EMRC_11_UL5_A religião como modo de habitar e transformar o mundo

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Queridos Alunas e Alunos Est imadas Famílias Caros Docentes to com grande alegria que vos ent regamos os manuais de Educação Moral e Religiosa Cat ólica, que fo ram preparados para lecion ar o novo Programa da disciplina, na sua edição de 2014. O que aqui encontrareis proc ura ajudar, cada um dos alunos e das alunas que frequentam a disciplina, a «posicionar-se, pessoalmente, f rent e ao fenómeno religioso e agir com responsa bilidade e coerência», tal como a Conferência Episcopal Port uguesa definiu como grande f inalidade da dis ciplina ", Para t al, realizou- se um extenso t rabalho que pretende, de forma pedagogicamente adequada e cient if icamente signif icat iva, co nt ribuir co m seriedade para a educação integral das crianças e dos jovens do nosso País. Esta tarefa, realizada sob a superior orientação da Conferência Episcopal Portuguesa, a responsabilidade da Comiss ão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé e a dedicação permanente do Secreta riad o Nacional da Educação Cristã , envolveu uma extensa e mot ivada equipa de tra balho. Queremo s, pois, agradecer aos autores dos t extos e aos artistas que elaboraram a monta gem dos mesmos, pelo seu entusi asmo perman ente e pela qualidade do resultad o f inal. Também refe rimos, com apreço e grati dão, os docentes que experime ntaram e come nta ram os manuais, ainda durante a sua execuç ão, e o cont ributo insubstituível dos Secretariados Diocesanos responsáveis pela disciplina na Igrej a local. E a t odos os doc entes de Educação Moral e Religiosa Católica , não só entregamos estes indispensáveis instrumentos pedagógicos como aproveit amos est a fel iz ocasião para sublinhar a relevân cia do seu fundamenta l pap el, nas escolas e na formação das suas alunas e dos seus alunos , e testemunham os o nosso reconhecim ento pelo seu exte nso comprom isso pastoral na sociedade portuguesa . Do mesmo modo, estamos agradecidos às Famílias, porque desejam o melhor para os seus f ilhos e fi lhas e, nesse contexto, escolhem a disciplina de Educação Moral e Religiosa Católica como um impor tante co nt rib uto para a form ação e o desenvolvimento pleno e feliz dos seus j ovens. Os jove ns conf ormam o nosso f utu ro co mum e o emp enho sério na sua educação é sempre uma garant ia de uma sociedade mais bondosa, mais bela e mais j usta. Finalmente, queridas cr ianças e queridos jovens, a Igreja quer ir ao vosso encont ro, est ar convosc o, ajudar-vos a viver bem e, nesse sentido, colaborar com o esforço de construção de um mundo melhor a que sois chama dos, enraizados e f irmes (cf. Cal 2, 7) na propos ta de vida que Jesus Cristo tem para cada um de vós. to esse o horizonte de vida, de missão e de fut uro, a const ruir co nvosco, que nos propomos realizar com a discipl ina de Educaçã o Moral e Religiosa Católi ca. Em nome da Conferência Episcopal Port uguesa e no nosso próprio, saudamos todas as alunas e to dos os alunos de Educação Moral e Religiosa Cató lica de Port ugal com alegria e esperança,

Comissão Episcopal da Educação Cristã e Doutrina da Fé Lisboa, 19 de março de 2D15. Solenidade de S. José, Esposo da Virgem Maria e Padroeiro da Igreja Universal

.. Conferência Episcopal Portuguesa. (2006), Educaçóo Morol e Religiosa Católico- Um vofioso contributopora a toemocõo do personalidade, n. 6.

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Indice 6

1. A experiência rel igiosa como com unicação e comunhã o

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1.1.Cr;;:-- -o que- desc~ brim~s~s-pa l av~a-;- -

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1.2. Simboli zar, comunicar e t ransm itir 1.3. A natu reza simbó lica do discurso religioso 1.4. Mito e cultura 1.5. Natu reza e fu nções do sagrado 1.6. Exist e um sagrado cristão? 1.7. Aspetos nuc leares da experiência cr istã

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63 ; -63 - 2.1 .Religii o-;;-s~ciogé-;'ese - _- -

2. A re ligião nas cultu ras

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- . - - . - - . ~ - - - .~ - . - 2.2. A cons tit uição de t rad ições e pat rimónios religiosos e espiritu ais 2.3. O qu e é uma tr adição religios a? 2.4. As fu nç ões sociais da religião 2.5. O cristia nismo no contexto da «viragem axial» 2.6. A novidade cristã face à diversidade religiosa no Impér io Romano 2.7. Uma cidadania crist ã

- - -3.1 . -Modernidade, - - - - -secularização ------ - - - -- - - - - -113 , -113 e «des-s ecularizacáo»

3. Dinâm ic as reli giosas no mundo cont emporâ neo

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3.2. Indiv idualização e desinstitucionaliza ção do religioso 3.3. Ident idad es religiosas no mundo: novas geografias 3.4. Novas for mas de religião no mundo conte mp orâneo 3.5. Religião, cidada nia e intercultu ralidad e 3.6. Os crist ãos num mun do plural e globalizado


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1. A experiência religiosa como comunicação e comunhão

1.1. Crer - o que descobrimos nas palavras A «relig ião» nas suas etimologias Apesar de hoje usarmos com muita frequênc ia o termo «religião» para desc rever contextos e experiências humanas muito diversas, não devemos perder de vista que esta palavra, em concreto, tem uma origem lat ina, mais tarde cristianizada. De facto , em muit as out ras línguas e cultur as, não encont ramos um equivalente para este termo latino, religio - sobretudo em períodos históricos mais recuados. O historiador Michel Meslin' narra um episódio sucedido na Nigéria, ainda durante o período colonial, que nos pode ajud ar a compreender esta dificuldade.


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Texto 1

Por oc asião de um recenseamento na Nigér ia, a administração, muito ocidentalizada, tinha previsto três categorias: Cristão, Muçulmano, Pagão; ist o sem pensa r que, para o povo de Lagos, os pagãos são os homens nus das tribos que vivem nos Planaltos do norte . Por não se ju lgarem compa ráveis a nenhum a destas três categorias, não responderam . A adm inist ração colonial mudou, ent ão, o elenco de deno minações e ped iu que esco lhessem agora entre Cristão, Muçu lmano e Anim ista. Desconhecendo este novo termo, acabaram por não responder de novo. Geoffr ey Parrind er, na altura professor na Universidade de Ibadan, fo i consu ltado e acon selhou que se perguntasse: Cristão, Muçulmano ou loruba (quer dizer, se segue as normas e os costumes do seu povo). Compreende ndo agora a pergunta, responderam massivamente, mostrando assim que a sua religião não se sepa ra da sua próp ria ident idade étn ica. Mich el Me slin - A experiêncio humana do divino. Petr ópohs: Vozes, 19 88 , 22.

Ainda no fina l do século XIX e no início do século XX, muitos europeus achavam que alguns povos não teriam religião por não enco ntrarem aí comportamentos religiosos comparáveis aos que conh eciam, ou por não encontrarem termos equivalentes a «religião», ou mesm o um vocabulári o especifi camente religioso. Alguns ter mos, qu e hoje identi f icam t radiçõ es religiosas constituídas por uma grande diversidade dentro de si - como é o caso do hinduísmo -, resulta ram sob retudo de um ato de classific ação dos poderes colonizado res. No Ocident e, o te rmo lati no religio impôs -se e nenhum outro alguma vez o substituiu com a mesma abrangência. Mas isso não quer dizer que o termo te nha um só senti do. A paixão pelas et imologias é uma das marcas da cultura ocident al. Em muit as circunstãncias, somos tenta dos a pe nsar que o con hecimento da etimologia de um voc ábulo resolve o prob lema da co mpreensão da realidade que o vocábulo nomeia. Mas as eti mologias tê m o seu grau de incert eza. Quando percorremos as diversas propostas de caracterização da etimologia de religio , deparamo- nos com duas vias amplamente come ntad as ao longo da história. a) Cícero' (que viveu entre 106 e 43 ant es da nossa era), numa obra conhecida pelo titulo De Noturo Deorum (lite ralmente, «acerc a da natureza dos deuses»), explora a possibilidade de o termo ter origem no verbo lege re (recolher,ju nt ar a si). Neste caso, re-fegere seria tomar algo de novo, ter uma nova perspetiva, afirmar uma escol ha. Assim, a atitud e ou compo rt amento religioso descrever-se-ia pelas qualidades do cuidado, do escrúpu lo ou da disciplina. De acordo com esta eti mologia, a negligência (negligo) seria o contrá rio da religião (re-ligare) - por isso o filós ofo Michel Serres' afi rmou que a «religião» é o cont rário da «negligên cia». Nesta aceção o termo não designa propriamente um campo separado da experiência humana, mas a disposição int erior que anima certos comportamento s, cert as formas de pensar e de o exprimir; num sent ido mais restri to, a atitu de de respeito que determinados aconte cimentos ritu ais t radicionais exigem.

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b) A segunda via etimológ ica é, com freq uência, mais citada - talvez porque em certa medida corre sponde mais à experiência histórica da cristianização. Tant o o teólogo afr icano Tertul iano' (155-220) como o professor de retó rica l.act áncio " (260-325) protagon izaram essa escolha. Para estes, religio teria origem em re/igore (ligar, vincular). Lactãncio deciara que o termo refigio descreve esse vínculo de piedade que une Deus à humanidade, ao qual o crente responde como quem obede ce a um pai. Como o crist ianismo aprofun dou, nesta cult ura lati na, a ideia de um Deus que não se confunde com a natureza e a sociedade, permit ind o diferenc iar os poderes - o político e o religioso - e os saberes, est a etimologia favoreceu a ideia de que a religião é essa experiência simbó lica onde se (re)liga o «céu» e a «terra», a humanidade e Deus, o mundo , o criado r e as crente s ent re si, const ituindo uma comunidade . A ideia bíblica de aliança, num contexto cult ural novo, é aproximada de uma experiência muito cent ral na história da romanização - fazer pontes , ligar territórios divididos para que a comun icação seja possível. Não é estran ho assim, que o termo pontifex (aquele que faz pontes) venha a descrever aqueles que exercem auto ridade na Igreja. Ainda hoje é corrente chamar-se ao Papa, na Igrej a católica, o Sumo Pont ífice.

Est e t rabalho sobre a arq ueo logia das palavras é o rasto de uma per manen te procu ra de int erpret ação do que se vive, individual e co let ivamente, sob a des ignaç ão de religião. Independentemente da ma ior ou menor verosi milhança das explicações eti mológicas, estamos peran te a consciênc ia de que a religião se descobre na cu ltura num co njunto de atitudes, gestos , comportamentos, discu rsos, mas ta mbém numa determ inad a forma de se estabelecer relações. A religião não é um acontecime nto «alien ígena» face às dinàrnlcas que cons t ituem as socie dades. Ela descobre-se nos m odos de habitar o mund o, de ag ir sobre ele e de busc ar o qu e pod e estar para alé m desse mund o.

o vocabulário do «crer» Devemos ter em con ta , ainda, a importância de um vocabu lár io que, não sendo um exclus ivo do campo religioso, tem aí uma inequ ívoca central idade: o vocabu lário do «crer» (o crer, o acredita r, o crédito , a crença , as crenças, etc .), Import a aqui te r presente os result ados da invest igação levada a cabo por Emile Benveniste' e por George Durnézil? sobre o voc abulário indo -e uropeu e so bre as raízes lat inas do vocabulário do «crer». São estudos dese nvolvidos nos anos 60 do sécu lo XX, que permit iram apro ximar as palavras formadas a partir da raiz sroddho, no sânscrito . e os termos lat inas crede re (crer) e lides (fé). Benveniste e Dumézil, nas suas obras - resp et ivament e O vocabulário das instituições indo -europeias (1969), e Ideias romanas (1969) - most raram como este voc abulá rio do «crer» , na literat ura védica', des igna atos de co nf iança em outros seres, na realidade de certo acont ecimento, a existên cia de determinado ser, naqu ilo que algué m diz, ou mesmo aquela confiança do ato de dar (conf iar) algo a alguém . Benveniste vê este per f ii semântico numa das etimologias indo-europeias possíveis para o termo lat ino credo: kred -dhe, que se pod eria t raduzir por "colocar o seu coração em algo" (a "co ração " no indo -europeu é o próprio órgão , mas t amb ém o lugar de alguns aletos ).

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o termo diz respeito à «crença», não com o adesão a um credo, mas como aquela ati tu de de confiança próp ria do f iel perante o seu Deus. Não sendo, assim, mono pólio da religião, este léxico est á particu larmente presente nos gestos de devoção das pessoas perante os seus deuses: devoção dos homens a um deus no cu rso de uma luta, deus que é o doador que concede aos seus f iéis especiais favores , como a vitória nas lutas ou a cura das doenças. Estes atos de devoção envolvem os seres humanos e os deuses numa economia de dádiva. Dumézil procura resumir estas desco bertas na ideia de que este vocabulário supõe uma relação pessoal , direta ent re aquele que a estabe lece e uma pessoa divina ou humana, ou algo t ido por poderoso e capaz de con ceder ajuda. No vocabu lário lat ino, é no nome fides (fé), ou nos adj etivos fidus e fidelis (í iel) que podemos encon trar significados similares: os termos apontam para a confiança que alguém inspira, ou para a lealdade que se esper a. Durn ézil most rou que, tanto nas fábulas indianas como na mitologia romana, os seres humanos, perante os deuses, apresenta m-s e como negociadores que fazem ofere ndas, pressupondo que os deuses são leais. Os ato s de culto estão próximos de outros atos de contrato e comércio. São, a seu modo , co ntratos de tro ca ent re seres huma nos e seres divinos. A semãnti ca latina te m uma mais forte prese nça de um sent ido j udiciário, apelando à conf iança que se exige na experiência de estabe lecimento de um trato - «f ie[» é prec isamente aquele que é digno de confiança A Ant ropologia mostrou , desde as invest igações que se implemen taram a part ir do século XIX, que as relações de troca foram o dinamismo nuclear de construção das sociedades. Para subsist irem, os indivíduos e grupos descobrem que necess it am de algo que os out ros têm, e que possuem o que out ros neces sitam. Esse apelo co loca os seres humanos em relação, mobilizando as suas competências para a confia nça. Certas correntes antropológicas colocaram a hipótese de que o desenvolvimento da capacidade simbó lica humana terá enco ntrado, nesta experiência, um dos lugares privilegiados de aprendizagem. que a troca exige a mobilização da capacidade de atribuir valor. Isso é evidente quando t roco um objeto por outro dife rente . É a nossa capacidade simbó lica que nos permite considerar que eles podem ser equivalentes, quanto ao seu valor. Mas as t rocas não envolvem apenas objeto s, nem os dons envolvidos se transacionam necessariamente em tempos simu lt âneos. A tr oca pode ser uma relação mais comp lexa. Em muit as situações sociais, aos gestos do «dar» (dom) não correspondem, de imediato, os gestos do «receber» (contr a-dom). Há um int ervalo, porque o que se dá e se recebe é diferent e, mas também porque esses gestos podem exist ir co m um hiato de tempo. Esse é o intervalo do crédito, da confiança. É

A Histó ria e a Antropologia das Religiões pusera m em evidência que esta experiência da dádiva é cent ral na const itu ição das soc iedades. Perseguiram a hipótese que vê nas ideias e com port amentos religiosos uma part icular relação com a experiência de conf iança que essas t rocas exigem. Podemos, assim, compreen der melhor porque é que muito do que descreve os comport ament os religiosos, nas diferent es sociedades, envolve os próprio s deuses em relações que alimentam o circuito da dádiva, prát icas que deixaram vest ígios na memória cultura l dos povos .


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Texto 2

Peço-te, ó Deus, invoco-te durante a noite . Nós todos, homens, somos protegidos por t i, todos os dias. És tu quem caminha no meio da relva alt a. E eu caminho cont igo. Quando durmo na minha cabana , é contigo que durmo. É a t i que eu peço alimento e és tu quem o concede aos homens . É a t i que eu imploro a água para a minha sede. És tu que proteges as nossas almas . Não há ninguém acima de ti , ó Deus. Tu tornaste-te o antepassado de Nyikango. Tu eras, ó Nyikango, o que vive com Deus. Tu to rnaste -te o antepassado dos homens, e do te u f ilho Dok. Quando acontece uma fome Não és tu que a trazes? E esta vaca que está aí, não é para ser imolada e o seu sangue chegar j unto a ti? Oferenda para se conseguir uma cura, Oração do Sudão na versão portuguesa de Armando Silva Carvalho (A Oração dos Homens:umo onto logia das tradições espirituais. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, 21).

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1.2. Simbolizar, comunicar e transmitir

Homo symbolicus A paleoantropo logia concede uma grande atenção ao est udo da at ividade simbólica na vida do homo arcaico. Para uma das principais correntes de investi gação, o desenvolvimento da capac idade de simbolização é o mais importante t raço de relação entre o Homo hobilis, o Homo erectus e o Homo sopiens. Nessa via de hominização, encontrariamos uma cada vez mais vincada af irmação do homo simbo licus .


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No quadro desta hipóte se, essa t rajetória poderia ser descrita a parti r dos indícios de at ividade simbólica. Esses indícios apontam para a evidência de que na acão está presente um determ inado sentido, que determina, organiza e interpreta a realidade material envolvente. A manipulação do fogo, a simet ria nos utens ílios, os mate riais usados, as co res esco lhidas, denunciariam, assim, a elaboração de sent idos que não podem ser explicados apenas pela uti lização e func ionalidade. Com o Homo sapiens descobrem- se vestíg ios mais evidentes dest a at ividade simbó lica, como enterros, estatuetas ou pint uras rupest res (cf. Ilust rações 7, 8 e 9). Nesta linha de leitura, Mircea Eliade' , no seu Tro tado de História das Religiões (1954), defendeu que a primei ra exper iência simbólica de transcendência se relacionaria com a obse rvação e contemplação da abóbada celeste . Lido como teta da terra, horizonte inacessível, pod erá t er sido um lugar privilegiado dessa experiê ncia miste riosa do inabarcável.

Características do simbolismo Gilbert Durant'", discípulo do f ilósofo Gasto n Bachelard" , com a sua obra Estruturos antropológicas do imaginário (1 960), foi o protag onista de um enorme esfo rço de compreensão do símbo lo na histó ria e no psiqu ism o huma no, a partir do paleolít ico e do neolítico. A sua propost a resume as dimensões desta atividad e simbó lica em três eixos. a) Há uma dimensão a que G. Durant cha ma mecânica , que se descobre nos esquemas de representaç ões f igurat ivas: gesto s, mímicas e danças. b) Num segundo plano, este autor considera a dimensão genética . Diz respeito, no plano biológico, às facu ldades e aquisições que, indo além do regime do inst into , dist inguem o Homo sapiens de out ras espécies animais. c) G. Durant qualif ica de dinâmica a te rce ira dimensão, uma vez que ela tem uma relação particula r com capaci dade de ilust rar e narrar. Nesta direc ão, para este antro pólogo do imaginário, o mito , fig urado ou narrado, é o melhor exemplo do result ado da dinãmica simbó lica do neolítico. Est a via de análise ref lete-se nas co nce ções que veem a cultura como sistema de símbolos. Siste ma que permite às pesso as e grupos, em determinado conte xto, reconhecer-se como pertenc endo a um mesmo espaço soc ial, viver uma história comu m, co municar e organizar a t ransmissão cultural ent re gerações . Mas, também , saber onde estão, de onde vêm, o que podem espe rar. Neste sentido, to rna-se patente a etimologia do verbo «simbolizar», a ação de unir o que foi separado; abrir para significados novos o que se recebe, ut iliza ou descob re (cf. Texto 3).

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Texto 3 Era 11 de agosto de 1965, Munique na Alemanha. Lá fora as f lores explodiam nos parques e acenavam ridentes das janelas. São duas horas da tarde. O carte iro me t raz a primeira cart a da pátria. Sofregamente a abro. Todos escreveram. Paira um mistério: «Querido, j á deves estar em Munique quando leres esta carta . Difer ente de out ras, ela te tra z uma not ícia alvissar eira. Deus exigiu de nós, no dia mesmo de tua partida, um tributo de fé e de amor. Olhou-nos um a um e escolheu para si o mais preparado, nosso querido pai. Querido, Deus não o t irou de nós, mas o deixou mais entre nós. Papai não partiu mas chegou. Deixou o espaço dele para entrar, definitivamente, no nosso espaço , para poder estar presente contigo na Alemanha, com o Waldemar nos EUA e com o Ruy e o Clodovis na Bélgica». A morte era saudada como irmã e como forma de comunhão para unir a família , dispe rsa em quatro países. No turbilhão das lágrimas, reinava serenidade profunda: morremos para ressuscita r, para expand ir nossa comunicação. No dia seguinte, percebi que no envelope que anunciava a morte havia um sinal de vida: um toco amarelec ido de cigarro de palha. Fora o últ imo que meu pai havia f umado, momentos antes de um enfarte fu lminante, com apenas 54 anos, o haver libertado desta cansada exist ência. Desta hora em diante, o toco de cigarro não é mais um toco de cigarro. t: um símbolo. Guardado num vidrinho , sua cor típica e seu cheiro forte o fazem ainda aceso em minha vida. Torna presente a figura do pai,já agora um arquétipo familiar de valores que prezamos. Em sua tumba escrevemos: «De sua boca ouvimos, de sua vida aprendemos: quem não vive para servir, não serve para viver»[...l. Diante das coisas, primeiro sentimos estra nhamento , depois as domesticamos e por fi m nos habituamos a elas. Nesse j ogo, as coisas e nós mudamos, porque nosso olhar mudou. O toco de cigarro pode ser olhado de fora, como um obj eto neutro. t: o olhar da ciência. Esta analisa a palha, o fumo, o nível de nicotina e conc lui que, como toco, não tem valor nenhum . Mas podemos olhá-lo a partir de dent ro, do que ele significa para mim por causa de meu pai. Ele vira sujeito, pois lembra e fala . Ganha um valor afet ivo inesti mável. Ele virou símbolo. Toda vez que uma realidade do mundo , sem deixar o que é (toco de cigarro), evoca out ra realidade diferente dela (meu pai), assume a função de símbolo . Tudo pode torna r-se símbolo. Depende de nosso olhar. Se forem inseridas em nossas experiências e se as cativarmos, as coisas viram símbolos que falam. Jama is serão esquecidas. Leonardo Boff O toco de cigarro, www.leonardoboff.com


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t: necessário ter em conta que esta atividade sim bó lica presente no quo tidiano hum ano nos remete para a própria gén ese da experiência social humana. O filósofo Paul Ricceur 12 po de aju dar- nos a compreender melhor as modal ida des pelas qua is o simbolismo constitui as culturas.

a) Sublinha, em primeiro lugar, a natureza pública daquilo que dá sentido às açõ es - a cult ura é pública porque o é a signif icação. Assim, as mediações simból icas têm um carácter instit ucional. O simbolismo resulta da interação, constituindo tota lidades que não são redutíveis aos seus memb ros: familias, grupos etár ios, classes soc iais, com unidades, sociedades, Estad os, civilizações. A atri buição de um determinado papel aos indivíduos reunidos nestas instituições é a prime ira função do simbolismo . b) O simbolismo tem um carácter estrutural. Ou seja, os símbolos formam um sistema na medida em que estabelecem relações ent re si. Um determinado gesto rit ual só ganha sentido na medida em que está íntegrado na tra ma que é o conjunto da acão ritu al. Pensemos em cois as tão com uns como o que, em cada comunidad e ou cultura, descreve o modo como as pessoas se saúdam, como vivem e recordam o acontecímento da morte dos familiares, como torn am presente um membro da família ou da comunidade que está longe, como se assinalam aconteciment os importantes para a memória coletiva, etc. Qualquer ação, nestes co ntextos, recebe o seu signifi cado na relação que estabelece com o conjunto. t: como o fragmento de um text o. Só integrado no co njunto da narrati va acede a toda a sua significaç ão. c) As instituições têm, tam bém, um papel de regulação simbólica. Sob este ponto de vista , a acão humana caracteriza-s e por ser uma cond uta com normas. Não será por acaso que se pode est abelecer uma analogía ent re o «código genético» e o «código cult ural». Um e outro são programas que enquadram a acao, embo ra não se possam compa rar quanto ao lugar que neles tem a experiência da liberdade . Os cód igos cultura is podem ser um lugar de subversão. E, por isso, as comun idades e soc iedades criam interditos que protegem as normas mais decis ivas para a manutenç ão da vida coletiva. d) A ideia de regra implica também a de troca. As diferentes t ransações numa cultur a dependem do reconhecim ento de valores partilhados. t: aqui que encontramos um dos significados mais antigos de símbolo, a que já se fez referênc ia. Quando dois grupos juntam os dois fragment os separados, então o objeto dividido tem lite ralmente o valor de símbolo, ou seja, re- ligam, juntam, significam a vida part ilhada. Ainda hoje é comum, nas nossas sociedades, que as pessoas, quando se casam, inscrevam nas suas alianças o nome do outro. As duas alianças - ante s trocadas - quando juntas, tornam-se o símbolo da vida que part ilham. Quando falamos da ef icácia dos símbolos é para isto que apontamos: ao dizer, realizam. e) Pode dizer-se que os sistemas simbólicos são o contexto que perm ite a descrição das ações individ uais . Pensemos num gesto símples, como levantar o braço. Consoante as situações e as culturas, ele pode sofre r leit uras diversas: saudação, ameaça, indicação, imploração, apoío, etc . Tenhamos em conta a variedade de gestos de saudação, públicos e privados. Um mesmo gesto pode ser sinal de respeito num certo contex to cultu ral e expressão de desprezo noutra. Só o sistema simbólico permite a sua leitura contextualizada. Por isso, Paul Ricoeur af irma que o símbolo é uma regra de interpretação.


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Os símbolos perm item numa comun idade ou numa cult ura, a legibili dade das acões, são como que um texto - é uma det erminada sint axe que cr ia condições de leit ura. As Ciências Sociais, a partir do final do século XIX, encont ram na experiência do simbólico o núc leo est ruturante da comunicação religiosa . Um dos primeiros sociólogos, Émile Durkheim", que estudou as t ribos aborígenes" da Aust rália, descreveu a religião co mo o siste ma de símbolos pelos quais uma socie dade toma cons ciência de si própria, o conjun to simból ico que permite a vida co let iva. Já na segunda met ade do século XX, o ant ropólogo Clifford Geert z15 apresentou a religião como um sistem a de símbolos que suste nta uma determinada ordem de mot ivações, de valores, de formas de ver o mund o, capaz de fazer da socied ade co mo que um cosmos ordenado. Assim, sob o ponto de vist a antropológico, o pensamento e a atlvi dade religiosa não se pode compre ender sem termos em conta que essa forma de habitar e transformar o mundo se enraíza nas capacidades simbólicas própr ias da espécie humana. A religião, vista como experiência simból ica, permite a criação de formas de comunhão e comunicação ent re as pessoas, num determinado co ntexto cultural, e organiza, ent re as gerações, a transmissão de um vasto património simbólico.

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1.3. A natureza simbólica do discurso religioso

Símbolo e t ranscendência Como dizer o indizível? Como abarcar o inf inito? Como fala r do tota lmente out ro? Como expressar o absol ut o? Como comu nicar e part ilhar a experiência do Mistério co m os out ros? Estas e outras pergunta s são muit as vezes feit as quando nos propom os falar acerc a da religião e da exper iência religiosa . Todos sabemos como é difícil t raduzir para os outros as nossas experiências mais sign ificativas. Nessas situações a linguagem revela-se «curta», «imprecisa» e chei a de dúv idas. Isto torna-se ainda mais evidente e mais complexo se nos situamos no campo daquilo que se pode designar po r «experiênc ia de Deus». O testemunho dos místicos , nesse sent ido, é inequívoco. Eles t ransmitem por esc rito as suas vivências, mas com a prof und a conv icçào de que as palavras que ut ilizam não são capa zes de aba rcar, nem de esgotar a totalidade da realidad e vivida. Por isso, não são po uco s os que afi rmam ser o silêncio a melhor linguagem a ut ilizar nessa tentativa. A não consc iência destas limitações e dific uldades está , muitas vezes, na origem de equívoc os e erros. Nest a linha, todos nós somos capazes de perceb er como muitos discursos acerca do divino af inai pouc o mais são do que discurso s acerca do próprio ser humano , da sua cond ição, das suas ânsias e perp lexidades. Projetar neste dis-


curso aquilo que é própri o da cond ição humana é um risco sempre presente e ao qual não é possíve l fugir. Mas apesar disto ser uma verdade que se impõe de uma maneira generalizada, como calar aquilo que vai no prof undo da condição humana? Como silenc iar a experiê ncia de descobrir-se habitado po r uma Presença que convida a ir mais além? Como ignorar o facto de, em ta ntos momentos, a vida se abrir a exper iências que revelam a existência de um 'mais', de uma realidade que at rai? Como esconder ou evita r o 'convite', tantas vezes sentido, a um diálogo e a uma relação? No fundo, como cala r esta experiência, quando ela irrompe na vida de alguém, alterando -a, modifi ca ndo -a, abrindo-a a novos horizontes? Neste conte xto, é verdadeiramente significativa a maneira como muitos sentem a necessidade de testemunhar e transcrever essa experiência. Dos muitos exemp los disponíveis reco rremos aqui ao da co nversão de Manuel Garcia Morente" . Apesar das limit ações da linguagem para relat ar o acontecido, Morente desc reve aquilo a que chama um «acontec imento ext raordi nário» indo ao pormenor de registar as horas em que ele teve lugar. Porquê está necessidade, apesar dos limites da linguagem? Certamen te porque esse acontecimento mudou radicalmente a sua vida.

Texto 4

No relógio da parede soaram as doze da noite. A noite estava serena e muito clara . Na minha alma reinava uma paz extraordinária . [...]. A minha memória recolhe o fio dos sucessos no momento em que despertava, sob a impressão de um sobressalto inexplicável. Não posso dizer exatamente o que sentia: medo, angústia, apreensão, turbação, pressentimento de algo imenso, form idável, inenarrável , que ia acontecer imediat ament e, nesse mesmo momento, sem tardar. Pus-me de pé a tremer e abri de par em par a jane la. Uma rajada de ar fresco bateu-me no rosto. Voltei a cara para o interior do quarto e fiquei petrificado. Ali estava Ele, eu não o via, não o ouvia e não o tocava, mas Ele estava ali [...l. Sentia a sua presença com a mesma clareza com que sinto o papel no qual estou escrevendo as letras, negro sobre branco, que estou traçando , mas não tinha nenhuma sensação nem na vista, nem no ouv ido, nem no tato, nem no olfato, nem no gosto. Contudo, percebia-o aí prese nte com inteira clareza e não podia ter a menor dúvida de que era Ele, uma vez que o percebia ainda que sem sensação. Como é ist o possível? Eu não o sei, mas sei que Ele esta va ali presente e que eu, sem ver, nem ouvir, nem chei rar, nem sabore ar, nem toca r nada o percebia com absoluta e indiscutível evidência [...]. Quando te rminou a presença d'Ele ali? Também não sei. Terminou. Num inst ant e desapareceu. Uma milési ma de segundo antes Ele estava ali e eu percebia-o e sentia-me inundado desse gozo sobre-humano que disse. Ma nuel Garcia Morente , He cho Extra ordinario. Carta escrita, em setembro de 1940 , ao doutor José Maria García Lahiguera e que se torno u pública depois da morte do

autor. Nela narra a sua experiênciapessoal de mudança de rumo de vida.

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É verdade que o texto levanta muitos problemas de interpretação e análise, mas o que aqui importa destacar é a enorme dif icu ldade em descrever a expe riênc ia e, apesar de tudo, a absoluta necessidade de a narrar, e até mesmo com inúmeros deta lhes. Como Garcia Morente nos testemunha é muito difícil, senão mesmo impossível «calar» essa experiência e, por out ro lado, a linguagem utilizada não é adequad a, não serve, e acarreta muitos riscos .

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Na tentativa de traduzi r esta e out ras experiências, para melho r as pode r compreender e comunicar, é necessário uti lizar uma linguagem que seja capaz de dar conta do que se quer comunicar, com a consciência de que esse algo não se esgota, nem se reduz, ao modo como com unicamos.

A linguagem simbólica possi bilita a tra dução , expressão, part ilha e tra nsmissão dessa experiênci a. O símbolo é, co mo diz Juan Martin velasco", um caso de «conheciment o indireto», mediante o qual o sujeito to ma conhe cimento de uma realidade através de out ra. A est rutura deste processo de conhecimento não é difícil de perceber. Por um lado, temos uma realidade imediatamente acessível que tem sido denom inada por significante, por outro, temos uma outra realidade, denom inada significado, à qual se chega através da primeira. A relação estabelecida ent re estas duas realidades (signif icante e signif icado) é fund amental para que se possa passar de uma a outra. Por isso, na relação simbólica, o signif icante não é escolhido de forma arbit rária ou convencional, mas sim por manter uma relaçã o natural com o signif icado. Recor rendo às expressões «realidade últ ima» e «reali dades penúlt imas» propostas por Lluís Duch'", podemos ainda tentar esclarecer mais a import ãncia da linguagem simbólic a. Deus é a realidade últ ima à qual o ser humano só tem aces so atra vés das realidades penúltimas, porque a presença do último sempre adota a roupagem do penú lt imo. Ou se quisermos dizer de out ra maneira, a transcendênci a do último somente pode manifestar-se através da ambiguida de e das conota ções cu ltu rais que comporta o penúlt imo. Aplicando esta terminologia ao discurso sobre o símbo lo podemos af irmar que este não pode ser reduzido a nenhuma das realidades . Ele não coincide com a realidade penúlt ima, mas tamb ém não se pode reduzir à realidade última . Só no âmbito da relação ent re as duas realidades se pode falar verdadeiramente em símbolo e ut ilizar a linguagem sim bólica. Fora deste con texto surge inevitavelmente o perigo de «coisifica r» e «rnundanizar» Deus, ou «divinizar» a realidade mundana. Um e outro caminho acabam por imped ir que o discurso religioso possa ser significativo. A li nguagem simbólica poss ibilita a tr adução da experiência do Mistério e do Absoluto (experiência de Deus para as religiões teístas) na vida do ser humano. Através dela é possível dizer esse absoluto respeitando simultaneamente a sua realidade e a realidade do ser humano, ou seja, deixando que o abso luto seja absolu to e, ao mesmo tempo, utilizando uma linguagem que pode ser perfeitamente entendível e assim ilável por parte do ser humano, já que em nada lhe é estranha . Com efeito, o mundo do ser humano está povoado de símbolos. Basta olharmos com alguma atenção para áreas fundam entais do seu viver para podermos perceber est a realidade. O mundo da arte, o mund o da ét ica, o mundo das relações interpesso ais, bem co mo o próprio mundo do conhecimento nos remetem para esta linguagem. Em certo sent ido, podemos mesmo dizer que no simbó lico se revela o umbra l do humano. Todos nós somos capazes de perce ber que as experiências em

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que se vive com maior intensidade a condição humana só podem ser adequadamente verbalizadas a partir da linguagem simbó lica. Como expressar uma profunda tris teza? Como manifestar uma imensa alegria? Como dizer o amor que temos por aquela ou aquelas pessoas que se t ransforma m em mot ivo e razão de ser do nosso viver? Nestas situações, as palavras, os conceitos e as próp rias imagens são curtas, por isso temos a necessidade de recorrer ao símbo lo. Podemos até recorrer a palavras, conceitos e imagens, mas aí elas já são símbolos, ou seja, apontam para além de si mesmas , para além do seu valor ou conotação normal. E podemos ainda ir mais longe nesta linha, uma vez que a raiz deste co mpo rtamento reside na própria condição humana. Tem razão José Maria Mardones'" quando afi rma que o ser humano é um ser «compulsivamente si mbólico». Existe nele uma desproporção entre aquilo que vive e aqui lo que intui ser a sua meta . O inst into de modo nenhum dá respost a ãs suas mais profundas necess idades e em t udo o que faz e vive precisa de atr ibuir signif icados e proc urar sentidos, para que a sua existência possa ser qualif icada de humana. Este percurso, que vai do meramente biológico, do meramente vivido, até o que tem sent ido e pode ser dito como humano, revela-nos a presença da linguagem do simbólico no processo da evolução da condição humana até aos nossos dias. A vida para ser verdade iramente humana tem de ser narrada com sentido, se quisermos, tem de ser simbolizada . Em últ ima análise, podemos dizer que o próprio ser humano é um símbolo, uma vez que a sua existênc ia e cond ição jamais podem ser reduzidas ao que vive e experimenta em cada momento , mas apontam sempre para um mais além, que se t orna indispensável para a sua compreensão. Por t udo isto se pode af irmar que a linguagem simbólica não é, no humano, um simples recurso pedagógico, mas, pelo contrário, uma dimensão típ ica e tip ificante da sua condição. Não espanta, por isso, que a arte, enquanto linguagem simbó lica, esteja tão presente nas diversas formas de express ividade religiosa.

Texto 5 O ser humano está percorrido pela desmesura . É um ser de excesso. As formas em que se manifesta esta desproporcionalidade são muitas [...] A intenção que nos guia é que na desproporção interior que vive o homem nas suas variadas referências à sua «condição humana» percebamos a necessidade de fazer frente a este excesso mediante alga mais que os meros conce itos . O homem necessita deitar mão desse algo - o símbolo - para tratar de expressar e reequilibrar a desmesura que o percorre e o excesso que trata de compensar. Veremos assim como o ser humano, homo symbolicus, no dizer de E. Cassirer, o é por necessidade imperiosa da sua condição. O homem é um ser compulsivamente simbó lico. Jo sé Maria Mardones - La vida dei símbolo: lo dimensión simbólica de la religión . Santander: Sa l Terrae, 2003 , 71.

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Como diz José Maria Mardones, o símbolo é a li nguagem da transcendência, pois t em a capac idade de ser t radução no mund o da nossa sensibilidade do Misté rio. Ele torna acessível o inacessível, sem que este o deixe de ser, t raduz em palavra o silênc io do inefável e acolhe a tr anscendência. É o símbolo que permite estender uma ponte entre duas realidades situadas em âmbitos diferentes, podendo por isso ser expressâo do seu enco ntro , possi bilitando simultane amente a tradução e comunicação dessa experiência. É precisamente neste contexto que o discurso religioso se revela como um discurso eminentemente simbólico.

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Metáfora e alegoria É por ser um discurso eminentemente simbólico qu e o discurso religioso recorre, com fre quência, à linguagem metafórica e alegórica . A metáfora é uma fig ura da linguagem at ravés da qual se relacionam do is termos ou expressõe s, permitindo, at ravés de uma relação de comparação implícit a (em que a co njun ção co mparat iva «como» é omit ida), passar de um signif icado a um out ro que inicialmente não lhe pert enceria.

Rast reando a arqueologia da palavra (meto - algo e fherein - t ransporte) mais facilmente podemos perceber que a metáfora nos apont a para um moviment o de transporte, de mudança, de transferência. Assim, a partir da associação/ com paração ent re dois t ermos podemos ser t ransp ortados de um sent ido original pró prio para um out ro senti do f igurado. Deste modo, é possível promover a emergência de um novo parentesco genérico entre ideias que até então eram logicamente hete rogéneas. A ut ilização de metáforas permite, ent ão, estabelecer relações inéditas entre palavras, termos , expressões e, mesmo, ideias , descobr indo at ributos antes dificilmente insuspeit ados e multiplicando o seu sentido inicial. Com esta tra nsferênc ia de signific ação é possível passar, ta mbém , de um processo de simples exp licação para um out ro de com preensão. Com a metá fora não se pretende apenas dar informações ace rca de determinadas realidades ou pessoas, mas, estabelecendo uma relação entre elas, pretende-se uma melhor comunicação que seja capaz de ír mais longe do que a mera compa ração inicial.

Exemplos de metáforas

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Eu sou um poço de dor e amargura.

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Dois diamantes brilhavam no rosto da menina .

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Seus olhos são dois oceanos.

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Meu pensamento é um rio subterrâneo.

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Cada fruto desta árvore é um pingo de oiro .

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A sua boca é um cadeado.

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A vergonha queimava-lhe o rosto.

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As suas palavras cortaram o silêncio.

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O relógio pingava as horas, uma a uma, vagarosamente.

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Ela se levantou e fuzilou-me com o olhar.

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Meu coração ruminava o ódio.

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Leão! Leão! Leão! tos o rei da c riação! Tu a go ela

é um a f o rn alh a

Teu sa lto, um labareda Tu a garra, uma navalha Cortando a presa na queda .

[...] (Excerto de O leão, Vinfcius de Moraes)

Ainda que ut ilizada como figura de est ilo, a metá fora não pode ser reduzida a um modo especial de ut ilização da linguagem. ou a uma técnica de escrita . Mais do que olhar para a metá fora como um simples recurso a uti lizar. ta lvez devamos olhar para a est rut ura da linguagem como sendo uma estrutura metafó rica. Na verdade, sem o movimento de transferência que a metáfora poss ibilita seria muit íssimo mais difícil. se não mesmo impos sível, não só expressar o pensamento. co mo fazê-lo evoluir. Deste modo. podemos mesmo dizer que a metáfora constitui uma realidade que acaba por marcar a própr ia maneira de pensar e de viver.

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Ilust raçã o 19: A alegoria da caverna de Platão. segundo Jan Saenredam . 160 4

Sem a metáfo ra tanto o discurso religioso como a experiência religiosa ficariam muit íssimo mais difi cultado s, uma vez que as palavras fi cariam apenas com sua dimensão e prof undidade inicial. não sendo, por isso, capazes de expressar mais cabalmente a realidade a que o disc urso e a experiência religiosa nos remetem.

Também a alegoria é um recurso da linguagem que permite a relação entre dois conteúdos de natureza diferente - um perce bido enquanto dado, o out ro configu rado enquanto ideia -, de modo a enco ntra r. a partir dessa relação, os chamados «segundos sent idos», ou «sent idos escondidos» Indo à etimologia da palavra (aI/os - outro, diferente e ogoreuein - falar em públi co, falar abert amente, anunciar) pode mos perceber que literalmente o termo alegoria quer dizer linguagem fi gurat iva, descr ição de um objeto com a imagem de outro, ato de falar sobre uma co isa a partir de out ra. Porque vai para além da compa ração est abelecida pela metáfo ra, a alegoria pode ser consi derada como uma metáfora prolongada , ou como dizia Quint iliano, no /nstitutio Grotorio, uma «met áfora conti nuada que mostra uma coisa pelas palavras e outra pelo senti do». Também Cícero, no Oe Grotore, desc reve a alegoria como um sistema de metáfo ras . A partir destas indicações é possível estabelecer uma distinção, afirman do que a metáfora tem mais a ver com termos isolados e a alegoria mais com expressões ou textos inteiros. A alegoria encerra uma compa ração alargada entre uma realidade concret a que é apresentada ao leitor, ou ao ouvint e, com o objetivo de falar acerca de uma outra realidade de mais difícil com preensão. Partindo de uma histó ria. ou da descrição de uma sit uação, pretende-se apontar para outros sentidos. que permitam uma melhor co mpreensão daquilo que se quer transmiti r. Como um dos maiores exemplos cláss icos de alegoria pode ser referido o mito do caverno. de Platão, o qual atr avés de um processo alegórico most ra a passagem que a alma faz da ignor ància à verdade. Na nossa língua podemos falar, por exemplo, no Auto do Alma , de Gil vicente, que, como sabemos, recorre à alegoria para recontar a parábola do bom samarita no num tom moralista; ou nas figuras do Sermõo de Santo António aos Peixes, do Pe. António Vieira, entre as quais podem os destacar o polvo como alegor ia da hipocrisia e da tra ição.

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Texto 6 Mas já que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrós io. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa , testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igrej a lat ina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta tra ição do polvo prime iramente em se vest ir ou pintar das mesmas cores de toda s aquelas cores a que está pegado. As cores , que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as f iguras, que em Proteu são fábula, no polvo são verd ade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se est á na areia, faz-s e branco; se est á no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinariamente cost uma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da tra ição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi t raidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira trai ção e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso e vil, qual é a tua maldade , pois Judas em tua compa ração j á é menos traidor. Pe. António Vieira, Sermõo de SantoAntónioaos peixes.

A história que Leonardo Boff 20 nos conta no seu livro a Aguio e o golinho é bem um t estemunho da ut ilização da metáf ora e da alegoria. Em meados de 1925 James Aggrey, politico e educador popular nascido no Gana, part icipava numa reunião de líderes populares na qual se discut iam os caminhos de libert ação do domínio colonia l Inglês, da ent ão colónia Inglesa denominada Costa do Ouro. As posiçõ es assumidas entre os presentes eram as mais variadas, indo desde o cam inho que passava pelo uso das armas, até aquelas que, deixando-se seduzir pela retóric a colonial, eram favoráveis à presença Inglesa como forma de modernização e de inserção no mundo dito civilizado e moderno. Vendo qu e alguns dos líderes importantes apoiavam a causa inglesa, James Aggrey contou a seguinte história (cf. Texto 7).

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Leonardo Boff

Texto 7 Era uma vez, um camponês que foi à floresta vizinha, apanhar um pássaro para mantê-lo cativo em sua casa. Conseguiu apanhar um filhote de águia. Colocou-o no galinheiro jun tamente com as galinhas . Est e com ia milho e ração próp ria para galinhas, embora a águia fosse o rei/rainha de todos os pássa ros . Passados 5 anos este homem recebe u em sua casa a visit a de um naturalista . Enquanto passeavam pelo jardim, o naturalista disse: - Este pássaro não é uma galinha é uma águia. - De facto é - disse o camp onês - é uma águia. Mas eu criei-a como se fosse uma galinha, por isso ela não é mais uma águia . Agora é uma galinha. Transformou-se numa galinha como as outras, apesar das suas asas de quase três metros de extensão. - Não - retorquiu o naturalista - Ela é e será sempre uma águia, pois t em um coração de águia e este coração a fará um dia voar às alturas. - Não, não - insistiu o camponês - Ela transfo rmou-se em galinha e j amais voará como uma águia.

Então decidiram fazer uma prova. O natu ralista pegou a águia, ergueu-a bem alto e desafiando-a disse-lhe: - Já que tu és uma águia, já que pert ences ao céu e não à terra, então abre as tuas asas e voa! A águia f icou sentada sobre o braço estendido do naturalista. Olhava distraidamente ao redor e, ao ver as galinhas debicando os grãos, saltou e foi para junto delas . O camponês comentou: - Eu já tinha dito, ela transformou -se numa simples galinha! - Não - tornou a insistir o naturalista - Ela é uma águia. E uma águia será sempre uma águia. Amanhã experimentaremos novamen te . No dia seguinte, o nat uralista subiu com a águia para o t elhado da casa e sussurrou- lhe: - Águia, já que és uma águia, abre as tu as asas e voa! Mas quando a águia viu, lá em baixo as galinhas debicando o chão, saltou e foi para jun to delas. O camponês sorriu e voltou à carga: - Eu já t inha dito, ela transfo rmou-se em galinha! - Não - respondeu firmeme nte o naturalista - Ela é uma águia e por isso possuirá sempre um coração de águia. Vamos experimentar ainda uma última vez. Amanhã a farei voar. No dia seguinte, o naturalista e o camponês levantaram-se bem cedo. Pegaram a águia e levaram-na para fora da cidade, para longe das casas dos home ns, para o alto de uma montanha. O sol nascente dou rava os picos das montanhas. O naturalista ergueu a águia para o alto e ordenou-lhe : - Águia, já que és uma águia, já que pertences ao céu e não à terra, abre as t uas asas e voa! A águia olh ou à volta . Tremia como se experi mentasse nova vida. Mas não voou. Então o natu ralista segurou-a f irm ement e, bem na direçã o do sol, para que os seus olhos se pudessem encher da claridade sola r e da vastidão do horizonte.

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Nesse momento, ela abriu as suas potentes asas, grasnou com o t ípico kau, kau, das águias e ergueu-se, soberana, sobre si mesma. E começou a voar, a voar para o alto, a voar cada vez para mais alto. Voou... voou ... até conf undir-se com o azul do f irm amento. Leonardo Boff - A Aguiae Q Galinha: uma metáfora da condição humano. Lisboa: Multinova, 1998, 23-25.

No fim da história Ja mes Aggrey concl ui afirmando: «Irmãos e irmãs, meus compatriotas! Nós fo mos criados à imagem e semelhança de Deus' Mas houve pessoas que nos f izeram pensar com o galinhas. E muitos de nós ainda acham que so mos efet ivamente galinhas. Mas nós somos águias. Por isso, com panheiros e com panheiras, abramos as asas e voemos. Voemos como águias. Jamais nos conten temos com os grãos que nos jogarem aos pés para ciscar.» No discu rso religioso, a presença da alegoria é por demais evidente, como uma leit ura dos textos bíblicos fac ilmente nos pode testemu nhar. Sem ela, o discurso ficaria, uma vez mais, encer rado sobre si mesmo, não sendo capaz de se referir ao Outro, qu e Deus nunca deixa de ser. O texto do livro do Cântico do Cânt icos é um bom exemplo dest e fa lar de uma realidade (a relação de amor ent re Deus e o seu povo) a part ir de outra (a relação ent re o amado e a amada), segundo as leit uras que j udeus e cr istãos f izeram est a jo ia lite rária da Bíblia.

Texto 8 Fala meu amado, e me diz: «Levant a-t e, minha amada, Formosa minha , vem a mim! Vê o inverno: Já passou! Olha a chuv a: já se foi! As flores f lorescem na terra, o tempo da poda vem vindo, e o canto da rola está-se ouvindo em nosso campo. Despontam figos na f igueira e a vinha florida exala perfume. Levanta, minha amada, formosa minha, vem a mim ! Pomba minha, que se aninha nos vãos do rochedo, pela fenda dos barrancos... Deixa-me ver a tua face, deixa-m e ouvir tua voz, pois tua face é tão formosa e tão doce a tua voz!» Cdntico dos Cdnticos 2,10-1

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Ilustração 23: Fotografia de uma contadora de histórias no Cairo. em 1911 . segundo Douglas Sladen. OrientaI Cerro: lhe cty ot tne uArab,an Nlghts>l, Lc ndon. 19 11

A narrativa Para que o discur so religioso possa ser significat ivo para a vida das pessoas ele tem de ser art iculado numa narrativa que seja capaz de dar sentido. Se assim não for, podem- se dizer coi sas int eressantes e até bonita s, mas elas não serão muito mais do que um dizer com pouco, ou mesmo nenhum, signific ado existen cial. O exercício da narração é um exercício fundam enta l para a existên cia humana. lO a partir dele que o ser humano pode lidar, por exemplo, com o desafio da história e do tempo. Sem ele a existência correria o perigo de f icar reduzida a cada momento presente, sem raízes no passado e sem se abrir ao futuro. Claro que a vida não pode deixar de ser vivida em cada momento, mas se f icar reduzida a cada um desses momentos, não será muito mais do que um co njunto de cenas, ou spots , que acabam por não ter muito a ver uns com os outros e, deste modo, o próprio pro cesso de const ruç ão da identi dade pessoal e da cons trução da história f icaria afetado. De facto , a pergunta pela identidade pessoal e colet iva exige, co mo resposta, uma narração que seja capaz de interligar os vários moment os da existê ncia, ajudando a enco ntr ar um sent ido global. Devemos a Paul Ricoeur algumas das reflexões mais interessantes e interpelant es acerca da narrativa como exercício fun damental para a edificaç ão do próprio ser humano e para a const ruçã o da sua história. Segundo ele, existe uma «conexão significativa » entre a função narrativa e a exper iência humana do tempo, já que este só se torna tempo humano na medida em que for articu lado de maneira narrati va e est a só é verdadeiramente signif icat iva na medida em que for capaz de desenhar as caraterísticas da experiência tem poral. Sem a narração o tempo cronológico difi cilmente se poderia constituir em tempo vivido, ou seja, em tempo histórico, por isso Paul Ricoeur pode afirmar categor icamente que toda a história é narrat iva. Const itu ída por uma tr ama de diversos episó dios que são ligados entre si e colocados em relação com um enredo mais amplo, a narrativa torna possível ext rair significados. Neste sentido, a história não é apenas uma simpl es descriçã o das acões huma nas ao longo do tem po, mas inclui igualmente a procura e a transmissão do significado dessas acões, Deste modo , torna-se possível aceder a própria experiência do que foi vivido e a histó ria pode verdadeiramente ser mestre de vida.

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A história deixa, assim, de ser mera descrição para passar a ser também comp reensão que tenta esta belecer uma «concordância a partir das discordâncias» das exper iências vividas, dando um sent ido global à existência humana. A narrativa emerge do vivido e a ele retorn a tornando possivel a sua transformação. A partir deste círculo hermenêutico, co ncebido por Paul Ricoeur em três mome ntos, podemos mais facilmente compreender a impo rtâ ncia da narrat iva. O filósofo fra ncês usa o con ceito de mimese (literalmente, imitação) para identif icar esses três momentos, enquanto facu ldades humanas de imaginação e represent ação do mundo. A mimese I, denominada prefiguração, apro xima o historiador/ narrador do campo prático do viver; na mimese II, realiza-se a configuração textu al, na qual se proc uram interligar os diversos mome ntos trans for mando o tempo crono lógico em te mpo narrat ivo, realizando sínteses compreensivas com as quais se procura encontrar o sent ido; f inalmente na mimese III acontece a refiguração, na qual também já est á envolvido o leitor ou ouvinte, que não aprende só fact os e eleme ntos de uma realidade já acontec ida, mas aprende um pouco mais sobre a vida, ou seja , aprende a viver. Est e processo que não tem f im, sendo realmente um círculo, é percorr ido inúmeras vezes possibilitando que a experiênc ia do que é vivido ao princípio possa ser compreendida e recriada, dando origem a novas experiências de vida, que por sua vez serão, de novo, comp reend idas e recriadas, dando origem a out ras novas experiências de vida. A narrativa adquire o seu sent ido pleno nest e it inerário sempre a realizar-se, assim se cons t rói a história humana e se edif ica a ident idade pessoa l. Nas cultu ras, a narrativa toma co rpo em diversos regist os - orais, lit erários, mon umenta is, per fo rmativos, etc . No nosso tempo, com o desenvo lvime nto de novos meios audiovisuais, a narrativa visual, como forma de recriação da experiência humana , conheceu uma particular expansão (cf. Ilustr ação 24).

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Texto 9

Tomo como fio condutor dessa exploração da mediação entre tempo e narrativa a articulação [...] entre os três momentos da mimese que, em jogo sério, denominei mimese I, mimese II, mimese III. Cons idero estabelecido que mimese II constitui o pivô da análise [...]. Mas minha te se é que o próprio sentido da operação da configuração constitutiva da tessitura da intriga resulta da sua posição intermed iária entre as duas operações que chamo de mimese I e mimese III e que constituem o montante e a jusante da mimese II. Ao fazer isso, proponho-me mostrar que a mimese II extra i a sua intel igibilidade de sua faculdade de mediação, que é de condu zir do montante à jusante do texto, de transfigu rar o montante em jusante por seu poder de configuração. [...] Ela [a tarefa da hermenêutica] não se limita a colocar mimese II entre mimese I e mimese III. Ela quer caraterizar mimese II por sua função de mediação. O desafio é pois o processo concreto pelo qual a configura ção textual faz a mediação entre a prefiguração do campo prático e sua refigu ração pela receção da obra . Aparecerá corolariamente, no termo da análise, que o leitor é o ope rador por excelência que assume, por seu fazer - a ação de ler - a unidade do percurso de mimese I a mimese III através de mimese II. Paul Ricceur - Tempo e narrativo I. Camp inas: Papirus Editora, 1994. 8 6- 87.


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Tendo bem presente a reflexão desenvol vida por Paul Ricoeur, além de outros autores, L1uís Duch afirma que as narrativas permitem uma maior e melho r aproximação à verdade da vida do que out ro ti po de discursos baseados essencialmente na definição e no conceito. Segundo este autor, a ident idade pessoal constrói -se, na variedade dos espaços e dos tempos, por mediaç ão da narração, como exercício que perm ite a «passagem do caos ao cosmos», do que está desestruturado para uma estruturação que possibilita encontrar a ordem e o sent ido capazes de facilitar as práticas de «dominação da contingência» a que o ser humano está sempre submetido. Através do exercício da narrativa , o ser humano procura encontrar resposta para as grandes questões da vida individual e coletiva (Porquê O mal e qual o seu significado? Qual o destino da histó ria humana? Que sentido tem a vida? Porquê a doença, o sofrimento e a morte?), que não podem ser simplesmente respondidas por códigos, ou receitas e que, incessanteme nte , entre o desespero e o consolo, se lhe co locam em to das as lat it udes e momentos. Neste sentido, as narrações carater izarn-se por possuir um plus sap iencial mente ativo , or ientador e terapêutico, de t al modo que a qualidade da vida humana não pode, de modo nenhum, delas ser desvincu lada.

10 também pela narração que , segundo L1uís Duch, o ser humano pode participar no sagrado narrado que, através dela, pod e ser incorporado na sua própria vida. Em certo sent ido, toda a tradição religiosa, a não ser que se encont re no princípio do seu caminho, não pod e deixar de const ituir-se como um «nós narrat ivo», j ust amente porque enquanto seja o que diz ser, será sempre uma co munidade «rememorat iva» e «antec ipat iva», vivendo o presente, enraizada numa tr adição e abrindo-se ao fut uro. São as narrações que, postas em circulação , têm a miss ão de reforçar os vínculos de pertença entre todos os membros da comu nidad e crente . Se não querem correr o risco de co nverterem -se em «religiões mortas», cada t radição religiosa não pode deixar de ser um processo narrativo, de caráter iniciático, cent rado nas questões fundacionais da existência humana. Um défice narrativo, nesta linha, comporta inexoravelmente o perigo da dificulda de do convívio , da partilha e da solidariedade, o qual pode conduzir, sobretudo no cam po religioso, à constituição de «retó ricas de dominação» que se carate rizam pelo predomín io dos tr aços dogmáticos e morais na constituição das identidades religios as. Deste modo, as cr ises re ligiosas estão sempre ligadas , de uma forma ou de outra, a crises narrativas que vão dificultando, cada vez mais, a reconfiguração criativa, no presente, daqueles acontecimentos fun dacionais que tiveram lugar no pass ado e que possibilitam a construção da identidade religiosa na continuidade da histó ria Os aspetos fundamenta is e mais sign ificativos da ex istência huma na só são narrativame nte acessíveis , por isso, o discurso reli gioso, se quer ser significativo do ponto de vista antropológico, não pode deixar de se constitu ir como um exercício de nar ração através do qual, não só se constrói a identidade pessoal e co letiva , como também se mantem e recr ia uma determinada tradição re ligiosa e cu ltura l.

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1.4. Mito e cultura

Segund o o Tratodo de Histó rio das Religiões de Mircea Eliade, ent re os polin ésios, cont a-se que, no prin cípio do s temp os, existiam as águas pri mordiais, mergulhadas na escu ridão cósmica. Nessa imensidão de espaço, lo, o deus supremo, desej ou sair do seu repouso. Assim apareceu a luz. A seguir, segundo as suas orde ns, as águas separam- se, os céus form aram -se , e apareceu a te rra. Quando se confrontam estas narrat ivas com as hipóteses, teorias ou demons trações cient íficas acerca das origens do universo, ouvimos, com f requência, a afirmação de que estas narrativas são mitológicas. Quer isso dizer, simp lesm ente, que se tr ata de uma forma de saber arcaico, que foi superada por outras form as de conhe cimento? Trat a-se de uma ficção que hoje só pode ter um valor literá rio ou de entreten imento? Se percorrermos os dicionários mod ernos, concl uímos que o term o mito te m, no seu uso contemporãneo, uma aceção prep onderante que o aproxim a daquilo que é efabulação, imaginação, ilusão, ideia que não corresponde à realidade. Em textos diversos, o mito pode dist inguir- se de for mas de enunciação tão diversas, como a razão filosófica, o dogma religioso, a verif icação científica, a documentação historiográfica. O próp rio adjet ivo «mitológico» tanto pode refer ir-s e a ideias fantasistas, ou descrever a perspetiva do est udo organizado dos mitos. Por out ro lado, um pensador como Roland Barthes", no célebre ensaio Mitologias (1957), reuniu um conju nto de «imagens» ou objetos do século XX - o bife com batatas frit as, o Cit roén, o céreb ro de Einstein, o rost o de Greta Garbo, a iconograf ia do abad e Pierre, etc. - que, na sua ót ica, transpo rtam e condensam os valores, as ideologias, as crenças de um dete rminado tempo social. Vemos, assim, que o term o «mito» sof re de uma grande ambiguidade, ora considerado como algo que diz respeito a um tempo superado, ora recup erado para ident if icar certas con st ruçõ es simbólicas atua is.

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uustracao 27- Icones das «mitolog ias contempo r âneas».

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Sob o ponto de vista ant ropológico. o mito tende a apresent ar-se como uma narrativa acerca da origem, o mito é «imaginação cons t ituinte», na expressão do especialista em história e cultura da Grécia Ant iga. Paul Veyne" . Que alcance tem esta expressão? Ao recorrer a uma narrativa que liga a experiência presente ao imaginário de uma origem , os grupos humanos exprimem a sua demanda de senti do para a experiênci a plural e contra ditória do mundo e a sua busca de fun damentação para o conjunto de val ores qu e ordenam a vida individual e co let iva. As narrativas mais determinantes são cosmogonias, teogonias e ant ropogonias - respet ivamente, mit os que narram a or igem do mun do. dos deuses e dos human os (cf. Texto 10).

Texto 10

No tempo em que Deus criou todas as coisas , criou o sol. E o sol nasce, morre e volta sempre. Criou a lua. E a lua nasce, mor re e volta sempre. Criou as estrelas e as estrelas nascem, morrem e volta m sempre . Criou o homem. E o homem nasce, morre e não volta mais. Oração com origem na região do Baixo Vale do Nilo. versão portuguesa de Armando Silva Carvalho (A Oroçdo dos Homens: uma ontologiadas tradições espirituais. Lisboa: Assírio & Alvim. 2006. 31).

o historiador e antropólogo romeno, Mircea Eliade, estudou o arquivo mito lógico de várias socieda des dit as arca icas ou tr adicionais. Detenhamo -nos na def inição proposta por Mircea Eliade (cf. Texto 11). Texto 11

O mito narra uma história sagrada; relata um acontecimento que teve lugar num tempo primo rdial [...]. Dito de outra forma, o mito conta como. graças a seres sobrenatura is, cer ta realidade passou a existir [...]. É esta irrupção do sagrado que funda realmente o mundo e o tornou naquilo que ele é. Mais ainda , é por causa das intervenções dos seres sobrenaturais que o ser humano é o que é: mort al, sexuado e cultural. Mircea Eliade - Asc ects du mythe. Paris: Gallimard, 1963.

Eliade não privilegia. como acontece com outros especialistas em mitologia, o universo dos mitos gregos. Ele dá duas razões para esta opção. Em primeiro lugar. a Grécia clássica é um caso singular, j á que se t rata de uma cu ltu ra que se caracteriza pela emergência de uma ampla co nsciência cr ítica do mito - por isso se fala, na hist ória do pensament o grego, da tensão ent re mythos e logos. Em segundo lugar, a mito logia grega não foi tr ansmitida por qualque r comuni dade crente que se tenha disseminado no espaço ou tenha chegado até aos nossos dias. Na perspet iva de Mircea Eliade, o mito, na antiguidade grega clássica, estava j á moribundo, não ti nha uma forte art iculação com a vida social. Na época de Homero era a principal fonte de inspiração poética. Mas, na conc eção de Mircea Eliade, isso acontecia precisamente porque essas narrat ivas eram ent ão um legado. com uma relação ténue com o quot idiano e desvinculadas do

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, - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - -- - - - - - - -- - - - centro da vida religiosa . Algo de simil ar encontramos nos usos que a cultu ra contem po rânea fa z do arquivo mitológico grego - co mo um vasto stock reut ilizável em co nte xtos d ivers os e f inalida des d íspares. Por co nt raste, uma narrati va com o a da Bhagovad-Gita23 per manec eu sem pre «atu al» na es paço cu ltural ind iano. Com outros, co mo G. Van der Leeuw" ou L évy- Bruhl-", pod e dize r-se que Mircea Eliade se inte ressa pelos «mitos vivos», não pelos mitos a que só acedemos como que na vitrina de um museu. A difer ença ent re estuda r os mitos do mun do grego clássico ou indagar o sent ido das mitologias de out ras socieda des arc aica s e t radicionais ser ia comparáve l ao que dist ingue o estudo de uma «língua morta» ou uma «língua viva». A t eoria eliadiana do mito pode ser resumida em cinc o eixos: Pod emos, assim, entender melhor porque são tão importantes as mitologias nas grandes tradições da humanidade. Na medida em que respondem às exper iênci as mais críticas e às inte rrogações mais esse nc iais das comunidades huma nas, não esp anta que as religiões tenham encontrado, nas linguage ns míticas, um recur so imp or tan te par a narra rem o longo curso da história humana que t rans por tam.

a) Enquanto revelação das origens, num quadro narrati vo ou num suporte visual, o mito «dá a ver» o sent ido da existê ncia de algo (o mundo, a humanid ade, uma sociedade , uma cidade, uma técnica, um artefa cto, etc.). A explicação acerc a da origem é o modo específi co de apresent ar esse esforço, acumulado e tra nsmiti do, de com preensão da razão de ser das coisas. Os perc ursos de iniciação - ou de passage m para a vida adulta - implicam, nas culturas , formas de acesso a este conhec imento. b) O tempo mítico tem carac ter ísticas própr ias. Ele está for a do te mpo da história humana. «No princípio», «naquele t empo» são expressões que, neste cont ext o, não visam a evocação de algo que aconteceu no passado - por isso o mito não pode reduzir-se a uma fábula. Aquelas expressões são o rasto , na linguagem, de um modo de experiênc ia do mundo que encontra na temporalidade própria da narr ati va mítica o f undamento do que aqui e agora se vive. Nesse sent ido o mit o é um saber em acão que, em razão da sua uti lidade, se conserva na memória das culturas tradicionais.

c) Na ót ica de Mircea Eliade, o mito, para além de con hecimento e acão, tem também um va lor existencia l, art icula-se a uma experiência religiosa. Por exempl o, nas t radiç ões hindus, as peregri nações aos diferentes rios sagrados são eta pas de uma vivência religiosa . Esses percursos são preparados pela recitação de t ext os sagrados, por uma dete rminada ordenação do corpo , por gestos diversos de purif icação, que visam ent rar no tempo dos deuses, part ilhar da sua presença. É neste domínio que o autor romeno descobr e a interceção ent re a experiê ncia mít ica e a experiência religiosa. d) Fornecer modelos exemplares para as diversas ações humanas, é uma das princi pais f inalidades da ativ idade mit ológica. Assim, a cos mogonia, enquanto génese «primeira», pode ser o modelo de outras «origens»: a cidade, a casa, a reprodução humana, etc . A história «primordi al» é o modelo de outros «comeces». e) Na esteira de Eliade, podemos dizer que o mito se at ualiza nos rituais. O ritua l não é apenas comemoração. Tem uma dime nsão performativ a - «faz o que diz». O rito renova aquela força das origens. L. Lévy-Bruhl, ainda na primeira met ade do século XX, descreveu como, quando em Tim or as plantações apresentavam sinais de doença , certos declamadores permaneciam j unto dos campos, recit ando rit ualmente a narrat iva da origem do arroz, para que o espírito do arro z regressa sse e renovasse a plantaçã o doent e. Assim, a recit ação da origem não é apena s a manut enção de uma memóri a. Essa conse rvaç ão visa a reut ilização dessa força que se acredita ser «or iginante».

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Texto 12

As sepulturas dos Neandertalenses ensinam-nos cinco factos importantes sobre o mito. Primeiro, está quase sempre enraizado na experiência da morte e no medo da extinção. Segundo, os ossos dos animais indicam que o enterro era acompanhado por um sacrifício. A mitologia, na generalidade, está habitualmente ligada ao ritual. Grande parte dos mitos não faz sentido nenhum fora do quadro de um drama litúrgico que os traz à vida [...]. Terceiro, o mito do Neanderta lense era recordado, de certo modo, ao lado de uma sepultura, no limite da vida humana. Os mitos mais pujantes tratam do extremo: forçam-nos a ir além da experiência. Há momentos em que todos nós, duma forma ou doutra, temos de ir a qualquer sítio que nunca vimos e de fazer o que jamais fizemos. O mito lida com o desconhecido: com aquilo para que não t ínhamos palavras, inicialmente. Portanto, o mito contempla o âmago dum grande silêncio. Quarto, o mito não é uma história contado por amor à história. Mostra-nos como nos devíamos comportar. Nas sepulturas neandertalenses, o cadáver foi muitas vezes colocado na posição fetal, como que para um renascimento [...]. Finalmente, toda a mito logia fala doutro plano que existe paralelamente ao nosso mundo, e que o suporta, num certo sentido. Karen Armstrong - Uma pequena história do mito. Lisboa: Teorema, 2005,95.

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1.5. Natureza e funções do sagrado

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A origem, o espaço e o tempo

o t ermo «sagrado» t em, hoj e, uma ut ilização na linguagem co rrente . Quando alguém preten de atr ibuir a algo um valor extr aordinário, quando pretende nomear uma fronteira que não se pode ult rapassar ou uma co nvicção de que se não pode abdicar, diz-se «ist o é sagrado». Onde se enraíza est a metáfora tão frequente? Que relação te m esta analogia com a experiência religiosa? A religião é o sagrado configurado de determinada forma? A catego ria «sagrado» procu ra sinalizar algo que, embora seja cons t itu inte da experiência reli giosa, é anterio r (ou está para além das suas fron teiras) às form as organizadas de religião. De novo, temos de andar às voltas com as palavras, para conhecermos melhor o mundo que habit amos. O gótico hai/s, que está na origem da raiz alemã Heil, diz respeito à integridade física , exprimindo quer o estado de boa saúde quer a experiênci a de se ser tratado ou curado. A part ir deste significado primeiro, exprim irá a bênção ou a felicidade que se recebe dos deuses. A cat egoria de sagrado, no sent ido que aqui exploramos, af irma-se na mode rnidade europei a, marcada pelo pensamento alemão. Neste contexto, o te rmo alemão Heilig reúne um conjunto de significados que nout ras línguas estarão distribuídos por palavras difere ntes . Em part icular tr ês: sagrado, santo e salvo. Se recuarmos até ao indo- europeu, visitando os estudos de Emile Benveniste, descobri mos que há uma diversidade de palavras para expri mir estas significações - não existe um termo único correspondente ao moderno «sagrado». O hist oriador Michel Meslin observa que, em línguas como o iraniano, o grego e o lat im, este vocab ulário se desdobra numa dupla face , negat iva e posit iva (cf. Texto 13).

Texto 13 É sagrado o que está carregado de presença divina, mas t ambém é sagrado o que está interdito aos seres humanos: em suma, o sagrado bifronte, de face positiva e de face negativa. A análise das linguagens revela certas constantes: o carácter santo, sagrado, co notado por formas adjetivas, define uma força exuberante, fe cundante, capaz de trazer a vida, de fazer surgir as produções da natureza . Nessa perspetiva , a integridade física é dotada de valor religioso. Michel Meslin - L'expérience humaine du divin: fondements d'une anthropoJogie religieus e. Paris: Cerf, 1988, 66.

Em muitas sociedades arcaicas , descobre- se que o orde namento do mundo da vi da está ligado à perc eção de que existe uma força proeminente de que t udo depende. Os índios Sioux acredita m que existe um poder proeminente, do qual derivam outras forças, a que chamam wakan . Esta força, distinta das coisas mate riais, aproxima- se do que poderíamos descrever como um pr incípio v ita l, Neste context o, todos os seres vivos - incluindo, paradoxalmente, os que j á morreram - partic ipam de uma mesma comu nhão. Em muitas cult uras, o carácter tota liza nte dessa força explica o que acontece de bom , mas também a experiência do trágico e da cat ástro fe. No século XIX, o missionário e etnólogo anglicano R. H. Codringto n" , no seu estu do sobre a sociedade melanésia, identifico u no termo man a a expressão dessa força ambivalente. Através de um saber-fazer próp rio, é neces sário t orn ar essa força aliada da aven t ura hum ana. Teorizando a part ir de uma t radição religiosa muit o diferen te - a t radição bíblica e cr istã - , no mesmo século , o fi lósofo e teólogo Ru dolf Otto pensava a experiência do sagrado como esse sent imento (o tremendum et fascinans) , face ao que é totalmente - out ro (o «numinoso») em relação à materialidade que nos envolve. Também aqui a experiência do sagrado era explicada a partir de uma dupla face: o sent imento de veneração perante esse tot almente-out ro que está para além da experiência humana do mundo , mas tam bém o fascínio que tal força exerce (cf. Texto 14 e 15),

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Texto 14

Espírito do ar, vem,

vem depressa. O invocador te chama. Vem, e purifica esta terra. Espírito do ar, vem, vem depressa. Levanto-me:

é no meio dos espíritos que eu me levanto . Os invocadores me prote gem, conduzem-me por entre os espíritos. Criança , criança, grande criança, levanta-te e vem, grande criança, pequena criança, aparece entre nós. Poema esquimó recriado por Herberto Héld er (Poesía Todo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1990, 234).

Texto 15

Diante de ti t reme o coração dos anjos ; Baixam os olhos e rosto, Tão te rrível lhes apareces, E os seus cantos disto fazem eco. A criatura f ica atónita Na tua presença Que enche todo o mundo. E esta aparência mostra, Espírito imutá vel, Uma imagem em que t u te escond es. Os querubins e os serafins Anunci am sem cessar os teus louvores, Diante de t i a mult idão encanecida dos Anciãos Ajoelha-se e serve-te humildemente. Porqu e é a t i que pertence a força e a glória,

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o império e a santidade. Fui tomado de assombro. Tens uma majestade Que tudo ultrapassa E que é três vezes santa . Hino de A. Bartela (1862 -1 945,) cit ado por Rudo lf Ot to (O Sagrado. Lisboa: Ed. 70,1 992, 46).

Este interesse moderno pelo sagrado nas cu lturas oscilou ent re a poss ibilidade de desco berta da universalidade do sagrado em razão da nossa estrutura de pensa me nto - hoj e. diríamos neuronal - , ou a parti r das estruturas socia is que nos permit em viver coletiva mente, superando os riscos da violência, num meio soc ial e natu ral t ant as vezes adverso. Na leit ura que propomos, interessa perceber o que esta experiênc ia do sagrado mobiliza nas cultu ras. A antropologia do sagrado de Mircea Eliade está entre as propostas que mais destaque deu a esta inte rrogação. Na sua leitu ra, a construção de um quadro de referências que permite aos seres humanos, num determinado espaço social, com preenderem de onde vêm e que sent ido tem o seu presente - é a principal fu nção do sagrado. Nenhuma cultura dispensa a referência, por exemplo, a acontecimentos fundadores. A identificação das fronteiras simbólicas de uma cult ura depen de da consti tui ção de um quadro referencial que permite aos indivíduos esse mapear da existência: saber onde estão , de onde vêm, que fut uro se abre. Pensemos na met áfora da navegação. Como saber para onde ir, se não há ref erências. Foi a constituição de uma grelha de meridianos e paralelos que permit iu, de forma rigorosa, atr ibuir referências a todos os pontos do espaço geográfico , relacioná-los e estabelecer ent re eles it inerários. Mas para isso, foi necessário inst itui r um ponto O - o meridiano de Greenwich. A esses acontecimentos que instituíram o quadro de referência para as cultu ras, Eliade chamou hierofanias - co mo a et imologia indica, manifest ações do sagrado. Trata-se de acontecimentos e revelações que pelo seu carácter ext raordinário rompem a homogene idade do espaço e reorganizam o tempo, através da insti t uição de um pont o de referência - Mircea Eliade chamou-lhe oxis mundi, o eixo do mundo (cf. ibid. 373-375). A analogia geográfi ca é aqui impor ta nte, porque as for mas de mapeamen to t raduzem t ambém uma dete rminada exper iência cult ural. Nesta operação cultural certos lugares passam a ser vividos como sagrados ou santificados e, assim, separados dos outros espaços socia is, concen tra ndo neles t udo o que é essencial para o modo de habitar o mundo próprio de uma cultura - o termo «sant uário» tra nsporta esta ideia de um espaço santi f icado por uma memória e uma presença que o qualif ica de forma sui generis. Encontr amos aqui o que constitui uma das mais import ant es materialidades do sagrado na história das socieda des humanas. Em particu lar, as diversas formas de arquitetura sagrada que povoam o mundo, desde as formas mais monumen t ais às formas mais efémeras, até às conceções mais naturalistas onde o próprio universo é pensado como um templo sagrado. Com frequência , essa arquitetura projet a-se em edifícios que se prete ndem perenes, f iguras de uma eternid ade para além do tempo. Noutr os casos, os espaços e edifícios pode m ser mais precários. No essencia l, a operação de sacralização não depende da pedra, do tijolo, ou da lema e da palha. O que é det erminante passa pela perceção de que o lugar está saturado de uma presença santificante, no sent ido já apresenta do. Os santuários xint oístas são t emporários, e pensa-se que certos templos mesoa mericanos eram ciclicamente destr uídos e reconstr uídos. Mas muitos templos da anti guidade pré- clássica, ou mesmo as cate drais medie vais, que foram projetas desenvo lvidos num t empo dilat ado, com uma ambição de perenidade.

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o engenho humano, no que diz respeito à arq uite tura sagrada , conheceu it inerários diversos. Descobre-se uma particu lar relação entre a arquitetur a e o cos mos. Em diversas t radições e contextos geográficos a edif icação de espaços sagrados reproduz modelos , estr utu ras e alinhamentos do universo. Por vezes, o território sagrado est á demarcado na mais rudiment ar caban a ou num recinto cercado. Noutras tr adições, torres, espiras e stupos (relic ários budistas abobadados) erguem na direção do céu, dando um suporte mate rial às avent uras espirit uais de xarnãs, sace rdotes, gurus ou mest res espiritua is. Muitas destas edificações conjugam o te mpo e o espaço numa cenografia de mitos e rit uais em que o prese nte é simbol icam ente reatado ao tempo das origens. Este processo simbó lico de constituição de espaços sacra lizados não qualific a apenas os lugares religiosos de culto . Est a proposta inter pretat iva ajuda a explicar a import ãncia, nas cult uras, dos lugares de memória: desde os recintos de culto aos locais de peregrinação religiosa, desde monumentos como os que, na Europa, home nageiam o «soldado desconhecido» aos locais onde se celebram os acontecimentos f undadores de determinada nação. A organização sacra lizante do espaço ref lete ta mbém as est rutu ras soc iais, ou seja, as relações de comunhão e diferenciação social que descrevem uma soci edade. A própria estrutur a da soc iedade influencia as form as arquitetó nicas que exprimem o sagrado. O camp o do sagrado, nas socie dades com est rut uras mais simples, é constitu ído pela simbólica que estrutura a vida colet iva. As casas numa aldeia Borara, na Amazónia, estão dispostas segundo uma forma circular, numa disposição que explicita quer a ordem cósmica, quer a ordem socia l. No cent ra, está a casa do encontro, espaço de mediação - onde acontece m muitas t rocas e se efetiva m os ritos - e dormitório para os homens solte iros. Neste contexto, o campo do sagrado pode incluir o próprio espaço doméstico, indo para além dos lugares de culto ou dos espaços monumentais e comemo rativos. No mun do greco -romano ant igo, os antepassados esta vam sepultados em casa, e sua memória organizava um cu lto domés t ico. Em cada casa se podia encontrar um pequeno alta r onde permane cia um fogo alime ntado por carvão - esse fogo sagrado representava a linha ancestra l paterna. Estas prát icas cultuais t raduziam -se num conj unto de rit uais realizados nas proximidades do altar doméstico, sempre presididos pelo pai: ele era responsável pelo fogo sagrado, pelo sacrifíc io rit ual, pela enun ciação das orações . Enquanto sacerdote, o pai ensinava o seu f ilho, uma vez que esse culto doméstico apenas poderia ser t ransmitido de varão a varão. Hoje, no Burkina Faso, as casas da soc iedade Kassena são cons t ruídas pelos homens e dec oradas pelas mulheres, mas só se to rnam o lugar da família depo is de sant if icadas pelo sacerdote da ter ra. Em muitas casas port uguesas, em part icular no mundo rural, as casas são habita das por refer ências ao sagrado, atr avés da presença de objet os devocio nais. Essa presença pode ter um carácter permanente ou recompo r-se cic licame nte. No tempo festivo do Natal, encontramos, em algumas regiões do país, formas t radicionais de encenação de uma presença do Menino J esus no espaço doméstico. Na Madeira, com origens remotas , multíp licam-se as «Iapinhas», as «escadinhas» e o «presépio de rochinha», presépios deco rados com elementos vegetais carac terísticos da Madeira, numa organização piramidal cujo cume é o Deus Menino, fonte das bênçãos que fam ílía solicita .

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Os espaços sagrados são lugares de encont ro entre as comunidades e a divindade. A purifica ção é. com frequênc ia, a condição de ent rada nesses espaços singulares, onde, por via da comunicação rit ual e orante se vive uma determinada experiência de comunhão - de forma mais individualizada ou comunitá ria, consoante as t radições religiosas. Em alguns contextos , o sagrado organiza-se a partir da oposição puro/impu ro. Certas experiências conduzem a um estado de imp ureza e exigem- se gestos de purificação, para poder ser restabelec ida a comunicação com o divino. Os espaços sagrados tornam patente, assim, um grande cuidado relativo à entr ada. A entr ada procura sinalizar com clareza que um espaço qualitat ivamente difer ente se abre.

27 o te rmo designa, genencamente. a ecào de lavagem, total ou parcial, do corpo Em diversos co ntextos religiosos. essa lavagem tem um contexto ritual e adquire o sent ido de purif icação por meio

Aos disposi t ivos arquitetónicos que organizam a entra da no lugar sagrado, j untam -se aoluc ões" , gestos de veneração, indumentária própr ia, prescrições diversas - «desc alça-te» , «cobre a cabeça». «inclina-t e». etc . - que assinalam a necess idade de dispor a existênci a para um modo de comun icação novo. Os espaços sagrado s tornam -se lugares ond e se produzem fo rmas pró prias de expressão vocal, postu ral, cénica. etc. Por isso se descobrem, nas culturas humanas, t radições de art e sacra - música, dança, formas de leit ura, artes plásticas, etc. Esse torn ou-se um dos mais notáveis patr imónios da humanidade.

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Algo de simil ar se passa com a expe riê ncia do t em po. Para as sociedades human as, o tem po não é apenas crono métrico - a sucessão das horas , dos dias, dos anos, etc. As experiênci as do sagrado determinam um calendá rio. O tempo ordi nário das ap rendizage ns, do trabalho, da produção e do mercado é interrompido regularment e pelo acon tecimento festivo, perm itindo a atua lização da memó ria que dá sent ido ao curso da vida. Mas não só. A própria com preensão do tempo como hi st óri a co letiva faz um apelo a esses momentos fun dadores que, tal co mo, em relação ao espaço, são vividos como o começo ou a fron t eira a parti r da qual se narra a memó ria das culturas. Não é pois de est ranhar que todas civil izações con heçam os seus ca le ndá rios própri os. O mesmo se diga das diferentes t radições religiosas. Ritos, narrati vas ou genealogias estão entre os recursos que permitem reco rdar permane ntemente porque se vive o curso do tempo des ta e não de out ra forma.

o sagrado ritualizado As expressões d o sag ra do , nas culturas , enco ntram uma parti cular forma de orga nização e tra nsmissão nas prát icas rit uais. O rit ual, enquan to agir soc ial específico, prog ramado , repetit ivo e simból ico, não é uma mod alidad e de comunicação necessariamente religiosa . Mas é certo que não se con hecem fe nómenos religiosos nas cultu ras que não int egrem, de algum modo , a linguagem ritual. O termo ri t ua l, se apelarmos ao estudo que Emile Benveniste fez da sua raiz indo-europeia (dhe) significa : colocar algo de uma maneira cri ad or a, dar ex istênc ia, e não simplesmente deixar um objeto no solo. Mas a palavra «ri t o» t ransporta também , das suas origens mais remotas, a ideia de um conj unto de gestos e pa lav ras que se recebem para serem repet idas. No seu subs trato lati no, ritus evoca a ideia de or de m, expe r iência do acordo que é necess ário para realizar algo em conj unto que ultrapassa os int eresses do ind ivíduo . Assim, se seguirmos a «arqueologia» das palavras percebemos que esta mos perante uma ação humana com plexa, que exige ser olhada a partir de diversas perspet ivas: é rep eti ção qu e ali me nta um a memóri a, apo nta para significados que estão para além da materialidade dos gestos e objetos envolvidos , e tem uma determinada função social, part icularmente visível nas suas dim ensões co munit árias. Por isso o rito é, ao mesmo tem po, repet ição e cria ção, ou seja, cultu ra. Podemos ensaiar uma com preensão a part ir de ci nco perspeti vas.

a) O rito é ação. Não pode ser reduzido ao plano das intençõe s ou outras construções mentais. O fi lósofo Pau l Ricoeur sublinhou que o ritual é uma «modalidade do fazer». Esta forma de comunicação deve ser vista como ação trans itiva que compromete o corpo, o espaço, o movimento, o gesto, objetos e materiais diversos. Os próprios atas de fala, em contexto ritual, têm carateríst icas especificas, não se confundem com outras situações de interlocução no quotid iano das sociedades. As palavras que preenchem as convenções de civilidade nas sociedades (saudações, cumprimento s e outras cortesias) reproduzem também esse carácter de repetição. São, também, fórmulas recebidas e que permitem a comunicação organizada. Mas esse «dizer» não tem uma relação tão vinculada com um «fazer».

As fórmulas de corte sia podem f icar-se pela convenção comunicat iva. Na comunicação ritual, os praticantes dos ritos dizem as palavras esperando que elas atuem, de facto, sobre a realidade. Os estudos da linguagem apelidam este discurso de performativo - transforma-se em ac ão o que se enuncia discursivamente.

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-------- - - - - - - - - - - - - , b) o ritual reli gioso coloca em cena diversos pratican tes, normalmente com lugares e fo rmas de participação comp lementares - mais ou menos hierarqu izados, consoante as características do campo religioso. O rito religioso vive num habitat co munitário. Mesmo quando certas práticas se apresent am como gestos individuais, inserem o crente numa comunhão com outros e inscrevem-no numa linhagem crente que inclui a família de todos os que o precede ram. Mesmo se há muitos contactos entre o rito e espetácu lo, o rito religioso não pode reduzir-se a uma cenografia, a um pôr em cena. É certo que muitas das criações atuais no domínio das artes performat ivas procuram ultrapa ssar a fronteira que separa cena e espectador. No entanto, podemos continuar a afirmar que encontramos aí uma diferença signif icativa. Na sua textura própria, o rito religioso não permite que os praticantes se tornem espectadores, exige que eles se impliquem numa comunidade crente. A fragilidad e que os ritos religiosos conh eceram nas sociedades pós-industriais modernas decorre da erosão das formas de vinculação comunitár ia.

c)A ati vi dade ritual religiosa disting ue-se de outras formas de ação que descrevem o nosso quotidiano. Ela não tem uma f inalidade produtiva nem é uma forma de lazer. Tendo uma dimensão píástica, coreográfica, cénica, não equivale, como vimos, ao espetáculo - dissolve a linha que separa cena e espectador. Tendo regras que os seus praticantes respeitam, não é apenas um jogo - os seus efeitos vão para além da duração do jogo . Num jogo como o Monopoly, os intervenientes podem vestir a pele de negociantes e banqueiros durante o período do jogo, respeitando as regras jogo - o jogo só é possível nesse respeito. Mas quando o jogo termina , nada do que ali aconteceu tem um forte impacto na continuidade da vida dos participantes . O ritua l acompanha a trajetória de vida das pessoas e o longo curso da vida das gerações, preenchendo com um determinado significado muitas das decisivas experiências humanas: o nascimento , a entrada na vida adulta, a constituição de novas famílias, a comemoração de acontecimentos colet ivos, a morte, a memór ia dos que partiram, etc.

Ilust raçã o 4 0. Ritos (ocidentalizados) de casa mento , na Malé sia (Naqib Albar, Nationa l Geograph ic).

d) O ritual pode ser visto como um «programa». As margens de improvisação podem variar. Os gestos e as palavras rituais estão para além da fantasia individual. Nas diversas sociedades humanas, os indivíduos não criaram espontaneamente rituais religiosos , pratica ram programas rituais recebidos no quadro de uma trad ição de longo curso . Parte da eficácia simbó lica dos rituais depende do facto de estare m inseridos numa corrente de transmissão que permite ao crente sentir-se gerado, ou seja, filiado em algo que o precede e que est ará para além do curso da sua própria vida. Em muitas t radições religiosas, a t ransmissão e eficácia deste «saber-fazer» exige a consti tuição de um serviço de caráter sacerdotal - ent re out ras f unções, podem ser vistos como «especia listas» do rito, sendo

reconhecidos pela comunidade como aqueles a quem cabe administrar esse patrim ónio tão decisivo para a vida coletiva. A universalidade e persistência dos rituais fú nebres devem ter que ver com esta qualidade própria da acão ritual. A morte, num contexto de separação irreversível, coloca os

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, - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - - - - - - - grupos humanos perante a experiência difícil do confronto com a mais radical fronteira da existência. Num contexto tão crítico, o programa rit ual que, nas diversas culturas, acompanha esta experiência, oferece gestos, palavras e suportes com unitá rios a esta experiência que pode ser tão dilacerante. Nas socieda des tra dicionais, a morte é, por isso, um contexto de forte rit ualização. Nas socie dades mode rnas, por falta deste contexto comunitá rio e simbólico, a morte é vivida com particulares dificuld ades. Essa dimensão da experiência humana, desprovida de significado individual e colet ivo, acaba por exigir, com frequência, a necessidade do apoio clínico. e) A maior parte dos rituais tem um carác ter cíclico ou repetitivo, acompa nham o curso da vida, assinalando as passagens, protegendo das ameaças, apoiando comunitariamente as experiências de sofri mento, etc. Grande parte dos grandes acontec imentos rit uais - ou grandes festas religiosas - integra em si uma diversidade grande de sequências ritu ais. A peregrinação dos muçulmanos a Meca é um grande acontecime nto rit ual, mas ele integra diversos ritos (como a oferenda de animais, lavagens rituais, prostrações, caminhadas de carác ter penitencial, etc .). Pode dizer-se algo de parecido da Missa que as comunidad es católicas celebram. Aí encont ramos gestos e palavras de súplica, louvor e perdão, o canto comunitário, a proclamação e escuta das Escrituras, a pregação, a renovação de uma memór ia f undadora - «fazei isto em memó ria de Mim». Essa memór ia pode encont rar momentos privilegiados de atualização, em ciclos ritu ais mais desenvolvidos, como é o caso da Semana Santa para muitas Igrejas cristãs . Se recuarmos até à Antigu idade, na Babilónia do II milénio antes da nossa era, uma das mais importantes festas do seu calendário - a fes ta do Ano Novo (Akftu) - era um verdadeiro puzzle rit ual. Durante vários dias, as populações viviam sequências rit uais muito diversif icadas. O carácter cíclico dos ritos te m uma particular relação com a experiência do tem po nas cult uras. Esse carácter acent ua-se particularmente nas cult uras agrárias, correspondendo aos próprios ciclos naturais, ou em cultu ras em que o tempo é representa do como um eterno retorno. Na interp reta ção do historiador e ant ropólogo Mircea Eliade, o rito transporta para o presente da com unidade, o tempo das origens - por isso, este autor vê o rito como o mit o em a ção, to necessário, no entanto, não esquecer que há outras ações rit uais com uma relação diferente como o tem po. Certos rituais de iniciação ou de passagem são marcadores únicos na vida dos indivíduos. Eles têm um carácter repeti tivo na medida em que recorr em a um c ânone de gesto s e palavras permanentemente at ualizado, mas podem esta r presentes na vida de alguém apenas num momento, assinalando uma pertença ou uma passagem de forma única. Pensemos, por exemplo, nos ritos do Batismo cristão. Estamos perante um rit ual não periód ico, que tem um lugar único na vida dos crentes. Esta experiência conduz, por isso a alguns probiemas, no itin erário histó rico de divisão das Igrejas. A necessidade de rebatizar ou não cristãos que haviam sido batizados em Igrejas de out ras denominações , tem sido um lugar de debate ecuménico.

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1.6. Existe um sagrado cristão? A singularidade da fé cristã Na hora de tenta r explicitar a si ngularidade da fé cr istã não são poucas as dif iculdades que se levantam. De que ponto de vista part ir? Que perspet iva assumir? Tentar respon der só a partir da fé? Ou colocar de lado este cam inho, por não o achar o sufic ienteme nte objetivo e co nsiste nte? As possibi lidades são muitas e aqui não podem , de modo nenhum, ser percorridas na sua tota lidade. A tent at iva vai ser, pois, basta nte mais humi lde, procurando apresenta r alguns t raços essenciais, até chegar àque le que nos pareça ser o mais singular e dist intivo da fé cr istã . Nest e itinerário deixamo-nos conduz ir pela ref lexão de alegaria González de Cardedal" . O cristianismo é, sem dúvida um acontecimento histórico, bem sit uado dentro da evolução geral da humanidade, surg indo como uma das suas exp ressões espirituais mais significativas e sendo expressão da fé daqueles que reconhe cem Jesus de Nazaré, como Filho de Deus e salvador. Estes conf iguraram a sua existê ncia pessoal e a realidade social daí resulta nte a part ir do encontro com ele, e à luz da sua me nsagem for am gerando uma cultu ra, formas de pensar e de agir que acabaram por se tornar marcant es para a hist ória da humanidade, em geral, e, de uma maneira muito particu lar, para a história do Ocidente . O cr istianismo pode ser lido a partir de perspetiv as diversas: • Um conjunto de factos or ig inantes, dos quais se destacam as ações pessoais daquele que lhe dá o nome e daqueles que com ele conv iveram (cristianismo histórico originonte); • Um conj unto de experiências determinantes de um novo sentido, a part ir das quais se conf igura a existência por referênc ia a Deus, conhec ido nas palavras, nas açõe s, na morte e ressurre ição de Jesus Cristo (cristia nismo teológico) ; • Um conjunto de formu lações teóricas , por meio das quais a com unidade dos crentes foi t radu zindo e articulando a sua experiência de relação com Jesus Cristo, ente ndida como experiênc ia de salvação, e fo i legitimando o seu anúncio como boa-nova , como palavra de verdade, fec unda para a int eligência humana e vinculant e para a vontad e (cristian ismo teórico -dogmático ); • Um conjunto de realizações históricas que geraram e marca ram a cult ura, atr avés das mais variadas expressões de arte e da express ão simbólica da vida humana (crist ianismo cultural); • Um co njunto de instituições e estruturas dentr o das quais os cre ntes organizaram a sua maneira de viver co munitariamente a fé e por meio das quais quiseram intervir e colabor ar na organização da sociedade (cristi anism o sociológico); • Um conjunto de esperanças e de expectativas pa ra o futuro, co m as quais os crentes se constituem em fer mento de compreensã o crítica e de transformação do presente, ordenando- o em direção ao reino de liber dade e reconciliação que Jes us prometeu (cristianismo utó pico -escatológico); • Um conjunto de pessoas que acreditam, espera m, e amam a Deus, ident if icando-se a si mesmas no meio do mundo e da história como segu idores de Jesus, que celebram a sua memória pela reco rdação da sua palavra, dos seus gestos e da sua vida, com prometendo-se com o seu projeto (cristian ismo eclesial).

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cristianismo descreve- se nesta pluralidade de perspet ivas, e nelas se revelam aspetos da sua singularidade, pelo que se torna necessário o discernimento que nos ajude a descob rir o que é verdadeiramente nuclear. Ao falar no diálogo ecuménico, o Concílio Vat icano II afirmou que existe uma ordem ou hierarquia nas verdades da doutrina católica já que o nexo dessas verdades com o fundamento da fé é diverso (Decreto Unitotis redíntegratio no 11). Também a este nível resulta necessário ter em conta esta hierarquia, pois se bem que o cristianismo é tudo o que ant eriormente foi referido, não está tudo ao mesmo nível, nem t udo const itui a sua singularidade da mesma maneira. A descob erta deste núcleo original e constitu inte do cr istianis mo não deve, contu do, levar-se a cabo através de uma ref lexão que silencie todo s os outros aspetos, mas sim destacando aqueles que são verdadeiramente os essenciais. Por outro lado, essa tarefa não pode ser só feita a parti r de fora, sendo igualmente necessário fazê-Ia a part ir do seu inte rior, ou seja, a partir da própria experiência cristã. A ta refa não é de tod o fácil, mas quando realizada ajuda a descobrir que o cr ist ianismo con sist e acima de tudo numa relação pessoal co m Jesus Cristo , que possibilita uma nova experiênci a da existência, no marco de uma com unidade de crentes, na medida em que aju da a configurar toda a vida a partir do encontro com ele e do seu seguimento.

Texto 16 No início do ser cristão, não há uma decisão éti ca ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma , o rumo dec isivo. Bento XVI, Carta Encíclica Deus ca ritas est , 1

o cristianismo e o sagrado social Quando nos esforçamos por comp reender o cr istianismo, no que ele tem de mais singular, descobrimos que a mensagem cristã resiste a alguns aspetos estrutu rantes da experiência do sagrado. Não sendo totalmente estranh o a essa experiência, há algo no cris tianismo que resiste à sua pura ident ificaçã o com o fenómeno do sagrado nas cult uras. Encont ramos na obra de René Girard", intelect ual francês radicado nos EUA, uma das mais importantes tentativas de explicação dessa singularidade cristã .

30 Bo de exrxotonc: René enaro to ma a expr essão bode expiat ório do Livro do Lev ítico (16,5-10), não como designação de um rit o em particula r, co mo o que ai se descreve, m as no sentido comu m de vítim a Que carrega em SI a cu lpa de outros .

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Nos finais dos anos 60, René Girard com eçou a estud ar os enredos míticos que narram a fundação de cidades ou de trib os. Entre elas, deu uma particular atenção à tragédia grega. Quando, em 1972, René Girard publicou A violência e o sagrado, estava a abrir as portas para o maior debate acerca do sagrado no contexto das Ciências Humanas. Interessaram- lhe todas as narrativas que descreviam um grupo humano num esta do de grave cr ise colet iva ameaçando a sua própria sobrevivência. Em boa parte dessas narrativ as, algo de muito mau está a acontecer, conduzindo à violência de tod os con tra todos. É necessário encont rar um culpado para que essa violência seja canalizada para um bode expiat ório :" e a comunidade volte a viver em paz. Essa crise pode apresentar-se co mo um estado em os memb ros do grupo se convertem em rivais, pode aparecer sobre a forma de uma derrocada social provocada por uma qualquer catástrofe, ou até sob a forma de uma doença epidémica - tan tas vezes interpretada como um casti go dos deuses. A via mais fác il para a comp reensão da hipóte se girardiana passa pelo conf ronto com estas narrat ivas. O texto que se apresent a é um excerto de uma obra de autor lati no, Flávio Filóstrato (ou Filostra tol " , que se apresenta como uma biograf ia de Apolónio de Tiana (cf, Texto 17)32.


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Texto 17

"Hoj e mesmo vou acabar a epidemia que vos opri me". Com estas palavras, ele [Apolónio de Tiana] conduziu todo o povo ao teatro onde uma imagem do Deus protetor estava levant ada. Ele viu lá uma espécie de mendigo que fechava os olhos como se fosse cego e t ransportava uma bolsa com uma côdea de pão. O homem, vestido de trapos, tinha algo de repelente. Os Efésios dispu seram-s e circularmente à sua volt a e Apol ónio disse-lhe s: "Junt ai quantas pedras puderdes ' e lançai-as contra este inimigo de Deus." Os Efésios perguntavam-se onde queria ele chegar. Escanda lizavam-se com a ideia de mata r um desconh ecido manif est amente miserável que lhes pedia e suplicava piedade. Voltando à carga, Apolónio incit ava os Efésios a lançarem-se sobre ele para impedir que ele se afastasse. Assim que alguns lhe seguiram o conselho, lançando pedras ao mendigo, ele, cujos olhos fechados faziam pensar que fosse cego, logo lançou um olhar penetrante, mostrando os olhos cheios de fogo. Os Efésios reconheceram então que se tinham preocupado com um demón io e lapidaram-no com tan ta vontade que as suas pedras formaram um grande túmu lo em torno do seu corpo. Depois de breves momentos, Apolónio convidou-os a retirar as pedras para reconhecerem o animal selvagem sobre o qual as tinham lançado , e constataram que não era o mend igo. No seu lugar, estava um animal que parecia um canzarrão, tão grande quanto o maior leão. Ele estava ali sob os seus olhos, reduzido pelas suas pedras ao estado de pasta e vomitado como aquela baba dos cães enraivecidos. Por esta razão, levantou-se uma estátua do Deus protetor, Hêrakles, no próp rio lugar onde o espírito mau t inha sido expulso. FlaviusPhitostratus - The !.ire ot Apollonius af Tyano: TheEpistles ot Apolfoniusond the Treatise by Eusebius. Cambridge , Harvard Univeraity Press.

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o que desc obr iu René Girard em t extos com o est e? O métod o deste auto r consiste na análise dos estereóti pos que organizam a narrativa:

• O grupo vive situação de crise aguda, neste caso sob a fo rma de uma epidemia (um do s perigos mais ameaçadores para as sociedades antigas e mesmo medievais). • O grupo procura solução para este mal que pode levar à ext inção. • A pro pos ta de solução passa pela designação unãnime de uma vítima, t ida por ser a origem da crise que se vive. • Essa vít ima, para não poder devolver a violência recebida, tem sempre um estatuto de singularidade ou mar ginalidade • Para não ser «um de nós», a vítima passa por um processo de desfiguração - a sua representação como não humano é a desfiguração mais acabada. • Por contágio, a violênc ia multip lica-se estendendo -se a toda a multidão reunida. • Esta violência é sacra lizada, ou seja, vista como necessária para que a comu nidade não pereça e transferida para esfera divina - em últ ima análise, os deuses legitimam esta violê ncia como um castigo pur ificador.

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r---- - - - - - ------ - - - - - -- - - - - - - - - ---A interpretação girardiana ajuda a compreender esta função do sagrado como legitimação de uma certa ordem social à custa da exclusão ou da expulsão . Muitos mitos são, nesta perspetiva, processos do «bode expiatório» contados a partir da perspetiva do perseguidor. No entanto, quando ele começou a ler as narrativas bíblicas, observou que ai Deus não estava necessariamente do lado da comunidade que persegue e exclui para salvaguardar a sua própria identidade. Nas literaturas bíblicas, René Gi rard encontra o que apelidou de «est reia antropológica »: o Deus das vítimas. Na querela ent re Caim e Abel, no livro do Génesis (cap. 4), a história não é narrada a partir do ponto de vista de um Deus que aprova aquela violência como necessária. O Deus bíblico pergunta ao homicida: «Onde está o teu irmão Abel?». E, depois: «Escuta o sangue do teu irmão gritar, do chão, 3J MIt o do fundoçào de Romo : entre outra s ton para mim» (Gen 4,9). Esta perspetiva pressupõe a responsabilizates. poder-se-a encontra r uma versão completa da ção de Caim pelo destino do seu irmão. O que é, portanto, singulenda de Róm ulo e Remo no ln Ramulum de Plut arco . lar é que Deus se coloque do lado da vít ima amaldiçoando o fratricida. Precisament e o contrário do que acontece no mit o de fundação de Roma, em que Rómu lo mat a Re mo e recebe dos deuses a confirm ação de que será o fundador de uma nação fort e" . Para Girard, esta revelação de um Deus das vítimas encontra nos Evangelhos cristã os a plena confirmação . Tal result a mais claro se, por exemplo compararmos o texto anteriormente analisado com este, do Evangelho de João, fragmento conhecido como o episódio «Jesus e a mulher adúltera» - Jo 8,1-1 1 (cf. Texto 18). Texto 18

Jesus foi para o Monte das Oliveiras. Antes do nascer do sol, já se achava outra vez no Templo. Todo o povo vinha até ele e, sentando-se, ensinava. Os escribas e os fariseus trazem, então uma mulher surpreendida em adultério e, colocando-a no meio, dizem-lhe: "Mestre esta mulher foi surpreendida em f lagrante delito de adultério. Na Lei, Moisés ordena -nos que apedrejemos tais mu lheres. Tu, pois que dizes?" Eles assim diziam para o pôr à prova, a fim de terem matéria para acusá-lo. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia na terra com o dedo. Como persistissem em interrogá-lo, ergeu-se e disse-lhes: "Quem de entre v ós estiver sem pecado, seja o primei ro a atirar-lhe uma pedra !" Inclinando-se de novo, escrevia na terra. Eles, porém, ouvindo isso, saíram ' um após outro, a começar pelos mais velhos. Ele ficou sozinlio e a mulher permanecia lá, rio meio. Então, erguendo -se, Jesus disse-lhe: "Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?" Disse ela: "Ninguém, Senhor". Disse, então, Jesus: "Nem eu te condeno. Vai, e de agora em diante não peques mais".

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Nesta narrativa, tudo está montado para que reproduza a lógica da restauração da ordem social por via da exclusão e da violência. O desafio da primeira pedra lançado a quem não estivesse em pecado é, precisamente, o que permite que aquela mulher não seja empurrada para zona desprotegida da marginalidade, lugar social onde facilmente se desencadearia o apedreja-

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- - - - - - - - . _ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ..., mento . A este processo, Jesus de Nazaré responde com a não condenação. que aqui tem uma palavra própria: o perdão. O perdão é. neste contexto . o único gesto capaz de pôr term o ao co nflit o sem o eterno retorno da violênc ia. Nas suas últi mas ob ras René Girard procurou mostra r que este é um dos mais importantes contributo s da exper iência bíblica e cri stã para a nossa cult ura: o cuidado das vítimas . Hoje, j á não pode mos respo nsabilizar pela violência social os monst ros ferozes, as forças natura is, os demónios ou os próp rios deuses. O que desaprovamos nas igrejas, nos tr ibunais. nas universidades, nos parla mentos, e nos meios de com unicação social é a nossa própria violência reconhecid a com o tal, e não essa violência disfarçada de inumana e sacralizada. ~ evidente que as instituições cr istãs, obce cadas tantas vezes pela necess idade de preservação, também geraram vítimas. Mas tal não deve ocu ltar esse traba lho lento em que a mensagem cristã permiti u o desenvolvimento da consciência de uma história a part ir da vítima perseguida e não dos perseguidores. O século XX. na Europa, foi um temp o de grandes con f litos e de genocídios. Mas apesar de tud o, é importante observar que esta história seja narrada na perspetiva de quem foi vít ima e não de quem perseguiu. Podemos, a este propós ito, referir a importânci a cult ural de textos como o Diário de Ann Frank (cf. Texto 19).

Texto 19

Sexta-feira, 9 de outubro de 1942 Querida Kitty, Hoje tenho apenas notícias tristes e deprimentes para contar. Os nossos muitos amigos e conhecidos judeus estão a ser levados em massa. A Gestapo está a trata-los muito duramente e a t ransportá-los em carruagens de gado para Westerbork, o grande campo em Drenthe para onde estão a mandar todos os judeus. Miep falou-nos de uma pessoa que conseguiu fugir de lá. Deve ser terrível, Westerbork. Não dão quase nada para Ilust ração 46: Holanda, 1980: um selo Im presso na Holanda most ra Anne Frank , vtnma do Holo causto, no 35° a mve rs a no da libe rtação da comer às pessoas, muito menos para beber, ocupação alemã nazt pois a água está disponível apenas uma hora por dia, e só há uma sanita e uma bacia para vários milhares de pessoas. Os homens e as mulheres dormem nos mesmos quartos, e muitas vezes rapam as cabeças às mulheres e às crianças. A fuga é quase impossível; muitas pessoas têm aspeto de judias e são identificadas pelas cabeças rapadas. Se as coisas estão tão más na Holanda, como será nesses locais distantes e incivilizados para onde os alemães os estão a mandar? Partimos do princípio de que a maioria está a ser assassinada. A rádio inglesa diz que estão a ser gaseados. Ta lvez seja a forma mais rápida de morrer. Sinto-me terrivelmente. Os relatos de Miep destes horrores são tão dilacerantes, e Miep também está muito perturbada. No outro dia, por exemplo, a Gestapo depositou uma mulher judia idosa e aleijada à porta de Miep, enquanto foram à procura de um carro . A velhota estava aterrorizada, com medo dos holofotes e das armas que disparavam contra os aviões ingleses. Contudo Miep não se atreveu a deixá-Ia entrar. Ninguém se atreveria . Os alemães são bastante generosos quando se t rata de distribuir castigos. Bep também está muito abatida. O namorado vai ser enviado para a Alemanha. De cada vez que passam aviões, ela teme que estes larguem toda a sua carga de bombas sobre a cabeça de Bertus. Piadas como "Oh, não te preocupes, não podem cair todas em cima dele» ou "Uma bomba é mais do que suficiente», não me parecem nada apropriadas nesta situação. Bertus não é o único que é obrigado a ir trabalhar para a Alemanha. Há comboios de jovens a partir diariamente. Alguns tentam esgueirar-se para fora do comboio quando este para em estações pequenas, mas são poucos os que conseguem escapar sem serem notados e encontrar um lugar para se esconderem.

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Mas não terminam aqui as minhas lamentações. Já alguma vez ouviste o termo «reféns»? Esse é o último castigo para os sabotadores. É a coisa mais terrível que podes imaginar. Cidadãos importantes - pessoas inocentes - são feitos pris ioneiros e ficam a aguardar a sua execução. Se a Gestapo não conseguir encontrar o sabotador, simplesmente pegam em cinco reféns e alinham-nos contra a parede. Lemos os anúncios das suas mortes nos jornais, onde se referem a eles como «acidentes fatais». Belos espécimes da humanidade, estes alemães, e pensar que também sou um deles! Não, isso não é verdade, Hitler tirou-nos a nacionalidade há muito tempo. E, além disso, não há maiores inimigos à face da Terra do que aquela espécie de alemães e os judeus. Tua, Anne o diór;o de Anne Fran k. Carnaxide: Editora Livro s do Brasil, 20 12. 78-79,

1.7. Aspet os nucleares da experiência cristã Deus que se comunica: conhecimento e ação Sem dúvida que um dos aspetos nucleares da experiência cristã resida na afirmação e na experiência que os cristãos fazem da revelação de Deus. Esta nota, distintiva não só do cr ist ianismo - ainda que nele se revist a de contornos particu lares e peculiares que o const ituem como uma experiência crente diferente das outras - é de extre ma importância, pois ajuda-nos a perceber como o fundamento do cristianismo reside numa iniciat iva do próprio Deus , se bem que reclame, como veremos mais adiante, a própr ia colaboraçâ o humana dos crentes . Porque no núcleo da sua experiência os cristão s encontram a presença de um Deus que se comun ica, pode m af irmar que a sua experiênc ia crente é resposta a uma interpelação que conduz a um modo de ler a presença e o agir de Deus na história das pessoas e do mundo. Est a af irmação primeira, a partir da qual se quer sublinhar o específico cristão levant a, no enta nto, alguns problemas, dos quais se desta cam aqui dois. O primeiro reside na própria poss ibilidade de Deus falar ao ser humano: Pode mesmo Deus fala r ao ser humano? E se pode, onde e quando o fez(faz)? E sob que formas? O segundo. de nat ureza um pouco diferente, acaba por nos dirigir mais ao problema da exclusividade em relação à revelação de Deus: Não dizem out ras t radições religiosas t erem na sua origem uma revelação de Deus? Onde poderá, então, estar a singularidade cr istâ a este nível? Quanto às primeiras questões formuladas sabemos como a respost a não é fácil. Como é poss ível ao ser humano entender o que Deus lhe possa dizer, a não ser no contexto da sua int eligência e razão? E se ísso só é possível no contexto da sua inteligência e razão não será que aquilo que afirma ser a revelação não é mais do que uma projeção das suas ref lexões, das suas vontades e desejos? Não tenhamos medo de afirmar que para esta questão, como aliás para todas as grandes questõ es, não há respost as def init ivas, no sent ido de objetiva e claramente convencerem todos os ouvintes. A resposta que o cristianismo dá t ambém não pretende esgot ar-se numa argumentaçã o racional. Ela parte da própria fé e, por isso, no sentido cristão, resulta ta mbém da procura de razoabilidade e de inteligência. O cri stão reco nhece a revelação de Deus porque, nesse acontecimento, é capaz de desc obrir esse Outro que se lhe revela . Trata-se. pois. da experiência de uma realidade que o transcende, que vai para além dele mesmo, que é ent endída como uma realidade que lhe é oferecida, ou seja, como um dom que recebe e não como uma conq uista feíta. Por si só e com as suas forças, não lhe seria possível chegar a esta realidade . Mas também sem as suas forç as e sem a sua vont ade a revelação não teria lugar

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de acolhimento. E isto porque a revelação não acont ece «apesar» do ser humano . ~ -I he dirigida, requer a sua resposta . Se esta não acont ecer a revelação acaba por não se concretizar para si. A revelação de Deus não se impõe, mas é antes um desafio à liberdade, que impele o ser humano a ir para além de si mesmo, abrindo- se a um Outro que não é ele, mas no qual se pode descobrir mais profundamente a si mesmo. Sublinhe-se t ambém que a revelação não pode ser entend ida simp lesmente como a revelação de um Mist ério que estava ocu lto e é, agora, desvelado; nem sequer pode ser reduzida à comun icação de um conjunto de verdades e normas que são t ransmit idos a alguns, dando-lhes a possibilidade de viverem de maneira diferente . Quando o cristianismo fala na revelação de Deus, em últim a análise, está a referir- se à própria comunicação de Deus , que se ent rega a si mesmo gratuita mente, como dom, abrindo-s e, a partir desse acontecimen to, novas possibilidades de conhecimento e de aca o. Mais do que revelar e tra nsmiti r coisas, Deus dá-se, propo ndo- se como companheiro de diálogo e caminho na construção da histór ia humana.

Texto 20 Aprouve a Deus na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e torna r conhecido o mistério da sua vontade, por meio do qual os homens, através de Cristo Verbo Incarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e n'Ele se tornam participantes da natureza divina. Por consequência, em virtude desta revelação, Deus invisível, na abundância do seu amor, fala aos homens como amigos e dialoga com eles, para os convidar à comunhão com Ele e nela os receber. Concílio Vaticano II, Dei Verbum, 2.

Texto 21 Ao falarmos de «autocomunlcac ão» de Deus, que não se entenda essa palavra no sentido de que Deus, em uma revelação, falasse algo sobre si mesmo. O termo «autocomunicac ão» visa prop riamente a significar que Deus se torna ele mesmo em sua realidade mais própria como que um constitutivo interno do homem. Trata-se, pois , de «autocornunlcac ão» ontológica de Deus. Mas que não se entenda o termo ontológica em sentido apenas objetivante, como se se tratasse de algo concebido inteiramente à maneira de coisa ou objeto. Este seria o outro possíve l equívoco. Uma «autocomunicac ão» de Deus, como mistério pessoal e absoluto, ao homem, enquanto ser de transcendência, implica inicialmente uma com unicação a ele enquanto ser espiritual e pessoa l. Queremos , portanto, evitar de imediato dois equívocos: primeiramente, que se entenda a «autocomunicac ão» de Deus como se mero falar «sobre» Deus, ainda que ta lvez suscit ado por Deus; e, em segundo lugar, que se entenda a mesma como se mera coisa ou objeto. Karl Rahner - Curso fund am ental da fé. S, Pa ulo: Ediçõe s Paufinas, 19 89. 145 -146.

Jesus como «palavra» de Deus Ao queremos desta car aquilo que é distint ivo da revelação cristã imediatamente devemos dirigir o nosso olhar e a nossa ref lexão para Jesus Cristo. ~ nele que se cumprem as Escrituras , como desde o início as primeiras comunidades cr ist ãs afir maram. Na vontade de t ransmitir o seu projeto para a humanidade e de se dar a si mesmo, Deus foi realizando esse cam inho, digamo- lo assim, de um modo pedagógico, ou seja, foi, ao longo dos t empos e segundo as poss ibilidades desses mesmos t empos, fazendo-se entender e encontrar. Nem tudo aconteceu de uma vez, nem tudo acontece u da mesma maneira. ~ também verdade que existiram pessoas mais sensíveis a esta presença e a este diálogo, e outras que não viram e não comp reenderam , nem se deixaram interpe lar. De todo este it inerário nos dá co nta a Tradição e a Sagrada Escritura , que são as fontes da revelação. A Sagrada Escritura dá-nos conta desta história de com panhia e de diálogo de Deus com a humanid ade. Nela se narram os acontecimentos fundadores da ident idade do povo de Israel e os grandes momentos da sua história. Povo com o qual Deus estab eleceu uma aliança especial e a parti r do qual quis ir fazendo acontece r o seu projeto no meio da história humana. Nela

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r -------------------- - - - - --- - - - - - - é também narrada a experiência das primeiras comunidades cristãs , at ravés da qual Deus como que intensif ica e universaliza a sua proposta de salvação . Na Sagrada Escritura, reconhecem os cristãos, este diálogo de Deus com o ser humano , por isso a proclamam como sendo palavra do próprio Deus. Do conjunto dos livros que a constituem, dest acam-se certamente aqueles que se referem à vida de Jesus e à experiência do movimento de Jesus . Nesses textos, a boa-nova (a boa notícia) revela-se de uma maneira muito significa t iva. E isso é assim porque neles os evangelistas querem dar conta das palavras e das ações do própr io Jesus, que os cristãos reconhecem e proc lamam como sendo o Filho de Deus , como sendo aquele no qual Deus se diz e se ent rega totalmente. Na verdade, a boa notícia de Deus que Jesus anunc iava, acaba, depois da sua morte e ressurreição, por ser enten dida pelos cristãos como sendo o próprio Jesus Cristo. Nele reconhecem co mo o projeto de Deus se conc retiza plenamente. Nele reconhecem o dizer defi nit ivo e tot al de tudo o que Deus queria dizer. Por isso ele é a «palavra de Deus». Ele, que anunciava a boa-nova, torna-se entã o a Boa-Nova anunciada.

Texto 22

Depois de ter falado muitas vezes e de muitos modos aos nossos pais pelos profetas, Deus falou-nos por meio do seu Filho (Hb 1,1-2). Com efeito, enviou o seu Filho, isto é, o Verbo eterno, que ilumina todos os homens, para viver no meio deles e manifestar-lhes a vida ínt ima de Deus. Jesus Cristo, Verbo Incarnado, enviado «como homem aos homens», transmite as palavras de Deus (Jo 3,34) e consuma a obra da salvação que o Pai lhe confiou. Concílio Vaticano II. Dei Verbum, 4 .

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Texto 23

«A palavra do Senhor permanece eternamente. E esta é a palavra do Evangelho que vos fo i anunciada » (1Ped 1,25; cf. Is 40,8). Com esta citação da Primeira Carta de São Pedro , que retoma as palavras do profeta Isaías, vemo-nos colocados diante do mistério de Deus que se comunica a si mesmo por meio do dom da sua Palavra. Esta Palavra, que permanece eternamente, entrou no tempo. Deus pronunc iou a sua Palavra eterna de modo humano; o seu Verbo «fez-se carne» (Jo 1,14). Esta é a boa nova. Bento XVI, Exortação Apostólica Verbum Domini, 1.

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A consciência criatural e os dinamismos da incarnação A leit ura do mundo e da pessoa enq uanto «criação» de Deus con sti tu i, igualmente, um dos elemento s nucleares da experiênc ia crist ã. São muito con hecidas as narraçõ es da criação que aparecem nas prime iras páginas da Bíblia, mas nem sempre as t emos sabido int erpretar da melhor maneira. Elas não pretendem uma descr ição da maneira como Deus ter ia criado o mundo, e o ser humano nele. O que esses textos fazem é uma leitu ra teológica da história, at ravés da qual se pretende parti lhar uma ref lexão sobre o sentido e a finalidade da vida. A sua interpretação não pode pois, conco rrer com uma explicação científ ica, uma vez que não é esse o seu registo. Se quisermos ente nder bem o que nos dizem, a sua leit ura não pod e, pois, deixar de ser feit a a part ir de um horizonte simból ico. Assim to rna-se possível ent ender melhor que a afirm ação da «criação a part ir do nada» não pode ser lida no registo do conhecimento físico-natura l, mas sim a partir de uma perspetiva t eol ógi ca e, aí, podemos perceber como ela nos aponta para a grat uidade e universa lidade da criação. Deus não precisava de ter criado, nada o obrigava a isso, uma vez que o seu ser não depende da existência de outros seres . Não sendo, po is, a criação uma necessidade que Deus te m, ela só pode ser entendida como dom. Mas não exist indo a necessidade da criação, qual é então o mot ivo pelo qual Deus cr ia? Segund o a fé cristã, Deus cr ia para fazer com que toda a criação, de que o ser humano é o vért ice, possa partic ipar no seu projeto de comunhão. O que a fé cristã diz é que Deus, que é comu nhão t rinitá ria e plenitude de vida, cria para fazer participar nessa mesma com unhão e plenitude de vida. Ente nder desta maneira a criação, possibilita -nos também perceber melhor que a criação não pod e apenas ser reduzida a um pr imeiro momen to , no princípio dos tempos, onde Deus te rá cr iado tu do, ou pelo menos terá criado todas as dinâmicas a partir das quais tu do se viria a desenvo lver. Pelo cont rário , a criação é um gesto e uma dinâmica co ntínua de Deus ao longo de to da a hist ória. Deus não só crio u, co mo continuamente cria e sustenta a cr iação. Tamb ém a part ir daqui é poss ível comp reender que a relação que se estabelece ent re as criaturas e o criador não é uma relação de mera dependência, mas sim de cuidado e de atenção. No que diz respeito ao ser humano, as consequências são aind a maiores, pois de todos os seres criados este é eleito como parceiro de diálogo, como corresponsá vel pela criação, por isso proclama a fé crist ã que ele é criado à imagem e seme lhança do criador. A condição criatura I do ser humano indi ca que ele não é nem o princ ípio, nem a origem de si mesmo, e que, por isso mesmo, não pode f icar fechado sob re si próprio, mas que a sua existência tem de ser assumida numa const ant e din âmica de dar e receber, de dar-se e receber-se. A criação como dom gratuito e amoroso de Deus e como convite a viver essa comunhão de amo r propõe-nos uma leitura positiva do mundo e da história, sem ignorar os sinais de rut ura e de mal que existem, co mo t empo espaço de diálogo onde se pode viver o Mistério de Deus . A experiência cristã , tem assim, um ineludível e imprescindível dinami smo «incarn acional» . O mundo criado e a hist ória não são só o palco ond e a relação com Deus pode acontecer, mas fazem também parte dessa relação , sendo que a maneira como habit amos o mundo e construímos a histó ria ajuda a edif icar e a concretizar essa mesma relação. Esta dinâmica «incarna cion al», presente desd e sempre em toda a criação, tem o seu po nto culminante na encarna ção do Verbo de Deus. Quando Deus se quis revelar plena e totalmente ao ser huma no encarnou, assumind o, uma vez mais e de um mod o ainda mais int enso, a criação como fazendo parte da sua própr ia histór ia, e comprometendo- se, ta mbé m uma vez mais, a conti nuar o cuidado e a atenção por essa mesma criação.

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Texto 24

Deus dá origem ao que existe porque é o princípio de tudo, vivifica porque é vida, ama e transmite a capacidade de amar porque ele é «rico em misericórdia» (Ef 2,4). Deus Pai transborda de amor e ternura. significativo que Jesus utilize, só ele o faz, a palavra aramaica Abba para dirigir-se e referir-se ao Pai [...]. O Pai, comunicador de vida, é o Deus amor. O Espírito Santo é o vínculo de amor entre o Pai e o Filho, entre Deus e nós, entre os seres humanos . A presença do Espírito em nossos corações permite-nos chamar ao Pai Abba, como Jesus (cf. Gal 4,6) [...]. t: importante não se equivocar: Deus não é libertador porque liberta; ele liberta porque é libertador. Deus não é justo porque estabelece a justiça, ou fiel porque cumpre o que promete. t: o contrário. Não se trata de um trocadilho. t: um modo de afirmar o primado de Deus e a sua transcendência e de recordar que o seu ser dá sentido à sua acão [...]. O Deus da vida exprime o seu amor ao gerar para si uma família de seres iguais por um ato de libertação, ao fazer e exigir justiça no meio do seu povo, ao estabelecer com ele uma aliança irrenunciável na história. Libertação, justiça e aliança implicam-se e conferem mutuamente pleno sentido. É

GustavoGutiérrez - O Deus da vida . São Paulo: Edições Loyola, 1990, 23-24.

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Esta int erp retação cr istã do mundo co mo criação tra z co nsequências no tocante às conceções de pessoa. A antropo logia cristã tem, por isso, na condição criatural da pessoa e da humanidade, um ponto' fu lcral. Esta cond ição huma na, como Génesis, nos capitulas 1 e 2, no-Ia apresenta pode ser caracte rizada como vocação para a relação: • relação de adoração e f idelidade perante o Deus criador; • relação de senhorio e responsabi lidade em perante os outros seres criados e as outras forç as da nat ureza; • relação de «com-vivência» com o seu semelhante. Concentremo -nos apenas nos versículos 27 e 28 do primeiro cap itulo do Livro do Génesis (cf. Texto 25):

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------ - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - , A presença humana no mundo é compreendida como imagem de Deus (lugar-t enente de Deus). ~-o nesse dup lo registo: • por um lado, a experiência humana é caracte rizada a partir da co ndição de soberania sobre as coisas criadas , por delegação de Deus (algumas inte rpr etaçõ es desta tradição f izeram alguns est ragos quando a humanidade passou a ter meios tecnológicos que lhe deram não só um pode r simbólico mas sobret udo um pode r mater ial reforçado sobre o mundo );

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• por outro, a humanidade é co mpreend ida a part ir da relação unit iva homem-mulher, que perpetua, a seu modo, na descendência, o gesto criador de Deus: «Adão gerou um f ilho à sua imagem e deu-lhe o nome de ser» (Gen 5,3). A co ndição humana é, assim, na mundiv idênc ia cristã, «excêntr ica», na med ida em que, nest as t radições bíblicas, o seu cumprimento depende desse estabelecimento de uma relação com a alter idade, divina e humana. Esse é o lugar també m da fragilidade e do erro. Esta compreensã o bíblica da est rutura sócio -ge nétic a da humanidade revela t ambém uma part icular inteligência do lugar da violência nest e processo, violência resultante das simet rias do desejo que estão na base da rivalidade de Caim e Abel (cf. Texto 26) Texto 26

E conheceu Adão Senhor um homem .

ela concebeu e

e disse: Alcancei

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E deu à luz mais a seu irmão Abel; e Abel foi pastor de ovelhas, e Caim foi lavrador da terra. E aconteceu ao cabo de dias que Caim trouxe do fruto da terra uma oferta ao Senhor.

Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: E disse Deus: Que fizeste? A voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra. maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua mão o sangue do Quando lavrares a terra, não te dará mais a sua força; fugitivo e vagabundo serás na terra. Então disse Caim ao Senhor:

É

maior a

O Senhor, porém, disse-lhe: Portanto qualquer que matar a Caim, sete vezes será E pôs o Senhor um sinal em Caim, para que o não ferisse qualquer que o achasse. E saiu Caim de diante da face do Senhor, e habitou na terra de Node, do lado oriental do t:den.

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A fé como seguimento Do que j á foi sendo dito acerca dos aspetos nucleares da experiência cristã torn a-s e por demais evident e que há um ponto verdadeiramente cent ral, para o qual todos os outro s convergem. Esse é, sem qualquer margem para dúvidas, Jesus Cr isto. É óbvio que o cris tianismo e a experiência crist ã pressupõem muit os out ros element os importantíssimos e verdadeiramente indispensáveis, mas estes só o são na medida, e só na medida, em que apontam , nos aproximam e se entendem a partir do próp rio Jesus . Não é viável viver a experiência cristã sem um co ntexto co munitár io, pois a fé é, tam bém ela, constitutiva mente eclesial, como adiante veremos com um pouco mais de atenção . Também não é poss ível afi rmar a identidade cristã sem assumir e proc lamar um conjunto de verdades através das quais o crist ianismo se expressa e concretiza. De igual modo, a existência cristã pressu põe dete rminadas manei ras de v iver, que exclui claramente outras. Mas se tu do isto é verdade, e mesmo indispensável, nada disto exclui, pelo contrá rio, pressupõe e exige o encontro co m Jesus Cristo. Sem este, verdadeiramente não pode mos falar em existência cristã . Assim, ser cristão é essencialmente , e acima de tudo, encontrar- se com J esus Cristo e segu i-lo. Na verdade, o encontro é fu ndamentai, mas não basta. Sem ele nada começa e mesmo nada é possível, mas ainda assim não chega. Todos sabemos bem como os encontro s pessoais, por mais import antes que sej am, só se tornam realmente efet ivos, na vida de cada um, quando são alimenta dos e vividos . Também assim é no cristianismo, de ta l modo que o essencial da experiência cristã reside no seguimento de Jesus. Este seguimento concreto e singular tem traços carater ísticos dos quais destacamos aqui alguns. Ser cristão não é simplesme nte repeti r os gesto s e as palavras de Jesus, mas implica ir mais f undo, na t entat iva de percebe r o que motiva e sustenta esses gestos e palavras, pois é essencialmente a esse nível que reside o seguimento. Não se t rat a pois da imita ção da exter iorida de, mas de assumir o que sustenta a sua exist ência, o que const itui a verdadeira razão da sua vida . Seguir Jes us é, ent ão, t entar perceber o que o fez viver da maneira como viveu, para ousar viver do mesmo modo. Perceben do isto, to rna-se possível descobrir que o viver de J esus foi um vive r tota lmente voltado para Deus e para os outros , sobret udo os mais frágeis da sociedade. A sua relação com Deus abria -o aos out ros, tornando-o disponível, atento, solícito às suas necessid ades. Neste co nstante cuidado, concretizava e realizava a sua re lação com o Pai. O seguimento de Jesus, porq ue consiste em viver como ele viveu, implica, pois, estas duas direções: Deus e os outros. Seguir Jesus é, deste mod o, indissociável da at enção e do cuid ado aos outro s.

Texto 27

A revelação cristã é por isso e acima de tudo uma pessoa: Jesus, o Cristo, revelação absoluta de Deus e do seu desígnio. El a não é um catál ogo de verdades organizadas, pois uma pessoa vai infini t amente para além das palavras. O conjunto das verdades é segundo e adquire sent ido em relação a esta pessoa. Existe, pois, uma tra nscendência absoluta da sua pessoa e da sua palavra em relação a todo out ro discurso da Igreja. Bernard Sesboüe - Croire:Invitotion à la fiai catho/iQue paur /es fem mes et les homm es du XXle Siêcle . Droguet & Ardant, 1999, 165.

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Texto 28

Não nos é poss ível t ratar aqui de maneira mais prec isa do seguimento de Jesus, assim entendido, e da participaç ão no mistério da sua vida e sobretudo em sua morte como unidade imed iata do amor para com Deus e amor para com esse homem bem determinado e concreto. Mas pelo que dissemos, pelo menos chamamos a atenção para o facto da vida cristã não ser simplesmente cumprimento de normas gerais pro clamada pelo magistério da Igrej a, mas que nisso e para além disso ela é o . apelo sempre único e singular de Deus, o qual contudo é mediado pelo encontro concreto no amor com Jesus numa mística do amor, que é sempre singular e inteiramente irredutível. Karl Rahner- Curso fundamentol do fé. S. Pauto: Edições Paulinas, 1989. 366.

A comunidade como precedência e acolhimento A experiência cr istã pressupõe e exige o enco ntro pessoa l com Cristo , sem este, tudo o que se faça. ainda que possa ter contornos aparentemente cristãos, não será cert amente uma experiência cr istã. Dito isto, tona-se, no ent anto, necessário deixar claramente explicitado que esta experiência não se reduz só a uma dimensão individual, nem somente nela pode subsist ir. A dimensão eclesial, ou seja da co munidade crente, encontra a este nível toda a sua razão de ser e import ãncia, o que pode ser reconhec ido a parti r de várias abordagens, das quais aqui destacamos algumas. Na própria histó ria do cristianismo, fac ilmente reconhe cemos a expe riência da comunidade. O centro é ocupado por Jesus, mas desde semp re ele se rodeou de uma com unidade que envolveu e co rresponsab ilizou pelo anúncio e co ncretização da sua missão. Esses, que o acompan haram desde o início, ainda que com dúvidas e hesitações, como hoje con t inua a acontecer com os seus disc ípulos, foram mandat ados para, em seu nome, contin uarem o anúncio . A dimensão da Comunidades está , pois presente desde o início do Cristianismo. O exemplo de S. Paulo é bem paradigmático dest a realidade. Quando se encontra com o Ressuscitado é na co munidade cristã de Damasco que aprende a conh ecê-lo e aprofun da a experiência de encontro com ele. Por isso para S. Paulo a missão de anunciar o Senhor Jesus implica simul taneamente a missão de edif icar a comunidade crente . Em bom rigor, nem sequer se t ratam de duas missões, mas de uma dup la dimensão na qual se concret iza a sua missão de anunciar o Ressuscitado . Desde o primeiro moment o a experiência cristã se concret izou simult aneamente na experiê ncia de uma comunidade crente. O cristianismo foi-s e expand indo sempre a part ir deste duplo eixo: o anúncio que os cris tãos iam fazendo, o testemunho da sua vida em comunidade e, por isso, o aco lhimento desse anúnc io passava também pelo in gresso na vida da comunidade crente. Esta dinâmica cont inua hoje, de tal modo que o anúncio do Ressuscitado cont inua a enrai zar-se neste testemu nho de vivência comunitária. Os sacramentos da iniciação cristã (batismo, crisma , eucarist ia), com os quais se celebra a ident idade e a missão cr istãs, possibilitam simult aneamente a adesão à f é, o enco ntro com Jesus Cristo, a entrada na comun idade cre nte. E a experiência cr ist ã não é simplesmen te a soma destas t rês dimensões, mas a vivênci a de t odas elas como sendo con st itutivas do mesmo ser e v iver cr istãos. Porque outros nos precederam na fé e nela nos acolheram é possível, hoje, cont inuar a fazer essa experiência. A fé é, neste sentid o, constitutivamente ec lesial. A comunidade crente não é só o espaço , o tempo, a possibilidade e a ajuda para se poder viver a experiência da fé, mas fa z ela própria parte dessa experiência da fé .

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Texto 29

A fé tem uma forma necessariamente eclesial, como comunhão concreta dos crentes. A partir deste lugar eclesial, ela abre o indivíduo cristão a todos os homens. Uma vez escutada, a palavra de Cristo, pelo seu próprio dinamismo, transforma-se em resposta no cristão, tornando-se ela mesma palavra pronunciada, confissão de fé. São Paulo afirma: «Realmente com o coração se crê [...] e com a boca se faz a profissão de fé» (Rom 10,10). A fé não é um facto privado, uma conceção individualista, uma opinião subjetiva, mas nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e tornar-se anúncio. Com efeito, «como hão de acreditar naquele de que não ouviram falar? E como hão de ouvir falar, sem alguém que o anuncie? (Rom 10,14). Concluindo, a fé torna -se operativa no cristão, a partir do dom recebido , a partir do Amor que o atrai para Cristo (cf. GL 5,6) e torna participante do caminho da Igreja, peregrina na história rumo à perfeição. Para quem foi assim transformado, abre-se um novo modo de ver, a fé torna-se luz para os seus olhos. Francisco - Carta Encíclica Lumen Fidei, 22.

A fé como modo de habit ar o mundo - a «caridade» Desde sem pre a comunidade cristã deu grande irnport áncia à atenção e ao cuidado daque les que se encontravam em sit uação de maior f ragilidade. Sabemos bem como na sua organização se chegaram a criar serviços que tinham como objetivo dar resposta a essas situa ções, ta l como sabemos que isso foi semp re uma realidade ao longo de toda a história da Igreja se bem que nem sempre vivida da mesma maneira, nem com a mesma centralidade. Ter conhecimento desta realidade, se bem que seja importante, não é. no entanto suficiente. para se poder percebe r qual o lugar absolutamente indispensável da caridade na experiência cr istã . Na verdade . este serviço de amor fraterno prestado a todos. principalmente aos que mais dele necessit am, pelos cristãos e as suas comun idades, no seguimento de Jesus , constitui, a par com o anúncio do Evangelho e com a ceiebração da fé. um dos elemento s co nst itutivos da realidade eclesial e da experiência cristã . Não estamo s, pois, perante algo que a Igreja é convidada a fazer porque é o que é, mas perante algo que a const itu i na sua ident idade. A caridade não é simplesmen te, para os cristãos, um agir em conse quênc ia daquilo que eles são, se bem que isso por si só j á fosse muit o import ante, mas é muito mais do que isso, de ta l modo que se pode af irmar que o exercício da Caridade edifica a sua identidade cristã. Esta realidade pode ser melho r entendida a partir de vários elemen tos, dos quais , em seguida, se destacam alguns: • é no amor aos outros (amor que é uma das melhores t raduções da categor ia car idade) que se expressa de um modo inequívoco o seguimento de Jesus; • com a caridade fica claramente sublinhado que o cent ro do Evangelho passa pelo amor a Deus que se concretiza no amor aos outro s e no amor aos outros que se conc retiza no amor a Deus; • com a caridade se destaca a atenção e o cuidado dos pobr es como uma opção fundamental do Evangelho de Jesus .

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A fé não pode ser reduzida a uma dimensão subjetiva e individual, nem sequer a uma dimen são apenas interi or às comunidades cristãs, mas implica igualmente um sair para fora, um compromisso com a construção da sociedade e com a construção da história humanas. Porque não é uma realidade para «uso fruto pró prio» ela tem de compromete r os cristãos, marcando o seu modo de habit ar e cons tr uir o mundo. Nest a linha a car idade dest aca- se tam bém como condição de possibilidade e de credibilidade do testemunho cristão. Na ca ridade os crist ãos são chamados a acred itar o seu acred itar.

Texto 30 Se a Igreja inteira assume este dinamismo missionário, há de chegar a todos, sem excecão. Mas, a quem deveria privilegiar? Quando se lê o Evangelho, encontramos uma orientação muito clara: não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, «àqueles que não têm com que te retribuir» (Lc 14, 14). Não devem subsistir dúvidas nem explicações que debilitem esta mensagem claríssima. Hoje e sempre, «os pobres são os destinatários privilegiados do Evangelho», e a evangelização dirigida gratuitamente a eles é sinal do Reino que Jesus veio trazer. Há que afirmar sem rode ios que existe um vínculo indissolúvel entre a nossa fé e os pobres. Não os deixemos jamais sozinhos! Francisco - Exortação Apostól ica Evongelii Gaudium, 48.

Por isso mesmo, «também o serviço da caridade é uma dimensão constitutiva da missão da Igreja e expressão irrenunciável da sua própria essência». Assim como a Igreja é missionária por natureza, também brota inevitavelmente dessa natureza a caridade efetiva para com o próximo, a compaixão que compreende, assiste e promove . Francisco - Exortação Apostólica EvangeliiGaudium, 179.

Para a Igreja, a opção pelos pobres é mais uma categoria teológica que cultural, sociológica, política ou filosófica. [...]. Por isso, desejo uma Igreja pobre para os pobres. Estes têm muito para nos ensinar. Além de participar do sensus fidei, nas suas próprias dores conhecem Cristo sofredor. to necessário que todos nos deixemos evangelizar por eles. A nova evangelização é um convite a reconhecer a força salvífica das suas vidas, e a colocá-los no centro do caminho da Igreja. Francisco - Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, 198.

A narrativa dos discípulos de Emaús: «ver» e «reconhecer» No capítulo 24 do Evangelho de Lucas encontramos o conhecido texto dos díscípulos de Emáus (Lc 24,13-35), no qual muitos desco brem como que uma catequese narrativa , onde se descreve o processo de maturação da fé em Jes us Cristo . A leitu ra que o teólogo e poeta José Tolent ino Mendonça" fez desse texto, vai também nessa linha. Quando dois discípulos se dírigem de Je rusalém para Emaús sai-l hes ao encont ro Jesus. Se bem que os leitores do episó dio saibam desde o primeiro momento de quem se t rata, estes discípulos não são capazes de o reconhecer. Eles como que veem, mas não veem, ou seja, têm na sua f rent e um homem com quem conver sam e caminham, mas verdadeirament e não são capazes de ver quem ele é. Também assim acontece tantas vezes com a experiência da fé : as coisas não são claras, muitas vezes são mesmo incompreensíveis, apesar de est arem ali mesmo à frente, quase que a poder serem tocadas e agarradas. E eles fizeram o caminho e conversaram com aquele que se disp õs a acomp anhá-los , e a ele como que confessavam que não percebiam bem o que se tinha passado.

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Texto 31

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Ilustração 56. Os disc ípulos de Ernaús. segund o o Ilust rador James Jac ques Joseph TI550t (1836-1902), The lIfe ot Our Scviour Jesus Chnst (1899).

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No fim do relato é possível perceber que essa incompreensão resultava de um cam inho ainda não realizado, é que o olhar que guardavam sobre Jesus era aquele anterior aos acont ecimentos pascais. Quem agora com eles caminhava era o ressuscit ado, que sendo o mesmo, exigia, no entanto, uma outra maneira de olha r para ser reconhecido. Ainda não ti nham feito esse caminho, por isso, o não podiam reco nhecer. Mas Jesus dispôs-se a caminhar com eles e, atr avés do diálogo e das interpelações, fo i suscita ndo outras reflexões, tirand o-os das leituras lineares a que estavam acost umados e, porventu ra, das suas zonas de conforto, abrindo a part ir daí outras possibilidades. E recontou-l hes a história, faz de novo a narração, mas agora a part ir de uma out ra perspetiva, revisitando a história da salvação e dos acontec imentos recentes relendo-os a partir da sua pessoa . . No decorrer do epis6dio o leitor pode dar-se conta da import áncia que tem o process o de narração e de diálogo estabe lecido por Jesus com aqueles dois caminhant es, pois é a part ir deles que o seu coração como que se vai preparando para aceita r a novidade que o acontecimento pascal int roduziu na sua vida e na consequent e experiência de encontro e relação com ele. A partir desse diálogo, o caminhante começa a deixar de ser um estranho e acaba mesmo por ser convidado a pernoitar em casa, o que revela j á um cert o grau de aproximação e uma certa vontade de partilha e de hospitalidade. ~ nesse novo contexto que Jesus se revela: toma o pão, abençoa -o, parte-o e part ilha-o. Eles reconhecem-no e, surpreendenteme nte, deixam de o ver. Neste momento do episód io o leitor pode reconhecer um enorme cont raste com o início. Antes vendo-o não o viam, agora deixam de o ver mas reconhecem-no e acabam por descobrir a sua presença. Antes, mesmo te ndo-o à sua frente, part ilhavam com ele a t risteza e desm otivação pelo seu desaparecimento. Agora, quando ele desaparece da sua vista, correm de novo a Jerusa lém a testemunharem a sua alegria. Os discípulos já ti nham começado a perceber que Jesus estava continuamente na sua presença pelo dom da fé pascal. Nesta narração podemos verdadeiramente encontra r t ipificado o percurso da fé cristã , que não se limit a ao «ver», exige o «reconhecer», que pressupõe um itinerário feito em comunidade e com a comunidade, que implica a disponibilidade para escutar e para dialogar, que convida à hospitalidade e à celebração.

Texto 32 muito estimu lante a leitura que Xavier Thévenot propõe avizinhando Lc 24 de Gen 1-3: o reiato de Emaús é, na verdade, um novo Génesis. tal como no Génesis, a criação acontece aqui por intervenção da palavra. Jesus abre a escritura , explicando o sent ido da palavra de deus e mostra como ela se cumpre. Isto perm ite-lhe retirar os discípulos do plano especular dos sinais, fazendo-os passar do desejo de ver ao desejo de crer. Mas enquanto o Génesis relat a um desencontro [...], Emaús narra um encontro, uma recriação em vista do encontro. É

A recriação efet iva-se, por isso, com o regresso dos discípu los a Jerusalém . [...] é aqui que entra em cena a comunidade dos Onze e daqueles que permanecerem com eles em Jerusa lém. A comunidade reunida aparece como fato r de antec ipação e confirmação da experiência que os dois de Emaús vêm testemunhar. Antes mesmo de falar, eles assentem na Fé que a comunidade proclama: «realmente o senhor foi ressuscitado e apareceu a Simão» (v. 34). Os olhos deles foram abertos pela Fé." José Tcle nt tno Mendonça - «Emaús , laboratório da fé pascal».Communio 2 (2010) 140-141.

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A Igreja, comunidade de acolhimento Quando lemos os documentos que dão conta da reflexão e da vida das comunidades crentes que habitaram os primeiros séculos da nossa era, descobrimos que muitas das dinãmicas culturais que, genericamente, descrevem a natureza e as funções do sagrado estão em tensão com alguns aspetos do cristianismo. Os cristãos, no contexto das t rajetórias de evangelização e nas suas formas de comu nitarização, não usam uma língua sagrada, procuram antes a língua comum, aquela que permite uma ampla trad ução do Evangelho que anunciam. Os termos usados para identificar aqueles que presidem às comunidades, ou aqueles a quem se reconhece uma part icular auto ridade, não fazem parte da semântica do poder, fazem parte, antes, do vocabulário do serviço. Prega-se a mensagem de um crucificado , e o Deus que se revelou nele, bem diferente das imagens de poder dos deuses dos impérios e das cidades. Uma determinada ordem social - que passa por formas de diferenciação social, em que uns são mais privilegiados do que outros - alicerça-se num conjunto de valores e normas que estão ao serviço da const rução de uma identidade coletiva. Observámos já, como esta construção pode t antas vezes conduzir à exclusão dos outros «diferentes». Ora, quando hoje lemos, por exemplo, os t extos dos chamados Padres da Igreja (grosso modo, os primeiros teólogos cristãos), encontramos a alusão a práticas cristãs que se tradu zem no cuidado dos necessit ados, dos excluídos, dos est rangeiros. Esta lógica de ação est á enraizada no centro da identidade cristã: o mandamento novo do amor ao próximo. Este horizo nte ético, que existe noutras tradições religiosas, incluindo a religião de Israel é alargado para além de qualquer limite étnico. Deixa de ser apenas o amor ao «próximo» enquanto um de nós, para incluir o «amor ao inimigo», o «amor ao est rangeiro» e o «amor ao pecador», Art iculado a este valor, encontramos um outro, verdadeiro marcado do «ADN» das primeiras comunidades cristãs: a renúncia ao status. O cristianismo desenvolve-se num ambiente social em que um dos principais códigos de honra apela a que cada um se comporte de acordo com o seu stotus, e em que a acumulação de stotus é o objetivo social mais mobilizador. A proposta de um modo de habitar o mundo renunciando ao status, enquanto nova virtude, implica duas transformações que ameaçam a moral e a ordem social sacralizadas: a ideia de que a autoridade se exerce como quem «serve», e o princípio de que perante Deus, os últimos podem ser os primeiros. Face aos dinamismos sacralizantes que cont extualizam a expansão do crist ianismo, podemos dizer que o cristi anismo surge como um movimento, um estilo de vida dessacralizante Podemos descobrir o rast o desta nova atitude num célebre documento do cristianismo antigo: a Didoscóli o dos Apóstolos (cf, Texto 31). Deverá situar-se em meados do século III, no espaço geográfico da Síria. Na secção que aqui se t ranscreve são dadas inst ruções ao Bispo, o que preside à comunidade, relativamente à forma de ela se ordenar quando está reunida. Tudo se passa numa casa, que já não deverá ser, como em épocas precedentes, casa de uma das famílias cristãs aberta s à reunião da comunidade. Mas também não estamos perante um templo separado, ou sej a, consagrado à atividade ritu al. Deverá t ratar-se antes de uma casa de família adapt ada (domus eccl esioe), por vezes aumentada, para se adequar às necessidades próp rias de uma comunidade. As recomend ações dizem respeit o às formas concretas que devem trad uzir o espírito de hospitalidade que caracter iza as assembleias cristãs . Muitas instruções estão próximas das que caracterizam as civilidades da sociedade em que os cristão s se inscrevem. Mas algumas delas dão conta de uma nova ordem de valores.

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Texto 33

Se vier um irmão, ou uma irmã, doutra assembleia que o diácono interrogue (esta) para saber se é casada ou se é uma viúva crente, se é filha da igreja ou se, por acaso, não pertence a uma heresia; depois, que ele a guie e lhe designe um lugar apropriado. Se se lhe apresentar um presbítero vindo duma outra assembleia, é a vós, presbíteros, que cabe recebê-lo, partilhando com ele o vosso lugar. Se é um bispo (que chega), que se assente com o bispo, e que este o trate com as honras devidas à sua categoria, como um outro igual a si. Convidá-lo-ás, bispo, a falar ao teu povo, porque a exortação e a reprimenda dos estrangeiros é muito útil, já que também está escrito: não há profeta que seja bem acolhido na sua pátria . Depois, no momento de oferecer a eucaristia, que ele tome a palavra (para pronunciar a anáfora). Mas se for reservado, se te deixar essa honra e não quiser oferecer, que tome pelo menos a palavra para o cálice. Se suceder, por outro lado, que estejais sentados e se apresentar alguém, homem ou mulher, que possua honras na sociedade - quer do sítio, quer de uma outra assembleia - então tu, bispo, se estiveres a proclamar a palavra de Deus, se estiveres a escutar, ou se estiveres tu próprio a fazer a leitura, não te abandones ao favoritismo, não deixes o serviço da palavra para lhe arranjares tu próprio um lugar, fica tranquilamente onde estás e não interrompas o teu discurso: os irmãos que o recebam . Se já não houver lugar, que um dos irmãos que esteja cheio de caridade e de afeição fraternas, e que esteja disposto a fazer essa honra, se levante e lhe ceda o seu lugar. Em vez dele que fique de pé. Se os rapazes e as raparigas continuarem sentados enquanto um homem ou uma mulher de idade se dispuseram a ceder o seu lugar, olha então, diácono, para os que estão sentados, e vê aquele ou aquela que sejam mais novos do que os outros; pede-lhe para se levant ar e manda sentar a pessoa que se levantou para oferecer o lugar; depois conduz aquele que fizeste levantar e coloca-o de pé atrás do grupo, para que os outros aproveitem a lição e aprendam a ceder os seus lugares aos mais dignos . Mas se aparecer um pobre, homem ou mulher, da mesma assembleia ou de uma outra, sobretudo se forem avançados em anos, e se não encontrarem lugar, dá-lhes tu próprio com todo o teu coração um lugar, bispo, ainda que tenhas de te sentar no chão; não sejas como os que agem por favoritismo, mas que o teu serviço procure antes agradar a Deus. Didascalia opostolorum in Syriac. Ed. by Margaret Dunlop Gibson. London:Cambridge Unlversity Prese, 1903.

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2. A religião nas culturas

r----- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - 2.1. Religião e sociogénese Os primó rdios da atividade religiosa Como já foi anot ado na primeira subunidade temática, o desenvolvimento da capacidade simbólica é inter ior ao proc esso de sociogénese humana. Mas tal verif icação não implica que possamos, com facilidade, determinar as origens da ac ão e do pensamento religiosos . Quanto mais recuamos no tempo, mais os vest ígios escasseiam. E mesmo quando não há indícios, não é posslvel af irmar que não t enham exist ido formas religiosas de comunicação.

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Texto 1

As capac idades de comunicação "linguística" do Homo habilis, Hamo erectus e Homo sapiens deveriam ser limitadas à luz da tese segundo a qual o Homo sapiens sap iens foi o primeiro a dispor de condições anatómicas que perm item uma linguagem diferenciada (maior volume do cérebro, rede diferenciada das vias nervosas, aumento do espaço de ressonância através da descida da faringe - de modo que, desde entâo, o ser humano é o único mamífero que nâo pode respirar e engolir simultaneamente). As faculdades de comunicação "linguística" do Homo habilis, Homo erectus, e Homo sapiens deveriam, de facto, ser limitadas, embora seja de supor a sua existência, como indicaram as propriedades anatómicas do cérebro, sobretudo da metade esquerda do mesmo. Seria bastante surpreendente que estes seres humanos não se tivessem preocupado, de forma provavelmente ainda muito rudimenta r e em sentido geral, com o seu meio ambiente - o "mundo", para eles - e com a sua vida e morte, com o nascimento, a diferença entre os sexos, a adolescência, a doença, os animais e as plantas [...]. O que nos pode levar mais longe é a constatação de que - segundo o que se sabe atualmente - há testemunhos inicialmente dispersos, depois cada vez mais numerosos, de práticas religiosas com algumas centenas de milhares de anos, resultantes, contudo, ao que parece, de um desenvolvimento cultura l ou histórico do ser humano e não de uma alteração de cariz evolut ivo. No entanto, isto sugere que já havia "religião" anteriormente, mesmo que as provas palpáveis da sua existência sejam mais recentes. Karl-Heinz Ohlig- Religido: tudo o que é precisosaber. Lisboa: Casa das Letras, 2007, 405.

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Remontando ao período do Paleolítico Infe rior, ju nto à aldeia ChouKou-Tien, pert o de Peq uim, existe o rasto de uma grande caverna que fo i povoada por gru pos de Homo erect us há mais de meio milhão de anos . Encont ram -se aí vestígios da ut ilização do fogo; resto s de ossos provenientes de vinte espécies diferentes de mamíferos, sinal de intensa atividade de caça ; milhares de vest ígios de fe rrament as de ped ra; ossos diversos de seres humanos, com partic ular dest aque para a quantidade de crânios , f ragment ados ou inte iros. Os paleontólogos têm-se inte rrogado ace rca das razões que poderão explicar a esp ecial co nservação dos osso s do crânio. A resistência dest as est ruturas ósseas explica-se tamb ém pelos cu idados espec íficos que benef iciaram. Uma equipa de investi gação da Univers idade de Bristo l encontrou 307 restos de pigmentos, numa caverna na Zâmb ia, co m 350000 a 40 000 0 anos. São pós de diferentes cores , provenientes de mat eriais diversos, aponta ndo para a prâtica de fabr icaçã o de t intas para pinta r o corpo - prâti ca rit ual que encont ramos docu mentada em socie dades poste riore s. Outro s exemplos pod eriam ser dado s, como a desc oberta de ossos de elefa ntes dist ribuídos segundo um modelo de ordem, em Torralb a e Ambrona, na Espanha, ou os vest ígios de ocre encontrados num habitat do Homo erec tus , em Nice - assinale-se que, poste rior mente, se encon t ra doc ument ada a prât ica da uti lização deste mat erial para pinta r os corpos dos mort os e dos vivos, em con texto rit ual.

A investigação paleonto lógica não conduz à conc lusão de que, no Pa leolítico, existam religiões, se com isto quisermos dizer, sist emas de cren ças e agentes espe cificamente religiosos . Mas os indícios de comp ortamentos ritua is apontam para uma ativ idade cujo significado está para além das necess idades materiais imediatas . Como observava o f ilósofo E. Cassirer' , essas expressões simbólicas indiciam que a espéc ie humana presse nte forças em torno de si e encontra as mediações necessárias a est as relações , procurando que elas sejam favo ráveis à sua vida e abrindo o quot idiano material a sentido s que o ult rapassam. Os numerosos achado s tornam-se mais claramente indícios de uma ati vidade rel igiosa na medida em que são comparados com vestígios e doc umentos posteriores. I: claro que esses rastos, nos caminhos da sociogénese humana, denunciam, como j á vimos, a presença de uma ativ idade simból ica. Mas são também indiciadores de uma particula r ativ idade de cuidado por preservar, comunica r e tra nsmitir. I: no Paleolítico Médio que as marcas desta atividade se t ornam mais visíveis. O Homo re/igiosus não é, pois , uma improvisação do Paleolítico Superior. Mesmo se há ainda muitas descon t inuidades que não sabemos explicar, pode dizer-se que a atividade e o pensamento religiosos aco mpanham os diferentes itine rários de desenvolvimento técnico e progressiva estruturação social. Quando se perseguem as origens da ati vid ade religiosa humana , a morte surge como o «laboratóri o» mais dete rminante. O ser humano descobre-se como um ser vivo que conhece algo de decisivo acerca da sua existência: sabe que tem de morrer. Já foram identifi cados numerosos disposi t ivos t umulares (a parti r de cerca de 100 000 antes da nossa Era), muitos deles aco mpanhado s de indícios de atividade ritua l. Os achados arqueol ógicos falam- nos de grupos que se organizam, de uma forma part icular, para acom panharem os seus semelhantes nesse momento da mort e: corpos orientados no sent ido Leste- Oeste; corpos organizados ent re si segundo um determinado padrão; ente rros de cócoras, análogo à estru t ura de enraizamento das plantas ; tratamento especi al dos crãnios, por vezes circunscritos por pedras, segundo um deter minado padrão geomét rico; indícios de ativ idades diversas quando se t ratava de corpos de inimigos; vestígios de tintas, com possível ut ilização ritual; enterros em ambientes natura is favorá veis a uma mais lenta deterio ração dos corpos ou à sua proteção de animais necrófagos; a proxim idade de fornos, podendo indiciar prát icas rituai s; a presença de utens ílios ju nto dos mortos, que alguns paleontólogos int erpret am como rasto de representações acerca de uma vida f ut ura.

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, - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - -- - - - - As rep resentações artísticas do Paleolítico Superior dão conta de uma determinada forma de representar a vida, a organização do grupo (em particu lar na atividade de caça), a fer tili dade, a iniciação, os ritos de carác ter propiciatório, mesmo se não é possível determinar de forma organizada um conj unto de crenças. A pintura pari eta l ou rupest re é o veículo mais expressivo deste imaginário simbólico-religioso. Signos clavifo rmes, mãos humanas (por vezes com dedos t runcados), f iguras lineares, monoc romáti cas ou policromát icas, consti t uem o rasto de um processo cult ural em desenvolvim ento . Com muita f requência, encontram- se fig uras zoomórficas. Grande parte está integrada em cenas de caça, ati vidad e cent ral para a sobrevivência dos grup os. Mas alguns animais, como os mamutes podem ter um signif icado dist into . Muitos paleont ólogos colocam a hipótese de que estes animais pudessem t er signif icados diverso s, para além da óbvia relação de subsistênc ia. Out ros salienta m a mútua penet ração do pensamento estético e religioso , art iculação que cont inuaremos a encont rar em soc iedad es ulteriores. Em part icular, as cenas de caça pode m esta r ligadas à prát ica da propiciação, ou seja, agir sim boli cament e sobre a realidade, para a tornar favo rável - a antropologia cultural usou a cat egoria de «magia» para explicar cert as prática s rituais similares, em cult uras posteriores.

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Texto 2 Apesar de todos os condicional ismos resultantes de um mundo natura l prepotente e de dependência económica face ao mesmo, como fica demonstrado no papel central ocupado pelo animal , pela Terra fértil e pelo percurso do Sol e da Lua, a religião do Paleolítico Superior revela-se como um produto cultural do ser humano. A questão do sentido que se coloca e que supera a determinação biológica devolve-o a si mesmo e obriga-o a procurar uma orientação, explicitada em modelos de mundo de que ele faz experiência, mas que o «transcende»: o animal apresentado nas cavernas já não é simplesmente o que ele matou durante os seus saques; passou a ser a abstração irnagética do mesmo e expressão de uma simbólica humana, apesar de não nos ser possível descobrir os seus nexos mais exatos; a Terra fé rti l, venerada na caverna, seu útero, deixou de ser simplesmente o território empírico onde se procuram os alimentos, para implicar um mais humano face àqui lo que ali se encontrava e que é percebido como numinosum - provavelmente é possível afirmar algo de semelhante acerca do Sol, assim como da Lua e dos seus ciclos; a morte também não é, seguramente, apenas o f im, mas sim um problema religioso que se procura superar com um grande vigor ritual. Em resumo: o ser humano supera - económica, social, cultural e religiosamente - as condições puramente naturais e toma consciência de ser um ser vivo sui generis, apesar de estar inserido no seu ambiente, do qual depende, e da sua afinidade - vivida de forma igualmente intensa - com os animais. Esta evolução ' tinha já começado, certamente, nos primórdios do Paleolítico Inferior e levou a uma progressiva emancipação do ser humano - na sequênc ia da utilização de ferramentas e do fogo, da estruturação de formas de socialização e do papel do clã familiar na transmissão das competências mais relevantes . É a partir do Paleolítico Médio, o mais tardar, de acordo com as descobertas até agora disponíveis, que existem vestígios de que o ser humano começou a problematizar e a interpretar a sua morte e, portanto, a sua vida. Por fim, no Paleolítico Superior, ele parece ter tomado a consciência do seu papel especial, articulando-o simbolicamente num sistema religioso diferenciado. Esta nova consciência não tem, necessariamente, de ser imaginada como reflexiva e conceptual - não existem quaisquer indícios seguros para tal - , mas exprime-se na ação cultual e ritual, em mitos, nos primórdios de uma ética: por exemplo, as obrigações cultuais, como a pintura de cavernas ou a utilização de pendentes de conteúdo religioso, obrigações devocionais, como o enterro dos mortos, assim como, seguramente, também regras de convivência, formas de lidar com os animais, etc. Kerl-Hein z Ohlig - Religião: t udo o que é preciso saber. Lisb oa: Casa das Let ras, 200 7, 78 .

A religião nas sociedades pré-agrícolas Os agrupamentos humanos pré-agrícolas são de pequena dimensão. Tal exigia-se por razões de sob revivência , uma vez que quanto maior o grupo , maior volume de caça seria neces sário, e maior o risco de esgotamento de recursos na região. Mas também por motivos de regulação - agrupamentos humanos maio res exigiriam estrutu ras de organização mais complexas. Neste contexto , as operações de sacralização envolvem sobretudo o meio natural e os pro cessos de reprodução da espéc ie humana . A atividade religiosa está , assim , vinc ulada a uma dete rminada ecologia (certas correntes de invest igação têm privilegiado a observação da religião enquanto fo rma de adaptação dos grupos humanos ao meio natural). A nat ureza é vista , assim, como habitação de outros seres que a 2 Os rituais de passagem são ac õcs simbólicas protegem e que é necessário tornar favoráve is à vida humana. A vida e comunit árias, part icu larm ent e present es nas soc iedades t radicionais, pelos quais, por meio de humana, num contex to de agrupamento, necessita de códigos míniacões simból icas, os membros dos agrupam entos mos de con duta comum. A principal atividade ritual e os mais imporhu manos ace dem a condiçõe s soc iais e a formas de tantes interditos enraízam-se nesta dupla experiênc ia. integração dif erenciadas. Estes rituai s organizam a É possível enquad rar num conjunto de quatro zonas do mundo da

vida os rastos da at ividade religiosa. São quatro zonas da experiê nc ia de «passagem»', conte xtos de intensa prática de rit ualização (rituais de nascimento, ritua is de casamento, rit uais inic iáticos , rit uais f unerários).

transição dos indivíduos para um st atus diverso: idades da vida, grupo ou classe, acesso a um saber ou a um poder, etc. Nesta diversidade. podem apresentar-se mais sob a f igura de rituais de inic iação. de instituição, de purifi cação ou renascimento.

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Em alguns modos de class ifica r estes agrupamentos humanos, enfatiza -se a condição igualitária dos seus mem bros. Isso deve-se ao facto de não enco ntr armo s as hierarquias e estr utu ras de diferenciação que se descobrirão mais tar de, em socie dades mais comp lexas (nessas encon t ram- se diferenças de casta , de clas se socioeconóm ica, de grupo prof issional, etc.). Nas sociedades pré-agrícolas, também subs istem dife renças . Mas elas dizem respeit o sobretu do à diferenciaçã o de sexos e de idades. Os rit os de passagem organizam ao mesmo tempo a separação e a int egração. Por exemplo, o adolescente «separa-se» ritu almente do mundo infant il que o enquad rava para passar à con dição de jovem adulto. Nestas circu nstâncias, o rit ual é o instrumento simbólico que gere a «tr avessia» dessa fron te ira. Os rituais do nascimento exprimem simbolic amente o acolhimento do recém-nascido no agrupamento humano. Em alguns contextos, integram ta mbé m rituais de reinteg ração da mãe, já que o parto a obrigou a separar-se das atividades correntes do grupo, ou rituais de pur ificação, uma vez que o parto pode ser visto como veiculo de impureza e meio de co ntaminação. Os ritos matr imoniais são expressão de dinãmicas sociais dec isivas na constit uição dest as soc iedades . Est e modo de vinculação exige que no par humano, um seja exterior ao grupo base, home m ou mulher (consoante se t rate de sociedades pat rilineares ou mat rilineares). A antropologia social modern a descob riu nessa din âmica soc ial a recorrência do ta bu do incesto , con sistin do num conju nto de normas e interditos que visam estas tra nsações orden adas entre mulheres e homens oriundas de grupos famil iares dist intos. Estas for mas de const it uir novas unidades familiares - muito diversifica das histórica e geograficamente - foram determina ntes para a eco nomia e a polít ica nos agrupamentos humanos mais ancestrais. Também as formas de rit ualização desta experiência se processam por via de um duplo movimento a desvincu lação do grupo de origem e a agregação a um novo grupo. Em agrupamentos com um pro cesso de transmissão cult ural mais organizado, isso pode signif icar ser tra nsferido de uma dete rminada linhagem para out ra, pass ando-se assim à veneração de outros antepassados. Para além desta s dime nsões, os sistemas matrimon iais favorece m tam bém uma determinada forma de organização da atividade sexual e reprodut ora, contexto em que se desenvolveram, com f requênc ia, diversas expressões do sagrado mascu lino e fem inino. Os ritos iniciát icos cump rem a fu nção de regular o acesso aos grupos dos adultos, na plenit ude dos seus direit os e obr igações. Esta atividade rit ual huma na teve uma ampla poste ridade na história das socie dades tra dicio nais. A fronteira etária para esta iniciação pode encontra r variações muito grandes. Mas cons iste recor rentemente na passagem por provas que perm item verificar a presença das capacidades necessá rias à vida de adulto em determinado agrupamento humano . Como estamos perante grupos de caçado res e pescadores, as princi pais provas dizem respeito às habil idades necessá rias a essa at ividade. A diversidade dos rit os de iniciação acompa nhará a comp lexificação das própr ias soc iedades. Em sociedad es mais com plexas encontramos ritu ais de iniciação de podem agregar individuos num determ inado grupo mais rest rito , ou rituais que inst it uem alguém numa determinada função, permitindo reco nhece r nele um dete rminado poder e/ou sabe r.

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Os ritos f unerários , nas soc iedades pré-agrárias, cons istem em desagregar o indivíduo def unto do mundo dos vivos para o ent regar ao mundo dos espíritos ou dos ant epassados. Os recursos rit uais são muit o diver sifica dos, mas apont am sempre numa dupla direc ão. Por um lado, a entra da do defunto num mundo além-da -morte, por outro a t ransmissão do seu stotus a um memb ro vivo - a herança que, em agrupament os humanos com escassa cap acidade de acumulação económica , é mais da ordem do estatut ário, ou seja , diz resp eito ao lugar social , que permaneceria vazio se não fosse organizada esta t ransmissão (de sabe res, de poderes, de funções, de técnicas). Os ritos , enquanto modo de com unicação organizado - recebido de gerações ante riores - , permite a proteção dos grupos humanos face ao desconhecido que está para além da morte.

Texto 3

O termo [xamanismo] apareceu pela primeira vez no Ocidente por meio de um relato de um sacerdote ortodoxo russo exilado na Sibéria (1675). Em seguida, foi aplicado a outros povos siberianos, e no f inal do séc. XIX, a fenómenos análogos observados em diversos lugares do mundo [...]. Na Améri ca, entre os ameríndios, o termo traduzido por sharnan evoca, em geral, o f act o de ver, saber e pod er; ou então, quando o xamã tem um papel ant es de tudo te rapêutico, o termo traduz-se por medecine man (índios da América do Norte), curandero (o que cura, na Am érica Lat ina), ou ainda por feiticeiro, uma vez que o xamã pode agir maleficamente (contra os inimigos). Yves Lambe rt - La naissance des religions: de la préhistoire aux religions universalistes . Paris: Armand Colin, 2009, 355 .

Nas comunidades pré-agrícolas , podemos dizer que a ação de índo le reli giosa não é privilégio ou competência específica de determ inado membro do grupo. Deve ter -se em conta que não há «especialist as» do sagrado a «tempo inteiro». No entanto, t alvez ainda no período paleolít ico, num con texto de incremento da compl exidade dos grupos humanos, surgem protagonist as dotado s de um saber-fazer próp rio, que lhe permit e um pr ivilegiado contac to co m o mundo sobren at ural. Ess e saber-fazer concret iza-se , sobret udo, nas experiências de tr anse (ou estados alterados de co nsciência), int erpret adas como mome nto s de com unicação e com unhão com o universo dos espíritos que habitam o meio em que vive a com unidade human a. Os hist oriadores e ant ropólogos chamaram xamã a este mediador do sagrado. O nome deriva da raiz somo, termo usado entre os Tungos, povo siberiano, para designar esse «especialis ta » religioso que tem a arte de dom inar os espíritos a favor da comunida de - na Hist ória Comparada na Ant ropo logia Cultu ral, o t ermo veio a ser aplicado a certos espec ialis tas do sagrado em geograf ias e t empos históricos diversos.

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Texto 4 Os xamãs cumprem o papel de curadores, sábios e conselheiros; os seus poderes dotam-nos de um prestígio que lhes permite mediar e resolver situações de crise por meio da invocação das pot ências sobrenaturais para obrigar, por exemplo, a consensual izar uma decisão em sociedades sem outros meios eficazes para impor qualquer consenso. Francisco Diez de Velasco - Hom bres. ritos, Dioses: Int roducción a lo Historio de los Religiones. Madrid: Edit orial Trct t a, 1995. 65.

A atividade religiosa acompanha a mudança cultural

o f im do Paleolítico Superior - diferenciado geograficamente - sit uar-se-é entre 12000 e 8000 antes da nossa Era. Não é consensua l, entre os investigadores , a necessidade de classificar o período const itu ído por uma fase inte rmé dia (Mesolítico) até ã afi rmação das formas socia is do Neolítico. Mas, em to do o caso , são identificáveis sinais de viragem. As expressões estéticas gravadas nas grutas deixam de ter a prepo nderância anterior. As prime iras tentativas de atividade agrícola por parte de agrupamentos de caçadores-p lantadores, ou o aparecimento de novos utens ílios, como o almofa riz, a mó e as lâminas fa lciformes (com a fo rma de foice), dão testemunho de mudanças de grande impacto . O alargamento das possibil idades técnicas e os primeiros sina is de uma mudança na economia em curso não podiam deixar de afetar as representações simbólicas , agora menos dependentes do vínculo ao meio nat ural - precisamente porque os grupos humanos estão mais autónomos e t êm mais recursos para agir sobre o próprio meio. É este contexto de incremento de autonom ia que vai romper com a unidade cultural dos povos do Paleolítico . A capacida de de desenvolvimento dos recursos, técn icas e formas socia is conduz irá à plura lidade cultural que vai expand ir-se a partir do Neolítico. O Neolítico represent a a af irmação cada vez mais intensa de uma cu ltura agrícola e pastori l . Enxertam-se plantas, cultiva-se de fo rma sistemática, domesticam -se e criam- se animais . Os agricu ltores vivem em localidades cada vez mais populosas. Estamos no cam inho do aparecimento das primeiras culturas urbanas - em Jericó, a investi gação arqueológica iniciada em 1868 por Charles Warren, ident ifi cou vinte e duas fases de urbanização, desde o ano 9000 antes da nossa Era, apro ximadamente. Neste percurso de mudança social , a dado momento nem todos prec isam de se dedicar ao aprovisio namento de alimentos. Num contexto de crescente diferenciação socia l e complexidade eco nómica , há lugar para o ofíc io dos artesãos - oleiros, pedreiros, marceneiros , etc . - , mas também, em algumas cu lturas, para novos especialistas do re lig ioso - sacerdotes e sacerdotisas . Protegidos por muralhas, as novas povoações constituem -se como amb ientes criados pelas sociedades humanas, à medida das suas necessidades, menos expostos à nature za. A capacidade de trabalhar de forma muito mais sofisticada os metais, favo receu a mult iplicação de objetos fun cionais, mas também decorativos. O acesso diferenciado a joias, armas, ferramentas e outros instrumentos, int roduz

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------------ - - - - - - - - - - - - - - , dife ren ças signif icat ivas qu e estra t ificam as populações, uma vez que , a posse de alguns destes objetos pode ria estar reser vada ao grupo dos privilegiado s. Algumas representações re ligiosas legit imam est as diferen ças sociais, exprimindo -s e em interditos que protegem e separam diferentes grup os dentro do agrup ame nto huma no. As representaçõe s da natureza con tinuam a ter a primazia no simbo lismo religios o, mas ao espírito da floresta e ao génio do rio vieram juntar-se os deuses ou deusas da fecundidade, dos qua is se esper a benefíci os em mat éria de fert ilidad e dos cam pos e das mulheres. A visão do tempo amp lia-se, a t ranscend ência começa a ser concebida no plano vertical e não hori zontal. Assim , os antepa ssad os do grupo, alguns divinizad os, vêm acrescentar a sua fo rma humana aos esp íritos e génios da natureza. Com uma enorme exub erância, enc ontra m-se mist urad as divindades zoomor fas e divindades ant ropomorfa s.

À diferenciação cult ural corresponderá a variedade das expressões religiosas, onde, não obstan te, é possivel assinalar grandes tendências. Vamos acompanhar a propo sta do histo riador Francisco Diez , que nos sugere uma aproximação a partir de sete eixos est ruturantes:

a) O tempo e os seus ciclos . A criat ividade religiosa nestas sociedades tem uma particular relação com a experiência do curso do tempo. A relação das sociedades humanas com a nat ureza é agora mais complexa. A com preensão dos ciclos que descrevem a vida nat ural é uma das constantes cult urais mais importa ntes: os ciclos da Lua, com uma particular relação com a experiência da fecund idade, os ciclos do sol, determ inantes das formas de organização do cultivo. Neste contexto, muitos dos especialistas da religião são exímios no conhecimento dos solstícios e dos equin ócios e os símbolos religiosos estabelecem uma corr espondência entre a harmonia cósmica e a coesão social. Este dinamismo cultural será favorável à afirmação de crença s em divindades que têm um determinado lugar no fun cionamento da engrenagem cósmica . b) A previsão . O desenvo lvimento das sociedades agrícolas está associado à sua capacidade de previsão. O conhecimento dos cic los naturais, por um lado, e a capacida de de entesouramento resulta nte do processo de sedentarização, por outro, dotam os grupos humanos de mais capacidades para projetar o seu futuro. Não é de estranhar que parte da atividade religiosa esteja relacionada com a especial atenção dada aos primeiros f rutos e aos prime iros grãos (primícias), aos de melhor qualidade ou mais resistentes, sobre os quais incidiam interdit os proteto res. As obriga ções de índole religiosa ti nham uma forte art iculação com o sistema económico. Os templos-celeiros dos povos mesopot âmicos dão testemunho desta tran sformação cultural, contexto em que a classe sacerdotal, pela sua t ut ela do sist ema rit ual que estabe lecia a ponte ent re os cicl os natu rais e o tempo social e pela sua prof iciência na adivinha ção ou na construção e utilização de calendários , se tornou uma das inst it uições mais determinantes na manuten ção de uma certa ord em social. c) A Terra, o Céu, o Agua. A Terra, já em sociedades ant eriores, objeto de sacralização, é um cent ro símbolo de grande importância, nas socíedades agrícola s. Dest a cent ralidade decorre a import ância da água e da chuva, bens por vezes escassos, que são objeto de uma explícita atividade religiosa. Deve assinalar-se também o liame simbólico que se est abelec eu entr e a fertilidade da Terra e a experiência de fecundidade e maternídade da mulher. Também a Terra tem um período de gestação, no fim do qual dá os seus f ruto s. Depois da mort e, o corpo é sepultado na Terra, com o que regressando ao út ero que lhe deu vida, alimenta ndo concern entes ao renasciment o ou a uma vida para além da morte. Nest as sociedades abundavam as figurações fe mininas das divindades (as chamadas Deusasmães const ituem o exemplo mais conhecido). Apesar de muitos esforços de invest igação, não é possível, no entanto, deduzir daqui que as sociedades agrícolas pri migénias conh ecessem necessariament e uma estrutu ra matriarcal. ~ mais seguro afi rmar que o papel das mulheres poderia ter configurações diversas nesta s cult uras, sem deduzir da cent ralidade religiosa das repr esenta ções fem ininas um privilégio social para as mulheres. d)O território. A terra fértil e o espaço habita do por estas primeiras sociedades agrícolas constit uem um micro cosmos, cent ro do mundo habitado por uma dete rminada comu nidade humana. Assim as front eiras, as encruzilhadas, os lugares cent rais ou elevados, ou os associados a importa nte s acontec imentos colet ivos, mobilizam a atividade mít ica e rit ual para a criação de uma geografia sagrada. Neste contexto, o espaço exterior ao territ ório do agrupamento humano pode ter conotações negativas, lugar do «out ro» ameaçador - o est rangeiro ou a naturez a não domest icada. e) O trabalho e o conh ecim ento. Nas primeiras culturas agrícolas os seres humanos revelam a consciê ncia de que a sobrevivência está ligada ao t rabalho, na form a como se organiza e como incorpo ra conhecimento. Em algumas das mito logias mais arcaicas, o traba lho pode ser representado como um castigo . Daí que o tempo fest ivo seja, com frequ ência um tempo de intervalo relativamente aos ciclos de t rabalho. Mas o t rabalho, enquanto esforç o sist emático de dom ínio da natureza, incorpora a necessidade de incorp orar conhecimento e t ransmiti r técnicas. Surgem, assim espec ialistas, que respondem a necessidades diferentes destas sociedades: com particula r relevãnc ia, os sacerdotes, que organizam o tempo, os metalúrgicos que produzem objetos, os governant es que gerem a redist ribuição dos excedente s. O traba lho, dos meta lúrgicos, por exemplo , nessa arte de produzir, usando o fogo, é visto como uma capac idade com origens sobrenatura is. A sua arte é o exemplo mais evidente do pode r cri ativo humano, na medida em que acrescenta coisas novas ao mundo natural.

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f) O cereal. A sacral ização da ter ra alarga-s e ao que prod uz. Nas sociedades agrícolas arcaicas, os produtos que resultam do cultivo têm conotações sagradas . Em concreto, encontramos vest ígios de diversas formas de sacralização dos cereais , como a crença em divindades que são representadas em ciclos de nascimento, morte e renascim ento. O ciclo do cereal permit e, ta mbém, pensar o destino dos defu ntos como uma passagem, em ordem ao renascimento. No Paleolítico enco nt rámos já uma intensa atividade simbólica associad a à experiência da mor te, mas ent re as popu lações de agricultores sedent ários os t úmulos tornam-se referências fundamentais na estr ut uraçã o do te rritório da comuni dade, e os mortos são tra nsf igurados em ante passados protetores. As relações alargam-s e, co nst ituindo uma comunidade de vivos e de mortos. g) Solidariedade, festa e sacrifício. As comun idades agrícolas, agora mais co mplexas, com um núme ro mais elevado de indivíduos, necessitam de ter mecani smos para gerir as suas cr ises. Por uma lado, o diferente acesso ao sistema produti vo provoca desigualdad es, por out ro, os pode res tendem a organizar-se de forma hierárquica. A festa , além de outras f unções, pro move a solidariedade. Os acontec imentos festivos prom ovem uma certa redist ribuição de excedentes , alimentando a solidaríedade necessária à partilh a do mesmo t erritório e espaço soc ial. O tempo da fest a soc ializa numa mesma comunhão das divindad es, os antepassado s e os vivos . O rito sacríficia l é o selo da aliança que os envolve e a refe ição festíva o sinal da solidariedade que per mite a vida social - por isso o temp o da fes ta se pode apresentar como uma experiêncía de esbatimen to das diferenças de sta tus que descrevem o tempo restan te.

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2.2. A constituição de tradições e patrimónios religiosos e espirituais Como observámos, durante o Paleolít ico, o mundo tende a ser perce bido como encantado , parceiro misterioso, povoado por espíritos , que convém tornar propícios através de ritu ais. De certa manei ra, o «transcendente» está imerso na nat ureza. Nessa natu reza hostil , onde a sobrev ivência só pode ser colet iva, o indivíduo e o grupo constituem um único corpo. No contexto da mutação neolítica (com a invenção da agricultura e da pecuária) , a partir de novas for mas de organização social , nos grandes vales do Nilo e da Mesopotãm ia, da índia e da China, as comu nidades sedentarizam -se , criando as cond ições para a constitu ição de soc iedade s sem Estado e sem escrita . Por volta de 3000 anos antes de nossa Era, produz- se uma nova mutaçã o. A t ransformação desencadeia-se no Médio Oriente, na Suméria, no crescente fért il e, depois, no Egito. Alguns sécu los depois, acontece rão transformações semelhantes na índia - nos vales do Ganges e do Indo - e na China - nos vales dos rios Amarelo (Huanghe) e Azul (Yang-Tse Kiang). A longa sedentarização da humanidade nessas zonas férteis acabo u pro duzindo efeitos cum ulativos consideráveis: a popu lação multiplicou -se, ao mesmo tempo que as riquezas e os utensíl ios se aperfeiçoaram ; desenvolvem-se formas diversas de produção de artefactos ; a proteção cont ra a natureza melhorou e a segurança das pessoas e dos bens enco ntrou melho res garant ias, sem esquece r esta out ra mudança cons iderável que diz respe ito aos usos da escrita . Todo este conjunto de transformações permite a emergê ncia das cidades-estados e das civilizações antigas . O processo que as ciências soc iais designam de «divisão do traba lho» apresen ta-se muito mais complexo. Ou seja, há uma maior especia lização das funções e dos papéis, uma mais evidente dife renciação das classes e estatutos soc iais. Aparecem, então , como grupos inst ituídos, agricultores, artesãos, comerciantes, guerre iros , sacerdotes e letrados, elites políticas, sobre os quais reina um monarca investido, na maioria das vezes, da pleni tude do poder político, mas t ambém religioso . t este, por exemplo, o caso do faraó, no Egito, e do imperador, na China. Com a chegada dessas primeiras civilizações, as representações religiosas sofrem amp las remodelações . Estamos perant e o nasc imento do politeísmo propria mente dito com as suas hierarq uias de deuses ant ropomorfos - o panteão - , seme lhantes às hierarquias humanas inst aladas nas cidades -estados e depois nos impé rios. O «rei» dos deuses (o Senhor do Alto , na China, Zeus, J úpit er, etc .) é o equivalente ce leste do imperador ter rest re. Este últi mo é, aliás, semid ivino. Ele é para estas sociedades o mediador único ent re o visível e o invisível (como no caso da China e do Japão). No quadro de ta is transformações, o elo orgânico entre religião e sociedade permanece. A religião é mesmo o conjun to de símbo los e narrat ivas que funda m, ou que explicam, a vida coletiva . Correlat ivamente, a sociedade, por meio das suas inst itu ições e do seu poder político, protege e sustenta as instituições religiosas, garante essencial da ordem soc ial. Foi isto mesmo que Emile Durkheim '(1858-191 7), nos pr imórdios da sociologia moderna, descobriu e aprese ntou no seu livro As formas elementares 3 Cf l éxico da subun idade 5 1 da vida religiosa (1912). A partir do co nhecimento disponível sobre as comun idades aborígenes da Austrália, o soc iólogo mostrou como, nas 4 Ver o Significado de «totermsrno» subun idade 5 1 formas sociais tot érn icas", as crenças e os rituais eram indispensáveis à manutenção da coesão do grupo e à sua sob revivência. Como se sublinhou , na composição dos novos contextos geográficos e cult urais, as representações religiosas acom panham as transfo rmações. Estão cr iadas as condições históricas para o desenvolvimento do longo curso das tradições e geografias religiosas, numa relação estreita com a história das civilizações. Seguindo uma proposta do cient ista socia l Henri Desroches" - numa das suas obras clássicas, O Homem e os suas religiões (1972) - , podemos ident if icar alguns dos nós mais dete rminantes, no tempo e no espaço, neste percurso de constituição de tradições religiosas históricas. Das culturas indo -europe ias do terce iro milén io antes da nossa Era, à Reforma protestante no início do séc ulo XVI, propõe-se um olhar de longo curso sobre a memór ia religiosa da humanidade, priv ilegiando a história das civilizações da escri ta e os contextos de emergênc ia das religiões universais no hemisfé rio nor te, sem ignorar que não englobam 'IS, desta forma , todas as culturas e civilizações .

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1) Durante o te rceiro milénio . antes da nossa Era, numa região que parece sit uar-se entre a planície húngara e a báltica, marcada pelas ondas sucessivas das movimentações dos povos indo-europeus, afi rma-se uma relig ião com três t ipos de deuses, ou t rês t ipos de mitologias correspondentes a três fu nções na sociedade, que podem ser vistas como t rês classes sociais: clero, nobreza, e um outro grup o semelhante ao que mais tarde se apelidará de terceiro estado . Est as forma s religiosas e sociais infl uenciaram uma vasta geografia, de Roma à lndla. Ilustração 12. Esquema da s migraçõe s indo- europe ias.

e Chamam os teogonia s aos diversos sistemas míticos e religiosos que visam explicar o se ntido do Universo at ravés de uma narrat iva ace rca da sua origem e formação . A narrat iva, nas religiões polite ístas , pode incluir a genealogia e filiação das divindad es.

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2) As duas bacias fl uviais - a mesopotâmica e a egípcia - foram o palco da oposição ent re teogonias' e de processos de divinização do poder, reis e faraós. Este é o contexto em que, na região mesopot âmica, os reis da dinasti a de Agade (ou Akkad) e o faraó, no Eglto, serão divinizados, ou f iliados numa ascendê ncia divina (cerca de 3200 antes da nossa Era).

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3) Embora muitas das fontes religiosas ten ham origem na classe sacerdota l - t raduzindo o seu ponto de vist a sobre os sistemas religios os -, os historiadores descrevem uma «revolução» religiosa ocorrida no II milénio antes da nossa Era, no Egit o que conduz iu a um alargamento a todos dest a partici pação numa posteridade que reside numa vida além da morte, ult rapassando o «monopólio» da imortalidade concedida aos faraós .

4) No percurso ent re duas personalidades mesopotârnicas, Sargo n de Akkad (cerca de 2334-2279) e Hamurabi (à volta de 1792-1750), deparamo-n os com uma impo rt ante lite ratu ra religio sa em torno dos temas da criação, que inf luenciará outras liter atu ras religiosas na região. Nest e arquivo lit erário desco brimos a Epope ia de Giigamesh, texto que t em sido amplamente est udado e traduzido.

5) O percurso de Abraão, do seu clã, e seus desc endent es - ligados demanda de uma Terra Promet ida e ã promessa de numerosa descendência - , de Ur a Harã, de Harã a Canaã, de Canaã ao Egito, e de volta a Canaã, um itinerá rio que liga o interior do Crescente Fértil, tornou -se a principal referê ncia das fontes religiosas semitas (poderá remeter para o período situado entre 2000 a.C.e 1500a .C).Três religiões universais, o judaísmo , o cristian ismo e o islamismo evocarão este tronco comum, circunstancia que conduz, comummente, ao uso da categoria «rellgl ões abra ãmlcas», No entanto, a expressão não deve iludir, que estas religiões não se referem a essa origem abraãm ica exatamen te nos mesmos termos. à

Ilust ração 16- A migraçã o de Abraão segundo Abraham Orteflus. 1590 .

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lfustraçêc 17: Lâmpada Nishapur, com motivos de ongem védica . séc. XI-X

6) Na lnd la, amplo t erritório muito descent ralizado, a dinãmic a religiosa indo-europeia não deu origem a religiões imperiais, como em Roma. Mas a lite rat ura sagrada dos primó rdios do vedismo aprese nta já formas de represe ntação do mundo muit o estr atificadas, conduzindo a form as socia is de hegemonia, sub missão e separação (o per íodo de maturação deve sit uar-se entr e 26 00-190 0 antes da nossa Era).

7) No Egit o, a refor ma de Amenófis IV (século XIV a.C.), conduz à af irmação de um Deus do un iverso, Aton, que passou a chamar-se Akenaton . Concebia -se , assim, uma religião capaz de unir, para além das diferenças étnicas e linguíst icas. No enta nto , o clero de Amon conseguiu resta urar o sistema religioso anterior, combaten do esta nova religião de pendor universal e místico.

8) Com as tra di ções de Moisés (que t ransportam a memória de aconteci mentos que se situarão por volta de 120 0 a.C.), o Deus da religião ant iga dos pat riarcas - que fazia remo ntar as suas origens a Abr aão - toma um nome, YHWH, e esta belece uma aliança co m o seu povo, na qual a relação com Deus se torn a um vínculo de exclusividade (no Livro do Profeta Jeremias esta aliança será resumida de forma lapidar: «Eles serão o meu povo e Eu serei seu Deus», Jr 32,38).

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9) A instalação dos israe litas nas terras de Canaã veio a cr iar dinâmicas religiosas de contra -acu ltu ração, próprias da sedentarização. A dinâmica religiosa passa por diversas formas de vigilância sobre a fidel idade ao Javismo e de combate às influências religiosas iocais (a partir do sécu lo X a.C.). Neste it inerário, são part icuiarmente influent es os juízes (heróis guerrei ros car ismáticos) e os profetas (especializados em êxtases, e outras experiências simi lares , que não devem ser confundidos com aque les que dão o nome aos livros bíblicos).

10) A organização política dos camponeses e pasto res instalados em Canaã favorecerá sob a dupla referência da rea leza e do Templo. Entre Davi d e Salomão, num contexto de ada ptação às condições da vida urbana e de contacto com as represent ações cananeias de corte divina, a corte real e a corte sacerdotal conheceram muitos benefícios.

Ilustração 20. Sansão e o leão (Jz 14 , 5-7) , em bronze, do

pnncuno do s éculo XIII.

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Ilustração 22. Relevo vonvo com d eus e deusa num trono , sagrado pIa ta no, estatua do par divino e farnüia a faze r uma oferta . c. 200 a C

11) A re ligião helénica deve ser vista co mo um conjunto de cama das diversas (sobret udo a part ir do século VIII a.C), Duas religiões diferentes merecem particul ar atenção: uma que cult iva a or dem, o domínio de si, uma relig ião da cidade que se manifesta em fo rmas de culto cívico; out ra desordenada, marcada por manife stações de ent usias mo exacerbado, de de lírio e fr uição da natu reza. A prim eira organiza-se num Olimpo de Deuses , que inte ressa sobretudo à soc iedade aristocrá tica, deposi tária de culto s fa miliares ancestrais. A segunda está mais presente nos cul tos das divindades da terra f ec unda, onde o delírio é uma força de comu nhão e de libertação. Um certo mist icismo pessoal veio a ser canalizado para o orf ismo, que anuncia as futuras «religiões dos mistérios».

12) O bramanismo, na fndia, co nst it uiu-se como uma re ligião do sac rifício (ent re 1000 e 500 a.C). Na origem dest e nome estão co mentários à arte dos sac rifíc ios, co mo o centro da at ividade religiosa. Numa t radição religiosa assi m, os sacri f icadores, a cast a sacerdotal, ganham proem inência . Nos Upanixades' , encont ramos est a visão sacri fi cial aplicada aos iti nerári os da alma na busca de sua absorção por Brama , enqu anto mei o de escapar aos cic los de transrnigrac ão.


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Hust rac ão 24 ícone com cenas da vida do profet a Elias, Vologda , séc ulo XVI.

13) No contexto do mun do bíblico , profetas, como os que deram o nome aos livros bíblicos, cr itica m as inst it uições da realeza em nome da necessidade de interiorizar da lei e da reafirmação de Deus como única autoridade - a partir do sécu lo VIII a.C.. Esta dinâmica, interior ao javismo, transporta a resistência face à sua tra nsformação em religião de Estado, com as suas lit urgias sacrificiais.

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14) Como o ant ropólogo Marcel Mauss observou, o sécu lo VI, antes da nossa Era, foi um séc ulo de prof undas trans forma ções no mundo antigo . Num século de grandes mutações encontram os uma ampla transformação das trad ições religiosas, numa diversid ade grande de geografias: novas form as de profet ismo em Israel, o zoroastrisrno", o jainisrno", o budismo, o orfismo" , etc.

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15) A refor ma de Zoroast res (ou Zarat ustra) aproximadamente 618-541 a.C. - tal como se descobre nas escri turas sagradas Zende -Avesta, na ant iga Pérsia, correspo nde a uma dinâmic a religiosa de abandon o das aristocracias divinas e de procura de um Deus soberano e ju st o, que condena a opress âo.

16) O Budismo, nos seus de senvolvimentos a partir do século VI a.C., repres enta outr a inovação religiosa no longo curso das trad ições religiosas. Trat a-se de uma tradição, sob a fo rma de vias de aperfeiçoamento, onde não há lugar para um Deus ou um Ser Supremo. Trata-se de uma reforma religiosa que é t ambém uma ref orma soc ial, uma vez que o sacerdócio como casta cederá lugar ao monaquismo sem castas. Tendo como pátria a fndia, o budismo expandir-se- à no Ext remo Oriente .

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Hustracêo 26: Representação do profeta Iraniano Zaratustra, Doura Europos (Siris), século III d C.

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17) As doutrinas de Confúcio (aproximadamente 551 - 479 a. C), contem porâneo de Buda e membro da classe superior na China antiga , veiculam uma religião ét ica valo rizadora da retidão pessoa l e do exemplo dos antepassados. Confúcio, fi lósofo e políti co, advoga conceções morais e religiosas promo toras de uma soc iedade orde nada, em que as relações e as diferenças socia is são reguladas por cer imon iais e protocolos.

18) O taoísmo, part icularment e implementado por Lao-tsu , ou Laotse (tradicio nalmente sit uado entre os séculos VI e VII), opõe -se à religião buroc rát ica. t: uma tradição de pensamento qu e reage às formas religiosas que perpetua m o lugar dos privileg iados . Tai como o budismo, não faz acecão de «castas ». Os seus ritua is espirit uais, dietét icos , respirat órios, sexuais, conduzem ao Tao, a Via que se identi fica com a Força cós mica universa l num êxtase imortalizante - o livro Tao-te Ching é a fonte princ ipal dos ensiname ntos tao istas . Desempenhou no mundo oriental, enquanto espir it ualidade que valoriza a experiência pessoal, um papel similar ao orfismo e às religiões dos mistérios no mundo helénico.

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19) A t raje t ória de d ife renciação (o Pequeno e o Grande Veícu lo) no interi or do budismo, entre o século I a.C. e o séc ulo I d.C., conduzirá a aber tura desse património es pirit ual a out ros mod os de vivência, pa ra além das formas comu nitárias monástica s. As doutrinas do Grande Veículo t rad uzem a abert ura da tradição bu dist a a outros estilos de vida, que não se esgotam já na fi gura do «mendigo» it inerant e ou do monge sepa rado nu ma comunidade de devoto s:

20) Entre 163 a.C. e 135 d.C, a Palestina viv e uma tran sf orm açã o religiosa marcada por regim es de ocupaç ão e dinâmicas de resistên cia. Est a expe riên cia favoreceu o interesse por corre ntes apoc alípt icas e por doutrinas qu e respondem melh or à situação de populaçõe s sem sobera nia polít ica. Num a tram a social muito complex a, enc ont ramo s grupo s de guerri lheiro s mess iânicos , comunidades separadas em lugares des érti cos (na expect at iva da real ização a última palavra de Deus sobre o mundo), movim entos de int eriorizaçã o e «quoti dianização» da Lei (distante s da religi ão do Temp lo e do sac rif ício). Encontramos t ambém J esu s e o seu movimento, que relativizando quer o Tem plo - e suas inst it uições - q uer as espirit ualid ades cent radas no cum primento de prescrições relativas à pu rif icação legal, se apresenta como um caminho de gra nde exigênci a quanto à retld ão pessoal na relaçã o co m os se melhantes - o «outro» é agora o lugar do ma is im port ant e encontro co m Deus . A pregação de Jesus expandir-se - é na rede judaica fo ra da Palesti na e nos princ ipais nós do Império rom ano. O ju deo- crist ianism o co nhecerá a transformação de uma me nsagem prime irame nte vista co mo realização da esperança de Israel num evangelh o para t od o o mun d o co nhec ido. Pauio de Tar so é um dos protagonist as desta un iversalização cristã .

21) Quase ao mesm o t empo, o budis mo conhece uma grande expansã o na China, co mbinando-se com as expect ati vas de tao ista s de uma religião de salvação alte rnat iva à religião do s Esta dos e do s Impé rios . As relações milenares do budi smo com o pod er e instituições impe ria is con hecerão fases diversas, ent re a tolerân cia, a repress ão e a ccl aboração.

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22) A expansão do cristianismo no Império romano , ent re o sécu lo I e IV, con hece as difi culd ades próprias de uma religião que não está do lado das est rut uras de pode r, mesmo se não as afro nta diret amente . Exprim indo- se como religião de uma adesão pessoal a Deus, num regime de exclusividade, os cristãos to rnar-se-ão objet ores de consciência perante o dever cívico de participar nos ritos do Impé rio. O alargamento do universo dos cristãos a t odas as classes sociais, incluindo, a aristocracia romana, criou as con dições necessárias a uma int egração do cris tian ismo no próprio Impéri o. O imperador Constantino, ao conced er libe rdade de religião, criou as cond ições necessá rias ao pleno desenvolvi me nto do cristian ismo, percurso que t erá o seu ponto culminant e com o im perador Teodósio , que fa rá do cristian ismo a religião do Império.

23) O Império Romano divide-se ent re o Oriente e o Ocidente (após a mor t e do im perador Teodósio em 395). O segundo veio a sucum bir perante as mov imentações dos povos chamados «bárbaros». Com a queda de Roma, como cent ro imperia l, o núcleo gravitacional do c ristia nismo passa para Consta nti nop la. No Ocide nte, num perc urso de cristianização dos reinos dito s «bárbaros», Carlos Magno pro moverá a rest aura ção do Império apoiado na convicção de que a unidade religiosa seri a o cime nto dest a rest aur açã o. Est avam criadas as condições para a penetração do cristianismo na Euro pa saxó nica .

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24) Contemp orân ea à expansão do cri st ianismo no Ocidente, uma religião universal se af irma, visando a união entre Oriente e Ocidente, reunindo numa narr ativa religiosa

os test emu nhos de Zoroast ro, Buda e Je sus Cristo . ~ a religião de Mani, ou Manes, co m orige ns na Pérsia (21 5 275). Pode se r vis t a co mo uma deriva do cris tia nis mo, co nde nada nos co nc ílios da Igreja Ant iga, carac te rizada por extremar um a visão dualista do mundo, gerado no co nf ront o entre a luz e as t revas. Os ideais de purificaç ão anu nc iados por Mani visam resgatar o mundo do seu carácte r intrinsecamente mau (a expressão maniqueísmo acabou por t er o sentido gené rico de visão d ualista da realidad e). Apes ar de uma extra ordinári a expansão para Oriente e Ocidente, a sua histó ria pode mostrar-nos qu e as t radições religiosas ta mbém morrem.

25) No te rreno cristão, encontramos dive rsos it inerários de pluralização int ern a. Alguns co nduzi rão à d iss idê ncia (as chamad as heresias" são a express ão ideológica da dissid ência). Outros, como é o caso do monaquismo" , afirmar-se -ão como fo rmas plura is de vive r a tr adição cristã - a par t ir do sécu lo IV. A Síria, o Egito, o Nort e de Áf rica, to rnara m-se o primeiro foco da sua expansão . Mais t arde, o

apa recime nto da s Orde ns Mend icantes irá adeq uar a out ros t emp os o esp írito de radicalidade evangé lic a que ca rate riza o mo naqui smo.


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26) Entre duas «superpotências», Bizâncio e Pérsia, alimentado por antigas esperanças mess iânicas e pelo fervo r mess iânico , o apa recimento do Islão é um dos mais importantes acontecimentos do primeiro milén io da nossa Era - Muhammad (Maomé) terá nasc ido à volta de 570. Trata -se de uma relig ião teocrática e iguali tária , com fo rtes expressões místicas, mas apresenta ndo tam bém um fort e ímpet o missionârio - embora estes aspetos se com binem de formas diversas segundo as suas próprias diferenças internas. Conheceu uma rápida expansão . Nesse itinerário encontrou -se frequentemente perante a cristandade, quer em contextos de tolerância e diálogo, quer em contextos de te nsão e conflito .

27) Baseada em cultos de deuses ances trais, o Shinto (xintoísmo ou sinto ísmo) afirma-se no contexto da chegada do budismo ao Japão , no sécu lo VI. A sua natureza eclética perm itir-Ihe-á recombinações diversas com as tradições religiosas que chegam até ao Japão. Cultos fam iliares e cultos da nat ureza co mbinam-se em t eat ralidades ritua is, que acompanha rão as comunidades japonesas até ao seu desenvolvimento indust rial. Ent re 1868 e 1946, será a época do xinto ísmo de Est ado, uma vez cons tituído religião of icial do Japão.

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28) A cristandade ocidenta l conhece mais uma etapa decisiva, com a refo rm a pro movida por Gregó rio VII - pontif ice romano ent re 1073 e 1085. São tempos marc ados por revolt as diversas de grupos de camponeses. A refo rma visava fo rtalecer o poder do Papa e mo ralizar o cíero. Mas esta refo rma interi or das instit uições ecle siásticas é acompa nhada, em diversas geografias europeias, por movimentos de contestação que, de alguma for ma, anuncia m a refor ma protestante. Mais tarde, já no s éculo XVI, o movimento de Tho mas Münzer" será o princ ipal herdeiro destas lutas de camponeses.

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29) A geografia isl âmica con hece a sua mais import ant e ramificação, o Islão sunita e o Islão x iita. A rami f icação encon tra nas int erpret ações conce rne ntes à sucessão do profeta Maomé, após a sua morte em 632, o princ ipal lugar de co nf lito. Hist oricament e os xiitas representa m, em par ticular, a tra dição de um Islão persa. Os sunitas t ransport am, sobretudo , uma herança árabe. 30) Também as Igrejas con hece m uma rutura determinante para o fut uro da crist andade, no sécu lo XI. Questões de divergência dout ri nal e contrast es quanto à f or ma de pensar o governo, a organização e a comun hão das Igrej as t ranspo rtam as antiga s lutas pela hegemonia im perial, que apro fund arão uma divisão entre o cristianismo ocidenta l e orienta l, que permanece até hoj e.

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31)O tempo da lut a entre duas religiões universais t inha chegado. Duas for mas de pens ar a «sant idade» da guerra se confrontam : o Islão t inha chegado até às fronteiras da cris tandade, insta lando -se mesmo em alguns dos seus centr os; a cr istandade mobiliza-se para as Cruzadas, com o fito de liber tar o coração da sua memóri a, Jerusalém (estas expediç ões acontece rão ent re os séculos XI e XIII). O sucesso deste desígnio foi escasso. Foi poss ível conter o avanço da hegemon ia muçulmana e, em alguns casos , repor fronteiras por meio da «reconquista cris tã ». Ocristi anismo orienta l, em razão da expansão islâmica, em várias fr ent es, conheceu uma profunda modificação da sua geografia . Para Oriente, pela via do Leste europeu , a expansão do cr isti anismo estava bloq ueada. O ciclo de expansão seguinte seguirá as rotas do atl ânt ico, abri ndo um outro ciclo de conhecimento da diversidad e religiosa da humanidade. Na chamada África negra, nas Américas, no Ext remo-Oriente, uma nova história de transações e choques culturais irro mperia.

32) A Reforma protestante do século XVI, neste longo curso da história religiosa do hemisfério nort e, pode ser apresent ada como a últi ma grande transformação. Na Alemanh a, na Suíça, na Inglaterra, na Escócia , ent re outro s espaços europeus , af irmam-se personalida des e movimentos reformi st as que conduzirão à fr agmentação da crista ndade ocident al. A Europa conhecerá um percurso de difer enciação confessiona l que, gross o modo, pode rá ser visto a part ir de um eixo anglo- saxónico, prot est ante e reforma do, e um eixo lati no, preponderantemente catól ico- romano. Abrin do um amplo espaço para a dif erenciação religiosa , esta Europa moderna conh ecerá fo rmas sociopolíticas que conduzirão à af irmação e prote ção das liberd ades individuais, quadro cultu ral que favorecerá quer a individualização religiosa, quer a mult ipli cação de of erta s religiosas e espirit uais - ainda que numa cultu ra marcada pela unidade e pluralidade da memó ria cristã .

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2.3. O que é uma tradição religiosa? Num sentid o ant ropológico, falar de tradição implica ident if icar ideias e comportamentos que são tr ansmit idos entre indivíduos e grupos e que est ão dist ribu ídos amp lamente no espaço e no tempo. Por isso, a t radição implica sempre difusão (espaço) e transm issão (tempo). Na med ida em que a at ividade e o pensamento religioso constituem mundos com plexos de signos e senti dos que se inscrevem na história, se organizam ou propagam no espaço, se enraízam em formas de sociab ilidade humana, produzem inst itu ições e materialidades e se tra nsmitem de geração em geração, criam t radiçõe s que se inscrevem na duraçã o e permitem a comunicação dentro de um certo espaço geográfic o e social. Esta ideia de tra dição não nos deve fazer incorrer na suposiçã Ode que as tra dições são conj untos cultura is totalmente homogéneas - as t radições têm tensões dent ro de si - , ou na conclusão fácil de que a manutenção de uma trad ição depende apenas das estratégias de conservação . A t radição permanece porque é capaz de integrar novas experiências - de uma língua diz-se que está mo rta por não poder integrar, através de falantes, a cria tividade própria das culturas. necessário ultrapassar o preconceito que o senso comum assoc ia à ideia de tradição a estag nação ou resistência à mudança . É

A religião pode mesmo ser vista como um conjunto de símbolos e processos que, nas cul turas, t em um particula r protago nismo na gestão da tradição. Podemos ident if icar alguns dos «lugares» em que a ativ idade e pensamento religiosos se tornam determinantes na const ituição de tra diçõ es cultu rais.

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origem aqui pertinente not ar que grande parte das religiões histó ricas conheci das se refere a uma origem . Nomear uma origem é referir-se a algo que instaura uma novidade , um ponto de referência (Moisés e a Lei, Jesus e o mandamento novo, o Sermão de Benares, a Hégira, etc.), A at ividade simbólica religiosa acom panha esse tece r da memór ia de uma cultura. Recordem-se as obse rvações de Érnil e Benveniste sobre uma das possíveis etimologias de religião, re-tegere: tornar a ler, colher de novo, voltar a uma tarefa, retomar os elementos e sinais disponíveis com vista a uma reflexão . Não há universo religioso que não se refira a um material simbó lico recebido, a uma herança legada, a uma memór ia que solidariza o passado e o presente, contribuindo, assim, para diminuir os riscos do transitório ou da mudança agressiva. Neste sentido, a crença religiosa cr ia um espaço de comun icação , onde o crente é chama do a responder a um patr imónio recebido , feito de valores , imagens e narrativas: ser religioso, é pois, neste sent ido, saber-se e sent ir-se gerado. É

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Os «mestres» da religião Em muit as das trad ições religiosas conheci das, descobrimos a irnport áncia de sáb ios , mestres, profetas, reformado res que, em det erminado context o, deram um sent ido novo às ideias que receberam e pro puseram novas or ientações para a arte de viver. É, assim, funda menta l ter em con ta que não há religião sem «mestres da religião», ou seja perso nalidades de índole diversa que, pelos seus gestos , pelo seu pensamento e ensi no con t ribuíram decis ivame nte para a constituição de determ inada trad ição.

As Escrituras sagradas como património As «escrituras sagradas» na história religiosa da human idade t raduzem a memória de uma artic ulação entre o «ver», o «ler» e o ( ouvir».

Entre a estatuária egípcia , greco -romana ou meso potâm ica e a lite ratura védica , bíblica ou co ránica existem, antes de mais, dife rença s de percecão. A imagem sed uz o olhar, impõe- se à com unicação sensorial. O texto exige o esfo rço da penetração, favorecendo a emergência de comunidades de senti do, grupos humanos que encontram, na histór ia da passage m da oralidad e à te xtu alidade, a memó ria de um tra balho persc rutador dos grandes enigmas da existência humana. Em algumas t radiç ões religiosas , a interdição da imagem está ao serviço da t ranscendência do divino - adiando o ver, favo rece -se o t empo do con tar, do recitar, do narrar. A história das expressões religiosas huma nas está, por isso, int imamente ligada à história da comunicação . Falar de «escrituras sagradas» im plica cons iderar que elas nascem de tradições orais anteriores. Mas essa oralidade não está relaciona da apenas com a arqueologia do texto, diz respeit o à sua pró pria necessidade de cont inua «at ualizaçã o». Em mu itas tradições religiosas , os te xt os sagrados são recitados, proc lamados, cantados, venera dos , rit ualizados em cená rios religiosos diversos, suscit ando a escu ta crente. Para os crentes, são textos que atuam, hoje , nas suas vidas. Na medida em que determinada expe riên cia crente se torna let ra, narrat iva, livro, ela ganha novas opo rtunida des de t radu ção e, torna ndo -se por tá t il, pode viajar para co nte xtos diferent es daque les que conheceram a sua génese . As «esc rituras sagradas » perm item que determinada experiênci a religiosa se torne testamento, autorizando a cons t ituição de tradiçõ es de leit ura em to rno de si e susc itando a sua ap ropriação lite rár ia, plást ica, performativa, musical, entre outras . Não será por acas o que em m uitas culturas, alguma s das mais esti madas expressõ es esté t icas resu ltam do impacto do tex to sagrado nesse t rabalho de t ransfo rmação poét ica do mundo .

• llustrecão 46 Uma antiga versão do Alcorão no Museu Americano de Hist ória Natural de Nova Iorque.

O que se crê É difíc il fala r de uma tradição religiosa e espiritua l sem ident ifi car um co nj unto de representações fu ndamentais que são objeto do cre r. Elas dizem respe ito , com muita frequênc ia, à nom eação do que está para além da noss a experiência senso rial, ou dos limites est ritos da raciona lidade do nosso quotidiano: divindades e outras ent idades esp irituais , co nceções diversas acerca da origem da vida, do além-da-morte, do destino do mundo, etc . No entanto, nem todas as tra dições ou mov imentos religiosos têm, em sentido próprio, um «credo», ou seja uma declaração sistema ti zada daquilo em que acred ita m. Em mu itos casos , esse univer so de crenças descobre-se nas prát icas por exemp lo, ritua is e orantes - e na forma como se organiza a vida das comunidades .

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Festas, ritos , formas de comunicação orante, observâncias e civilidades

Nas t radições religiosas encontramos calendários que organizam o tempo, que permitem viver segundo ritmos diversos: a organização do t empo em «eras», a vivênc ia cíclica do curso do tempo, comem oração de acontec imentos marcantes ou ext raordinários, etc . Tem uma particu lar import ância a experiência do tempo fest ivo, que rompe com a monotonia do quot idiano, abrindo-o a outras dimensões da experiência humana, como a dádiva, o jogo ou a fu são numa alegria co let iva - o tempo festi vo perm ite experiências que não são possíveis nout ros momentos do tempo das soc iedades. O tempo festivo desc reve-se, também, pelos seus rituais . O ritual , seja vivido individualmente ou de forma comun itária , é uma linguagem receb ida, que permite, assim ao indivíduo e às comunidades a integ raçã o numa corrente de vida . Os ritua is têm uma força social muito grande, no que à cons t rução das identi dades diz respeito. Os rituais assinalam momentos de co meço ou t ransição dentro das tra dições, investem pessoas em f unções ou int egram-nas em determinados grupos e perm item uma particular comunicação co m a t ranscendência. Não é raro que determinada comuni dade não cons iga descrever de forma clara e dist int a as razões pelas quais realiza um ritua l. A ativ idade ritua l é produt ora de muito do que descreve uma t radição religiosa como cultura mate rial: mobiliário religioso e outras produções plást icas; construções monu-

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menta is; criaçã o musical e lite rária; símbolos inscr itos em diversos suporte s mate riais; gestos ce rimoniais (os ritos organizam o corpo de det erminada forma). Assoc iados ou não às açõe s rituais, import a co nsiderar os modos de comunicação orante, dando a import ãncia devida às formas postura is que, em muitos casos, são determ inantes na identificação de uma dada t radição religiosa. A oração é uma das linguagens especi f icamente religiosas. Em muitas trad ições religiosas, ela acompanha, de forma mais espontãnea ou mais regulada o quotidiano dos crentes . Esse quotid iano pode ser habitad o também por obse rvãnc ias que vão organizar as civilidades que descrevem uma determ inada tr adição religiosa ou certas comunidades dent ro dela: hábi to s alimenta res, civilidades relat ivas à indumentária, prát icas relativas ao nascimento, ao casa mento e ao acompanhamento do s mortos . Este é o contex to em que é por vezes difícil dist inguir se ta is civilidades têm origem numa memória religiosa ou se se enraízam, de fo rma mais com plexa, noutras dimensões da história de uma comunidade crente . Como const it uem o aspeto mais visível, sob o ponto de vista social, esses «sinais» são perc ebidos, pelos que são exteriores a essa trad ição, como aquilo que os dist ingue. Não raro, são essas prát icas que conduze m à const rução soc ial de est ereót ipos ou até a formas de descr iminação difusa ou organizada.

Implantação, formas de pertença, tipos de comunidade ou associação e divers idade interna É próp rio de uma t radição que ela tenha uma determ inada geograf ia. Ou seja, que se ten ha cons t itu ído e desenvolvido num determinado territó rio. É possível, por isso, fazer um mapa das t radições religiosas ao longo da sua história. Essa geograf ia ajuda a com preende r aos t raços próprios das tr adições religiosas . Traços que diferenciam as religiões dos povos do dese rto, das cidades , das sociedades camponesas, das populações marít imas, de povos nómadas ou sedentários. Mas t ambém é necessário dizer que as trad ições religiosas transforma m o te rritório. Na medida em que determ inada tr adição se distribuiu no espaço, ela deixa um rasto na paisagem. Não apenas um rasto arquitetón ico e monumental. Porque as t radições conse rvam uma dete rminad a forma de compreender o meio, social e natural, influenc iam o modo com o os grupos human os agem sobre o seu meio. Por outro lado, as próprias narrati vas religiosas vivem da mem ória de lugares, muitas vezes institu ídos como «lugares sagrados».

A t radição descreve-se t ambém a parti r das formas de pertença . Viver dentro de uma t radição religiosa implica formas de nela nascer ou entrar, ser aco lhido, iniciado e inst ruído. Mas pode implicar t ambém formas de dela ser excluído. A história mostra que as t radições também se expandiram com o recurso a estratégias de domínio e imposição. Converter-se, ser socializado ou iniciado, podem ser modos diversos de fazer parte de uma corr ente religiosa. Dent ro dela, podemos encon t rar formas mais igualit árias ou mais hierarquizadas de organ izar a perte nça.

• Ilust ração 49 : Basílica da Santfssirna Trindade, Santuário de Fátima, Cova da Iria, Fátima A bastllca. obra do arqurteto Alexandros N Tombaz is. tem uma forma circular FOI edificada com doze portas latera is, uma por cada um dos Apostolas , e emda uma porta central, a Porta de Cristo Os painéis superiores laterais e a Porta são obra de Pedro Calapez e as portas de vidro de Joe Kelly O templo fOI dedicado em 2007 e elevado a Basrhca em 20 12 http.z/www.fatt ma pt!

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Lideranças, autoridades, institu ições As trad ições relig iosas desc revem-s e, como se viu anter iorm ente, segundo determi nadas forma s de agru pamento, associação e comunitarização, a que correspondem modos diversos de recon hecimento e exercic io da autoridade: assembleias de representantes, sacerdo tes, profeta s, mest res espirituais, lideranças religiosas e polít icas. etc . Grande part e das t radições. grupos ou movimentos religiosos tem dent ro de si papéis e desempenhos diversos - o que tecnicamente a sociolog ia chamou a «div isão do t rabalh o religioso» - em ordem à preservação dos ritu ais. à interpret ação das font es religiosas, à orient ação e ensino, à aju da pessoal. à formação e/ ou iniciação religiosas, à representaçã o pública, à regulação dos processos de decisão. etc. Desde f unções e serv iços mais estruturados até aos menos formalizados, pode encontra r-se aqui uma enorme diversidade.

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2.4 As funções sociais da religião A criatividade social da religião Com fre quênc ia, pensam os a religião apenas como uma determinada forma de c omunicação com a tra nscendência, esquecendo que , como sub linhou o soc iólogo, a atividade religiosa tam bém está orientada para a transformação do «mundo». Neste contexto, é import ante não perder de vista que as religiões tomam parte do pro cesso comp lexo de construção social . Mesmo considerando que a at ividade religiosa pode abr ir as soc iedades na dlrecão de algo q ue as ultrapassa é necessário não per der de vista que ativi dade religiosa tem, tam bém, a sua cri at ividade social próp ria. Essa cr iat ividade pode exp rimi r-se so b fo rmas mu it o divers as, por vezes con t rast antes, em contextos históricos dive rsos . Thomas O'Dea (1915-1974), que se ocu pou des tes est udo s na Universidade de Harvard, escreveu acerca desta paradoxa l criat ividade social:

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[A religião] identif ica o indivíduo com o seu grupo, apoia-o na incerteza, consola-o na deceção, liga-o aos objetivos da soc iedade, aumenta o seu moral, e lhe dá elementos de identidade. Procura reforçar a unidade e a estabilidade da sociedade, ao apoiar o controlo socia l, ao ampliar os valores e objetivos estabelecidos, e ao dar os meios para superar a culpa e a alienação. Pode também desempenhar um papel profético e revelar-se uma influência perturbadora e até subversiva em qualquer sociedade [...]. Portanto, a religião pode ser, não apenas um fator que contribui para a integração da sociedade, para a realização dos seus objetivos e fortalecimento do seu controle social. Pode ser apenas um fator que contribui para o moral e o equilíbrio de personalidades individuais. Pode ser também, desintegradora - uma causa de tensão e confl ito (individual e social). Thomas O'Dea - Sociologia da religião. Tradução brasileira do original inglês. São Paulo: Livraria Pioneira Editora, 1969, 28. 146.

-- - - - - - - - - - - - --------- - - - - - - - - - - - l o probl ema das funções sociais da religião habitou grande part e das inte rrogações que os primeiros cientis tas sociais perseguiram. Para Érnile Durk helrn", para conhecermos as estru t uras religiosas de uma socie dade temos de chegar a compreender as funções que preenchem nas sociedades. Para este sociól ogo, se encontr amos em dada soc iedade certas narr ativas religiosas é porque elas respondem a dete rminados problemas que se experiment am. Mais, essas narrat ivas permitem descobrir as ideias part ilhadas que permitem às soc iedades terem a consciência de si como coletividade. Durkheim mostrou isto, de forma part icular, no seu est udo sobre as sociedades aborígenes da Austrália , cujas conclusões encont ramos na obra As formas elementares da vida religiosa (1912). Em contraste com cert as tendências que viam a religião apenas como ref lexo das estruturas sociais (como legit imação dos poderes, justificação dos interditos, fundamentação de uma certa orde m social, etc .), o soc iólogo alemão Max Weber" proc urou most rar, no final do século XIX que as muitas dimensões da atividade e pensamento religiosos foram det erminantes nas mudanças operadas, na história humana, nos domínios da economia e da política, no desenvolvimen to de siste mas de valores, na prod ução de linguagens est éticas, etc. por isso, Max Weber falava da orientação intra mundana da atividade religiosa . Como exemplo, devemos recordar que o sociólogo alemão procurou mostrar, em A ética protestante e o espírito do copitolismo (1905, 1920),a existê ncia de uma correlação entre a doutrina calvinista da salvação e a emergência hist órica do capit alismo - neste caso,

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Weber proc urou mostrar que uma determinada doutrina religiosa conduziu o crente puritano calvinis ta a proc urar na sua vida os sinais de uma salvação oferecida por Deus, tornando -o socia lmente muito ati vo e economicamente empreended or.

a antropólogo polaco, residente em Inglat erra, Bro nisl aw Malinowsk i" pro vocou uma autêntica revo luç ão no domín io do estud o das funções sociais da reli gião. Ent re 1914 e 1918, Malinowski resid iu ent re os povos das Ilhas Trobiand (Papua - Nova Guiné) desenvolvendo um estudo etnográfico em moldes ainda nunca experímentad os. Em 1922, ele publ icou uma obra que se tornou uma das mais important es, no século XX, no dom ínio das Ciéncias Sociais: Os argonautas do Pacíf ico oc idental. A partir de uma metodologia de observação participante, Malinows ki abandona aquela que era a grande paixão evolucionista da época - conhe cer as origens das institu ições soc iais - e dá uma total primazia ao interesse pelas funções soc iais das instit uições sociais e, entre elas, as religiosas . Na ótica dest e antropólogo, acerca das origens das instituições soc iais apenas se pode especular. Se queremos com preen der as soc iedades humanas, devem os perceb er a que necessidades respondem as suas diversas instituições. Por exemplo, no século XIX, muitos intelectuais encadeavam numa linha evolucio nista a magia, a religião e a ciência, j ulgando que cada uma dessas for mas de ac ão e pensament o corres ponderiam a está dios de desenvo lviment o progr essiva mente uit rapassados. Malinowski, most ra como, nos povos qu e estudo u, a magia, a religião e a ciência co exist em envoivendo as populações autócton es em momentos diferent es da sua vida individ ual e coietiva. Assim ele conclui que magia, religião e ciência respondem a problemas e necessidades diferentes. a ant ropólogo procur a mostra r que a religião existe, nas populaçõe s que estudou , para ajudar as pessoas a enf rentar certos problemas concretos da sua existênc ia, as diferentes t ragédias da vida humana - em particul ar, a exper iência mais t rágica de todas, a mor te.

Estes autore s doc um enta m, assim , o modo como as Ciências Socia is olham para a religião, valo rizando as suas funções soc iais . Podemos elencar algumas da s mais decisivas funções sócio-s imbó licas e assinalar alguns dos rastos dessas funções nas sociedades .

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Esta indagação acerca das funções soc iais da religião perm ite estabe lecer uma particular relação entre as tradições religiosas e a organização das «estruturas de acolhimento», tã o dec isivas nesse tra balho de capacitação dos seres humanos para a nomeação das coisas, das pessoas e dos acontecimentos - o «pôr-em- linguagem» a exper iência humana.

A religião e as estruturas de acolhimento ~ na obra do fenomenó logo cat alão L1u ís Duch que encon tramos uma particular ref lexão sobre o que aqui se apelida de «estruturas de acolh imento», os lugares onde se processa boa parte das dinãmicas de tran smissão cultura l. Essas estru t uras são como que ãnco ras para a experiê ncia humana, part icularmente nos conte xtos de mudança. L1 uís Duch procuro u most rar que as «est rut uras de acolhimento» são decisivas nesse tra balho de capacitação dos seres humanos para a nomeação das co isas, das pessoas e dos acontecimentos. Esse «pôr-em-linguagem» const itu i o modo espec ífico de os seres humanos acederem à realidade. Mas, tal como a t radição exige recr iação, esse pôr- em-linguagem da realidade, que não tem cãnones def init ivos, solicita a contínua «tr adução». As «estr utu ras de acolhimento» precedendo o indivíduo, gara ntem esse acesso às li nguagens recebidas e permitem a cr iação de outras. L1uís Duch ident if ica, priorit ariamente, t rês est rut uras: a «co -descend ência» (família), a «co-resid ência» (cidade), a «cc-tra nscendência» (religião).

• A «cc-descendência» (família). Sob figuras histó ricas e cult urais muito diversas, est a estru tu ra de acolhimento combina de forma peculiar caracte res biológicos , afet ivos e cultura is. ~ o lugar da «língua materna» e o conte xto privilegiado para aprendizagem da «gramát ica dos sent imentos ». • A «co-reslaêncio» (cidade). A nossa soc iabilidade não se efet iva sem as múltiplas aprendizagens a que acedemos nas tr ajetórias de integração em espaços soc iais mais amplos - desde a esco la à mais simples estrutu ra de coo peração associativa. Esta estrut ura de acolhimento acaba por integrar todas as formas de organização de presença/residênc ia públ ica. Nesta perspetiva , a «cidade», enquanto símbo lo, assume as suas conotações clássicas - no sentido aristotélico, como o lugar da polít ica . • A «cc-transcendência» (religião). A religião conde nsa, nas culturas, grande parte dos recursos simbó lico -sociais desta est rutura de acolh imento, na med ida em que se apresenta como sistema de crenças e prát icas partilha das relat ivas ao sent ido últ imo das cois as. Estamos no lugar da transmissão de algumas das narrativas mais decis ivas para a const rução dos valores


,- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - - - - - - -- - - - coletivos e no contexto de configuração da interrogante religiosa, enquanto expressão de uma possibilidade de abertura do mundo a um horizonte que o ultrapassa. Para o fenomenó logo Uuís Duch, as «estrutu ras de acolhimento» são para a espécie humana o que a ordem inst int iva é para as out ras espécies. Em vez de inst intos, a espécie humana conta com t radições. No interior das «estruturas de acolhimento», o ser humano põe em acão os saberes e as práticas que têm a virtu de de instaura r formas próprias de habita r o mundo, formas ao mesmo tempo recebidas e abert as ao futuro.

2.5. O cristianismo no contexto da «viragem axial» Texto 6 Karl Jaspers subl inhou um facto já entrevisto no século XIX: a mudança radical operada em diversos conte xtos civilizacionais, entre 800 e 200 a.C., especialmente no século VI. Trata-se da emergência do Zoroastrismo no Irão; dos profetas de um Deus único universalista em Israel; da ciência , da democracia e da filosofia na Grécia; dos Upanishads, da fi losofia do Jainismo e do Budismo na fndia; da filosofia, do Confucionismo e do Taoismo na China. O nascimento do Cristian ismo e do Islão relaciona-se também com esta mudança. K. Jaspers toma de Friedrich Hegel a ideia de eixo da histó ria humana, ou seja, a ideia de direção, e fez deste período a idade axial da história, porque aí descobriu o nascimento espiritual do ser humano, para além dos diversos credos particulares, o mais rico desenvolvimento do ser humana, uma vez que o espiritual adquire autonomia, pela primeira vez, desvinculando-se dos quadros étnicos ou nacionais. No essencial, refere Jaspers, somos ainda os herdeiros desta idade axial. YvesLambert (2009) - La naissance das raUgions:de la préhistoire aux religions universalistes. Pans: Armand Colin, 175.

Segundo a tese do f ilósofo Karl Jaspers " (Origem e sentido da história, 1949), retoma da depois por numerosos pensadore s, uma grande transmutação religiosa se produziu, nas sociedades mais complexas do planeta, num período de tempo que se pode situar ent re o século VII a.C. e o primei ro século de nossa Era. Este período, designado de era axial , conheceu a existência de personalidades como Confúcio, LaoTsé, os sábios dos Upanishads, Buda, Zoroastres , Sócrates, os grandes profetas j udeus (em particular, do chamado «segundo» Isaías) e Jesus de Nazaré. Nesta «viragem axial», a experiência da t ranscendência surge ligada à salvação individual, não já associada à sobrevivência da comunidade. De maneira paradoxal, nestes novos sistemas religiosos, o indivíduo conquista autonomia soc ial afirmando-se dependente de uma transcendência. Para Marcel Gauchet" (O desencantamento do mundo, 1985), um dos mais import antes comenta dores da tese de Jaspers, o aprof undamento das representações e experiências concernentes à t ranscendência garante mais espaço de autonomia à experiência socia l. Na ótica deste fi lósofo francês, o auto r, quant o maiores são os deuses, mais os seres humanos são autónomos. Esta libert ação da pessoa, decorrente do distanciamento em relação ao laço social, est á presente em graus diversos nos movimentos de sabedoria religiosa ou filosófica que aparecem durante a era axial. to, no entanto, no seio de duas novas religiões, diferentes ent re si - o Budismo e o Cristian ismo - , que esta trajetória cultural será mais aprofundada e se t ornará mais durável. No Oriente, o Budismo nasce num ter reno de múltiplas divindades - mais tarde apelidado de Hinduísmo - , onde se podia descobrir já a afirma ção de uma tra nscendência impessoal. Já no tempo dos Upanishads, a alma humana (atma ) era vista como sofrendo o apelo para a f usão no impessoal divino (Brahma) . O budismo leva mais longe ainda est a posição, concebe ndo a salvação (nirva na) não como fusão com o divino,

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mas como evasão def init iva para fora deste mundo de aparência e de ilusão (samsaro). Ta l superação acontece pela interrupção do ciclo assustad or dos sucessivos renascimentos. Buda propõe uma via (o nobre caminho óctuplo) para chegar a este result ado. Numa t al conceç ão, os laços sociais podem apresentar -se co mo um obstáculo à salvação, uma forma de vincu lação ao mundo, produt ora do kormo, e, por conseguinte, causa de um futu ro renascimento. Na religião do Anti go Israel, o t ranscendente é proc urado do lado de um Deus único pessoal, criador do mun do e senho r da história. Com o advent o do cristi anismo, este Deus é conc ebido como próximo da humanidade, que deve ser adorado «em espírito e em verdade» e não por meio de sacrif ícios no Temp lo, isto segundo a resposta de Jes us à mulher samarita na, numa narrat iva do Evangelho de Jo ão (Jo 4,23). Neste con texto inte rpretativo, as atitud es de Jesus de Nazaré face às estruturas elementares da soci edade, como a família, os interditos em torno da saúde e da doença, a sua relati vização da religião do Templo e dos sacrifícios, o seu «mandamen to novo» - que faz do próxim o o lugar de encontro com Deus, constit uem a af irma ção de uma tradiçã o religiosa que abre um amp lo espaço para afirmação do ser humano como ser esp iritua l, capaz de uma relação com a tra nscendência, não redut ível aos códigos, normas, int erdito s e ritos que estruturam a experiênc ia colet iva.

Text o 7 O amor ao próximo dizia respeito às relações com o vizinho mais próximo. Era expressão de uma ética da vizinhança, própri a do povo e não um ideal das classes altas. Jesus e os rabinos est avam mais vinc ulados ao povo simples. Nesta situaçã o, o amor ao próx imo era um valor central para poder sobreviver. Jesus colocou -o em pé de igualdade com o amor a Deus, e radicalizou sob três formas: como amor ao inimigo (no Sermão da Montan ha, Mt 5,43-48), como amor aos estrangeiros (na parábola do samaritano compassivo, Lc 10,30-37), e como amor aos pecadores (por exemplo, no relato da unção de Jesus por uma pecadora ou na proverbial amizade de Jesus com cob radores de impostos e com pecado res (Lc 7,36-50; 7,34) [...]. Se o amor ao próximo significa o amor ao vizinho considerado como igual, então esse amor terá de superar as diferenças relat ivas à condição social. Por isso, a humildade, a aceitação voluntária de uma posição de serviço, forma parte do amor ao próximo . A t radição acerca de Jesus fala de uma mudança de postura onde os primeiros são substituídos pelos últimos (Mc 10,31), e estabelece uma correlação entre humilhar e exaltar (Lc 14,11). Exige-se a renúncia à própria condição social com as seguintes palavras: «O que quiser ser grande entre vós seja o vosso servo, e que quiser ser o primeiro entre vocês seja o escravo de todos» (Mc 10,43s). A humildade e a renúncia à condiç ão soc ial contrastam com o antigo código de honra, segundo o qual cada um deve afirmar a sua própria cond ição social. Gerd Theiss en - EI movimento de Jesús: hist oria sociol de uno revolución de los valores . Salamanca : Ediciones Sígueme, 2675.

As pr imeiras gerações de cr istãos vão compreender a sua condição segundo a met áf ora da adoção f ilial e da cid adan ia, compre ensão que implica a cons ideração part icular do valo r da pessoa huma na e da possib il idade de múlt ip las perte nças que não aniquilem a sua singularidade e dignidade. Como escreveu Ireneu no século II, «o Verbo se fez o que nós somo s para que nós nos tornemos o que ele é», pois se «a glória de Deus é o homem vivo, a vida do homem é a visão de Deus». Est a visão da t ranscendência conduz o crist ianismo a relativ izar o vínculo social, mas sem rejeitá-lo. Dessa atitu de, encontram-se numerosos ecos nos textos cristãos. São testem unhos da consciência de autonom ia dos domín ios espiritual e t emporal e, portanto, duma experiência de afirma ção do carácter não-ab soluto do vínculo soc ial. Para os cristãos, não será vocação do Evangelho de Jesus tornar-se lei da sociedade civil, embora esse Evongelho possa e deva ser a alma de projetos f raternos de soc iedade, sem se deixar absorver pelas diversas form as polít icas de organização da vida coletiva.

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2.6. A novidade cristã face à diversidade religiosa no Império Romano o cr istian ismo afirmou -se historicamente num con text o de difer enc iação face ao judaís mo, mas também perante o mundo hel enísti co, num contexto de inscr ição social no Império Romano. Num contexto difícil, a primeira geração cristã dividia- se perante a esco lha: ir para o «mundo» ou separar-se dele. O cr ist ianism o é contempor âneo de tendências religiosas que se auto marginalizavam e procu ravam no «deserto» a morada onde renunciavam ao mundo como o conheciam algumas destas tendências podiam encontrar-se em meio j udaico. Essa co ndição de separação era vivida como uma alternativa ou como uma antecip ação de um mundo que estaria a chegar. Pedro e Paulo f izeram outra opção - mergulhar no «mu ndo civil». De Pedro sabem os pouco, de Paulo conh ecemos um pouco mais. Quando observamos os itiner ári os de evange lização de Paulo e dos seus miss ionários, depressa descobri mos que estamos nos centros da romanidade: Ant ioquia da Pisídia e Filipos eram co lónia s milita res e nós rodoviários; Antioqu ia, Salamina de Chipre, Tessalónica, ~feso, eram capita is provinciais. Os centros visados eram os mais facilit adores de uma disseminação da mensag em cr istã atr avés, sobre tudo, da rede de contactos pessoa is. Com frequ ência, encontramos nas cartas de Paulo referên cias ao valor da hosp italidade e aco lhimento, at itudes que est a it ineráncia exigia (cf. 'l Ts 1,8-9). Sabem os que o Império Romano se distinguiu pelas suas opções est ratégicas quanto à comunicação: a comun icação viária, mas tamb ém a língua. Paulo inte riorizou muito bem estas opções no piano do seu modelo de evangelização. Ele sabia que para dif undir a mensagem cr istã necessit ava de usar a língua comum (como o Império fazia), o grego (no seu uso corre nte). Assim, o evangel ho c ristão não se refugia numa lín gua sag rada, numa li nguagem esot éri ca ina cessível . Procura antes traduzir- se numa língua que lhe permita chegar ao maior núme ro.

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Paulo con st ituiu o núcleo das suas Igr ej as a partir do agregado fam iliar (o oikos , a casa). Podemos tomar como exempio, o oikos de Ãquila , um artesão têxtil que se deslocava ao ritmo dos grandes acontecimento s periódicas, acompa nhando a conce nt ração de populações em dete rminadas cidades, difun dindo, dessa fo rma , a mensagem cristã. O agregado fami liar antigo , o oikos, é um lugar de reunião, um cent ro de at ividades e um lugar de hospitalidade. Numa soci edade f undamentalmente inigualitá ria, a casa é o lugar das solidari edades mais básicas, onde era poss ível atenuar as diferenças de estatuto - o escravo, a jovem desposada, etc. Na epísto la a Filémo n podemos ver bem como Paulo pensava tr ansformar as relações, a part ir do seu int erior, segundo uma nova cond ição , a co munhão em Cristo, sem no entanto, contestar a ordem estabelecida .

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A casa cristã vive num regime de dissensão em relação à cidade, mas sem nunca a abandonar nem pretender uma mutação de t ipo revolucionário, proc urando encontra r um lugar de integração para os elos mais fráge is da sociedade - não espanta po is que as acusaçõ es romanas venham a dizer, depreciativamente, que o cristi anismo era uma coisa de jovens, mulheres e escravos .

Texto 8

Paulo, prisioneiro por causa de Cristo Jesus, e o irmão Timóteo, Filémon, nosso querido colaborador, à irmã Ápia, a Arquipo, nosso companheiro de luta, e à igreja que se reúne em tua casa: a vós, graça e paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo!

É que, afinal, talvez tenha sido por isto que ele foi afastado por breve tempo: para que o recebas para sempre, não já como escravo, mas muito mais do que um escravo: como irmão querido; isto especialmente para mim, quanto mais para ti, que com ele estás relacionado tanto humanamente como no Senhor.

Se, pois, me consideras em comunhão contigo, recebe-o como a mim próprio. E se ele te causou algum prejuízo ou alguma coisa te deve, põe isso na minha conta. Sou eu, Paulo, que o escrevo Rela minha própria mão: sere i eu a pagar. Isto, para não te dizer que me deves a tua própria pessoa.

A graça do Senhor Jesus Cristo esteja convosco. Transcrição da Epístola a FJlémon

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Texto 9

Nada permite fazer de Paulo um conform ista, cego ou passivo diante das realidades concretas do seu tempo; mas encontramos porventura o que poderíamos chamar de "revolução paulina" onde nem sempre a procuramos. A epístola a Filémon [...] é um bilhete de circunstância que trata do caso de um escravo refugiado junto de Paulo, então prisioneiro. A reflexão sobre a esc ravatura é mais que nunca conduzida num quadro doméstico. Mas, para além do destinatário, o apóstolo dir ige-se à "igreja que se reúne em (tua) casa", dando assim a este caso particular uma dimen são eclesial. Tratava-se, aliás, de um problema de atualidade que preocupava as autoridades romanas , muito especialmente nesta prov íncia da Ásia. Abandonar o seu senhor depois de uma falta grave ou por causa de maus tratos era uma possibilidade sempre em aberto para os antigos escravos, tanto no mundo greco-romano como no Egito ou entre os judeus: a Bíblia refere-se a isso e os papiros egípcios confirmam-no abundantemente. O escravo maltratado ou descontente podia utilizar a protecão dos deuses e a garantia de certos rituais, apresentando-se como supl icante num santuário ou no salão de uma casa privada. A inviolabilidade do suplicante (temporária, evidentemente) abria um tempo de negociações e de mediação: quer o escravo permanecesse no santuário enquanto "escravo sagrado", quer fosse reenviado para casa do seu senhor, caso os maus tratos não fossem provados, quer tivesse sido vendido a um novo senhor, o que parece ter sido o caso mais frequente. Deste modo, os santuários tornaram-se lugares de asilo [...]. Os escravos fugitivos levantavam um verdadeiro problema de direito e de sociedade: um problema de ordem pública, pois se dizia que os santuários se haviam transformado num lugar sórdido; e um problema de dire ito de propriedade, porque se punha evidentemente a questão de indemn izar o antigo senhor podendo dar lugar a um contencioso entre o antigo e o novo proprietário. O problema ganhou uma ta l amplitude nos inícios da nossa Era, que o Senado romano ordenou que se fizesse uma inquirição nos santuários da província da Ásia, nas cercan ias de Éfeso, para tentar limitar o direito de asilo . É este o contexto histórico e social da epísto la a Filémon. Marie-Françoise Basle z - «Paulo e a escravatura»,Communio, 26 (2009), 2415.

Texto 10

Ao decidir "reenviar" o escravo ao seu senhor, segundo parece, após o te r batizado (o verbo utilizado parece corresponder bem ao caso de um escravo fugitivo), Paulo rompe com os costumes e a prática do seu tempo, quer a do mundo greco-rornano no qual estava estabelecido e pregava o Evangelho, quer a do judaísmo a que pertencia por nascimento. Desde a época clássica, não apenas aos gregos, repugnava a ideia de reenviar o escravo para o seu antigo senhor, preferindo-se que fosse revendido a um novo senhor, o que iria permitir indemnizar o primeiro [...]. Assim, Paulo contesta de forma definitiva a ordem estabelecida, pois ultrapassa todas as normas e obrigações da esc ravatura legal para instaurar novas relações "em Cristo" entre dois cristãos, o senhor e o escravo, que devem olhar-se e comportar-se como "irmãos". Ele repensa a escravatura não só no plano legal, mas também na perspetiva da nova antropologia cristã, ela própria fundada na união mística "em Cristo". A família, a "gente da casa cristã", é assim invest ida como primeiro foco missionário, destinado a difundir gradualmente um novo modelo de sociedade cristã. Segundo Paulo, o mundo é, portanto, chamado a transformar-se, e não era de estranhar que ele tenha introduzido a ideia de mudança num mundo que quase a não concebia, encarando antes toda a acão política enquanto eterna restauração de um passado idealizado como Idade do Ouro. A epístola a Filémon e à Igrej a que se reúne em sua casa, traz esta mensagem de esperança de que toda a sociedade precisa, mas com isso Paulo não tinha em vista usurpar as prerrogativas do legislador. Marie-Françoise Baslez - «Paulo e a escravatura». Communio, 26 (2009), 2425.

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A car ta a Filémon most ra que Paulo não foi indiferente à escravatura . Mas a forma como ele lê essa realidade do seu temp o é transformada pela singular idade da vivência cristã . A esc ravat ura não é para ele um prob lema de direito. O que está em causa é uma nova compreensão do género humano a partir da identificação com Cristo. Aquilo que é inovador em Paulo é esse princípio de reciprocidade em t odas as rela ções humanas, mesmo ent re gente que, segundo uma determinada ordem social, tem estatuto desigual, O mundo é chamado, assim, a tr ansformar- se. Mas esta t ransformação, não é alienada para a polít ica. Paulo não pede a mudança à autoridade política. Pede-a a cada lar cristão, em particular. A questão da escravatura põe em evidência o papel evangelizador que Paulo destinava à fam ília. Desta forma, o pensamento de Paulo acerca da escravatura decor re da sua própria concecào da novidade cristã: uma proposta de vida nova em Cristo, dirigida a todos, em qualquer cond ição social , como um fe rmento que é capaz de tr ansformar as cult uras a partir de dentro. Na sociedade em que Paulo viveu, esse moto r int erior descobre-se na «casa» (como agregado familiar) e no plano das relações intersubjet ivas.

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2.7. Uma cidadania cristã A identidade cristã como cidadania No mundo cult uralmente helenizado t inha-se uma ideia de Estado como koinõn io, palavra grega que def ine uma com unidade de part ilha e de parti cipação (essa participação está , no entant o dependente de um certo estatuto de cidadania, não correspond e à universalidade que tend encialm ente encont ramos nas democracias contem porãneas). O Império Romano, por sua vez, cor respondia a um modelo de Estado multié t nico e mult icu ltural, uma associação de comuni dades. O Império era, pois, uma estrutu ra centralizada e unitária, mas enquanto associação de povos.

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O historiador Paul Veyne mostrou como a cultura urbana greco-romana era const ituída por um t ecido de comunidades diferentes em permanente transacão. A koinõnio - diríamos, hoje, cidadania - é essa forma de partic ipação que perm ite que essas diferenças não inviabilizem a construção de um espaço comum. A paz social depend ia, no quadro da política romana, dessa abertura int ercomunitária - por isso os grupos percebidos como fechados socialmente a este ideal de part icipação são vistos com desconfiança ou até perseguidos. As religiosidades predominantes, neste mundo greco-romano em que o cristianismo se vai inscrever, têm dois traços: • A centralidade de ritos caletivos. São religiosidades do fazer e não do crer. O import ant e não é era aquilo em que se acred itava (a religião da Roma ant iga não tinha um credo). Judeus e cristãos t alvez tenham sido, naquele mundo, os primeiros a aceitar morre r por aquilo em que acred itavam, precisamente porque o credo é cent ral. . A manutenção de uma linhagem crente ancestral . Referimo-nos a prát icas rituais e observâncias que visavam mante r viva a memó ria dos antepassad os. Est as prát icas não levantavam qualquer prob lema desde que elas não concorressem com os rit uais e obrigações civis do Impér io (a religião do Império era uma espécie de religião civil).

Paulo, na sua tri pla pertença (ju deu, cidadão de Tarso e cidadão romano), segundo a tr adição, é um bom exemplo dos result ados dest e cosmopolit ismo. As comunidades paulinas vivem, ta mbém elas, nas diferentes escalas a vida social do seu temp o: a casa, a cidade, a província, o Império romano, o universo do espaço habita do. Trat a-se, porta nto, de uma Igreja inserida nos diversos filamentos do tec ido relacional. As Igrejas de Paulo estão neste trajet o entre a comunidade

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Ilustração 59· Detalhe da Epístola a Hlé mon da SIbila de Rochest er. em pergaminho (1130 -1140)

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r - - - - - - - - - - ----- - - - - - - - - - - - - - - - - - - local e a abertura à experiência universal. Para isso, foi dec isiva a co nceção paulina de salvação universal. Ta lvez seja esta a ideia teológica que mais contrasta com as out ras vivênc ias quot idianas do religioso, onde os ritos e as crenças estão mais ligadas aos part icularismos de cada povo ou etnia . Nesta pregação pauli na, a salvação é para to do o espaço habitado, ou seja, é literalmente ecuménica . A vida cristã, compreendida como incorporação em Cristo traz ia consigo a possibilidade de reconstrução do mundo numa nova ordem de superação dos muros étnicos existen tes.

Texto 11 Quando o nome cristão foi usado pelas autoridades romanas, nos anos 40-50, designava, do mesmo modo, um grupo religioso segundo a adesão individual dos seus membros a uma pessoa, Cristo. De facto, surge pela primeira vez uma religião que repousa exclusivamente no compromisso pessoal, pois se é aí introduzido pelo batismo, vindo os convertidos quer dos judeus, quer dos gregos, quer dos romanos (até dos etíopes!), e fundando-se a sua fé numa revelação histórica e em testemunhos, sem se confundir com uma herança ancestral. Foi essa a primeira revolução cristã. A partir dos anos 50, o cristão identificava-se publicamente como alguém de particular em certas cidades do mundo romano, em detrimento, de qualquer outra solidariedade; por altura dos interrogatórios sobre a sua identidade, os mártires contentavam-se em responder: sou cristão.»

Hustrec êo 61: Lâmpada de oleo domestica em ter-

racota , Musee des Beaux-Arts et d'Archeotog!e.

Fra nça.

Marie-Fran çoise Baslez - «Habita r o mu ndo: quando os pr imeiros cristã os escolher am a cidade». Communio, 21:4 (2004,) 461.

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1--- - - -- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - Esta vai tornar-se uma das singularidades do cristianismo. Nas soc iedades antigas , semitas ou greco-rornanas, a pertença religiosa não estava dissoc iada da pertença política e étn ica: a religião fazia parte da «pátria» no sentid o grego o termo, ou seja, herança ancestral. Os testemunhos falam-nos do cristão como alguém que se identifica por essa condição de incorporação em Cristo subalternizando qualquer outra solidariedade. Aparentemente ta l rutura poderia levar- nos à suspeita de que as Igrejas paulinas se constituíam como seitas na cidade . Ao contrário de certas visões românticas que viam estas comunidades cr istãs como algo de subterrâneo, parece claro que os cristãos eram, a seu modo, comunidades abertas à comunicação. A arqueo logia, a história soc ial, a exegese mostram-nos comunidades integradas nas soc iabilidades locais (os textos acompa nham, de facto, a arqueologia: 1Cor 14,22-24). Era fácil ident ificar onde se reuniam os cristãos das comunidades paulinas. Nada parece indicar que as comu nidades se escondessem ou se marginalizassem .

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As «duas cidades» A leitura da experiê ncia cr istã enquanto tensão entre do is mundos, a «cidade de Deus» e a «cidade dos Homens», vir á a desenvolver-se posterio rmente . Mas ela não é negadora deste sent ido da fé como responsabilidade por uma cidadania partilhada. A ideia de incorporação em Cristo não fecha , entre os muros da sua singularidade, as comuni dades cr istãs. to essa experiência de incorporação em Cristo que alimenta a vonta de cristã de superação das front eiras sociais , por vezes as mais natu ralizadas: não hé judeu nem grego, não h á homem ou rnulher., Uma das primei ras reflexões acerca da experiên cia cr istã como cidadania pode desco brir-se na qua lificação do cr istão como «est rangeiro» (paroikos, cf. 1PeloEstrangeiro no sentido de «visitador de passage m» ou de «estrangei ro domiciliado». Este sentido de cidadan ia t raduziu a consciência cr istã de uma vida que não pertence exaustivamente a esta «cidade». Por isso as comun idades cristãs são comun idades de hospitalidade, que se organizam para aco lher estes «estrangeiros». Mas este «estr angeiro dom iciliado» não é o tu rista moderno . Ele vive, a part ir desse estatuto próprio, na sua diferença, a responsabil idade de construir a «cidade».

to interessant e anotar que os cristãos, mesmo se em tensão com algumas exigências da religião imperial romana , ou mesmo quando perseguidos, nunca deixaram de rezar pe los governantes da «ci dade». Encontramos freque ntes indícios de que, na ant iguidade cr istã, os respo ns áveis políticos constituíam um dos mot ivos da oração com um, não no sentido da defesa das comunidades , mas como súplica pela assistência divi na necesséria ao bom exercício des sas funções. O horizo nte de cidada nia que nasce desta expe riên cia cristã apela ao reconhecimento da diversidade dos que constituem a «cidade», exige que as comu nidades sejam conte xtos de integração de todos os «estr angeiros» , e convoca todos para a construção de um espaço comum vivido «como quem serve» . Este t ipo de cidadan ia solicitava a constitu ição de redes de assistência e solidariedade de índole comunitária , para não deixar fo ra da «cidade » os mais vulner áveis - é necessé ria a «diaconia », o serviço em prol dos mais fr ágeis, O cristão helenista estava, pois, no cerne dest a experiênc ia: est á integrado no mundo sem ser do mundo. A Epístola a Diogneto (5,15), texto escr ito por um cristão de Alexandria por volta de 190, é um dos testemu nhos mais eloquentes desta teo logia da cidada nia cristã .

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Texto 12 Capítulo V - Os mistérios cristãos Os cristãos, de facto, não se distinguem dos outros homens, nem por sua terra, nem por sua língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. Sua doutrina não foi inventada por eles, graças ao talento e a especulação de homens curiosos, nem professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em casa gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como estrangeiros. Toda pátria estrangeira é pátria deles , a cada pátria é estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os recém-nascidos. Põe a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm sua cidadania no céu; obedecem as leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são mortos e, deste modo, lhes é dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos; carecem de tudo e tem abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo, tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são injuriados, e bend izem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos como malfeitores; são condenados, e se alegram como se recebessem a vida. Pelos judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, a aqueles que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio. Fragment o da Epístola a Dlogneto (http ://www.veritatis.com.br/patristica/o bras/1406-ca rta- a-diogneto)

Os alvores da cristandade As comunidades cristãs conheceram . num contexto local ou de forma ma is gene ralizada , períodos de perseguição. Em part icular, as perseguições ordenadas pelos imperadores romanos Décio (249-251) e Valer iano (253-260) espalharam o terror entre muitas co mun idades cr istãs , nu ma altu ra em que, elas pró prias, conheciam algumas dificuldades que decorriam de ten sões internas relativas às querelas doutrinais que se foram desenvol vendo - em part icular, du rante o século III, af irmaram-se for mas co nt rastantes de compreensão da men sagem cr istã , co nduzindo a conflitos internos de dif icil resolução, tensões que se irão af irm ar mais vincadamente, quando o cristi anismo vir reco nhec ido o seu direito de «cidadania» no Imp éri o. Não pode dizer- se que estas vagas de perseguição tenham tido grande sucesso, quanto ao obje t ivo de erra dicação do cristianismo . Aliás, logo em 260/26 1, o f ilho de Valeria no, Galiano , revogou os dec retos ant icristãos, reinsta urando um per iodo de paz que tolerou uma ainda ma ior expan são do cr ist ianismo na Me sopotâm ica, na Pérsia, na Arménia, no Norte de Áf rica e, segundo alguns historiadores, na Germânia e nas ilhas britânicas . As novas per seguições declaradas pelo imperador Diocleciano (a chamada «grande perseguicão»), nos começos do sécu lo IV, não serão capa zes, t ambém, de suster esta expa nsão do cr istian ismo - a mensagem cristã apresent ava-se, cada vez mais , como um anú ncio que respondia às questões espirituais do seu tempo.

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Texto 13

Em 303, tal como em 250 e em 257, o Governo atacou os bispos, padres e diáconos cristãos. A maior responsabilidade foi atribuída aos bispos; Cipriano de Cartago, por exemplo, foi executado em 258 como «porta-bandeira» da «fação» cristã. Se um bispo capitulava poderia desaparecer a lealdade de uma comunidade cristã. A Igreja possuía um código legal universal. Também este foi atacado. As Escrituras cristãs foram t iradas das igrejas e queimadas [...l. O próprio formato das Escrituras falava da chegada de uma nova época. Já não eram o simples pergaminho difícil de manusear, típico da época clássica; eram códices, ou seja, livros no sentido moderno, e tinham evoluído rapidamente nesta época de organização. Eram compactos e fáceis de transportar. Eramencadernados, de modo a apresentarem um conteúdo bem definido e serem fáceis de consultar. Constituíam um veículo apropriado para a nova «Lei», ditada por uma fonte ainda mais alta do que o Imperador. Podiam ser consultados e aplicados em qualquer lugar [...]. Finalmente, mas não menos importante, as autoridades destruíram igrejas cristãs. Os cristãos da época referiam-se às suas igrejas como se fossem locais de veneração claramente definidos - «vastas assembleias que se juntavam em cada cidade». Estas descrições confundem um pouco o desejo com a realidade. As igrejas cristãs do século III devem ter sido relativamente humildes, consistindo apenas numa sala de reunião que aproveitava as estruturas de casas já existentes [...]. No entanto, o que interessava era que, na imagem que os cristãos faziam de si mesmos, as igrejas eram «pontos de crescimento». Recebiam bem os novos conversos, e esperavam que eles se mantivessem leais. Destruir aquelas paredes correspondia, portanto, a fazê-lo a uma instituição que não só era coesa e exclusivista , mas era também reconhecida por todos como capaz de um crescimento «incontrolável». Peter Brown - A ascensão do cristianismo no Ocidente. Lisboa: Ed. Presença, 1999, 41s.

----- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - --- - -1 Os períodos de paz . de forma privilegiada, permitiram que se desenvo lvesse um pensamento cristão que irá te r um aco lhimento cada vez mais amplo. Os intelectuais cr istãos deste período esforçaram -se po r mostrar que o cristianismo não era incompatível com os objetivos políticos do Império, nem incapaz de diálogo com as principais correntes de pensamento helenístico. Est a abert ura da teologia cris tã ao ambiente cultural envo lvente cr iou condições para que, progress ivamente, não só os estratos sociais mais baixos, mas tam bém entre os mais cultos e notáve is socia lmente (mesmo na co rte imperial e no exército) começassem a ver o cristianismo como a religião do futuro. uma religião mais espi ritua l, mais próx ima dos ideais f ilosóficos do tempo, apresen tando uma estru tura organizativa capaz de preencher as próprias lacunas da admi nistração imperial. A tolerância e reconhecimento j á anunciados pelo édito do imperador Galério, em 311, vieram a ser confirmados pelo novo imperador, Constantino. Discute-se hoje, ainda, acerca da autenticidade da sua conversão ao cristianismo. Apesar das dúvidas históricas, sabemos que o Edito que promulga em Milão, em 313, garantindo a total libe rdade dos cristãos em todo o Império, constituirá um marco decisivo na configuração histórica do crist ianismo, abrindo novas poss ibilidades para co nstrução de soc iedades cr istãs - a cristandade - onde a memória cristã se tornará o elo de coesão socia l mais decis ivo.

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Édito de Milão

"Eu, Constantino Augusto, e eu, Licínio Augusto, em boa hora reunidos em Milão para tratarmos de questões que tivessem a ver com o bem -comum e a segurança do Estado, entre tudo o mais que víamos ser de proveito para grande parte da população, antes de tudo, julgámos por bem regular aquilo que respeitava ao culto da divindade e por isso dar tanto a cristãos como a todos os mais a faculdade de poderem seguir livremente a religião que cada um quisesse, por tal forma que, qualquer que seja a divindade que está no assento celeste, a Nós e a todos os que estão sob o nosso domín io ela seja para nós benevolente e propícia . Por isso, em dec isão salutar e a mais razoável, julgámos dar seguimento a esta deliberação, pelo que considerámos não ser de negar minimamente a ninguém o direito de aderir convictamente que à observância dos cristãos quer a outra religião que ele próprio tivesse entendido ser para si a mais conveniente, por tal modo que a Suprema Divindade, a cuja religião, em liberdade de espírito, damos o nosso obséquio, nos preste em tudo o seu costumado favor e a sua benevolência. Por isso import a que a Tua pessoa saiba que nos aprouve fazer com que, pondo termo, de uma vez por todas, a qualquer dos cond icionamentos que antes estavam contidos em rescritos emanados para tuas funções sobre o nome cristâo, sejam revogados particularmente no que concerne às leis que se afiguram ser perniciosas e estranhas à Nossa Clemência. Agora a todos, de modo livre e sem impedimento e prejuízo pessoal. Considerámos isto dever comunicar à Tua Solicitude em toda a sua plenitude, para que fiques ciente de que aos cristãos concedemos livre e absoluta capacidade de praticarem a sua religião. Pois que com ist o ficas ao corrente de que concedemos este indulto, entenderá a Tua Pessoa que também a outros de modo similar é concedida a de escolherem a sua religião e de a seguirem de forma aberta e livre para tranquilidade do nosso tempo, de tal maneira que, quanto ao culto, cada um tenha faculdade de o escolher em liberdade. Isto foi por nós ordenado, com a intenção de que a nenhuma dignidade nem a nenhuma religião possa parecer que algo da nossa parte constitua restrição. Além disso, na pessoa dos Cristãos, algo mais considerámos dever decidir: os locais onde antes tinham por costume reunir-se e relativamente aos quais as cartas consignadas para as tuas funções continham anteriormente também instruções definidas em forma de restrição, que em tempo anterior alguns parecem ter negociado, seja com o nosso fisco seja com quem quer que fosse, tudo isso seja restituído aos cr istãos sem terem de entregar dinheiro ou sem algo ser reclamado, independentemente de qualquer escusa e ambiguidade. Aqueles que receberam algo por doação, restituam-no sem modificação aos ditos cristãos o mais rapidamente possível; mesmo que haja quem comprou ou quem obteve por doação, se algo reclamarem de Nossa Benevolência, requeiram -no ao Vicário, a fim de por Nossa Clemência ser dada provisão. Tudo isso convém que seja de imediato entregue à corporação dos cristãos por tua intervenção e sem demora. E porque, como é sabido, os ditos cristãos não só tinham os locais em que se costumavam reunir, mas também outros englobados, de acordo com o direito da sua corporação, ou seja, das suas igrejas, não de indivíduos singulares, tudo isso, pela lei acima referida, fora de qualquer subterfúgio ou controvérsia, mandarás restituí-lo aos ditos cristãos, ou seja à corporação e aos seus lugares, salvaguardada no entanto uma condição acima referida, a de que quem restituir o fará sem nada cobrar, aguardando indemnização da Nossa Benevolência. Em tudo isto, deverás demonstrar a tua maior eficácia de intervenção à dita corporação dos cristãos, a fim de que a nossa determinação seja cumprida o mais rapidamente possível, de tal forma que Nossa Clemência providencie à tranqui lidade do Estado.

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Com isto se recon hecerá que, como mais acima fo i dado a ente nder, o favor divino em torno de nós, o qual em tantas circunstâncias exper imentámos, continuará a verif icar-se com êxito em todos os nossos empreendimentos com prosperidade para o Estado. A f im de que, aliás , a formalidade desta determinação da Nossa Benevolência possa chegar a conheciment o de todos, convirá que haja uma proclamação em difusão por ato teu em que ist o esteja escrito e proc lamado em toda a parte para todos ficarem a saber, de tal modo que não fique sem divulgação a decisão da Nossa Benevolência ." Edito de Milão segund o a tradução de Aires A. Nasc im ento Edito de Milã o: apostilas para uma tradução. Lisboa: Unive rsidade Catô lica Editora , 2013, 24-29.

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Text o 14 Constantino não se compo rta como cris t ão fer voroso nem como hipócrita . Aparece ante s como um homem de Estado que integra audaciosamente o cristianismo na sua política de poder. Nas suas campanhas militares, nunca mais se separará do seu precioso estandarte com o monograma de Cristo (do qual cada destacamento possui uma cópi a) [...]. O Império universal dispõe novamente de uma religião universal , uma religião que oferece a sua ajuda caritativa a inúmeros indigentes [...]. O monoteísmo cristão impunha-se incontestavelmente, fa ce ao politeísmo rico em mitos, como posição mais progressista, esclarecida; e a ética elevada dos cristãos, de que dão testemunho os ascetas e os mártires até mesmo na morte, mostrava-se sup erior à ética pagã. Hans KOng - O Cristia nismo: Essên cia e História. Círcu lo de leitores, 2002 , 1795.

Estavam cria das as condições sóc io- polít icas para a plena penetração do cristianismo no espaço geog ráfico do Impér io Romano . Os valores cristãos e as inst it uições eclesiais vão enco ntra r co ndições favoráve is de desenvolvimento. circunstancias que acompa nharam as própr ias vic issit udes do Império Romano. incluindo a sua desagregação , contexto em que as fo rmas de organização crist ã for am o veículo mais importante de t ransporte de va lores e mundividências que hoj e caracterizam o que costumamos apelidar de Ocidente.

A experiência cristã na construção das culturas europeias Esta memória cristã é muito important e para a nossa at ualidade, quando estamos a pensar as formas como pode mos e devemos co nst ruir O bem comum na Europa e a re lação da comunidade europeia com o mundo.

Texto 15 O crist ianismo não partiu, é certo, da Europa e, portanto, nem pode ser classificado como uma religião europeia, a religião da esfera cultura l europeia. Mas foi prec isamente na Europa que recebeu a sua marca cultu ral e intelectual historicamente mais efica z e, por isso, permane ce entrelaçado de modo espec ial com a Europa. Por outro lado, é também verdade que esta Europa, desde os tempos do Renascimento, e de forma consumada desde o Ilum inismo , desenvolveu precisamente aque la racionalidade cient ífica e não só, na época das Descoberta s, conduziu à unidade geográfica do mundo, ao encontro dos continentes e das culturas, mas que agora, muito mais profundamente, graças à cultura técnica tornada possível pela ciência, dá o seu cunho a todo o mundo. Cardeal Joseph Ratz tnger - (IA Europa na crise das culturas». Commun io 22: 2 (200 5), 229 .


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Sabemos que, com a estabilização do cristianismo no Império Romano, se alter aram subst ancialmente as condições de enquadramento soci al das comunid ad es cr ist ãs. O cristianismo passou por um processo, podemos dizer, de massificaçã o. Nesse co ntexto, tornou- se por vezes meno s patente a «diferença cristã» - aqu ela out ra «cidadania» que não se reduz a qualquer projeto polit ico. O crist ianismo tornou-se uma peça decisiv a na história da co nvivênc ia europeia, na sua procura de unidade , na sua d iversidade, e também nas suas próprias fraturas . Algumas das mais dec isivas exper iências de divisão nas culturas europeias são também divi sões no tecido do cristianismo .

Texto 16

Para se assegurar, renovada mente, das suas raízes cristãs, a Europa precisa de renovação da unidade cristã. No seu estado atual de separação e cisão, cujas origens remontam ao passado longínquo, as Igrejas Cristãs não podem apelar eficazmente à nações da Europa para que se lembrem do seu passado cristão, assimilando os seus percursos espirituais e cultu rais de uma maneira nova. As cisões da unidade cristã, que levaram à existência separada de Igrejas confessionais e respet ivas cont rovérsias sem f im, contribuíram de tal forma para os fracassos da história europeia e os sofrimentos dos povos europeus, que as Igrejas separa das entre si lembram continua mente ao europeu as razões de peso pelas quais a cultura moderna e a ordem política dos Tempos Modernos se t iveram de emancipar de quaisq uer ligações religiosas. Por outro lado, a vida humana prec isa de um fundamento religioso, se não quer ver desaparecer a consciência de um sentido que a suporta, entregando-se às fo rças da autodestruição. A história cultural da humanidade oferece-nos material suficientemente rico que ilustra bem co mo esta fun ção da religião é insubstitu ível. O mesmo se pode dizer para a vida social e a cultura públ ica. Em termos globais a pergunta só pode ser, que espécie de religião adquire, de facto, um signif icado decisivo para a vida de uma cultu ra. Quanto a este aspeto , a Europa não pode, sem mais nem menos, desembaraçar-se das suas origens cristãs, se pretende conservar o que é especificamente europeu na sua tradição cultural. Mas isso pressupõe que o Crist ianismo não se apresente sectário, embora também não se possa disso lver na acomodação ao secularismo [...]. Uma renovação da unidade cr istã que mostre ter a crista ndade aprend ido a lição da História no que respeita à to lerância e à precaridade de to do o saber humano, mesmo no domínio da verdade revelada. Renovação de uma crista ndade ecuménica, e por isso também uma Igreja verdadeiramente católica, que poderia talvez curar nos povos europeus a recordação das feridas do seu passado , de seus sofrimentos e amargos confl itos. Wohl fart Pannenberg - «As Igrejas e nascer da unidade europeia». Communio 11: 4 (1994), 3505.

Entre os protagonistas contemporllneos deste reavivar a memória cristã da Europa encontra-se o Papa J oã o Paul o II. Fazer redescobrir o cristianismo como alma do projeto europeu foi , certamente, um dos desígnios desse pontificado. Oriundo do leste europeu, transpo rtando na sua biograf ia as grandes feridas da hist ória europe ia do sécu lo XX, João Paulo II promoveu em muitos contextos a refl exão sobre a necessidade de dar a este projeto europeu uma alma - qu e geograf icament e ele situ ava ent re o At lântico e os Urai s, não redut ível a acordos polít icos ou estratégias económicas. A renovação dessa «alma» exigia, na sua ótica, a «reconciliação das memórias» - por isso o seu pontif icado foi tão rico em iniciativas de diálogo e gestos públicos e simbólicos que veicu lavam um pedido de perdão pelas situações em que as Igrejas, na Europa, não foram fiéis ao «evangelho» de Jesus, fazendo da sua mensagem uma arma de exclusão e agress ão dos «out ros», Mas esta renovação não pod e reduzir- se a uma visão nostá lgica de um qualquer passado a que o cristianismo deva regressar. Hoje a Europa é um espaço de aco lhimento de outros «estrangeiros». Renovar esta «alma» da Europa exige pensa r a cultu ra europeia com o exper iência de hosp itali da d e. Certamente, a memória cristã poderá ser aqu i, também, um lugar para novas aprend izagens.

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Texto 17

Sem ceder a qualquer tentação de nostalgia, e também sem nos contentarmos, com uma reprodução mecânica dos modelos do passado, mas abrind o-nos aos novos desafios presentes, deveremos, pois, inspirar-nos, com uma f idelidade criativa , nas raízes cristãs que marcaram a história europeia. É a memória histórica que o exige, mas ta mbém, e sobret udo, a missão da Europa, chamada, também hoj e, a ser exemplo de progresso verdadeiro, a promover a mundia lização na solidariedade e sem exclusão , a contribuir para a edificação de uma paz ju sta e duradoura, no seu seio eno mundo inteiro, ajuntartradições culturais diferentes para dar vida a um humanismo no qual o respeito pelos direitos, a solidariedade e a criatividade permitam a cada homem realizar as suas mais nobres aspirações.

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Jo ãc Paulo 11 - Discurso. 20-06-2002.

Texto 18

A verdadeira hospita lidade e a verdadeira abertura ao outro consiste, antes de mais, no facto de que, primeiro, se supere a concentração de riqueza em alguns países e, a partir daí, se trabalhe para que todas as partes da terra e todos os países sejam, ou se tornem, cada vez mais habitáveis e, assim, toda a terra seja o lar do homem. Por outro lado, devemos dar hospitalidade a todos aqueles que estão ameaçados de perseguição ou, de qualquer modo, estão privados das condições de uma vida digna. Certamente isto co mportará, para o futuro, uma pluralidade cultural maior do que aquela a que, até agora, est ávamos habituados. Joseph Ratzinger - «Igreja e Europa». Commun;o 9: 6 (1992), 547.

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3. Dinâmicas religiosas no mundo contemporâneo

3.1. Modernidade, secularização

e «des-seculartzação» Religião e Modernidade

o termo «modernidade» designa, em termos gerais, um conjunto de t ransfo rmações ocorridas, de um modo mais intenso, nos séculos XVII, XVIII e XIX, com origem na Europa, mas com um impacto progress ivo noutras geografias, a partir dos movimentos de expansão europeia. Essas t ransformações são particularmente visíveis no sécul o XIX, nos processos de urbanização e industrialização que remodelaram as soc iedades na Europa e na América do Norte. Esta t ransformação civilizacional descreve -se por rut uras e recomposições de novos equilíbrios nos diversos domínios da experiência social. Em termos gerais, pod emos dizer que passamos de uma soci edade cent rada, como o era o mundo medieval, para um modelo descentrado como o que descreve as soc iedades con temporâ neas. Na cris tanda de medieval, a socie dade, nas suas diferent es dimensões (políticas , económicas, estét icas, morais, etc.), referia- se a um centro preenc hido por uma conceçâo cristâ de Deus. De algum modo, todas as dimensões da experiência individua l e co munit ária se ordenavam hierarquicamente numa mund iv idência que tinha Deus no seu centro. A modernidade,em particular, part ir das ideias iluministas, no plano intelectual e politico conheceu a tent at iva de subst itu ir esse cent ro por outro: a narrativa acerca da emancipaçâo huma na. O Homem moderno, a partir dos seus recursos - polít icos, económ icos, ét icos , cient ifico s e téc nicos - teria agora a possibilidade de assumirem a história nas suas mãos, emanci pado de uma origem ou destino religiosos. Esta nova atitude tomou co rpo em teorias e em criaç ões estéti cas que exploraram uma persp etiva crit ica sobre a religião.

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---- " A emergência de correntes intelectuais que veiculam um discurso cr ítico sobre a religião, ou cert as imagens de Deus, é um sintoma desta vasta transfor mação. Ludwig Feuerbach' (1804-1872), teó logo de formação, escrevia em A essência da cristian ismo (1 841) que a «ant ropologia é o mistér io da teo logia». A religião, para Feuerbach, é a consciência do infinito , ou seja, a consc iência que o ser humano tem da sua essênc ia. Nesta conceção , Deus é a manifestaç ão da interio ridade humana: «a partir do seu Deus tu conheces o homem e, inversamente, a partir do homem o seu Deus». Enraízam-se aqui as diversas conceções modernas que reduzem as ide ias religiosas a uma projeção das necessidades e desejos humanos num além mítico. Neste quadro ideológico, a religião representaria como que um estád io infantil da human idade que os Tempos Modernos superariam def initivamente. Karl Marx (1818-1883)' foi um dos primeiros continuadores de Feuerbach, como o demonstra a tese «o Homem faz a religião, a religião não faz o Homem». Mas o Homem de que Marx fala não é um ser abst rato, é antes, na sua realidade, o ser humano situado num conjunto das relações sociais. Para Max, é esse mundo social que produz a religião. Nesta perspet iva, a religião é o resultado de determinadas co nd ições materiais de vida. Nas ideias religiosas, Marx encontra uma dupla direção: por um lado elas veiculam uma fo rma de dominação, por out ro, refletem o grito dos oprimidos projetado num além ilusório - nisto cons iste o esta do de alienação que descreve, segundo Marx, a experiência religiosa. As ideias religiosas estar iam, pois, ao serviço das ideologias de dominação, garantindo a manutenção do sotus quo e abri ndo a possibi lidade de uma felicidade futura , para além da existência terrena. Também para Sigmund Freud (1856-1939)3, as repr esenta ções religiosas são ilu sões, realização de desejos mais ancestrais da humanidade, cuja raiz se encontra no medo diante dos perigos da vida, na necessidade de reparação da injust iça, nas interrogações acerca da sua origem , na procura de uma autoridade legit imadora, e na vontade de prolongar a sua existência para além dos limites da história. Segundo as conceções psicanaliticas de Freud, a socialização é, essencialmente, um processo repressivo da zona insti ntiva de prazer dos individuos . Esse processo deixa marcas que é necessário tratar. Usando uma das suas metáforas, dir-se-ia que a religião é como que uma enfermaria para o trat amento, com recursos miticos, dos traumas decorrentes desse processo repressivo. Mas a consolação que a religião oferece , na sua conceção, corresponde a um estado infantil da humanidade que é necessário superar.

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Ainda no século XIX, Nietzsche (1844-1900)' pode ser considerado o intelectu al que, de form a, mais acuti lante, teve a percec ão das consequências cult urais desta narrativa moderna de crítica das representações de Deus e de afirmação da autonomia da razão humana .Asua afirmação «Deus morreu» não é simplesmente a afirmação de uma convicção pessoal, a enunciação de um principio provocató rio. O pensamento de Niet zsche pode ser visto como a crónica de um apagamento: apagamento daquele horizonte integrador, horizont e de sent ido a que o crist ianismo havia dado co rporeidade, progres sivamente esvaziado pela crença nas categorias da razão iluminista e pela afirmação da té cnica como a grande educa dora da hum anidade. O próp rio Nietzsche apresentou o seu pensamento como uma «escola da suspeita», na qual os valores tradicionais do passado são questionados e to da a verdade interpretada como perspet iva. A «morte de Deus» é pensada como a co ndição ou a possibilidade de uma nova humanidade: «Morreram todos os deuses. Queremos que agora viva o super-homem». A experiênc ia do século XX - nos seus confli tos, nas promessas não cump ridas de progresso, o impacto destr ut ivo das estruturas da modernidade nout ras culturas - veio a impor alguns limites ao ot imismo antropológico de muitas correntes modernas de pensamento social e político. Neste contexto, será o próp rio projeto moderno de emanc ipação que conhecerá muitas vicissitudes na nossa contemporaneidade. Encont ramos nestas sociedades o rasto dest e vazio de Deus - mas um vazi o ra dica l, sem que outro horizonte o pudesse substit uir.

Texto 1 Nunca ouviram falar do louco que acendia uma lanterna em pleno dia e desatava a correr pela praça pública gritando sem cessar: "Procuro Deus! Procuro Deus!" Mas como havia ali muitos daqueles que não acred itam em Deus, o seu grito provocou um grande riso. 'Ter-se-a perd ido como uma criança?" dizia um. "Estará escondido? Terá medo de nós? Terá embarcado? Terá emigrado?" Assim gritavam e riam todos ao mesmo tempo. O louco saltou no meio deles e trespassou-os com o olhar. "Para onde foi Deus?" Exclamou, "é o que lhes vou dizer. Matámo-lo... vocês e eu! Somos nós, nós todos, que somos os seus assass inos! Mas como f izemos isso? Como conseguimos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inte iro? Que fizemos quando desprendemos a corrente que ligava esta terra ao sol? Para onde vai ela agora? Para onde vamos nós próprios? Longe de todos os sóis? Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima , um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infin ito? Não sentiremos na face o sopro de vazio? Não fará mais frio? Não aparecem sempre noites, cada vez mais noites? Não será prec iso acender os candeeiros logo de manhã? Não ouvimos ainda nada do barulho que fazem os coveiros que enterram Deus? Ainda não sentimos nada da decomposição divina?... os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matámos! Como havemos de nos consolar, nós, assassinos entre assass inos! O que o mundo poss ui de mais sagrado e mais poderoso até hoje sangrou sob o nosso punhal. .. quem nos há de limpar deste sangue? Que água nos poderá lavar? (...] A grandeza deste ato é demasiado grande para nós . Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simp lesmente parecermos dignos dela? Nunca houve ação mais grand iosa e, quaisquer que sejam , aqueles que pode rão nascer depois de nós pertencerão, por causa dela, a uma história mais elevada do que até aqui, nunca o foi qualquer história". O insensato calou-se depo is de pronunciadas estas palavras e voltou a olhar para os auditores: também eles se calavam, como ele, e o fitavam com espanto. Finalmente atirou a lanterna para o chão, de tal modo que se partiu e apagou. "Chego cedo demais", disse então, "o meu tempo ainda não chegou. Esse acontecimento enorme ainda está no caminho, caminha, e ainda não chegou ao ouvido dos homens". Friedrich NIETZSCHE- A Goio Ciêncio. (1882) Trad. de Alfredo Margarida. Lisboa: Guimarães Editores, 1967. 145.

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A crise religiosa dos anos 60

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Na história e soci ologia das soc iedades do At lânt ico Norte é freque nte falar-s e de uma crise reli giosa, nos anos 60 do século XX. Essa crise é descrita como um fenómeno de er osão da «civilização paroqu ial». Este termo designa uma det erminad a organização da sociedade em que as dimensões religiosas da ident idade são aglutinadoras das outras dimensões sociais . Neste contexto, as pe rte nças t inham um território de referência e uma igreja que era o cent ro da at ividade cultua l e cultural. Em particu lar, nas soc iedades camponesas, essa atividade ritual tem uma relação estrutu rai com o curso da vida e os ciclos da natureza (o nascimento, o casamen to, a família, o traba lho, as respostas aos enigmas da vida, a morte etc .). A «paróquia » é, nest a linguagem soc iológica, um conceito metafó rico que visa designar est a estrutura soc ial que foi con hecendo, no curso da história moderna, amplas mudanças - esta crise dos anos 60 pode ser vista como ponto culmi nante dessas tr ansformações. Recordemos que a origem remota do sistema paroquial deve procurar-se no século IV. O Iôdito de toler ància de Constantino, em 313, e o reconhecimento do cristianismo como «religião de Estado» pelo imperador Teodósio, em 380, criaram condições para O crescimento ainda mais rápido do número dos cristãos. Até aí, as comunidades cristãs eram uma existência urbana e podiam dizer-se episcopais ou catedrais. A situação podia resumir-se dest a forma: uma só comunidade por cidade, reunida à volta de uma única mesa para a celebração do memorial da «última ceia» , sob a presidência de um bispo, cuja autoridade e cuja responsabilidade era representada na cathed ra (daí «catedral»), A nova situação social favoreceu a mult iplicação de comunidades, não sob a forma de comunidades episcopais, mas sob a configuração de comunidades entregues à responsabilidade de presbíteros, sob a autoridade dos bispos, esses que antes rodeavam o bispo e com ele concelebravam a eucaristia . Esta t ransformação teve grande impacto na trajetória histérica das instituiçõ es cristãs . Não devemos , no entan to, imaginar que esta «civilização paroquial» se constituiu logo como uma rede cont ínua de territórios e comunidades crist ãs. O historiador José Maltoso, mostro u como as paróquias, no território peninsular, foram surgindo de acordo com as necessidades, interesses e possibilidades das comunidades.

Text o 2 As primei ras paróqu ias surgem por funda ção de respons abilidade episcopal na periferia das cidades que eram centros de dioceses, em igrej as dot adas de clero próp rio, com bat istério (ou igrej a bat ismal associada) e cemitério. Inicialmente não existe um propósito de cobrir sistemat icamente todo o terr itório diocesano: as paróquias fu ndam-se, decerto, à medida que o núme ro de fi éis da respetiva localidade aumenta e que eles desejam ter uma igreja. Todavia, como é natura l, aparecem normalmente em localidades mais importantes como os pagi (centros de te rritórios), os vici (povoações menores sem jurisdição territo rial) ou os castella (povoações fortificadas). José Mattoso - «Paróquia». ln: C. M. Azevedo, dir., Dicionário de História Religiosa, Lisboa: Círculo de Leitores. 373.

A paróq uia como o rgan ização t errit ori al e for ma de organ ização da pe rtença soc ia l, no sentido em qu e a conhece mos modernamente, veio a encontr ar, um impulso decisivo no Conc ílio de Trent o, na Europa cat ólic a, sob a recom endaç ão de qu e foss em criadas mais paróquias para ass im socorrer melhor as necessidades dos crentes. A (contra )refor ma cató lica que o Concílio de Trento impulsionou é, historicament e, o fator decisivo para generalização do siste ma paroquial. O Concílio diz aos bispos que deverão det erminar com clareza as populações que pertencem a cada paróquia, para que o «pasto r possa reconhecer as suas ovelhas», de quem do ravante receberão licitamente os sacrame ntos . Aí se condenam, tam bém, todos os

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que administram sacramentos indist int amente, segund o as solicitações, sem terem em conta o governo do território. Percebem os, assim, que a organização paroquial se desenvo lveu no quadro de uma cultura marcada por sociabi lidades que se desenvolviam sobretudo numa escala local. Nessa escala de per tenças locais, a igreja era o dispositivo central do território (muitas vezes um centro geográf ico, mas sempre um cent ro simból ico), um recurso fu ndamental para a construção da ident idade comun itária; a relação entre o pároco e os crentes estabelecia -se no quadro de uma proximidade espacial, proxim idade que perm it ia o acesso fácil aos ritos, à pregação e à instr ução religiosa; nesse centro se intercedia pelas cond ições favo ráveis de cultivo e pela boa colheita; enquanto com unidade , esta paróquia reúne não só os que habitam o mundo dos vivos, mas tam bém os def untos , numa linhagem crente cont inuamente celebrada.

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Ilustração 7. Suporte devociona! exte rior

O soc iólogo francês Yves Lambe rt publicou, na década de 80 do séc ulo passado, um dos estu dos mais impo rta ntes sobre as transfor mações soc iais desta realidade paroquial, no universo cató lico: Deus mudo no Bretanha (1985). A partir de uma vasta documentação, o soció logo f rancês seguiu os paroqu ianos de Limerzel, localidade da Breta nha, desde o período que antece deu a Primeira Grande Guerra ao período post erior ao Concílio Vat icano II. Esse estudo diac rónico permit iu perceber como se passou de uma situ ação em que as insti t uiçõ es cató licas t inham a capac idade de representa r as cren ças e valores comu ns, atestadas nas prát icas públicas e privadas, até a situação dos anos 60, em que se descobrem os traços de uma continuada erosão . Antes de 1930, raras eram as ausênc ias na missa dom inical; em 1934, só três ou quat ro pessoas não marcavam presença; em 1936, o pároco já deplorava a diminuição do número de homens e de jovens na missa; em 1956, regist am-se 24 ausências; em 1958, 60 a 80, e 20 pessoas abandona ram j á os seus deveres de contribuição para o suste nto da paróquia. Em menos de tr inta anos, sob o impacte das mod if icações no âmbito dos modos de vida que acom panharam a Segunda Grande Guerra, essa «civilização paroquial» apresentava sinais de tra nsfo rmação rápida part icularme nte visíveis nas «observâncias» que descre viam a ident idade cató lica, mas també m em algumas prát icas devociona is tr adicionais.

No conte xto port uguês, descob rimos t ransformações similares no est udo do teólogo e antropó logo José da Silva Lima - Deus, nõo tenho nodo contra (1994). A sua invest igação sobre o Alto Minho permitiu perceb er como esta região, fo rtemente marcada por uma religiosidade tradicional, co nheceu amplas transformações , a partir dos anos 60, ta nt o nas t rajetórias biográfica s individuais, quer nas prát icas com unitá rias. A industrialização, a urbanização, a inf luência de modos de vida vindo s de fo ra, por via da emigração, a escolarização, a modif icação do amb iente polít ico depois de 1974, int roduziram fato res de mudança nesta soc iedade que, agora, já não pode ser represent ada como uma aldeia rodeando o campanário da sua igreja. Neste cont exto de mudança, a Igreja cató lica deixou de ser o único centro do espaço vit al dos minh otos - a vida social destes tornou-se policêntrica. Dir-se-ia que a Igrej a católica contin uava a ter uma notáv el inf luência nos it inerários de construção das identidades, mas co nvivendo com múlt iplos «campanários». As soc iedades marcadas historica mente por esta cultu ra paroquial estav am cada vez mais marcadas pelos sinais do pluralismo, exigindo novas aprendizagens para a gestão da vida co let iva e para co nstrução da ident idade crente. A paisagem religiosa t ransfo rmo u-se profu ndamente quando começou esse enor me movimento de populações do «campo» para «cidade» , part icularment e nos sécu los XIX e XX. A Igrej a cató lica reagiu a essas tr ansfo rmações em várias f rentes : multi plicou as paróquias dentro da cidade, com o intu it o de enquadrar numa rede de proximidade os cre ntes ; deu um novo imp ulso a outras formas de inscr ição institucional no espaço, como a construção de colégios , universidades, hospita is, etc ., e suas capel anias; mas também favoreceu formas de enquadramento já não limitadas às bases terr itoriais, dinamizando a constituição de redes de associa -

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tivismo confessional (associações profissionais , de lazer, de int ervenção social) e de movimentos eclesiais, como a Ação Católica, que se adaptavam bem ao princípio de mobilidade das sociedades modernas. Mas, evidentemente, essas novas formas de inscrições da Igreja catól ica concre t izavam-se num espaço soc ial onde não era já possível dar cont inuidade ou remodelar um monopólio religioso.

Texto 3 Uma parábola da modernidade religiosa Uma Universidade de Verão organizada em Andorra há alguns anos deu-me a ocasrao de descobrir os encantos e os contrastes do Principado, esse Estado miniatura anichado no coração dos Pirenéus. Os vales de Andorra, que é necessário penetrar a pé, abandonando as estradas entregues à torrente ininterrupta dos turistas, abrigam aldeias empoleiradas, largamente desertas, mas que foram, no século passado , densamente povoadas. Não é preciso ter muita imaginação para fazer ideia do que podia ser a vida dos seus habitantes nestas condições de isolamento, sobretudo durante os meses de um interminável Inverno de montanha. Ora, cada uma destas aldeias é o escrín io de uma maravilhosa igreja, desse românico lombardo tâo característico da região. No centro deste universo que foi semelhante a si próprio durante séculos, a igreja era o ponto fixo, o local onde se concentrava a vida da comunidade. As pessoas reuniam-se aí, para rezar mas também para discutir os assuntos comuns. A religião estava no coração da existência quotidiana. Os sinos ritmavam o tempo. As festas religiosas regulavam os ciclos da vida dos indivíduos e do grupo . Hoje em dia já ninguém frequenta estas igrejas, salvo para admirar os traços culturais de um mundo desaparecido. Celebra-se ainda a missa aqui ou ali, mas de longe em longe. A animação episódica de talou tal lugar de culto, muito mais do que reativá-Io, confirma o desvanecimento da vida religiosa local em termo ordinário. Mesmo a festa da Virgem de Meritxel1 que, até aos anos 60, reunia a total idade da população de Andorra no fim do Verão, viu diminuída a sua capacidade de mobilização. Marca-se ainda o acontecimento com solenidade, como convém quando se trata de um lugar de memória maior do povo de Andorra, mas as famílias já não encontram nesse dia a ocasião de um ajuntamento que, para as gerações precedentes, constituía um evento social de primeira importância. Com certeza que este lugar atrai os amadores de turismo verde, os caminhantes ou os peregrinos de um género novo, à descoberta dos lugares espirituais de forte carga simból ica dos Pirenéus . Nada que ver, todavia, com o fervor das multidões firmemente enquadradas pelo clero, de que um pequeno museu, instalado nos locais do santuário, guarda a imagem. Hoje em dia, a verdadeira vida está , com toda a evidência, noutro sítio, do lado sem dúvida das artérias poluídas pela enchente dos automóveis e dos autocarros que atravessam o centro da cidade de Andorra-Ia-Vela. A transformação do cenário, neste fundo de vale dos Pirenéus, é completa: as lojas isentas de impostos sucedem aos bancos, engolindo as casas antigas, igrejas incluídas . Os turistas, ocupados antes de mais em fazerem bons negócios, enchem a calçada e acumulam confusamente nas suas sacas cartuchos de cigarros, perfumes ou álcoois a taxas reduzidas . As preocupações da religião parecem completamente ausentes deste universo invasor do consumo e da troca mercantil. E contudo... Temos a surpresa de descobrir que uma catedral de cristal, de uma feitura arquitetónica vagamente futurista, ergue desde há pouco tempo uma imensa flecha de vidro sobre esta atividade

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comercial int ensa. No adro do edifício, que impressiona pelas suas dimensões, aperta-se uma multidão numerosa: famílias , criança s, jovens, pessoas idosas. to a religião que os reúne? Não podemo s duvid ar de que uma forma particular de piedade aí está empenhada, nutrida de crenças, capaz de susc itar práticas rituais , esforços de asce ses e mesmo exper iências de êxtase inéditas . O centro «termo-lúdico» que na realidade abriga a «cat edral» de aço e de cr ist al, com as suas piscina s quentes e frias, os seus «banhos egípcios», as suas banhe iras fe rvilhantes, as suas saunas e as suas salas de musculação, é de facto, num sentido, o lugar de um culto: culto do corpo, da form a física, da juventude indef inidament e pres ervada, da saúde e da realização pessoal, no qual se expr ime qualquer coisa das expect ativas e das esperanças dos nossos contemporâneos. Qualquer coisa a que o mundo t radicional da religião parece bem estranho e com o qual, todavia, estabelece um laço. Danfê!e Hervieu-L éger - o peregrino e o convertido: Q religião em movimento. Lisboa: Gradiva, 2005 , 17-19.

Secularização e laicização Os te rmos secularização e laicização tornaram -se muito comuns para descrever este conju nto de mud anças que habitaram as sociedades marcadas pela história do cristianismo, em particular, a part ir do sécu lo XVIII. O te rmo laicização tende a identificar, sob retu do, as dimensões pol ít icas deste processo, no qual se requali f icou a separação entre Igrejas e Estado, diminuindo a capac idade de aquelas condensarem as crenças e valores co letivos. Neste co ntexto , a esfera religiosa (const itu ída pelas suas insti t uições, agentes e valores própr ios) tornou-se um campo inst it ucional especializado, part e, ele próprio, de um campo simbó lico-cultural mais vasto. Passou- se de um mode lo de socie dade hierarquizada a part ir de um centro - uma determinada conceção de Deus - para um modelo de soc iedade diferenciada funcion almente. onde os diversos dom ínios da experiê ncia humana - a ét ica, a estética, a economia, a política. t ambém a religião - têm a sua auto nomia própria. O t ermo secularização descreve, preponde rantemente, os aspetos mais amplamente culturais deste processo de mudança , no qual os quadros de valor e significaçã o são cada vez mais plurais, abertos à quest ão religiosa, mas não dependent es dela necess ariamente. A religião j á não se explica soc ialmente apenas a parti r da lógica de uma heranç a recebida. Torna-se objeto de uma escolha num amplo campo de ofe rtas. Este é o amb iente em que os indivíduos passaram a orienta r-se, quanto à inte rrogação religiosa, segundo o seu int eresse pessoal, segundo a capaci dade de resposta da religião às suas inquietações na procura de bem- est ar existencia l. O uso do te rmo secularização para descrever as mudanças que desc revem a modernidad e das sociedades dit as oc identa is não tem de se co nverte r numa espécie de profecia acerca do f im da religião - mesmo se muitos intelectuais privilegiaram esta abordagem. O te rmo descreve uma tra nsformação de ordem civilizacional na qual o domínio das representações , dos valo res e das práticas religiosas sofreu uma ampla re modelação quanto ao seu lugar e papel nas sociedades. O conceito «secularização» procura assim ser um utensí lio para análise de um processo de mudança que se exprime em diversos eixos:

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------------- - ---- - - - - ------ - - - - - - , • dessacralização do mundo; • perda de protagon ismos das instituições religiosas; • menor interesse pelo sobrenatu ral; • recuo da inf luência púb lica da religião; • transferência de represen tações, crenças e poderes da esfera religiosa para a esfera da atividade secular; • passagem socia l de um estado religioso (onde os significa dos religiosos impe ravam) para um outro marcado pelos ideais de emanc ipação socia l e individual; • trans formação do campo religioso no sent ido de uma maior atenção às dimensões religiosas subjetivas e orientadas para a exper iência do mundo (bem-es tar, autoconhecimento, moti vação , etc.). Na proposta de um dos mais importantes sociólogos da secularização, Peter Berger, estes dois eixos preenc hem uma via dupla de mudança: ao nível das instituições religiosas e ao nível dos símbolos re ligiosos. Pode, assim, falar-se de uma secularização objetiva , que diz respeito ao plura lismo que caracteriza a vida soc ial , e de uma secularização subjetiva, que se concre t iza no desmoronamento de certas visões religiosas do mundo. É essa dupla via de mudança que produz o princ ipal efeito secularizante, segundo Berger: a pluralização das visões do mundo. Nesta nova situação cultu ral, vive-se a «pro ibição» de tomarmos como preponderante qualquer visão do mundo. Assim, a religião t onou- se uma orientação pessoal . Pete r Berger afir ma: «A realidade suprema para a qual remete a religião é transposta do cosmos ou da história para a cons ciência individual. A cosmo logia torna-se psicolog ia. A história torna-se biografia» (The Socred Canopy: Elements of a Sociology Theory af Religion. New York: Doubleday, 167).

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3.2. Individualização e desinstitucionalização do religioso Os diversos fenómenos de contestação das instituições e da autoridade que , de forma emb lemát ica, são asso ciad os aos aconteciment os parisienses do chamado «Maio de 68» são um po nto de chegada de uma tendência cultural nas sociedades do Atlâ nt ico Nor te : a afir mação generalizada dos valores da liberdade indi vi dual em detr imento dos valores ligados à auto ridade e à tradição. É esta tendência que permite compreender o progressivo distanciamento dos indivíduos face às institu ições que geriam a vida coietiva - t anto as inst it uições religiosas, como as col et ivas. O créd ito dado a uma narrat iva ou a uma prát ic a religiosa pode não depender j á da autoridade da inst it uição que a veicul a, mas da possib ilidade de o indivíduo tornar «suas» tais narrat ivas e prát icas, ou seja , a possi bilida de de as adequar à sua vida . A mudança soc ial qu e se con heceu no fin al do século XX, nas nossas sociedades, não se reduz à alteração do lugar do religioso no espaço púb lic o. A centralidade das esco lhas ind ividuais e as múltiplas possibilidades de bri c%ge religioso dã o con ta de uma ampla reconfiguração do fe nómeno re ligioso. A partir dos anos 70 do sécu lo pass ado , as Ciênc ias Sociais foram conhecendo um vocabu lário novo , para além dos conce itos de secu larizaçã o e laicização, na procura de um melhor c onheci mento de uma realidade em muda nça. Podemos mesmo fazer o inventário desse léxico.

a) Privotização. O termo pro cura pôr em evidência que, nas sociedades modernas ocidenta is, o religioso se ti nha deslocado da cena pública, da esfera coleti va, para o domínío privado dos indivíduos. b) Desinstitucionalização. O termo ident ific a o fenóm eno da perda de infl uência das institu ições religiosas sobre a soc iedade - no contexto mais amplo de erosão de out ras instituições na socied ade (parti dos políti cos, sindica to s, uníversidades, etc.). O termo descreve tamb ém o distancíamento dos própr ios indivíduos relativam ente às inst ituições religiosas, mesmo quando não abandonam uma dete rmi nada pertença crente. Assim, por exemplo, na Europa, cada vez mais prot estantes e cató licos deixaram de esta r presentes , com regularidade, nas assembleias dominicais, sem que, individualmente, tenham renunciado a aut oclassif icar-se como cat ólic os ou protest antes. c) Regresso do reli gioso. Muitos dos que cont inuaram a est udar a criat ividade religiosa das múltiplas modernidades perceb eram que era possível identif icar fenóme nos de reafi rmação da religião na cena pública, por vezes fort alecendo comunita rismos ou nacionalismos. Ent re out ros exemplos, a reafir mação das ident idades religiosas em situações de conf lito (Irlanda do Norte, Ex-Ju goslávia, etc.) ou o for ta lecimento de novas fo rmas de teocr acia isl âmica (a revolução iraniana). Neste quadro de leit ura, a tese de Samuel Hunt ington sobre o «choque das civilizações» foi frequentemente ut ilizada. Nesta perspetiva, face declínio das grandes ideologias, estariam a revitalizar-se as dimensões étni cas e religiosas das ident idades, conduzind o, a part ir destas , novas oposições e conf litos. Mas esse regresso é também ident if icado na criatividade social da religiosidade moderna: a multiplicação dos chamados «novos movimentos religiosos» ou a popularidade massmediát ica de figuras religiosas (como João Paulo II, Madre Teresa de Calcutá , Dalai Lama ou Desmond Tut u). d) Recamposição. Enquanto nos anos 60, o vocab ulário que descrevi a as t ransfo rmações no campo religioso privilegiava a semãnt ica da perda, da decadência, o léxico socioant ropo lógico dos anos 90 dava muito mais atenção a expressões como «recomposição da religião». Tratava-se de uma mudança de perspet iva. O olhar dos cient istas soci ais j á não estava focado apenas nos indicadores que mostra vam um mundo religioso tradicional em declínio. Esse olhar estava agora mais ate nto à criat ividade religiosa própria das socíedades modernas , procurando ident if icar os process os de reconfiguração ou reest ruturação do religioso, nos planos individual e coletivo. e) Individualizaçãa. A part ir dos anos 80 a tese da individualização do religioso ganhou cada vez mais ate nção. Observava-se que à diminuição da importãncia social da religião (na regulação da experi ência coletiva) não correspondi a necessariamente uma quebra da sua import ãncia subje tiv a. O religioso persist ia na medida em que era percebido como uma forma disponível para o indivíduo se exprimir. Assim se compreende como as narrati vas e símbolos religiosos, e em partic ular bíblicos e cristãos, cont inuaram muito presentes em todas as formas de expressão artíst ica. Esse predomínio da religiosidade como fenóme no subj et ivo conduz-nos à perceção de que a expressão religiosa subsiste muit o disseminada, deslocada dos lugares esperados. Na medida em que a «gest ão» do religioso passava das inst it uições para o indivíduo, o dest ino dos signif icantes e signif icados religiosos tornava-se muito imprevisível. Este fenómeno não deixou de conhecer novas concretizações até aos nossos dias.

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f) Plura li zação. A parti r dos anos 70, as sociedades europeias ocidentais conhec eram um ampio fenó meno de diversificação religiosa. Por via do aparec imento de novas «ofertas» religiosas e em consequência dos flu xos migratórios, estas sociedades , antes muito homogé neas na sua identidade religiosa (maioritariamente cató licas ou protestantes, ou preponderante mente bi-confessionais), fazem a experiênc ia de um pl uralismo reiigioso com uma evidência inédi ta . Alguns Est ados, como o por tuguês, tiveram de proceder a alterações legislat ivas para respo nder aos novos desafios da liberdade relig iosa - em Port ugal, a Lei da Liberdade Religiosa foi promulgada em 2001.

g) «Des-s ecularizaçãa». O termo foi cunhado por Peter Berger. Ao rever a sua própria teoria da secularização, já no f inal da década de 90, ele observa que o fe nómeno mais característico desta fase da modernidade é a reafirmação pública da religião. A import ãncia do Islão na agenda internacional, a atenção global dada a f iguras religiosas como o Papa ou o Dalai Lama, a grande expansão de aigumas Igrejas cristãs em algumas zonas do globo , são fenómenos que não apontam para a erosão social do religioso, antes põem em evidência a reafirmação das identidades religiosas na cena pública.

3.3. Identidades religiosas no mundo: novas geografias Quando nos referim os à identi dade de alguém esta mos a falar do conjunto de rec ursos qu e lhe permitem reconh ecer as suas pertença s e ref erências, dizer quem é e onde está. A metáfora da geo graf ia pode aqu i ser eficaz. Perder a ide ntidade é estar à deriva sem os me ridia nos e para lelos que nos permitem a to do o momento dizer onde estamos, e especif icamente , onde estamos em relação a todos os outros.

O ant ropó logo Marc Augé escre veu um ensaio acerca do papel do son ho nas culturas (A guerra dos sonhos, 1997). Ele narr a aí as suas visitas a uma com unidade pu mé-ya ruro, na Venezuela, que vive muit o perto da fronteira colo mbiana. Segundo a sua desc rição, e à semeihança de outras geografias sul-americ anas, os pu mé vivem uma vida muito pobre, emp urrados pelos criado res de gado para as zonas da planície, onde a caça rareia e os terrenos são menos fé rteis . Tinham mantido até ent ão uma teimosa distância face às tr ansformações do meio socia l envolvente, resistindo mesm o aos mais persistent es dinamismos de cristianização, proc urando manter viva a sua atividade ritual própria. Marc Augé dá uma particular atenção a uma cerimónia celebrada du rante várias noites à volta de um xarn ã-cantor que integra o sonho na expressão cel ebrativa ritual. Para os pumé, um mesmo indivíduo pode reun ir várias personalidades, designadas de pum etho . Durante a cerimó nia, uma das persona lidades do xarnã viaja até ao mundo dos deuses e dos antepassados. Por volta da meia -noite, um dos deus es desce sob re o xamã-cantor. Os out ros pum é descobrem essa presença quando o canto de xarnã se torna mais firme e be lo - «são os deuses que cant am», dizem. O fen ómeno de possessão voca l, no entan to , não é o principal interesse dos pum é. Importam-se mais com as narrat ivas que descrevem a viagem em sonh o das diversas personalidades do xamã-cantor ao mundo dos deuses e antepassados. A recitação desses sonh os é a atividade narra tivo-simbó lica mais importan te nesta cult ura. Mas quando se leem as t ranscrições mais recentes dessas narrati vas, descobrimos que esse mundo tem a configuração de uma cidade hipermoderna, onde se descobrem automóveis, aviões, toda a espécie de coisas automáticas, bens de consumo superabundantes, ruas grandes com iluminação, edifícios altos e luminosos. Torna-se claro que aque le mundo dos deuse s é uma visão metamorfoseada de Caracas . São raros os contactos dos pum é com a cult ura da grande metrópole. Bastam aquelas raras deslocações, o avistamento do rasto de aviões no fi rmamento, os cartazes levados para as suas terras por um qualquer candi dato a governador, para que os pumé integrem novas imagens no seu brico/age mítico e rit ual. Nest e sentido, pode dizer-se que a sua cultura está , assi m, viva - t ransform a-se, integ rando novas imagens de mundo. Mas é certo qu e luta m co ntra uma te rr ível adversidade ecológica e demográfica: o seu sistema econó mico de trocas não te m co ndições para subsist ir; cresce o índice de mor talid ade infantil; persis te uma baixa esperança média de vida. O dest ino alt ernativo é a emigraç ão de muitos para as bolsas de pobreza de Caracas . Os que f icam tê m a consciência do risco de ext inção que os ameaça. Isso t ranscreve- se já na sua exper iênc ia ritual: «são cada vez menos as vezes em que os deuses descem para os visit ar», dizem. O problema principal desta comunid ade não é a suposta descara cte rização dos seus imaginários. Esse processo est á bem ativo, capaz de int egrar cois as nova s (de uma língua diz-s e que está mort a por não poder inte grar, através de falantes, a co ntínua reinvenção do mundo). O qu e os ameaça verdadeiramente é um sistema sacio económi co incapaz de os integrar na sua diferença. Como subli nha o fil ósofo Olivie r Abel - discípulo de Paul Ricceur -, a criatividade de uma cultura , para além da sua capacida de de resistência e de absorç ão dos novos flu xos, descobre-se não t anto

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na sua capacidade de organizar a repet ição, mas ant es nesse desafio de se «enraizar para invent ar» . Muitas das divergências mais salientes, que encontra mos dentro dos grupos religiosos, dizem respeito à inte rpretação deste diálogo entre «enraizar» e «invent ar» . Alguns, perante a agressividade da mudança, fecham-se numa memória crista lizada. Outros imaginam que só rompendo com o peso dessa memória se pode reafirm ar a aute nt icidade dos valores que transportam. Na históri a religiosa dos povos, est as divergências conduziram mesmo a separações que perduraram no tempo.

Os problemas relat ivos à tradição e à mudança são part icu larm ente relevante s no caso das ident idades religiosas. A ident idade cult ural é, por natu reza, «criação». Uma cuit ura que se reproduz como se fosse uma reserva ou um gueto dito u a sua con denação à morte . Quando se pen sa numa cult ura como algo que tem que ser protegido da din âmica da mudan ça socia i, na ilusão de uma pureza agredida e quase perdida, está -se , porvent ura, a contribuir para a sua morte. Os sist emas simbó licos, como por exemplo as religiões, vivem de uma dupla força: a memória que tr anspo rta m e a capacidade de responder às novas inquietações das soci edades. O antropólogo Clifford Geertz apres entava a cultura co mo um mecan ismo regulador da comunicação entre os indiv íduos, sistema partilhado de normas e cód igos que perm item ao indivíduo movimentar-se e reconhecer-se no espaço social. Por isso mesmo, a con str ução da ident idade cult ural alimenta-se de complexos simbólicos que permitem ao indivíduo, co mo se de bússolas se t rat asse, o recon hec imento dos limit es do seu «eu» face ao «outro». Outrora uma certa terri tor ialidade das cuituras ajudava a esse proc esso de ident ificação: o «eu» e o «nós» definia m-se mais facilmente perante o «outro», exte rior (na Europa, o muçulmano) ou int erior (o judeu). Os dinamismos soc iais atu ais aproximaram esses «out ros», uma vez que se mult iplicaram aquelas zonas onde as cultu ras se tocam, promovendo novos desenhos multiculturais na geografia humana. Ora esse «desen raizamento» pode promover o desmoronamento das imagens estáv eis do mundo, os rese rvatórios das representa çõ es coletivas. Neste novo contexto de tr ansfo rmação das escalas do «loc al», do «t ransiocal» ou do «global», descobrimos espaços geográf icos que já não podem ser ident ifi cados de modo exclusivo com uma determinada tradi ção e po demos assistir a encontros entre culturas que, no pass ado, se anate matizaram mutuamente . Isso acontece em divers as direções, para além das fronteiras, nesse movimento massivo das popu lações para as cidades. Os novos encontros entre religiões e cu lturas, não resultam apenas das deslocações que conduzem a novas geograf ias. Derivam ta mbém das novas possibilidades comunicativas. Hoj e, damo-nos co nta de qu e muitas mensagens circulam à escala global, rompendo com as f ronte iras que delimit avam os sistemas cultu rais. Percebe mos, assim, porque é que o tema da perd a de ident idade e do desenraizament o cultural se tornou tão recorren te. Grande parte deste s acontecimentos relaciona- se com os processos de globalização cont ernpor áneos. Num plano objetivo, o conceito de globalização pode designar o crescendo de interdependênci as que as sociedades humanas têm vindo a conhecer; numa ordem subjetiva, o co nceito tende a co br ir aqueles fa ctos que aponta m para a presença, no quot idiano dos indivíduos e das comu nidades, de uma consciência planetária. O ant ropólogo App adurai prop õe o conceito de «etn opaisagem» para int erpretar esta nova realidade.

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Texto 4

Por etn opaisagem designo a paisagem de pessoas que constit uem o mundo em deslocamento que habit amos: tu ristas, imigrantes, refugiados , exilados, t rabalhadores convidados e out ros grupos e indivíduos em movimento constituem um aspeto essencial do mundo e parecem afeta r a política das nações (e entre as nações) a um grau sem precedentes. Não quero com isto dizer que não haja comunidades e redes de parentesco, amizade, trabalho e lazer, bem como de nascimento, residência e outras formas de filiação relativamente estáveis. Quero dizer que, por toda a parte o tecido destas estab ilidades é feito no tear dos movimentos humanos, à medida que aumenta o número de pessoas e grupos que têm que enfrentar a realidade de terem que se deslocar ou as fantasi as de quererem deslocar-se. Além disso, est as realidades e esta s fantasias fun cionam agora em maior escala, pois os homens e as mulheres das aldeias da fn dia não pensam apenas em deslocar-se a Ponne ou a Madrasta , mas sim em mudarem-se para o Dubai e para Houston , os refugiados do Sri Lanka encontram-se tanto no sul da fndia como na Suíça, t al como os Hmong vão para Londres ou para Filadélfia. E como o capital internacional desloca as suas necessidades, como a produção e a tecno logia vão gerando necessidades diferentes, como os Est ados-nações alteram a sua política para populações refu giadas, estes grupos em movimento podem nunca conseguir deixar descansar por muito tempo a sua imaginação. Arjun Appadurai - Dimensões culturais da globalização: a modernidade sem oe íae. Lisboa: Teorema, 2004: 51-52.

Este contexto de instabilidade dos mundos referenciais da memória dos grupos humanos pode, em certas situa ções sociais, desencadear o medo do «outro», raiz de muitos comport amentos de intolerância. Mas, noutros casos , os novos encontros entre culturas abrem novas possib ilidades de diálogo e de reconciliação das memó rias.

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3.4. Novas formas de religião no mundo contemporâneo Novas religiões, novos movimentos religiosos As reli giões nã o s ão fenómenos humanos estáticos - mesmo se, nas culturas, elas se revelam decisivas quanto à capacidade de representar o que permanece para além dos rit mos da mudança social. As religiões moldam e s ão moldadas pelos context os em que se enraízam. A histó ria do f enómeno reli gioso faz-nos descobrir, nas diversas t radições, dinâmicas contestatá rias ou reform istas que introduzem mudanças ou cond uzem a situações em que novos grupos religiosos se afirmam. Falar de novas reli giões ou novas espirit ualidades não, é pois falar de um fenómeno «novo». Mas a emergência de novas propost as religiosas e espirituais tem sempre o «ar» do seu tempo.

Texto 5 À medida que os indivíduos e as comunidades religiosas enfrentam novos desafios, como resultado, por exemplo, de migrações para novos países e culturas, ou até mesmo como consequência da reflexão sob re as incertezas e as questões levantadas pelos marcos históricos que se aproximam - como o f im de um século ou, de forma mais significativa, o início de um novo milénio - parecem exercer-se pressões sociais e psico lógicas subtis, as quais podem levar a novos desenvol vimentos religiosos por vezes dramáticos [...]. Por outro lado, quando as religiões e as cultu ras se cruzam, o result ado é freq uentemente o surgimento de novas questões, visando algumas a integração inter-religiosa, enquanto out ras resistem ao diálogo e exploram percursos de oposição fu ndamentalista . Existem, por to do o mundo, numeros os exemplos de movimento s que surgiram como resultado da combinação de trad ições religiosas .Isincret isrno), ou como fruto da resistê ncia a t radições estrangeiras ou heréticas. Na Melanésia, por exemplo , o impacto do comércio europeu , do governo ocidental e das missões cristãs levou ao surgimento de uma grande quantidade de novos moviment os. Alguns cont inuam a ser essencialmente cristãos, enquanto outros são uma mistura de tradições cr istã e indígenas, e ainda outros são movimentos indígenas proféticos, que resistiram ao impact o das religiões e das culturas estrangeiras. Christopher Part ridge - «Intro õuçãc». ln: Enciclopédia das Novas Religiões. Editorial Verbo, 2006, 14.

Em novos conte xtos sociais e culturais, podem surgir inovações religiosas - mais ou menos dependentes de t radições anter iores - que visam responder a outr as inquiet ações e outras pergunt as. O que significa «novo» quando falamos de «novas religiões»? Não existe um consenso , entr e os invest igadores, quanto à identificação das correntes religiosas que se afirmam a part ir do início do século XX. A expressão «Novos Movimentos Rel igiosos» é bastante recorrente na sociologia das religiões para designar as inovações religiosas pós-1945, na América Norte e na Europa. Uma parte signif icat iva nasceu nos EUA e na Grà- Bretan ha, migrando em seguida para a Europa continent al. Mas de facto, a inovação religiosa que se af irmou no século XX não tem apenas esta geografia. A índia ou o Japão conheceram a afir mação de novas correntes ligadas a personalidades religiosas diversas algumas instalaram-se no Ocidente. Tenha-se em conta, também, as novas religiões do sul do hemisféri o, como as resultantes do sincretis mo afro-brasileiro. Note-se que uma part e destas correntes relig iosas, que se afirmou mesmo depois da Segunda Guerra Mundial, tem origem em acontec imento s anteriores a 1900 - como é o caso das Teste munhas de Jeová, a Igreja dos Santos dos Ultim os Dias, a Ciência Cristã ou a Sociedade Teosófi ca. «Novo» quer aqui dizer que se t rata de uma alternat iva às t radições religiosas de longo e médio curso. Mas ta l não significa que não tenham qualq uer relação com essas tr adições.

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facto de se usar uma catego ria como «novas religiões» ou «novos movimentos religiosos» não significa que, para além da sua contemporaneidade, outros t raços aproximem estas propostas religiosas. Elas podem-se apresentar de forma muito diversif icada. J. Gordon Melton e Robert Moore construíram um quadro em que as novas religiões se organizam por famílias, privilegiando, na sua ident if icação, os t raços que apelam a origens e infl uências comuns. Por seu lado, Roy Wallis preferiu usar uma tipologia conc ernente às formas de relação com o «mundo». Na sua perspetiva, essas corrente s podem esta r em concordância com o mundo, renunciar ao mundo ou ser complacentes com ele. Por exemplo, o Movimento do Potencial Humano, a Meditação Transcendental ou a Igreja da Cientologia, não querem romper com o mundo, pret endem oferecer novas fór mulas - de autoc onhecimento, de mobilização das «energias», de con hecimento de «vidas anteriores» , etc. - para nele ser bem- sucedido. Outros veem o mundo como cor rompido, exigindo-se aos fiéis, o afastamento. Est ão neste caso os grupos que acabam por conduz ir os seus crentes a uma trajetó ria de afastamento da fam ília e de corte com outras relaçõ es sociais, conduz indo à constituição de comu nidades de «separados» , com frequência, reunidos à espera de uma últ ima intervenção de Deus. Entre outros exemplos, o Ramo Davidiano de David Koresh (muitos dos seguidore s morreram tragicamente no incêndio de Waco, em 1993), a Igreja da Unif icação, os Meninos de Deus (depois conhecidos como A Família) ou a Ordem do Templo Solar. O suicídio organizado dos 900 membros do Templo do Povo de J im Jones , em 1978, em Jonestown na Guiana, é um dos mais dramát icos casos de antecipação desse «dia de purif icação f inal» .

MBU D D US S OrA RESP STA

O último conj unto referido por Roy Wallis caract eriza-se por uma olhar mais complacente sobre o mundo. A humanidade é vista co mo tend o feito um percurso de afastame nto de Deus, sendo necessário agora um grande movimento de conversão aos desígnios de Deus. O neopentecost alismo, os agrupamentos de tipo carismático, ou até certos novos movimentos e novas comunidades dentro da Igreja cató lica, aproximam-se desta sensibilidade.

Texto 6

As novas religiões contam-se entre os resultados mais visíveis das mudanças que impulsionam a cultura ocidental para o século XXI. As instituições religiosas, como muitas outras , foram postas em causa pelas forças que alteram e enfraquecem as estruturas seculares tradiciona is da sociedade ocidental. Estas instit uições, perante as novas religiões, passaram a tentar conservar, proteger, defende r, e fazer reviver, a sua própria vida religiosa. Muitas destas tentativas obtiveram um êxito considerável, mas algumas instituições demonstraram ser inef icazes na preservação do apoio aos ant igos crentes. As novas religiões surgem como um desafio perante a insuficiência das comun idades religiosas mais antigas. J. Gordon Melton - «Prefácio) . ln: Enciclopédia das Novas Religiões. Editorial Verbo.

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, - - -- - - - - - - - - - -- - - - -- - - - - - - - - - - -- - Fundamentalismo Raros são os casos em que a denominação de movimentos religiosos e cultur ais têm atas de nascimento tão identi ficáve is. No dia 1 de Julho de 1920, Curtis Lee Laws, protagonista nos EUA de diversas discuss ões reformista s dentro da esfera protestante , lançava no edito rial do periódico The Watchman- Examiner a seguint e proposta :

Texto 7

Nós propomos aqui e agora que um novo termo seja adotado para descrever aqueles que entre nós insistem na inalterabilidade das referências . O termo Conservotives está demasiado conotado com as forças reacionár ias de qualquer meio. O termo Premillenialists não é suficientemente global, está demasiado ligado a uma doutrina em particular. O termo Landmakers' tem o inconveniente histórico de estar conotado com um grupo particular de conservadores radicais. Sugerimos que aqueles que permanecem ainda firmemente agarrados aos grandes fundamentos (Fundamentais) e que estão, regra geral, prontos para se envolverem numa batalha por esses fundamentos, sejam chamados Fundamentalists. É com este termo que o chefe de redação do Watchman-Examiner quer ser chamado. Por isso, quando ele usar esse termo f á-lo-a em jeito de cumprimento e não em sentido depreciativo. Curtis Lee Laws, «Convention Side Llghts» , The Wotchmon-Exom;ner, 1 de julho de 1920.

1 [Lexical Os /andmokers representam uma te nd ência batis ta pa rtid á ri a de uma eclesiologia «vislbittst a», aceitando ape nas a auto ridade da comun idade local. Os premlllenJoJ,sts relativ izavam a pe rtença concreta a denominações históricas perante a priorida de que e necessa no dar à «Igreja invisfvel ».

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Laws insere, assim, o próprio jornal que dirige nas querelas que habitavam então , nos EUA, a Northern Baptist Canvention. Algum t empo ant es, Laws t inha mesmo aderido a um grupo de cento e cinq uenta cristãos batis tas que procurava restabelecer os fund amentos da sua fé no Novo Test amento . Tratava-se de uma t endência, no seio desta denominação cristã, de cariz conse rvador, que procurava um maior controlo sobre os estudos teo lógicos e desenco rajava as iniciativas ecuménicas que se estavam a afirmar em meio protestante. O t ermo Fundam entais t inha já uma presen ça histó rica na cultu ra dos EUA. O termo evocava a sua primeira constituição escrita: Fundamentais Orders de Connecticut (1 639). Esse term o deslocou-se para o campo do protesta nt ismo des ignando os cr ité rios de aute nt icidade cris tã , ou seja. os critérios de ortodoxia . Na raiz do desenvo lvimento histórico do protestantismo fundamentalista está um vasto conjunto de movimen to s sócio- religiosos dos séculos XVIII e XIX - que procuraram reagir aos efeitos, cons iderados nefa stos, das mode rnas tendências te ológicas liberais - , como a cor rente evangelical, dinam izada por cél ebres pregadores ligados aos revivais (movimentos que acentuam a prioridade de um des pertar espirit ual, uma restauração evangélica), a escola teológica de Princeton , defensora da inerrância verbal da Bíblia, ou os vários milenarismos que penetraram no pro testantismo anglo-sax ónico desde muito cedo. Na primeira déca da do século XX, o termo Fundamentais tin ha tida já uma certa divulgação na Narthern Presbyterian Church, des ignando cinco cr itérios «fund ament ais» para ident ificação do cristianismo evangélico: a inerrã ncia da Escritur a, o nascimento vir ginal de Cristo, a sua morte redentora, a sua ressurr eição física e o seu poder miraculoso. Entre 1910 e 1915 circularam no espa ço anglo-s axónio uma série de doze fascículos sob o tít ulo The Fundamentais: A Testimony to the Truth, cuja orientaçã o

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editoria l esteve sob a responsabilidade de um grupo pres idido pelo pregador batista Mazi C. Dixon. Foram distribu ídos três milhões de exemplares. no quadro deste contexto histórico qu e, sob o impulso de R. A. Torrey e W. B. Riley, veio a constituir-se em Filadélfia, em 1919, a World Christian Fundamentais Assaciatian. É

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THEWATCHTOWER ANNOUNCING]EHOVAH "S KINGDOM

O movimento fundamenta lista evangé lico veio a sofrer uma clarificação dos seus contornos a part ir dos anos 20 do sécu lo passado. O palco de ste movimento passou a ser preponderante mente o Sul prof undo, rural e ainda ressent ido co nt ra o Norte industri al, símbolo da agressividade moderna. Tal contr ast e to rnou-se particula rme nte visível na chamada querela ant i-evolucion ista. Os programas educat ivos e as instituições de ensi no to rnaram-se , co m frequência, o palco de uma lut a ideológica, que chega aos nossos dias. As afirmações sobre o carác ter inconciliável das explicações evolucionistas face à narrat iva bíbl ica da cri ação tornaram-se uma marca distintiva desta geograf ia protestante . O fundamenta lismo original vê-se então dividido segundo diferen tes argumentações criacionistas , divergências sustentadas pela multiplicação de escolas bíblicas e emissões de rádio . No contexto plural do protestantismo, estas fo ram as correntes que se opuseram à linha ecuménica representada pelo Conselho Ecumén ico das Igrejas (1948). t: este funda ment alismo que, com o final da Segunda Guerra Mund ial, se internacionalizará na Amér ica Lat ina e penet rará t amb ém nos países europeus de t radição cató lica romana. O fundamentalismo original foi sofrendo um amplo processo de pluralização. Mais, o te rmo começou a ter uma ut ilização cor rente que está longe do substr ato histórico que explicitá mos. Observe-se que, hoj e, são vulgarmen te designados de f undame nt alistas grupos religiosos que não podem inserir-s e nest a co rrente histórica, co mo as Testemunhas de Jeová ou os Mórmo ns. Fala- se até de um fundamentalismo islâmico. Em última análise, o te rmo acaba po r designar todo e qualquer ext remismo ou radical ismo religioso. Tornou- se, por isso, na linguagem corrente, um termo muito impreciso, aplicado a fenómenos mu ito diversos .

Sectarismo religioso

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termo «se ita», se, preponde rantemen te, designou certos grupos dissidentes em relação a uma t radição religios a anter ior, hoje t em conh ecido novos usos. Na linguagem cor rente, est e te rmo tem um senti do pejorat ivo. Tende a qualif icar grupos religiosos que são avaliados negat ivament e por quem usa o termo. Por isso mesmo, nenhum grupo religioso se autoapresenta como seita. Esta é sempre uma linguagem ace rca dos outros. t: por isso que pode veicular, sobretu do, o preconceito e menos uma real interpretaçâo do t ipo de grupo religioso. Nas últi mas déca das do século XX, na Europa, o termo «seit a» viu reforçada a sua util ização na ident if icação de grupos religiosos que exprimem valores contracu lturais, considerados perigosos por se dem arcarem de alguns dos valores essenciais partilhados no espaço públ ico. Em vários países europeus, constituíram-se ló bis para inf luenciar os parlamentos na promulgação de leis anti-seita. Muitos destes movi mentos de opinião integram pesso as que viram os seus familiares serem cooptados por grupos sectá r ios , tr ajetó ria que forçou uma dessocialização agressiva das pessoas. Assim, nos nossos dias, o termo «seita» tende a identi f icar grupos religiosos que exprimem um fo rte contraste perante o universo de valores parti lhados numa soc iedade e que se organizam em comu nidades vincadamente separa das do meio soc ial. Bryan Wilson dist ingue quatro t ipos de re ligiões sectárias: as «conversionist as», as «adventis t as», as «intr oversionistas», e as «gn ósticas». Os grupos religiosos «conversionistas» apost am na conversão individual como motor da mudança no mun do. Os de t ipo «adventista» anunciam dram át icas t ransformações no mund o, e preparam- se para a nova ordem que se suce derá. Os «introversionistas» reje ita m os valores do meio envolvente e substi tue m-nos por valores alternat ivos que são da ordem da trans formação interior. Os de ti po «gnóst ico» aprese nta m

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Tem-se aqui presente, a t ítulo de exemplo, o percurso de um movimento religioso que viu alter ar-se o sent ido que os crentes deram à sua própria tradição, precis amente porque out ros eram os contextos histó ricos da sua experiência. Bhagwan Shree Rajn eesh nasceu no dia 11 de Dezembro de 1931 na província de Madhya Pradesh, na índia central. Diz-se que na sua ju ventude se tornou um ávido leitor, e que o seu comportamento era já tão desenvolto que os pais chegaram a pensar que o f ilho t inha algum desequilíbrio menta l. Terá tido uma «iluminação» no dia 21 de Março de 1953. Em 1957 com pleto u os seus est udos de Filosof ia e partir daí começou a ensinare a dar conferências um pouco por toda a índia. Raj neesh apresentava-se cada vez mais como um crítico das religiões dominantes na fndia. Em 1966, opt ou por renunc iar à sua carreira académica , iniciando um movimento de espiritualidad e, a part ir de Bombaim, que misturava técnicas orientais de medit ação com ideias importadas de psicoterapêut icas ocident ais. Os adeptos cresceram rapidamente, entre eles, alguns discípulos provenientes das mais diversas partes do mundo que const it uem uma comunidade em Puna, por onde te rão passado, entre 1974 e 1978, cerca de cinquenta mil pessoas. A casa to rnou-se pequena e a comunidade reso lveu mudar-se para o Est ado americano de Oregon. Em 1981, os sannyasins, como eram conhecidos, insta laram-se neste novo território com a intenção de realizar uma das visõ es de Rajneesh: uma terra onde to dos pudessem viver em harmonia entre si e com a natureza . Os terrenos estavam a uns trinta quil ómetros de uma local idade de nome Ante lope, com apenas 39 residentes, grande parte deles de idade avançada. Compraram progressivament e t udo o que puderam, lotes de terreno e casas. Organizaram-se e constitu íram-se como maior ia no Conselho Municipal. Em oito meses tinh am absorvido todas as est rut uras do poder local. Passaram assim a obte r facilmente todas as aut orizações necessária s para reconstruírem o local de acordo com os seus intere sses - depressa os nomes das ruas foram substituídos por nomes de santos e sábios . A população local - que represent ava agora 20% do tota l da popu lação - endureceu o to m da sua resistência e a respost a foi imediata . Os sannyasins criaram uma força policial (Raj nees hpura n Peace Farce) legit imada pelo poder munic ipal. A com unidad e começ ou a sofrer pressõe s das autoridades estata is e federai s e rapidamente se disseminou a cren ça de que havia uma coligação para acabar com os sannyasins. São implement ados mecanismos de vigilância muito rest rit ivos que incl uíam um apertado cont rolo da correspo ndência. Todas as deslocaçõe s e todas as visita s são controladas. O Mestre espiritua l aparec e cada vez menos em público, e quando pode ser visto está rodeado de metr alhadoras. Como ele dirá mais tarde, no cur so de cinco anos, o campo de medit ação ti nha-se to rnado campo de concentração . Este relato sumário do percu rso histórico de uma comunidade religiosa pod e ajudar-nos a perceber como pode um grupo religioso evoluir para comporta mentos que podemos incluir na f igura do fanat ismo religioso. Tudo começa com a visão de um Mestre , o desenvolvimento de práticas espirit uais terapêut icas - a meditaçã o, a dança, a pintura, a música, etc. O resultado de todas estas prát icas depende de uma ligação forte ao fundador, que passa a ser visto como o «único mest re, vivo e verdadeiro». Mas a materialização de uma visão religiosa do mundo segundo códigos legais, económicos, polít icos t ransformou a procu ra de harmonia espiritua l em imposição de uma ordem social no intu ito de defende r a identidade do grupo perante o Outro diferente e ameaçador.

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Religiões e espiritualidades

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surgimento contemporêneo de novas tendências re ligiosas não é um fenóme no inédito. Algumas regiões do globo, como o subcont inente indiano, conheceram com frequência , a f lorescência de vias religiosas diversas, Mas outras geografias conheceram uma homogeneidade religiosa durável, como é o caso da cristandade ocide ntal. As reconfigurações do mundo durante o século XX favorece ram não só a afirmação de mais propostas religiosas, mas também a possibilidade de essas vias se encontrarem num mesmo espaço socia l plural. Se é verdade que em algumas situações isso conduziu a alguma tens ão social, tam bém é certo que este contexto aj udou à afirmação dos valores da toler áncla, ao increme nto do interesse pelos valores religiosos dos outros e à ampliaç ão do conhecimento acerca da diversidade religiosa,

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Ilustr ação 25: Prát icas ce tebreuves em St onehenge.

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Texto 8 É lícito dizer-se que um dos mais importantes desenvolvimentos na adesão religiosa especificame nte ocidental foi o surgimento de formas de crença e de prática privadas e não-institucionais, O sagrado persiste, mas cada vez mais, de uma forma não tradicional. Como argumentou a socióloga Grace Davie, existe o «acreditar sem pertencer». Mas especificamente, poderá dizer-se que este acreditar sem pertencer pode ser definido como espiritualidade e não como religião. No Ocidente, por exemplo , assistiu-se a um afastamento em relação às form as de crença tradicionais que t inham evoluído no seio das instit uições religiosas rumo a out ras que se centram no eu, na nature za, ou, pura e simplesmente, na vida. Mesmo que exista m certos ensinamentos trad icionais que possam ser valorizados pelo indivíduo em partic ular, ou pelos grupos aos quais ele pertence, existe , de forma geral, desconfiança em relação às autoridades trad icionais, aos textos sagrados, às Igrejas e às hierarquias do poder. Assistiu-se a um afastamento da «religião», que se cent ra em coisas externas ao eu (Deus, a Bíblia, a Igreja), em direção a uma espiritua lidade, que se cet ra no eu, e é pessoa l e interior. Assim sendo , mesmo exist indo espiritualidades no seio das religiões mundiais, em especia l os movimentos místicos que se centram na experiência interior do divino em cada indivíduo, as espiritualidades alternativas não se encontram, necessa riamente, aliadas a nenhuma tra dição religiosa em particu lar. Christ opher Partridge - «lntroduçêc». ln: Enciclopédia das Novas Religiões. Ed it orial Verbo, 2006, 17.

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termo espiritualidade é hoje usad o para designar as formas menos institu cionalizadas de crenças e práticas, as que, por isso mesmo, são percebidas como mais remodeláveis pelo t rabalho de bric% ge individual. Mas o termo pode também designar determinadas sens ib ilida des d entro d e um a tradição reli giosa mais amp la, Por vezes, fala-se de uma pluralidade de esp iritua lida des dent ro de uma religião. Nesse con tex to, a espirit ualidade é entendida como uma caminho que se pode escol her dentro de uma t radição religiosa. Enquanto, para algun s, a religião, nas suas inst it uições, sufoca a verda deira esp irit ualidade, para outros, o âmago da religião está na exp eriência espiritu al. Neste context o, pode falar-se de uma certa deslocaç ão d o «espi ritu al» para fora das religiões histó ricas, fenóm eno de grande amp litude no Ocidente. Grandes organizaçõe s e em presas patrocina m seminários para os seus quad ros , onde espi ritua lidade e técnicas de gestào se misturam , onde se prega a necessidade de «atin gir a sincronia entre o eu-mesmo e a empresa»,

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Vários fenómenos editoriais, nas últimas décadas, dão conta de uma crescente cult ura de busca espiritual , ente ndendo isso como um conj unto de comport amentos que enfatiza m a procu ra e o desenvolvimento espiritual, com muit as referências a expressões como «jornada», «caminhada», «crescimento», «descoberta» e «cult ivo da vida interior». A experiência do sagrado passou a ser mediada por prát icas ref lexivas, facto que alguns cient istas sociais interpretam com o indício do narcisismo espi rit ual contempo râneo.

PAULO C O EL H O Ilustração 26: Obra de Paulo Coelho, escntor apreciado no universo das sensibilid ades próximas da

Nova Era

Texto 9 Hoje a cultura ocidental, atualmente seguida de muitas outras culturas , está a ser atravessada por um sentido da presença de Deus, quase instintivo àquilo que muitas vezes se chama visão mais «cient ífi ca» da realidade. Tudo deve ser explicado segundo os termos das nossas experiências quotidianas. Qualquer coisa que faça pensar nos milagres, torna-se imediatamente um mot ivo de suspeita. Assim, todos os gestos e os objetos simbólicos, conhec idos como sacramentais, outrora parte da práxis religiosa quotidiana de todo o cató lico, hoje são, no panorama religioso, muito menos evidentes do que antes. Os motivos desta transformação são numerosos e diversos, mas todos fazem parte daquela passagem cultura l geral das formas trad iciona is de religião a expressões mais pessoais e individuais, daquilo que agora se def ine como «espiritu alidade».Ao que parece, na origem desta t ransformação existem três motivos diferentes. O primeiro cons iste na sensação de que as religiões tradicionais ou inst it ucionais não podem dar aquilo que outrora se afirmava que podiam oferece r. Na sua visão do mundo, algumas pessoas não conseguem nem sequer encontrar espaço para acreditar num Deus transcendente pessoal, e a experiência pessoal de muitos indivíduos levou-os a perguntar se este Deus tem o poder de realizar transformações neste mundo, ou até mesmo se Ele existe. As experiências negativas que investiram o mundo inteiro fizeram com que algumas pessoas se tornassem muito cínicas no que diz respeito à religião: penso em acontecimentos terríveis, como no Holocausto e nas consequências da bomba atómica, lançada sobre Hiroxima e Nagasáqui, no final da segunda guerra mundial. Dei-me conta disto pessoalmente, durante a minha recente viagem a Nagasáqui, quando tive o privilégio de rezar, mas senti-me totalmente incapaz de encontrar palavras, diante do monumento à memória daquelas pessoas cujas vidas foram aniquiladas ou comprometidas para sempre, naquele mês de agosto de 1945. Hoje, a ameaça de uma guerra no Médio Oriente traz-me à mente as recordações do meu pai, socorrista durante a Segunda Guerra Mundial. Aquilo que ele me contava sobre os horrores da guerra faz-me compreender mais

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facilmente as dúvidas das pessoas acerca da existência de Deus e da religião. A confusão de muitos indivíduos diante do sofrimento dos inocentes, explorada também por determinados Movimentos, explica em parte a fuga de alguns crentes para as fileiras dos mesmos. Há outro motivo para explicar uma certa inquietude e uma determinada rejeição da Igrejatradicional. Não devemos esquecer que na antiga Europa as religiões pagãs pré-cristãs eram muito fortes e, com frequência, havia conflitos indecorosos, ligados à mudança política, mas inevitavelmente tachados de opressão cristã das antigas religiões. Um dos mais significativos desenvolvimentos naquele que se poderia definir como o campo «espiritual» no século passado, em maior ou menor medida, foi o retorno às formas pré-cristãs de religião. As relig iões pagãs desempenharam um papel notável na defesa de algumas das mais violentas ideologias racistas da Europa, revigorando desta mane ira a convicção segundo a qual certas nações têm um papel histórico de alcance mundial, a ponto de terem o direito de submeter outros povos, e isto comportou quase inevitavelmente um ódio pela relig ião cristã, considerada como recém-chegada ao cenário religioso . A complexa série de fenómenos , conhecidos com o termo de religiões «neopagãs», revela a necessidade, sentida por algumas pessoas, de inventar novos modos de «contra-atacar» o cristianismo e voltar a uma forma mais autêntica de religião, mais intimamente ligada à natureza e à terra. Por isso, deve reconhecer-se que não há lugar para o cristianismo na rel igião neopagã. Quer se queira, quer não, verifica-se uma luta para conqu istar as mentes e os corações das pessoas na relação entre o cristianismo, as antigas religiões pré-cristãs e as suas «primas» de desenvolvimento mais recente . O terceiro motivo, na origem de uma deceção bastante difundida no que se refere à religião institucional, deriva de uma crescente obsessão na cultura ocidental, pelas religiões orientais e os caminhos da sabedoria . Quando se tornou mais fácil viajar fora do seu próprio território, os europeus aventureiros começaram a explorar lugares que antes conheciam somente através das páginas de antigos textos. O fascínio do exótico colocou-os numa relação mais estreita com as religiões e as práticas esotéricas de várias culturas orientais, do Antigo Egito à fndia e ao Tibete. A convicção crescente de que existe uma certa verdade de base , um núcleo de verdade no coração de toda a experiência religiosa, levou à ideia de que se podem e se devem acolher os elementos característicos das diversas religiões para chegar a uma forma universal de religião. Uma vez mais, neste empreendimento há pouco espaço para as religiões institucionalizadas, em particular o hebraísmo e o cristianismo. Vale a pena recordá-lo, na próxima vez que tiverdes a ocasião de observar um anúncio publicitário relativo ao budismo t ibetano ou a qualquer tipo de encontro com um xaman ista , coisas estas que podereis observar em qualquer capital europeia. O que me preocupa é o facto de que muitas pessoas, comprometidas em tais géneros de espiritualidade oriental ou «indígena», não estão completamente conscientes do que se oculta por detrás do convite inicial para participar nestes encontros. Além disso, é digno de nota o facto de que, desde há muito tempo, existe muito interesse pelas religiões esotéricas nalguns círculos maçónicos que visam uma religião universal. O Iluminismo promovia a ideia segundo a qual era inaceitável que existissem tantos conflitos e se fizessem tantas guerras em nome da religião. Não posso senão estar de acordo com isto. Porém , seria desonesto deixar de reconhecer uma difundida atitude antirreligiosa que se desenvolveu a partir da originária preocupação de garantir o bem-estar à human idade. Também neste caso, considera-se com frequência como um conflito religioso aquele que, na realidade, não é senão um embate de natureza pol ítica, económica ou social. Intervenção do Ca rdeal Paul Poupord na apresentaçã o de um documento sobre o «New Age», Pontifício Consel ho para a Cultu ra, Pontiftclo

Conselho para o Diálogo lnter-Religioso , 3 de fevereiro de 200 3 (vatican.va).

Alguma da criatividade religiosa , emergente na segunda metade do século XX, concretiza-se em orientações espiritu ais muito difíceis de delimita r. Entre elas as orientações que se descobrem sob o nome de New Age, categoria de grande plasti cidade, que cobre propost as muito diversas. A soc ióloga Françoise Champ ion propõe o te rmo «nebulosa místico-esotérica» para descrever orientações espiritu ais deste género. «Nebulosa» em razão do carácter desestr utu rado e ext raordinariamente moldável das propost as e prát icas espirituais; «místico», porque a

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r - - -- - -- - - - - - - -- - - - - - - - - - - - -- - - - - - legitimidade de tais propo sta s assenta na experiência que delas se faça. e não na autoridade de uma insti t uição ou na precedê ncia de uma trad ição; «esotérica» , uma vez que essas orientações não derivam de uma relevação exterior que convoca para um ato de fé, mas sim da descoberta , por via da iniciação, de um conhecim ento - uma iluminação - que conduz salvação, compre endi da como plena realização humana, cósmi ca e divina. à

Texto 10

A matriz essencial do pensamento da Nova Era deve ser buscada na tradição esotérico-teosófica que gozou de grande aceitação nos círculos intelect uais europeus dos séculos XVIII e XIX. Em particular, vigorou na maçonaria, no espiritismo, no ocultismo e na teosofia, que compartilhavam uma espéc ie de cultu ra esotéri ca. Nesta cosmovisão , o universo visível e o invisível estão vinculados por uma série de co rrespond ências, analogias e inf luências entre o microcosmos e o macrocosmos, entre os meta is e os planeta s, entre os planetas e as diversas partes do corpo humano, entre o cosmos visível e os âmbitos invisíveis da realidade . A natureza é um ser vivo, atravessado por uma rede de simpatias e antipatias, animado por uma luz e um fogo secreto que os seres humanos procuram controlar. As pessoas podem conectar-se com os mundos superiores ou infer iores mediante sua imaginação (órgão da alma ou espírito) ou então recor rendo a mediadores (anjos, espíritos, demón ios) ou rituais. As pessoas podem ser iniciadas nos mistérios do cosmos, Deus e de si próprias, por meio de um iti nerário espiritual de tran sfo rmação. A meta última é a gnose, a forma superior de conhecimento, equivalente da salvação. Implica numa busca da mais antiga e elevada trad ição da filosofia (o que se chama, de modo inapropriado, philosophia perennis) e da religião (teologia primordial), doutrina secreta (esotérica) que é a chave de todas as tradições "exotéricas" acessíveis a todos. Os ensinamentos esotéricos se transm item de mest re para discípulo num programa gradual de iniciação. Alguns consideram que o esote rismo do século XIX está tota lmente secularizado. A alquimia, a magia, a astrologia e outros elementos do esoterismo trad icional foram int egrados por aspetos da cultura moderna, inclu indo a busca das leis causais , o evoluc ionismo, a psico logia e o estudo das religiões . Alcançou a sua forma mais clara nas ideias de Helena Blavatsky, uma méd ium russa que, junto com Henry Olcott, fundou a Theosophical Society em Nova Iorque, em 1875. Esta sociedade t inha por objetivo fundir elementos das trad ições orientais e ocidentais em uma forma de espirit ismo evolucionist a. Tinha três objetivos princ ipais: 1. «Formar um núcl eo da Fraternidade Universal da Humanidade , sem distinção de raça, credo ou cor ».

2. «Promover o estudo comparativo das religiões, a filosofia e a ciência». 3. «Invest igar as leis desconhecidas da Natureza e os poderes latentes do ser humano». [...)

Na sua obra The Aquarian Consp iracy, Marilyn Ferguson dedicou um capít ulo aos precursores da Era do Aquário , aqueles que haviam tecido uma visão t ransformadora baseada na expansão da consciência e na experiência da autotranscendência. Dois dos mencionados são o psicólogo americano William James e o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung . James definiu a religião como experiência, não como dogma , e ensinou que os seres humanos podem mudar suas at itudes mentais a fim de converter-se em arquitetos de seu próprio destino. Jun g destacou o caráte r tra nscend ente da consciência e int roduziu a ideia do inconsciente colet ivo, uma espécie de depós ito de símbolos e recordações partilhadas co m pessoas de diversas épocas e cult uras difere ntes . Segundo Wouter Hanegraaff, ambas as persona gens contribuíram para a «sacralização da psicologia», que se converteu um elemento fundamental do pensamento e da prática da Nova Era. De fato, Jung «não só psicolog izou o esoterismo, mas também sacralizou a psicologia, enchendo-a dos cont eúdos da especulação esotérica. O resultado foi um corpo de teorias que permite falar de Deus quando na

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realidade se quer falar da própria psique , e falar da própria psique quando na realidade se quer falar do divino. Se a psique é mente, e Deus também é mente, então fa lar de uma coisa significa falar da outra». À acusação de ter «pslcologízado» o cr istianismo responde que «a psico logia é o mito moderno e só podemos entender a fé nestes termos». Certamente, a psicologia de Jung lança luz sobre muito s aspetos da fé cristã, especialmente sobre a necessidade de enfrentar a realidade do mal. Porém as suas convicções religiosas são tão diferentes ao longo das diversas etapas de sua vida, que a imagem de Deus que se depreende é sumamente confusa . Um elemento central de seu pensamento é o culto ao sol, onde Deus é a energia vital (libido) do interior da pessoa . Como ele próprio afirmou «esta comparação não é um mero jogo de palavras». Jung refere-se ao «Deus interior», a divindade essencial que acreditava existir em todo o ser humano. O caminho para o universo inte rior passa através do inconsciente e a correspondência do mundo interior com o exterior reside no inconscient e coletivo. A tendência de permutar a psico logia e a esp iritualidade foi retomada pelo Moviment o do Potencial Humano quando este se desenvolveu no fina l dos anos 60, no Inst it ut o Esalen da Califórnia. A psico logia t ranspessoa l, fortemente inf luenc iada pelas religiões orie nta is e por Jung, ofe rece um caminho co ntemplat ivo onde a ciência se enco ntra com a mística. A ênfase que se coloca na corporeidade, a busca de métodos para expandir a consciência e o cu lt ivo dos mitos do inconscient e colet ivo eram incent ivos para buscar o «Deus interior» dentro de si mesmo. Para realizar o próprio potencial seria necessário ir além do ego individual a fim de converter-se no deus que cada um é no mais profundo de si mesmo. Para fazê-lo, é necessário escolher a terapia adequada: a meditação, as experiências parapsicológicas, o uso de drogas alucinogénias. Todos estes eram os caminhos para chegar a «experiências culminantes», exper iências «místicas» de fusão com Deus e com o cosmos. O símbolo do Aquár io, tirado da mitologia astrológica, chegou a converter-se na expressão do desejo de um mundo rad icalmente novo. Os dois centros que serviram de centro propulsor inicial da Nova Era foram (e que continuam a sê-lo até certo ponto) a Comun idade Jardim de Findhorn, no Nordeste da Escócia , e o Centro para o Desenvolv imento do Potencial Humano de Esalen, em Big Sur, Califó rnia, nos Estados Unidos . No enta nto , o que mais alime nta a difusão da Nova Era é o desenvolvimento de uma progressiva consciência global e a perce ção crescent e de uma cr ise eco lógica iminent e. Conselho Pontifício para a Cultura & Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-rellgloso Jesus Cristo portador da água viva : Uma retiexão cristã sobre a «New Age», 2003 (vatican.va).

Texto 11

Dentro das efémeras alianças e coligações dos flu xos e refluxos do New Age, não existe um mecanismo institucional que determine a pertença de indivíduos ao mov imento, enquanto membros ou associados, ou emita juízos contra indivíduos por não serem «devidamente New Age». Ainda que haja diversas vozes, não há nin guém que possa falar pelo movimento como um todo. Não existe uma list a de crenças New Age, nem um registo dos seus membros. Existe sim um vago conjunt o de redes entre diferent es grupos ou células, enquanto um núm ero const ant emente variável de orado res, t erapeuta s e professo res, em voga numa dada alt ura, percorrem os seus vários circu itos. A inconsist ent e organ ização , ou mesmo desorganizaç ão, do New Age torna-o, de facto, mais um f enómeno de consumo do que algo trad icio nalm ente religioso. Normalmente, aquel es que se identificam com o New Age são anti-institucionais, e afirmam ser mais «espirituais» do que «religiosos». Esta natureza e esta estratégia de marketing não-institucional parecem constituir a sua atrac ão fundamental. O New Age é um supe rmercado de consumidores espirituais que constantemente suplanta o apelo da religião no Ocidente, através da afirmação e celeb ração que faz da livre escolha espiritual . Michael York - «Tradições New Age» ln: Enciclopédia dos Novas Religiões. Editorial Verbo. 2006, 308-309 .

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3.5. Religião, cidadania e interculturalidade

o tempo do «estrangeiro» o mundo saído da Segunda Guerra Mundial será cada vez mais enformado pelos itinerários moldados pela mobilidade humana. As suas característ icas podem ser diversas: deslocados, refu giados, imigrantes, t urista s, negociantes, etc . O século XX torn ou-se cada vez mais o «tempo do estra ngeiro» - tendência que se continuou a afirma r no XXI. Esta mobilidade cond uziu à recomposição dos espaços sociais, tornando-os culturalmente menos homogéneos que no passado. O espaço social tornou-se por isso mais vincadamente inter-religioso. Este contexto exige novas competên cias para projeta rmos o bem comum necessário a esta experiência de cidadania part ilhada. A polít ica neces sit ou de um novo léxico. O t ermo «int egração» passou a integrá-lo. Por vezes o te rmo dá conta de política s que reduzem os problemas a soluçõ es de assimilaçã o dos «outro s», os «est rangeiros», nos quadros sociais já existe ntes. A presença de «novos moderadores» requalifi ca o espaço social. Por vezes os repr esentant es e gestores políticos do espaço público esque ce m-se que esses «outros» não quere m ser apenas objeto de estr atégias de integração impost as, preten dem ser atores dessa requalificação do espaço social, enquanto espaço parti lhado. Os processos de integração não são, pois, def inidos ape nas pelas regras ditadas pelas «políticas de estrange iros» dos governos nacionais ou regionais , mas contam com o impulso dos interesses dos recém -chegado s.

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Texto 12

A saudação de boas-vindas int roduz o visitante não só na casa, mas no espaço privileg iado do acolhimento: a escuta. Trata-se de escutar em prime iro lugar a «presença» do outro, antes ainda de escut ar as suas palavras , e de tentar perceber de que é que ele precisa. Por vezes, o visitante, sobret udo se for estrangeiro, tem dificuldade em falar, tem uma certa incapacidade de expressão, revelando assim que tem outra linguagem . Escutá -lo será assim um dever primá rio e essencial. Trat a-se de escutar aquilo que o visitante pretende comunicar, e a verdadei ra escuta é sempre uma dimensão de obediência, quase submissão; não se pode dar início a um diálogo assediando o recém-chegado com perguntas, nem podemos mostrar-nos disponíveis para o encontro se este só ocorrer segundo os nossos esquemas e desejos. Então, para escutar verdadeiramente, é necessário fazer calar, dent ro de nós, toda a palavra anteriormente depositada, silenciar os rumores internos, cr iar um espaço de silêncio, em que a palavra do outro possa ressoa r com toda a clareza. Também é na escuta que nos confrontamos com o medo , sentimento que não deve ser rejeitado, mas sim enf rentado: com efeit o, não serve de nada negar o medo; importa, pelo contrário, lê-lo e submet ê-lo a um discernimento, única condição para esper ar vencê-lo de forma racional. A divers idade ent re o anfitrião e o visit ante é real, e chega-se ao encontro entre ambos não reduzindo-a mas acolhendo-a como realidade que interpela, que levanta questões às quais se é chamado a dar respos ta, precisamente no confronto entre a própria identidade e a do visitante desconhecido. O estrangeiro deixa de ser «estranho» quando o escutamos na sua irredutível divers idade, mas também na sua irredutível humanidade que nos é comum. Enzo Blanchl - A diferença cristã. Lisboa: Paulinas, 2006 , 83-84 .

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Isl ão europeu, nos seus contornos mais recentes, pode ser, para nós, um co nte xto import ante de ref lexão. Depois da década de 60, a imigração euro peia foi o contexto de um novo encont ro ent re a Europa ocid enta l e o Islão. Tais migrações ap rese nt am uma grande diversidade quan to à origem, facto que não impediu qu e se viesse a const itu ir um verdade iro espaço instit ucionai do Islão na Europa . Em concreto , a «vis ibiliz acào» e inst itucionalização do Isiamismo na cena pública europeia foram implementadas a partir de meados dos anos sete nta , pro ce sso que passou pelas exigências de transm issão religiosa familiar e pela inscr ição no espaço, direcã o bem pat ente no cre scime nto do núme ro de mesq uita s nos países europeus, seguindo uma lingua gem arqu ite tón ica fac ilmente ident if icável pelo cidadão comum. Estando as mesquitas conso lidadas, salvagua rda das as estrutu ras fam iliares que perm item viver o quot idiano islâ mico, estas comu nidades com eça ram a tornar presente na esfera púb lic a algum as reivindicaçõ es concern entes ao seu modo de vida: os seus cal endá rios, as suas obs ervâncias, os seus ritos. os seus uso s, etc , Particularme nte em cont extos euro peus onde se t inha des envolvido um a conce ção de laicidad e em que a esfe ra públ ica se prete nde neutra sob o ponto de vist a reli gioso, esta nova presença isl âmica vinha p ôr em caus a a ideia de que a religião apenas pod eria subs isti r na esfe ra privada. Nest e novo ambie nte soci al, passou a ser necessário conciliar o valor da t orerància at iva face a estas co munidades c om ident idades religiosas div ersas e a necessidade de co nt inuar a co nstruir um espaço de cidadan ia que não pode f icar reduzido à soma do s part icu larismos dos diferentes grupos , exige a partilha de valores com uns . Mas não se perc a de vista que, quando se vive m per íodos de recessão, podem proliferar as redes de solidariedade defensiva que resp ondem com agressiv idade simbó lica - e muitas vezes físic a - , à presença do «est rangeiro» . Não é, pois, est ranho que o problema da integraçã o das dif erenças se tenha tornado uma quest ão funda menta l para as polít icas europ eias. Tanto ma is qu e, para além das cult uras enraizadas na mem ó ria da Europ a, out ras emergem decor-

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r - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -- - -- - - - - - rentes dos ciclos migratórios das últ imas décadas : a Europa parece desco brir- se na situ ação da América do Norte, em décad as ante riores, co nst it uída por co munidades de origens cultu rais diversas. Neste contexto mult iplicam-se os discursos da tolerância, as reivindicações de reconheciment o por part e das minorias, mas também, co m frequên cia, as manobras sociais de reforço das ident idades perante o medo da dis solução social (aquele medo que frequentem ente é ident if icado com a experi ência de alguém que ent ra num tra nsporte público ou em certo bairro e ai se percebe como que est ando em terra «estranha»). Exigem-se, assim, novas aprendiza gens para viver em comu m, onde o universal e o part icular dialoguem, onde seja possível a compree nsão não só do que irredut ivelmente nos aproxima, mas t ambém das diferenças que nos ident if icam, onde a diferença t enha lugar sem que se torne inst rumento de domínio sobre os outros e se encontrem os modos de tra duzir, para uns e para out ros, as diferenças de todos esse é o desafio que nos foi deixado pela narrat iva bíblica da Torre de Babel.

Texto 13

E O SENHOR dispersou-os dali por toda a superfície da Terra, e suspenderam a construção da cidade . Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o SENHOR confundiu a linguagem de todos os habitantes da iferra, e foi também dali que o SENHOR os dispersou por toda a iferra. Génesis 11, 1-9

Texto 14 Venho de uma família originária do Sul da Arábia, implantada nas montanhas libaneses desde há séculos e que se espalhou depois, por migrações sucess ivas, pelos diversos cantos do globo, do Egito ao Brasil, e de Cuba à Aust rália. A minha família orgulhou-se sempre de ter sido tanto árabe como cristã. O facto de ser cristão e ter por língua materna o Árabe, a língua sagrada do Islão, constitui um dos paradoxos fu ndamentais que forjam a minha identidade. Falar esta língua tece, para mim, laços com todos os que a utilizam todos os dias nas suas orações. Esta língua é comum a muitos milhões de pessoas. Por outro lado a minha pertença ao Cristian ismo cria também laços significativos com milhões de cristãos no mundo. Muitas coisas me separam de cada cristão , como de cada árabe e de cada muçulmano, mas existe também entre mim e cada um deles um parentesco inegável, num caso religioso e intelectua l, no outro, linguíst ico e cultural.

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o facto

de ser por um lado árabe e por outro cristão é uma situação muito específica, muito minoritária e nem sempre fácil de assumir; essa situação marcou-me profundamente e foi determinante na maior parte das decisões que tive de tomar ao longo da minha vida. Se me alargasse um pouco sobre as minhas origens deveria esclarecer que nasci numa comunidade greco -católica, ou melquita, que reconhece a autoridade do papa. No Líbano, onde as comun idades mais poderosas se bateram durante séculos pelo seu território e pelo seu quinhão de poder, os membros das comu nidades muito minoritárias como a minha foram sempre os primeiros a exilar-se. Pela minha parte, sempre recusei entrar em guerra alguma. Amin Maalouf - As identidades assassinas. Algês: Difel, 200 2, 25.

Texto 15

Todos somos vulneráveis . Criaturas de carne e osso . Sentimos fome, sede, medo e dor. Pensamos, esperamos, sonhamos e desejamos. Isto tudo é verdade e impo rtante. Mas também somos diferentes. Cada paisagem, língua, cultura e comunidade é única. A nossa própria dignidade de pessoas baseia-se no facto de nenhum de nós - nem mesmo os gémeos geneticamente idênticos - ser precisamente igual a outro. Por consegu inte, ninguém é substituível, ninguém é simples exemplo de um tipo. t isso que faz de nós pessoas e não meros organismos ou máquinas. Jonathan Sacks - A dignidade da diferenço: comoevitar o choque das civilizações. Lisboa:Gradiva, 2006,70.

Texto 16

As soc iedades são necessariamente particulares porque têm membros e memórias, memb ros com memórias não apenas próprias, mas também da sua vida comum. A humanidade, em contrapartida , tem membros, mas não tem memória, e por conseguinte não tem história nem cultura, nem práticas habituais, nem modos de vida familiar, nem festas, nem um entendimento comum dos benefícios sociais. Ter estas coisas é humano, mas não existe apenas uma forma humana de as ter. Ao mesmo tempo, e porque são humanos, os membros das diferentes sociedades podem reconhecer as diferentes formas de cada um, responder aos apelos de ajuda, aprender uns com os outros. M ichael Walzer - Thick ondThin. Notre Dame: University of Notre Dame Press. 1994,8.

Texto 17

Se os princípios e as opções religiosas se tornassem lei imposta aos outros, teríamos um totalitarismo religioso bastante semelhante, pelo menos nas dinâm icas de fundo, a tantas atitudes execráveis, de carácter teocrático e integralist a dos outros âmbitos religiosos . t necessário, portanto, salvaguardar ao máximo a liberdade de expressão de todos, mas o confronto deve ter lugar com uma linguagem que respeite semp re a dignidade de cada ser humano , sem qualquer t ipo de descriminação ou desprezo: assim, se, segundo a trad ição cristã, determinado comportamento contrad iz a dignidade e a qualidade da vida humana, os cristãos manifestarão a sua firme oposição, embora sem nunca desprezar ou condenar. Enzo Bianchi - A diferenço cristD. Lisboa: Paulinas, 2006. 21.

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Texto 18

Para a grande tradição cristã, a existência humana encontra o seu valor precisamente na relação com os outros seres humanos: a vida é relação, de tal modo que o ser humano é-o de facto quando tem diante de si um «tu» que o chama ao diálogo, à comunhão entendida como solida riedade e participação. O primeiro princípio ético é a alteridade que, para os cristãos, conhece as seguintes declinações: eu e o meu próximo (aqueles com quem vivo em íntimo contacto quotidiano); eu e os outros (aqueles que partilham comigo a história, a terra e o tempo); eu e, entre outros, os últimos (quaisquer que sejam as condições em que se manifestam e os nomes que recebem estes últimos). De resto, se, para um crente no Deus revelado na Bíblia, o ser humano é à imagem de Deus, então o outro, o diferente, o estrangeiro faz realmente parte de mim mesmo e da minha identidade: eu não existo sem o outro, tão parecido comigo e tão diferente de mim. Enzo Bianchl - A diferençacristã. Lisboa: Paultnas, 2006. 36.

Crentes e cidadãos As dinâm icas socia is que descrevem a nossa atualidade exigem uma nova articu-

tac ão entre religião. cidadania e interculturalidade. A nossa experiência histórica mostrou as vantagens de Estados que não sejam religiosos . Que não imponham um regime social a partir do absoluto de um dogma religioso . Mas antes fac ilite a constituição de formas de laicidade mediadora, ou seja. espaços que permitam a participação responsável de todos sem o nivelamento das diferenças (escola, inst it uições cultu rais, formas de associação). A laicidade do Estado não pode transpor-se, da mesma fo rma, para a sociedade. As comunidades e indivíduos que a co nstitue m, na hora de participa r na construção no debate público, não vão prescind ir de algumas das suas convicções mais importantes, precisamente as que se alicerçam em determi nada experiência religiosa. Mas essa participação não pode organizar-se apenas em nome da defesa dos part icularismos. Nesses debates , os crentes e as comunidades de pertença religiosa, numa lógica de cidadania, têm de mobil izar, nas suas trad ições religiosas, aquilo que pode contribu ir para a construção de uma sociedade mais justa e humanizada.

Texto 19

Numa sociedade pluralista, todos estão expostos ao confronto e à crítica, todos estão obrigados a apresentar razões na agora [praça] pública, e os cristãos devem aprender a exprimir-se em termos que não sejam dogmáticos, nem apenas apoiados na sua fé; devem usar uma linguagem antropológica , compreensível também para os outros, e que possa mostrar as «razões humanas» que sustentam as suas posições e as suas escolhas. Os cristãos não podem conduzir as suas batalhas entrincheirando-se por detrás dos dogmas e usando a sua doutrina como arma: devem, acima de tudo, guardar a fé e as suas palavras mais próprias e, em segundo lugar, encontrar termos e modalidades de diálogo capazes de mostrar que o Cristianismo está sempre ao serviço da humanização de qualquer pessoa e da coletividade, ao serviço de um mundo mais habitável, marcado pela justiça, pela paz, pelo respeito por toda a criação e pela dignidade humana. Enzo Bianchi- A diferen ça cristã. Lisboa: Paulin as, 200 6, 20.

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Põr de parte, em nome de uma suposta neutra lidade, as sabedorias que as tr adições religiosas t ransporta m, signif icaria desp rezar uma parte muito import ante da experiência histór ica da humanidade. Tome-se como exemplo as «escrit uras sagradas» na histó ria religiosa das cultu ras. Da pictograf ia ao fonet ismo, da oralidade à escr ita, as cult uras passaram de uma religiosidade concentrada na proteção face aos perigos naturais, ou na t ransmissã o de cód igos fami liares ancestra is, para o t empo da elaboração de mundividênc ias, ou seja, sabedo rias ace rca do sentido do mundo e da existência humana. As «escritu ras sagradas» foram t ant as vezes uma alavanca de espiritualidade e t ranscendência. Entr e as pedras monu mentais levant adas ao alto e os rolos da Torá, entr e os hieróglifos e as parábo las de Jesus de Nazaré, entre as inscrições pictog ráficas e as criações caligráf icas árabe- islãmicas h á percursos civilizacionais.

Falar de «escrituras sagradas» implica considerar que elas nascem de t radições orais ante riores. Mas essa oralidade não diz respeito apenas à arqueologia do texto, ela toca a sua atua lização. Em muitas t radições religiosas, os text os sagrados são recitados, proc lamados, cantados, venerados , rit ualizados em cená rios religiosos diversos, susc ita ndo o sentido da escut a crente. Mas na medida em que det erminada experiência crente se torna letra, narrativa, livro, ela ganha novas oportunidades de traduçã o e, tornando-se portátil, pode viajar para contexto s diferentes daqueles que conheceram a sua génese. As «escrituras sagradas» permitem que determinada expe riência religiosa se torne «testamento», possibilita ndo a constit uição de tra dições de leitu ra em torno de si e susc itando a sua aprop riação literária, plástica , performativa, musical, ent re outras. Não será por acaso que na nossa cu ltura, algumas das mais est imadas expressões estét icas resultam do impacto das lit erat uras bíblicas nesse labor de transforma ção poética do mundo. É, aliás, esse tr abalho de leitura e tr adução (não só noutras línguas, mas também noutras expressões, nout ros media) que perm ite ao texto novos desenhos de criat ividade cultural.

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A leitura, hoje, das grand es narr ati vas bíblicas, pode fazer descobrir valores que não são fáceis de pensar, sem a aj uda dessa sabedoria acumulada na t radição que até nós ch ega. Um dos mais importantes intelectua is da segunda metade do séc ulo XX, René Girard, descobriu na literatura bíblica uma oportun idade para pensarmos as nossas relações, em sociedade, para além de to das as lógicas de violência - uma possibilidade de superarmos essa necessidade de resolver a vio lência com doses controladas de mais viol ência. Foi isso que ele leu na célebre narrativa conhe cida como o «juízo de Salomão» ( I Reis 3,1 6-28) . to bem conh ecida essa história de duas mulheres que deram à luz, com pouco tem po de diferença, e que, depois de ter mor rido uma das crianças, reclamaram a posse da cria nça viva. O rei Salomão propõe uma sol ução. Pede uma espada e pro põe-se dividir em duas meta des o objet o disputado - o mesmo é dizer, perante a discórd ia, aniquila-se o objeto da discó rdia (dividir a criança ao meio é, litera lmente, sacrificá -Ia matando-a). Uma das mulher es está de acordo com este j uízo sacrif icial. A out ra mulher most ra que há outra maneira de superar aquele conflito: aceitar «morrer» para não matar, ou seja, prescindir do seu desej o para que o «outro» viva (Salomão reconhece nela a verdadeira mãe). Na leit ura de René Girard, a verdadeira mãe não tem qualqu er desej o de se sacrif icar. Ela deseja viver junto da sua criança. Mas está preparada para abandonar as suas pretensões, se for necessário, para a salvar da mor te. Neste contexto , a renúncia a si e o perdão não são expressões de uma reli giosidade resignada, são alternat ivas às formas violentas de manut enção da paz. O perdão pode romper com o eterno ret orno da violência porque é estranho à lógica da vingança de sangue ou à lógica da ju st iça ret ributiva qu e os poder es religiosos, politicas e económicos promovem . Este é um exemplo de como, numa t radição religiosa em particular, se pode descobrir um valor part ilhável, capaz de mob ilizar alternat ivas para o mundo t al como o conhecemo s - um mundo a fazer.

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Texto 20 As «escrit uras sagradas» são textos habitados , porque transportados por comunidades humanas que dão corpo à necessidade permanente de uma reat ivação das origens e ao desejo de narrar os nomes e os modos que o impulso originante tomou no curso das gerações. Pode dizer-se que habitar uma t radição é ter uma casa, é continuar a semear em solo arável, é a (re)descobert a do lugar de fun dação que permit e a cult ura, é reler a memória para continuar a descobri r o seu lugar na diversidade do mundo. Sublinhe-se, no entanto , que, em rigor, a conservação da memória implica sempre estratégias de inovação - «mort as» dizem-se as línguas que são incapazes de incorporar o novo (porque não são faladas). Assim, as t radições escrit urísti cas da humanidade dão testemunho de um secular t rabalho de (re)construção de uma cert a perspet iva sobre o mundo (cósmico e social), sobre os modos de nele e sobre agir, projetando as pontes a lançar para outros «mundos» além deste. Qualquer que seja a posição religiosa do leitor, as «escrit uras sagradas» devem ser cons ideradas não só como lugar priv ilegiado de conhec imento das tradições religiosas escritas , mas também como patr imónio da humanidade . As «escrit uras sagradas» são territórios de identidade que permitem aos crentes um lugar de reconhecimento de si; são banda larga de cultura , na medida em exprimem a diversidade da aventura humana no terreno de muitas das suas interrogações mais decisivas; são terreno de construção de grandezas de valor que continuam a habitar o quotidiano de muitos crentes ; são textos que, ultrapassando os limites das circunstâncias que lhe deram corpo, convocam , ainda hoje, alegrias e lágrimas. A sua história confunde-se com a das línguas, das linguagens e das literaturas (sapienciais, proféticas, místicas, apocalípticas, poéticas, jurídicas, morais, políticas, etc.) exprimindo, não sem ambiguidades e contradições, modos humanos de habitar o mundo. A partilha desse património será um antídoto tanto para a praga da iliteracia religiosa reinante, como para os perigos da «logocracia» - quando o «texto sagrado» invade politicamente todo o espaço social, torna-se arma de exclusão em vez de tenda de acolhimento. Alfredo Teixeira - «O sagrado e a religião nas culturas». ln: Religiões: história. textos, tradiçõ es. Lisboa: Re(ligare)- Estrutura de Missão para o Diálogocom as Religiões. Paulinas, 2006. 31-32.

3.6. Os cristãos num mundo plural e globalizado Globalização e responsabilidade Como sublinhou o sociólogo Zygmunt Bauman, a globalização tant o une como divide. Os meios que permit em a aproximação são também os que podem aprofundar a divisão. Para exemplificar est e paradoxo, Jonathan Sacks propõe-nos dois cenários de sinal inverso:

Texto 21 O ano é 2020. O dia nasce num mundo de prosperidade global e de paz. As tecnologias da informação e a comunicação de alta velocidade duplicaram os rendimentos reais no espaço de vinte anos. A expansão das técn icas de controlo da natalidade eliminou finalmente o perigo de sobrepopulação. A produção alimentar aumentou com as sementes geneticamente modificadas e as castas resistentes as doenças de modo tal que a fome passou a ser um fenómeno do passado. Utilizando mater iais ditáticos disponíveis na Internet, as escolas das aldeias africanas atingiram o nível das suas congéneres ocidentais. Os acordos internacionais sobre o emprego, os salários e as condições de trabalho puseram fim à exploração, ao trabalho infantil e aos baixos salários que, no princípio do século XXI, estavam na origem de tanta injustiça e exploração . A redução do custo dos medicamentos fez com que a sida, a tubercu lose e muitas out ras doenças fossem

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controladas. A manipulação genética abriu o caminho à prevenção das doenças hereditárias e das def iciências. A invest igação sobre o genoma humano perm itiu aos médicos alte rarem os desvios genéti cos responsáveis pelo envelhecimento . A expectativa de vida de 120 anos já não é um sonho . Os observadores estão de acordo que a humanidade atravessa uma idade de ouro. O ano é 2020. O mundo acaba de ser abalado pelo últi mo ataque terrorist a em Nova Iorque. Uma "bomba suj a" espalhou resíduos nucleares numa vasta área centrada em Manhatta n. Cerca de 20 milhões de pessoa s pode m ter sido afetadas. Entretanto, num ataque coordenado aos met ros de Londres , Paris. Munique e Roma, foram colocadas caixas contendo químicos mortais em estações apinhadas. Preveem-se milhares de acidentes . As viagens aéreas estão paralisadas no seguimento de uma série de assaltos amplamente divulgados. As quedas de governos afr icanos deixaram o continente enfraquecido após uma explosão de guerras locais. Ao mesmo tempo, no Egito, na Jord ânia, na Argélia e na Aráb ia Saudita uma série de revoluções instauraram regimes fundamental istas no Médio Oriente. A econom ia global est á à beira do colapso e o desemprego atinge as taxas mais altas jamais registadas em muitos países. No ocidente, os centros das cidades e os espaços públicos estão abandonados e há cada vez mais zonas degradadas povoadas de vagabundos e drogados, de pessoas sem abrigo e violentas. Os ricos vivem em condomín ios fechados protegidos por fortes sistemas de segurança privados. Centenas de milhares de pessoas morrem anualmente em consequência de condições climatéricas estranhas - secas, cheias e tufões - causadas pelo aquecimento global do planeta . A poluição tornou imposs ível andar nas ruas das cidades sem máscara de proteção. Muitos comentadores consideram que o mundo atravessa uma nova época de trevas . Jonat han Sac ks - A dignidade da diferenca: como evitar o choque das civilizações. Lisboa: Gradiva , 20 0 6.41- 43.

Tendo em conta a história das últi mas décadas, perce bemos co mo estes do is cenár ios, de alguma forma . se ju stapõem. Os itinerários de globalização co nduziram alguns países a períodos de crescimento económico que elevaram o seu bem- est ar - Singapura, Coreia do Sul, Formosa, Tail ãndie, Repúbl ica Dom inicana, índia, Turqu ia, etc. Em certos caso s, esse crescimen to favo rece u tam bém o desenvolvimento das co nd ições políticas de liberdade. Os progressos na medicina e cuida dos de saú de, no ch ama do mundo de senvolvido, red uziram a mortalidade infantil e aumentaram a espera nça de vida . Uma superfície comercia l de dimensões méd ias apresenta aos consu midores pos sib ilidades de esco lhas q ue, noutros momentos da noss a história só estariam disp oníveis para uma pequeno gru po de privilegiados. Mas estes benefícios não estão repartidos de forma ace itáve l. Num célebre discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas (10.05.2002), Gordon Brown sub linhava: um nor te -americ ano médio consome cinco vezes mais que um mexicano, dez vezes mais que um chinês, t rinta vezes mais que um indiano; 1,3 mil milhõe s de pessoas (22% da popu laçã o mundial) vivem abaixo do limiar da pobreza; 841 milhões de pessoas encont ram-s e subaliment adas; 880 milhões não têm acesso a cuidados de saúde; mil milhões têm falta de abrigo adequado; 1,3 mil milhões não têm água potável; 113 milhões de crianças (dois terço s são raparigas) não têm acesso à escola; t rinta mil morrem diariamente de doenças que podiam ser prevenidas. Observe-se que em dezoito países, tod os eles afri canos, a esperança média de vida não vai além dos cinquent a anos . No f inal do milén io, depois de um século de promessas de dese nvolvimento cont ínuo. o qu into superior da população mund ial detinha 86% da riqu eza produzi da, enquanto o quinto inferior conta apenas com 1%. Os bens dos t rês mult imilionários do mundo valiam mais do que a riqueza de seiscentos milhões de habita ntes a viver em países menos desenvo lvidos . O mercado permitiu que mais pessoa s acedessem a determinados padrões de co nsumo, mas algumas das suas lógicas conduziam a um dista nciamento dos ext remos da riqueza e da pobreza, fact o que não pode deixar de ferir o nosso sentido de equidade.

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A atenuação desta situação não vai passar exclusivamente por soluções téc nicas . Vai exigir o debate sobre o sentido da nossa vida individual e coletiva, ou seja, uma ética da responsabi lidade . As religiões, enquanto part icipantes na const rução dos valores part ilhados e como instituições que gerem redes de solidariedade de proximidade, devem ser implicadas nestes debates . Como o f ilósofo judeu Jonathan Sacks sublinhou, as religiões, enquanto siste mas de sentido, não foram superadas. Mas, quando substi tuem a política, podem ser apropriadas por lógicas muito perigosas . Na sua origem grega, a «política» diz respeito à vida da cidade (pol is). A cidade, no mundo clássico, remete para o mundo da t roca comercial , da diversidade de com unidades (línguas, ritos, religiões), do f luxo de est rangeiros, etc. Nesse sentido, a política é a arte da reconciliação das diferenças . As religiões, por seu lado, enquanto propostas englobantes de sent ido, ligam as pessoas por meio de narrat ivas, ritos, símbolos, memórias. Em certas circunstá nclas histó ricas, essa capacidade de «religac ào» foi usada para cr iar f ronteiras entre comu nidades, dividir «uns» e «out ros». Mas hoje vivemos um tempo em que, segundo dinárnicas sociais diferente s, o espaço social se tornou inter-religioso. As religiões, nas suas lideranças, inst it uições e comunidades, tê m a possibilidade de cr iar novas relações entre si e, em diálogo, contri buir para o reforço de uma consciência ét ica face aos problemas da globalização. A religião foi o prime iro fenómeno humano global, bem documentá vel nas religiões de cariz universalist a. Est as podem aj udar a construir uma ética de responsabilidade neste contexto de globalização , uma vez que faz parte da sua experiência histó rica essa necessidade de articular uma visão global com uma forte inscrição local. As religiões universais propõem valores que estão para além de qualquer fronte ira. Mas esses valores são vividos em cenários locais - sinagogas, congregações , assembleias, Igrejas locais, mesquitas, etc. Neste sent ido, as religiões t ransport am nas suas t radições uma sabedoria acerca do que possa ser essa necessidade atual de «pensar globalmente e agir localment e».

Texto 22 A economia pode resolver problemas económicos, e a política os políticos, mas só a religião pode resolver problemas que surgem fora da religião em si. Durante quatro séculos, o Ocidente agiu na presunção de que a ciência, a política e a economia tomariam o lugar da Igreja. O problema da Igreja resolvia-se tirando-lhe o poder. Mas o que acontece quando a religião regressa com toda a força - precisamente porque responde a questões para as quais a ciênc ia, a política e a economia não têm resposta? As grandes religiões dão sentido e finalidade aos seus aderentes. A questão é: será que dão lugar aos que não são seus aderentes, que cantam canções diferentes? É bem possível que o destino do século XXI dependa da resposta a esta questão. Jonathan Sacks - A dignidade da diferenca: como evitar o choque das civilizações. Lisboa: Gradiva, 2006 , 65.

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Para uma cultura do diálogo

Texto 23

A narrativa do Pentecostes no Livro dos Atas dos Apóstolos apela a uma compreensão do cristianismo como experiência ond e t odos se podem sent ir int erpel ados. O facto de cada um poder ouvir Pedro <ma sua língua» aponta para esse imperativo de t ornar a mensagem de Jesus tra duzível nas mais diversas circ unstâ ncias - não se t rat a, pois, de uma religião esotér ica, a que só alguns podem t er acesso . Trata-se de uma mensagem que se quer traduzível, para poder participar na const rução part ilhada das comun idades humanas. Neste sentido, o Pentecostes tem uma correlação inversa co m a narrativa bíblica da Torre de Babel, onde a diversidade das línguas é um lugar de incom unicação.

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Em concreto, na exper iência da Europa comunitária, as Igrej as cristãs pode rão ser reconhe cid as como um con texto onde se pode aprender essa difícil arte de procurar a unidade pe la diversidade. Por isso se tornou tão necessário que as Igrejas façam declarações conjuntas sobre os graves problemas que afetam a humanidade do nosso tempo : a guerra, os desastres eco lógicos , a marginalização das minorias, as assimetrias sociais e económicas, etc. Esta será sempre uma fo rma de a Igreja traduzir a sua pró pria nat ureza, enquanto sacramento da uni dade do género humano. Sabemos que a próp ria história das Igrejas transporta a expe riênc ia da divisão e do conflito. Neste sentido , o esforço por tomadas de posição part ilhadas torna socialmente pat ente que é pass ivei t rilhar o cam inho de uma reconciliaçã o das memóri as, que a memó ria do co nf lito não tem de ter a últi ma palavra.

Há encontros que têm a capacidade de ultrapassar

os

muros

da

incomunicação,

criando novas imagens veiculadoras de uma cultu ra de reconciliação e diálogo. Uma das mais determ inantes frat uras nas sociedades marcadas pela histór ia do cristianismo advém do cisma que separou a Igreja lat ina das Igrejas Orienta is, consumado no século XI. Mas essa memória de divisão não é agora a única palavra sobre o it inerário histórico da crist andade do Oriente e do Ocidente . O encont ro do Papa Paulo VI (Papa ent re 1963 e 1978) com o Patria rca de Atenágoras I, em Jerusalém, no ano de 1964 - proced endo ao levant amento da excomunhão reciproca, criou outras possibilidades para pensar o diálogo para além da experi ência de separação - essa imagem é cer tame nte um dos ícones do século XX. No seu discurso, o Papa Paulo VI recordou alguns factos da história das Igrejas cris tãs que most ram como alguns prot agonist as souberam prescindir dos seus pontos de vista para impedir processos que conduziriam à exclusão. O Papa referia-se a uma com plexa tra ma de acontec imentos que envolveram as defi nições dout rinais cri stãs durante o séc. IV. Estas definiçõ es foram construídas no contexto de fortes conf lito s ent re sensibilidades cris tãs diversas. Paulo VI ident ifica muitas situ ações em que só a incor por ação do pont o de vista do «out ro» nas decisões evitou o caminho do confli to e da divisão.

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, - - - - - -- - - - - - -- - - - - -- - - - - - - - - - - - --Durant e o pont if icado de João Paulo II (entre 1978 e 2005), esta preocupação ecumé nica alargou-se ao espaço inter-reli gioso. No início do seu pontificado, logo na sua primeira cart a encícl ica", Redemptor Hominis, o Papa expunha uma teoria da cult ura na qual Deus é o àrnago: pela Encarnação e Redenção, Cristo uniu-se inti mamente ao Homem; este Homem, que é imagem e semelhança de Deus, é a pessoa concreta; este Homem não poderá desenvolver-se plenamente a não ser no quadro das referências morais a Deus. A referência a Deus é pensada como a " verdadeira cult ura dos povos». Ou seja, a integralidade da cult ura im pli ca a sua dimensão reli giosa. ~ neste context o que devem os compreender as acões do Papa Jo ão Paulo II que tra duzem a sua dispos ição at iva para o encont ro com as religiões, nos seus lugares sagrados e por meio dos seus líderes. A procura constante de uma pedagogia que valorize o «outro», de out ra religião, em todos os aspetos que possam ser tomados co m um exemplo para os cristãos, con cret iza a vontade de encontrar, nas religiões históricas, espaço para uma aliança mobilizadora que reivindique as referências religiosas no cent ro da cena pública e mobilize os crentes para a const rução de sociedade s mais j ustas. Esta demanda de um plano de comu nhão ent re as religiões tornou- se, pois, um tó pico importante do discurso de João Paulo II. Em Manila, em 1981, numa mensagem para os povos da Asia, João Paulo II afirmava:

Texto 24

O que parece juntar e unir, de forma particular, os cristãos e os crentes doutras religiões é um reconhecimento da necessidade da oração , enquanto expressão da espiritual idade do homem orientada para um Abso luto. Mesmo que ele seja, para alguns, o Grande Desconhec ido, será ouvido um eco deste Espírito que, conhecendo os limites e as fraquezas da pessoa humana, reza ele próprio em nós e por nós em gemi dos inefáve is (Rm 8,26). A intercessão do Espírito de Deus que reza em nós e por nós é o fru to do mistério da Redenção de Cristo, onde o amor pleno do Pai se mostrou ao mund o. Jo ão Paulo II, Discurso em Man ila, 1981.

, - - -- - - - - - - - - - - - - - - -- - -- - - -- - - - - - O primeiro encontro int er-religioso de Assis (27.10.86), reeditado posteriormente, pode ser visto co mo aco nteci mento-sím bolo daquela vonta de de dar corpo à po lít ic a de reaf irmação do reli gioso como núcl eo da cultura. Nas grandes religiões do mundo, o Papa vê uma energia potencial de paz e uma vanguarda cont ra o esvaziament o religioso das sociedades. João Paulo II percebe u desde cedo a impo rt ância da visibilidade púb lica dos gesto s religiosos. Ele mesmo declarava, no dia 4 de out ubro de 1986: " Eu acredito na eficácia espiritua l dos sinais». No seu encontro com os cardeais de 22 de dezembro do mesmo ano repet irá: "O aconte cimento de Assis pode ser considerado como uma ilustração visível, uma lição, uma catequese int eligível para todos».

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Papa João Paulo II exprime a consciênc ia de que o papel principal que as religiões podem desempenhar, neste mundo globalizado, não passa pela elaboração de acordos doutrina is, mas antes por gestos que, na sua força profét ica, sejam capazes de alicerçar os valores mor ais necessários a uma cultura da paz. Por isso João Paulo II privilegiava a ef icácia dos «gestos». Na soc iedade da informação, o gesto extraord inário tem um poder com unicat ivo assinalável. Assim, João Paulo II enco raja os gestos de reconciliação entre as grandes religiões como símbolos eficazes de valores que se querem universais - a importância das dimensões religiosas das cultu ras e a urgência dos esfor ços para a con st ruçã o de uma cultur a da paz.

Texto 25

No dia 25 de janeiro de 1986, na homilia da festa da Conversão de São Paulo e último dia da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, João Paulo II anunc iava ao mundo que desejava realizar um encontro de oração pela paz em Assis . A sua data foi tornada pública no dia 6 de abril, no f inal da recitação do «Regina Caeli» na Praça de São Pedro. No dia 22 de outubro de 1986, durante a audiên cia geral, João Paulo II retoma o assunto e recorda , mais uma vez, os objetivos da Jornada de Assis . O papa afirma que o encontro terá um carácter exclusivamente religioso e o objetivo é implorar a Deus o dom da paz. Em Assis, os representantes das várias religiões não rezarão juntos, mas estarão juntos para rezar, estando presentes quando o outro reza, manifestando o respeito pela sua oração. Deste modo, evitar-se-a qualquer sinal de sincretismo, esclareceu o papa. O Encontro de Assis teve três momentos distintos. Num primeiro momento, os representantes das religiões presentes foram acolhidos pelo papa na Basílica de Santa Maria dos Anjos. No discurso de boas-vindas então proferido, João Paulo II deu o mote para a jornada. Após recordar que não tinham vindo a Assis para discutir, conferenciar ou procurar planos de ação à escala mundial em favor de uma causa comum, o papa afirmou que estavam ali para rezar e que a reunião de tantos líderes religiosos para rezar era, em si, um convite ao mundo para se tornar mais consciente de que existe uma outra dimensão da paz e um outro caminho para a sua promoção que não resulta das negociações nem dos compromissos políticos ou económicos. Nas suas palavras, a paz é fruto da oração, que, na diversidade das religiões, exprime a relação com um poder supremo que ultrapassa as nossas capacidades humanas . Num segundo momento, os vários grupos religiosos dirigiram-se separadamente para diversos locais da cidade de Assis onde puderam rezar na f idelidade às suas próprias crenças. Num terceiro momento reuniram -se todos numa praça centra l da cidade, onde formaram um único cortejo, e seguiram em peregrinação rumo à praça inferior situada em frente da Basílica de São Francisco, onde decorreu a oração pela paz. Cada grupo teve oportunidade de rezar e ser escutado pelos outros. [...] Depois de todos terem rezado foi distribuída uma pequena oliveira a cada um dos líderes religiosos para ser plantada quando regressassem às suas casas . A oração terminou com dois momentos simbólicos que todos puderam partilhar e compreender: os presentes trocaram entre si um gesto de paz e soltaram-se algumas pombas. José Antunes da Silva - «(O Encontro de Assis: marco simbólico do diálogo inter-religioso». Tnectogica, 2.- Série, 41, 2 (2006), 273-297 .

Texto 26

As festas religiosas convidam-nos não somente a renovar e reforçar a nossa fé em Deus, o Bem Supremo de cada ser vivo, e a revital izar as nossas relações recíprocas, mas conv idam-nos também a redescobrir, a reafirmar com respeito e a defender com coragem a nossa própria dignidade e a de cada pessoa como ser humano criado por Deus. Impressiona-me, sempre, o facto de que, por ocasião do Diwali, alguns hindus se esforçam sobremaneira a f im de instaurar a reconciliação nas suas famílias ou entre os vizinhos, amigos e conhecidos. Porventura, os católicos e os hindus não poderiam alargar estes esforços a fim de instaurar uma maior reconciliação e uma paz duradoura nas suas cidades e aldeias e, verdadeiramente, em todas as nossas nações e no mundo inteiro? Conselho Pontiffciopara o Diálogo lnte r- relig ioso, Mensagem aos Hindus por cc cs üc da festa anua l do Diwa/i, 2003 .

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Texto 27 Nesta mensagem, gostaria de vos convidar, queridos amigos budistas, a unir-vos em oração pela causa da paz do mundo [...]. Nós, cristãos e budistas, estamos convencidos de que a origem de cada conflito se deve atribuir, em última análise, aos corações humanos caracterizados por desejos egoístas , sobretudo pelo desejo do poder, do domínio e do bem-estar, muitas vezes em desvantagem do próximo [...l. O Papa João Paulo II proclamou o ano que decorre de outubro de 2002 a outubro de 2003, Ano do Rosário da Virgem Maria. Ele encorajou vivamente a recitação frequente do Rosário para pedir a paz para o mundo [...]. Queridos amigos bud istas, não é uma maravilhosa coinc idência que também vós tenha is a longa tradição de usar o Mala para rezar? Conselho Pontiffcio para o Diálogolnt er-rellgloso, Mensagem oos Budistas paro o Vesakh , 2003.

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Corresponsabilidade cristã e bem comum universa l

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Texto 28 Sit ua-se aqui a responsabil idade histó rica de cada crente e a sua obediência criativa ao Evangelho eterno: o cristão só pode viver a própria fé mergulhando na história e na sua opacidade, nas suas contradiçõ es, nas suas problemát icas, e nunca evadindo-se da história, que é o lugar da manifestação da presença de Deus. Nesta imersão, porém, a comunidade cristã é chamada a viver uma diferença na qualidade das relações, transformando-se naquela comunidade alternat iva que, numa sociedade conotada com relações f rágeis confl ituosas e de tipo consumista, exprima a possibilidade de relações gratuit as, fo rtes e duradouras, cimentadas na mútua aceitação e no perdão recíprocos. É a difer ença cristã, uma diferença que pede hoje às Igrejas que saibam dar forma visível e «vivível» a comunidades plasmadas no Evangelho: nesta capacidade de const rução de uma comun idade, o Cristian ismo mostra a sua própria eloquência e o seu próprio vigor, e dá um contributo peculiar à sociedade civil em busca de projetos e ideias para a edificação de uma cidade verdadeiramente à medida do ser humano. Tampouco se pode esquecer que, precisamente, com a capacidade de criar formas de vida comunitária, inventando estruturas de governo inspiradas na corresponsabilidade e relações de autoridade vividas como serviço, o Cristianismo mostra a sua vitalidade histó rica e desempenha uma importante diaconia em favor da sociedade civil. EnzoBianchi - A diferenço cristã . Lisboa: Paulinas, 2006. 41-42.

o Concílio Vat icano II, que deco rreu ent re 1962 e 1965, é um marco decisivo da nossa histó ria contemporânea. Depois de um período em que o discurso público da Igreja católice t inha t ido caracte rísticas prepon derante mente defensivas, a Igrej a cató lica reuniu-se em Concílio, para refletir sobre a sua própria identidade e pensar de uma nova forma a sua relação com o mundo contemporâneo. Logo no seu discurso inaugural, o Papa João XXIII, qua havia convocado o Concílio, sublinhava que, para além da atenção que é necessário dar ao tesouro herdado dos «Pais», se exige ter em conta o presente em que vivem os cr istãos. O proémio que abre a Constituição pastoral «A Igreja no mundo atua l» - documento que integra o conju nto dos textos aprovados no Concílio - , dá conta de uma ident idade cristã que procura o encontro com os «outros»: «As alegr ias e as esperanças, as t ristezas e as ang ústias dos homens de hoje , sob retudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças , as tristezas e as angústias dos disc ípulos de Cristo; e não há realidade algu ma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu cora çâo.» Os mais recentes est udos sobre o Concílio Vat icano II têm chamad o a at enção para o facto que estes textos devem ser lidos não só enquanto «dout rina», mas também enquanto «est ilo». Ou seja, não só quanto ao que dizem, mas também quanto ao «como dizem». to nesse «como dizem» que se descob re a af irmação de uma cultura do diálogo. Para haver diálogo é necessário ter condições para com preender o discu rso do «out ro». Em grande medida, o Concílio Vaticano II dá corpo a esse eno rme esforço de compreensão das cu lturas contemporâneas e de ref lexão sobre as cond ições de participação corresponsável dos cristãos na construção do bem comum. Esta ref lexão tem uma particular articu lação co m a reflexão que os Papas, desde o século XIX, vinham pro pondo - essa refl exão está particularm ente presente na chamada Doutrina Social da Igreja. Os Papas apoiam-se numa longa trad ição de reflexão sobre a cond ição humana, incluind o os seus aspetos sociais, de que dão testemunho os primeiros textos teológicos cristãos, o pensamento dos chamados Padres da Igreja, as disputas dos teó logos medievais e as teo logias elabo radas no quadro dos iti nerários da modernidade europeia. Tais propostas doutrinais estão ancoradas em princ ípios bas ilares, como a conceção de dignidade humana e a no çã o de bem co mum, princ ípios que esclarecem o ideal humanista cristão de respeito pela autonomia da «ordem t emporal» ou, nout ra expressão, autonomia das «coisas terrenas» . Tal human ismo está patente na síntese que o Compê ndio de Doutr ina Social da Igreja faz dest a doutr ina soci al (onde se faz amp lamente eco da ref lexão proposta no Concílio Vat icano II). •

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Texto 29 A Igreja, sinal na história do amor de Deus para com os homens e da voc ação de to do o género humano para a unidade na fili ação do único Pai, também com este documento sobre a sua doutrina social entende propor a todos os homens um humanismo à altura do desígnio de amor de Deus sobre a história, um humanismo integra l e solidário, capaz de animar uma nova ordem social, económ ica e pol ítica, fundada na dignidade e na liberdade de toda a pessoa humana, a realizar-se na paz, na justiça e na solidariedade. Um tal humanismo pode realizar-se. A tendência para a unidade «só será possível se os indivíduos e grupos cultivarem em si mesmos e difundirem na sociedade as virtudes mora is e sociais, de maneira a torna rem-se realmente, com o necessário auxílio da graça divina, homens novos e construtores duma humanidade nova. Compêndiode Doutrina Socioldo Igreja, n" 19.

Texto 30 A Igreja caminha com toda a humanidade ao longo das vias da história. Ela vive no mundo e, mesmo sem ser do mundo (cf. Jo 17,14-16), é chamada a servi-lo seguindo a sua ínt ima vocação. Uma ta l atitude - que se pode entrever também no presente docu mento - apoia-se na profunda convicção de que é importante para o mundo reconhecer a Igreja como realidade e fermento da história, assim como para a Igrej a não ignorar quanto tem recebido da história e do progresso do género humano. O Concílio Vaticano II quis dar uma demonstração eloquente da solidariedade, do respe ito e do amor para com toda a fam ília humana, instaurando com ela um diálogo sobre tanto s prob lemas, «introduzindo neles a luz do Evangelho e pondo à disposição do género humano as energias salutares que a Igreja, conduz ida pelo Espírito Santo, recebe do seu Fundador. Trata-se , com efeito, de salvar a pessoa do homem e de restaurar a sociedade humana». Compêndio de Doutrina Social da Igreja, na 18.


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Texto 31

Secç ão 2: CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE INTERNACIONAL Causas e remédios das discórdias

83. Para edif icar a paz, é prec iso, ante s de mais, eliminar as causas das discórd ias entre os homens, que são as que alimentam as guerras, sobretudo as injusti ças. Muitas delas provêm das excessivas desigualdades económicas e do atraso em lhes dar remédios necess ários. Outras, porém, nascem do espírito de dom inação e do desp rezo das pessoa s; e, se buscamos causas mais profun das, da invej a, desconfiança e soberba humanas, bem como de outras paixões egoístas. Como o homem não pode supo rta r tantas desordens, delas provém que, mesmo sem haver guerra, o mundo está conti nuamente envenenado com as conte ndas e violências entre os home ns. E como se verificam os mesmos males nas relações entre as nações, é abso lutamente necessário, para os vencer ou prevenir, e para reprimir as viol ências desenfreadas, que os organismos int ernacion ais cooperem e se coordenem melhor e que se fomentem incansavelmente as organizaçõ es que promovem a paz. A comunidade das nações e inst it uições internacionais

84. Para que o bem comum universal se procure convenientemente e se alcance com eficácia, torna-se já necessário, dado o aumento crescente de estreitos laços de mútua dep endência entre todos os cidadãos e entre todos os povos do mundo, que a comun idade dos povos se dê a si mesma uma estrutura à altura das tarefas atuais, sobretudo relativamente àquelas numerosas regiões que ainda padecem intolerável indigência. Para obter tais f ins, as inst it uições da comunidade internacional devem prover, cada uma por sua parte, às diversas necessidades dos homens, no domín io da vida social - a que pertencem a alimentaçã o, saúd e, educação, trabalho - como em certas circunstâncias particulares, que podem surg ir aqui ou ali, tais como a necessidade geral de favorecer o progresso das nações em vias de desenvolvimento , de obviar às necessidades dos refugiados dispe rsos por todo o mundo, ou ainda de ajudar os emigrantes e suas famílias. As insti t uições internacionais, mund iais ou regionais, j á existentes, são beneméritas do género humano. Aparecem como as primeiras tentativas para lançar os fundament os internacionais da inteira com unidade humana, a fim de se resolverem os gravíssimos probl emas dos nossos tempos, se promover o progresso em todo o mundo e se prevenir qualquerforma de guerra. A Igreja alegra-se com o espírito de verdadeira f raternidade que em todos estes campos f loresce entre cristã os e não- cristãos, e tende a int ensif icar os esfo rços por remed iar tão grande miséria. A cooperação internacional no campo económico

85. A unif icação actua l do género humano requer também uma coope ração internacional mais ampla no campo económico. Com efeito, embora quase todos os povos se tenham tornado independentes , estão ainda longe de se encon trarem livres de excessivas desigualdades ou de qualquer forma de dependência indev ida, ou ao abri go de graves dif iculdades internas. O crescimento dum país depende dos recursos humanos e finance iros. Em cada nação, os cidadãos devem ser preparados pela educação e formação profiss ional, para desempenharem as diversas funções da vida económica e social. Para tal, requere-se a ajuda de peritos estrangeiros; estes, ao darem tal ajuda, não procedam como dominadores, mas como auxiliares e cooperadores. Não será possível prestar o auxílio material às nações em desenvolvimento, se não se mudarem profundamente no mundo as estruturas do comércio atual. Os países desenvolvidos prestar-Ihes-ão ainda ajuda sob outras formas, tais como dons, empréstimos ou investimentos financeiros; os quais se devem prestar generosamente e sem cobiça, por uma das parte, e receber com inteira honestidad e, pela outra.

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Para se estabelecer uma autêntica ordem económica internacional, é preciso abolir o apetite de lucros excessivos, as ambições nacionais, o desejo de domínio político, os cálculos de ordem militar bem como as manobras para propagar e impor ideologias. Apresentam-se muitos sistemas económicos e sociais; é de desejar que os especialistas encontrem neles as bases comuns dum são comérc io mundial; o que mais facilmente se conseguirá, se cada um renunciar aos próprios preconceitos e se mostrar disposto a um diálogo sincero. Algumas normas oportunas

86. Para tal cooperação, parecem oportunas as seguintes normas: a) As nações em desenvolvimento ponham todo o empenho em procurar firmemente que a fina lidade expressa do seu progresso seja a plena perfe ição humana dos cidadãos . Lembrem-se que o progresso se origina e cresce, antes de mais, com o trabalho e engenho das populações, pois deve apoiar-se não apenas nos auxílios estrangeiros, mas sobretudo no desenvolvimento dos próprios recursos e no cultivo das qualidades e tradições próprias. Neste ponto, devem sobressair aqueles que têm maior inf luência nos outros. b) É dever muito grave dos povos desenvolvidos ajudar os que estão em vias de desenvolvimento a realizar as tarefas referidas. Levem, portanto, a cabo, em si mesmos, as adaptações psicológicas e materiais que são necessárias para estabelecer esta cooperação internacional. E assim, nas negociações com as nações mais fracas e pobres, atendam com muito cuidado ao bem das mesmas; pois elas necessitam, para seu sustento, dos lucros alcançados com a venda dos bens que produzem. c) Cabe à comunidade internacional coordenar e estimular o desenvolvimento de modo a que os recursos a isso destinados sejam uti lizados com o máximo de eficácia e total equidade. Também a ela pertence, sempre dentro do respeito pelo princípio de subsidiariedade, regular as relações económicas no mundo inteiro de modo que se desenvolvam segundo a justiça. Criem-se instit uições aptas para promover e regular o comércio internacional, sobretudo com as nações menos desenvolvidas, e para compensar as deficiências que ainda perduram, nascidas da excessiva desigualdade de poder entre as nações. Esta ordenação, acompanhada de ajudas técnicas, cultura is e financeiras, deve propo rcionar às nações em vias de desenvolvimento os meios necessários para poderem conseguir convenientemente o progresso da própria economia. d) Em muitos casos, é urgente necessidade rever as estruturas económicas e sociais. Mas evitem-se as soluções técnicas prematuramente propostas, sobretudo aquelas que, trazendo ao homem vantagens mater iais, são opostas à sua natureza espiritual e ao seu progresso . Com efeito, «o homem não vive só de pão, mas também de toda a palavra que sai da boca de Deus» (Mt. 4,4). E qualquer parcela da família humana leva em si mesma e nas suas melhores tradições uma parte do tesouro espiritual confiado por Deus à humanidade, mesmo que muitos desconheçam a origem donde procede . A cooperação internacional no que se refere ao incremento demográfico

87. A cooperação internacional é especialmente necessária no caso, atualmente bastante frequente, daqueles povos que, além de muitas outras dificuldades, sofrem especialmente da que deriva dum rápido aumento da população. É urgentemente necessário que, por meio duma plena e intensa cooperação de todos, e sobretudo das nações mais ricas, se investigue o modo de tornar possível preparar e fazer chegar a toda a humanidade o que é preciso para a subsistênc ia e conveniente educação dos homens. Mas alguns povos poderiam melhorar muito as suas condições de vida se, devidamente instruídos, passassem dos métodos arcaicos de exploração agrícola para as técnicas modernas, aplicando-as com a devida prudência à própria situação, instaurando, além disso, uma melhor ordem social e procedendo a uma distribu ição mais justa da propriedade das terras.

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- - - - - -- - - - - - - - -- - - - - - - - --- - - - - - - - - , Com relação ao problema da população, na própria nação e dentro dos limit es da própria competência, tem o governo direitos e deveres; assim, por exemplo, no que se refere à legislação social e fam iliar,ao êxodo das popu lações agrícolas para as cidades, à informação acerca da sit uação e necessidades nacionais. Dado que hoje este proble ma preocupa intensamente os espírito s, é tamb ém de desejar que especialista s cató licos, sobretudo nas Universidades, pross igam e ampliem diligentemente os estudos e iniciativas sobre estas matérias. Visto que muitos afirmam que o aumento da população do globo, ou ao menos de algumas nações, deve ser absoluta e radicalmente diminuído por todos os meios e por qualquer espécie de intervenção da autoridade pública, o Concílio exorta todos a que evitem as soluções , promovidas privada ou publicamente ou até por vezes impost as, que sejam contrárias à lei moral. Porque, segundo o inalienável direito ao casamento e procriação da prole, a decisão acerca do número de filhos depende do reto juízo dos pais e de modo algum se pode entregar ao da autoridade pública. Mas como o ju ízo dos pais pressupõe uma consci ência bem formada, é de grande importâ ncia que todos tenham a possibilidade de cult ivar uma responsabilidade ret a e autenticamente humana, que tenha em conta a lei divina, consideradas as circunstâncias objetivas e temporais; isto exige, porém, que por toda a parte melhorem as cond ições pedagógicas e sociais e, antes de mais, que seja dada uma formação religiosa ou, pelo menos, uma íntegra educação moral. Sejam também as populações judiciosamente informadas acerca dos progressos científicos alcançado s na investigação dos métodos que ajudam os esposos na determ inação do número de f ilhos, cuja segurança esteja bem comprovada e de que conste claramente a legitimidade moral.

o dever dos cristãos na ajuda internacional 88. Os cristãos cooperem de bom grado e de todo o coração na construção da ordem intern acional com verdadeiro respeito pelas liberdades legítimas e na amigável fraternidade de todos; e tanto mais quanto é verdade que a maior parte do mundo ainda sofre tanta necessidade, de maneira que, nos pobres , o próprio Cristo como que apela em alta voz para a caridade dos seus discípulos. Não se dê aos homens o escânda lo de haver algumas nações, geralmente de maioria cristã, na abundância, enquanto outras não têm sequer o necessário para viver e são ator menta das pela fome , pela doença e por toda a espéc ie de misérias. Pois o espírito de pobreza e de caridade são a glória e o testemunho da Igreja de Cristo. São, por isso, de louvar e devem ser ajudados os cristãos, sobretudo jovens, que se oferecem espontaneamente para ir em ajuda dos outros homens e povos. Mais ainda: cabe a todo o Povo de Deus, precedido pela palavra e exemplo dos Bispos, aliviar, quanto lhe fo r possível, as misérias deste tempo; e isto, como era o antigo uso da Igreja, não somente com o supérfluo, mas também com o necessário. Sem cair numa organização rígida e uniforme, deve, no entanto, o modo de recolher e distribuir• estes socorro s ser regulado com uma certa ordem , nas dioceses, nações e em todo o mundo; e onde parecer oportuno, conjugando a atividade dos cató licos com a dos outros irmãos cristãos. Porque o espírito de caridade, longe de se opor a um exercício providente e ordenado da ativ idade social e caritativa, antes o exige. Pelo que é necessá rio que os que pretendem dedicar-s e ao serviço das nações em vias de desenvolvimento, recebam conven iente fo rma ção em inst it uições adequadas. A presença eficaz da Igreja na comunidade internacional

89. Quando a Igreja, em virtude da sua missão divina, prega a todos os homens o Evangelho e lhes dispensa os tesouros da graça, cont ribui para a consol idação da paz em todo o mundo e para estabelecer um sólido fundamento para a fraterna comunidade dos homens e dos povos, a saber: o conhecimento da lei divina e natural. É, portanto, absolutamente necessário que a Igreja esteja presente na comunidade das nações , para fomentar e estimular a cooperação entre os homens;

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tanto por meio das suas instit uições públicas como graças à inteira e sincera colaboração de todos os cristãos, inspirada apenas pelo desejo de servir a todos. O que se alcançará mais eficazmente se os fiéis, conscientes da própria responsabil idade humana e cristã , procurarem já no seu meio de vida despertar a vontade de cooperar prontamente com a comunidade internacional. Dedique-se especial cuidado em formar neste ponto a j uventude, tanto na educação religiosa como na cívica. A cooperação dos cristãos nas instituições internacionais

90. Uma das melhores formas de actuação internacional dos cristãos consiste certamente na cooperação que, isoladamente ou em grupo, prestam nas próprias instituições criadas ou a criar para o desenvolvimento da cooperação ent re as nações. Também podem contribuir muito para a edificação da comunidade dos povos, na paz e fraternidade, as várias assoc iações católicas internacionais, as quais devem ser consol idadas, com o aumento de colaboradores bem formados, e dos meios de que necessitam e com uma conveniente coordenação de forças. Nos tempos atuais, com efeito , tanto a eficácia da ação como a necessidade do diálogo reclamam empreend imentos coletivos. Essas associações contribuem, além disso, não pouco também para desenvolver o sentido de universalidade, muito próprio dos católicos, e para formar a consciência da solidariedade e responsabilidade verdade iramente universais. Finalmente, é de desejar que os católicos, para bem cumprirem a sua missão na comunidade internacional, procurem cooperar ativa e positivamente quer com os irmãos separados que com eles ' professam a caridade evangélica, quer com todos os homens que anelam verdadeiramente pela paz. Perante as imensas desgraças que ainda hoje torturam a maior parte da humanidade, e para fomentar por toda a parte a justiça e ao mesmo tempo o amor de Cristo para com os pobres, o Concílio, por sua parte, julga muito oportuna a criação de algum organismo da Igreja universal, incumbido de estimular a comunidade católica na promoção do progresso das regiões necessitadas e da justiça social entre as nações . Goudium et Spes, Capftulo v, Parte II (no 83 a 90) http://www.vatican.va/a rch ive/hjsecouncils/ii_vatican_cDuncil/doeuments/vat-ii_canse19651 207_gaudjum-et-spes_po.ht m1

Est a renovada atenção à participação responsável dos cristãos na construção do bem comum, desenvolveu-se num contexto de t ransformaçào da própr ia comunidade internacional. A criação de instãn cias de regulação inte rnacional - como a ONU - e a aprovação de cód igos de referência - como a Declaração Universal dos Direitos do Homem pode m apresentar-se como um teste munho claro da necessidad e de desenvolvimento da ideia de «bem comum» e de aprofundamento de uma conc ec ão de pessoa humana que não se reduza às determinações ét nicas, nacionais ou out ras. As visit as dos Papas a estas organizações devem ser compreendidas no quadro dest a convergência histórica.

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