética e Moral têm o mesmo significado?

.- -- -- -- -

- -- - -- - - - -

-

- - - - -- -

--

-- -- -

É muito f requente afirmar-se que a moral diz respeito aos comportamentos. Formulada deste modo , a afirmação não está incorreta , mas peca por imprecisão, pois, de algum modo, a psicologia também diz respeito aos comportamentos, a etologia est uda os comportamento s animais e, seja num caso ou no outro , não é de moral que est amos a falar. Então, o que faz da mora l o que é? O que torna uma determinada afirmação uma avali ação mo ra l ou ética? Acresce a esta dúvida inicial uma outra: dizer 'ét ica' ou dizer 'moral' é refe rirmo-nos ao mesmo? Estes são os dois ãmbitos do estudo que iremos desenvolver, nesta parte da nossa unid ade let iva. Retomemos a primeira interrogação.

21

Valores e Ética Cristã


- -- - - - - --- - - - - - - - ---- - - - - - - - - - - - - - , I

Para nos acer carmos da resposta, valerá a pena darmo- nos co nta do seguinte: pensemos numa eru pção vulcãnica. Será um problema moral? O simples facto de exist ir uma erupção vulc ânica não se constitu i, por si, como um prob lema moral. Mas, agora, imaginemos que essa erupção vutcan íca oco rre perto de uma povoaçã o. fO, por si, um problema mora l? A resposta terá de ir neste sentido: só o será se a ação humana responsável pude r inte rvir, de modo a que não resulte mal deste fenómeno que, por si só, é um acontecimento natural. Como fenóm eno natur al, por si só, não é um prob lema moral. fO- o quando acontec e intervenção ou omissão da vontade humana consciente. Sendo assim, a existência, pura e simples, de uma erupção vulcânica não é um problema moral, mas, se alguém sabia que aquela erupção vulc ânica ia ocor rer e omit iu essa informação, colocando em risco bens e pessoas, nesse momento, esta erupç ão vulcàn ica passou a ser um problema mor al. Assim , vemos reunidos os t rês dados necessário s à existê ncia de matéria moral: • um ato ou omissão; • um fim prete ndido por uma vontade humana consc iente e responsável; • um contexto. Ao dizermos 'um f im pretendido' est amos a referir, implicit amente, o que acima já se reflet ia, quando se falava do prob lema do bem. A presença do bem ou do mal é o que confere ao est udo dos comportamentos o seu caráter moral, quando associada à inter venção de vont ade humana consc iente e responsável. A moralidade vem, assim, da condição de responsabilidade e da concretiz ação ou recusa da realização do bem. Já acima se referia que o bem é a realização da natureza própria do ser de alguém. Impedir a realização máxima constitui- se, assim , como mal.

5.1 . O Homem é

constitutiva mente moral "Qual e como é a dimensão ética? O homem não somente satis faz desejos e colmata necess idades, mas ao mesmo tempo sente -se obrigado a fazer um projeto de vida, necess ita de alcançar uma perfeição, ordena-se para um fim, tem de organizar e estabelecer hierarqu ias na sua existência e, sobretudo, sente -se reclamado pelo bem. Há uma consciência do dever que o arranca aos seus desejos imediatos para o colocar ante uma exigência incondicional à qual não se pode subtra ir. Há um bem , uma verdade, um ideal, que aparecem como o arco -íris da sua vida , situando -a ao mesmo tempo que reclamando-a, exigindo assentimento ao mesmo tempo que mostrando o lugar correto de um cumprimento obrigado . O homem sabe-se obrigado a uma tarefa e a um cum primento. Não é soberano do bem e do mal, mas é sim o bem que é soberano da sua vida. O hom em é constitutiva mente moral; poderá voltar- se contra a obrigação que sente e então é imoral, ou quererá desentender-se dela absolu t amente e será amoral, ou perderá o tino da vida sem saber o que a fundamenta, que tem e a que tem de ater-se, e então fica rá desmoralizado; mas estas três situações most ram que a sua existênc ia t ão só é verdadeira na medida em que se enquadra num projeto, assume uma responsa bilidade e cumpre um dever. Ante esta consciênc ia de responsabilidade a pergunta inexorável é: 'Que devo fazer?' Ela revela que o homem se sabe desti nado a existir numa dimensão na qual a sua vida se sit ua não tanto no plano do agradável

Educação I lo ral e Religiosa Católica

22


r - - - - - - - - - -- - - -- - - - - - - - - - - - -- - - - - - I

1

ou desagradável, mas do justo e inj usto, do bom ou do mau. As realizações destas atitudes, que encontramos na história, constituem o facto moral como um dos dados determin antes primordiais do devir humano." Cardedal, Olegário, 2013, Deusna cidade, Salamanca, Sfguerne, pp. 140·141.

No caso humano, o bem é o que perm it e a concretização da nat ureza própria da humanidade. O mal será, por oposição, o seu impedime nto . Estas últimas ref lexões permitem-nos recuperar, co m curiosidade, dados que nos são facult ados pela f ilosofia clássica medieval. Os medievais recordavam que o ser é, em si mesmo, bom, verdadeiro e belo. Com isto, pretendiam dizer que quando algo se realiza na verdade, com beleza e procu ra o bem, é. O não ser é a sua opos ição . Por isso, o mal era o não ser. Aplicand o ao ser huma no, o mal é o que faz da human idade o que ela não é. Imped e-a de ser.

5.2. As fontes da moralidade O Catecismo da Igreja Cató lica sintetiza que:

"a moralida de dos atas humanos depende: • do obj eto escolh ido; • do f im que se tem em vista ou da intenção; • das circunstâncias da ação. O objeto, a intenção e as circunstâncias são as 'fontes' ou elementos constitutivos da moral idade dos atas humanos. O objeto esco lhido é um bem para o qual a vontade tende deliberadamente. É a matéria dum ato humano. [...] Em face do objeto , a intenção coloca -se do lado do sujeito que age. Porque está na fonte voluntária da acão e a determi na pelo fim em vist a, a intenção é um elemento essencial na qualif icação moral da ação. A inte nção é um movimento da vontade em direção ao fim; diz respeito ao termo do agir. [...] Uma int enção boa não torna bom nem justo um comportamento em si mesmo desordenado . O fim não justifica os meios. [...] As circunstâncias, incluindo as consequências, são elementos secundários dum ato moral. Contribuem para agravar ou atenuar a bondade ou malícia moral dos atos humanos. [...] Podem também diminuir ou aumentar a responsabilidade do agente [...]. As circunstâncias não podem, de per si, modificar a qualidade moral dos próprios atos ; não podem tornar boa nem j usta uma ac ão má em si mesma. O ato moralme nte bom pressupõe , em simu ltâ neo, a bondade do objeto, da f inalidade e das circu nstâncias. [...] É, portanto, erróneo julgar a moralidade dos atos humanos ten do em conta apenas a intenção que os inspira ou as circunstâncias que os enquadram. [...] Não é permitido fazer o mal para que dele resulte um bem." Catecismo do Igreja Católica. 1993, Coimbra, Gráfica de Coimbra. nn. 1750-1756.

r- - - - - - -- - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - -

23

"alores e Étic a Crista


- -- -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - -- - - , f:: importante reter, desta primeira abordagem, os seguintes dados: • a abor dagem moral só é possível quando estamos em presença da acao humana consc iente e responsável; • a leit ura moral procura descort inar em que medida os atos, omis sões ou factos (em que a vontade humana consc iente intervém) permitem ou impedem a conc retização do bem.

I

, Para interpretarmos o texto. tenhamos em conta

Chegados aqui, importa perguntarmo-nos sobre o que serão, então, a moral e a ét ica.

que o auto r fala do 'ethos' por oposição ao 'pathas'. A palavra 're mos', de origem grega. é a que est á na raiz da ideia de 'paciente ', 'paixão' (sofrim ento) ,

Para esta análise, tomemos por referência um texto de Eduardo López Azpitarte.

'compaixão', e refere-se, aqui, a tudo o que escapa ao nosso controlo e à nossavontade, por oposição ao que é devido à nossa responsabili dade, que ele designa como'emcs ', I

I

"O 'et hos', na existência humana, é a cara oposta do 'pathos', como uma dupla dimensão que qualquer sujeito experimenta . Dentro desta última aceção entraria tudo o que nos foi dado pela natureza sem que nós tenhamos intervindo ou colaborado de maneira ativa na sua existência. Chamamos-lhe assim por tê -lo recebido passivamente, à margem da nossa decisão ou vontade . É o mundo que constitu i a nossa personalidade natura l, a nossa maneira instintiva de ser, que padecemos com algo que nos foi imposto e que não serve, como vimos, para dirigir a nossa conduta. Oferece materiais sobre os quais o homem deve trabalha r para construir a sua vida, como o artista esculpe a madeira para obter a partir dela uma obra de arte. A educação é o esforço por extrair ('educere') dessa realidade anárquica uma conduta humana . Para expressar este esforço ativo e dinârnico, que não se deixa vencer pelo 'pat hos' recebido, o grego valia-se da palavra 'éthos', mas com dois significados diferentes, segundo se escrevesse com 'êta' (ê) ou com 'épsilon ' (é). No primeiro caso - além de expressar a residência, morada ou lugar onde se habita -, indicava fundamentalmente o carácter, o modo de ser, o estilo de vida que cada pessoa quer dar à sua existência. Enquanto a segunda aceção faria referência aos atos concretos e particulares com que se leva a cabo seme lhante projeto . Teríamos de dizer, por isso, que a função primária da ética não se centra nas ac ões concretas, mas sim em outro objetivo muito mais básico: dar uma orientação estável, encontrar o caminho que leva a uma meta , criar um estilo e uma maneira de viver coerentes com um projeto. A ét ica cons istiria, pois, em dar ao nosso 'pat hos' - esse mundo passivo e desorganizado que nos oferece a natu reza - o estilo e a confi guração queridos por nós, mediante os nossos atos e fo rmas conc retas de atuar. Aqui está a grande tarefa e o grande desti no do homem." Azpitarte, Eduardo Lo pez, 2003, Pora uma nova visão do ético cristd, Sant ander, Sal Terrae, pp. 40-41 .

o autor facult a-n os, neste texto, dois dados que ainda não tínhamos observado: • a ética debruça- se sobre o domínio da consciência (interior), mas também dos atas e cos -

tumes (exterio r). Muit os consideram que ao primeiro dizem respe ito as atitudes (interior, decisão de fundo, opção fun dame nt al), enquanto ao segundo dizem resp eito os atos ou comportamen tos (exte rior). Est a info rmação ser-nos- à relevante para a análise sobre a relação entre 'ét ica' e 'moral', sendo que alguns consideram que a ét ica se referirá ao domínio interior e refl exivo, enqua nto a moral se referiria ao exterio r (costumes). Esta será maté ria sobre a qual ref let iremos, de seguida. • a educação é um processo de construção moral , mais do que de aquisição de competên cias téc nicas.

5.1.1. Dados da discussão sobre a relação entre ética e moral Comecem os por ident if icar os dados fundamentais que devem def inir o conceito de moral que já indiciámos, ante riormente. Para ta l, t omemos por referência o seguinte texto de Roque Cabral, onde, após uma abordagem etimológica, o autor analisa os vários significados que a palavra assume , sendo de sublinhar a distinção que este faz entre 'o moral' (para se referir ao objeto em estudo) e 'a mora l' (entendida, aqui, com o os dados da conduta moral):

Educação r torar e Religiosa Católica

24


, - - - - - ---- - - - - - ---- - - - - - - -- - - - ----I I

Defin ição de moral

"Do lat im 'mores' (costumes), o termo 'moral' é empregado em diversos sent idos. Como adj et ivo, e numa signif icação muito ampla, equivale a 'espirit ual' ou 'mental', por oposição a 'físico' e 'corpóreo'. Em significado mais próprio, o aqui usado, opõe-se a amo ral e designa toda a realidade que, de qualquer modo , está investi da de moralidade. Ainda aqui dist inguimos t rês sent idos principais, que examinamos sucessivamente. O moral ou realidade moral. A realidade moral propriamente dita é o agir livre do homem , confrontado com a norma que o rege, por out ras palavras , é a decisão livre (e os atos por ela co mandados) perante o bem e o mal próp rios do homem enquanto t al, enquanto racional e livre. Últi ma - ou primeira - realidade moral é o sujeito desse agir livre. Todas as demais realidades não se pode m dizer propriamente "morais", mas apenas por referência mais ou menos indireta ou imprópri a ao moral. Assim, não há 'coisas' afetadas de moralidade, boas ou más moral mente; apenas o comp ortamento humano relativo a elas o pode ser. Consideradas em si mesmas, as coisas são amorais; só a pessoa é moral e toda a pessoa o é, pelo menos vir tu almente. Aqui, encontramos a razão de ser da diferença de tra ta mento a dar a pessoas e coisas, sendo condenável, por imoral, t rata r um ser pessoa l - mesmo que destit uído do uso da razão: criança ou louco - co mo um objeto ou coisa. A moral. Conjunto de normas de cond uta, quer em geral, quer aquelas que são reconhecidas por determinado grupo humano (a moral 'bur guesa', dos Gregos, etc .) ou propostas de determinado autor, corrente ou religião (a moral de Kant, estoica, cristã). A filosofia moral ou ética

Enquanto dis ciplina fi losófica, a moral elucid a e j ust ifi ca racionalmente a realidade moral sob os seus diversos aspetos. Não se limita portanto a ser uma 'ciência dos costumes' (posit ivismo sociológico de Ourkheim) ou uma 'lógica do discurso moral' (neop ositivismo), puramente descrit iva; mas, porque a natureza da realidade moral o exige, é nor mati va: trata do dever-ser, e não apenas do ser. Por out ras palavras, est uda o bem e o mal na ordem do agir, do 'a-fazer' (de not ar que o 'fazer' de que aqui se fala é o fazer-realizar, a praxis no sentido clássico e não o fazer-f abric ar ou poiesis). Enuncia norm as de agir e não se limit a a verifi car pad rões fácticos de comportamento. É, por isso, eminentem ente prática, pois tem por objeto de estudo um 'operável', o a-fazer. Mas enquanto é doutrina e não arte (estuda o bem e o mal, não leva a praticar um e a evit ar outro) é tamb ém teórica. Dado o caráte r 'cent ral' e 'total' que o moral te m int imamente ligado ao que há de mais pessoal e a tudo o que é humano - a moral é eminentemente humana e subordina de certo modo a si todas as demais disciplinas: a economia, a política, etc. Por isso interessa sobremanei ra ao homem. [...] Divisão. Constitu i-se assim o corpo da moral, que se pode dividir em dois grandes setores: o geral ou fundam ental , que trata dos aspeto s gerais da mora lidade, verifi cáveis por isso em todo o campo moral (moral geral); e o especial ou aplicado, que investiga mais em concreto os diferentes setores da vida humana, enquanto aspetos de moralidade: vida individua l, intersubj et iva, fam iliar, social, económica, cultu ral, etc. (moral espec ial). Esta divisão não coincide com a utilizada sobretudo por autores anglo-sax ões, entre Meta -ética e Ética, pois para os referidos aquela não é normat iva, enquanto para nós para ser verdade iramente mora l deve ser normat iva. A moral estuda dois grandes grupos de questões: umas em torno da pergunt a - que é o moral? -, out ras tent ando responder a est a outra: quais são as realidades morais? Que realidades, e em que condições, são boas ou más? A primeira quest ão, mais fu ndament al, foi hist oricamente abordada post eriorme nte à segunda, sobretu do a partir de Kant." Cabral, Roque, 2003, Temas de êncc , Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia - UCP, pp. 76-78.

25

'alares e Éti ca Crista


- -------- - - - - - - - -- - - - ---- - - - - - - - - - , Encontrados os dados fundament ais para uma adequada definição de 'moral', interroguemo-nos, de seguida, sobre a relação entre 'moral' e 'ética'. Deverão usar-se disti nta ou indist inta mente estes termos?

I

Analisemos, primeiramente, o con teú do de dois breve excertos de autores que se propõem defender a dist inção entre os dois conceitos.

"O saber científico é o único que brota da razão; o mundo das valorações ét icas, no entanto, pertence a outro âmbito diferente, onde não há espaço para esta dimensão racional. Daí a difer ença que muitos auto res assinalam entre a ética e a moral. A primeira é uma disciplina científ ica, pois analisa, com métodos hist óricos os sistemas morais que se fo ram dando ao longo da história, com o f im de provar a sua doutrina , descobrir a sua génese ou reconhecer as suas influências posteriores. Mas a moral, que avalia condutas ou impõe obrigações, é fruto de um processo emotivo ou resultado de uma decisão pessoal, que será válida para mim, mas que não podere i impor aos demais. Trata-se de uma decisão respeitável, mas seria inj usto condena r os que se comportam de maneira diferente, pois qualque r valoração goza do mesmo grau de racionalidade subjetiva e merece o mesmo respe ito." Azpita rte , Eduardo López. 2003. Poro uma nova visão do ético cristã , Santa nder, Sa l Terrae, p. 27.

5.3. Outra distinção entre ética e moral "Utilizo o termo moral para me referir aos quadros normat ivos de uma cultura concreta. Há moral se há cult ura. A ét ica, pelo contrário, é uma relação, e aparece com a excentr icidade, isto é, com a possibilidade humana de se situar diante da cultura, de se posicionar face ao mundo, face aos quadros normativos vigentes e herdados. Numa palavra, não seria possível pensar a ét ica numa situação na qual não aparecesse a interrogação, a pergunta, a incerteza e a ambiguidade. [...] no paraíso, a ética desaparece. Esta, para surgir, necessita da vida e, por isso, das ambiguidades e das ambivalências, das luzes e das sombras. Uma situação ética só pode irromper num tempo e num espaço crepusculares. [oo .] Uma situação ética só surge se nos descob rimos incompetentes. [oo .] Se há ética é porque ficamos amiúde perplexos ante situações que nos deixam mudos, situações que nos indignam mas que, ao mesmo tempo, não estamos seguros de saber como enfrentá-Ias." Mêüch. Joan-CarIes, 20 10, ~tico do Compaixão. Barce lona, Herde r, p. 45 . nota 14.

Esta tese subsc reve a abordagem de E. Levinas, segundo o qual "a distinção entre o ét ico e o moral é aqui muito importa nt e. Por moral, entend o eu uma série de regras relat ivas ã condut a social e ao dever cívico. [...] Como primo filosofio, a ét ica não pode ela mesma dar leis à sociedade, ou dit ar regras de condut a pelas quais a sociedad e se revolucio ne ou se transforme." (E. Levinas, citado por Melich, Joan-Caries, 2010, ftica da Compa ixão, Barcelona, Herder, p. 229.) Ambas as abordagens aqui enunciadas propõem uma leit ura em que a ét ica seria do âmb ito científico, entendida como a reflexão abst rata e não normativ a, enquanto a mor al se referiria ao âmbito dos costumes, ao âmb ito do concreta, sendo, essa sim, normativa.

,

5.4. 'Etica' e 'Moral': dois termos diferentes, o mesmo conceito Ora, est a não é a abordagem seguida pelo autor que apresentaremos, de seguida, posição que subscr everemos, ao longo desta unidad e. Em virtude desta opção, serão ut ilizados, indisti ntamente, os ter mos 'ét ico' e 'moral'.

Educaçao r l oral e Religic.sa Católica

26


r - - - - - - ---- - - - - - - - - -- -- - - - - - - --- - - I

l:thikê epist êmê - Expressão grega que poder á ser traduzida por 'saber ético'.

"Ética é um adjetivo substantivado em cuja origem etimológica encontramos dois termos gregos: 'ét hos', costume, uso, mane ira (exterior) de proceder, e 'êt hos', morada habitual, toca, maneira de ser, carácter. Aristóteles (~tica a Nicómaco II, c.l, 1103-, 17-18) deriva 'êthikê epistêmê' do primeiro termo. Heidegger, na Carta sobre o Humanismo, prefere o segundo, com o perigo de reduzir a ética à ontologia . Nos dois significados sugeridos pelos dois termos, pode ver-se a raiz de duas conceções da ética: conceção puramente descritiva de ciência dos costumes (escola sociológica fran cesa , etc.) e conceção expressam ente normativa. Pode também situa r-se aqui o ponto de partida para certos binómios ta is como etisch/mora lisch , ético/ / jurídico, moralidade/legalidade, Moralitãt/Sittlichkeit, etc. Dado que 'êthos' terá der ivado de 'éthos', pode mos dizer que o te rmo 'ét ica' reco lhe a dupl a significação sugerida por ambos os termos, sublinhando a vinculação ao sujeito que o termo 'êthos' implica. De qualquer modo, é isso que se ver ifica no caso do termo 'mo ralis' (scientia), retirado de 'mos' (costume), com o qual Cícero, enr iquecendo a língua lat ina, traduziu a 'êthikê epistêmê'. 'Ética' e 'Moral '. Ao longo dos tempos não fo i uniforme o uso dos termos: umas vezes empregues como sinónimos, outras com diferente significado, que varia segundo os autores." Cabral, Roque. 2003, Temas de ~tico . Braga. Publicaçõesda Faculdadede Filosofia - UCP, pp. 33-34 .

Da análise dest e texto pode concluir-se que, de acordo com a et imologia, a palavra 'moral' recolhe o duplo signif icado que a própria palavra 'ét ica' também já recolhia, isto é, a dimensão int erior e exte rior da ac ão moral/ét ica. Neste sent ido, sai confirmada a validade da opção por ut ilizar ambos os termos de modo indist int o. Falar de moral ou falar de 'ética' assume, assim, signif icado coincidente.

Síntese Toda a ac ão humana é moral. Para a apreciação moral de uma acão, é necessár io atende r a três condições: • o objeto escolhido; • o f im ou intenção que se tem em vista; • as circunstâncias da acao. Ética e moral - conceitos que a et imologia une, mas que o uso habit ual dist ingue. A etimologia mostra que ética é palavra de origem grega e moral é palavra de origem latina. Ambas, etimologica mente, querem referir-se à reflexão e acão sob o prisma da bondade e da maldade, indicando a dimensão interna e externa do conceito. Contudo, o uso dist ingue os conceitos , confe rindo à ét ica a dimensão interior e teórica, conferindo à moral a dimensão exterior e prática .

27

'/a lores e Éti ca Crista


--- --- - - ------- - - - - - - - - - - - - - - - - - - -, I

6. As tipologias de éticas

Educação Mora l e Religiosa Cató lica

28


r - - - -- -- - - -- -- - - -- - -- - - - - ---- - - - - - I

Muitos debates sobre as matérias que temos vindo a tratar redundam em incompreensões, na medida em que nem semp re se clarifi cam - ou nem sequer se tem consciência - de que existem diversas matrizes de organização do pensamento ético e moral. Na verdade, ao ref let ir-se sobre a moral e a ética, importa ter claro em que matriz nos situamos, isto é, compreender qual o fator mais determinante para a compreensão do que seja o bem ou o mal, a bondade ou a maldade da ação humana con creta . De acordo com esta com preensão, e com a est ruturação do pensamento que daqui resulta, estabelecem -se as condiçõ es para caracterizar o tip o de conceção ética em que nos situ amos. Às formas de concebe r e organizar o pensamento ético atr ibui-se a designação de 't ipologia' que passaremos a definir, com mais precisão.

"Pode-se afirmar que na trajetória intelectual do Ocidente encontramos três t ipos fundamentais de éticas: as teleológicas, as deontológicas e as dos valores. As éticas teleológicas ('télos', fi m, meta, objetivo, alvo) centram o sentido da ac ão humana à luz da perfeição para a qual se orient a a nossa natureza, à luz da felicidade que é o anseio ínsito na nossa condição e à luz dos fins que o ser humano necessita de conqu ista r e nos quais repousa. O seu grande expoente é Aristóteles. As ét icas deontológicas ('déon', o que é necessário, preciso, obrigação , o devido) estão determinadas pelo princípio do dever, a urgência int erior de ser fiéis à lei moral pelo seu valor intrínseco e independentemente dos benefícios que reporte ao homem ou das dificuldades que leve consigo. O supremo expoente é Kant. A ética material dos valores surge por contraposição ao aspeto for mal das éticas do dever e mostra como existem valores objetivos (o útil, o agradável, o bom , o belo, o santo, etc .) que são determ inações da realidade, se apresent am com uma evidência interna e suscitam a adesão imediata do homem. O cr iador e máximo expoente desta ética é Max Scheler." Cardedal, Olegéri o, 2013. Deus na cidad e, Salamanca. Sigueme, p. 142.

Para a interpret ação desta breve caracterização das t ipologias de éti cas, importa, antes de mais, sublinh ar que esta s não são puras, ist o é, mesmo a conceção tel eológica não deixará de sublinhar a importância do dever ou uma abordagem sobre os valores ; ou uma ética de tipo deonto lógico não deixará de presumir o fim para que se tende. O que est á aqui em causa é o ful cro cent ral, em torno do qual gravita cada uma das tipologias. Assim, em síntese, podemos af irmar que a forma de conceber e estruturar a ética pode formular-se de tr ês modos , de acordo com o aspeto que se considera mais relevante, a saber: • teleológicas - que refletem o bem e o mal da co nduta humana a partir do f im que se pretende ating ir; • deonto lógicas - que ref letem o bem ou o mal da cond uta humana tendo em conta o grau de cumprimento do dever do sujeito; • dos valores - que refletem a bondade e maldade da cond uta huma na tendo em conta se esta respeit a valores considerados objetivamente . A estas trê s t ipologias de ét icas, pode, ainda, acrescentar-se uma quarta, que tem encontrado suporte significat ivo entre os especialistas em teologia moral. Trata-se da ét ica das virtu des.

"A ét ica das virtudes advoga a import ância central do caráter que o agente deve desenvolver, as virtudes que deve pross eguir, propond o uma reflexão ét ica sobre o sentido completo de como se

29

Valores e Ética Crista


------- -- -- - - - - - - - - - - - - --- - - - - - - - - , I

deve viver. Trata-se de uma abordagem que recusa estabelecer normas aplicáveis às situações, mas busca defi nir o caminho de progresso moral do indivíduo, o qual, por f im, resultará em decisões e em comportamentos eticamente aceitáve is." Almeida, Filipe. 2010, Erico, valores humanos e responsabilidade sccrc' dos empresas. Cascais, Principia, p. 79.

6.1. A análise das tipologias de éticas Sublinhe -se que cada uma destas fo rma s de con ceber e estrut urar a ética (t ipologias) co mpo rta riscos e virtualidades. As ét icas de tipo deo ntológico apresentam co mo pr incipa l limite o seu fo rm alismo, isto é, a preocupação que apresentam , com a análise de se o sujeito cumpriu ou não o seu dever, faz com que corram o risco de silenciar a bondade ou maldade dos atas e com port amentos concretos, na sua materialidade . Ilustr a esta situ ação uma bem con hecida história co nt ada pelos missionários cristã os, na India. Uma devot a cr istã passava, tod os os dias, apressada para a Igreja, fazendo o percu rso de casa até ao templo em grand e velocidade. No seu percurso, encontrava, sempre , alguns pobres e maltrapilhos q ue a olhavam, condoídos, mas sem conseguirem obter uma resposta, por pequena qu e fosse. Um d ia, porém, esta devota cr istã enco nt rou a igrej a de porta fechada e um a plac a, com o seguint e texto: 'Eu estou lá fora '. A preocupa ção fo rmal em cumprir o dever de participar nas celebrações religiosa s parecia imp ed ir aque la devota de com preender que o cump rimento do dever religioso se deveria repercutir numa atu ação concret a coe rente. O dom ínio formal do dever não se reperc ut ia no com portamento mater ial adequado . Imaginemos esta out ra sit uação: estás co m um a pessoa que é perseguida por alguém que se qu er vingar de la, mata ndo-a. Essa pessoa esco nde-s e em tu a casa. O preten so assassino ent ra na t ua cas a e pergunta se ela está ali. Que resposta deveria ser dada? Formalment e, po r dever de d izer a verdade, deverias co nf irm ar que sim. Contud o, em te rmo s mate riais, seria um a resposta imoral, por originar a morte de out rem. As ét icas dos valor es, apr esent ando grande am plit ude de virt ualidades, cor rem o risco de coloca r fora do suj eito a respo nsabilidade moral. con tudo, se est iver claro que não há moralidad e sem suje ito humano, respo nsável e consciente, este risco fica atenuado . A ét ica das virt udes encontra eco signif icativo entre os especia listas em teologia moral, sendo considerada aque la em que se assegura o equ ilíbrio entre o formalismo das de ont ológ icas , o risco de relativismo das teleológicas e o id ealismo da ét ica dos valores.

6.2. A crítica às éticas teleológicas Por seu turno, as ét icas teleológicas apresenta m uma deb ilidade que é analisada, com detenção, na encíclica de João Paulo II, Veritotis Splendo r. Por se tr atar de uma t ipologia de éti ca muito prese nte, na sociedade co nt empo r ânea, propomos uma análise mais cuidada. João Paulo II, na encíclica Veritatis Splendo r, pu blicad a em 1993, analisa, com espe cial acut ilância , os riscos associados às éti cas de matr iz teleológica (telas, em grego, quer dizer «fim», aqui ente ndido como 'o que vem depois', 'consequência'). Para uma melho r com preensão do alca nce da sua crít ica, importa com preender que o que def ine estas "ét icas " é o facto de determinarem o valor moral dos atas hum anos , não com base no recon hecimento do mal ou bem int rínseco ao ato em si (mata r, roubar, ofender, etc), mas sim com base nas conseq uências do ato realizado. As éticas teleológicas são inc apazes de rec onhecer a bondade ou maldade intr ínseca a qualquer ato determinad o, a qualquer acào. Esperam sempre pelas co nsequ ênc ias para avaliar uma dete rmi nada acao, em termos mo rais. Tal fo rma de pensar favorece o subj etivismo e imposs ibilit a o reconhec imento de valores universais. Com a linguagem próp ria de um documento do Magist ér io Pontifício, João Paulo II alerta para os riscos asso ciados a esta forma de conc eber a moral.

Educação f tore i e ReligiosaCatólica

30


r - - - - -- - - - - ---- - - - - - - ------ - - - - - - - I

o que são éticas teleológicas? "Algumas teorias éticas, denominadas «te leológic as», most ram-se at entas à conformidade dos atos humanos com os f ins procurados pelo agente e com os valores que ele tem em vist a. Os critérios para avaliar a ret idão moral de uma ação são deduzidos da ponderação dos bens não morais ou pré-morais a conseguir e dos correspondentes valores não morais ou pré-morais a respeita r. Para alguns, o compo rtamento concreto seria justo ou errado, segundo pudesse ou não produzir um melhor estado de coisas para todas as pessoas inte ressadas : seria justo o comportamento em grau de «maximizar» os bens e «minimizar» os males. Muitos dos moralistas católicos, que seguem esta orientação, procuram distancia r-se do ut ilitarismo e do pragmatismo, que avaliam a moralidade dos atos humanos sem fazer referência ao verdadeiro fim último do homem. Aqueles sentem j usta mente a necessidade de encont rar argumentações racionais, sempre mais consistentes, para j ustificar as exigências e fund amentar as normas da vida moral. Tal pesquisa é legítim a e necessária, visto que a ordem moral, o retrat o aqu r feito por João Paulo II, sobre o estabelecida pela lei natural, é, em princípio, acessível à razão co nsequencialisrno e o pr oporcionafismo . assehumana. Além disso, é uma pesquisa que cor responde às melha-se ao que é defendido no utüitertsmo de Stuart MIII. o pnm euo. e no de Bent harn. o exigências do diálogo e colaboração com os não-cat ólicos e os segundo não-crentes, especialmente nas sociedades pluralistas. A liberdade é que define o que é bem e o que é mal?

Mas, no âmb ito do esforço de elaborar essa moral racional - por isso mesmo, às vezes, chamada «moral autó noma» - , existe m falsas soluções, ligadas em particular a uma inadequada compreensão do objeto do agir moral. Alguns não têm em sufic iente conside ração o f acto de que a vontade fica comprometida com as escolhas concretas que realiza: estas são condição da sua bondade moral e da sua ordenação para o fim último da pessoa. Outros, ainda, inspiram-se num conce ito da liberdade que prescinde das condições efetivas do seu exercício, da sua referência objetiva à verdade sobre o bem, da sua determinação através de escolhas de comportamentos concretos. Assim, segundo estas teorias, a vonta de livre não estaria moralmente sujeita a obrigações determinadas, nem modelada pelas suas opções , embora permanecesse responsável pelos próprios atos e pelas suas consequências. Este «teleologismo», como método para a desc oberta da norma moral, pode ent ão ser chamado - segundo as t erminologias e perspetivas adotadas pelas disti ntas correntes de pensamento - «consequencialismo» ou «proporcionalismo». O primeiro pretend e deduzir os crité rios da reti dão de um dete rminado agir somente a parti r do cálculo das consequências que se preveem derivar da execução de uma opção. O segundo , ponderando entre si valores e bens proc urados, centra-se mais na proporção reconhecida entre os efeitos bons e maus, em vista do «maior bem» ou do «menor mal» efetivamente possível numa situação particular. As ét icas teleológicas conduze m ao subjetivlsmo e ao relati vismo moral

As teorias éticas teleológicas (proporcionalismo, consequencialismo), apesar de reco nhecere m que os valores morais são indicados pela razão e pela Revelação, consideram que nunca se poderá fo rmular uma proibição absoluta de comp ortamentos determinad os que estariam em cont radição com aqueles valores, em toda e qualquer circ unstâ ncia e cultura. O sujeito que age seria cert amente responsável pela obtenção dos valores pretendidos, mas segundo um duplo aspeto: de facto, os valores ou bens implicados num ato humano seriam, por um lado, de ordem moral (relativamente a valores propriamente mora is, como o amor de Deus, a benevolência para com o próximo, a justiça, etc.)e, por outro, de ordem pré-moral, também chamada não moral, física ou ôntica (relativamente às vantagens e desvantagens ocas ionadas, seja a quem age, seja a qualquer pessoa neles implicada antes ou depois, como por exemplo, a saúde ou a sua lesão, a integr idade física, a vida, a morte, a perda de bens materia is, etc.). Num mundo onde o bem sempre estaria misturado com o mal e cada efe ito bom ligado a outros efe itos maus, a moralidade do ato seria julgada de maneira diferenciada: a sua «bondade» moral, com base na intenção do sujeito referida aos bens morais, e a sua «retldão», com base na consideração dos efe itos ou consequências previsíveis e da sua proporção. Consequent emente, os comportamentos concretos seriam qualificados como «retas» ou «errados», sem que, por isso, fosse

31

Valores e tti ca Crist ã


----------- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , I

possível avaliar como moralmente «boa» ou «má» a vontade da pessoa que os escolhe. Deste modo, um ato, que, pondo-se em contradição com uma norma unive rsal negativa, viola diretamente bens considerados como "pré-morais», poderia ser qualificado como moralmente aceitável se a intenção do sujeito se concentrasse, graças a uma ponderação «responsável» dos bens implicados na ação concreta, sobre o valor moral considerado decisivo naquela circunstância. A avaliação das consequências da ac ão, com base na proporção do ato com os seus efeitos e dos efe itos entre si, referir-se-la apenas à ordem pré-moral. Quanto à especificidade moral dos atos, ou seja, quanto à sua bondade ou mal ícia, decidiria exclusivamente a fidelidade da pessoa aos valores ma is altos da caridade e da prudência, sem que esta f idelidade fosse necessariamente incompatível com opções contrárias a certos preceitos morais pa rticulares. Mesmo em matéria grave, estes últimos deveriam ser considerados como normas operativas, semp re relativas e suscetíveis de exceções. Nesta perspetiva, o consentimento deliberado a certos comportamentos, declarados ilícitos pela moral tradicional, não implicaria uma malícia moral objetiva.

Crítica das éticas teleológicas: o bem e o mal são anteriores à decisão do sujeito Estas teorias podem adquirir uma certa força persuas iva pela sua afinidade com a mentalidade científica, justamente preocupada em ordenar as atividades técnicas e económicas, baseada no cálcu lo dos recursos e lucros, dos processos e efeitos. Aquelas querem libertar das pressões de uma moral da obrigação, voluntarista e arbitrária , que se reve laria desumana . Porém, tais teorias não são f iéis à doutrina da Igreja, já que creem poder justificar, como moralmente boas, escolhas de liberadas de comportamentos contrários aos mandamentos da lei divina e natural. Estas teorias não podem apelar à tradição moral católica: se é verdade que, nesta última, se desenvolveu uma casuística atenta a ponderar em algumas situações concretas as possibilidad es ma iores de bem, também é certo que isso se confinava apenas aos casos onde a lei era incerta, e portanto, não punha em discussão a validade absoluta dos preceitos morais negativos que obrigam sem exceções. Os fiéis hão de reconhecer e respeit ar os preceitos morais específicos, declarados e ensinados pela Igreja em nome de Deus, Criador e Senhor. Quando o apóstolo Paulo recapitula o cumprimento da lei no preceito de amar o próximo como a si mesmo (cf. Rm 13,8-10), não atenua os mandamentos, mas antes, os confirma, dado que revela as suas exigências e gravidade. O amor de Deus e o amor do próximo são inseparáveis da observância dos mandamentos da Aliança, renovada no sangue de Jesus Cristo e no dom do Espírito. Os cristãos têm por própria honra obedecer a Deus antes que aos homens (cf. At 4,19; 5,29) e, por isso, aceitar inclusive o martírio, como fizeram os santos e santas do Antigo e do Novo Testamento, ass im reconhecidos por terem dado a sua vida antes que fazerem este ou aquele gesto particular contrário à fé ou à virtude." João Paulo II, 1993, VeritatisSplendor,74-76.

De acordo comJoão PauloII, que riscos comportam as éticas te leológicas? Como conceb em o mal? À luz das étic as te leológicas, os f ins bons justif icar o recurso a maus Como de verá um cristão situar-se diante

e

o be m podem meios? destas

abordagens. ainda segundoJoão Paulo II? A que se deve o fascí nio que exerce m as étic as teleológicas nas sociedades atuais?

, Síntese Tipologias de éticas: • ét icas deontológicas - o fulcro está no dever; • ét icas dos valores - o fulcro está na apreciação valorat iva do objeto sobre o qual recai a ação mo ral; • ét icas te leológicas - o fu lcro está no suje ito (na intenção) e nas consequências da acão. As éticas te leológicas favorecem o subjetivismo e o relativismo mora l.

Educacão Mora l e Religiosa Cató lica

32


r - - -- - - -- - - - - - - - - - - - -- - - - - - -- - - - -- I

7. As religiões e a ética

r- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - o

papel das religiões na formaçã o mor al dos seres humanos e a incapacidade das sociedades modernas para suplanta rem este pape l é sobejamente reconhecido. Alain de Botton, um autor que se assum e como descrente, reconhece, no seu livro Religião poro ateus, que as socieda des atua is, que pretenderam eliminar as religiões do espaço púb lico, não tê m t ido capaci dade de promove r, nos indivíduos e nas comunidades, o sent ido moral que as religiões conseguem. Na verdade, é sabid o que a religião tem a capacidade de envolver a tota lidade do ser humano e de não se confi nar a um àrnbito restri t o, pelo que a força moral que lhe transm ite não é epidérmica, mas at inge o árnago de cada um. Dist o nos dá conta Hans Küng, no seu livro Projeto de uma ética mundial.

33

Valores e t:tica Cristã


----- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- , I

7.1 . A regra de ouro "As religiões podem oferecer ao homem uma norma suprema de consciência, um imperativo categórico imensamente importante para a sociedade atual , cuja obr igação alcança graus muito superiores de profundidade e radicalidade. Todas as religiões oferecem, com efeito, uma espécie de 'regra de ouro ', uma norma, não meramente hipotética e condicionada , mas categórica, apodítica e incondicional, suscetível de ser levada à prática ainda nas complexas situações em que o indivíduo ou os grupos se veem obr igados a atuar. Esta 'regra de ouro' já se encontra atestada em Confúcio: «O que não desejas para ti, não o faças aos demais homens» (Confúcio, ca. 551-489 a.C); e também no judaísmo: «Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti» (Rabi Hillel, 60 a.C.-10d.C.); e finalmente também no cristianismo: «Tudo quanto quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também vós». O imperativo categórico de Kant poderia entender-se como uma modernização, racional ização e secularização desta regra de ouro : «Age de tal maneira que a máxima da tua vontade possa servir em todo o momento de princípio de uma legislação geral», ou então «Age de tal maneira que, tanto na tua pessoa como na dos dema is, utilizes a humanidade como fim e nunca como simples meio»." Küng, Hans, 1992, Projeto de uma ética mundial, Mad rid , Trot t a, pp. aO-8 1.

/

Contudo, a forma de concebe r a ét ica, o modo de fo rmar. moralmente, os indivíduos e as comunidades, não é idênti ca em todas as religiões. De um modo amplo, poderíamos t ipif icar as religiões quanto ao modo de conce ber e estruturar a ét ica:

"em três grandes grupos, cada um dos quais estabelece uma forma específica de se relacionar com a ética . As primeiras são as religiões proféticas. Compreendem o objeto ao qual se refere a experiência religiosa do homem, a Deus, como um princípio pessoal de natureza sagrada, que fascina ao mesmo tempo que distancia o homem, e que se revelou na história por meio de acontecimentos cujo sentido interpretaram os seus mensageiros ou profetas, que falam em seu nome e com a sua autoridade, e que manifestam aos homens o caminho da vida, que é o caminho da sua salvação. O judaísmo, o cristianismo e o islão situam-se aqui. As religiões místicas são aquela s que orientam o homem para uma forma de vida na qual encontra a paz e sossego interior, de modo que chega a uma união com esse Absoluto, união que pode tomar as formas de fusão ou transformação, alcançando ass im um estado no qual atinge a superação da f initude, da consciência e do sofrimento próprio da

Educação r tora r e Religiosa Católica

34


r - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - -- - - - - - I

existência atual. Aqui teria que sit uar o budismo, deixando sempre aberta a pergunta de se se trata de uma verd adeira religião, dada a ausência de carácter pess oal tanto do objeto ao qual se refere a relação, como da própria estrut ura da relação. O terceiro t ipo de religiões são as sapienciais. Elas orientam para a adequação da realidade ao rit mo da lei interna do cosmos e do homem, que no fundo se reconhece como uma presença e exigência do sagrado, orientando para a justi ça, a compaixão, a bondade como manifestações e reclamações do Absoluto . O confucionismo é um expoente dest a religião, que quase se identifi ca com a ética. Todas as religiões, cada uma na sua forma pró pria, incluíram a presença da moral. Todas elas partiram do princíp io «Faz o bem e evita o mal», e incluíram a regra de ouro (cf. Mt 7,22; Lv 9,18). Em todas elas encontramos o imperat ivo do pai: «Filho meu, sê bom ». A relação com Deus ofereceu fins, critérios, motivos teóricos e forças interiores para a realização moral ; por isso, não só influenciou no conhecimento do que há que fazer, mas ao mesmo tem po, e sobretudo, conferi u aos homens as forças necessárias para buscar o bem, superar a injustiça e a violên cia,já que o enigma moral do homem é que conhece o bem que tem que fazer, mas não t em a vonta de suf icient e para o fazer. Se a presença da moral é inerent e à experiência reli giosa, de forma que todo o homem religioso se sentiu impulsionado desde essa mesma experiência a realizar o bem, podemos dizer em paralelismo que a abertura à religião é inerente à experiência moral?" . Cardedel. Olegá rio, 2013, Deus no cidade , Salamanca. Sígueme, pp. 142-150.

A inte rrogação co m que Cardedal conc lui este excerto é part icularmente acut ilante. Mesmo ent re os que se dispõem a reflet ir com os inst rumentos que est a disciplina facu lta , muita s vezes est a será, seguramente , a inter rogaç ão que é formulada, ainda que de out ro modo: posso ser bom sem ac red itar em Deus? Esta pergu nt a tornou -se quase dolorosa, no fi nal do séc ulo XIX, quando muitos dos grandes pens adores de entã o ousaram, não só repet ir a pergunta, como invert ê-Ia. Parecia que, segundo eles, ser crente e, em particula r, crist ão, pudesse esta r a impedi r de se ser verdade irame nte humano. Deus fo i visto, nessa fase, como se se t ratasse de um obstácu lo à realização humana. Vale a pena refletir sobre o que nos diz, a este prop ósito , Torralba, no seu livro dedi cado aos fil ósofos da suspeito (segundo uma fe liz expres são cunhada por Paul Ricoeur para designar Freud, Marx e Niet zsche).

35

Valores e Etica Crista


--------- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - -- , I

7.2. A crítica à moral cristã - será a moral cristã a moral dos ressentidos? "A crít ica de Nietzsche à moral crist ã não é uma quest ão menor, mas ante s é consequência lógica dos grandes eixos da sua fil osofia. Se Deus era o garante da antiga moral, mas est á morto, Niet zsche pergunta -se que sentido têm os velhos valores, as normas e os preceitos que const ituíam a época passada. Entende, como muitos dos seus contemporâneos, que a ética cristã é relíquia do passado, um corpo de preceitos e de leis que se suste ntavam na ideia de Deus, mas que, na nova época que se augura depois da morte de Deus, todo aquele entra mado deixar de ter sent ido. O homem converte -se no criador de valores e deixa de ser o recet or da lei que vem de Deus. Esta crít ica foi revista e, ao mesmo tempo , contes tada pelos grandes especial ista s da ética e da moral cristãs . Max Scheler, e também Emmanuel Mounier, o denominado cató lico nietzscheano, sobressaem de entre os críticos de Nietzsche quando mostram que a raiz da ética cristã não é o ressent imento, mas sim o amor e o perdão incondiciona is. O autor de O lugar do homem no cosmos (19 28) adverte que é precisamente o ressentimento contra o cristianismo o que está na raiz da ética moderna, mas que, em nenhum caso, é o núcleo da ética que professa e vive Jesus de Nazaré. [Cont ra a tese de Nietzsche] Diz Henri de Lubac que quando o homem organiza a vida sem Deus, a organiza contra o homem . to a mesma tese que expressa Eusebi Colomer na sua interpretação dos mestre s da suspeita [que são Freud, Nietzsche e Marx]. O humanismo exclusivo é, segundo ambos, um humanismo inumano. Esta hipótese afigura-se muito est ranha para os humanistas ateus, mas na atualidade pode entender-se melhor que no momento no qual foi formulada. Para os grandes humanistas ateus do século XX, Jean-Paul Sart re e Bertrand Russell, a dignidade do homem fundamenta -se nele mesmo, na sua int eligência e liberdade; não é necessário um princípio exte rno para a reconhecer. Pelo cont rário, para o humanismo cristão, o fundamento da grandeza do homem é Deus, a sua origem e raiz últ ima do seu ser. No humanismo ate u interpreta-se Deus como um obstá culo, como um t ravão ao cresci mento do homem e ao progresso das sociedades; enquant o para o humanis mo cristão, Deus é a base do homem e a fonte de todo o progresso. Segundo De Lubac, a fé que inculca o cristianismo numa t ranscend ência sempre presente e sempre exigente não tem como f inalidade instal ar o homem na existência terrena para o adormece r nela. Esta fé mortifica e quebra consta nteme nte o equilíbrio demasiado formo so das nossas conc eções mentais e das nossas const ruções sociais. Irrompe num mundo que ten de a fechar-se." Tcr ralb a, Francesc, 2013, Os mestre s da suspei ta. Marx , Nietzsche e Freud, Barcelona, Fragme nta , pp.l 10- 113.

Educação'.10ral e Religiosa Católica

36


,- - - -- - - -- - - - - - --- - - -- - - - - - - - - - - - - I

I

"Alguns creem-se livres quando caminham à margem de Deus, sem se dar conta de que ficam existe ncialmente órfãos, desampa rados, sem um lar para onde sempre possam volta r. Deixam de ser peregrinos para se transformarem em errantes, que giram indefinidamente ao redor de si mesmos, sem chegar a lado nenhum." Papa Francisco, 2013, Evangelii Gaudium, 170.

Que crít ica deixavam transparecer os mes t res da suspeita à forma co mo se concebia, no cris t ianismo, a moral? Segundo Torralba, o que pretendiam os mestres da susp eita? O que permanece válido nessa pretensão? Segundo o mesmo auto r, que papel é rec onhecido ao cristianism o e que riscos resu ltar iam de o mundo se fechar à fé? Segundo o Papa Francisco, o que significa passa r de "peregrino a errante"? Como caracte riza o Papa a ideia de liberdade dos q ue cam inham "à margem de Deus"? Ap ós uma breve te nta t iva de resp osta a estas interrogaçõ es, valerá a pena a leit ura deste excerto de Cardedal , onde se abrem possibilidades de resposta e cenários de desaf ios para o encontro ent re a religião e a ética, numa soc iedade plura l como aque la em que vivemos.

"No nosso universo cultural, até ao começ o da modernidade a religião foi considerada a fonte determinante da ét ica. No j udaísmo, há uma unifi cação de t oda a realidade a part ir da revelação de Deus aos patriarcas e aos profetas, a qual conf orma tod a a acã o e toda a compreensão peia referência a Deus criador e a Deus legislador. A sua vontade, a revelação dos seus desígnios e a interpretação pelos sacerdotes e profetas eram a fonte e fun damento da moral, que englobava assim toda a vida. No cristianismo tem lugar uma separação radical de ordens , já que a adesão a Cristo não leva consigo a adesão a uma nação, a uma cult ura e a uma moral do povo ju daico, mas sim centra tudo na relação com Cristo. Na sua doutrina há uma clara separação da ordem política em relação à ordem religiosa, já que César pertence a um âmbito da realidade e Deus a outro; mas a moral vem toda ela determinada pela palavra de Cristo, pelo seguimento do seu caminho e pela identificação com a sua pessoa. A Idade Média é o expoente máximo de uma unificação do legal, do moral e do religioso. [oo.] Depois de Kant, sucederam-se outro s projetos, como os de Feuerbach e Marx, que, apelando precisamente a razões morais, reclama ram a negação de Deus ao pensar que a sua negação é condição necessária para que o homem seja livre. [oo .] Aceit e a difere nça e auto nomia, qual pode ser a colabo ração entre a ética e a religião? [oo .] A religião tem de dar o seu cont ributo positivo ao mesmo tempo que crítico para com a ética . A religião dá melhor razão da dimensão pessoal do homem, da sua necessidade de t ranscendên cia para um âmbito sagrado, no qual a verdade, a beleza e a santidade se conju guem e sejam objeto de um amor incondicional. A lei é absol utame nte necessária, mas por si só não faz o homem bom; este necessita de justiça, mas, ao mesmo tempo, de graça; verdade, mas, ao mesmo tempo, de misericórd ia. O homem não se redime a si mesmo e, sobretudo, não é capaz de carregar com as suas próprias culpas e de enf rentar confiante o futu ro absoluto . O homem necessita de viver de um dom que seja ao mesmo t empo perdão. Necessita de uma força superior à pró pria quanto tem de assumir as colinas negativas da existência (limite , culpa, sofrimento, morte...), compro missos e fid eiidades que lhe custam a vida, heroísmos e serv iços que, se não assumir, se to rnará indignificado." Cardedal. Olegàr io, 2013. Deus no cidade . Salamanca, Sígueme, pp. 142-150.

37

vero-es e Etics Cristã


-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - , I

o

que prete nde o autor afirmar ao dizer que alguns projetos reclama ram a "negação de Deus ao pensar que a sua negação era condição nece ssária para que o hom em fosse livre"? Ent re as novas gerações, esta co nti nua a ser a visão que se tem de Deus e do religioso? Porqu ê? O que pretende Cardedal afirma r com "o homem não se red ime a si mesmo e não é capaz de carregar com as suas próprias cu lpas e de enfrentar confiante o futuro absoluto"? Num tempo tão marcado pela dif iculdade em descu lpar e perdoar, qual o alcanc e destas palavras?

I I

I I

I

___ __ __ __ __ __ __ _ _ __ __ __ __ __ __ __ __ JI Síntese No que conc erne à relação ent re religiões e a ét ica, as religiões podem definir- se como religiões proféticas, místicas ou sapienciais. A moral cristã, não só não aprisiona a liberdade, como , ao falar da t ransce ndência, cria as condições para a verdade ira liberdade. Sem a religião, o homem é incapaz de encon t rar fo rma de se redimir e de encontrar uma fon te que lhe conceda o perdão . I

I

Educação r tere! e Religiosa Católica

38


r - -- - -- - -- - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - -- - - I

I

8. O que faz valer os valores?

I

39 I

Valo re s e Ética Crista


-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- , I

Quando nos propomos discuti r os valores, logo assoma uma série de lugares- comuns sobre os quais raramente ref let imos, mas que, em momentos dete rminantes de tomada de decisões, acabam por condicion ar e, eventualmente, conduzir a esco lhas erradas . São f requentes ideias como "os valores são relativos"; "Valores? Cada um tem os seus!"; "Questões de éti ca: cada um tem a sua opinião". Esta s e out ras afirmações, que surgem, muita s vezes, mais por necess idade de terminar uma discussão do que por genuína opção relativista , suscitam a obrigação de ref let irmos sobre o seu alcance e sobre o que será do âmbito objetivo e do subjet ivo. E fundamenta i que as ideias sejam clarif icadas, pois, de out ro modo, poderemos incorrer numa posição que Giovanni Sartori designava, no seu livro Televisão e pós-pensomento, co mo de 'ditad ura da opinião'. Todos têm opinião sobre o assunt o ainda que não saibam do que se está a falar. Um risco muito fr equente em sociedades que se presumem bem informadas, mas que, por falt a de tem po, não estruturam o pensamento. Como j á ante riormente se referiu, ao falar-se de 'valores', não temos de confinar, imediata mente , o conceito ao êrnbito ét ico, ainda que o uso tenda a proceder a esta presumida ident ificaçã o. Com efeito, o valor diz-se da condiçã o própria de algo que vale. Esta afir mação explicit a duas cond içõe s necessárias para que se possa falar de valor : um 'algo' a que se recon hece a validade e um 'sujeito' que a reconhece.

__ _ ___ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ ____ _ _ ___ _ _ _ _ _ _ J

"Usado em sentido concreto, valor designa o ser considerado 'valioso'; a pessoa hábil, a acão rápida , o obje to belo, etc .; em sentido abstrato, valor exprime a 'valida de' ou o 'valer', aquilo que torna valiosos os seres: nos casos citados, a habilidade, a rapidez e a beleza. No prim eiro caso, te mos o valor realizado; no segundo, o valor em si mesmo. Só o valor realizado é real; o valor em si, emb ora objetivo, isto é, abrangido pela esfera do ser, é 'ideal', não existe em si, mas apenas realizado nos seres válidos . Por outro lado, este s últimos são valorizados pelo valor de que são 'portadores': a estátua é bela graças à beleza, o j ogador é hábil devido à habilidade que possui , etc . Daqui resulta, conforme o aspeto considerado, a prioridade do ente sobre o valor ou deste sobre aquele; e levanta-se a questão do significado último desta dualidade. [...] o valor é um aspeto do bem, tanto no plano fenomenológico como no onto lógico. A 'essênc ia' fenómeno, lógica do valor, cons ist e na est imabilidade ou amabilidad e, «caráter das quais, que co nsiste em elas serem mais ou menos esti madas ou desejadas , merecerem mais ou menos est ima, satisfazerem a um certo fim» (Lalande). Por sua vez, a natureza onto lógica do valor reside na plenitude de ser ou de perfeição que lhe é própria . No sentido moderno do termo, valor acrescenta à referida noção de 'aspeto do bem' a ref erência a um sujeito (em última análise ao espírito): o valor vale 'para alguém'; a estima efetiva da 'importâ ncia' que o valor te m; f inalmente, certa 'exigência' de realização; o valor 'merece' exist ir (por isso é com desagrado e revolta que se vê destruir algo que se conside ra valioso)." Cabral, Roque, 2003, Temas de ~t;ca , Braga. Publicações da Faculdade de Filosofia - UCP, p. 150.

Educacão Moral e ReligiosaCatólica

40


r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- I

Esta mesma referência ao sujeito aparece num outro autor, que o diz de um out ro modo, sublinhando, ainda, a condição de inte rsubjetividade, reconhecida ao valor, ist o é, o problem a dos valores coloca -se pela necessidade da vida em com unidade, em que a co existê ncia obriga a co nsiderar um bem mais valioso do que out ro bem:

"Os valores aparecem, em primeiro lugar, como representações, que servindo de elo intersubj etivo, constroem o lugar de um mesmo mundo habit ável. Delimitam, assim , um espaço com unicacional a priori, que cada enco ntro efetivo confirma, infi rma ou modifica. Sem valor, não há comunicação possível; pois o elo social existe, apenas, quando se reat ivam os valores implícitos, aceitan do-os, ou propondo-os para reinterpretação. Assim, o prazer da conversação reside, indubitavelmente, na satisfação proporcionada pelas informações recebidas , ou na cumplicidade afetiva e inte lectual dos protagonistas. Mas, estes dois últimos f atores dependem, em nossa opinião, do facto de que cada um dos int erlocutores verifique, através do diálogo, que se reclama do mesmo sistema de referências e, consequentemente, partilha o mesmo mundo de valores. [...] exist ir é ocupar o lugar de uma ordem de valores, que surge como uma palavra antecedente, merc ê da qual se pod e tornar sujeito o que lhe corresponde. Seria inexato deduzir destes cons iderandos que os valores permanecem imutáveis pelo facto de serem apropriados. Como já se observou, estes desenrolam um horizonte ou enrolam-se em linha espiral. Estas metáforas poderiam iludir-nos, levando-nos a crer que os valores permanecem exteriores ao sujeito. Na realidade, o espaço por aqueles aberto, já está investido por este. E, o que é bem mais: só existe, ao ser atravessado pelo sujeito. Este é alienado pelo siste ma de valores, no sent ido simbó lico do termo: ou seja, t ransforma o seu ser em dever-ser, obriga-o a advir como outro." Resweber, Jean- Paul, 200 2, A fUosofia dos valores, Coimbra, Almedina, pp. 38 -39.

Este mesmo auto r afirma, a co nclu ir o seu livro A filosofia dos valores, que: l

_

"a transcendência dos valo res não designa um estado situado fora do nosso alcance, mas refe re um movimento, no sentido em que Heidegger o entende: o ato de uma abertura e de uma ultrapassagem , que são próprias ao ser-na -mundo. [...] Não são os valores que faltam no nosso mundo, mas são os sujeitos que f altam aos valores ." Resweb er, Jean- Paul, 2002 ,A filosofia dos valores, Coimbra, Almedina, p. 107.

r- - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - -

I

L

O que poder á enten der-se por "não são os valores que faltam no nosso mundo, mas são os sujeitos que falta m aos valores"? Diante do binóm io objetividade-subjet ividade a qual das duas atribui maior prevalência este auto r? Haverá riscos associados a tal escolha? Serão os valores predominantemente objet ivos ou pred ominantemente subjetivos? O que resulta de cada respost a? _

Sínt ese Valor define a condição que assegura que algo vale para alguém. Est a afi rmação salvaguarda. por um lado, a objet ividade desse algo sobre o qual recai a apreciaçã o e a intersu bjet ividade que é co ndição para o reconhecimento dos valores.

41

Valores e 1O!;ca Cristã


--- - - - - - ---------------------- - - - - , I

9. O que é o valor moral?

Ao contra no dos ammars, CUJo comportamento e co ndic tcnadc e descc ndicionado através do fornecimento de recom pensas em funçã o das respostas adequadas, o comporta mento humano é murro mais complexo, Infinita me nte mais livre e supõe uma constante escolh a entre as várias opcões que o quotidia no nos coloca

----

-

- -

-- - - - - - - - --- --- - - ---- -

--

--

~

Ao longo da histó ria, muitas foram as abordagens sobre como deveria definir-se o valor moral. A fim de elabo rarmos uma síntese que nos permita organ izar, de modo mais claro, a via que percorreremos, façamos um breve ret rato das principais tendências que procuraram estru turar o co nceito de valor mo ral.

"a) Tendência idealista . O valor moral reduzir-se-la a uma pura categoria mental f orjada pela pessoa que avalia os compo rtamentos huma nos. Encont ramo- nos, assim, diant e de uma corrente clarame nte subjetivista que nos remet e para correntes neokantianas' ou neof ichteanas-, b) Tendênc ia realista ou fe nomen ológica . Conside ra que nos valores é constatável um 'ser-em -si', independente do sujeito que avalia. Ta l realidade não se percebe por meio de um processo discursivo racional, mas por meio de uma cer ta int uição emotiva. to comum at ribui r esta posição a Max Scheler. . c) Tendência psicologista. Para ela, os valores são sempre relativos ao próprio sujei to que avalia. De facto, os valores fundamentam-se em inclinações, sint onias e afetos do sujei to.

Educação t loral e Religiosa Católica

42


r - - - - - -- - - - -- - -- - - - - -- - - - - - - - - - - -- I

1

2

Movimen to or iginado com a obra de Otto Liebmann (1840 · 1912). Kant e os epigonos (186 5). Que, con tra os materiali st as e os ideal istas. def endia o ret orn o a Kant. Situaram-se no âmbito dest e movimento as escolas de Marburgo (Hermann Cohen. Paul Nat orp) e de Saden (Wilhel m Windel band , Hemnch Ricke rt) . A f igura ma is destacada do neokantismo será , provavelmente, Ernst Cass irer, auto r de Filosofia dos formos sim bóli cos, on de suste nta Que o q ue distingue o homem do animal é o uso de símbolos.

Corrente emergente do pensament o de J.G.Fichte (1762-1814), pensad or idea lista alemão, defe nso r de que o agir "é, como se mpre, pura mente ideal , p or me io da represe nta Cão". Obras: Ensaio sobre a critico de toda a revelação, Fundamento do teoria tota l do ciência, Teoria do cencc.

J

4

5

6

O existencialismo ap re sentou - se, durante o s écu lo XX, em duas linha s ma rc adamente antagónicas: o existencialismo ate u, em q ue se destacara m J. P. Sar tr e (190 5-198 0) e Albert Camus (1913-1960) e o ex ist enci alismo crente, Kar l Ja spers (1883-1969) e Gab rie l Marce l (18 89-1973). O e xistencial ismo t em como concecão fundamen t al a de que o homem é um ser f inito. ati rado para o mundo, que se vê c ont inuamente afetado por situa ç ões problemát icas ou abs urdas. Pera nte as ab ordagens idealist as, kantianas, metaf isicas, que pa rtem do abstrato, da ideia, o existencialismo parte do concreto , da existênc ia. Corre nte de reacâo ao positivis mo , qu e se propun ha desc ob rir t odo um qua dro de ref erências (valores estéticos, valores mentais, libe rdade da pes soa, fi nalismo da natureza , t ranscendência de Deus) que co nstitu em 'o mu ndo do esp írito '. En t re os maiores preconiza dor es des ta concecà o. enc ont ram- se He nri Bergson (1859 -194 1), Prémio Nobel da Literatur a em 192 8, e Maurice Blon del 0 861 -1949), c onhec ido como o fil ósof o da acêo. corr ente que é um a variante do espi rit ualism o. Corrent e Que rec ol he do po sit iv ism o a con vic ção de Que não há ma is reali da de verd adei ra sobre a Qual se p ossam f orm ular afirma ções seguras senão ac erca do que está co loc ado (posto) dian te de nós. O neoposittvisrn o apro pri a- se desta co nvicç ão e ap lica-a ao con texto da ling uagem. O neopos iti vismo encontra a sua maior expressão entre os f ilósofos do Círculo de Viena - M. Sch lick (1882-1936), O. Neura th (1882 -19 45), R. Carn ap (1891-1970) - cuja t ese f undament al era a de que só pod em veri ficar-s e emp írica e tatic ame nte as afi rmações das ciências emp íricas . Pós-moder nid ade - conceito que tem em J. F. Lyotaro um dos seus mai or es preco nizado res. Consist e na descri ção da c ult ura contemporânea como te ndo gerado um pens ame nt o débil. inca paz de se supo rt ar em valores e ide ias lógic as e coe rentes. Defi nir a contem p oraneidade como p ós- moder na é situá -Ia por referên cia à modernidade em rela çã o a cujo rac ionali smo reage pela afirmação da em oção e dos afetos. ~ a época da fa lên cia da razão.

43

" 'alaras e Ética Cri s ta

d) Tendência soci ológica. Os valores éticos seriam meros factos soc iais, sempre relat ivos, que se reduzem a 'valorações'. Assim, para o marxismo, os valores seriam funções da infraest rut ura económica e social, ainda que seja certo que também no seu seio subsistiu sempre um aspet o humanista . e) Tendênci a exist enclaíista' e liberal. Coinc idem ambas as tend ências em afirmar que os valores são criados pela liber dade, sem referência a um conteú do objet ivo concreto . A pró pria liberdade é o valor éti co por excelência e o quadro f ormal que possibilita os valores. f) Tendência metafísica e espi rituallsta", Os valores éticos são sempre valores part icipados. Têm uma refe rência fundamenta l ao absoluto. De facto, pode dizer-se que o valor é uma revelação do absoluto. Em Deus dá-se a identidade do ser e do valor.

g) Neoposlt ivista", Os juízos de valor não são outra coisa senão expres sões de emoções subjetivas. h) Pós-m od erna". Os valores, se é que são reco nhecidos no âmbit o ind iferenciado do 't udo vale', reduzem-se a int uições subj etivas e intransferíveis, dete rminad as pela apreciação pessoal das sit uações em virtude do seu apelo aprazível ao indivíduo. Na realidade, todas estas t endências podiam agru par-se em três teorias axiológicas principais: a) Os valores éticos estariam fora do homem e da cultu ra. Seriam independentes em relação ao ser humano. [...] b) Out ra teo ria conside raria que os valores se situam dentro da própria cultu ra, com o algo que surge das suas t ransformações. Na realidade são produtos humanos. [...] c) Out ra t eoria, po r f im, considera os valores como algo interior que const it ui o espec ífico do homem . [...] Uma tal conceçã o tem o mér it o de vincul ar a éti ca à ant ropo logia , mas nec essita de um corretivo se é que não pretende co nsiderar o ser huma no no seu isolame nt o auto ssuficiente, como alheio à socieda de e à cultu ra. De facto esta conceção antropocêntrica do valor t orna necessária referência ao nó das relações int erpessoais; a relação que resulta do encontro com o outro, com os outros seres humanos e com o Absolutamente outro." And rés . José Rom én Flecha. 1997, Teologia moral fundame ntol ,

Mad rid, BAC. pp . 222·2 23.


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ----- , I

A aborda gem de Romén Flecha conclu i com uma nota que j usti fica toda a reflexão que vimos fazendo: sem a dimensão de abert ura aos out ros e a Deus, a teoria dos valores fica sem a sua pedra angular e incompleta. Com este ponto de referência, que suporta a compreensão sobre o que devam ser os valores morais, torna-se com preensível qu e Azpitarte af irme o caréte r to talizador que reveste m os valores éti cos . - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~

"[...] pode ríamos definir o valor mor al como aquela qualidade inerente à conduta que a faz aut ent icamente humana , conforme à dignidade da pessoa , e de acordo, por isso, com o sentido mais profundo da exist ência. Precisamente por este caráter int egral e tota lizado r, o valor ét ico encont ra-se semp re e em todas as partes presente, como uma urgência que nunca abandona, como uma chamada constante que convida a seguir a sua voz, como um teste munho que recorda aos ouvidos e est imula a dec isão. Será lícit o renunciar a out ro t ipo de valores porqu e não encai xam na est rutura psicológica de uma pes soa concreta, mas ninguém pode excluir as exigências de um valor ét ico, porqu e o que agora está em jogo é a sua própria dignidade." Azpitarte, Eduardo LOpez, 2003. Para uma nova visão da é tica cristã , Santander, Sal Terrae, p. 114.

---

- -

- -- -

- - - - - ---

-

-

--- - -

-

- -

-

-

-

-

-

-~

I

Sínt ese O autor enuncia como car acte ríst icas do valor moral as seguintes: • inerente à cond uta humana. Assim, toda a conduta genuinamente humana (consciente) é moral; • inerente ao sent ido mais profun do da existência - integra-se, aqui, a convicção de Séneca, segundo a qual "não hé vento s favoráve is para barco sem destino". O valor dos atos humanos está estrei tamente unido à sua cond ição de portadores de realização, isto é, se contribuem ou impe dem a realização do humano que há no sujeito ou nos demais. • é totalizador - não se circunscreve a uma part e ou dimensão do huma no: envolve-o tot alment e.

Educ ação r 10ral e Religiosa Católica

44


r - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - I

10. As tipologias dos valores

.-

- - - - - - - -- -

- --

- - - - - - - ---

--

- - -- - - -

Ao longo da história , diversos foram os autores que se propuseram criar t ipologias dos valores. Assim aconteceu com Max Scheler, que organizou os valores em valores úte is, vita is, lógicos, estéticos , éticos e religiosos, ou com Rescher, que enunciou seis princípios cons iderados como crité rios para a classificação dos valores, a saber, classificação segundo o subscr itor do valor (valores pesso ais, prof issionais ou nacion ais), segundo o objeto valorizado, segundo o benefíc io gerado, segundo o objetivo visado, segundo a relação ent re quem subscreve e quem beneficia ou segundo o impacto do valor nos outros valores. (Cfr. Filipe Almeida, 2010, ~tica, valores humanas e responsabilidade soc ial das empresa s, Cascais, Principia, p. 158) Tornou-se , porém, particularmente reconhecida e clássica a t ipologia de Jo hannes Hessen, que passamos a descrever, sumariamente.

45

va'o -es e Étic a Cristã


-- - - - - - - - - - - - - - - ------- - - - - - - - - - --, I

10.1. Tipologias de valores, segundo Johannes Hessen "Podemo s classif icar os valores de um dupl o ponto de v ista: formal e material. Do pont o de vist a formal, os valores dividem-se como segue: 1 - Positivos e negativos. Valor positi vo é aquele que mais geralment e cost umamos designar pela expressão pura e simpl es de 'valor'. O conce ito de 'valor' é geralmente usado numa dupla aceção: umas vezes, entende-se por esta palavra o valor em geral, independentemente da polaridade valor-desvalor, como conceito neutro, outras vezes entende-se só o seu aspeto positivo cont raposto ao negativo. Ao valor positivo contrapõe-se o negativo, chamando-se então a este mais propriamente 'desvalor'. Esta polaridade pertence à própria estrutura essencial da ordem axiológica, que assim se distingue fundamentalmente da ord em do ser a que é est ranha uma tal est rutura .

2 - Valores das pessoas e valores das coisas, ou valores pessoais e reais. Valores das pessoas ou pessoais são aqueles que só podem pertencer a pessoas, como os valores ét icos . Reais (de res ['coisa', em latim]) os que aderem a obj etos ou coisas impessoais, com o os das coisas ditas valiosas, designadas mais geralmente pela expressão 'bens '.

3 - Valores em si mesmos, ou autónomos , e valores derivados de outros ou depe ndentes . O valor em si reside na sua mesma essência; possu i esse carácter com independência de todos os outros valores; não depende deles; não é meio para eles. Como todos os valores se acham referidos a um sujeito - o sujeito humano, o homem - e este é, antes de mais nada, um ser cons tituído por sensibilidade e espírito, daí o poderem classificar-se imediata mente todos os valores nas duas classes fu ndame ntais de: valores sensíveis e valores espirituais. Os primeiros refer em-se ao homem enquanto simples ser da natureza, os segundos ao homem como ser espirit ual.

A - Valores sensíveis. A est a categor ia pertencem: 1 - Os valores do agradável e do prazer, também chamados 'hedó nicos'. El a abrange, não só tod as as sensações de prazer e sat isfação, como t udo aquilo que é apto a provocá-Ias (vest uário, com ida, bebidas, etc .). À ética, que apenas conhece estes valores, chama-se geralmente hedonismo. 2 - Valores vitais ou da vida. São aqueles valores de que é portadora a vida , no sentido nat uralista desta palavra, isto é, Bios ['v ida' , em grego]. Cabem aqui o vigor vital , a força , a saúde , etc . Como se sabe, foram estes os valores que Nietzsche reputou os mais elevados de todos na sua escala axiológica, como os únicos mesmo. t: ao que se chama biologismo ético ou naturalismo. 3 - Valores de ut ilidade. Coincide m com os chamad os valores económicos. Referem-se a tudo aquilo que serve para a satis fa ção das nossas necessidades da v id a (comida, vestuá rio, habitação, etc.) e, ainda, aos instrumentos que servem para a criação dest es bens. Distinguem- se dos restan tes valores desta classe, nomeadamente dos sensíveis, para os quais aliás conco rrem, por não serem, do ponto de v ista formal, autónomos, mas der ivados, no sentido que acima vimos.

Educacão r torar e Reüeiose Católica

46


r - - - - - - - - - - - -- -- - - - - - - - - - - - - - - - --- I

B - Valores espirit uais. Est es dist inguem-se dos valores sensive rs, no seu conjunto, não só pela imaterialidade que acompanha a sua perdurabilidade, como pela sua absoluta e incondicional validade. Muitos f ilós ofos, que encaram os valores só por este último lado, identificando-os por isso com o conceito de simples 'valor' ou validade formal, pretendem que só os valores espirit uais são verdadeiros valores . Porém, quem se lembraria de negar aos economistas o direito de usarem também o termo e o conceito de valor? À categoria dos valores espirituai s pertencem: 1 - Valores lógicos. Quando se fala de valores lógicos , é preciso ter presente que se pode m entender por esta expressão duas coisas dist int as: a fun ção do conhecimento - o saber, a posse da verdade e o esforço para a alcança r - e o co nteúdo do con heciment o. No primeiro sentid o, é óbv io que podem os falar, com todo o direito, em valores lógicos ou no valor do conh ecim ento. Contrapor-se-Ihe-ão, como desvalor lógico, a ignorância, o erro, a falta de interesse pela verdade, a ausência de esforço para a alcançar, etc . Mas a expressão 'valor lógico' pode significar também o próprio conteú do do conhecime nto. E, nest e segundo caso, é 'valor lógico' tudo aquilo que cai dentro do par de conceitos verdadeiro-fa lso [...]. 2 - Valores éticos ou do bem mora l. Destes podem dar-se as seguintes características: a) Só podem ser seus por tadores as pessoas , nunca as coisas . Só seres espirituais podem encarnar valores morais. Por isso o âmbit o dest es valores é relat ivamente rest rito; muito mais, por exemplo, que o dos estéticos. b) Os valores ét icos aderem sempre a supo rte s reais. Também, por este lado, se distinguem dos valores estéti cos, cujo suporte é constitu ído por algo de irreal, de mera aparência. c) Osvaiores éticos têm o caráter de exigências eimperat ivos absolutos. Delesdesprende-sesempre um categórico 'tu deves fazer' ou 'tu não deves fazer', isto ou aquilo; exigem, imperiosam ente, que a consciência os ate nda e os realize. E nisto se separam também dos estéticos que não impõem nenhuma exigência desta natureza , nem se nos impõem incondi cionalmente. d) Os valores éticos dirigem-se ao homem em geral, a todos os homens; são universais, a sua pretensão a serem realizados é universa l. Os estét icos não estã o neste caso, apenas dirigem o seu apelo a alguns homens, para que estes os realizem, e nem todos podem ser obrigados a dar-lhe acolhimento, a fazer art e, ou a cultivá-Ia de qualquer maneira. e) Além disso, é, pode dizer-se, ilim itad a também a exigência que os valor es ét icos nos fazem: consti tuem uma norma ou crité rio de conduta que afeta to das as esferas da nossa ati vidade e da nossa co nduta da vida. Esta acha-se sujeita, tot al e incondicionalmente, a eles, na sua imperiosa ju risdição e validade. Nada deve ser feito que os co nt rarie. Poderia definir-se esta característica dos valores ét icos chama ndo-lhes totalitários. Não são assim os valores estéticos . Estes só reclamam de nós que os realizemos em certas situações e momentos da vida, permanecendo calados duran te os restantes; não somo s obrigados a ser estetas e, menos ainda, a toda a hora (...l. 3 - Valores estéticos, ou do Belo. Incluímos aqui no conceit o de belo, no mais amplo sent ido desta palavra, o sublime, o trágico, o amorável, etc . 4 - 'Valores religiosos' ou do 'sagrado'. Já at rás aludim os ao que há de original nestes valor es. A eles não adere prop riamente nenhum 'dever ser'. Não temos de realizar esses valores; nem isso é poss ível nem necessário. Não são valores de um 'deve ser', mas valores de um 'ser'; Nisto se afastam dos valores éticos para se aproximarem dos estéticos, com os quais estão numa relação muito ínt ima. Todavia, existe ta mbém entre eles e est es últimos, uma diferença que cum pre salientar: a realidade do 'sagrado' não é, com o a do 'Belo', apenas uma realidade aparente, mas uma realidade no mais eminente sentido desta palavra." Hessen. Johannes, 1980, Filosofia dos Valores, Ed. Arménio Amado, Coimbra, pp. 107-117.

47

Valores e E:tica Crista


------ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- --- , I

10.2. Uma síntese "A maior parte dos valores apresentam b ipolaridade, um pa lo positivo e outro negativo: be lo/ / f eio, agradável/desagradáve l, bom/ mau, etc.; ma is exatamente, será falar em va lores (pos itivos) e antiva lores (expressão preferível à de 'valor negativo', pois que o antiva lo r, em rigor, não 'vale', cont rariament e ao que pret ende, por exemplo, R. Polin). Heterogeneidade: além disso, os va lores diferem qualitativamente, não se pode ndo encontrar entre eles um 'denom inador comum' (como o pretendeu J . Bentham); e, na sua heterogeneidade, os valores apresentam-se, e são objetivamente hierarquizados, seg undo o grau de ser e de pe rfeição de cada um. Clas sificação: a het erogeneidade classificações e escalas de valores.

e

hie rarqu ia

acima

referidas

fu ndamentam

diversas

Do pont o de v ista for mal, podemos dividi-los em positivos ou negativos; das pessoas, ações ou coisas; autónomos ou derivados. Do ponto de v ista material, pode elaborar-se, entre outras, a seguinte classificação, estabelec ida com base na relação dos valores à pessoa humana: a) valores 'gerais', ta is como existência, indi vid ualidade, etc.; b) valores de utilidade, redutíve is a outros porque deles derivados; c) valo res 'infra -humanos' (sem sentido pejorativo): bio lógicos, da sensibilidade, etc.; d) valores humanos inf ram orais: económicos, eudemónicos, noéticos, estéticos, etc.; e) valores mo rais, que afetam o sujeito naquilo que ele é mais 'ele mesmo': o exercício da sua liberdade; f) va lores religiosos que o atingem na sua relação com o pr incípio supremo do valor e do próprio sujeito." Cabral, Roq ue, 2003, Temas de t tico, Braga, Publica ções da Fac uldad e de Filos of ia - UCP, p. 150-151.

Tipologias dos valores - âmbito formal Valores Posit ivos (valores)

I

Negativos (contravalores)

Valores Pessoais (das pessoas)

I

Rea is (das coisas) - bens

Valores Autónomos (em si mesmos)

I

Derivados (dependentes)

Valores Hedónios

I

Sensíveis Vitais

I I De ut ilidade I Ló aicos I

Esnirituais Éticos I Estéticos I Rei igiosos

Nesta organ ização tipológica, tenha-se em conta que os valores éticos são situados no ãmbito dos valores espirituais, sendo de verificar que o autor os reúne presumindo os t ranscendentais clássicos, como já anteriormente se referia: o ser é verdadeiro (valores lógicos), bom (valores éticos) e belo (valores estéticos), podendo considerar-se, mesmo sem que o autor tal refira, que os valores religiosos, ao referirem-se a Deus como Be m, Verdade e Beleza, conciliam estes t rês t ipos de valores. Tendo em conta a tipologia acima enunciada, verifica-se que as abordage ns que pretendem sustentar a eticidade nos árnbitos do 'útil', do 'hedónico', ou do 'vital' reduzem os valores éticos de um àrnbit o definido como o dos valores espirituais ao arnbíto dos valores sensíveis, Essa não é a perspetiva aqui sustentada, ainda que não deva considerar-se que quem não é crente não a possa subscrever. Isso é, aliás, defendido no texto de Enzo Bianchi, que abordamos mais adiante. Antes, porém, anal isemos dois problemas éticos, com recurso às tipologias apresentadas.

Educação r.1ora l e Relig iosa Cató lica

48


r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - I

10.3. Dois problemas éticos à luz da tipologia dos valores

'"I

E

.!!!

~

o .c

""'C

-õ >

8c

'"

~

~ ~

.

. _ Breve descriç ão do problema

As téc nicas de diagnóst ico pré-nata l, cada vez mais efi cazes, permitem identificar, prec ocemente, doenças e caracter ísticas dos nascituros. Do mesmo modo, exist em técnicas que diminuem a mo rta lidade mate rna associada à prática abortiva (ainda que não elimi nem , na tot alidade, essa possibilidade). Esta s circunstàn cias médicas, asso ciadas a mudanças legislati vas, desde o célebre caso de Roe vs. Wade (1 973), nos Est ados Unidos da Amé rica, vêm favo recen do a predisposição para aceitar a prát ica do abortamento volu nt ário. Em Port ugal, após a realizaçã o de dois referendos (em 1998 e 2007), a legislacão nacional, que previa, desde 1984, a despen alizacão do abort ament o voluntá rio, em casos de malformaçã o, violação ou conflito entre a vida da mãe e do filho, prevê, des de 2007, a possibilidade do abort ament o a pedido da mulher, até às dez seman as de gest açã o. As circunstàncias de legalização desta práti ca não diminuíram a percecão de que a dimensão ét ica se dist ingue da dime nsã o j urídica, pelo que a inter rogação sobre se esta prática é moralmente ace itáve l se man tém válida e at ual.

49

k :,,;,;,;, I~.~, A.,,;~ · A favor da ac eit ação desta prática invocam -se diversos argumentos, deque pod em referir-se os seguintes : 1 - Porque a vida do nasci tu ro se prevê infeliz ou ma rcada pelo sofrimento (em caso de malformação); 2 - Porque a vida do filho resulta de uma relação não prevista , que o t orna não desej ado; 3 - Porque a mãe t em direito a decidir sobre o seu corpo; 4 - Porque o filho é abor ta do numa fase em que ainda não sente.

Valores e f:.tica Crista

-I

À luz da t ipologia acima apresentada, pod e constata r-se a seguinte f alha argumentativa: 1 - Este argument o sobrepõe os valores vitais, neste cas o, a saúde , que são da ordem dos valores sensíveis, aos valores espi rituais, a saber, os valores ét icos, que se constituem como exigências ou imperativos absolutos. 2 - Este argumento reduz um valor éti co (a dignidade de uma pess oa - o fil ho) à categoria de valo r de uti lidade (da ordem dos valores sensíveis). O fi lho vale se for útil, neste caso, se corr esponder ao desej o dos pais. 3 - Este argum ento confu nde a categoria dos valores das pessoas com a dos valores das co isas , ao redu zir o filho à co ndição de bem possuído pela mã e. 4. O argumento, apesar de se apresentar com uma formulação diversa, con tém o mesm o erro de raciocínio do argume nto 1. Redu z a dignidade da pes soa humana à condição de realizaç ão dos valores vitais. Numa hierarquia, o valor mais fu ndam ent ai - a existênc ia da pessoa - é subordinada à qualidade de vida.

Contra

~ O abortamento vol untário é considerado moralment e errad o à luz do reconhecimento de que a dignidad e da pessoa hum ana é um valor ét ico com caráter de exigência e imperativo absoluto .

À luz das t ipologias aci ma descr ita s, for ma i e materia lmente, o argumento enco ntra a sua validade no facto de respeitar a hierarq uia que sobrepõe os valores espirituais aos sensíveis e qu e, entre aquele s, res peita o carát er abso luto dos valores ét icos .


--- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

.s ~

~ .S! TI Q)

E I co

i? ii:

Imagine-se uma família em que o primeiro filho nasce portador de uma doença grave. Após o nascimento, os pais são informados de que só poderão curar o fil ho recorren do a doação de órgãos compatíve is, mas que tal só será possível através de órgãos doados por um irmão que seja tota lmente compatível. Ta l comportará , no entanto, que o doador possa perder a vida ao doar o órgão pretendi do. São, por isso, informados de que tal intervenção só será possível gerando um filho, cuja gestação seja interrompi da e retiradas as células em fase que permita o seu ajuste ao órgão doente. Como deverão proceder estes pais?

Muitos, diante do cenário t raçado, consideram que os pais tudo devem fazer para oferecer a saúde àquele fi lho. Nem que tal comporte sacrificar um segundo filho, que ainda não veem e que não tem nome.

o recurso às tipo logias em estudo permite- nos conc luir que estamos diante de uma submissão dos valores éticos aos valores da utilidade. O segundo filho é um instrumento para valer ao primeiro. Mais ainda, e acrescentando dados já enunciados ao longo dest a unidade, estamos diante de uma identif icação ent re o que 'pode' ser fe ito e o que 'deve' ser feito. O domínio do ético não é coincidente com o domínio do técnico. Poder fazer nem sempre signif ica ter direito a fazer. Mais ainda, trata -se de um racioc ínio que legitima os meios com base na bondade dos fins, mas os fins não just ificam os meios, de acordo com a tipologia em análise.

A luz deste modelo de anál ise, sugere-se a aplicação a out ros temas de discussão atua l: eutanásia, clonagem, legalização das drogas (leves ou duras), reprodução medicamente assist ida (homó loga - com gáme tas do casal; heteró loga - com gâmetas de fora do casal), tr ans plante de órgãos, legalização da prost ituição, adoção de crianças po r pares do mesmo sexo, etc. Deverá, porém, considerar-se que esta é uma abordagem fundamenta lmente formal, sendo necessário te r em co nta dados sobre os quais se refletirá, ao longo desta unidade, os quais facultarão os elementos de ordem mate rial' que j usti fica rão muitas das escolhas e decisões sobre os assuntos a analisar.

7

Os que se posicionam numa abordagem de recusa do recurso a este meio afirmam que cada filho éumfim em si mesmo, nâo podendo, de modo algum, ser reduzido à condição de meio.

O argumento descrito salvaguarda a universalidade do imperativo que ordena que se considere cada ser humano como um fim e nunca com o meio. O valor ético aqui em causa, a dignidade humana, é reconhecido na sua dimensão universal e no seu caráter 'tota litár io': abrange a totalidade da vida, seja qual for a idade ou circunstância.

Refer e-se, nesta propo sta de at ividade, que à abordagem formal se acrescentem elementos de ordem material. Esta relação e ntre o formal e o material pode compreender-s e tendo em conta que, quando se faz uma discussão, há que co nsidera r 'como' se pen sa e 'po rqu e' se pensa de

determ inado modo. A discussão sobre 'como' se pen sa é de orde m formal, te m a ver com a estrutura, a orga nizaçã o do pen samen to, a veri ficação d e se

tem ou nã o lógica. Já a discussão sobre 'porque' é que se pe nsa de dete rminado modo analisa os fundamentos e as razões que justificam os raciocín io s.

-------- - - - - - --- - - - - - - - - - - - - - ---- , 10.4. A ética como desafio de toda a humanidade

I

A ética cristã não se define, primeirame nte, pela especificidade do que propõe, mas pelos fundamentos que sustenta m as suas propost as. Enzo Bianchi subl inha que, pela sua capac idade de fazer e procurar o bem , todo o ser humano está abert o à descoberta do que o Cristianismo protege com as suas propostas éticas . Contudo, a coerência e coesão do pensamento ét ico cristão colide com as tentações ut ilita ristas ou das éticas teleológicas, que def inem o bem à luz da qualidade das conseq uências dos atas. Que equi líbrio é possíve l entre o esforço de tornar compreensível a ét ica cris tã nas sociedades contemporâneas e o deve r de proteger valo res indisponíveis?

Educação t.tcra l e Religiosa Católica

50


r- - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - -I

I

"É inegável que a Igreja se quer pôr ao serviço dos valores que ela considera perd idos ou ameaçados: se este serviço se converte em luta, é porque a Igreja quer defender o homem na sua globalidade, para que este possa viver em plenit ude. Para a ética cristã, que nunca contradiz uma ética humana, o homem é um ser histórico, temp oral: é óvulo fecundado, embrião, criança, adolescente, j ovem, adulto, ancião , moribundo... e em cada etapa deste processo de vida o ser humano possui a sua dignidade e os seus direitos . [...] Para a Igreja, existe um 'já lá' ético, anterior ainda à fé cristã, e este 'já lá' é que se torna o campo de encontro e de recon hecimento recíproco entre crentes de diferentes religiões e não crentes , homens e mulheres, que reivindicam com convicção a possibi lidade de uma capac idade e de uma experiência ética, inclusive sem fundamentos religiosos, antes derivados do human ismo parti lhado. Creio que, para a Igrej a, é importante reaf irmar sempre que o homem, «criado à imagem e semelhança de Deus», é capax bani, capaz de discernir o que é bem, seja ele cristão ou não; que o homem é dota do de uma espécie de gramáti ca co mum, de silabário comum a t odos, que permite fazer o bem e rejeitar o mal: algo, em suma, de consti tutivo do própr io homem. E, hoj e, é igualment e importante, para a própria sobrev ivência do homem , reaf irmar esta possi bilidade de uma ética partilhada: a ideia de que a ética é apenas uma superst rut ura individual que cada qual pode por si construir e gerir em tota l liberdade, sem ter a preoc upação de moldar, com exigências éticas, a vida pública e social ou política , é, de facto, uma ideia desumanizante. [oo.] A ética, hoje, mais do que nunca, não pode obedecer à lógica do uti litarismo, segundo a qual é moral aquilo que pode serv ir, ser útil de uma maneira ou de out ra, e o agir humano é bom ou mau de acordo com a prevalência das vantagens ou das desvantagens, dos ganhos ou dos custos . De modo semelhante, a ética não pode obedecer apenas à lógica de uma maioria puramente numérica." Blanchl, Enzo,2009. Poro uma ética partilhado, Lisboa, Pedra Angular, pp. 83, 86-8 7.

o autor refere que "a Igreja se quer pôr ao serviço dos valores que ela considera perdidos ou ameaçados". A que valores se referirá o autor? Identifica sttuac ões em que se verifica essa "perda" ou "ameaça", Como interpretar a afirmação de que "a ideia de que a ética é apenas uma superstrutura individual que cada qual pode por si construir e gerir em tota l liberdade, sem ter a preocupação de moldar, com exigências éticas, a vida pública e social ou pout tca. é, de facto, uma ideia desumanizante."? A dificuldade que a ética cristã encont ra, nas sociedades contemporâneas , fica a dever-se a fatores associados ao 'modo' ou ao 'cont eúdo' do que transmite? Que discussão suscita est a interrogação?

Síntese Os valores podem organizar-se, em termos for mais, isto é, numa ab orda gem que não atende ao co nt eúd o, do seguinte modo : • positivos ou negati vos (cont ravalores); • pesso ais ou reai s (das cois as): • autón omos ou derivados. Os valores podem, em t ermos materiais, quanto ao seu conteúdo, ser organizad os em: • valore s sens íveis (qu e englobam os valores hed ónicos, vitais ou de ut ilidade); • valo res esp irituais (que eng lobam os valores lógi cos , éticos, estét icos e religiosos). Uma adequad a hiera rquia de valores deve dar prevalência aos valores espiritua is em relação aos valores sensíveis, definindo -se, assim, um crité rio que permit e estru t urar con dições para a crít ica sob re as opçõ es ét icas pessoais.

I

51

Valo res e Et ica Crista


- - - - - - - ------ - - - - - - - - ---- - - - - - - - - - , I

11. Como emergem os valores no sujeito? Como se situa diante deles o sujeito humano?

-- - - - - - - - -- - - --- - - - - - - -- -- - - -- - - - l "A apreensão ou captação dos valores: a ideia de perfeição e, com ela, a de valor, só se nos t ornam inteligíveis mediante certo dinamismo, pelo menos ideal: 'perfeito' é o ser 'acabado', feito-até -ao-fim (pe r factum). A apreensão do valor pressupõe uma tendência, anterior a qualquer conhec imento ref lexo: a realidade é percebida como válida ou não, segundo responde ou contradiz

Educação Moral e Religiosa Católica

52


r ------- - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - -- -I

I

essa tendência; tal acordo ou contradição não é, porém, objeto do conhecimento, mas sua condição subjetiva; o que é conhecido é a 'projeção' deles no ser em questão, o qual aparece assim 'revest ido' devalorou deantivalor. Finalmente, convém observar que um valor não é 'conhecido' a não ser no ato em que é efetivamente 'apreciado', valorizado; ato que não se lim ita ao puro 'pensar'. Encontramo-nos aqui perante a diferença entre 'saber' (to know) e 'realizar' (to realize), muito desenvolvida por H. Newman (1801-1890) e frequente nos autores espirituais: «conhecer um ser amável sem o amar é desconhecê-lo», disse S. Agostinho." Cabral, Roque, 2003, Temas de t tlca, Braga. Publicações da Faculdade de Filosofia - UCP, p. 151 .

IL

_

"Sendo transindividual, o valor é comunicável; digamos melhor que é o lugar de toda a comunicação. Le Senne diz que é contagioso; escreve também que é 'atmosférico', querendo significa r com isso que não é identificável com a presença bem circunscrita dos objetos exteriores. «O valor deve dizer-se atmosférico po rque não está feito de partes, não se encerra em certos limit es, impregna, difunde-se». E isto porque [..] é o horizonte que torna possível toda a atividade comum e que nos reúne numa tarefa comum; significa ao mesmo tempo a abertura do espírito e do mundo." Simon. Renê, 1987, Morol. Barcelona , Herder, pp. 11 1~112 .

Este auto r acrescenta, mais adiante, q ue:

"«a evidência que podemos ter do valor não é somente, como queria Descartes, obra de um espírito puro e atento, mas sim que a atenção ao vaior é já uma tomada de posição existencial ante ele. Se existe, pois , uma conaturalidade básica entre o homem e o valor, que não é mais do que o ordenamento (tendência) da vontade para o bem humano, esta atracão é suscetível de se desenvolver até converter-se em atitude de herói e de santo». Neste caso, à conaturaiidade que permite a emergência dos valores do humano, envolvido em contextos que favorecem a sensibilidade ética , acresce a reflexão que lhe confere contornos sólidos e os explicita. Porém , «se [...] o homem é capaz de inventar a sua relação com os valores e o seu próprio universo de fins, e uns e outros lhe aparecem como tais porque ele é assim, compreender-se-á que a incidência dos elementos afetivos possa falsear a perceção dos verdade iros valores. O espírito possui o temível poder de se fechar à sua luz; este poder pode ir desde a simp les indiferença à hostilidade declarada»." Simon, Renê, 1987,Moral, Barcelona, Herdar, pp. '1 5-122.

53

Valores e Ética Cristã


----------------- ---------------- - , I

I

Nestes excert os, os autores t ransmitem três ideias fundament ais a reter: • os valores têm ante rioridade objetiva em relação a um suje ito, exigindo -o, porém. Não é o sujeito que cria os valores. O suje ito sente-se reconhecido e ident if icado, de forma conatural, pré-rac ional, naquilo que os valores protegem. A adesão aos valores tem um caráte r espontâneo. Como é vu lgar afi rmar-se , "podemos não saber def inir o que é a j ustiça, mas to dos recon hecemos uma inj ust iça"; • a esta emergê ncia por conat uralidade que é fome ntada pelo context o 'atmos férico', como se se t rat asse de um 'ar que se respira', suced e a reflexão que confere caráter explícito ao que aconte ce, pr imariame nte, como algo não determ inado pelo suje ito; • o suje ito, por mot ivos que se repercutem no of uscamento da consciênc ia moral, pode recusar os valores, seja po r indiferença, seja por opos ição e recusa fro ntal.

-- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

Neste contexto, poderá merecer ref lexão interessa nte (individual ou em grupos) verif icar como se procedeu, ao longo da história, para desenvolver a insens ibilidade ética para co m comportame ntos e atos que eram claramente desumanos (a escravatura , a to rtura , a perseguição dos que não t inham a mesma fé, etc .). Poderíamos falar, aqui, quer de 'cultu ra ética' (utilizando o conce ito de cultu ra de Marcel lo de Azevedo' , susten tada no seu livro Viver o fé num mundo plu ral quer de 'parad igmas' morais' (na linha do pensamento de Hans Küng): est aríamos sempre a referir- nos a toda uma atmosfera de promoção do desrespeito pelos valores ético -mora is que não se sustent a, apenas, em disc ursos racionais. Há muitos fatores de ordem afetiva e pré -racional que ent ram aqui em j ogo. Veja-se, a tít ulo de exemplo, como a sucessão de noticias, de estatísticas e de informações, nem semp re adequadas, favorece u, em Portu gal, a part ir da década de 90, uma cultura anti-natalista e favoráve l ao aborto. Estas são situações que co nf irma m o teo r dos textos acima apresentados .

11.1. O fulcro: os valores espirituais (lógicos, estéticos e éticos) formam uma unidade a respeitar

- -

- -

- -

-

- .,

a Refertrno-nos. aqui, ao livro Viver a fé num mundo plural, Discrepóncias e convergências , 1993, Estella, Editorial Verbo Divino, onde

o autor apresenta uma definição de cultura que encontrou ress onânci as em muitos estudos e auto res: "Cultura é o conjunto de sent idos e significações, de valores e padrões , incorporados e subjace ntes aos fenómenos pe rcetlveis da vida de um grupo humano ou sociedade concre ta . Este conju nto, consciente ou inconsciente, é vivido e assumido pelo grupo como exp ressão própria da sua realidade humana e vai passando de geração em geraçã o, conse rvad o tal como foi recebido ou t ransformado efetiva ou pretensamente pelo próprio grupo." (pp. 66-67) 9 Hans Küng vem toma ndo como conceito estruturante da sua ref lexão, já desde a sua obra Teologia para a pós -mo derni dode (1987), o de paradigma, que ele recolhe de Thomas S. Kuhn: "Paradigma é «toda uma constelação et c., de convicções, valores, técnicas, part ilhados pelos membros de uma determinada comunida de»." (p. 142) - Teologia para a pós-modernidade . 1989, Ma drid, Alianza Editorial.

Fica claro, após a análise que vimos fazendo, que a com preensão sob re a et icidade decorre da co mpreensão sob re a realização do ser. Dito de out ro modo, o que 'deve ser' deve respe itar a natureza do 'ser'. O dever ser (pró prio da ét ica) resulta da objetividade daquilo que é. Muita s discussões do foro ét ico nascem do esq uecimento dest e ponto de part ida. Discute-se sem ter em conta a natu reza própr ia daquilo de que se fala. A mor alidade dos atos pode vislum brar-se à luz do fim próprio do ser humano, à luz da natureza própr ia da humanid ade. Exemplif iquemos: mat ar alguém é moralme nte errado porque o impede de ser, de contin uar a realizar-se. Insultar alguém é imoral porq ue as palavras não são indiferentes e geram, em quem as ouve, sentimentos que, ou o fazem cresce r, ou dim inuir. Os insultos fazem-no diminuir, impedem a sua realização. A Igreja vem sublinhan do esta est reita ligação ent re o domínio ét ico e o âmbito da nat ureza própria das coisas, fa lando da relação entre a liberdade e a verdade . A liber dade não deve entende r-se como uma poss ibilidade indeterminada de exercício da vont ade humana . Ela é uma possibilidade, bem cert o, mas que só é efetiva quando respeita a verdade do sujeito que a exercita e daquele sob re quem é exercitada . Se alguém invocasse a liberdade para se suicidar, estaria, a esta luz, a entrar em contradição, pois o exercício da liberdade acaba ria no preciso momento em que, supostamente, estaria a acont ecer. Tal seria um paradoxo insanável que denuncia o erro desta leitura . Ser livre só tem sentido na medida em que potenc ia a máxima realização do que há de humano em cada sujeito.

Educa ção t.to-er e Re ligiosa Ca tó lica

54


, - - - - - - - - - -- -- - - - - - - - - - - - --- - - - - - - I

I

Relação entre a liberdade e a verdade

"A questão fundamental [...] é a da relação entre a liberdade do homem e a lei de Deus: é, em última análise, a questão da relação entre a liberdade e a verdade. Segundo a fé cristã e a doutrina da Igreja, «somente a liberdade que se submete à Verdade, conduz a pessoa humana ao seu verdadeiro bem. O bem da pessoa é estar na Verdade e praticar a Verdade» . O confronto entre a posição da Igreja e a situação sociocultural de hoje põe imediatamente a descoberto a urgência de se desenvolver precisamente sobre esta questão fundamental um intenso labor pastoral por parte da própria Igreja: «Este laço essencial entre Verdade-Bem-Liberdade foi perdido em grande parte pela cultura contemporânea, e, portanto, levar o homem a redescobri-lo é hoje uma das exigências próprias da missão da Igreja, para a salvação do mundo. A pergunta de Pilatos: «O que é a verdade?» emerge também da desoladora perplexidade de um homem que frequentemente já não sabe quem é, donde vem e para aonde vai. E é assim que não raro assistimos à tremenda derrocada da pessoa humana em situações de autodestruição progressiva. Se fô ssemos dar ouvidos a certas vozes, parece que não mais se deveria reconhecer o indestrutível caráter absoluto de qualquer valor moral. Está patente aos olhos de todos o desprezo da vida humana já concebida e ainda não nascida; a violação permanente de fundamenta is direitos da pessoa ; a destruição iníqua dos bens necessários para uma vida verdadeiramente humana. Mas, algo de mais grave aconteceu: o homem já não está convencido de que só na verdade pode encontrar a salvação. A força salvadora do verdadeiro é contestada, confiando à simples liberdade, desvinculada de toda a objetividade, a tarefa de decidir autonomamente o que é bem e o que é mal. Este relativismo gera, no campo teológico, desconfiança na sabedoria de Deus, que guia o homem com a lei moral. Àquilo que a lei moral prescreve contrapõem-se as chamadas situações concretas, no fundo, deixando de considerar a lei de Deus como sendo sempre o único «verdadeiro bem do homem». [...]

Neste testemunho ao caráter absoluto do bem moral, os cristãos não estão s6s: encontram confirmação no sentido moral dos povos e nas grandes tradições religiosas e sapienciais do Ocidente e do Oriente, não sem uma interior e misteriosa ação do Espírito de Deus. Sirva de exemplo a expressão do poeta latino Juvenal: «Considera o maior dos crimes preferir a sob revivência à honra e, por amor da vida f ísica, perder as razões de viver» . A voz da consciência sempre invocou, sem ambiguidades, a existência de verdades e valores morais, pelos quais se deve estar pronto inclusive a dar a vida. Na palavra, e sobretudo no sacrifício da vida pelo valor moral, a Igreja reconhece o mesmo testemunho àquela verdade que, já presente na criação, resplandece plenamente no rosto de Cristo: «Sabemos - escreve S. Justino - que os seguidores das doutrinas dos estoicos foram expostos ao ódio e mortos, quando deram prova de sabedoria no seu enunciado moral (...) graças à semente do Verbo inscrita em todo o género humano»." João Paulo II. 1993, Veritatis Splendor, 8 4 e 94.

55

'/alores e Ética Cristã


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

11.2. A questão do relativismo prático "[Entre os cristãos] desenvolve-se um relativismo ainda mais perigoso do que o doutrinal. Tem a ver com as opções mais profundas e sinceras que determinam uma forma de vida conc reta . Este relat ivismo pr át ico é agir como se Deus não existisse, decidi r como se os pob res não existissem, sonhar como se os outros não existissem , tra balha r como se aqueles que não receberam o anúncio não existissem." Papa Francisco. 2013, Evangelií Gaudium, 80.

- Identifica situaçõ es em q ue a liberdade é invoc ada para a práti ca de atas qu e não respe ita m a verdade do ser human o.

• Como def ine João Paulo II o relat ivismo? Que consequências ident if ica como resulta ntes do relativismo? • Como defin e o Papa Francisco o relati vismo prático?

Síntese • Os valores exigem um sujeito , mas têm anterioridade obj et iva em relação a ele; • A emergênc ia dos valores, no sujeito , por conaturalidade sucede a ref lexão que confere caráter explícito e sistemát ico; • O suje ito pode recusar os valores, seja por indiferença , seja por oposição e recusa fro ntal; • Os valores espirituais (a verdade, a beleza e o bem) formam uma unidade a respeita r; • O relat ivismo prát ico denuncia um relat ivismo teó rico e manifesta -se nas decisões conc retas do quot idiano.

-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - l I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I

Educação t.tors t e Religiosa Cató lica

56


r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - I

12. O que fundamenta a ética cristã?

r- - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - I 12.1. Em que crê quem crê?

I I

I I

I I

I

Quando se formula a interrogação sobre o que tem de específ ico a fé cristã e sobre a relação entre esta e a moral, muitas são as abordagens . Ent re estas , muit as não passam de caricaturas, tantas vezes devidas ao próprio testemunho (ou contratestemunho) dos mesmos cristãos. Fernando Savater, autor particu larmente conhecido pelo seu ftico poro um jovem, não escon de a sua descrença e retrata-a de um modo que desafia a encontrarem-se novas respostas que permitam ir para aiém da superfície. No seu livro, Os dez mandamentos no século XXI, afirma que:

"aos que não acreditamos, é-nos muito fácil explicar em que acreditamos. O que me parece misterioso é saber em que acreditam os que acreditam e, sinceramente, por mais que os tenha escutado nunca compreendi a que se referiam. Todavia, nós, os não-crentes , acreditamos nalguma coisa: no valor da vida, da liberdade, e da dignidade , e que o gozo dos homens está nas mãos deles e de mais ninguém. São os homens que devem enfrentar com lucidez e determinação a sua condição de solidão trágica, porque é essa instabilidade que abre caminho à criação e à liberdade." Savater, Fernando, 2004, Os dez mandamentos no séculoXXI, TrodiçaQe otuolidade do legado de Moisés, Lisboa, Publicações O. Quixote, p. 18.

57

Valores e êtíc a Crista


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

Para um crente, estas são palavras que soam a estranho, pois também este poder ia afirmar que "os crentes acreditam em alguma coisa: no valor da vida, da liberdade, e da dignidade", surgindo a distinção no reconhecimento de que o que têm de novo a acrescen tar é a afirmação de que o homem não é Deus e que esta é, de facto, a maior ilusão. Na verdade, o século XIX acusara o cr istian ismo de gerar no homem uma alienação, uma f uga de si mesmo, falando da eternidade -, Então, como hoje, se a referência à eternidade for mot ivo para se fu gir do mundo e se conside rar esta vida como detestável, então, de facto, a religião constitu i-se como uma espéc ie de ópio. Contudo, então como hoje , o Crist ianismo é força vita l para a assunção da vida, respeitando -a. O eleme nto dist intivo está precisamente aqui: assumir a vida, não para a possuir, mas para a respeitar e fazer fecu nda. Ora, a interrogação a colocar, neste passo, é precisa mente sobre as mot ivações pelas quais se deve este respeito . Talvez na respost a a esta interrogação se encontrem as princ ipais razões para a caricatura a que o cristian ismo muit as vezes foi submeti do.

I I

I I

I I

I I

I I

I I

I I

· --- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - l Na realidade, a fundamentação para este dever de respeit o tem três pilares a atend er: • a lei positiva, escrita; • a exemplaridade do mode lo vivido; • a conceção sobre a vida, o homem e o sentido da existê ncia.

I

I I

I

---- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - , Estes tr ês pilares não devem descoorde nar-se, nem entender-se isoladamente, razão que justifica a dita caricatura acima enunciada . Digamo-lo de modo mais explícito. O cristianismo recolhe, bem certo, leis que lhe vêm da revelação . Assim acontece, como veremos mais adiante , com o decá logo. Contudo , a força da lei esc rita não está, f undamenta lmente, numa autor idade que é externa , mas antes, do reconhecimento de que é por a lei preservar a vida que se confirma a autoridade. Como dizia a escolástica, "o sobrenatura l supõe o natural", não o substitui. A lei esc rita, a lei positiva (posta diante de nós), é válida porque nela, e por ela, se protege a vida, o humano, a criação. Mas, para os cristãos, esta autoridade revelada adquire um ponto de zénite na pessoa de Jesus Cristo, em quem se conce nt ra a mot ivação última e o mode lo máximo para a vivência do que a lei posit iva pretendia salvaguardar. Não já porq ue esteja escrito ou porque se verifique que a palavra dita protege a vida, mas porque a fonte da autoridade assumiu a condição da humanidade. Em virtude disto , toda a visão sobre a vida, sobre o homem e sobre a existência ganha nova luz. O ser humano j á não se esgota no aqui e agora, ainda que seja no aqui e agora que inicia a sua realização. Naturalmente, apesar de este discurso ser coerente e compreensível, não deixa de ser necessário um salto, um avanço que tem algo de loucura, para utilizar a termi nologia de S. Paulo, tão bem descr ita por Chesterton , com o seu estilo sempre paradoxal, no livro O homem eterno:

"I...] esta loucu ra [a fé] manteve a sanidade. A loucura manteve a sanidade quando t udo o resto enlouquecia . O manicómio é uma casa onde, século após século, os homens têm regressado continuamente, como quem regressa à casa de família. E esse é o enigma que permanece: que uma coisa tão abrupta e anorma l possa ser considerada uma coisa habitável e hospitaleira. Pouco me importa que o cét ico afirme que se trata de uma história elevada; não percebo como pode ria uma torre tão alta manter-se durante tanto tempo se não tivesse fundações. Ainda menos percebo como poderia tornar-se - mas de facto tornou-se - a casa de família dos homens." Chesterton, G.K., 2009,

o homem etern o, Lisboa, Alêt hela, p. 368.

Educacêo t tora t e Religiosa Católica

58


r - - - - - - - - - - - - ----- - - - - - - - - - - - - - - - - I

I

Com efeito , são muitos os que reconhe cem, hoje, mesmo sem crerem, que, sem a fé religiosa, o ser humano fica em risco . A própr ia história da f ilosofi a o conf irma. Declarada, no século XIX, a morte de Deus, por Nietzsche, foi só necessá rio esperar pelo início do sécu lo XX para, com M. Foucalt, se declarar a própria mor te do ser humano. Em síntese, neste passo, import a reter que a fé cristã é, pela af irmação de que Deus exist e, também a salvaguarda de que o homem pode existir. Não que t al não seja poss ível a quem não crê, mas terá, seguramente, de encontrar f undamentos que, de algum modo, serão o reflexo de uma busca que imit ará a resposta do transcendente, através de um processo imanente . Alain de Botton, auto r que se assume declaradamente descrente, afirma , no seu livro Religião para ateus que "devíamos tenta r adot ar a perspet iva eficaz daqueles que acreditam no paraíso, mesmo que vivamos as nossas vidas segund o o preceito ateu fund amental de que este é o único mundo que ja mais conheceremos". (Alain de Botton, 2012, Religião para ateus, Lisboa, Pub. D. Quixote, p. 183.) O auto r reconhece que a falência de fundam entação para a ética e para a ação moral, sem a referên cia ao t ranscendente, como que legit ima que os descrentes adote m da religião o que ela tem de melhor. Import a, por isso, partir em busca dessa f undamentaçã o que temos vindo a invocar.

12.2. O decálogo - Dez Mandamentos: mais do que lei, vida! Antes de uma análise do dec álogo, tal como no-lo apre senta a tra dição crist ã, valerá a pena tomarmos consciência de que, no início do milénio, a população mundial contav a com dois mil mil hães de cristãos, dos quais 1,2 mil milhões eram cató licos . Este número, que representa um terço da população mundia l, leva-nos a verificar que, dada a relevância que têm os dez mandamentos para t ão signific ativa percentagem de seres hum anos, a história da humanidade seria, segurament e, diferente se nunca os humanos t ivessem submet ido a sua acã o à infl uência de tão decisivas normas que, sendo religiosas, expressam o rumo das co ndut as morais. Mais ainda, não deixa de interpelar a verific ação de que, ao longo dos últimos 5500 anos de história da hum anidade, houve 1451 3 guerras, responsáveis pela morte de 1240 milhões de vidas humanas (Cf r. Fernando Savater, 2004, Os dez mandamentos no séc ulo XXI, Tradição e atualidode do legado de Moisés, Lisboa, Publica ções D. Quixote, p. 29). Como teria sido esta história sem a influência de mandatos como o de que "não matarás"? Tendo em conta a percentagem de crente s ou pert encent es a alguma religião - 83,7% da popu lação mundial , como deverá pensar-se a paz e a relação entr e os humanos, no fu t uro?

59

v alo res e Ética Cristã


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

Acrescente -se que se reconh ecem, at ualmente, nos dez mandamentos, cerc a de 32,7% da pop ulação mund ial, (31,7% - cr istãos; 02,% - judeus). Não seré de se esperar que o mundo possa ser melhor se o decá logo fo r respe itado? Que interpelação e desafios emergem desta inte rrogação? O que devera esperar-se dos que se reco nhecem no dec álogo? O que tem impedido a vivência deste cód igo e a t ransform ação do mundo?

I Tamanho dos maiores Grupos Religiosos, 2010 Em percentagem da população global 0,8% Out ras religiões ** 5 ,9 %

r

r-- De nominaçõe s regtcnars -

Quais são os Dez Mandamentos?

7,1% Budistas

1. EV SOV O SENHOR, TEV DE V . N Ã O TEP, )..S0 VTllOS DE V SES A LÉM DE jv'!'h"" : ~

2 . IÃ O PROFANA RÁS O N OME DE ~V );

3. L.EM BRAT E DE SANTIFICAR O SÁ BA DO! ~.

ONRA ÁS PAI E N IÃE!

5. NÃO /v\I.1T~RÁS! 6

O COi'v\ETE ~ÁS ADVLTÉRIO!

... Inclui seguidoresde Religiões TradrctonarsAfricanas. religiões locais chinesas. religiões Nauvo-Amencenas e religiões aborígenesAustralianas ** lnchn Bahais. .Jatmatas (Jam Shasan ou Ja in dh erme). Shmtotstas. Taoístas, segurdc res de Temkyo, wocens . Zaroet nstas ~ murta s out ras fés, As percentagens podem n ão somar 100.

7. NÃO ROV BARÁS! 8. NÃO DARÁS FALSO TESTEMV N HO PRÓXIMO ! CONT RA O

r sv

l!).

ÃO COB IÇA RÁS A M V LH EP,. DO TEV PRÓXI . f\'10!

m. N ÃQ'CO BIÇARÁS OS BE N SDO T EV PRÓXI/V\ O !

Pew Research Center's Forum on Rellglcn & Pubhc Llfe- Global Retigtous Landscape, December 2012 http //www pewforum.org/ Ppe â ê üê

"Estes dez Mandamentos não se encontram na Sagrada Escritura sob esta forma , mas provêm de duas fontes bíblicas: Ex 20,2-17 e Dt 5,6-21. Desde muito cedo, as duas fontes foram doutrinal mente sintetizadas e têm sido t radicionalm ente apresentadas aos crentes como Dez Mandamentos na forma catequética acima exposta. Serão os Dez Mandamentos uma composição aleatória?

Não. Os Dez Mandamentos contêm uma unidade. Cada Mandamento remete para o outro e não pode ser isolado e arbit rariamente considerado. Portanto, quem infringe um Mandamento, inf ringe toda a lei (CICt 2069, 2079). O que torna os Dez Mandamentos tão especiais é o facto de neles poder ser compreendida toda a vida humana. Nós, pess oas humanas, estamos orientada s, com efeito, para Deus (do primeiro ao t erceiro mandamento) e para os outros (do quarto ao décimo mandamento). Somos seres religiosos e socia is. Não estão ultrapassados os Dez Mandament os?

Não, os Dez Mandamentos não estão condicionados pelo tempo. Neles estão expressos os deveres fundamentais do ser humano perante Deus e o próximo. São válidos para todos os tempos e lugares (CICt 2070-2072). Os Dez Mandamentos são Mandamentos da razão, mas também fazem parte da Revelação de Deus. São tão fund amentais na sua obrigatorie dade que ninguém se pode dispensa r de os cumprir." YOU CAT, 2011, Lisboa, Peulus, 349-3 51.

Educação t.toraí e Religiosa Católica

60


r - - -- - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - I

A últ ima interrogação, a que responde este excerto do Youcat, encont ra uma outra formulação e resposta numa entrevist a con cedida pelo Papa Bent o XVI, cuja atu alidade se mantém .

"P eter Seewald: Os Dez Mandamentos continuam válidos nos nossos dias, sem limitações?

DEUS E

oHUND I fi Cl<S1l Cl'IKlU " ft 1Ei!1III

JOSEPH

RATZINGER ... 1I([,mt.

CG. rt lt l Stna ~d

Bento XVI: Sim. Já fa lámos de um mandamento que adquiriu um novo rosto devido ao enco ntro com Cristo ao ser reescrito: «Não farás para ti imagem alguma» Este mandamento renova -se no instante em que Deus se autorrepresenta. Neste sentido, també m estes mandamentos estão por terminar, recebem a sua forma definitiva através de Cristo . Também ao mandamento do sabbath, que remonta ao Génesis, conserva a sua validade fundamenta l, mas adquire uma nova forma ao converter-se o dia da ressurreição de Jesus no autêntico dia da aliança. O caminho conduz do sabbath ao domingo, experimentando desse modo um aprofundamento. Neste sentido, estas palavras não estão mecanicamente fec hadas, há que lê-Ias à luz de Cristo e é aí que encontram a sua forma definitiva. Mas, na essência, são e seguirão sendo válidas . P.S.: Os Dez modificados?

10

Hannes Stern (1965- ) é um Jorn alist a e escritor alemão

Mandamentos

foram

alguma

vez

Bento XVI: Não, embora existam duas versões, uma no Êxodo e outra no Deuteronómio. Diferem entre si por escassos aspetos de superfície, mas são iguais na substância, e, naturalmente, o homem não pode dispor deles .

(...]

P.S.: Quando Moisés, no Monte Sinai, recebeu entre trovões e relâmpagos as tábuas da lei, chegou a hora do nascimento do indivíduo livre. Pelo menos, assim o defende as teses do jornalista judaico-alemão Hannes Stein'o. Desde então cada ser humano teve de responder diretamente perante Deus, por si e pelos seus atos, fosse senhor ou escravo, homem ou mulher. Com a aliança do Sinai quase que surge o sujeito jurídico autónomo. Será audacioso afirmar que a pedra angular das sociedades livres e democráticas procede, não da Grécia antiga, mas da tradição judaico-cristã? Bento XVI: Também li o livro de Hannes Stein e diria que aborda uma temática essencial. A dignidade de cada indivíduo perante Deus, indivíduo a quem Deus fala , e enquanto indivíduo está obrigado pela palavra da aliança, cons titui efetivamente o cerne dos direi tos do homem, a igual dignidade de cada indivíduo, que constitui o verdadeiro fundamento da democracia. Em Israel, nos primeiros tempos, não havia reis, havia juízes que aplicavam o direito divino e zelavam pelo seu cumprimento. Assim se pretendia uma sociedade completamente igualitária, uma espécie de anarquia em sentido positivo: ninguém reina, exceto Deus. E reina com a sua lei, com a sua palavra e com os mandamentos. Esta primitiva ordem social teve finalmente de ceder ao pragmatismo, (...] Mas nem por isso diminuiria a importância da democracia grega, que também nos legou coisas importantes e que desenvolveu um modelo prático a que ainda hoje nos remetemos. No entanto, convém lembrar que na democracia grega só os homens livres tinham voz. As mulheres não eram sujeitos da política,

61

va lores e Étic a Cristã


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

por isso eram excluídas do direito de voto, tal como os escravos. Como a liberdade estava limitada, a Grécia oferece apenas o exemplo de uma democracia limitada. A palavra bíblica, pelo contrário, at rib ui a cada ser humano, enquanto imagem viva de Deus, plena dignidade de suje ito. A verdade é que ela constit ui uma base muito ampla para as constituições democráticas." Bento XVI, 2006. Deus e o mundo. A fé explicada por Bento XVI, Coimbra. Tenacit as, pp. 146- 147, 157-15 8.

o

Papa Bento XVI, repercutindo o pensamento de Hannes Stein. recorda que a afirmação da pessoa humana, detentora de dignidade, encontra a sua mais expressiva raiz no decálogo e na revelação judaico- cristã. Como se fundamenta ta l perspetiva?O que tem de inovadora em relação à tese de que o reconhec imento da dignidade humana se devia, em exclusivo, à inf luência grega? O Papa Francisco explici ta os dados para a resposta à interrogação ant erior, nos excertos de Evonge/ii Goudium, que se recolhem, de seguida:

"Confessar um Pai que ama infinitamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe confere uma dignidade inf inita». Confessar que o Filho de Deus assumiu a nossa carne humana significa que cada pessoa humana foi elevada até ao próprio coração de Deus. Confessar que Jesus deu o seu sangue por nós impede-nos de ter qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo o ser humano. A sua redenção tem um sentido social, porque «Deus, em Cristo, não redime somente a pessoa individual, mas também as relações sociais entre os homens». Confessar que o Espírito Santo atua em todos implica reconhecer que Ele procura permear toda a situação humana e todos os vínculos sociais: «O Espírito Santo possui uma inventiva infinita, própria da mente divina, que sabe prover a desfazer os nós das vicissitudes humanas mais complexas e impenetráveis».

[oo .] Este imperat ivo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós, quando no mais ínti mo de nós mes mos nos comovemos à vista do sof rimento alheio. Voltemos a ler alguns ensinamentos da Palavra de Deus sobre a misericórdia, para que resso em vigorosamente na vida da Igreja. O Evangelho proc lama: «Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5,7). O Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros per mite-nos sair t riunfa ntes no j uízo divino: «Falai e proced ei como pessoas que hão de ser jul gadas segundo a lei da liberdade. Porque, quem não pratica a misericórdia , será ju lgado sem misericórdia. Mas a misericórdia não t eme o ju lgamento » (Tg 2,12-1 3). Neste text o, São Tiago aparece-nos como herdeiro do que ti nha de mais rico a espirit ualidade judaica do pós-exílio, a qual at ribuía um especial valor salvífico à misericó rdia: «Redime o teu pecad o pela ju stiça, e as tu as iniquidades, pela piedade para com os infe lizes; talvez isto cons iga prolongar a t ua prosp eridade» (Dn 4,24). Nest a mesma perspetiva, a lit erat ura sapienc ial fala da esmola como exercício concreto da misericórdia para com os necessitados: «A esmol a livra da morte e limpa de todo o pecado» (Tb 12,9). E de form a ainda mais sensív el se exprim e Ben-Sirá: «A água apaga o fo go ardente, e a esmola expia o pecado » (Sir 3,30). Encontramos a mesm a síntese no Novo Testamento: «Mantende entre vós uma intensa caridade, porqu e o amor cobre a multidão dos pecados» (1 Pd 4,8). Esta verdade permeou profundamente a mentalidade dos Padres da Igreja, tendo exercid o uma resistência profética como alternativa cult ural face ao individualismo hedonista pagão. Recordemos apenas um exemplo: «Tal como, em perigo de incêndio, correríamos a buscar água para o apagar (...), o mesmo deveríamos fazer quando nos turvamos porque, da nossa palha, irrompeu a chama do pecado; assim , quando se nos

Educação t tora i e Religiosa Ca tó lica

62


r -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -I

proporciona a ocas ião de uma obra cheia de misericórdia, alegremo-nos por ela como se fosse uma fonte que nos é oferecida e na qual podemos ext inguir o incêndio». ~ uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêuti ca ecles ial tem o direito de relat ivizar. A reflexão da Igreja sobre estes textos não deveria ofuscar nem enfraquecer o seu sentido exortativo, mas antes ajudar a assumi-los com coragem e ardo r. Para quê complicar o que é tão simples? As elaborações conceptuais hão de favorecer o contacto com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale sobretudo para as exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro? Não nos preocupemos só com não cair em erros doutrinais, mas também com ser fiéis a este caminho luminoso de vid a e sabedoria. Porque «é frequen te dirigir aos defensores da 'ortodoxia' a acusaç ão de passividade, de indulgência ou de cump licidade culpáveis frente a situações intoleráveis de inj usti ça e de regimes políti cos que mantêm estas sit uações»." Papa Francisco, 2013. EvangeUi Gaudium , n.118, 193 -194.

o

que pretende af irmar o Papa Francisco ao dizer que "É uma mensagem tã o clara, tão direta, tão simples e eloqu ente que nenhuma hermenêut ica eclesial te m o direito de relat ivizar"? No t exto de Bento XVI, a dignidade do indivíduo humano era afirm ada por referên cia ao reconheci mento da parte de Deus de que o homem era 'digno' de ser seu interlocutor. Nesta passagem da exortação apostó lica do Papa Francisco, acrescentam-se a este fundamento da dignidade do ser humano outro s dados igualment e f undamentais : • "Confessar um Pai que ama inf initamente cada ser humano implica descobrir que «assim lhe confere uma dignidade infi nit a». (Fundament o teológico); • Confessar que o Filho de Deus assum iu a nossa carne humana significa que cada pessoa humana foi elevada até ao própri o coração de Deus. (Fundament o cristológico); • Confessar que J esus deu o seu sangue por nós impede-nos de t er qualquer dúvida acerca do amor sem limites que enobrece todo o ser humano. (Fundament o soteriológico); • Confessar que o Espirita Santo atua em todos implica reconhecer que Ele procu ra permear toda a situação humana e todo s os vínculos soc iais; (Fundament o pneu matológico); • Este imperativo de ouvir o clamor dos pobres faz-se carne em nós. quando no mais íntimo de nós mesmos nos comovemos à vista do sofrimento alheio; (Fundamento da compaixão/compassividade); • O Apóstolo São Tiago ensina que a misericórdia para com os outros perm ite -nos sair triu nfantes no juízo divino; (Fundament o escatológico); • «Redime o teu pecado pela ju stiça, e as tuas iniquidades, pela piedade para co m os infelizes; talvez isto co nsiga prolo ngar a tu a pros peridade»;" (Fundament o Hamartiológico - hamartía, em grego, sign ifica 'pecado').

12.3. As bem-aventuranças Jorge Luís Borges, no seu livro Elogio do sombra, elabora uma longa paráfrase das bem-aventuran ças crist ãs, a que dá o t ít ulo de fragmentos de um evangelho apócrifo (1969). Ali, ent re ironias que deverão ser interpretadas como desafios, este autor argentino, não deixa de exigir da fé cr istã uma limpidez e genuinidade resultante da precedência da graça

63

.'alarese Ética Crista


-- - - - - - -- ---- -- - - - - -- - - - - - - - - - - - - - , I

e da gratuitidade. Afirm a, a certa alt ura, que são "bem-aventurados os misericordiosos, porque a sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prémio". (Jorge Luís Borges, 1998, Obras Completos, II, s.l., Teorema, p. 391. Não é este o conteúd o das bem-aventuranças que nos chegaram, pela mão de Mateus e Lucas, mas, nesta formulação de Jorge Luís Borges, recolhe-se um pressuposto com que deverão ser lidas aquelas que analisaremos de seguida: o cristão não age, primeiramente, por expectativa de um prém io, mas sim porque foi amado , em pr imeiro lugar. Neste registo deverá colocar-se toda a leitura que encetaremos, de seguida. Nas bem-aven turanças, que nos chegaram pela mão dos evangelistas sinóticos, Mateus e Lucas, concentra-se o núcleo da leitura cristã sobre a existência e sobre a conduta humana. Por esta sua cond ição, nelas encontram-se os traços fundamentais para a compreensão sobre como deve conceber-se a acão humana, à luz do cristianismo. Esta centralidade que, como veremos adiante, deve ser adequadamente interpretada, t em merecido, ao longo da histó ria, o reconhecimento de crentes e não crentes, seja confe rindo-lhes o estatuto de um 'quase novo decálogo ', seja apossando-se delas para exigir dos cristãos a necessá ria e devida coerência. Importa, assim, compreender o adequado lugar que este quadro de fundamentação da ética cristã deve ocupar, no núcleo cristão. Disto nos fala Bent o XVI:

-- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

- -

I

.1

"Não é raro encontrar apresentadas as bem-aventuranças como a antítese neotestamentária do Decálogo, como se fossem por assim dizer a ética mais elevada dos cristãos quando comparada com os mandamentos do Antigo Testamento. Esta visão deturpa completamente o sent ido das palavras de Jesus, que sempre pressupôs a validade do Decálogo (Cf. Por exemplo, Mc 10,19; Mt 5,21-48); o Sermão da Montanha retoma os mandamentos da segunda tábua e aprofunda-os, não os abole (Mt 5,21-48). Tal interpretação contradiria diametralmente o princípio fundamental sobre o Decálogo, que antecede este discurso: «Não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas: não vim revogá-Ia, mas completá-Ia. Porque, em verdade, vos digo: Até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da Lei, sem que tudo se cumpra» (Mt 5,17s.) [...] Para já, é suficiente observar que Jesus não pensa em abolir o Decálogo, pelo contrário, reforça-o. Mas, então, o que são as Bem-aventuranças? Antes de mais, inserem-se numa longa tradição de mensagens do Antigo Testamento, que encontramos, por exemplo, no Salmo 1 e no texto paralelo de Jeremias 17,7s. «Feliz o homem que confia no Senhor...» São palavras que trad uzem uma promessa e ao mesmo tempo cont ribuem para o discernimento dos espíritos, tornando-se assim uma guia. [...] Aplicadas à comun idade dos discípulos de Jesus, as bem-aventuranç as exprimem paradoxos: os crité rios mundanos f icam invert idos, logo que a realidade é vista na perspetiva correta, nomeadament e segundo a escala de valores de Deus, que é diferente da escala de valores do mundo. Precisamente aqueles que, segundo critérios mundanos, são considerados pobres e perdidos são os verdadeiros afortu nados, os abençoados e podem, não obstante todos os seus sofrimentos , alegrar-se e rej ubilar. As bem-aventu ranças são promessas, em que resplandece a nova imagem do mundo e do homem que Jesus inaugura, a 'inversão dos valores'. São promessas escato lógicas; mas esta expressão não deve ser entendida como se a alegria que anunciam se encont re transferida para um futuro inf initament e dist ante ou exclusivamente para o além. Quando o homem começa a olhar e a viver a partir de Deus, quando caminha em companhia de Jesus, passa a viver segundo novos critérios e então um pouco de eschaton" , daquilo que há de vir, está presente já agora. A partir de Jesus , ent ra alegria na t ribulação." Bent o XVI, 2007, Jesus de Nazaré, Lisboa, A esfe ra do s livros, pp . 107-108.

·- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - l 11

Eschaton - palavra grega qu e qu er dizer 'u lt im o' Refere-se, aqur. as realid ades após a morte. mas cuja influ ênci a e presença Já se sentem nesta Vida.

Educação Moral e Religiosa Católica

64


, - - - - - - - - - - ---------- -- - - - - - - - - -- - I

12.3.1. As bem-aventuranças, em Mateus e Lucas - estabelecimento do paralelismo entre as duas leituras Mt 5,3-12

I

Lc 6,20-26

' «Felizes os pob res em espírito , porque deles é o Reino do Céu.

2O«Felizes vós, os pobres, por que vosso é o Reino de Deus.

' Felizes os que choram, porque serão co nsolados.

Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir.

' Felizes os mansos, porque poss uirão a terra. 6Felizes os que têm fome e sede de j ust iça, porqu e serão saciados.

"Fe lizes vós, os que agora ten des fo me, porque sereis saciados.

' Felizes os misericor diosos, porq ue alcançarão misericórdia. 6Felizes os puros de coração , po rque verão a Deus. 'Felizes os pacif icadores, porque serão chamados f ilhos de Deus. lOFelizes os que sof rem perseguição po r causa da j ust iça, porq ue deles é o Reino do Céu. " Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disse rem to do o género de calúnias cont ra vós , por minha causa.

" Felizes sereis, quando os hom ens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insult arem e rejeit arem o vosso nome como inf ame, por causa do Filho do Homem.

"Exultai e alegrai-vos, porq ue grande será a vossa recomp ensa no Céu; pois t ambém assim perseguiram os profetas que vos precederam.»

" Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recomp ensa será grande no Céu. Era prec isamente assim que os pais deles t rat avam os profet as». Imprecações " «Mas ai de vós, os ricos , porque recebestes a vossa consolação! " Ai de vós, os que esta is agora fa rtos, po rque haveis de te r torne! Ai de vós, os que agora rides, porq ue gemereis e chorareis! '6Ai de vós, quando tod os disserem bem de v ósl Era prec isamente assim que os pais deles t ratavam os falso s profetas».

Tendo em co nta est a organização, disponibil izada por L. González-Carvaja l, no seu livro As bem -aventu ronças, uma controcu/turo que humaniza, 2013 , Maliano, Sal Terrae, p. 25-27, analisemos , det idamente, os dados fun dame ntais de cada uma dest as leit uras sobre as bem -avent uranças , to mand o por referência a análise de dois especialistas .

65

'falares e Etica Cris tê


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

12.3.2. As bem-aventuranças, segundo Mateus "As bem-aventuranças constituem o pórtico de entrada no Sermão da Montanha. Na Bíblia, a palavra 'feliz' implica, ao mesmo tempo, uma felicitação para com quem marcha já no bom caminho, e um caminho que, no fim, será recompensado pelo juízo de Deus. A tradição evangélica reconhece um conjunto de quatro bem-aventuranças e de quatro maldições (Lc 6,20-26). Mateus retoca profundamente este modelo: elimina as maldições e alarga a mensagem para oito bem-aventuranças (com uma nova: Mt 5,11-12). Daqui uma grande mudança de perspetiva. Ao fa lar dos pequ enos, dos doentes, dos excluídos, Jesus tinha declarado: Felizes vós os pobres porque vosso é o reino de Deus (Lc 6,20). Entenda-se: Deus não vos quer ver mais pobre s; ele vai vir, reinar, para vossa felicidade. O desaparecimento do Crucificado signif icaria um fracasso? Mateus recusa-se a pensá-lo. Para ele, o projeto é realizável, pelo menos no seio de uma comunidade de discípulos que se educam uns aos outros, à luz das palavras e dos atos de Jesus. Assim , as bem-aventuranças tornam-se um programa. «Felizes os pobres», dizia Jesus. «Felizes os pobres em espírito», escreve Mateus. Trata-se de uma atitude de humildade pela qual o crente recusa dom inar os seus irmão s e f ia-se em Deus para assegurar os seus direitos. As oito bem-aventuranças constituem um todo, que se abre e se fecha com a mesm a expressão esclarecedora (o Reino do Céu é deles, v.3.10). Elas subdividem-se em dois grupos ritmados pela palavra justiça (v.6.10). O primeiro grupo (v. 3-6) sublinha uma atitude de confiança para com Deus; o segundo (v.7-10) orienta um comportamento. A oitava bem-aventurança incide na perseguição e é comentada por uma nona, que passa da terceira pessoa ('os que') para a segunda ('vós') num significativo salto: conformar-se às bem-aventuranças dá uma real felicidade que, entretanto, sofrerá rudes oposições, pois a mensagem implica uma atitude profética, um pôr em causa os valores ordinários deste mundo. Interpretação ao ritmo do texto As duas primeiras bem-aventuranças (v.3-4) são um autocomentário. Para o judaísmo antigo, os pobres em espírito são os mansos. Recusam a agressividade orgulhosa, tanto face a Deus como face aos irmãos, à semelhança de Jesus, manso e humilde de coração (Mt 11,29). A estes é oferecido o Reino chamado, também, simbolicamente, a terra (prometida) [ver SI 37 (36), 11]. Os que choram (aflitos: v.5) serão consolados, entendamos, 'por Deus', e pelo seu Messias , que tem a missão de consolar os aflitos (Is 61 ,2). Felizes os que, nas suas provas, se mantêm fiéis, confiantes no conforto de Deus. Segundo a ideia religio sa de Justiça (v. ô), felizes os que têm fome de ver triunfar os direitos de Deus neles e à volta deles. Esses ver-se- ão cumulados por Deus nas suas aspirações. A misericórdia (v.7) é um agir: Deus perdoa a quem usa de misericórdia (Mt 6,14;7,2). Ela impl ica também este s gestos que o judaísmo chama 'obras de misericórdia' e sobre as quais Cristo julgará a humanidade (Mt 25,31-46).

Educação t tora l e Religiosa Cató lica

66


r ------ - - - - --- - - - - - - - ---- - - - - - - - - -I

I

A escritura louva «o inocente de mãos e puro de coraçã o» (SI 24 (23),3-6). Neste quadro, a bem-ave nt urança dos co rações pu ros (v.B) visa a lisu ra, a coerência ent re o agir (as mãos) e as intenções (o coração). Neste meio cultural, 'ver a face' de um soberano é ter as suas entradas jun to de si. Portanto, feliz o que recusa toda a dupl icidade: terá com Deus uma intimidade maravilho sa. Os que faze m a paz (v.9) não têm forçosamente um pape l político. A trad ição juda ica vê neles os que trabalham pela reconci liação do próximo, segundo a lista da Mishna: «o respeito do pai e da mãe, as obras de misericórdia, fazer a paz entre um homem e o seu próximo». No seu regresso, Elias será o santo padroeiro dos construtores da paz [ver MI 3,24). Mas o evangelista vai mais longe. Estes últ imos merecerão o título de fi lhos de Deus pois, - tal pai, ta l f ilho - eles imitam Deus, auto r de toda a paz [ver SI 85 (86),9-14]. Felizes os perseg uidos pela just iça (v. 10), no sentido religioso da palavra, os que, apesa r das oposições, cultivarão as virtudes enunciadas pela lista das bem-aventuranças: a eles Deus quer confiar o seu Reino." Tassin, c.. 2009 , Evangelho de Jesus Cristo segundo S. Mateus. Fátima, Difuso ra Bfbllca. pp. 31-3 3.

12.3.3. As bem-aventuranças, segundo Lucas " Lucas construiu o se u texto de uma forma 'quadrada', como se quisesse que a mensagem não deixasse nenhuma esca pató ria: quatro bem-avent uranças proclamadas ao grupo dos discípulos - caracte rizados com o os pobres, os fam intos, os que choram e os excluídos - são segu idas de quatro 'mal-aventu ranças' ('ais') dirigidas aos ricos, aos fartos, aos que se alegram e aos que são bem considerados, sem que se possa ident ificar um grupo con creto oposto ao dos discípulos. A quarta bem-aventurança é muito mais desenvolvida do que as t rês primeiras, e o seu contrário é menos desenvolvido. AO CORRER DO TEXTO 1. Lucas está , provavelmente, mais próximo das palavras de Jesus do que Mateu s, onde, por exemplo, os pobres são-no 'em espírito'. O programa enunc iado em Nazaré (anunciar a boa-nova aos pobres) cum pre-se. São fe lizes, não porque são pob res (materialmente, socialmente), mas porque o rei no de Deus é para eles (no presente) e porque o Filho de Deus está a seu lado e não toma o partido dos ricos e dos poderosos. 2. Lucas introduziu um 'agora' nas suas bem- avent uranças 2 e 3 e nos seus cont rários, sem dúvida porque escreve para comunidades que, naquele moment o, estava m a viver grandes dif icul dades. O motivo da fe licidade é colocado no f uturo: vós sereis saciados... haveis de rir é o traço identificativo desta espe ra urgente do Reino que habitava J esus. É igualm ente a esperança de Lucas - uma vez que este af irma que Jes us ergue os olhos para os seus discípulos (v.20) - em ver desenvolver-se na Igrej a do seu t empo a parti lha pregada por João (Lc 3,11), e que ele descreve no início dos Atas dos Apóstolos (At 2,44-45; 4,32). 3. A 4' bem-aventu rança põe em causa a felicidade do presente, mas em dois planos: por um lado, os perseguidos t êm já desde ago ra uma recom pensa no céu; por outro, saltar de alegri a

67

Valores e Ética Cristã


- - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - , I

no meio da perseguição, uma vez que se dão conta de que a sua sorte é a mesma dos autênticos profetas dos tempos antigos, perseguidos pelos chefes de uma religião que cobria as injustiças com o manto da piedade e do culto. Isto toca o tema da "[a bem-aventurança: Deus está ao seu lado. A melhor ilustração de tudo isto encontra-se em At 5,41: depois de terem sido flagelados, os Apóstolos saíram da sala do Sinédrio cheios de alegria.

4. Para os ricos, os fartos e os que riem, a consolação está já no tempo presente, mas é efémera, tendo em vista a crise dos últimos tempos ou as crises da vida pessoal, se esquece rem que Deus é o único apoio sólido. Aqui, o melhor exemplo é o de Herodes Agripa I, em At 12,21-23." Saoút , Yves, 200 9, Evangelho de Jesus Cristo segundo S. Lucas, Fátima, Difusora Bíblica, pp. 44-4 5.

À luz das abordagens acima apresen ta das, result a uma interrogação que, seguramen te. muitos pretenderam vislumbra r: não será relegada para a eterni dade a resposta de Deus ao homem? Será a bem -avent urança apenas uma esperanç a remota . sem manifestação e presença , na vida terrena?

A respo st a da teo logia, através da escato logia, sempre foi a de que o Reino dos Céus (na termino logia de Mateus) ou Reino de Deus (na terminologia de Lucas") está 'já' presente, mas 'ainda não' de modo definitivo. Disto fazem ecos as palavras de González-Carvaja l e de Maurice Zundel. -

-- - -

-

- - - -- - - - -

-- -

- - - - -

--

- -

- -

- -

- - -I

"Se a felicidade prometida vai acontecer no céu, [...] não estaríamos a dar razão a Marx quando afirmou que «a religião é o ópio do povo»? Não é só isso. A dita felicidade prometida pelas bem-aventuranças começa já aqui, e reduzi-Ia ao futuro, ao céu, seria uma perigosa deformação. Recordemos que Jesus disse: «Todo aquele que tiver deixado casa, ou irmãos ou irmãs, ou mãe ou pai, ou filhos ou terras, por mim e peio Evangelho, receberá agora, neste tempo, cem vezes mais, - casas e irmãos e irmãs e mães e filhos e terras, com perseguições - e na idade futura, vida eterna» (Mc 10,30). Assim, pois , ainda que nos advirta o Mestre que não nos faltarão perseguições, podemos esperar aqui cem vezes mais do que o que tivermos sacrificado por Jesus. [...] A dita felicidade prometida pelas bem-aventuranças - como o reino de Deus, do qual é uma consequência - já chegou, se bem que ainda não em plenitude. Rejeitamos, por igual, as interpret ações que situam exclusivamente no futuro a felicidade prometida, tal como as interpretações que se empenham em eliminar a dimensão futura das bem-aventuranças e reduzem ao presente o objeto da promessa." Gonz ález-Carvaj al, L., 2013, As bem-aventuranças , uma contracultura que humaniza, Maliano, Sal Terrae. pp. 25-27.

-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - l 12

Lucas é um evangelista que escreve pa ra os cristãos da gentilidade, isto é, de fora de influência judaica. Já Mat eus escreve para as co mumdades de influência judaica. A esta diferença de destinatá rios se deve o uso diverso da expressão. Para um ju deu, o nome de 'Deus' deve ser util izado com mu ita moderação, pe lo que a expressão de Mateus é 'Reino dos Céus'. Já Lucas, sem a necessidade de ate nde r a este pudor, ut iliza a ex pressão 'Reino de Deus',

Educação t.to ra l e Religiosa Católica

68


r - - - - - -- - --- - - - - -- - - -- - - - --- - - - -- - I

A eternidade começa hoje

"Trat a-se, pois , de vence r a morte, hoj e me smo. O cé u não está ali: está aqui; O mais alé m não está por detrás das nuve ns, Est á por dentro. O mais além está por dentro, Com o o céu está aq ui, agora . É hoje que a vida deve etern izar-se, É hoje qu e somos chamados a vencer a morte, a torna rmo -nos fonte e origem, A recol her a histór ia, para qu e At ravés de nós comece de novo. Hoj e, t emos de dar A qualquer realidade um a dim ensão hum ana Para qu e o mund o seja habitável, Digno de nós e digno de Deus." Maurice Zun de l, segundo Mar ie Balmary e Da niel Marguerat, 2013.

Iremos todos para o poroiso. O juizo final em questã o. Barcelona, Fragment a. p. 150

Outra tentação muito frequente na leitura das bem-aventuranças consiste em 'privatizá-Ias', isto é, reduzi-Ias a uma esperança de felicidade meramente individual, sem repercussão comunitária ou coletiva. Tal leitura é deturpada, com efeito, como pode já presumir-se das aborda gens acima apresentadas.

12.3.4. O desafio de nos unirmos para viver as bem-aventuranças

"Como as definições da realidade contidas no Sermão da Montanha são contrárias às existentes na cultura dominante, torna-se praticamente impossível reger-se sozinho por elas, ao menos de forma contínua. [...] Os que são portadores de novas definições da realidade necessitam de estar acompanhados de outros que confirmem as suas co nceções divergentes. Ou, com palavras de Berger, as «contradefinições da realidade requerem contra-sociedades». Jesus sabia-o. Est ava convencido de que os novos valores só podem viver-se numa co mu nidade de irmãos e irmãs que creem na chegada do reino de Deus , que se ajudam mutuamente e nos quais atuam já as forças do reino. Por isso, necessitamos de rever co nsta ntemente a imagem qu e apresenta a nossa Igrej a e cada comunidade cristã, para ver se são verdadeiramente o que devem ser: comun idades de redimidos nas quais se tornou presente um estilo de vida alternativo. [...] Enquanto não vivermos a fé no seio de comunidades 'diferentes', onde se compartilham os bens, se devo lve bem por mal, etc., poderemos admirar as be m-aventuranças - e inclusive esc reve r e ler liv ros sobre elas - mas não podere mos pô-Ias em prática sem que em algum canto recônd ito do nosso ser ab riguemos a suspe ita de que parecemos doidos." Gonzãl ez-Carv ejel, L. , 2013, As bem-oventuronços. umocontracultura que humanizo, Maliaí"lo, Sal Terrae , pp. 180-181.

Dietrich Bonhoeffer é claro na associação entre a bem-aventurança e a justiça. Em dois dos seus mais marcantes livros, este autor, de confissão protestante, repercute o reconhecimento de que a afirma ção das bem-aventuranças não visa a autoproteção e a salvaguarda de uma sal vação pessoal/ind ividual. Pelo contrário, como que coloca como condição da salvação pessoal a defesa do outro, através da defesa do que é justo.

69

Valeres e E.tica Cristã


-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -, I

Bem-aventurança, justiça e responsabilidade

"«Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus». Não se fala, aqu i, da justiça de Deus, mas dos padecimentos por uma causa j ust a, pelo j uízo e pela ac ão justas dos discípu los de Jesus. Os que seguem Jesus renunciando às posses, à felicidade, ao direito, à justiça, à honra, ao poder, distinguem-se nos seus juízos e ações do mundo; tornar-se-ão chocantes para o mundo. E assim serão perseguidos por causa da justiça. A recompensa que o mundo dá à sua palavra e atividade não é o reconhecimento, mas a repulsa. É importante que Jesus proclame bem-aventurados os seus discípulos quando não sofrem imed iatamente pela con f issão do seu nome, mas simplesmente por uma causa j ust a. Faz-se- Ihes a mesma promessa que aos pobres. Como perseguidos, assemelham-se a eles." Bonhoeffer. Dletrlch, 2007, o preço da graça: o seguimento, Salamanca, Sfgueme , p.76.

"O sermão da montanha, como proclamação do amor de Deus feito homem, chama o homem ao amor para com o outro homem e, justamente por isso, a renegar tudo aquilo que o impede no cumprimento desta tarefa , em resumo, chama -o a renegar-se a si mesmo. Ao renunciar à sua fe licidade, ao seu direito, à sua justiça, à sua dignidade, à força e ao êxito, ao renunciar à sua vida , o homem torna-se disponível para amar o próximo . O amor de Deus liberta o olhar do hom em ofuscado e transviado pelo amor de si e torna-o capaz de reconhecer de modo claro a realidade, o próximo e o mundo, torna-o assim e só assim pronto a assumir uma autêntica responsab ilidade." Bonhoeffer, Dietnc h. 2007, t rico. Lisboa, Assírio e Alvim, p. 208.

o

últ imo texto, reco lhe uma not a que nos recorda um conceito estruturante para a vivênc ia da ét ica: a respon sabilidade . Esta não diz, apenas, a condição do suje ito que responde pelo que faz, como se se t ratasse de um vago e dif uso dever ou pr incipio abstr ato e impessoa l, mas sim a condição de um suje ito que se sente com o dever de respon der diante de alguém e por alguém. Ora, a visão crente da vida dá um rosto a est e Alguém peran te quem se respon de: não s6 o out ro por quem se é responsável, mas ta mbém o Outro (Deus) perante quem se é chamado ã responsabilidade. "Ser homem é justamente ser responsável " (Antoine de Saint-Exupéry, 1995, Terro dos Homens, Lisboa, Vega, p. 36.)

Educacao t foral e ReligiosaCatólica

70


r - - - - - - - - - - - -- -- - - - - - - - -- - - - - - - - - - I

"Ao lermos as Escrituras, fica bem claro que a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. E a nossa resposta de amor também não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados, o que poderia constituir uma 'caridade por receita', uma série de ações destinadas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus; trata-se de amar a Deus, que reina no mundo. Na medida em que Ele conseguir reinar entre nós, a vida social será um espaço de fraternidade, de justiça, de paz, de dignidade para todos. Por isso, tanto o anúncio como a experiência cristã tendem a provocar consequências sociais." Papa Francisco, 2013, Evongelii Ga udium, n. 18 0.

12.3.5. Que bem-aventuranças, hoje? "Quando Jesus proclamou o Reino de Deus... • em primeiro lugar, estava a anunciar o juízo divino sobre a ordem social corrente; • em segundo lugar, fazia a afirmação de que as coisas podem mudar; • em terceiro lugar, que a mudança já tinha começado. [...] Os valores do Reino têm a sua melhor explicação nas bem-aventuranças: • viver segundo os valores do Reino é fazer uma conversão religiosa: é transformar as atitudes com respeito a (1) haveres - vender e dar o rendimento aos pobres; (2) poder; (3) prestígio social - nunca ocupando o primeiro lugar quando se é convidado para uma festa; (4) compreensão da religião - reconhecendo humildemente a nossa condição de pecadores. • viver segundo os valores do Reino é fazer uma conversão moral: é uma mudança na maneira de como nos relacionamos com Deus e com os outros: (1) partilhar os haveres, ter uma bolsa comum; (2) depender da hospitalidade dos outros; (3) ser servo dos outros; (4) não procurar posições de privilégio; (5) não se servir da religião para alcançar o poder, uma posição ou um privilégio. • viver segundo os valores do Reino é fazer conversão política: é trabalhar em prol de: (1) uma ordem económica diferente; (2) uma ordem política diferente; (3) uma ordem cultural diferente atitudes para com os samaritanos e as mulheres; (4) uma ordem religiosa diferente." JPIC, 2001, Justiça e Paz, Manu al pa ra animado res da ju stiça , do paz e da integrida de da criação, Cucujães , Esco la T ipográfi ca das missões, pp. 85 -86 .

Se aceitarmos o desafio, uma nova versão das bem-ave ntu ranças será resc rita, correspon dendo à necess idade de se atualizar, na vida, o que nelas se precon iza.

71

Valores e Ética Cristã


--------------- -- ------- - - - - - - - - - -, I

Síntese

Em te rmos formais, a f undamentação da ética cr istã pode formular-se por três vias: • a lei positiva , escrita; • a exemp laridade do mode lo vivido; • a co nceção so bre a vida, o homem e o sentido da existê ncia. Em te rmos materiais, a f undame ntação da ét ica cr istã encont ra os seguintes alicerces : • f undamento t eológico - em Deus; • f undamento cr istológico - em Jesus Cristo; • f undame nto sote riológ ico - na salvação propost a por Deus; • f undamento pneumatológico - no Espírito Santo; • f undamento da com paixão - na com passividade perant e o sofrimento dos outros; • fun damento escatológico - no crité rio da salvação que é a misericó rdia; • f undamento hamart íol óglco - na redenção do pecado. As bem-aventura nças, enunciadas apenas em Mateus e Lucas , são o código de felicidade em que se fu ndamenta a ét ica cristã. I

I

Educação t.toral e Religiosa Católica

72


r - - -- -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -I

13. A responsabilidade perante o outro e perante o mundo

o co nceito de responsabilidade t alvez só se com preenda, na sua totalidade, recuperando a própria et imologia do termo. 'Responsa' (Latim) evoca a ideia de 'respost a'. Na verdade, como já acima se referia, o homem necess ita de um interloc utor diante de quem possa sent ir-se responsável, senão o conceito de responsabilidade f icará esvaziado e reduzido a um vago sentime nto de dever de explicitação do que se fez ou não fez, ainda que não se tenha com quem. No apartado anteri or desta unidade letiva, referíamos, sumariamente, que este sent ido de responsabilidade se apresenta como um dever perante alguém, mas tamb ém em relação a alguém ou a algo. Abr e-se, nest a últ ima nota , referência à responsabilidade do ser humano perante o mundo, noção que, genuinamente, só poderá evocar-se se houver a co nsc iência de que o mundo não é posse do ser humano. Na verdade, a não ser assim, o dever de cuidar do mundo terá dific uldade em encont rar outro fundam ento para além do mero receio de que, sem se cuidar, o mundo possa extingu ir-se. Na realidade, este parece ser, em muito s casos , o fu ndamento para a abordagem de muitas ét icas ecológ icas. Protege -se o mundo, não porque se lhe reconheça a condiçã o de dom, mas sim porque se receiam as consequências da at uacào humana. Ecologias com este perf il enquadram-se no que acima defi níamos como éticas heteronómicas e não autonómicas. Não deverá ser assim, no caso de uma ecologia de mat riz cristã .

73

Valores e Ética Cristã


-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , I

13.1. A matriz cristã Para melhor comp reender como deverá fundamentar-se a responsabilidade pelo cuidado do mundo, de acordo com a matr iz cr istã, t omemos por referência dois textos bíblicos.

Educação floral e Religiosa Cató lica

74


r - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - I

Deus criou , segundo as suas espécies, os monstros marinhos e todos os se res vivos q ue se movem nas águas , e t odas as ave s aladas, segundo as suas espécies. E Deus viu qu e ist o era bom. Deu s abenç oou -os , d izend o: "Crescei e multipli cai-vos e enc hei as águas do mar e mu lt ipliq uem-se as aves sob re a t erra.» Ass im, surgiu a t ard e e, em seguida, a manh ã: fo i o quinto dia. Deus d isse: «Que a terra pr odu za se res vivos, seg undo as suas espéc ies, an ima is domést icos, répt eis e ani mais ferozes, seg undo as suas espécies.» E ass im aconteceu. Deus fez os animais ferozes, segundo as suas espécies, os an ima is domésticos, segu ndo as suas espécies, e todos os répteis da terra, segundo as suas espécies. E Deus viu que isto era bom. Depois, Deus d isse: «Façamos o ser humano à nossa imagem , à nossa semelha nç a, para que domi ne sobre os peixes do mar, so bre as aves do cé u, so bre os anim ais dom ésti co s e sobre todos os rép t eis qu e rastejam pe la ter ra.» Deu s criou o se r hum ano à sua imagem , criou-o à imagem de Deus; Ele os criou hom em e mulh er. Abençoa nd o- os , Deus disse- lhes: «Crescei e mul tipli cai-vos, enc hei e dominai a terra . Dom inai sobre os pe ixes do mar, so bre as aves dos cé us e so bre tod os os animais q ue se movem na terra.» Deu s disse: «Tam bém vos dou todas as ervas com se me nte que existem à supe rfície da terra, assim como todas as árvores de fru t o com se mente, para que vos sirvam de alime nto. E a todos os an ima is d a terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a terra , igualmente dou por alime nto toda a erva verde que a terra prod uzir» E ass im aconteceu. Deus, ve ndo tod a a sua obra, co ns ide ro u-a mui to boa . Assim, surgiu . a tarde e, em seg uida, a manhã: foi o sexto dia. Foram assim term inados os cé us e a Ter ra e todo o seu co njunto . Concl uída, no séti mo dia, to da a obra qu e t inha f eito, Deu s repou sou , no sét imo dia , de t odo o t rabal ho por Ele realizado . Deu s abe nçoou o sétimo dia e sa nt if ico u-o, vis t o ter sido nesse d ia que Ele re po usou de tod a a ob ra da criação. Est a é a o rigem da cr iação dos céus e da Terra. Quando o Senhor Deus fez a Terra e os céus, e ainda não havi a arbusto algum pelos campos, nem se quer uma p lant a germinara ainda, porq ue o Senho r Deus ainda não t inha fe ito chover sobre a terra , e não havi a homem para a cultivar." Gn 1.1-2,5

Estamos perante dois textos que nos desafiam, por um lado, à prudência, o primeiro, e, por outro, à atitude de descoberta de que não somos a origemda criação, mas que esta nos é anterior. O primeiro dos textos recorda-nos uma das virtudes cardea is, a da prudência, que uma certa abordagem que concebe o progressismo como um caminho sem rumo, tende a minorar e desvalorizar. Contudo, não será difícil encontrar, entre os que mais ousa m, o sublinhado sobre a relev ánela de a respeitar. Recordemos, a título ilustrativo. o que conta Tim Harford" , um reconhecido economista, no seu livro Adopte-se. O sucesso começo sempre pelo fracasso. livro cuja tese é repetidamente aquela que ele recolhe do engenheiro Peter Plachinsky, um dos conselheiros do antigo regime soviético, mas cujas palavras não foram atendidas, sucumbindo, mesmo, às muitas purgas com que o regime vitimou muitos dos seus. Plachinsky defendia três princípios que pretendia aplicar à organização do país: "primeiro, procurar novas ideias e experimentar coisas novas; segundo, quando se experimenta alguma coisa nova, deve-se fazê-lo a uma escala em que se consiga sobreviver ao fracasso: ter13 Tim Harford é um reconhecido economista nor ceiro, procurar retorno e aprender com os erros cometidos à medida te-amencano. com coluna no Financial Times. e que se avança: [Tim Harford retoma, mais adiante, de outro modo, os autor da obra O eco oonus tc disfarçado mesmos princípios:]

75

Valores e ética Cristã


- - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - -, I

"Há três passos essenciais para utilizar os princípios da adaptação nos negócios e na vida do dia a dia, e são, essenc ialmente, os princípios de Plachinsky. Primeiro, experimentem coisas novas, part indo do princípio de que algumas irão fracassa r. Segundo, tornarem possível a sobrev ivência ao fracasso; criem espaços seguros para o fracasso ou avancem em passos pequenos. [...] o truque é encontrar a escala adequada para fazer a experiência: suficientemente significativa para fazer a dife rença, mas não tão arriscada que f iquem arruinados no caso de fracass ar. E, terceiro, certifiquem-se de que sabem quando é que fracassaram, caso contrário, nunca aprenderão." Harford, Tim, 2013, Adapte-se. O suces so começo sempre pelo fra casso, Lisboa, Editorial Presença, pp. 39· 40 e 25 2.

Verifi camos, assim, que o próprio mundo da economi a, t ão marcado pelo risco e pela ousadia, repercute as palavras j á milenares de Jesus Cristo , que apelavam à prudência, acentua ndo a sua atua lidad e e oportun idade intempora l.

13.2. As virtudes cardeais e teologais o

Catecismo da Igreja Católica recorda a relevància das quat ro virtudes cardeais, referindo - as por relação às demais virtudes humanas.

"As virtudes humanas são atitudes firmes, disposições estáveis, perfeições habituais da inteligência e da vontade, que regulam os nossos atos, ordenam as nossas paixões e guiam o nosso procedimento segundo a razão e a fé. [...] Há quatro virtudes que desempenham um papel de charneira. Por isso, se chamam 'cardeais': todas as outras se agrupam em torno delas. São: a prudência, a justiça, a fo rtalez a e a temperança. [...] A prudência é a virtude que dispõe a razão prática para discernir, em qualquer circunst ância, o nosso verdade iro bem e para escolher os justos meios de o atingir. [...] A justiça é a virtude moral que consiste na consta nte e f irme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido. [...] A fortaleza é a virtude moral que, no meio das dificuldades , assegura a firmeza e a constâ ncia na prossecução do bem. Torna f irme a decisão e resisti r às tentações e de superar os obstáculos na vida moral. [...] A temperança é a virtude moral que modera a atração dos prazeres e proporciona o equilíbrio no uso dos bens criados. Assegura o domínio da vontad e sobre os instintos e mantém os desejos nos limit es da honestidade. As virtudes teologa is

As virtudes te ologais fu ndamentam, animam e caract erizam o agir moral cristão. Informam e vivificam todas as virtudes morais. [...] São t rês as virtudes teologais: fé, esperança e caridade. A fé é a virt ude teologal pela qual cremos em Deus e em tu do o que Ele nos disse e revelou e que a Santa Igreja nos propõe para acreditarmos, porque Ele é a própri a verdade. [...] A esperança é a virtude teolo gal pela qual desejamos o Reino dos céus e a vida eterna como nossa felic idade, pondo toda a nossa confiança nas promess as de Cristo e apoiando -nos, não nas nossas forças, mas no socorro da graça do Espírito Santo. [...] A virtude da esperan ça cor responde ao desejo de felicidade que Deus colocou no coração de todo o homem; [...] a esperan ça cristã manifesta-se, desde o princípio da pregação de Jesus , no anúncio das bem-aventuranças. [...]

Educação t.toral e ReligiosaCatólica

76


r- - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -I

I

A caridade é a virtude te ologal pela qual amamos a Deus sobre tod as as coisas por Ele mesmo, e ao próxim o como a nós mesmos, por amor de Deus. Jesus faz da carida de o mandamento novo. l. ..] A Caridade é superior a todas as virtu des. É a primeira das virtudes te ologais. [...] A caridade assegura e pur if ica a nossa capacidade humana de amar e eleva-a à perfeição sobrenatura l do amor divino ." Catecismoda Igreja Católica, Coimbra, Gráfica de Coimbra, 1803-1829.

13.3. Da criação à responsabilidade o segundo texto bíblico tem sido fonte de grandes mal-entendidos. merece ndo cuidada análise, a fim de que possa recolher-se dele aquilo que ele pretende. Deverá, para t al, fazer-se uma adeq uada hermenêut ica que atenda à dist ância temporal que nos separa da sua elaboração (terá sido escrito pela tradição sacerd ota l, redigida no século VI a.C., no contexto do exílio babilónico). "Importa precisar bem [...] que a criação bíblica não é geração. O ser gerado é da mesma nat ureza do gerador. Os seres criados não são da natu reza divina, ao contrário do que vemos emergir muitas vezes nos siste mas mitológicos e panteístas. [...] Ser criat ura signif ica ser não-Deus, mas dever a Deus a sua existê ncia e ter de viver em per manente relação de dependência de Deus, pois a criat ura não se basta a si mesma: recebe-se do cri ador. Nest e sentido, e vistas as coisas ao nosso nível, a relação de cri ação é mais forte do que a relação de geração. Entenda-se: para eu estar hoje e aqui vivo, não é necessário que os meus pais, que me geraram, esteja m vivos hoje. Mas para eu estar hoje aqui vivo, é necessário que Deus me manten ha vivo hoje, que me crie hoje, que vele por mim hoje. l. ..] Fazer a exper iência da criação, por parte do homem, é t ambém fazer a experiência da doação e rececão de si mesmo e do mundo como dom criado, que reclama da sua parte a responsabilida de da dádiva. Trata-se de uma conceção nova de responsabilidade que não é a simples responsabilidade ident it ária ou 'responsabilidade pelo eu', t al como conhecemos na acecão comu m, mas ta mbém f ilosófica, j urídica e política, em que eu respondo pelas minhas at itudes (seria mais correto chamar-lhe coerência), mas da responsab ilid ade radical , 'responsabilidade indeclinável pelo outro' como anterioridade e priori dade sobre o eu. O étimo de 'responsabilidade' remete para 'resposta' e, se é verdade que eu posso responder também a mim mesmo , a minha responsabilidade realiza-se sobretudo quando há verdade ira alteridade. Carmine Di Sante, no seu belíssimo ensaio sobre a Responsabilidade, fala corretamente, em termos bíblicos , de t ríplice responsabilidade : «responsabilidade perante Deus», «responsabilidade pelo próximo», «responsabilidade pelo mundo». A Criação resulta, portanto, da intencionalidade boa, de um ato de amor do Deus criador. Note-se , porém, que, por parte do Deus criador, um ato de amor gratuito é também um mandamento de amor gratuito e exigente proposto à liberdade do homem. Neste sentido, a criação, na Bíblia, não é apenas puro dom de Deus ao homem, mas também a constituição do homem como partner de Deus e sua interpelação a amar como Deus ama. A criação não é, portanto, um mero dado de facto, mas um evento que se acende sempre que um homem recebe o mundo como dom e se recebe a si mesmo como dom e, por amor, o dá outra vez e se dá outra vez. A criação diz-nos que o sentido das coisas não é a sua existência, o seu simples 'estar-aí' (Dasein), mas o seu ser dadas, o seu ser dom. Verdadeiramente, as coisas são dom, e o seu ser é o seu ser dadas. Um objeto não é a sua forma, dimensão, preço, cor, força e movime nto, mas um ato de Deus. No plano criacional, não há o ser das coisas e, depois , sucessivamente, e por sobre posiç ão, o seu ser dadas; pelo contrário, é precisa mente o seu ser dadas que constitu i o seu ser. É este o sentido que as habita e as faz ser. É esta a razão e a intencionalidade que as anima. Em última análise, ist o significa que a criação bíblica não é uma operação automática, porque reclama sempre o meu consenti mento e a minha liberdade." Couto, António, 2013, O livro do Génesis, Leça da Palmeira, Autor/L etras e coisas, pp. 15, 23-24.

77

Valores e Etica Cristã


---- -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , I

13.4. A natureza e a humanidade em algumas das grandes religiões "Budismo, Taoísmo a Zan A Terra é algo vivo, harmoniosamente equilibrado pelas forças opostas, yin e yang. As pessoas têm de manter o equilíbrio da natureza. Isso é inteiramente da sua responsabilidade. Hinduísmo Tudo é sagrado e faz parte de Deus. As pessoas devem usar apenas o que precisam e devem fazê-lo com responsabilidade. Estes dois sistemas religiosos dão muita ênfase à necessidade de se encontrar a harmonia interior através da meditação e da união da Terra e a grande Força da Vida que mantém o equilíbrio de todas as coisas . Judaísmo Deus é o Criador de um mundo bom. As pessoas são responsáveis pelo uso dos dons que lhes foram atribuídos por Deus em benefício dos outros e ao serviço de Deus na Terra. Islão Deus é o Criador de um mundo bom. As pessoas são responsáveis pelo uso correto dos dons que lhes foram atribuídos por Deus e não devem desperdiçá-los. Cristianismo Deus é o Criador de um mundo bom, que a rebelião humana põe em risco e que será restaurado um dia. O homem é o 'caseiro' corrompido da criação, responsável pelo uso regrado dos recursos e pela proteção do ambiente. Os últimos três sistemas religiosos evidenciam a supremacia da humanidade em relação à criação. Mas este domínio não é ilimitado. Nós somos os caseiros (responsáveis por algo que não nos pertence) e não os donos da criação." Os aborígenes australianos (talvez a mais antiga cultura contínua do mundo) veem-se a si mesmos como ligados à terra por histórias e lugares do tempo dos Sonhos (o eterno processo da criação)... É uma terra sagrada, moldada pelos antepassados do Tempo dos sonhos, cheia de poder e de mensagens para os aborígenes." Opie, Frank, 1994, Escuteiro global: um escutismo poro

Q

natureza e o ambiente, 5.1., Cor po Nacional de Escutas , pp. 153-154.

No texto de D. Antón io Couto, recolhem- se dados muito relevantes para a fundamentação de uma ét ica eco lógica de matriz cristã : • o mundo não é divino. não é, por isso, um f im em si mesmo; • o mundo é dom, pelo que lhe é devido o cuidado e a proteção que perm itam ser restituído e não destruído; • o mundo e o homem estão marcados pelo dinamismo do dom: valem enquanto se doam, não têm sent ido enquanto fechados em si mesmos; • a ética do cuidado nasce do reconheciment o da bondade do mundo que lhe vem da sua condição de criado por um Deus bom. Corroboram esta síntese aqui apresentada os t extos que abaixo se apresentam.

Educação Mora l e Religiosa Católica

78


, - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - -- - - -- - -- - - I

A palavra de Deus e a defesa da criação

"O compromisso no mundo requer ido pela Palavra divi na, imp ele- nos a ver com olhos novos todo o universo criado por Deus e que tr az já em si os vestígios do Verbo, por Quem t udo foi feito (cf. Jo 1, 2). Com efeit o, há uma responsab ilidade que nos com pete, como f iéis e anu nciadores do Evangelho, ta mbém a respeito da criação . A revelação, ao mesmo t empo que nos dá a conhecer o desígnio de Deus sobre o universo , leva-nos também a den unciar os comportamentos errados do homem, quando não reconhece todas as coisas como reflexo do Criador, mas mera matéria que se pod e manipular sem escrúpulos. Deste modo, falta ao homem aquela humildade essen cial que lhe permite reconhe cer a cria ção com o dom de Deus que se deve acolher e usar segundo o seu desígnio. Ao contrário, a arrog ância do homem que vive como se Deus não existisse, leva a explorar e deturpar a natureza, não a reconhecendo como um a ob ra da Palavra criadora. Neste quadro t eológico, desejo lembrar as af irmações dos Padres sinoda is (Sínodo de 5 a 26 de outubro de 2008) ao recordarem que o facto de «acolher a Palavra de Deus atestada na Sagrada Escritura e na Tradição viva da Igreja, gera um novo modo de ver as coisas, promovendo uma ecologia autêntica, que tem a sua raiz mais profunda na obediência da fé, (. ..) e desenvolvendo una renovada sensibilidade teológica sobre a bondade de todas as coisas, criad as em Cristo». O hom em precisa de ser novamente educado para se maravilhar, reconhecendo a verdad eira beleza que se manifesta nas coisas criadas." Bent o XVI, 2010 , Verbum Domini, 0 .0 108 .

o cuidado pela Natureza "O t ema do des envolvim ento aparece , hoje, est reita men te associado t ambém com os deveres que nascem do «relacionamento do ho m em com o am biente nat ural». Este foi dado por Deus a todos, consti t uindo o seu uso uma responsabilidade que t emos para com os po br es, as geraçõ es futu ras e a humanidad e int eira. Quando a natureza, a começar pelo se r humano, é considerada como fruto do aca so ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece o resultado maravilhoso da interven ção criadora de Deus, de que o homem se pode respon save lmente ser vir para satisfaz er as sua s legítimas exigências - materiais e im ateriais - no res pei t o dos equi lfbrios intrínsec os da própria cr iação. Se fa lt a est a perspetiva, o home m acaba por consi derar a natureza um tabu int oc ável ou, ao co ntrário, por abusar de la. Nem uma nem outra destas atitud es cor responde à visão cr istã da nat ureza, fruto da cria ção de Deus. «A natureza é expressão de um desígnio de amo r e de verdade». Precede-nos, tendo-nos sido dada por Deus como ambiente de vida. Fala-nos do Criador (cf. Rm 1,20)e do seu amor pela humanidade. Está destinada, no f im dos tempos, a ser «instaurada» em Cristo (cf. Ef 1,9-1 0; Co/1 ,19-20). Por conse guinte, também ela é uma 'vocação'. A natureza está à nossa disposição, não como «um monte de lixo espalhado ao acaso», mas como um dom do Criador que traçou os seus ordenamentos intrínsecos, dos quais o hom em há de t irar as devidas orientações para a «guardar e cultiva r» (Gn 2,15). Mas é preciso sublinhar também que é contrário ao verdadeiro desenvolvimento consid erar a natureza mais importante do que a própria pessoa humana. Esta posiç ão induz a comportamentos neopagãos ou a um novo panteísmo: só da natureza, entendid a em sentido puramente natu ralist a, não pode derivar a salvação para o homem. Por outro lado, há que rejeitar também a posição opost a, que visa a sua completa tecnicizaç ão, porque o ambiente nat ural não é apenas matéria de que dispor a nosso bel-prazer, mas obra admirável do Criado r, conte ndo nela uma 'gramática' que indica f inalidades e critérios para uma util ização sapient e, não inst rumental nem arbitrária. Advêm , hoje, muitos danos ao desenvolvimento precisamente destas conceções deformadas. Reduzir completamente a natureza a um conj unt o de simple s dados reais acaba por ser fonte de violência contra o ambiente e até por motivar ac ões desrespeitadoras da própria natureza do homem . Esta, constituída não só de maté ria mas t ambém de espírito e, como t al, rica de significados e de fins t ranscend ente s a alcançar, t em um caráct er normativo ta mbém para a cultu ra.

79

vaíores e Etica Cristã


---- - - - - - - - --- - -- - - - - - - - - ----- -- - - , I

I

o homem interpreta e modela o ambiente natural através da cultura, a qual, por sua vez, é orientada por meio da liberdade responsável, atenta aos ditames da lei moral. Por isso, os projetos para um desenvolvimento humano integral não podem ignorar os vindouros, mas devem ser «animados pela solidariedade e a justiça entre as gerações», tendo em conta os diversos âmbitos: ecológico, jurídico, económico, político, cultural." Bento XVI . 20 0 9, ce-rres ;n veritote, n.e 4 8.

Dos valores à ação: os objetivos da educação ambiental

"O obj et ivo da educação ambiental é promover estilos de vida pessoa is responsáve is, em harmonia com o amb iente. Isto implica educação e ação respons ável com base em princípios ambientai s saudáveis. Os princípios da educação amb iental são, entre out ros: 1. Uma educação para o ambiente na sua globalidade, o que inclui o natural, o artif icial, o ambiente social e todos os fato res relevant es para a vida human a e as relaçõ es entre eles. Engloba, também um entendimento dos nossos valores e a inf luência das condições socioeconómicas em ações de defesa e uso abusivo do ambiente (poluição e desperdício). 2. Educação através de uma participação ativa e global. Utilizam-se diversos métodos de atividades interativas, incluindo serviço comunitário, a educação para os valores e a resolução de problemas. Estas ações procuram desenvolver atitudes e sistemas de valores que levem a uma melhoria do ambiente total. 3. Educar a partir das condições ambie ntais locais para as condições do ambiente mundial pensa r globalmente e agir localmente. 4. Educar para o envolvimento individual e de grupo com uma participaç ão pública. Assim, a educação ambiental procura realçar os con hecimentos e as técn icas necessárias a uma ac ão construtiva e à noção de que somos efet ivamente agentes da mudança . 5. Uma educação contínua adapta da a todas as idades e para todos os níveis." Opie, Frank, 1994. Escuteiro global: um escutismo pora a natureza e o ambiente, 5.1., Co rpo Nacional de Escutas, pp. 25-26.

Que est raté gias deve rão formular-se para conc retiza r cada um destes objet ivos da educação

ambiental? Como caracteri za o papa Bent o XVI as posiçõe s ecol ógicas que não pa rtem do reconh ecimento da nat ureza co mo obra criada? Que riscos associa a

cada uma dessas posições? Como se define uma ecologia de matriz cristã perante tais abordagens?

Síntese • A responsabilidade é a co ndição de quem se sabe em atitu de de resposta pela sua ação. • Os relatos bíblicos da criação, mais do que descriçõe s sobre co mo oc orreu a ac ão de Deus, definem a natureza do mundo perant e Deus: • o mundo não é divino, não é, por isso, um f im em si mesmo; • o mundo é dom, pelo que lhe é devido o cuidado e a prot eção que perm itam ser resti tuído e não destruído; • o mundo e o homem estão marcados pelo dinamismo do dom: valem enquanto se doam , não têm sent ido enquanto fechad os em si mesmos; • a ét ica do cuidado nasce do reconhecimento da bondad e do mund o que lhe vem da sua cond ição de criada por um Deus bom.

Educacáo Mor al e Religicsa Ca tó lica

ao


r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - I

14. Do cuidado do mundo ao cuidado pelo outro Da justiça ao amor - do amor à justiça

r-- - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - -- I

I

o Papa Francisco , numa das suas primeiras homili as após te r sido eleit o Bispo de Roma, est abeleceu um nexo entre a con dição de cui dadores da criação e cuidadores dos out ros. Esse é um nexo que deverem os analisar, detidamente, de seguida.

"Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros, para guardar a criação! Entretanto, a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação , como se diz no livro do Génesis, e nos mostrou S. Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos. É guardar as pessoas, cuidar carinhosamente de todas elas e cada uma, especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis, e que muitas vezes estão na periferia do nosso co ração. É cuidar uns dos outros na fam ília: os esposos guardam-se reciprocamente; depois, como pais, cuidam dos filhos e, com o passa r do tempo, os próp rios filhos tornam-se guardiões dos pais. É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo guardar-se na intimidade, no respeito e no bem . Fundamentalmente, tudo está confiado à guarda do homem, e é uma responsabilidade que nos diz respeito a todos. Sede guardiões dos dons de Deus." Papa Francisco. 2013, Rezemos uns pelos outros. O início do pontificado do Popo Francisco, Cascais, Lucerna. p. 31.

81

Valores e !:tica Crista


--- - - - - - - - - - - - - - - - - - ---- - - - - - - - - - - , I

14.1. A parábola do bom samaritano e o desafio de nos tornarmos próximos dos outros o desafio de partirmos ao encontro do outro encontra, na parábola do bom samaritano, um dos seus textos modelares. Importa, para uma mais adequada interpretação do texto, ter em conta que a escolha da personagem do samaritano para protagonista da história tinha, por parte de Jesus, a intenção de suscitar, nos ouvintes, a surpresa. Na verdade, colocar a virt ude da busca da proximidade num protagonista que era, aos olhos dos judeus, o sinónimo de profanador,'e não de homem respeitador da lei e da justiça, pretend ia suscitar o espanto e obrigar à reflexão atenta. :~ - - - - - - - - - - -_ . _ - - ~ - - - - -- - - - - - - - - - - - ~

"Mas ele, querendo justificar a pergunta fe ita , disse a Jesus: «quem é o me u próximo?» Tomando a palavra, J esus respondeu : «Certo homem descia de Jerusalém para Je ricó e caiu nas mãos dos salteado res que, de pois de o despojarem e encherem de pancadas, o aba ndonaram, deixando-o meio morto. Por coincidência, descia por aque le camin ho um sacerdote que, ao vê -lo, passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passo u po r aquele lugar e, ao vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, qu e ia de viagem, chegou ao pé dele e, ve ndo-o, encheu-se de compaixão. I

Ap ro ximou- se, ligo u-l he as feridas, deit and o nelas azeite e vi nho, col oc ou- o sob re a sua pr óp ria mon t ada, levo u-o para um a esta lagem e cuidou de le. No dia seguinte, t irando doi s denári os, deu- os ao esta laj ade iro , d izendo : 'Trata bem de le e, o que gasta res a mais, pagar-to-ei qu and o vo lta r.' Qual destes três te parece te r sido o próximo da quele ho mem que ca iu nas mãos do s sal teado res?» Respon de u: «O que uso u de misericórdi a para com ele.» J esus retorquiu : «Vai e f az tu t am bém o mesmo»," Lc 10.30-37

-- -

--

- -

- -- -

-- -- --

--

-- -

-

- - - - - - - - - - -I

Interpretação da parábola Bento XVI, no seu livro Jesus de Nazaré, sintetizou os dados fundamentais para a compreensão desta parábola, transportando-nos à época e permitindo-nos realizar uma hermenêutica que nos possibilita compreender a densidade desta, que é uma das mais reconhecidas e lidas parábolas evangé licas. Este reconhecimento muito se deve à plasticidade desta narrativa, que se presta a fácil atualização e adequação a cada época e lugar. Esse mesmo exercício foi realizado por João César das Neves que, no seu livro Contos de Not ai (1999), reconstruiu a parábola com personagens e cenários atuais. Uma atualização que poderá ser feita em cada cidade, em cada escola, em cada tempo.

"No centro da história do bom sam ar itano , está a questão fundamenta l do homem . [oo .] Em concreto, eis a pergunta: Quem é o «próximo»? A resposta corrente, que podia apoiar-se inc lus ivamente em te xtos das escr ituras, afirmava que o 'próximo' significava o 'concidadão'. [oo .] Em geral , cons iderava-se parte da comunidade so lidária e, consequente ment e, 'próximo' apenas o estrangei ro q ue se f ixou na t er ra de Israel. Havi a em voga out ras lim itações do co nceito 'próx imo'. Um dit o dos rabinos ensi nava que não era preciso considerar 'próximo' hereges, esp iões e ap óstata s. Além disso, era vulga rmente aceite qu e os samarita nos - em Jerusalém, po uco antes (entre os anos 6 e 9 d epois de Cristo), tinh am profanado o átrio do t emplo, preci sam ente no s dias da Páscoa, espal hando lá oss os humanos - não eram 'próxim os'

Educaç ão Mera! e Religiosa Cató lica

82


r - - - - - - - - - - - - -- - - -- - - - - - - - -- - - - - - -I

I

[...] Voltemos ao samaritano que acaba de aparece r na est rada. Que irá fazer? Não se pergunt a até onde chegam os seus deveres de solidariedade nem sequer quais sejam os merecimentos necessários para a vida eterna. Acontece outra coisa: sente o coração despedaçar-se-Ihe; o evangelho usa aqui a palavra que originariamente em hebraico indicava o vent re materno e o carinho de mãe. Ver o homem naquelas cond ições comove -o até às 'ent ranhas', até ao mais ínt imo da alma. «Encheu-se de compa ixão»: traduzimos hoje, atenuando a vivacidade originá ria do texto. Em virtude do raio de misericórdia que fere a sua alma, to rna-se ele mesmo o próximo, deixando de lado to da a questão e todo o perigo. Aqui, porta nto, a questão mudou: j á não se trat a de esta belecer quem de entre os outros seja ou não meu próximo. Trata-se de mim mesmo. Eu devo tornar-me o próximo, e assim o outro conta para mim como se fosse 'eu mesmo'. Se a pergunta tivesse sido: «o samaritano é tamb ém meu próximo?», então , na referida situação, a resposta te ria sido um «não» decid idamente claro. Mas Jesus inverte a questão: o samaritano, o estrangeiro, faz-se a si mesmo próximo e mostra-me que é, a partir do meu íntimo, que devo aprender o ser-p róximo e que t rago a resposta já dentro de mim. Devo torn ar-me uma pessoa que ama, uma pessoa cujo coração está aberto para deixar-se impressionar perante a necessidade do outro. Então, encontro o meu próximo, ou melhor: é ele a encontrar-me." Be nto XVI. 2007, Jes us de Nazaré. Lisboa, A esfera dos livros. pp. 250 -2 53.

o próximo é o próprio Cristo ~ uma interpretação errónea aquela que considere que amar os out ros por causa do amor a Deus signifiq ue secundarizar o out ro e co locá- lo em situaçã o alienada, como se a verdadeira fonte do amor ao out ro não fosse ele mesmo, mas apenas o amor a Deus. Esta é uma interpretação que introduz um dualismo que é estranho à leit ura cristã sobre o tornar-se próximo do outro. Na verdade, o outr o não é caminho para algo fora de si. Ele é f im em si mesmo. Tal abordagem é a que nos deixa, de modo transparente, um dos maiores teólogos do século XX, Hans Urs Von Balt hasar" .

"O cristão encont ra Cristo no pro xrrno, não atrás dele ou para lá dele; é apenas isso o que corresponde ao amor encarnatório e sofredor daquele que se chama, sem artigo, «Filho de Deus» (Jo 5,27), e que é o mais próximo de todos em todo aquele que se aproxima de mim. [...] Todo o encontro cristão é um acontecimento no seio desta comunhão, e uma missão autêntica, a partir de Cristo e da Igreja, consiste sempre em encarar a situação concre ta, como representante do todo e da ideia plena do amor. Tal é o impe rativo categórico cristão, em virtude do qual o amor absoluto, ultra passando 'como dever' toda a inclinação individual, tu do atrai e eleva a si, com o caráter inexorável da cruz de Jesus Cristo e com a dureza e veemência do Cristo vivo, que faz passar o seu amor através da história do mundo.[...]" Balthasar, Hans Urs von, 2008, Só o omoré digno de fé, Lisboa , Assírio e Alvim, p. 103 .

14

Hans Urs vc n Balthasa r (Luce rna , 12 de agosto de 190 5 - Basileia, 26 de junho de 1988) foi um sacerdote, teólogo e esc ritor suíço. E considerad o um do s ma is impo rtan tes teólogos do séc ulo XX. O papa Bento XVI, afi rmo u que "a sua vida foi uma genuina busca da verdade", ent en dida como "busca da verdade ira vida".

14.2. O amor ao próximo nasce de um amo r primeiro: o de Deus Eduardo Lopez Azpitarte acrescenta , ainda, mais uma nota : o out ro é amado, não para se at ingir um determinado fim (por exemplo, a salvação), mas sim porque fomos amados primeiro.

83

Va lores e Etica Cris tã


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

I

"Porque crê em Deus e se sente chamado à sua amizade, porque busc a a imitação e o seguimento de Cristo, porque a sua pessoa const itu i o amor mais absoluto da existência, o cristão possui uma motivação ext raordinária que talvez não possu ísse se buscasse somente a honradez e honestidade de uma conduta . Assim, quando a fé ressoa com força no interior do coração, cria-se um mundo de motivaçõ es que estimula a uma coerência na vid a. [...] a moral teria vigência mesmo na hipótese de que Deus não existisse, mas f icaria uma inter rogação posterior: seríamos capazes de vivê-I a e de nos sentirmos com prometi dos com ela sem o dinamismo da fé? Inclusive, mesmo que tivéssemos est a capacidade, como muitas pessoas agnósti cas o demonstram, o distin t ivo mais claro e específico de uma condut a cris tã radicaria nesta últ ima intencionalidade religiosa: queremos ser bons não só para nos realizarmos com o pessoas e respon der às exigências de uns valores human istas, mas sobretudo, para demo nstra r a Deus o nosso car inho e amizade. O amor impulsiona e motiva a um estilo de condu t a que se torna válido para todas as pessoas e que, para o cristão, se converte, além do mais, numa resposta agradecida ao Senhor. A vida cr istã tem , como raiz e fundamento, este poder de atrac ão que der iva do nosso destino sobrenatural." Azpitarte, Eduard o López , 2003 . Paro uma novo vis ão do étic a crista, Santander, Sal t erree. p. 239 .

Este amor tem uma característica que o define: é incondicional

"A plena libertaçã o realiza-se na práti ca do amo r incond icional como princípio organizado r das relações ent re as pessoas. O amor não divide, une. O próprio amor a Deus passa pelo amor ao próximo (Mt 23,27-39). Para J esus, próximo é aquele de quem eu me aproximo. E ele aproxima-se de t odos, mas principalmente daqueles de quem ninguém que r aproximar-se, como os marginalizados, os pobres, os enfermos e os que têm má fama . Para ele, amar o próximo é amar part icularmente estes . «Amar a quem nos ama, que graça tem? Os maus também amam a quem os ama» (Lc 6,32). No amor aos invisíveis e desprezados, revela-se o singular do amor querido por Jesus, quase nunca praticado pelos cristãos nem pelas igrej as. Na realidade, o amor incondic ional é um só movimento para o outro e para Deus. Jesus quis que todos amassem o Pai-Abba como ele o amou, com ext rema confiança e intim idade. Quem tem esse amor tem tudo, porque Deus é amor (1 Jo 4,8)." Bof f, Leonardo, 2013, Cris tianismo . O mínim o dos mínimos. Mad rid, Trot ta , p. 60.

É noite enquanto não virmos o outro como irmão

"O rabi Pinchas perguntou aos seus disc ípulos como é que se reconhece o momento em que acaba a noite e começa o dia. «É o momento em que há luz suficiente para distinguir um cão de um carnei ro?», perguntou um dos discípulos . «Não», respondeu o rabi. «É o momento em que consegu imos distinguir uma tamarei ra de uma figue ira?», perguntou o segundo. «Não, também não é nesse momento», replicou o rabi. «Então é quando chega a manhã?», perguntaram os discípulos. «Também não. É no momento em que olhamos para o rosto de qualquer pessoa e a reconhecemos com o nosso irmã o ou nossa irmã», replicou o rabi Pinchas. E concluiu: «Enquanto não o consegu irmos, continua a ser noite.»" Hallk, Tomas, 2014, A noite do confessor. A fé cristd num a era de incerteza, Prior Velho, Pautlnas, pp . 277· 278.

Educação t.tor at e Religiosa Católica

84


r - - - - - - - - - - ------ - - - - - - - - - - - -- - - - - I

o amor funda-se no Amor, a Trindade

15

Romano Guardini (1885-1968), teólogo itato-germ ânico. auto r de A con sceoctc cristã. Ensaios sobre Pascal. O senti do da fgrejo. O fim do época

moderno, O es pirita do Litu rgia .

O dogma da Sant íssima Trindade tem preenchido muitos dos debates com que o Cristianismo se tem confrontado, ao longo destes dois mil anos. Para muitos , a dificuldade em entendê-lo é pretexto para o silenciar e enuncia r, sem dele retirar as consequências que a sua enunciação deveria comportar. Teremos de pressu por, como dizia Romano Guardlni" , que "quem sabe de Deus conh ece o homem", sendo que, pela sua cond ição de criado à imagem e semelhanç a de Deus, o que Deus nos revelar que é esta rá a dizer-nos quem somos. Dito de modo mais simples: sendo a Trindade a afirmação da co ndição intrinsecamente relacional de Deus, o homem, então , não pode ser senão relação.

"I...] a ideia de relação é centra l para a doutrina cristã de Deus. «O ser de Deus é um ser relac ional: se m o conceito de comunhão não seria poss ível falar do ser de Deus.» Como Trindade, o Deus cristão não é somente uma unidade, mas uma união; não é só pessoal , mas interpessoal. Deus não é somente amor a si mesmo, mas amor compartilhado. Em palavras de Barth , o Deus cristão «não é um Deus solitário». [...] Sem o conceito de comunhão não é pos sível falar do ser de Deus; assim também , sem o conceito de comunhão não é possível fa lar do ser humano. Deus é a utodoaç ão, participação, resposta: assim é também a pessoa humana. [...] Deus expressa-se desde toda a et ernidade numa relação de eu-e-tu: assim também o faz dentro do tempo a pessoa humana. A imagem divina na qual fomos criados como seres humanos não está na posse de nenhum de nós em isolamento, mas sim que só chega ao seu pleno cumprimento no 'entre' do amor, no 'e' que une o 'eu' ao 't u'. Por isso, ser uma pessoa à imagem de Deus como Trindade é ser uma pessoa-em-relação. O eu pessoal é social ou não é nada. O autêntico ser humano não é egocêntrico mas sim exocêntrico. Só sou verdadeiramente humano, verdadeiramente pessoal, na medida em que recebo os outros como pessoas. É a relação que me faz passar de 'indivíduo', de unidade - o que se chama em grego 'át ornon' - a 'pessoa', a semelhante, a 'rost o' - o que se diz em grego 'pr ósopon'". Como ícone da Trindade, só chego a ser verdadeiramente eu l ti Originalmente. a palavra 'próso po n' que r dize r 'máscara', Contudo, com o a má scara e ra utilimesmo se me volto para os outros, os olho nos olhos e os zada no teatr o grego, se rvindo de e lemento que deixo olharem-me nos olhos. " transformava a personalidade do ator na personalidade da pe rsonage m, a 'prósopon' passou a definir a 'pe rso nage m' e a 'pe rsonalidade'.

Ware, Kallistos, in Polkinghorne, John (e d.), 2013, A trindade e um mundo entrelaça do, Estella, Editonal Verbo Divino, pp. 142,1 62.

"O amor do próximo, radicado no amor de Deus, é um dever antes de mais para cada um dos fiéis , mas é- o também para a comunidade eclesial inteira, e isto a t odos os seus níveis: desde a com unidade local, passando pela Igreja particular, até à Igreja universal na sua globalidade. A Igreja ta mbém, enquanto com unidade, deve praticar o amor. Consequência disto é que o amor tem necessidade t ambém de organização, enquanto pressuposto para um serviç o comu nitário ordenado. A consc iência de t al dever teve relevância constitutiva na Igrej a desde os seus inícios: «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tu do em comu m. Vendiam terras e outros bens e dist ribuíam o dinheiro por to dos de acordo com as necessidades de cada um» (At 2,44-45). Lucas conta-nos ist o no quadro duma espécie de def inição da Igreja , entre cujos element os constitu t ivos enumera a adesão ao «ensino dos Apóstolos», à «com unhão» (koinonia), à «frac ão do pão» e às «orações» (cf. At 2,42). O elemento da «com unhão» (koinonia), que aqui ao início não é especifi cado, aparece depois concretizado nos versículos ant eriorme nte cit ados: co nsist e precisamente no facto de os crentes t erem tudo em comum, pelo que, no seu meio, já não subsiste a diferença entre ricos e pobres (cf. também At 4,32-37). Com o cresci mento da Igreja, esta fo rma radical de comun hão material - verdade se diga - não pôde ser mant ida. Mas o núcleo essencial f icou: no seio da comunidade dos crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida cond igna." Bento XVI, 2005, Deus centos est, 20.

85

Valores e E?tica Cristã


--- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ---------- - , I

I

14.3. O amor e a justiça

I

Temos vindo a refer ir-nos ao amor, concebendo-o como o reconhec imento da int rinseca sacra lidade do outro , condição que lhe confere uma dignidade insuscetível de manipulação. Est a precisão é necessária, pois, muitas vezes, ao t ermo 'amor' associam-se ideias que não são as que aqui precon izamos. Com o int uito de salvaguardar que o amor não é um vago sent imento, alheio à verdade do out ro, Bento XVI sublinhou, na sua encíclica Corito s in veritote que o amor sem respeito pela verdade é sentimentalismo. No texto seguinte, esta prec isão faz-se também na relação com o conceito de jus tiça. O amor deve sup ô-Ia.

I I

I I

I

__ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ JI

"Cada soc iedade elabora um sistema próprio de justiça. A caridade supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é 'meu'; mas nunca existe sem a justiça, que induz a dar ao outro o que é 'dele', o que lhe pertence em razão do seu ser e do seu agir. Não posso 'dar' ao outro do que é meu , sem antes lhe ter dado aquilo que lhe compete por justiça. Quem ama os outros com caridade é, antes de mais nada, justo para com eles. A justiça, não só não é alheia à caridade, não só não é um caminho alternativo ou paralelo à caridade, mas é «insepar ável da caridade», é-lhe int rínseca. Ajustiça é o primeiro caminho da caridade ou, como chegou a dizer Paulo VI, «a medida mínima» de, parte integrante daquele amor «por ações e em verdade» (1 Jo 3,18) a que nos exorta o apóstolo João. Por um lado, a caridade exige a justiça: o reconhecimento e o respeito dos legít imos direitos dos indivíduos e dos povos. Aquela empenha-se na construção da «cidade do homem» segundo o direito e a justiça. Por outro, a caridade supera a justiça e completa-a com a lógica do dom e do perdão. A «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão. A caridade manifesta sempre, mesmo nas relações humanas, o amor de Deus; dá valor teologal e salvífico a todo o empenho de justiça no mundo." Bent o XVI, 2009 , Caritas in veritate , 6.

-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - l 14.4. A Injustiça Já em momento anterior, recordava- se que, muitos dos concei tos aqui analisados , poder iam ser abor dados pelo seu negativo. Podemos não saber o que é a j ust iça, mas saberemos, seguramente, o que é a injustiça. É curioso o texto seguinte, recolhido de um dos Padres da Igreja, S. Basílio".

17

S. Basí lio nasc eu em Ces arei a d a Capadócia (atua l Turqu ia), em 329 e morreu em 379 . Foi bispo de Cesarei a e metropolita da Capadócia. Escreveu, com S. Gregório Nazianzeno . a Phi/oc o/ia (ant ologia das obras de Orígenes). Deve-se-lhe. ainda,

Contra Eunómio, uma obra de defesa da ortodoxia so bre a natureza divi na d e Jesus Cristo, c on t ra o herege que dá nome a est a obr a em t rês livros . Dele é, ta mbém, um tr ata do sob re o Espírito Santo.

"A quem - dizes - causo prejuízo retendo o que é meu? E que coisas - diz-me - são tuas? Tomaste-as de alguma parte e vieste a esta vida com elas? É como se alguém, por ocupar primeiro um lugar no teatro, expulsasse depois todos os que entram, tornando co isa sua o que está ali para uso comum. Tal são os ricos. Por se terem apropriado primeiro do que é comum, apropriam-se delas a t ítulo de ocupação primeira. Se cad a um tomasse o que cob re a sua necessidade e deixasse o supérfluo para os necessitados, ninguém seria rico, mas ninguém seria tão-pouco pobre. Não saíste nu do ventre da tua mãe? Não hás de voltar igualmente nu ao seio da te rra? Pois bem, o que agora tens, donde procede? Se respondes que do acaso, és ímpio, não reconhecendo o Criado r e não rendendo graças àquele que tudo te deu. Mas se confessas que tudo te vem de Deus, diz-nos a razão pela qual as recebeste." s. Basíli o, H. Dest ruam

7, se gund o Restltut o Sie rra Bravo, 1997, Dici onário soc ial dos Padres da Igreja , Madrid, Edibes a, p. 172.

Educação t.t oral e Relig iosa Cató lic a

86


r--- - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ---I

Dados da Injustiça Mundial

14.5. A luta pela justiça e evangelização - o núcleo da revelação cristã A luta pela j ust iça não é um apêndice da ação cristã. Pelo cont rario, ela pertence, mesmo, ao núcleo da própr ia revelação ju daico-cristã. Disto nos da conta o teó logo sul-africano, Albert Nolan, no text o seguint e, onde vincula o amor à justiç a, no próprio processo de revelação de Deus.

14.5.1. Deus e a justiça "Na Bíblia, a justiça é primeiro e sobretudo um atributo de Deus. Deus é justo, não s6 porque é equitativo e honesto em todas as suas relações com os seres humanos, mas também porque toda a sua atividade consiste em corrigir o que está mal no mundo, e todas as leis e mandamentos de Deus exigem simplesmente que se faça justiça. De facto, a justiça é a característica distintiva do Deus da Bíblia. Yahvé é o Deus da justiça, e assim é precisamente que se diferencia de todos os

87

Valores e Etica Crista


-- - - - - - - - - - - - - - - - - - --- - - - - - - - - - - - - , I

dema is deuses adorados pelos seres humanos. Os ídolos ou fa lsos deuses promovem a t irania e a opressão, e exigem práticas inj ust as como os sacrifíc ios humanos e a prostituição cultua l. Por este motivo, os profetas sabiam que eram falsos deu ses ou, melhor dito, que não eram deuses. Esta é a razão pela qual preocupava tanto aos profetas a idolat ria. Esta cons istia em dar culto à inj usti ça e à opressão, porque o Deus verdadei ro é justiça. Estamos acostumados ao dito joãnico «Deus é amor». Mas seria igualment e verdadei ro dizer que a revelação fu ndamental e orig inal da Bíblia é que há um Deus que é justiça, e que o nome desse Deus é Yahvé - mais ainda , que não há outro Deus. Ya hvé revelou-se como o Deus da j usti ça, através de Moisés, a um grupo de escravos hebreus que trabalhavam no Egit o e sofriam indizivelmente sob a injustiça dos seus amos egípcios. A sua op ressão como traba lhadores era cada vez mais severa e, como todos os dema is escravos e camponeses do mundo ant igo, não t inham nenhuma espe rança de ser libertados da injust iça e da op ressã o. Os deu ses eram como os reis , e os reis não estavam int eressados nos problemas dos escravos . O faraó era chamado 'o f ilho de deus', e é pos sível que, naque la et apa da revelação, os hebreus t enham pensa do que o Deus dos seus pais, o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, era excelso e poderoso, mas indif erent e à aflição de uns quant os hebreus pobres e insign if icantes. Ent ão veio Moisés com a boa nova de um Deus que sent ia com paixão deles na sua situa ção desesperada; um Deus afetado pelos sofrimentos dos t rabalhadores; um Deus que, ao cont rário de qua lquer outro deus e de qualq uer ser humano, queria lib ertar os escravos da sua op ressã o. Era algo inaudit o. Aos deus es não preo cu pava a j usti ça pelos pobres e op rimidos . A novidade da reve lação de Yahvé consistia precisamente em que era o Deus da justiça para os pobres e oprimidos, o Deus libert ador. «Eu sou Ya hvé. Eu vos libertarei das cargas que os egípcio s lançam sobre as vossas costas. Eu vos libertarei da escravid ão.» (Ex 6,6). [...] J esus é o ju st o [At 3,13; 7,52). Ele corpo riza, encarna e revela a j ustiça de Deus (Rm 1,1 6-17; 3,21-22;4,25), e inaugura o novo projeto histórico de con strução de um mundo justo, que ele chama «o reino de Deus e da sua j ust iça» (Mt 6,33). Alguns cr ist ãos pensam que o Novo Testamento diz muito pouco sobre a justiça, e que o amor a substitu i co mo a virtude fu ndament al e que abarca tudo. Mas só é possível pensar assim se se considera r que a justiça é uma virtude entre muitas outras. O Novo Testamento gira t odo ele em redor da 'j ustiça' e este termo emp rega-se co m muita frequência se recordamos que 'ret idão' signif ica 'j ust iça', e que 'j ust if icação' quer dizer faze r j ust o algo ou alguém , co rrigir o que está mal. Jesus dei xou bem claro desde o prin cípio que não t inha vi ndo para abo lir a lei, mas dar-lhe cu mprimento, quer dizer, que não t inha vindo abolir a exigênc ia divina da j ust iça, mas cumprir essa exigência. [...] Esta just iça nova brota esponta neamente do coração. É uma justiça do co ração , motivada pela paixão pela j usti ça. Esta paixão é o que chamamos normalmente compaixão pelas pessoas. Compai xão, como é sabido, significa 'sent ir co m' as pessoas, especialmente as pessoas necessitadas, as pessoas que sofrem. Para Jesus, a compa ixão era muito im portante como ponto de partida. Ele sentia compaixão pelos pobres, os enferm os, os marginalizados. Em resumo, a mane ira como Jesus aprofundou e renovou a j ustiça consistiu em introduzir a compa ixão co mo o coração da justiça, como o motivo para uma entrega apaixonada à justiça. Poderíamos dizer que est a justiça nova é amor, e o próprio Jesus lhe chama amor. Mas não devemos esq uecer nunca que, para Jesus, o amor é um mandamento e, por isso, questão de justiça. Deus manda-n os ama r o nosso próximo. Isto faz com que o amor seja uma questão de justiça, pois agora o meu próximo t em direit o a ser amado. O amo r não cons iste já em fazer um f avor ao meu próx imo a partir da generosid ade do meu co ração. Este tipo de amor condescende nte e patern alista é rejeita do hoje pelas pessoas que dizem: «não nos dês a t ua carid ade. Reconhece os nossos direitos». O amor verdadeiro consiste em reco nhecer às pessoas os seus direitos . [...] O

Educ acão Mora l e ReligiosaCatólica

88


, - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- -- - -- - - - - - - - - I

I

que há de novo na justiça nova de Jesus é que Ele introduz a compaixão divina no projeto histórico de construção de um mundo justo. «Sede compassivos como o vosso Pai é compassivo» (Lc 6,36). Jesus desafia-nos a imitar Yahvé, que sentiu compaixão pelos escravos no Egito e, movido pela compaixão, fez-lhes justiça. A compaixão e a justiça pertencem à própria essência de Deus - até ao ponto de Jeremias poder dizer que a prática da justiça é conhecimento de Deus (Jr 22,16). Se não praticamos a justiça, não temos experiência de Deus, porque Deus é justiça. João diz ist o mesmo do amor. Se não amamos, não temos experiência de Deus, porque Deus é amor (1Jo 4,7-8) e afirma também algo muito parecido a propósito da justiça (1Jo 2,29). Na Bíblia, não há dicotomia entre a j ust iça e o amor." Nolan, Albert, 2010, Espera nça numa époc a de desespe rança e outros textos essenciais, Sa ntander, Sal Ter rae, pp. 161-168.

14.5.2. O desafio ético da justiça Ao longo da história, o Cristianismo fo i acusado, em particula r, durante o século XIX e inícios do século XX, de considerar a ética e a moral apenas no seu dom ínio pessoa l, esquecendo a relevância da sua dimensão interpessoal. Hoje, essa cr itica poderá, ainda, continuar a ouvir-se , já não porque os discursos sustentem ta l abordagem, mas porque a prática não é, muitas vezes, coerente com o discurso. Desse desafio nos dão conta os textos seguintes, reco lhidos de dois doc umentos marcantes da Dout rina social da Igreja. l

_

"A incerteza da história, e as convergências que a muito custo vão surgindo no caminhar ascendente da comunidade humana , fazem-nos pensar na História Sagrada, em que Deus se nos revelou a si mesmo, dando-nos a conhecer os seus desígnios de libertação e de salvação, no seu realizar-se progressivo, e que se cumpriram de uma vez para sempre na Páscoa de Cristo . A ação pela justiça e a participação na transformação do mundo aparecem-nos claramente como uma dimensão constitutiva da pregação do Evangelho, que o mesmo é dizer, da missão da Igreja, em prol da redenção e da libertação do género humano de todas as situações opressivas. [...] A missão de pregar o Evangelho requer, nos tempos que correm, que nos comprometamos, em ordem à libertação integral do homem,já desde agora na sua existência terrena. Se, efetivamente, a mensagem cristã sobre o amor e a justiça não mostra a sua eficácia na acão pela justiça no mundo, muito dificilmente ela será aceitável para os homens do nosso tempo." Sínodo dos Bispos, 1971, Ajustiça no mundo, 6 e 36.

89

Valores e Ét ica Cristã


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

"O amor ao homem - e em primeiro lugar ao pobre, no qual a Igreja vê Cristo - concretiza-se na promoção da justiça. Esta nunca se poderá realizar plenamente, se os homens não deixarem de ver no necessitado, que pede ajuda para a sua vida, um importuno ou um fardo, para reconhecerem nele a ocasião de um bem em si, a possibilidade de uma riqueza maior. Só esta consciência dará a coragem para enfrentar o risco e a mudança implícita em toda a tentativa de ir em socorro do outro homem . De facto, não se trata apenas de «dar o supérfluo», mas de ajudar povos inteiros, que dele estão excluídos ou marginalizados, a entrarem no círculo do desenvolvimento económico e humano. Isto será possível não só fazendo uso do supérfluo, que o nosso mundo produz em abundância, mas sobretudo alterando os estilos de vida , os modelos de produção e de consumo, as estruturas consolidadas de poder, que hoje regem as sociedades." João Paulo 11,1991, CentesimusAnnus, p. 58.

14.5.3. O desafio de dar mais do que dinheiro "Dar nâo se refere essencialmente ao dinheiro, todos o sabemos. É claro que o dinheiro pode ser muito necessário. Mas dar apenas dinheiro pode ser prejudicial para o outro. Por diversas vezes o comprovei no Terceiro Mundo . Se apenas nos mandarem dinheiro, advertem-nos os próprios, em vez de nos ajudarem , prejudicam-nos. O dinheiro presta-se com facilidade a ser rapidamente mal gasto e agrava as situações. Tendes de dar algo mais. Tendes de vir pessoalmente, dar a vossa pessoa, garantir que os bens materiais por vós trazidos são bem empregues. Não basta simplesmente distribuir o dinheiro que não vos faz falta, de forma a aliviar a vossa consciência, evitando as verdadeiras questões que a nossa situação vos coloca. Enquanto proporcionarmos apenas dinheiro ou conhecimentos técnicos, nunca será o bastante. Nesse aspeto, os missionários têm sido verdadeiramente exemplares. Levaram Deus às pessoas, fizeram-nas acreditar no amor, abriram-lhes novos caminhos de vida, deram-se a si mesmos por inteiro. Não foram em busca de aventuras interessantes, por dois anos ou três, mas para toda a vida, para pertencer sempre às pessoas daqueles lugares. Eles são o verdadeiro exemplo. Se não aprendermos de novo esta capacidade de autoentrega, as outras dádivas serão sempre poucas. Isto que dizemos à escala mundial é também válido para cada um de nós, individualment e. Rilke te m, a este propósito, uma bela história. Em Paris, depositava regularmente uma moeda no chapéu que uma mendiga lhe estendia. Ela f icava imperturbável, como se não tivesse alma. Certo dia, Rilke ofereceu-lhe uma rosa . Nesse momento, o seu rosto iluminou-se. Pela primeira vez, ele viu que ela tinha sent iment os. A mulher sorriu e afastou-se . Durante dez dias, deixou de mendigar, pois alguém lhe dera algo mais valioso do que dinheiro." Bento XVI, 2006, Deus e o mundo. A fé explicada por BentoXVI, Coimbra, Tenacitas. p. 167-168.

Educação t.~ora l e Religiosa Católica

90


r - - - - - - --- -- - - - - - - - -- --- - - - - - - - - - - I

14.6. A singularidade da ética cristã "A ét ica cristã concreta está para lá do form alismo e da casuística; pois, enquanto o formalismo e a casu ística nascem da luta entre o bem e o real, a ét ica cristã pode ir buscar o seu ponto de partida à reconciliação do mundo com Deus, ocorrida no homem Jesus Cristo, na aceit ação do homem real por Deus." Bonhoeffer, Dietrich, 2007, Éti co, Lisboa, Assírio e Alvim, p. 69.

Como deverá concretlzar-se o nexo existente ent re am or e justiça? Identifica situações em que a justiça exige ser comp letada pelo amor e o amor dem onstrar a nece ssidade d e que a justi ça esteja garant ida.

Síntese Deus revela-s e com o Amor e como J ust iça. Amo r e j usti ça não são meros atributos e acrescentos , mas antes def inem a nat ureza do própri o Deus.

a amo r e a j ust iça devem definir a ação éti ca cristã, que assegura que a cada um é dad o o que lhe é devido, mas t ambém, que cada um é olhado como pessoa, co mo único.

I

91

valores e Ética Cristã


-- - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - --- - - - - - - , I

15. De que ser humano fala a ética cristã?

I -- - - - - - - - - - - - - - - ---- - - - ---- - - - - - - ~

Toda a ética tem uma certa conceção do ser humano. t= essa conceção que fundamenta os conce itos mais estrutu rantes para a definição do que seja a moralidade: os conceitos de bem, de liberdade, a definição do lugar do outro nessa visão ética . À luz da visão que se tem do ser humano. do sentido que tem a sua vida. organiza-se todo o edifício conce ptu al da ética. Este é um nexo nem sempre explicitado e é nele que deve situar-se muita da discussão sobr e as matéri as habitua lmente fr aturantes, em contexto de debates sobr e ét ica. E impossív el. sem esta def inição, compreender. por exemplo, porque se deve ser j usto e dividir com os outros os bens que, af inal, se adquiriu; porque se deve respeitar a vida de alguém quando, por exemp lo, esse alguém não sente (moribundo, ou ainda embrião, desvalido. etc .); porque se deve ter um modo de conceber e viver a sexualidade marcada pelas virtu des da tem perança ou da fortaleza. quando poderia ter-se apenas em conta a busca do prazer que, de imediato, pode obte r-se. Em todos estes exemplos. só clarif icando os pressu postos ant ropo lógicos que os ju sti f icam se pode criar contexto para um debate sereno e com preensivo, ao mesm o tem po que respeit ador e const rut ivo.

I I

I I

I

Disto dá conta o texto que se recolhe, de seguida. de um livro de Azpita rte, Para uma novo vísõo do ético cristã. Neste excerto, o auto r sit ua no àrnbito ant ropológico as dificuldades co m que se depara, hoje. a ét ica cristã. Já não no prob lema mora l, em si mesmo. mas nestes pressuposto s ant ropológicos . De que homem falamos, hoj e, quando proble mati zamos maté rias de ética?

Educação r torai e Religiosa Católica

92


r -- --- - - - - - - - - - ------ - ---- - - - - - - - - I

I

"Até agora, os ataques não iam dirigidos tanto contra o mundo da ética quanto contra uma moral concreta e especificada por características próprias. Mas todos estariam de acordo na urgência e necessidade de critérios que regulem a convivência humana . Agora, deu-se um passo mais adiante para destruir também o mito humanista, pelo qual ainda há quem acredite que o ser humano está por acima da matéria e dos mecanismos biológicos. Para quem vive este sonho antropológico não há já outra resposta senão um sorriso de compaixão e filosófico, já que não tem cabimento nenhuma outra interpretação que não brote dos componentes físico-químicos da própria natureza . O acaso aparece como a única lei básica para explicar as estruturas mais espec ificamente humanas. As alterações genéticas são acidentes aleatórios de um processo evolutivo que termina nessa realidade chamada homem, mas que não é outra coisa senão uma máquina mais bem programada ou um animal que alcançou um estádio de maior evolução. A ética é um produto bio lógico que assegura a estabilidade e serve, como a religião, para obter o bem-estar de quem a pratica . O egoísmo genético busca, de forma muito subtil e sofisticada, tudo aquilo que lhe interessa para subsistir e desenvolver-se. Até o altruísmo e a própria santidade encontrariam a sua explicação última nos genes. As reações humanas estão programadas como as de um robô, ainda que muito mais aperfeiçoado e complexo. As manifestações tipicamente humanas, que ainda não se pôde explicar com este pressuposto, ficarão também algum dia clarificadas com o avanço da ciência. O importante é aceitar que não se requer nenhuma interpretação metafísica, para além dos puros componentes bioquímicos. Este reducionismo antropológico elimina de raiz a possibilidade de uma reflexão ética, pois não há sujeito capaz de tomar decisões responsáveis, já que a liberdade é, no fundo, um lamentável autoengano." Azpit arte. Eduardo L ópez, 20 03 , Pora uma novavisão da ética cristã, Santan de r, Sal Terrae , pp. 37-38.

Cheste rto n, O auto r brit ânico de génio e humo r refinados , recor da, com graça, que, de facto , ainda que se pretenda reduzir O ser humano a uma condição de igualdade em relação ao resto da criação , há algo que permanece disti nto: a co nsciência de que se é igual, o qu e lhe confer e superio ridade.

"O homem mundano, que na verdade vive apenas para este mundo e não acredita em nenhum outro, cujos sucessos e prazeres mundanos são tudo o que ele alguma vez colherá da não-existência - esse é o homem que efetivamente fará algo, quando estiver em perigo de perder o mundo inteiro sem nada salvar." Chesterton, G.K., 2010, Os melhores contos do Padre Brown, Lisboa, Assírio e Alvim, p. 200.

15.1. A pessoa que se reduz a consumidor consome-se a si mesmo Uma das maiores ten tações reducio nista s dos nossos te mpos passa por um esfo rço, mais prático do que teórico, ainda que se lhe vislumbre alguma ideologia de f undo, por reduzir O home m à condição de consu midor. Tal redução, na medi da em que objetualiza o ser humano, des umaniza- o. Disso dá conta um dos mais lidos sociólogo s conternporáneos: Gilles Lipovets ky.

93

Valores e I:.tica Cristã


--- ---- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , I

I

objetivo maior que devemos fixar-nos é dar aos indivíduos metas, tarefas capazes de mobil izar os seus afetos para outras coisas que não seja o consumível. É por aí, e só por aí, que poderá ser travada a febre compradora. Mas, por que razão justamente f ixar como objetivo a redução da vida consumista? Não porque o consumo seja o mal, mas porque é plet6rico ou hiperbólico e não pode responder a todos os desejos humanos, os quais não são unicamente desejos de prazer imediat os. Conhecer, aprender, criar, inventar, progredir, ganhar autoestima, superar-se são tantas outras exigênc ias ou ideais que os bens mercantis não podem satisfazer. O homem não é somente um comprador, é também um ser que pensa, que cria, que luta, que constrói. Deveríamos guiar-nos por esta máxima de 'sabedoria ': age de tal mane ira que o consum ismo não seja omnipresente ou hegem6nico na tua existência e na dos outros. E isto para que não se torne devastador. O que tende a tornar-se, particularmente, nas popu lações mais marginalizadas, que não têm outro objetivo senão comprar, comprar mais e sempre mais. É neste plano que o consumo-mundo é perigoso: ele esmaga as outras potencialidades ou as outras dimensões da vida propriamente humana. Devemos lutar contra as devastações ou destruturações do hiperconsumismo, que não permite que os indivíduos possam construir-se, compreender o mundo, superar-se." "[•. .] O

lipovetsky, antes. 2012. A sociedade da ce cecõc, Lisboa, Edições 70. pp. 109-110.

o autor denunc ia a redução do humano à con dição de consumid or. Na sua denúncia, o autor socorre-se, em exclusivo, a dados que lhe faculta a sua ciênc ia: a soc iologia. A teo logia acresce nt a-lh e um dado a ret er: na medida em que o homem é criado à imagem e semelhança do Criador, é feito para cocri ar. Se for reduzido a consumidor, sent ir-se-á vazio, porque tr ansformado no que não é. Di-lo de outro modo Anto ine de Saint-Exup éry, o autor do célebre Principezinho, agora. atr avés de palavras recolhidas do seu Ter ra dos homens: "Quando tomarmos consci êncla do nosso papel , mesmo do mais apagado, s6 então nos sentiremos fe lizes. Só então poderemos viver em paz e morrer em paz, pois aquilo que dá sentido à vida dá sentido à morte." Saint- Exupéry, Antoine de, 1995, Terro dos Homens. Lisboa. Vega. p. 127.

15.2. O homem como ser dividido e marcado pelo limite e o mal A interrogação a colocar, neste passo, é , precisamente a que respeita à especificidade do humano. E esta, de acordo com a matriz cristã , deverá procurar-se na capacidade que o ser humano tem de t ranscender os traços que a sua natureza dividida lhe proporciona: ele é um ser dividido - tendente para o eterno, mas, ao mesmo temp o, tão marcado pela tendência para o mal. Como recorda o já referido Cheste rton ,

"nenhum homem é na verdade muito bom até conhecer o mal que há em si, ou que poderá haver. [...] [Na verdade,] Podemos achar que um crime é horrível porque jamais o poderíamos ter cometido. Eu julgo-o horrível por saber que poderia tê-lo cometido." Chest erto n, G.K., 20 10, Os melhores contos do Pa dre Brown, Lisboa, Assrrto e Alvim. p. 194 e 204 .

Educação Moral e Religiosa Católica

94


r-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - I

I

"O homem experimenta a capacidade de se autod irigir, apesar dos seus determi nismos e limitações parciais, pois tem consciência de que, por cima de tudo, ele pode orientar a sua vida, dotando-a de um estilo peculiar e característico. Não se encont ra dirigido, em circunstãncias normais, por nenhum impulso que o obrigue a comportar-se de uma forma concreta , à margem do destino que queira dar-lhe a sua livre vontade. As suas puisões não são como as do animal que não pode prescindir delas, diferi-Ias ou moldá-Ias em função de objetivos humanos, para além da necessidade imediata e insti ntiva. É lógico, pois, que, num momento determinado, tenha de perguntar-se pela meta para a qual deseja dirigir-se. Se vale a pena viver, tem de ser por algo e para algo. O homem , com efeito, sente -se arrojado para um ambiente misterioso e desconcertante. Não é só a sua natureza pessoal , com a riqueza e o antagon ismo das suas tendências e sentimentos, que experimenta no seu interior; é também toda a realidade externa que o rodeia e pela qual se sente afetado, sem tê -Ia escolhido. Por todos os lados se lhe torna presente o misté rio, provocando- lhe, desde o momento em que se põe a pensar, uma série de interrogações. A dor, o fracasso, a culpa, o mal, a morte... serão situações limite e de maior importância que o impulsionam a procurar uma resposta . Mas, inclusive as múlt iplas possibilidades com que se def ronta nos seus afazeres diários, o levarão a perguntar-se sobre qual é a meta para a qual quer orientar-se. Sente o peso da sua respo nsabilidade e necessit a de saber o desti no para o qual dirigir o seu esforço. A liberdade não é uma espontaneidade cega nem um compo rtamento anárquico para atuar, em cada momento, de acordo com o gosto ou os apetites mais inst int ivos. O seu papel primário consiste em procurar uma orientação básica para a vida , em dar-lhe um destino, em encontrar um projeto de futuro que determine um comportamento concreto, de acordo com a meta que cada qua l se tenha traçado. Se se quiser, o problema da ética é, fundamentalmente, um problema metafísico: olhar um pouco para além do empírico e existente para ver se encontramos algum sentido e significado, como o que busca um horizonte que ilumine de algum modo o desconcerto que a própria vida produz.

[...] Pelo dito até agora, compreende-se que tod os os textos clássicos de moral começassem semp re pelo tra tado sobre o f im últi mo, como meta da sup rema aspiração por que anseia o ser humano. A felicida de aparecia, de acordo com a tradição aristotélica, como a ânsia mais profunda que se procura em todos os cantos da terra. Pois bem, como a fé nos ensina que só Deus pode encher seme lhantes aspirações, a conclusã o aparecia como lógica e evidente . O fim último cons iste na salvação sobrenatural que Ele nos oferece. Com expressões mais ou menos diferentes, existia uma mental idade comum, que chegou a converter-se no fundamento de toda a vida e condu ta cr istã . Desde os primeiros ensinamentos catequ ét icos, até às grandes sínteses teológicas da moral, repetia-se incansavelment e este mesmo pressuposto. A ética era o it inerário a percorrer para chegar ao nosso último destino. [...] a felicidade eterna e sobrenatural, como destino da pessoa, fomentou, prec isamente pela sua dimensão transcendente e escatológica, um desprezo pelo mundo, que se converteu muitas vezes numa autêntica alienação religiosa. Devido a tão acentuada orientação para o mais além, esqueceu -se de exigir com a mesma força as tare fas e responsabilidades do cr istão na construção e melhoria do mundo presente. As críticas, que por este motivo se dirigiram contra a fé, não esti veram isentas de f undamento e serviram para recupe rar a eficácia daquela sobre as estruturas do mundo presente. Por isso, esta apresentação escatológica, ainda que não fosse necessário que tal tivesse sido assim, levantou certas suspeitas, como se foment asse uma fuga da realidade. O compro misso com as realidades terrenas não esteve demasi ado presente na nossa tradição. Ao mesmo tempo, há que reconhe cer-l he t ambém um carácter demasiado individualist a, j á que a preoc upação básica do cristão estava centra da na sua pró pria salvaçã o, deixando excessivame nte à margem a dimensão comu nitá ria da mesma. [...] A mensagem bíblica do reino de Deus oferece um conteúdo muito mais completo e universalista, pois as suas fr onteiras não são meramente pessoais, mas abarcam toda a natu reza." Azpitarte, Eduar do Lop ez. 2003, Paro uma novo visão do ética crrstõ, Santan der, Sal Terrae, pp. 41· 42 e 46 .

95

" "a lares e

Etlca Cristã


--- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, 15.3. O ser humano como alguém feito para algo maior Um dos maiores dramas da sociedade, tão marcada pela infl uência (positi va, em si mesma) das descobertas dos últ imos séculos, que muito deveriam ter contribuído para aumentar a humildade humana perante o mundo e os out ros seres animados , foi a dif iculdade em separar o que iam sendo as conquistas que a ciência lhe foi propo rcionando, de uma visão reduzida ao imanente. Do evolucionismo, por exemplo, t ransitou- se para uma convicção de que o homem era, então, puro fr uto do acaso, que redund ou na perda de horizonte e na redução do humano à pura condição de animal. Numa tal visão do humano, a ét ica fica trans formada na moral dos mais fortes, à maneira da visão puramente natu ralista da 'seleção nat ural', que concebe que, na natureza, os mais fortes são os que singram. Bem sabemo s que, se aplic ado à socieda de, este darwinismo socia l, que encontr ou no nazismo alemão um dos seus corolários, gera uma sociedade desumanizada. Desumanizada em concreto, porque já se desumanizara, primeiramente , em abst rato. Ora, a matr iz cristã, ao afirmar que a fonte da esperança não é imanente, mas t ranscendente, suporta a criação das cond ições para a defesa da dignidade do ser humano perante to das as te nt ativas de o reduzir ao 'aqui e agora'. Esta é uma ideia fortemente reconhecida entre os teólogos, e afirma da, de modo lapidar, por Tomas Kálik: "A esperança de que não nós, mas a própria Verdade, terá a últ ima palavra, sempre me impress ionou como sendo muito libertadora." (Tomas Halík, 2014, A noite do confessor. A fé cristã numa era de incerteza, Prior Velho, Paulinas, p. 303.)

[...] para o cristão não termina tudo com a morte, já que a revelação é muito clar a e explícita neste ponto: há um mais além, definitivo e eterno, para o qual cam inhamos ao longo da nossa existência. O que significa que a vida só adquire um sentido pleno e íntegro quando se focali za nesta visão transcendente, sem que elimine o comp romisso e a entrega às tarefas deste mundo . Negar este dado supõe destruir, num aspeto básico, o conjunto da revelação." Azpít arte , Eduardo LOpez, 2003, Paro uma nova visão da ética crrsr õ, Santander, Sal Terrae, p. 242.

15.4. O sentido da vida é anterior ao Homem, que o descobre "Pet er Seewald: A Igreja diz que o homem não pode conferir sentido nem ao mundo nem a si mesmo. A credibilidade desta afirmação é posta em causa pelas enormes bibliotecas repletas de livros sobre a vida e o seu significado, escritos por pessoas mais ou menos inteligentes.

Bento XVI: Se o mundo não t ivesse já um sentido, ta mbém não seríamos nós quem o iria criar. Nós, os seres humanos, podemos realizar ações que têm signif icado no quadro pragmát ico de uma f inalidade, mas incapazes, por nós mesmo s, de prod uzir uma vida que te nha sentido. O sent ido existe ou não existe. Não pode ser um prod uto nosso. O que prod uzimos pode dar-nos um insta nt e de sat isfação, mas não ju st ificar toda a nossa vida, nem conferir- lhe sentido. Pessoas de todos os tempos e lugares procuraram um sent ido e continuar ão a fazê- lo. Poderão enco nt rar respostas fragment árias. Mas nelas será sempre válido apenas o que as pessoas encont ram, não o que inventam, na cr iatura humana enquanto tal: que as pode ajudar a melhor se compreenderem, a viver a sua vida com sent ido. A posição da Igreja ao afi rmar que o sent ido não é um produto humano, mas dado por Deus, deve ser interpretada da seguinte maneira: o sent ido é algo que está antes de nós e que transcende os nossos próprios pensamentos e as nossas descobertas. Só dessa maneira possui a capacidade de sustentar a nossa vida." Bento XVI, 2006, Deus e o mundo. A fé explicada por Bento XVI. Coimbra, Tenacltas. p. 159.

Educaç ,

J

t.tcra l e Religiosa Católica

96


r -- -- - - - - - - - - - - - - -- - - - -- - - - - - - - - - - I

'e vtkto r Frankl (1905-1997), psiq uiat ra de origem judaica , foi vitima de pe rseguição nazi, tendo esta do depor tado no campo de concentracão de Theresienstadt. Fundou a logote rapia, a pa rti r da sua exper iênc ia passada no campo de co nce ntração. Esta corre nte, designada como a terce ira esco la vienense de psicote rap ia, pr op õe-se abordar os pro blemas de foro ps iquiátrico a par t ir da construção do sentido da existência . É autor de Ante o vazio exis tencial, o presença igno rada de Deus, Logoteropi o e anólis e exis tencial, O Homem em bu sca de sentido.

A busca do sent ido da vida co nstitu i núcl eo f undamental para a defi nição do ser humano e para a salvaguarda da sua dignidade. Como recorda Vikto r Frankl", o criador da logoterapia, a corr ente da psiquiatr ia que se propõe resolver os prob lemas deste foro aj udando as pessoas a redef inir o sent ido da sua vida,

"o ser humano tem a pecul iaridade de que não pode viver se não olha para o futuro: sub specie aeternitatis." Frankl, Vlk t cr, 1998, O hom em em busco de sentido, Barcelona, Herde r, p. 108.

A esperança - virtude de quem está a caminho: Deus é o rumo! Gabriel Marcel def inia o ser humano como "hom o viator", homem a caminho, homem caminhante. Só pode estar a cam inho quem tem rumo, pois, co mo já anter iormente se recordava, recuperando afirmação de Séneca, "não há ventos favoráveis para barco sem dest ino". Se não se t iver um rumo , t udo vale e nada vale. Esse é o drama das ét icas imanent ist as, que, por falta de um rumo, caem ou no formalismo ou em perspet ivas consequencialistas em que o bem e o mal se esf umam e acabam por redundar no relat ivismo. A exigência da ét ica cristã vem-lhe, precisamente, do seu f undamento, mas seguramente, essa é, também, a sua força, pois, "uma coisa morta pode ser levada pela corrente; mas só uma coisa viva pode opor-se à corrente." (G,K. Chesterton, 2009, O homem eterno, Lisboa, Alêthe ia, p. 350).

"Toda a ação séria e reta do ser humano é esperança em ato. to-o, antes de tudo, no sentido de que assim procuramos concretizar as nossas esperanças menores ou maiores: resolver este ou aquele assunto que é importante, para prosseguir na caminhada da vida; com o nosso empenho contribuir, a fim de que o mundo se torne um pouco mais luminoso e humano, e assim se abram também as portas para o futuro. Mas o esforço quotidiano pela continuação da nossa vida e pelo futuro da comunidade cansa-nos ou transforma-se em fanatismo, se não nos ilumina a luz daquela grande esperança que não pode ser destruída, nem sequer pelos pequenos fracassos nem pela falência em vic issitudes de alcance histórico. Se não podemos esperar mais do que é realmente alcançável de cada vez, e de quanto nos possam oferecer as autoridades políticas e económicas, a nossa vida arrisca-se a ficar bem depressa sem esperança. to importante saber: eu posso sempre continuar a esperar, ainda que, pela minha vida ou pelo momento histórico que estou a viver, aparentemente não tenha mais qualquer motivo para esperar. Só a grande esperança-certeza de que, não obstante todos os fracassos, a minha vida pessoal e a história, no seu conjunto, estão conservadas no poder indestrutível do Amor, e, graças a isso e por isso, possuem sentido e importãncia, só uma tal esperança pode, naquele caso, dar ainda coragem a agir e de continuar. Certamente, não podemos 'construir' o reino de Deus com as nossas forças; o que construímos permanece sempre reino do ser humano com todos os limites próprios da natureza humana. O reino de Deus é um dom, e por isso mesmo, é grande e belo, constituindo a resposta à esperança. [...] da nossa acão nasce esperança para nós e para os outros; mas, ao mesmo tempo, é a grande esperança apoiada nas promessas de Deus que, tanto nos momentos bons como nos maus, nos dá coragem e orienta o nosso agir." Bent o XVI, 2007, Spe Solvi , 35.

97

Valores e Ética Cristã


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

A ética cristã constrói um humanismo integral - o homem é um ser aberto aos outros, ao mundo, ao Outro

"A vida cristã é, pois, um autêntico humanismo. A sua dimensão escatológica impede-a de ter uma visão imediata e reduzida do tempo presente, pois o futuro último do ser humano encerra uma transcendência definitiva. E se este lado mais ocu lto relativiza, de alguma forma , a construção e aperfeiçoamento da realidade terrestre e dos valores atua is, também desperta para as exigências mais profundas de um amor que se entrega integralmente às tarefas e necessidades deste mundo. O Evangelho não absorve os valores naturais na t ranscendência do escatológico, nem tão-pouco se perde na imanência de um processo puramente histórico e atual. Deus envia ao homem o seu afazer humano, não para que edifique outro mundo ao lado do mundo no qual vivemos - Jesus redimiu com a sua morte a criação inteira - , mas para que encontre nele a sua vocação aut ent icament e humana, ainda que não possa realizar-se por completo dentro dos limites temporais. Pela fé, a ética recebe a energia criadora de um amor sobrenatural, que radica liza com mais força as exigências de qualquer ética humana. Assim, o desejo de responder à chamada de Deus e de seguir Jesus não diminui, mais antes incrementa e fortalece a ilusão de nos realizarmos como pessoas a partir de agora. [...] Sendo certo que a fé não muda os valores éticos, é o que produz, no entanto, um novo estilo de os viver num clima de liberdade e de relações familiares com Deus. Este ar de família cria uma conatural idade no conhecimento do bem que leva inclusive à superação da moral." Azpitarte, Eduardo Lop ez, 2003, Para uma novavisão da ética cristã, Santander, Sal Terrae, p. 246.

--- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ----------- ~

"A fé em Cristo ressuscitado, em Deus que dá a vida depois da morte, confere responsab ilidade, dá peso ao presente, porque o presente se rege pela medida do eterno." Bento XVI, 2008, Fé e futuro, Cascais, Principia, p. 52.

• Que sinais perm ite m consta ta r a neces sidade e

importância de esperança, nas nossas sociedades? • Como deve viver- se a esperança cristã, de modo a que ela não se torne mot ivo de alienação? • Como veem os não crist ão s a espe ranç a crist ã? verdade ira a crítica que lhe faz em?

É

• Que huma nismo se propõe const ruir a étic a cristã ?

Educação t.loral e Religiosa Católica

98


,- - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - I

Anexo Uma viagem pela Histó ria da Ética

I

I

Sóc rates (ca. 470 a.C.-399 a.C.)

"O mét odo propriamente socrático , o que nos explica como ent ende o conhecim ento, é a maiêut ica, que, segundo nos diz, I aprend eu com a mãe, que era part eira. Se a parteira ajuda a dar à iuz as crianças, o filósofo deve ajudar a dar à luz pensamentos, para chegar a ideias gerais a parti r dos casos parti cu-

Platão (428 a.C.-348 a.C.) Obras: Diálogos, As leis, Repúb lico, Górgias

- - --

Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) Obras: Ético o Nícómaco, ~tica a Eudemo, Magna Ma rafia

1

lares." (p. 31 ) "A educação consiste em cultivar a virt ude desde a infãncia e incent ivar o desejo apaixonado por chegar a ser um cidadão I consumado, sabendo mandar e obedecer segundo a jus tiça." (p. 52) "A virtude é conhecimento, e con hecer a virtu de é prat icá-Ia. O sábio é o melhor porque conhece a virtude." (p. 44)

.-

--- -

-

-

--_._-.-_.- --- - - -- - - -

- 1

"A ética tem por objeto a formação da pessoa e é um saber prático. (p. 54) I "Éi ndistinto falar do bem do indivíduo e do bem da pólis, porque a vida plena, a melhor vida para o indivíduo, está na cidade, entre os demais homens." (p. 55) "Buscar o bem, perseguir o próprio fim, equivale a buscar a felicidade I..,], A ética aristotélica é uma ética hedonista. Não se constrói a partir da noção de dever ou de uma sériede obrigações, mas sim a partir da felicidade, porque o que há que conseguir é estar bem Ii consigo mesmo e com os demais." (p. 57) "Com o mero filosofar não se consegue ser virtuoso. Aristóteles refuta a 'falácia socrática' que defendia que a virtude é conhecimento. Não, a virtude não é só teoria, não basta conhecer o bem para ser boa pessoa. Estamos a falar das virtudes éticas, as que assentam na alma sensitiva, não na alma racional.São hábitos, maneiras de ser, uma prática que modula o carácter."(pp. 63-64) "A ética é, para Aristóteles, um saber eminentemente prático, cujo objetivo não é conhecer a virtude, mas tê-Ia e praticá-Ia." (p. 75) "A ética levadiretamente à política e deverealizar-se nela," (p. 78)

i

I

Valorese Etica Crista

I

- - - - - - - - -- - - -- - --

I

99

I

"O homem é a medida de todas as coisas, das que existem, como exist entes; das que não existem, como não existentes." (p. 21)

Protágoras (485 a.C.-411 a.C.) Górgias (485 a.C.-380 a.C.)


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

._ - --- - - -

"A vida feliz não é outra coisa senão um «agregado de prazeres particulares», por isso o prazer ou o deleite deve ser t ido por último fim. Nada é apetecível por si mesmo - riquezas, honras - senão pelo deieite que se procura." (p. 82)

Antíste nes (444 a.C.-365 a.C)

"Dizia que o melhorque podia acontecer aos homens era «morrerem felizes» e que a felicidade não requeria outra coisa senão «a fortaieza de Sócrates». Pensava que era possívei adquirir a virtude por si mesmo e que o sábio deve bastar-se a si mesmo. Ensinou num ginásio de Cinosargo, donde se diz que procede o termo 'cínico',ainda que o mais aceite é que deriva da palavra 'kinos' (cão), em alusão à franqueza, desinibição e faita de vergonha de tais animais, at itudes que os cínicos fizeramsuas, e muito especialmente o mais conhecido de todos, Diógenes." (p. 82)

Diógenes de Sínope (412 a.C.-324 a.C.)

"Ocinismo de Diógenes tomava como modelo de morai a vida natural, entendendo por tal a praticada pelos animais, uma vida que,segundo o seu juízo, a sociedadegrega se tinha encarregado de perverter com comportamentos e convenções artificiais. Propunha, como consequência, um regresso à natureza, que só era possível alcançar através de uma dura disciplina que fizesse do indivíduo um ser absolutamente livre e autossuf iciente." (p. 83)

Crates (365 a.C.-285 a.C.) e Hiparquia (ca. 325 a.C.)

"Reafirmou os princípiosascéticos dos seus antecessores dizendo que a filosofia era algo tão simples como «uma medida de grãos e a ausência de preocupações»." (p. 84)

Zenão de Citio (336 a.C.-263 a.C.) ' Cícero (106 a.C.-43 a.C.) Panécio (185 a.C.-110 a.C.) Epicteto (55-135 d.C.) Marco Aurélio (121-180) Séneca (4 a.C.-65 d.C.)

"Oconceito de virtude mantém-se, masjá não é exatamente o mesmo de Aristóteles. Os estoicos cent ram-se na virtude da fortaleza, pois entendemque a virtude é sobretudo a força individual para se adequar ao natural e assim viver com tranquilidade e sem perturbações de nenhumtipo. A dita força ou valor que é a virtude consiste sobretudo em libertar-se das paixões que dominam o indivíduo. A virtude estoica por excelência é a 'a-patheia' ('apatia'), a ausência de paixões, pois as paixões sempre foram consideradas como um estorvo para uma vida boa, especialmente quando esta se rege pela moderação e o ascetismo." (p. 88)

' Epicuro (341 a.C.-271 a.C.) Obra f undament al: Carta a Meneceu ' Lucrécio (99 a.C.-55 a.C.) Obra fundam ental: De rerum natura.

"Importa libertar-se de medos e angústias porque o objetivo da vida boa é o prazer e a ausência de sofrimento. Conjugam-se na ética de Epicuro dois elementos, em princípio, incompatíveis: o hedonismo, o prazer como objetivo, e uma austeridade implacável que, na realidade, nos dá a verdadeira medida do prazer que se tem de buscar. [...] Face às opiniões e aos costumes dos homens, frente às convenções, o critério paraatuar é o que nos dita o nosso corpo. Nem a sociedade nem os deusesdevem dizer-nos o que devemos fazer, é esse conjunto de átomos que nos constitui o que determina por onde devemos ir. Dizer que o prazer é o único fim do ser humano significa renunciar a todo o idealismo. (...] o prazer consegue-se pela ataraxia, que consiste na ausência de medos. [...] O prazer, além da ataraxia, é autarquia, independência em relação aos próprios desejos e às opiniões dos demais mortais." (p. 95)

• •

----1

I

Educação r tore! e Religiosa Catól ica

I 100 I

I


r - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - I

~---_' S. Tomás de Aquino (1224-1274) Obras fundamentais: Summo Theologica, Summa contra gentiJes

I

101

"Nãofaria sentido que Deus impusesse uma lei contrária à natureza humana, pelo que há que pensarque lei divinae lei natural convergem. «Há que fazero bem e evitar o rnab é o axioma do qual toda a ética devepartir. Aristóteles tinha ensinado que tudo tem um fim e o fim do homem é o bem. (...] Esse bem foi determinado por Deus, que logicamente não pode ordenar nada que não convenha à natureza do ser racional. Emconsequência, o natural e o racional coincidem, o deverser já está no ser, tem o seu fundamento na natureza humana." (p. 113)

Guilherme de Ockham (1290-1349)

"Odomínioda física é a experiência e o da ética é a vontade, de forma que só a partir da vontade podemos explicara lei moral. Posto que a lei moral procede da vontade de Deus, basta referir-se a ela e não dar mais explicações, qualquer razão ulterior sobra. [...]Assim, o bom é bom porque Deus o quer e o mau está proibido porque Deus não o quer. Não há outra explicação. A moral teológica revelada e a moral racional filosófica não chegam a encontrar-se."(pp. 114-115)

' Francisco de Vitória (1486- 1546) Francisco Suárez (1548-1617) Hugo Grocio (1 583-1645)

"Concebem o direito natural como distinto da lei positiva porque não deriva da vontade humana, mas está na natureza humana per se e exse. O ius naturaJe é aquilo para o qual ipsa natura immediate inclinat, aquilo para o qual se inclina a própria natureza:' (p. 143)

Thomas Hobbes (1588-1679) Obras principais : De Cive, Leviatón, Behemoth

"«O homem é um lobo para o homem» e sente uma ameaça de guerra permanente: «a guerra de todos contra todos». Quer dizer, o homem, abandonado ao egoísmo para o qual o incita a sua mera nat ureza, só pode tender para a autodestruição e para a morte. [...] Há ética na teoria de Hobbes? Sim, mas uma ética movida pelo interesse, a única viável e possível numa sociedadecapitalista. A preocupaçãopelo outro, a que incita esta ét ica,não tem como móbil a compaixão, por exemplo, mas o egoísmo, a convicção fria e racional de que o próprio interessese preserva melhor numa sociedade regulada por um poder com autoridade para o fazer." (p. 156) * Frederick Copleston, na sua História da Filosofia, recorda que, para Hobbes, "qualquer coisa que seja objeto do apetite ou desejo do homem é considerado por ele como bom, enquanto o objeto do seu ódio é considerado como mau, e da sua indiferença como vil e depreciável." Frederick Copleston, 1986, Históriada Rlosotia, V volume, Barcelona, Editorial Ariel, p. 35.

va lores e t:tica Cristã


- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -- -, I

Baruch Sp ino za (1632 -1677) Ob ra f undam ent al:

I "A ética não consiste em nada mais do que no conhecimento. O Etico

objetivo da ética spinoziana é conh ecer a realidade e conh ecê-Ia adequadament e. Conhecer adequadamente é conhecer as causas das co isas por que, se bem que já te nha dit o e rep et ido qu e não existe nenhuma causa f inal da natureza , existem sim causas eficientes. [...] A mora l de Spinoza não é exat ame nte presc ritiva, propugna a libertação da superstição e da ignorância, uma vida austera, mas não sacrif icada nem de ren úncia, pois a me lancolia, a cu lpa e o remorso I são afetos t rist es e há que evitá -los." (p. 163, 176) * Frederick Copleston recorda que Spinoza "por bem, entende todas as espécies de prazer e qualque r coisa que conduz a este e mais espec ialmente aq uilo que satisfaz os nossos fervorosos desejos, qua isquer que sejam. Por mal, entende todas as espécies de dor, e especialmente aquilo que frustra os noss os desejos. [...] Cada um julga ou estima segundo a sua próp ria emoção o que é bo m ou mau, me lhor ou pior, ótimo ou péssimo. [...] Uma vez qu e tenhamos entendido as origens causais das emoções, ente ndemos que os nossos ju ízos referentes ao 'bem' e ao 'mal' estão I determinados." Freder ick Copleston, 1991, História do Fifosofia, IV, Barcelona, Editoria l Ariel, p. 228.

I

"Em pr incípio, no estad o de natureza tud o é de t odos at é qu e algué m , co m o seu esforço , se ap ropria de algo de que necessita. [...] Pois bem , es se direit o natu ral deve ter regras de uso: tratadas sobre o governo civil; Carta sob re a toferll n- que ca da homem se aproprie só do que poss a nec essita r e usa r. Enquanto tal regra se cumprir, o direit o de propriedade será cio; Ensaio sobre o enten I j ust o, por que se produ zirá um a espo nt ánea distribuição dos dimento hum ano bens necessários. Se, pelo contrár io, a avareza d e alguns leva a ac um ular riqueza, ac um ulação q ue será pro piciada pelo apareI cim ento do dinheiro, o direito de propriedade acabar á po r ser a I mã e de todas as desigual dades. [...] O objetivo do governo é pro , teger o direit o de pro p riedad e de cada um, rem ediando ass im as I inconveniências em q ue possa d esembocar o desenvol viment o arbi trário do estado de natureza.[...] Não é o m edo nem a ambição qu e f undamenta o con trato [socia l] em Locke, m as sim uma t endência, im plícita na humanidade, que co nd uz 'naturalmente' à orde m social. O q ue é de te rm inante é o direito de propriedade, pois é lógico que cada ind ivíduo queira tê-lo bem pro te gido e essa proteção só a garante a lei. No co ntexto do cap it alismo e da ec onomia de merc ado inc ipiente, entender a liberdade com o algo distinto da capaci dade de pod er d ispor do q ue se adq uire de fo rma legít ima carece de sent ido ." (pp. 182-183) Loc ke (1632-1704) Obras f unda men ta is: Dois

I

I

David Hume (1711-1776) Ob ras : Tratado da natu-

reza humana; Investigação sabre a entendimento humana; Investigação sabre as princípios da moral

i "Não é a razão que determina que algo é virtuoso ou vicioso.porque a razão só descobre axiomas lógicos, mas sim o sentimento de apro vação ou de reprovação que está em nós, um sentimento «que está em si mesmo, não no objeto. Assim, quan do dizemos de algo II que é vicioso, não qu erem os dizer senão que, pela const ituição da nossa natu reza, temos um sentimento de reprovação ao contem plá-lo»." (p. 203) [...] É necessária a justiça, porq ue é um requisito para o bem -es ta r da humanidade e para a existência da sociedade. Todas as inst ituições ~ue dão suporte à j ust iça são uma nece ssidade social. ["]] É necessana a Justiça porque exrste a SOCiedade e porque não há suf icientes recursos para propo rcionar a todos o necessário." ~p. 206) _ _ I

Educação Moral e Religiosa Católica

I 102 I

I


r-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - -- - - - --I

J.J. Rousseau (1712-1778) Obras: Emílio, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade

"Rousseau arremete contra a propriedade como a origemde todos os males e da divisão e discriminação entre os humanos. [...] No estado de natureza, os homens são amorais. No estado social, desenvolvem facilmente o desejo de poder, a ambição,a afetividade. [...] Tornam-se imprescindíveis leis que protejama propriedade privada. [...] Com a civilização, o homem transforma-se, deixa de ser autêntico e põe o que parece diante do ser, porque vive diante dos demais e importa-lhe o reconhecimento dos outros. (...) o homem natural, a princípio bom e sem necessidade de nenhuma moral, é pervertido pela sociedade, na qual finalmente tem de confiar para se salvar." (pp. 215, 223) ~ _. - . ~

I. Kant (1724-1804) Obras: Crítica da Razão Pura; Crítica da Razão Prótica, Fundamentação da Metafísica dos

Costumes

Jeremy Bentham (1748-1832) Obra: An Intra dution to the Principies of Moral ond Legis/otion

..

.....--

-

---

"A força do dever moral tem de residir em algo permanente, mais forte do que a diversidade empírica, num poder que só reside na razão." (p. 233) "A lei moral tem de ser universal.Além de ser livre e autónoma, têm de querê-Iatodos os seres racionais. Para aclarar este ponto, Kant remete para o que ele denomina de 'reino dos fins'. Com tal expressão quer dizerque,pesem as suasdiferenças individuais, todos os seres racionais se encont ram unidos ou enlaçados por uma lei comum, que os obriga a verem-se a si mesmos como fins. [...] O reino dos fins concebe-se como a vontade unificada de todos os homens que não se autodeterminam por capricho, mas que se guiam pelo imperativo de uma lei universal e racional." (pp. 242-243) "Bentham foi o primeiro a empregar a palavra 'utilitarian'. [...] Se, num princípio, Bentham se referiu à sua teoria como 'utilitarismo', logo mudou para 'o princípio da maior felicidade', pois a felicidade identifica-se mais facilmente com as ideias de busca do prazer e rej eição da dor, que são as bases psicológicas do comportamento humano." (p. 270) "Bentham converte a ética num cálculo sobre que prazeres são mais convenientes para o conjunto da sociedade, entendida como a soma dos seus indivíduos. A satisfação dos desejos dos indivíduos terá como consequência um maior bem- estar para todos." (p. 272)

--. - - - --~ - -- --- - --- - - -- ----j "Entende que o utilitarismo é uma 'teoria da felicidade', pois «as J ohn Stuart MIII acõessãoj ustas na proporção com que tendem a promover a feli(1806-1873). Obra: Sob re o lib erdade cidade e injustasquando tendem a produziro contrário da felicidade». 'Felicidade', também para Mill, significa prazer e ausência de dor, significaque se apoia na teoria da vida, segundo a qual «o prazer e a ausência de dor são as únicas coisas desejáveis como fins, e que todas as coisas desejáveis o são, ou pelo prazer inerente a elas mesmas, ou como meios paraa promoção do prazer e da prevençãoda dor»," (p. 278) , Citacôes recolhidas de Freden ck Ccp leston, H ls(óflo do Fllosoflo. Barcelona . Editoria l Anel (volumes IV e V)

103 I I

I

'Ialores e Ética Cristã


--- - - - - --- - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - , I

"O imperativo que anima o ser humano é a vontade de viver e perseverar no ser [.. .]: a vont ade deseja a vida abso lutame nte e para sempre, mas essa vontade é puro egoísmo, negação da moral, porque todo o movimento se realiza a part ir do interesse indivitade e repr esentação duaI.Abolir o egoísmo, que é o que a moral propugna, é renuncia r à vida, que é o que fizeram todas as morais . [...] o indivíduo debate-se entre o egoísmo e a compa ixão, que extingue a vontade e a lut a pela existência." (pp. 293-294) - j ' ... . -__ F. Nietzsche (1844 -1900) "Bom é o que eleva o sent imento de poder, a vontade de poder ou Obras: A gaia ciência; Paro o próprio pode r, enquanto 'mau' é o que procede da debilidade. A além do bem e do mal; felicidade não é out ra coisa senão «o sentimento de que o poder A genealogia do moral ; cresce, de que uma resistência fica superada»." (p. 304) Arthu r Sc hopenhauer (1788-1860) Obra: O mundo como von -

o

Humano, demasiado humano . G. E. Moore (1873 -1958) Obra : Principio Ethico [Int uicion ismo]

"O métOdo-q ue une to dos ~; filósofos-a~alíticosé o de to~r a linguagem como ponto de partida e como objetivo da reflexão filosófic a." (p. 311) "[Para Moore], o erro histó rico da ética cons istiu em tratar de dizer o que é a virtude, o que é bom, sem explicar antes o que significam essas palavras. O erro esteve em buscar um ún ico critério do bem e do mal sem averiguar antes que coisas estavam bem ou mal. Se, no lugar de colocar ta is pergunt as, nos pergunta mos o que tem um valor intrínseco, veremos que o senso comum nos dá a resposta." I (p.317)

I

"A conc lusão do Tractatus é esta: devemos calar sobre aqu ilo que mais nos importa, aquilo que não pode ser dit o com a linguagem da ciência."(p. 321)

L. Wittgenstein (1889 -1951) Ob ra: Tractatus

Logico-Philasaficus [Posit ivism o lógico] ' Morit z Schl ick (1882 -1936) I "Esta é a tese do emotivismo ético: os ju ízos de valor expressam, no melhor dos casos , os sentimentos ou as emoções de quem Obra : Fragen der Ethik os emite, não acrescentam nada à informação que temos sobre [Emotivismo ét ico] a realidade emp írica, mas sim que se referem à minha aprovação ' Alf red Ayer (1910-1989). ou desaprovação concreta dessa realidade . Ao mesmo tempo, no Obra : Linguagem, verdade e lógico [Emotivismo ético] entanto, e não é banal assinalá-lo , os juízos éticos pretendem susI citar sent imentos nos demais e incit ar à ação. Têm uma funç ão ' ~ . Charles L. St evenson I persuasiva. Da tese emotivista se dedu z que não há nenhuma ver. -; : (1908-1979) \ I Obra: Ethics and Janguage . dade objetiva nos ju izos éticos e que, por isso, é impossível disc utir , sobre questões de valor." (pp. 324-325) [Em ot ivismo ético]

I

Ric hard M . Hare (1919-20 0 2) Ob ra: The language of

Mora is; Freedom and Reason; Mora l Thinking [Prescritivismo]

"Hare contempla t rês aspetos da linguagem moral: 1) é uma linguagem prescritiva; 2) que aspira à universalidade, 3) mas as dec isões tomam-se individualment e." (pp. 327-328) "Se bem que o pensamento analítico em geral foge da met afísica I e das perguntas últimas, a questão fundamental de porq ue é que há ser moral acaba assomando por algum dos interst ícios do seu discurso. [...] Quando se confronta co m estas questões, os recursos da análise linguíst ica revelam-se curtos, pelo que Hare acaba po r subscrever argumentos utilit arist as do est ilo de que a mora l é melhor do que a imoralidade ou a amo ralidade , porque na nossa sociedad e, o cri me não vale a pena, e pelo co ntrário ser virtuoso compensa. De facto, na última etapa da sua vida, Hare aborda os temas da étic a aplicada e o seu método deixa de ser analitico, sendo antes conseq uenc ialista ." (p. 329)

Educação Moral e Religiosa Ca tó lica

I 104 I


r - - - - -- - - -- - - - - - -- - -- -- - - - - - - - - - - - I

r

~

John Rawls (1921-2002) . Obra : Umo teoria do j usti ço

I

Karl-Otto Ap el (1922 - ...) Obra: A transformação do filoso fia ' J úrgen Hab erma s (19 29-...). Obra: Consc iência mo ral e oção comunicativo

"O que a ética comunicativa ou ética discursiva propõe, não são conteúdos morais, mas um procedimento para determinar a validade dos aco rdos normativos . Parte-se do pressu posto de qu e to da a discussão sob re assuntos práticos , que há de dar lugar a normas, procura um aco rdo. Este, para ser válido e racional, deve cumprir os requisitos da comu nicação entre iguais, qu e incluem a ideia de imparcialidade e do reconh ecimento recíproc o dos participantes e afetados pela discussão. Num Est ado de direito não existem mais leis legítimas do que as que todos os cidadãos t iverem podido querer, o que implica que tod os os cidadãos sejam tidos em co nt a na hora de estabe lecer normas que afetem a todos. Reconstrói-se assim o im perativo categórico kantiano em t erm os de uma étic a da com unicação, que substit ui a filosofia da con sciência. Ao imperativo não se chega a partir do foktum da razão, mas a partir da ação comunicativa, e fica form ulado de sta maneira: «só podem pret ender validade as normas que encontram (ou pode riam enco ntrar) aceitação por parte de todos os afetados como participa nt es num discurso prático»." (pp. 366 -367)

' Charles S. Peirce (1 839 -1914) ' William James (1842 -1910) J ohn Dewey (1859 -1952) Richar d Rort y (1931-20 07). Obra: Filosofia e o esp elho do natureza

"Para o pragmatism o, a verdade de uma afirmação ou de uma crença demon stra-se se na prática funciona." (p. 371) "Uma das ideias mais persistentes de Rorty é que devemos renunciar ao 'conforto meta fisico', ao amparo de uns princípios universais que oferecem segurança porque se supõe que falam em nome da verdade. A cont rapartida dessa perda de co nforto é o saber-se parte de uma com unidade. Por isso, a nossa conti ngência deve ir acompanhada de 'solidariedade'. I...] Rorty pensa que as crenças são t odas igualmente válidas e que é impossível esco lher entre teorias filosóficas diferentes, tratando de disce rnir qual é melhor ou mais verdadeira. Rejeita a t ese de Apel e Habermas de que o diálogo deve levar necessariamente a um acordo ou a um consenso racion al. Para um pragmatista, o facto de falar e escutar é, em si mesmo, uma virt ude moral, não é preciso acrescen tar mais nem buscar outras finalidades que o justifiq uem." (p. 372)

105 I \ alores e ~tlca Cristã I

I

"Dist ancia-se do utilitarismo pela defesa, sobretudo, da liberdad e individual. J ulga o ut ilit arismo injusto, porque sacrifica os indivíduos e a sua liberdade com o fim de perseguir a felicidade da maioria. [...] Estabelecida a justiça como o objetivo primordial da ética, o prop ósito de Rawls é chegar a deter minar os critérios para uma distribuição ju st a dos bens básicos." (pp. 334-335) "Os ditos princípios constituem o núcleo duro da teoria de Rawls, sobre o qual gravita o resto do seu pensamento e cujo enunc iado na Teorio do justiço é o seguinte: «1. Cada pessoa deve t er o mesm o direito à maior extensão de liberdades básicas com patíveis co m as mesmas liberdades por parte dos demais. 2. As desigualdades sociais e econó micas hão de estar disposta s de modo a que: a) acabem por beneficiar a t odos; b) estej am vinculadas a posiçõe s e tar efas abertas igualmente a todos»." (p. 337)


- -- - - - - - - - - - - - - - - --- - - - - - - - - - - - - - - , I

' Alasdair Maclntyre (1929 -...)

Obra: Breve História do ttica, Depois do virtude 'Michael J . Sandel (1953-...)

Obra: Liberalismo e os limites do j ustiço ' Charles Taylor (1931-...) Obra: Sources of the Self; A ético do autenticida de Will Kymlicka (1962-...) Obra: Cidadan ia multicu/tu ral

i 'I

"A proposta comunitarista desconfia de que o liberalismo, partindo de um ponto de vista individualista e indiferenciado, possa fundamentar uma concec ão da justiça aceitável por todos. No seu lugar, os filósofos comunitaristas propõem um sujeito moral integrado na comunidade e, como tal, conhecedor dos seus fins. A ausência de comunidade impede, como já disse Maclntyre, construir uma ética que comprometa de verdade os indivíduos. Defacto, o comunitarismo erige-se como uma crítica ao pensamento liberal pela sua incapacidade para incentivar moralmente as pessoas e fazer com que assumam os seus compromissos paracom a sociedade." (p. 378-379)

"Pensar que o indivíduo é autossuficiente é um erro, pois todo o indivíduovive numa comunidade e forma as suas convicções morais em diálogo com os demais,com quem compartilha fins e uma determinada conceção de bem comum. A filosofia liberal individualista ignorou a noção de bem comum, o Estado liberal é um Estado neutro, que não se compromete tão-pouco com determiI nados planos de vida. Não só a j ustiça, mas também a democracia, I precisam de pessoas que cooperem e se ajudem porque se sentem parte da comunidade. A ideia de pertença é fundamental para ~ que os valores morais sejam aceites por todos." (pp. 379.: ~8_~ _

' Max Scheler (1875 -1928) I MaxScheler: "Para Scheler, existe uma eterna e absoluta legit imiObras: Crise dos valodade dos sentimentos, tão absoluta como a lógica pura, mas que res; O eterno no home m; O de modo nenhum pode reduzir-se à legitimidade típica da ativiressentimento no elabora- dade intelectual.O que vê o sentimento são as essências enquanto çõo dos morais; O lugar do valores. DizScheler:«Existe um modo de experiênciacujos objetos são inacessiveis ao intelecto: este,em relação com eles, mostrahomem no cosmos. Outros fenomenólogos: -se tão cego como o ouvido e a orelha ante as cores; tal modo de experiência coloca-nos ante os autênticos objetos e ante a ordem ' Edmund Husserl eterna que existe entre eles, quer dizer, ante os valores e a sua hie(1859-1938) rarquia.» Para que as coisas se tornem compreensíveis, é preciso Nicolai Hart mann dizer que possuímos um instrumento inato, a intuição sentimental, (1882-1950) que capta aqueles valores. objetos pelos quais as coisas são bens, e capta e reconhece a hierarquia existente entre tais valores, cada um dos quais se encarna numa pessoa ou modelo-tipo, e propõe a seguinte escala hierárquica: 1. Valores sensíveis (alegria-plena, prazer-dor) 2.Valores da civilização (útil-prejudicial) 3. Valores vitais (nobre-vulgar) 4. Valores culturais ou espirituais a) Estéticos (belo-feio) b) Ético-jurídicos Uusto-injusto) c) Especulativos (verdadeiro-falso) 5. Valores religiosos (sagrado-profano) Este cosmos de valores e a sua hierarquia que ascende, em ordem de preferência, desde os valores sensíveis até aos religiosos. são captados e reconhecidos pela intuição ou visão emocional, que nos põe em contacto imediato com o valor, independentemente da vontade e do dever, que se encontram condicionados e fundamentadosjustamente pela intuiçãodo valor. Não é certo que o que não é racional tenha de ser sensível:existe uma atividade espirit ual estrateórica que é a intuição emocional. Existe, em definitivo, o que Pascal chama a 'ordem do coração'." ** (p. 506-507)

Educaçao r tore t e Religiosa Católica

I 106 I


r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - -- - -- - - I

Emmanue l Mounier (1905-1950) Obras: Tratodo do carócter; Liberdode con dicion al; Intraduçào aos existencialism os ; O p ersonalismo; O pequeno medo do século

XX

' Card eal Me rcie r (18 51-1926) Jacques Mar ita in (1882-1973) Ob ras : Disti nguir para unir;

Human ismo Integrol Etie nne Gilson (188 4-1978) Ob ras : O espírito da filo -

sofia medieval; A filosofia na idade média, desde as suas origens até finais do s éc ulo XIV; O ateísm o difíci!.

[Prin cip ialismoJ Van Potter (1911-2001) Tom L. Beauchamp (1939 -...) J ames Franklin Childress (1940-...)

Relatór io Belmont (1978) [Casuís t ica] Albert Jonse n (1 9 31- ...) Mark Sieg ler (1941-...) Willi am J . Wins lade (1941-...) Obra : Ético c/ínica .

"O personalismo pretende enfrentar «cada problema humano em toda a sua ampl itude da humanidade co ncreta, partindo desde a condição mais humi lde até à mais elevada possibili dade espir itual», [No personalismo], a pessoa é uma presença ante o mundo e ante as demais pesso as. «As outras pessoas não a limit am, mas ante s permi tem-na ser e desenvolver-se; [a pessoa] só existe na med ida em que se dirige para os demais, só se conhece através dos demais, encontra-se só nos demai s» . [...] Tudo isto implica que eu existo unicam ente na medida em que existo para os outro s e que, no fun do, 'ser significa amar': ** (p. 647) J. Maritain: "No processo de racionalização da vida política, os meios devem ser morais, por necessidade. Para uma dem oc racia, o fim é ta nto a justiça como a liberdade. Num sistema democrát ico, a ut ilização de meios incompatíveis com a justiça e a liberdade deveria ser, em si mesma considerada uma operação de autodestruição. Por conseguinte, a just iça e o respe ito pelos valores morais, não são sintoma de debilidade. A força não é forte se se a proclama como única regra da existênci a política: «Na realidade, a força só é decididam ente fort e se a regra suprema é a justiça, e não a força». [...] Existe uma lei natural, não escrita, que todos devem respe itar. Formam parte da lei natural «o direito do hom em à existência, à liberdade pessoa l e à consecuç ão da perfeição na vida moral». Os valores morais não dependem da hegemonia de um homem ou de uma classe, mas antes julgam as obras de tod os os homens e de toda s as classes." ** (pp. 683-684) "A escola prin cipialista é de matriz kant iana e adere a uma ética de princípios, como o quadro a partir do qual formular ju ízos sobre qualquer conflito bioético. Esses princípios são, por antonom ásia, os princípios da bioética, dec larados pelo RelotórioBelmont - a beneficênc ia, a auto nom ia e a just iça." (p. 400) - - - - - - - -- "A casuística defende uma consideração empírica das situações de conflito, a partir das quais se possam descob rir as dimensões éticas fun damentais que há nelas. [Aqueles autores] propõem partir, não de princípios, mas de 'parâmetros', a partir dos quais devem analisar-s e os casos clínicos, que são: 1) as indicaçõe s médicas; 2) as preferências do paciente; 3) as expecta tivas quanto à qu alidade de vida; 4) os dados contextuais. [...] A diferença em relação ao método principialist a é que não se come ça pelos valores éticos mas pelos dados clínicos [...l." (p. 401)

FONTE: Camps. Victoria, 2013. Breve história da ético, Barcelona. RBA Divulgación, 426 pp. [Osnúmeros de páginas indicados concernem à obra indicada, exceto nas situações devidamente essinalad as .l *

cnec ões recolhidas de Frederick Copleston, História da Filosofia, Barcelona. Editorial Ariel (volu mes IV e V).

** Citações recolhidas de Giovanni Reale e Dario Antiser l. 1995, Historia do pensamento científico e filosófico, III, Do Romantismo até hoje, Barcelona, Herdar.

107 I I

I

Valores e êt ica Crista


-- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ,

Educação r loral e Religiosa Cató lica

I 108 I


r - - - - - - - -- - - - - - -- - - - - -- - - - - - - - -- - - I

Bibliogra fia Almeida , Filipe, 2010. t:tico. valores humanos e responsab ilidade sociol dos emoresos, Casca is. Princip ia.

Andrés, José Rom án Flecha, 1997, Teologia morol fundame ntal, Madrid. BAC. Ar ist óteles, 2004, t:ricQ a Nicó mo co, Lis bo a. Quetza1. Azp it ar te, Edu ardo López, 20 03 , Paro uma no va visão do ético cri stã, Santander, Sal Ter rae.

Balmary, Marie e Margue rat, Danie l, 2013. Iremos tod os poro o oatctso. O juízo finol em qu estão, Barcelona. Fragmenta. Balt hasar, Hans Urs von, 2008 . Só o omor é d igno de fé. Lisboa. Ass írio e Alv im.

Bento XVI, 2005, Deus caritas est. Bento XVI, 20 06, Deus e o mundo. A fé explicada por Bento XVI, Coimbra, Ten aci tas. Bento XVI, 2007, Jesus de Nazaré , Lis boa, A es fera dos livros.

Bento XVI. 2007. soe 501\;. Bento XVI, 2008, Fé e futuro . Casca is, Principia. Bento XVI, 2009. Cori tas in veri tate. Bent o XVI, 2010, Vertium Domin;. Bianc hi, Enzo, 2009, Para uma ético partilhada, Lisb oa, Pedra Angul ar. Bonhaeffer, Dietr ich, 2007 , ~tí ca . Lis bo a, Assírio e Alv im . Bonhoeffer, Dietrich , 2007. O preço da graça: o seguimento, Salamanca, Sígueme. Cab ral. Roque. 2003 , Temos de E::tica, Braga. Pub licações da Facu ldade de Filosofia - UCP. Camps, Victoria, 2013, Breve história do Etco. Barcelona, RBA Divulgación . Carde dal. Olegá rio , 2013 , Deu s na cid ad e, Salamanc a, Síguem e. Chesterton, G.K., 200 9, O hom em eterno, Lis boa, Alê thela. Cheste rton , G.K., 2010, Os melhores contos do Podre Brown, Lisboa. Ass írio e Alvim. Couto, Ant ó nio, 2013 . O fivro do Génes is. Leça da Palme ira, Autor/letras e coisas. Frankl, Vik tor, 1998, O homem em busco de sentido, Barce lona. Her der . Gonzéle z-Car vejal. Luis, 1993, Ideias e c renç as d o hom em o tuot , Santa nd er, Sal Terr ae. González-Carvaj al, Luis, 20 13, As b em- aventu ronços, uma co nt ro cul tura que humaniza, Malia no , Sal Terrae. Halfk, Tomas, 2014, A noi te d o co nfessor. A fé cristã numa era de incerteza , Prior Velho , Pau linas. Hessen, J a hannes, Fi/osofia dos Valores , Co imbra, Ed. Armén io Amad o.

João Paulo II. 1991, CentesimusAnnus. Jo ão Paulo II, 1993 . \ · eritati s Sp /end or. J oão Paulo II, 1997, Catecismo do Ig reja Cató lica , Co imbra, Gráfi ca d e Co imbra. JP IC, 200 1. Justiço e Paz. Manual poro ani madores da justiço, da paz e do mtegridade da criação, Cucujáes. Esco la Tipogràfica das missões. Küng , Hans . 1992. Projeto de uma ét ico mundial, r.ladrid , Trotta . Lipovetsky, Gilles. 20 12, A sociedade d o

cececõo.

Lis boa, Edições 70 .

Mêüch . J oan-Cari es, 2010, ~tica d o compmxõo, Barcelona, Herder. Nola n, Albe rt. 20 10, Esperonça numa época d e desesperança e o ut ros textos essenciais, Santa nd er, Sal Terr ae. Opie , Frank, 1994, Esc uteiro global: um escutismo po ro o natureza e o am bient e, 5.1., Co rpo Naci onal de Escu tas. Papa Franci sco. 20 13, Evonge fii Goudium.

109 I I I

Valores e ética Cristã


- - - - - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , I

Papa Franci sco, 2013 , Rezem os uns pe los outros. O início do pontificado do Popo Fran cisco, Cascais, Lucerna. Polkinghorne, John (ed.), 2013,A tr ind ade e um mundo ent rela çad o, Estella . Editorial Verbo Divino . Restituto Sierra Bravo , 1997, Dicionório social dos Pod res d a Igreja, Ma dr id. Edibesa. Resweb er, Jean-Paul, 2002. A filosofia dos valores. Coim bra. Almed ina. Rejas , Enrique. 1994, O homem fight . Coimbra. Gráfica de Co imbra. S. Tomás de Aqu ino, 2014 , Suma Teológico mínimo, Madrid. Tecnos.

Sao út , Yves, 2009. EvoJngelho de Jesus Cristo segundo S. Lucas, Fátima, Difu sor a Bíblic a. Savat er, Fern and o, 2004, Os dez man damentos no sé culo XXI, Trediçdo e crua/id ade do legado d e Moisés , Lisboa, Pub licaç õ es D. Quixote. Sim on, René, 1987, Moral, Barc elona, Herder. Sínodo dos Bispos, 1971, A justiça no mundo. Tassin , C., 2009, Evangelho de Jesus Cristo segundo S. Mateus, Fat ima , Difusora Bíblica . Torrelba, Francesc, 2013, Os mestres da suspeito. Marx, Niet zsche e Freud, Barcelona, Fragmenta.

YOUCAT, 2011. Lisboa. Paulus .

Fontes das not as mar gi nais Cam ps, Victoria , 2013. Breve histó ria da ~tica , Barcelon a, RBA Divulgación. Copleston, Frede rick, 1991, História do Filosofia , IV, Barcelona, Editorial Arie l. Copleston, Frederick, 1986, História da Filosofia, V, Barce lona, Edit orial Arie l.

Copleston, Frederick, 1989, História da Fuosotio, VII, Barcelona, Editorial Ariel . Copleston, Frederick, 1985, História do Filosofia, VIII, Barc elon a, Editorial Ar iel. Copleston, Frederick, 1989 , História d a Fifosofia, IX, Bar ce lona, Edit or ial Ar iel. Gibellini , Ros ino, 1998 , A teologia do século XX, Santa nder, Sal Terrae . Grimal, Pierre, 2009 , Dicionário da Mitologia Grega

e Rom an o, Lisb oa, Difel.

Hirschberger, .Johannes, 1986, HistÓria da filosofia , II, Barcelona, Herder. KOng, Hans , 1989, Teolog ia paro

a posmodernidode,

l..1adrid, Alianza Edi torial.

Reale. Giova nni e Antiseri, Dario, 1995, HistÓria do pensamento científico e filosÓ fico, III, 00 Romantismo até hoje, Barcelona, Herder.

Trevijano, Ramon, 199 4, Patr%gia, Madri d, BAC.

Educação r to ral e Religiosa Catól ica

110




Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook

Articles inside

15.2. Ohomem comoserdividido emarcado pelo limitee o mal

3min
pages 95-96

15.1.Apessoa quese reduza consumidor consome-se asi mesmo

1min
page 94

14.5.3. Odesafiodedarmais doquedinheiro I 91 14.6.Asingularidade daética cristã

2min
pages 91-93

14.5.2. Odesafioéticodajustiça

1min
page 90

14.2.Oamorao próximo nascede umamorprimeiro: odeDeus

5min
pages 84-86

12.3.4. Odesafiodenosunirmosparaviverasbem-aventuranças

2min
pages 70-71

13.3. Dacriação à responsabilidade

1min
page 78

14.1.Aparábola dobomsamaritano eo desafio

1min
page 83

13.1.A matriz cristã I 76 13.2.Asvirtudes cardeais eteologais

3min
pages 75-77

12.3.5. Quebem-aventuranças,hoje?

2min
pages 72-74

12.3.2.As bem-aventuranças,segundo Mateus

1min
page 67

12.3.3.Asbem-aventuranças, segundo Lucas

3min
pages 68-69

12.3.1.As bem-aventuranças,em Mateus eLucas - estabelecimentodo

1min
page 66

12.2.Odec élogo- DezMandamentos: mais doque lei,vida'

6min
pages 60-63

12.3.Asbem-aventuranças

3min
pages 64-65

11 .1.Ofulcro: osvalores espirituais(lógicos, estéticos e éticos) formamuma I unidade arespeitar

4min
pages 55-56

5.1.1. Dadosdadiscussão sobre arelação entreéticae moral

3min
pages 25-26

10.2. Uma síntese

1min
page 49

10.3. Dois problemas éticos à luzdatipologia dosvalores I 50 10.4.A ética comodesafio de toda ahumanidade

7min
pages 50-54

5.3. Outra distinçãoentreética emoral I 26 5.4. e'moral': doistermosdiferentes,o mesmoconceito

4min
pages 27-30

7.1.Aregra de ouro 1 36 7.2.A crítica à moralcristã-seráamoral cristã amoral dos ressentidos?

18min
pages 35-48

As tipologias dosvalores

0
page 11

5.1 . OHomeméconstitutivamente moral I 23 5.2.As fontesdamoralidade

2min
pages 23-24

Astipologiasdeéticas

0
page 7

De queser humano

3min
pages 16-18

Aresponsabilidade

0
page 14

Oquefazvaler osvalores?

1min
page 9

Comoemerzern os

1min
page 12

O queéo valor moral?

2min
page 10
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.