Revista Estilo Zaffari - Edição 93

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Palavra LU Í S

AU G U S TO

F I S C H E R

SER GAUCHE NA VIDA

Foi o Drummond que inventou a imagem. Em um poema da juventude, ele escreve – naquela zona cinzenta entre a verdade da vida e a verdade da arte – que, quando nasceu, um anjo que vive nas sombras disse a ele: “Vai, Carlos, ser gauche na vida”. Era um papo de anjo, mas um papo danado, que condenou o poeta a ser “gauche”, que parece tanto com a palavra “gaúcho” que dá vontade de pensar que elas são parentes – tem rios de tinta sobre a controversa origem do adjetivo que marca os nascidos no Rio Grande do Sul, e não vou ser eu a tentar deslindar essa história aqui e agora. “Gauche”, em francês, quer dizer esquerdo, mas também quer dizer desviante, incomum. A palavra está no título de um livro muito interessante, importante e, para fazer-lhe justiça, inspirador: E fomos ser gauche na vida (editora Pubblicato). A autora é a Lelei Teixeira, veterana jornalista, de larga carreira em Porto Alegre. (Me dei conta agora, escrevendo o nome dela, que ele carrega nada menos que três ditongos ei: ei, ei, ei!) É um livro de memórias, mas com ao menos duas notáveis peculiaridades. A primeira, amorosa, é que a Lelei perdeu faz poucos anos uma irmã que era sua parceira, sua inspiração, uma metade inseparável, a Marlene. Isso transforma esse livro de memórias em uma lenta forma de fazer este luto. A segunda, dramática, é que a Lelei e a Marlene são pessoas diferentes. Mais diferentes do que em geral são diferentes entre si as pessoas. Espera: antes de dizer qual a diferença, queria que o prezado leitor e a gentil leitora perguntassem a si mesmos quando

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foi que se sentiram diferentes do mundo ao redor. Quando, onde e por que foi que se sentiram apontados, prejudicados, até discriminados por essa diferença? Ocorreu que o destino assinalou para sempre a vida das duas irmãs com o nanismo. Uma diferença incontornável. Um fardo. Uma pecha. Uma vida de dificuldades. O livro conta uma série delas. Já adultas, chegarem num restaurante na turística Gramado e ouvir do garçom que não havia cadeiras altas. Quando crianças, então, nem se fala. Uma professora primária da Lelei, por exemplo, chamou-a ao quadro e, em lugar de deixar a aluna escrever no quadro-negro na altura adequada, impôs que a menina subisse num banquinho, expondo-se de modo cruel diante da turma toda. De chorar, sim. Mas o que tem de história de superação, bá, não é pouco. Tem mais relatos de solidariedade, compreensão e estímulo, do que de barreiras, que nunca foram poucas. A Marlene foi professora a vida toda, e a Lelei jornalista. A história familiar das duas já daria todo um romance – dificuldades e restrições econômicas se combinavam com intenso amor e uma ampla parentada muito ativa. As duas viveram no interior do estado, depois em Porto Alegre, mas viajaram, ousaram ir para o mundo – quer dizer, encararam a condição gauche como um elemento da vida, não como um sinal de morte. Que lindo livro a Lelei nos oferece! LUÍS AUGUSTO FISCHER, PROFESSOR DE LITERATURA E ESCRITOR

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