DIREITO DESPORTIVO
DIRETORIA OAB SP (GESTÃO 2022/2024)
Conselho Secional
PRESIDENTE
MARIA PATRICIA VANZOLINI FIGUEIREDO
VICE-PRESIDENTE
LEONARDO SICA
SECRETÁRIA-GERAL
DANIELA MARCHI MAGALHÃES
SECRETÁRIA-GERAL ADJUNTA
DIONE ALMEIDA SANTOS
TESOUREIRO
ALEXANDRE DE SÁ DOMINGUES
MEMBROS EFETIVOS
Alessandra Christine Bittencourt Ambrogi de Moura
Alexandre Luis Mendonça Rollo
Ana Cláudia Silva Scalquette
Ana Luisa Porto Borges
Antonio Baptista Gonçalves
Antonio lvo Aidar
Carlos Alberto Maluf Sanseverino
Carlos Cesar Simões
Carlos Eduardo Dantas Costa
Carlos Figueiredo Mourão
Carmen Dora de Freitas Ferreira
Célia Regina Zapparolli Rodrigues de
Freitas
Claudia Maria Soncini Bernasconi
Claudio Cardoso de Oliveira
Coriolano Aurelio de Almeida Camargo
Santos
Cristiano Joukhadar
Daniela da Cunha Santos
Débora de Paula
Eduardo Ferrari Geraldes
Eginaldo Marcos Honorio
Fernanda Matias Ramos
Fernando Peixoto de Araujo Neto
Flavia Filhorini Lepique
Flavia Mariana Mendes Ortolani
Flavio Murilo Tartuce Silva
Flavio Paschoa Junior
Francisco Jorge Andreotti Neto
Gisela da Silva Freire
Guilherme Hansen Cirilo
Guilherme Magri de Carvalho
Gustavo Granadeiro Guimaraes
Haroldo Francisco Paranhos Cardella
Helcio Honda
lrapua Santana do Nascimento da Silva
lsabela Castro de Castro
João Vinícius Manssur
José Chiachiri Neto
Juliana Fernandes de Marco
Katia Maria Louro Cação Araujo
Kelly Greice Moreira
Leandro Godines do Amaral
Ligia Maura Fernandes Garcia da Costa
Lívio Enescu
Luciana Barcellos Slosbergas
Luiz Alberto Bussab
Luiz Fernando Sá Souza Pacheco
Manoel Alcides Nogueira de Sousa
Manuela Tavares
Marcela Carinhato Almeida Prado de Castro Valente
Marcelo Luis Roland Zovico
Marcia Rocha
Marcio Cezar Janjacomo Marcio
Gonçalves
Maria Cecilia Pereira de Mello
Mariana Arteiro Gargiulo
Marília Constantino Vaccari Polverel
Miriam Saeta Francischini
Mizael Conrado de Oliveira
Mônica Aparecida Gonçalves
Natália de Vincenzo Soares Martins
Nercina Andrade Costa
Nilma de Castro Abe
Otavio Pinto e Silva
Priscila Akemi Beltrame
Rebeca de Macedo Salmazio
Ricardo Rui Giuntini
Ricardo Vita Porto
Roberta Guitarrari Azzone Colucci
Rodrigo Lemos Arteiro
Rosa Ramos
Sarah Hakim
Thaís Proençaa Cremasco
Vianei Aparecida Titoneli Principato
Yeda Costa Fernandes da Silva
MEMBROS SUPLENTES
Ademar Pinheiro Sanches
Afonso Pacileo Neto
Alcenilda Alves Pessoa
Aleksander Mendes Zakimi
Alexandre Soares Louzada
Alexandrina Rosa Dias
Ana Carolina Lourenço Santos das Dores
Ana Laura Teixeira Martelli
Ana Paula de Almeida Santos
Ana Paula Menezes Faustino
André Aparecido Barbosa
Andreia Capucci
Arão dos Santos Silva
Awdrey Frederico Kokol
Bruna Fernanda dos Santos Umberto
Carla Cristiane Hallgren Silva
Cesar Amendolara
Charlene Aparecida Francisco da Silva
Claudia Duarte e Trinca
Daliana Cristina Dias Leite
Daniel Amorim Assumpção Neves
Daniel da Silva Castelo Oliveira
Diego Tavares
Élida de Souza Silva
Erazê Sutti
Erick Anselmo Barbosa
Eudécio Teixeira Ramos
Ezequias Alves da Silva
Fabiano Reis de Carvalho
Fabio Paulo Reis de Santana
Fábio Rodrigues Goulart
Fernando Jorge Neves Figueiredo
Flávia de Oliveira Santos do Nascimento
Flávio Marques Alves
Glaudecir José Passador
Gonçalo Batista Menezes Filho
Heloisa Helena Cidrin Gama Alves
Jesualdo Eduardo de Almeida Junior
João Carlos Rizolli
Jocelino Pereira da Silva
José Fabiano de Queiroz Wagner
José Umberto Franco
Josué Justino do Rio
Juliana Abrusio Florencio
Julianelli Caldeira Esteves Stelutte
Laurilia Ruiz de Toledo Veiga Hansen
Leandro Affonso Tomazi
Leisa Boreli Prizon
Leopoldo Luis Lima Oliveira
Luciana Monteiro Cossermelli Tornovsky
Lucimara Ferreira de Sousa
Luís Henrique Neris de Souza
Luiz Eduardo de Moura
Luiza Alexandrina Vasconcelos Oliver
Marco Antonio Pinto Soares Junior
Marcus Vinicius Lourenço Gomes
Maria Adelaide da Silva
Maria do Carmo Roldan Gonçalves
Marilza Nagasawa
Marina Priscila Romuchge
Mauricio Baptistella Bunazar
Max Fernando Pavanello
Natália Sukita Barboza dos Santos
Nathália Carmo Silva Santos
Neilton Correia Neves
Nelci da Silva Rodrigues
Nelson Massaki Kobayashi Junior
Néria Lucio Buzatto
Ricardo Ferrari Nogueira
Rosana Rufino
Roseli da Silva Santos
Sandra Andrade de Paula Amorim
Sara Lúcia de Freitas Osorio Bononi
Silvio Henrique Mariotto Barboza
Simone das Merces Sapienza
Tania Karina Liberman
Tatiana Giorgini Fusco Cammarosano
Thalita Fernanda da Cruz Barreto Costa
Vanessa Rafael de Freitas
Wanderson Martins Rocha
MEMBROS HONORÁRIOS VITALÍCIOS
Antonio Claudio Mariz de Oliveira
Caio Augusto Silva dos Santos
Carlos Miguel Castex Aidar
João Roberto Egydio Piza Fontes
José Roberto Batochio
Luiz Flávio Borges D’Urso
Marcos da Costa
MEMBROS EFETIVOS PAULISTAS NO CONSELHO FEDERAL
Alberto Zacharias Toron
Carlos Jose Santos da Silva
Silvia Virginia Silva de Souza
MEMBROS SUPLENTES PAULISTAS NO CONSELHO FEDERAL
Daniela Campos Liborio
Helio Rubens Batista Ribeiro Costa
Alessandra Benedito
DIRETORIA ESA OAB SP (GESTÃO 2022/2024)
Conselho Curador
DIRETOR ESA OAB SP
FLÁVIO MURILO TARTUCE SILVA
VICE-DIRETORA ESA OAB SP
SARAH HAKIM
COORDENADOR CIENTÍFICO
CARLOS EDUARDO NICOLETTI CAMILLO
COORDENADOR PEDAGÓGICO
ANTÔNIO RODRIGUES DE FREITAS JÚNIOR
COORDENADOR GERAL DAS ÁREAS GEOGRÁFICAS
SÉRGIO CARVALHO DE AGUIAR VALLIM FILHO
ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA NÚCLEOS TEMÁTICOS
Direito e Relações Interdisciplinares
Aguida Arruda Barbosa
Direito Eleitoral
Alexandre Luís Mendonça Rollo
Direito de Seguro e Resseguro
Angelica Lucia Carlini
Direito Constitucional
André Ramos Tavares
Violência Doméstica e Gênero
Bruna Soares Angotti Batista de Andrade
Direito Imobiliário
Cesar Calo Peghini
Direito e Regulação
Camila Ferrara Padin
Direito Processual Civil
Daniel Amorim Assumpção Neves
Direitos Humanos
Carmela Dell Isola
Direito do Consumidor
Fabrício Bolzan
Mediação
Celia Regina Zapparolli Rodrigues de Freitas
Direito Concorrencial
Gabriel de Orleans e Bragança
Arbitragem
Daniela Monteiro Gabbay
Direito Internacional
Gustavo Ferraz de Campos Mônaco
Direito Civil
Marcelo Truzzi Otero
Direito Ambiental
Humberto Adami Santos Júnior
Prevenção e Solução Extrajudicial De Litígios
Fernanda Tartuce Silva
Direito da Diversidade Racial e Antirracista
Irapuã Santana do Nascimento da Silva
Direito Internacional do Trabalho e Desportivo
Flávia de Almeida de Oliveira Zanini
Recuperação Judicial e Falência
Ivan Lorena Vitale Junior
Advocacia Corporativa
Ana Carolina Lourenço
Dogmática do Direito Penal
João Paulo Orsini Martinelli
Direito Tributário
Fulvia Helena de Gioia
Direito Educacional
José Moisés Ribeiro
Direito Digital
Juliana Abrusio Florêncio
Direito Desportivo
Leonardo Andreotti Paulo de Oliveira
Direito Administrativo
Lilian Regina Gabriel Moreira Pires
Direito de Família
Claudia Stein Vieira
Compliance
Mariângela Tomé Lopes
Direito Notarial E Registral
Ellison Andrade
Direito Médico e da Saúde
Rosana Chiavassa
Direito Agrário
Maurício Baptistella Bunazar
Direito Processual do Trabalho
Olívia de Quintana Figueiredo Pasqualeto
Ciências Criminais
Mauricio Schaun Jali
Direito Comercial
Paula Andrea Forgioni
Teoria Geral do Direito
Nehemias Domingos de Melo
Direito do Terceiro Setor
Paula Raccanello Storto
Direito da Infância e da Juventude
Oswaldo Peregrina Rodrigues
Biodireito e Bioética
Renata Rocha
Advocacia Pública
Ricardo Ferrari Nogueira
Direito Coletivo Do Trabalho
Ana Cecília de Martino
Privacidade e Proteção de Dados
Ricardo Freitas Silveira
Responsabilidade Civil
Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade
Nery
Direito do Trabalho
Ricardo Pereira de Freitas Guimarães
Direito, Diversidade e Gênero
Tainá Góis
Direito da Pessoa Com Deficiência
Roberto Bolonhini Júnior
Direito Processual
Penal Thamara Duarte Cunha Medeiros
Direito Previdenciário
Theodoro Vicente Agostinho
Filosofia e Sociologia do Direito
Viviane Vidigal Castro
Contencioso Estratégico
William Santos Ferreira
COORDENAÇÃO GESTÃO 2022-24
Coordenador Cientifico
Carlos Eduardo Nicoletti Camillo
Coordenador Geral das Áreas
Geográficas
Sérgio Carvalho de Aguiar Vallim Filho
Coordenador Pedagógico
Antonio Rodrigues de Freitas Jr.
CONSELHO CURADOR: Gestão
2022/2024
PRESIDENTE
Oscar Vilhena Vieira
VICE-PRESIDENTE
Maria Garcia
CONSELHEIROS
Ana Cláudia Torezan Andreucci
Felipe Chiarello de Souza Pinto
Giselda Maria Fernandes Novaes
Hironaka
José Fernando Simão
Ivete Senise Ferreira
Márcio Vicente Faria Cozatti
Renato Cassio Soares de Barros
10
01. DIREITO DE ARENA E ESPORTE ELETRÔNICO – REFLEXÃO SOBRE A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI ESPECIAL DO ESPORTE NOS CONTRATOS DE TRANSMISSÃO DO ESPORTE ELETRÔNICO
Diógenis Vinícius dos Santos Barbosa
21
02. FUTEBOL: O CONTRATO DE GERENCIAMENTO DE CARREIRA DO MENOR DE 18 ANOS EM FORMAÇÃO, SUA NULIDADE E A IMPOSSIBILIDADE DE CONVALIDAÇÃO NA ASSINATURA
DE CONTRATO PROFISSIONAL A PARTIR DOS 16 ANOS
Marcos Ribeiro de Barros
32
03. NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE CESSÃO DE USO DE IMAGEM
Gabriel Delbem Bellon
46
04. ÁRBITROS DESPORTIVOS E O DIREITO DE IMAGEM
Rafael Bozzano
62
05. AS ESPECIFICIDADES DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DOS ATLETAS PROFISSIONAIS
Guilherme Augusto Assis Dadalto
71
06. ANÁLISE JURÍDICA SOBRE AS APOSTAS ESPORTIVAS NO BRASIL
Giulio Zanone Eugenio
84
07. REFLEXÕES ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DE REGISTRO DO INTERMEDIÁRIO PERANTE ENTIDADE DE ADMINISTRAÇÃO DO DESPORTO
Ricardo Issao Kaneshiro
97
08. A PRECOCE ATRIBUIÇÃO DE IGUALDADE NA PARTICIPAÇÃO DE ATLETAS TRANSGÊNERO NO ESPORTE
Thais Xerfan Melhem Morgado
109
09. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DAS ASSOCIAÇÕES DESPORTIVAS PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO TRABALHISTA
Talita Novaes
119
10. O PAPEL DO DEFENSOR DATIVO NO NOVO CÓDIGO BRASILEIRO ANTIDOPAGEM
Débora Passos
130
11. CESSÃO TEMPORÁRIA DE ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL: ASPECTOS LEGAIS E NOVAS LIMITAÇÕES IMPOSTAS PELA
FIFA
Felipe Abrantes Rossetto
Leonardo Andreotti Paulo de Oliveira
137
12. O REGIME DE CENTRALIZAÇÃO DE EXECUÇÕES SEGUNDO A LEI SAF – UMA ANÁLISE CRÍTICA DO INSTITUTO
Guilherme Henrique Bosquê Salutti
148
13. A VALIDADE DA ARBITRAGEM EM DISSÍDIOS INDIVIDUAIS TRABALHISTAS NA CNRD
Felippe Lima Sant’Anna
160
14. AS PARTICULARIDADES DO CONTRATO ESPECIAL DE TRABALHO DESPORTIVO
Filipe Marques E Silva
173
15. HOMOFOBIA ESTRUTURAL NO FUTEBOL E A TARDIA QUEBRA DE BARREIRAS COM AS PUNIÇÕES SOCIOEDUCATIVAS.RESOLVEM?
Nicolas Neves de Souza
Edição 41 Ano 2022
ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA
São Paulo, OAB SP - 2023
COORDENAÇÃO TÉCNICA COORDENADOR GERAL
Adriano de Assis Ferreira
COORDENADOR ACADÊMICO
Erik Chiconelli Gomes
COORDENADOR AUDIOVISUAL Ruy Dutra
PROJETO GRÁFICO
Rubia Duarte
Fale Conosco
Largo da Pólvora, 141- Sobreloja - São Paulo/ SP
Tel. .55 11.3346.6800
Pubicação Trimestral
ISSN - 2175-4462
Direitos - Periódicos.
Ordem dos Advogados do Brasil
Prefácio
Recebi com imensa honra a missão de prefaciar o presente volume da Revista Científica Virtual da Escola Superior de Advocacia de São Paulo, o braço acadêmico de nossa honrosa Seccional Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil e foro de intensa capacitação de Advogadas, Advogados e estudiosos das mais diversas ciências, sobretudo às jurídicas, e que jogam importante papel na evolução e pleno desenvolvimento do Direito nacional.
A edição da revista a qual dedicamos essas breves linhas é de fato especial, não somente por tratar de um tema de cunho verdadeiramente especial, no contexto de suas peculiares características e especificidades, mas por representar o próprio sucesso do curso de Pós Graduação em Direito Desportivo, já tradicional na ESA/SP há muitos anos, e que segue cumprindo de forma eficiente, e com a excelência que lhe é peculiar, com o seu mister formativo, sem dúvidas oferecendo ao mercado profissionais de grande envergadura.
Nesse sentido, a obra reúne artigos construídos ao longo do percurso acadêmico de seus autores, apresentados ao final do curso como condição para a obtenção de título acadêmico do Programa de Pós-graduação Lato Sensu da Escola Superior de Advocacia de São Paulo, e se prestam a trazer importantes conceitos e reflexões na seara jurídico-desportiva nacional.
A obra, para nos valermos de terminologia comum no esporte, é literalmente um golaço da ESA/SP, e de todo o time liderado pelo Diretor-Geral, Prof. Flávio Tartuce, que me confia a posição de Coordenador da Pós-graduação em Direito Desportivo, que tem em seus alunos o seu melhor ativo, como se nota no trabalho ora publicado.
Boa leitura!
Prof. Leonardo Andreotti Paulo de OliveiraÁrbitro do Tribunal Arbitral do Esporte (TAS); Ex-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD); Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD); Membro da Associazione Italiana Avvocati dello Sport (AIAS); Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT); e Coordenador da Pós-graduação em Direito Desportivo da ESA/SP.
DIREITO DE ARENA E ESPORTE ELETRÔNICO – REFLEXÃO SOBRE A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI ESPECIAL DO ESPORTE NOS CONTRATOS DE TRANSMISSÃO DO ESPORTE ELETRÔNICO
O setor de Sportainment, que une esporte e entretenimento, tem contado fortemente com a indústria de games desde seus primórdios até os títulos contemporâneos. Essa indústria experimentou um crescimento expressivo, particularmente durante a pandemia da COVID-19, onde houve um aumento de 20% em 2020, totalizando um faturamento de aproximadamente R$165,9 bilhões. Nesse contexto, a monetização através de vendas internas nos jogos e plataformas de streaming, como Twitch e Booyah, tornou-se ainda mais proeminente. Além disso, a audiência do streaming e os campeonatos de e-sports continuaram a crescer, contrapondo-se aos esportes tradicionais que sofreram pausas por causa da pandemia. Contudo, o crescimento do e-sport não foi acompanhado por regulamentações claras, tornando as relações no setor fluidas e dinâmicas. Atualmente, um debate relevante é sobre a aplicação da legislação esportiva aos esportes eletrônicos, especialmente considerando que a Ministra do Esporte, Ana Moser, não considera os e-sports como “esportes” tradicionais.
Palavras-chave
Sportainment - Indústria de Games - Crescimento - Pandemia - COVID-19 - Monetização - Streaming - E-sports - Regulamentação - Legislação Esportiva
Diógenis Vinícius dos Santos Barbosa
Bacharel em Direito - Pós graduado em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia (ESASP)
INTRODUÇÃO
Não é de hoje que o mundo do esporte e do entretenimento (Sportainment) conta com a indústria dos jogos eletrônicos (games) que vem, desde o tennis for two até o Call of Duty Warzone 2, passando por várias plataformas, do celular ao computador, e representa um dos pilares do entretenimento nos dias atuais.
A indústria dos games passou por um crescimento exponencial nos últimos anos, em especial, durante a pandemia de COVID-19, com a locomoção mais restritae mais tempo em casa, a indústria experimentou um crescimento de 20% (vinte porcento) em 2020 o que levou a um faturamento de aproximadamente R$165.900.000,00 (cento e sessenta e cinco bilhões e novecentos milhões de reais) segundo reportagem da coluna
Valor Econômico1
Durante esse período foram melhor exploradas diversas formas de monetização através dos games, como a comercialização de itens dentro dos jogos, a produção de conteúdo derivado, como publicação de gameplays no youtube além do conhecido streaming dessas mesmas gameplays em plataformas destinadas para tal como Twitch, Booyah, dentre outras.
O streaming, em especial, bateu recorde em termos de audiência, atingindo a marca de 12 bilhões de horas assistidas em 2021, segundo relatório do blog Stream Elements2
Dentre os conteúdos ali transmitidos estavam os campeonatos de e-sports, das mais diversas modalidades.
Ao revés dos esportes tradicionais, os esportes eletrônicos não pararam com a pandemia, portanto, ainda que sem eventos presenciais, os campeonatos dos esports experimentaram um crescimento de 9,6% em audiência no ano de
1 Disponível em: https://valor.globo.com/eu-e/ noticia/2021/04/16/distanciamento-na-pandemia-impulsionaindustria-de-games-no-brasil.ghtml
2 Disponível em: https://blog.streamelements.com/state-ofthe-stream-for-january-2021-bb1898e7b913
2020 e, em 2021, mais 8,6% de espectadores.3
O crescimento, contudo, não veio acompanhado de arcabouço jurídico apto a regular as relações oriundas do mercado de esportes eletrônicos e seus principais desafios.
Nesse nicho, as relações são muito dinâmicas, difíceis de serem acompanhadas pelo poder legislativo e seus representantes, muitas vezes, cabendo aos próprios personagens dos esports a regulamentação em determinadas situações.
Inclusive, um dos principais debates que pairam sobre o esporte eletrônico é sobre a possibilidade, ou não, de aplicação da legislação especial desportiva e seusinstitutos em razão de não haver previsão específica do esporte eletrônico na Lei Pelé,O debate atualmente está ainda mais aquecido em decorrência das falas da Ministra do Esporte, Ana Moser, que afirmou não haver interesse do ministério doesporte no investimento ao esporte eletrônico eis que, na visão da Ministra, não setrata de esporte, o que, em tese, importa em óbice para a incidência da lei geral do esporte.
E é o debate acima aludido ponto de partida para o presente artigo que objetivatratar sobre a possibilidade de aplicação da lei especial do esporte (Lei Pelé), em especial, do instituto do Direito de Arena dentro do esporte eletrônico, sem a pretensãode esgotar o tema ou resolver as dúvidas que circundam, mas, somente trazer uma reflexão sobre a possibilidade de aplicação da normativa ao ecossistema do esporte eletrônico.
1. DIREITO DE ARENA
O termo e o direito foram introduzidos no ordenamento jurídico brasileiro em meados de 1973, por meio da lei 5.988/73, que regulava os direitos autorais, dispondoexpressamente em seu artigo 100 sobre o direito de arena:
3 Disponível em: https://ge.globo.com/sc/noticia/o-mercadode-esports-faturamento-audiencia-e-o-cenario- no-brasil. ghtml
Art. 100. A entidade a que esteja vinculado o atleta, pertence o direito de autorizar, ou proibir, a fixação, transmissão ou retransmissão, por quaisquer meios ou processos de espetáculo desportivo público, com entrada paga.
Parágrafo único. Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes doespetáculo.
Àquela época o legislador entendia o direito de arena como direito conexo ao do autor, inserindo a disposição legal no bojo da lei cujo objeto versava sobre o direitoautoral.
Naquele momento a norma do direito de arena veio muito a calhar, ao passo que o cenário desportivo passava por avanço tecnológico ímpar impulsionado ainda mais pela Copa do Mundo de 1970, considerado por muitos o primeiro grande evento, de caráter mundial, atraindo a atenção dos mais diversos torcedores à exibição do espetáculo desportivo.
Por curiosidade, estima-se que a final, realizada no Estádio Asteca, reuniu cerca de 700 milhões de telespectadores, segundo o site de notícias globo.com4, demonstrando o poder e alcance de uma transmissão, bem como seu potencial imensurável para o mercado esportivo.
Então, em 1993, com a edição da Lei Zico (lei 8.672/93) o direito de arena passou a constar em legislação de cunho esportivo e, segundo a jurista Silmara Juny de Abreu Chinellato, encontrou seu lugar:
“o direito de arena está, hoje, aonde deveria”. (Chinellato,1999)
A Lei Zico previu, em seu artigo 245, a prerroga4 https://memoriaglobo.globo.com/esporte/copa-do-mundodo-mexico-1970/noticia/copa-do-mundo-do- mexico-1970. ghtml
5 Art. 24. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de autorizar a fixação, transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo desportivo de que participem.
§ 1º Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da
tiva de que as entidades de prática desportiva negociassem a transmissão do espetáculo desportivo que fizessemparte.
No ano 1998, a lei Zico foi revogada pela promulgação da Lei Pelé, no entanto,a redação que dispunha acerca do direito de arena foi mantida quase em sua integralidade, recebendo somente a necessária atualização e adequação, sendo remetida ao artigo 426 da referida lei que, mais tarde, reduziu o percentual de repasse para 5% (cinco por cento) após amplo debate no judiciário.
Em suma, o direito de arena nada mais é do que um direito conferido às entidades de prática desportivas, relativo à transmissão de um espetáculo desportivo e, por consequência, seus partícipes. Na teoria, para qualquer evento esportivo que se negocie a transmissão, a entidade de prática desportiva deve repassar o percentual de 5% (cinco por cento) aos seus atletas, através de entidade de representação dos atletas profissionais.
Instituto criado exclusivamente pelo ordenamento jurídico brasileiro, o direito de arena, nas palavras do jurista Antonio Chaves, pode ser definido por “prerrogativa que compete ao esportista de impedir que terceiros venham, sem autorização,divulgar tomadas de sua imagem ao participar de competição, ressalvados os casos autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo.
§ 2º O disposto neste artigo não se aplica a flagrantes do espetáculo desportivo para fins exclusivamente jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda de três minutos.
6 Art. 42. Às entidades de prática desportiva pertence o direito de negociar, autorizar e proibir a fixação, a transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo ou eventos desportivos de que participem.
§ 1o Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço total da autorização, como mínimo, será distribuído, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo ou evento.
§ 2o O disposto neste artigo não se aplica a flagrantes de espetáculo ou evento desportivo para fins, exclusivamente, jornalísticos ou educativos, cuja duração, no conjunto, não exceda de três por cento do total do tempo previsto para o espetáculo.
expressamente previstos em lei”. (Chaves, 1998)
José de Oliveira Ascensão define por “direito de autorizar ou proibir a fixação, transmissão ou retransmissão, por quaisquer meios ou processos, de espetáculo desportivo”. (Ascensão, 1986)
O Desembargador da corte bandeirante, Dr. Francisco Loureiro, na análise do processo nº 0106434-29.2008.8.26.0100, da 4ª Câmara de Direito Privado, entendeuo instituto da seguinte maneira:
“O direito de Arena, em última análise, é o da gravação ou transmissão do espetáculo a um público não presencial. Aparecem as imagens individuais, porém o que se comercializa é o espetáculo em si, no qual os indivíduos apenas tomam parte. Presume-se que, em ali estando, os indivíduos
acordaram com a veiculação de sua imagem ali naquele contexto, na divulgação do espetáculo, e recebem direta ou indiretamente por isso”
Nota-se que, nas mais diversas fontes do direito, é uníssono o entendimento de que o direito de arena versa sobre a reprodução de espetáculo esportivo àqueles que não participaram do evento presencialmente.
Portanto, pode se dizer que o objetivo do instituto é regular a materialização doespetáculo desportivo, de modo que possa ser utilizado por aqueles que não tiveramacesso ao local do evento ou ao momento em que se realizou.
Sabendo que espetáculo esportivo não ocorre exclusivamente no futebol e queo instituto do direito de arena encontra guarida na lei geral do esporte, se mostra necessária a reflexão sobre a possibilidade de aplicação do instituto do direito de arena ao esporte eletrônico para fins de segurança jurídica à todos os partícipes do espetáculo esportivo tendo em vista que exploração dos direitos de transmissão nessa área demandam certa atenção.
2. IDEIA DE ESPORTE
Em primeiro lugar, para a aplicação da lei geral do desporto, a lei Pelé, é necessário que a modalidade em debate seja considerada um esporte. Mas o que é oesporte em si?
A definição de esporte é, segundo o dicionário Soares Amora (2007, pg.285), a prática metódica de exercícios físicos ou jogos, individualmente ou em equipe.
Todavia, atualmente não existe um conceito único do que seja esporte por se tratar de um fenômeno social que, a depender da época em que se manifesta, pode estar sujeito a critérios distintos para que seja reconhecido por modalidade esportiva.Muito se discute se o esporte eletrônico pode, ou não, ser considerado esporte,
se é imprescindível o esforço físico, se há um gasto exacerbado de energia, ou ainda, nos termos da fala da Ministra do Esporte, se a modalidade preenche o requisito da imprevisibilidade.
Tendo em vista as modalidades esportivas existentes se mostra equivocado condicionar a caracterização de uma modalidade esportiva ao esforço físico, se assimfosse, modalidades como xadrez e tiro esportivo tampouco seriam consideradas como esporte. De igual modo, pode se considerar ainda mais equivocado afastar o esforço
físico do esporte eletrônico, como se a prática não demandasse qualquer esforço do seu participante. Já com relação a imprevisibilidade, não há razão para que se afaste a imprevisibilidade do esporte eletrônico uma vez que na modalidade eletrônica o resultado também é imprevisível, a título de exemplo temos as competições de FIFA em que 2 (dois) players jogam um contra o outro e o resultado da partida depende, exclusivamente, das ações, omissões, estratégias e táticas usadas pelos players durante a partida
Não obstante, na ausência de um conceito positivado sobre o que é ou não esporte na lei espe-
cial desportiva, a doutrina se socorre há outras fontes, como costumes, a cultura de determinado local e, também, definições cientificas de outras áreas.
Manifestações Sociais e Culturais
Sabendo disso, têm-se que o esporte em si não se materializa em lei, o esporteé vivo e surge sempre antes de qualquer regulamento, exatamente como aconteceu com o futebol que surgiu de uma brincadeira lúdica entre trabalhadores industriais, sem qualquer regulamentação, e hoje é o espetáculo que vemos na TV.
O esporte eletrônico, por exemplo, surgiu dentro de uma universidade, em umacompetição entre estudantes, resultado de uma manifestação social.
A manifestação esportiva se dá, em primeiro lugar, como uma manifestação social, momento em que a própria sociedade inicia um movimento aderindo à determinado esporte.
No contexto atual, com os avanços tecnológicos, as manifestações sociais estão cada vez mais modernas e acompanham a tecnologia, o acesso a tecnologia está cada vez mais globalizado e facilitado, chegando aos mais diversos lugares do mundo, inclusive os mais afastados.
A globalização e a facilidade no acesso resultam em cada vez mais pessoas aderindo aos jogos eletrônicos na modalidade competitiva, diversos grupos, de diferentes “bolhas” sociais e em massa, caracterizando assim o fenômeno da manifestação esportiva.
Tal fenômeno faz crescer não só a área esportiva, atinge também áreas correlatas como mídia, saúde, cultura, educação etc. Não podendo ser ignorado.
É sabido que o direito se adapta as situações do cotidiano, regulando e pacificando as relações da sociedade com base em seu próprio comportamento, ou seja, antes de qualquer espécie
de regulamento surge a manifestação social e a respectiva aceitação pela sociedade.
Então a ausência de legislação específica que reconheça o esporte eletrônico como efetivamente um esporte, não é óbice para que este seja reconhecido como, todavia, para se ter por norte, o estudo irá se basear nas definições de esporte que se têm conhecimento, cujo objetivo é somente elucidar.
Conceito Fisiológico
O Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), define esporte no artigo 9, §2ª de seu Estatuto Social:
§ 2º - O termo desporto/esporte compreende sistema ordenado de práticas corporais que envolve atividade competitiva, institucionalizada, realizada conforme técnicas, habilidades e objetivos definidos pelas modalidades desportivas segundo regras pré-estabelecidas que lhe dá forma, significado e identidade, podendo também ser praticado com liberdade e finalidade lúdica estabelecida por seus praticantes, realizado em ambiente diferenciado, inclusive na natureza (jogos: da natureza, radicais, orientação, aventura e outros). A atividade esportiva aplica-se, ainda, na promoção da saúde e em âmbito educacional de acordo com diagnóstico e/ ou conhecimento especializado, em complementação a interesses voluntários e/ou organização comunitária de indivíduos e grupos não especializados.
E segue definindo o que é atividade física, no entender do conselho, no parágrafo 1º do referido artigo
§ 1º - Atividade física é todo movimento corporal voluntário humano, que resulta num gasto energético acima dos níveis de repouso, caracterizado pela atividade do cotidiano e pelos exercícios físicos. Trata-se de comportamento inerente ao ser humano com características biológicas e sócio-culturais. No âmbito da Interven-
ção do Profissional de Educação Física, a atividade física compreende a totalidade de movimentos corporais, executados no contexto de diversas práticas: ginásticas, exercícios físicos, desportos, jogos, lutas, capoeira, artes marciais, danças, atividades rítmicas, expressivas e acrobáticas, musculação, lazer, recreação, reabilitação, ergonomia, relaxamento corporal, ioga, exercícios compensatórios à atividade laboral e do cotidiano e outras práticas corporais.
O conceito de atividade física, com redação bastante semelhante, também pode ser encontrado em diretrizes da Organização Mundial da Saúde (World Health Organization – WHO): WHO defines physical activity as any bodily movement produced by skeletal muscles that requires energy expenditure.
Em tradução livre: “a organização define como atividade física qualquer movimento produzido pelos músculos esqueléticos que requer o gasto de energia.”
Ao interpretarmos de maneira conjunta a definição encontrada no dicionário Aurélio e o conceito de atividade física do Conselho Nacional de Educação Física, pode se vislumbrar a prática da atividade esportiva no esporte eletrônico.
O gasto energético acima dos níveis de repouso se encontra presente nos esports eis que, as mais diversas pesquisas que apontam o gasto de mais ou menos 200 calorias por hora jogada e frequência cardíaca acima de 100 Batimentos por minuto.
Ademais, se evidencia nos eventos relacionados ao cenário do esporte eletrônico que a referida atividade física é realizada em um cenário de competição, com regras pré-estabelecidas e objetivos claros.
Por mais que seja diretriz voltada aos profissionais de Educação Física na ausência de disposição específica criada pelo Poder Legislativo, a aplicação desta no direito desportivo se presta
unicamente a elucidar questão até então obscura, o conceito de esporte, com sua aplicação restrita à terminologia para o objetivo do presente artigo.
Com o conceito do que pode ser considerado efetivamente um esporte mais claro em mente, não resta dúvida que o esporte eletrônico pode, e deve, ser considerado um esporte.
Esporte Eletrônico como Esporte
A prática do esporte eletrônico se dá em ambiente competitivo com regras expressas e objetivos pré-definidos e tal fato pode se evidenciar nas competições já conhecidas do grande público como a ESL, LBFF, o CBLOL entre outras.
Ainda que não esteja positivado na lei 9.615/98 (Lei Pelé), ali também não há qualquer óbice ao reconhecimento do esporte eletrônico, pois, a referida lei não faz distinção entre as modalidades esportivas, somente preceitua a diferença entre desporto educacional, de participação, de formação e de rendimento.
O esporte eletrônico pode ser enquadrado em cada um desses nichos do esporte. O desporto educacional pode ser evidenciado pois já existem relatos de aulas
de educação física sendo ministradas através do esporte eletrônico7, o desporto de participação é praticado por todos aqueles que jogam online, a prática lúdica, o esporte como formação pode ser vislumbrado na medida em que já existem categorias de base dentro das próprias equipes de esporte eletrônico, escolas que tem por objeto o esporte eletrônico e, também, universidades americanas que passaram a oferecer bolsa aos atletas do esporte eletrônico e, por fim, o esporte eletrônico de rendimentojá está presente na sociedade há muitos anos, sendo o CBLOL8, o Major, a LBFF etc,exemplos claros do desporto eletrônico de rendimento.
7 Disponível em: https://www.uol.com.br/start/ultimasnoticias/2017/04/20/por-sugestao-de-aluno-escola- trocaaula-de-educacao-fisica-por-lol.htm
8 Campeonato Brasileiro de League of Legends
O ministério do esporte, por sua vez, quando instado a se manifestar sobre como se opera o reconhecimento do esporte se manifestou no seguinte sentido: “O esporte é um direito social, não cabendo às leis reconhecer a existência ou a prática dos mesmos, apenas fomentar sua prática, independente da modalidade escolhida.” (Parecer nº91/2015 do Conselho Nacional do Esporte)
Nesse contexto pode se evidenciar que, em várias oportunidades, o esporte eletrônico já foi reconhecido como esporte, ainda que de maneira tácita. As organizações e ligas do cenário passaram a exigir dos clubes a manutenção dos atletas ligados às entidades de prática por meio de contrato especial de trabalho desportivo, pactuando também a autorização para o uso da imagem com base na legislação desportiva (lei 9.615/98) pelas entidades de prática do desporto eletrônico, a justiça do trabalho passou a reconhecer o vínculo empregatício dos atletas com seus clubes/organizações com a aplicação da Lei Pelé, o Ministério do Trabalho, por meio da coordenadoria Geral de Imigração, concedeu visto de trabalho aos atletas de esporte eletrônico estrangeiros que vinham para competições realizadas em territórionacional, reconhecendo a participação dos atletas em práticas esportivas, a SecretariaEspecial do Esporte aceitou a aprovou projetos de incentivo ao esporte relativos ao esporte eletrônico tendo como base a lei 11.438/06 etc.
De mais a mais, os atributos e caraterísticas do esporte eletrônico se espelhamno esporte tradicional, portanto, evidente que os esportes eletrônicos se encaixam nadefinição do que é esporte, seja em razão da manifestação do esporte como fenômeno social ou pela maneira em que a atividade é desenvolvida, encontrando-se em um ambiente competitivo, organizado, com regras pré-definidas e objetivos claros.
Assim, nesse contexto, se mostra possível a aplicação da lei 9.615/98 e, por consequência, a aplicação do instituto do direito de arena às trans-
missões do desportoeletrônico.
Mas isso não quer dizer que o direito de arena pode ser imposto às desenvolvedoras e aplicado irrestritamente nas relações do desporto eletrônico. Isto porque, no cenário atual, a negociação dos direitos de transmissão nos esports enfrentaria alguns óbices.
3. O DIREITO DE ARENA NO ESPORTE ELETRÔNICO
Como é sabido, a lei especial do esporte possui seus artigos voltados aofutebol, modalidade mais famosa em todo o território brasileiro, e por isso existempeculiaridades do esporte eletrônico que, em tese, não se adequam à letra fria da lei.
As mencionadas peculiaridades não impedem a aplicação do direito de arena ao esporte eletrônico, mas criam óbices e podem causar dúvida aos integrantes do ecossistema.
Partindo do contexto apresentado no presente artigo, tendo os esports como modalidades esportivas e sendo aplicável a lei 9.615/98, as dúvidas giram em torno de como o direito de arena poderia ser aplicado dadas as particularidades de cada modalidade eletrônica.
Com relação ao espetáculo desportivo, pode se dizer que o esporte eletrônico possui o diferencial de ter duas “arenas”, a física onde os atletas executam os comandos em seus consoles ou computadores e o espaço virtual onde os comandosexecutados se desenvolvem.
Pode se supor que no esporte eletrônico há a negociação de duas transmissões em um mesmo contrato, mas, imaginem um cenário em que as transmissões são negociadas em instrumentos distintos.
Caso a transmissão seja só do espaço físico, onde os atletas estão, a negociação do direito de arena seria bem semelhante ao que é no esporte
tradicional ao passo que somente seriam transmitidas a imagem dos atletas, treinadores, marcase demais envolvidos no evento, sem o atrativo que é a partida disputada.
Já com a transmissão da “arena” virtual há a participação de novos stakeholders, a desenvolvedora e a Publisher, cuja natureza pode ser equiparada a de entidades de administração do desporto, e figuram como “donas” do jogo, podendo a qualquer momento retirar o jogo do mercado e acabar com a competição.
Sendo donas do jogo há a incidência também de direitos de propriedade intelectual, assim, em caso de competição que seja realizada por terceiro, há a necessidade de obtenção de licença de uso de propriedade intelectual.
Autorizada a competição, o direito de transmissão pode ser diretamente negociado pela própria desenvolvedora, pela liga, ou, em raras exceções, pelas organizações/clubes.
Diga-se raras exceções por não ser algo comum no cenário do desporto eletrônico mas, nas referidas exceções, a desenvolvedora pode deixar a negociação à cargo das próprias equipes do esporte eletrônico como forma de fomentar o cenáriocomo foi o caso do CBLOL Academyque funciona como “segunda divisão” do League of Legends no Brasil - na intenção de fomentar o alcance, engajamento e crescimento a Riot conferiu as organizações e aos influenciadores das organizações o direito de transmitir suas partidas, negociar eventuais publicidades etc.
Todavia, o mais comum é que a negociação dos direitos de transmissão nos esports se dê como ocorre nas ligas de futebol, os direitos são dos clubes, mas quem vende e negocia é a própria liga e, no Brasil, a própria federação estadual ou confederação.
À título de exemplo pode se equiparar a Riot Games à Federação Paulista de Futebol (FPF) que negocia, respectivamente, o direito de transmissão do Paulistão, campeonato que é responsável
pela organização.
Além de negociar, a desenvolvedora pode também condicionar a transmissão em determinada plataforma, como por exemplo, a Garena, desenvolvedora do jogo Free Fire, poderia impor às organizações que a transmissão dos campeonatos fosseexclusivamente pela plataforma Booyah exatamente como pretendia, pois, na condição de “entidade de administração” do Free Fire e detentora da propriedade intelectual, pode controlar não só a transmissão como as maneiras de se monetizar.
Uma vez negociada a transmissão, nesse cenário hipotético em que incide a lei geral do desporto ao esporte eletrônico e sendo onerosa, a lei prevê que do valor recebido pela exploração comercial dos direitos desportivos audiovisuais haverá o repasse de 5% (cinco por cento) aos atletas.
O percentual indicado é repassado à entidade representante dos atletas, um sindicato ou entidade de natureza semelhante, todavia, atualmente no cenário não há
entidade que represente os atletas profissionais de esportes eletrônico, ao menos não uma que efetivamente seja reconhecida por estes, o que impossibilita, a priori, o repasse e a distribuição de eventuais valores negociados.
A falta de representação dos atletas impossibilita, inclusive, a pactuação de umrepasse distinto em convenção coletiva uma vez que não há entidade legítima e aptapara tal.
No cenário apresentado, para a negociação dos direitos de transmissão do esporte eletrônico poderia se criar um canal de comunicação entre as desenvolvedoras e as equipes para que se mantenha um diálogo claro e transparente sobre eventuais interessados na transmissão dos eventos e, concluindo pela negociação, que então se criasse um fundo para que os valores fossem depositadose, ao final, distribuídos entre os atletas e equipes, respeitados os percentuais
previstos para cada, objetivando assim atender os interesses de todos os atores envolvidos no espetáculo esportivo sob a chancela do direito de arena e da lei geral do esporte.
Contudo, para que isso aconteça se mostra necessária a superação obstáculos elencados com as adequações necessárias em respeito à dona do jogo e as peculiaridades da modalidade esportiva.
CONCLUSÃO
Com o presente artigo pode-se compreender o que é o direito de arena, comosurgiu e a quem o legislador conferiu a titularidade de tal direito.
Em sequência foi apresentado que para a aplicação do direito de arena é necessário que a modalidade esteja sujeita à aplicação da Lei Pelé, isto é, que seja considerado esporte.
De modo a justificar a aplicação da legislação esportiva, dada a ausência de reconhecimento expresso, foram apresentadas todas as características que aproximam o esporte eletrônico da definição de esporte.
Foram apresentadas as singularidades do esporte eletrônico possui singularidades que não existem nos esportes tradicionais, a rapidez de crescimento, a presença de uma “dona do jogo” e do conteúdo de propriedade intelectual, a facilidade de transmissão por diversos meios, dentre outros.
Ficou evidente que, ao tratar sobre a transmissão do esporte eletrônico, indiretamente, tratamos da transmissão de conteúdo de propriedade intelectual de titularidade da desenvolvedora.
Por tal razão, sempre haverá a interferência da desenvolvedora nas relações do cenário, assim, ainda que se aplique o direito de arena nas transmissões, sempreserá observada a vontade da desenvolvedora, em razão da propriedade do conteúdoque se quer transmitir. A depender da vontade da desenvolvedora, cada campeonato pode receber tratamento distinto, podendo haver desde a limitação da plataforma em que se poderá transmitir até a liberação quase que ir-
restrita do direito de transmissãode determinado campeonato, como vimos durante o presente artigo.
Diante da importância que a transmissão de um campeonato esportivo pode ter para as receitas dos clubes e equipes em geral, fica evidente que a falta de um regulamento aplicável pode importar em prejuízo financeiro às equipes do desporto eletrônico.
O tema ainda é bastante novo e a ausência de regulamentação expressa sobre o desporto eletrônico que, embora não impeça a aplicação do instituto, gera amplo debate sobre a possiblidade ou não de fazê-lo, em razão da inafastável imposição davontade da dona do jogo.
Em conclusão, a transmissão dos esports no Brasil atualmente é regulada por complexo arcabouço de regras tendo em vista a necessária observância a norma esportiva, de direito autoral e de propriedade industrial. Apesar disso, a transmissão ao vivo (streaming) já se mostrou um modelo de monetização com amplo potencial que, se bem explorado, pode beneficiar a todos os players do mercado de esports.
Enquanto isso, a popularidade dos esportes eletrônicos continua a crescer no Brasil e ao redor do mundo e atraindo a atenção do governo, de empresas e outros investidores. Na medida em que a indústria evolui será importante que a regulamentação evolua em conjunto, seja através do estado ou das próprias desenvolvedoras, sempre com o objetivo de garantir maior representatividade dos atletas e clubes perante as desenvolvedoras abrindo a possiblidade de, no futuro, as negociações atenderem os interesses de todos os integrantes do ecossistema.
E, embora seja possível a aplicação desse instituto da lei Pelé, nada leva a crerque este poderá ser aplicado de maneira irrestrita no desporto eletrônico, devendo sempre aguardar a autorização da dona do jogo e avaliar o caso a caso.
Livros
BRATEFIXE JUNIOR, Antonio Carlos. Introdução ao estudo do Esports Law: O direitodo esporte eletrônico. Leme-SP: Mizuno, 2021.
CABEZÓN, Ricardo de Moraes. Direito de Arena – Os aspectos civis dos participantes das atividades desportivas. Leme-SP: Mizuno, 2021.
Capítulo de Livro em obra coletiva
ROSSETO, Felipe Abrantes. Direito de Imagem e Direito de Arena. Revista Brasileira de Direito Desportivo. vol. 27. ano 14. P.99-117. São Paulo: Ed. RT, jan-jun, 2015
Textos em meio eletrônico – Legislação
Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm
Lei 9.615/98 - Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências. Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm
Lei 10.406/2002. Código Civil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/ l10406compilada.htm
Projeto da Lei geral do Esporte - Projeto de Lei 68/2017 Disponível em: https://www25.senado.leg. br/web/atividade/materias/-/materia/128465
Textos em meio eletrônico – Jurisprudência
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação nº 0106434- 29.2008.8.26.0100. Quarta Câmara de Direito Privado. Relator Doutor Francisco Loureiro. 2010
Textos em meio eletrônico – Informativos, notícias e reportagens Universidades, “high scores” e Ferraris. Esta é a pré-história dos esports. Disponível em: https://www.redbull.com/pt-pt/esports-origens
História dos jogos eletrônicos. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/ wiki/ Hist%C3%B3ria_ dos_jogos_eletr%C3%B4nicos
Inventor do primeiro video-game também foi um dos criadores da bomba atômica. Disponível em: https://www.uol.com.br/start/ultimas-noticias/2017/02/26/inventor-do- primeiro-videogame-tambem-foi-um-dos-criadores-da-bomba-atomica.htm
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Physical Activity. 23 fev. 2018. Disponível em: <http://www.who. int/en/news-room/fact-sheets/detail/physical-activity.
RedeTV fecha parceria com a Garena para transmitir ao vivo Liga Brasileira de Free Fire na TV Aberta. Disponível em: https://www.lance.com.br/esports/redetv-fecha- parceria-com-a-garena-para-transmitir-ao-vivo-liga-brasileira-de-free-fire-na-tv- aberta.html
Sportv renova direitos de transmissão do CBLOL até 2024. Disponível em: https://ge.globo. com/esports/lol/noticia/2022/03/23/sportv-renova-direitos-de- transmissao-do-cblol-ate-2024. ghtml
Equipes de CBLol terão direito de fazer suas transmissões do torneio. Disponível em: https:// www.espn.com.br/esports/artigo/_/id/9833152/equipes-cblol-academy-direito- fazer-suas-transmissoes-torneio
Esporte eltrônico é esporte? Disponível em: https://leiemcampo.com.br/esporte- eletronico-e-esporte/
Direitos de transmissão: o que são e como funcionam? Disponível em: https://weplayholding. com/pt-br/blog/direitos-de-transmissao-o-que-sao-e-como- funcionam/
Evolução do mercado e da regulamentação dos Esports no Brasil. Disponível em: http://www. csmv.com.br/evolucao-do-mercado-e-da-regulamentacao-dos-esports-no- brasil/ E-sports sob um enfoque federativo: a lei e suas repercussões. Disponível em: https://www. youtube.com/watch?v=54Fs_dDYYnE
Esporte eletrônico não é esporte de verdade? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QVOcip8kJ-U
Esportes eletrônicos de competição. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ef_ Ir8kzz_M
O que é esporte eletrônico?. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j6jjjCuEpas
Direitos de Mídia (Media Rights). Disponível em: https://about.eslgaming.com/mediarights/ Emissoras brigam por direitos de transmissão de esportes eletrônicos. Disponível em: https:// www1.folha.uol.com.br/esporte/2017/01/1852497-emissoras-brigam-por- direitos-de-transmissao-de-esportes-eletronicos.shtml
Por sugestão de aluno, escola troca aula de Educação Física por “LoL”. Disponível em: https:// www.uol.com.br/start/ultimas-noticias/2017/04/20/por-sugestao-de-aluno- escola-troca-aula-de-educacao-fisica-por-lol.htm
Resolução nº 44. Disponível em: http://arquivo.esporte.gov.br/arquivos/conselhoEsporte/resolucoes/Resoluo_44_-_1_e_2.pdf
Sports broadcasting contracts in the United States. Disponível em: https://en.wikipedia.org/ wiki/Sports_broadcasting_contracts_in_the_United_States#:~:text=In%20the%20United%20 States%2C%20sports,total%20worldwide%20sports% 20media%20market.
Portal Tournaments/International. Disponível em: https://lol.fandom.com/wiki/Portal:Tournaments/International
CBLOL Academy 2022: Times poderão transmitir os jogos em seus canais. Disponível em: https://esportenewsmundo.com.br/cblol-academy-2022-times-poderao-transmitir- os-jogos-em-seus-canais/
Assembleia Legislativa de São Paulo aprova Projeto de Lei sobre regulamentação de eSports
Disponível em: Assembleia Legislativa de São Paulo aprova Projeto de Lei sobre regulamentação de eSports | e-sportv | Sportv (globo.com)
Mercado de games: a maior indústria do entretenimento cresce a cada ano | Tecnologia. Disponível em: Mercado de games: a maior indústria do entretenimento cresce a cada ano | Tecnologia | Diário Popular (diariopopular.com.br)
Projetos de lei sobre eSports no Brasil ainda geram divergências. Disponível em: Projetos de lei sobre eSports no Brasil ainda geram divergências - 26/07/2019 - UOL Start
FUTEBOL: O CONTRATO DE GERENCIAMENTO DE CARREIRA DO MENOR DE 18 ANOS EM FORMAÇÃO, SUA NULIDADE
E A
IMPOSSIBILIDADE DE CONVALIDAÇÃO NA ASSINATURA DE CONTRATO PROFISSIONAL A PARTIR DOS 16 ANOS
O presente artigo tem como objetivo abordar um ponto específico da nulidade do contrato de gerenciamento de carreira esportiva firmado por agentes desportivos, hoje denominados intermediários, com atletas em formação menores de 18 anos. Tal nulidade, decretada pelo inciso VI do artigo 27 -C da Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé), por ser de ordem pública, não pode ser convalidada no momento em que o atleta, após completar 16 anos, firma contrato profissional, como permite o artigo 29, caput da Lei Pelé, deixando de ser um atleta menor de 18 anos em formação. Essa nulidade absoluta, infensa à convalidação, decorre da objetividade do artigo 27 -C, inciso VI da Lei Pelé, dos artigos 166, inciso VII e 169 do Código Civil, além de ter como substrato as normas de proteção à infância e à juventude esculpidas na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Regulamento Nacional de Intermediários da CBF.
Palavras-chave
Contrato – Agente Desportivo – Intermediário – Atleta - Gerenciamento de Carreira – Menor de Dezoito Anos - Formação – Nulidade Absoluta – Contrato Profissional – Dezesseis Anos – Convalidação Infância e Juventude – Proteção
Marcos Ribeiro de Barros
Procurador do Estado de São Paulo; Ex-Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal; Especialista em Direito Desportivo pela ESA/SP; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é o de refletir sobre um ponto específico da nulidade que macula o contrato de gerenciamento de carreira esportiva firmado por intermediários, pessoas físicas ou jurídicas, com atletas em formação menores de 18 anos de idade, por força do que dispõe oinciso VI do artigo 27-C da Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé)1, preceito que impõe a tal ajuste a mencionada invalidade.A mesma lei, no seu artigo 29, caput2, faculta ao atleta menor em formação pactuar, jáa partir dos 16 anos de idade, um contrato de trabalho profissional com a entidade desportiva àqual está vinculado.
Com a assinatura desse pacto laboral, o atleta com mais de 16 (dezesseis), mas com menos de 18 (dezoito) anos, deixa de ser atleta em formação para se tornar atleta profissional.
Como o artigo 27-C, inciso VI da Lei Pelé, ao tratar desse contrato de gerenciamento decarreira, delimita a nulidade aos contratos firmados com menores de 18 (dezoito) anos em formação, não profissionais, o que se pretende demonstrar neste artigo é a impossibilidade de tal contrato ser convalidado na hipótese de, no curso de sua vigência, o atleta tornar-se profissional a partir dos 16 (dezesseis) anos, deixando de ser um atleta em formação e passandoa ser um atleta profissional.
A objetividade do texto da Lei Pelé, as normas do Código Civil relativas à nulidade do negócio jurídico e as normas constitucionais e legais de proteção à infância e à juventude sustentam esse ponto de vista.
1 Art. 27-C. São nulos de pleno direito os contratos firmados pelo atleta ou por seu representante legal com agente desportivo, pessoa física ou jurídica, bem como as cláusulas contratuais ou de instrumentos procuratórios que: [...] VI - versem sobre o gerenciamento de carreira de atleta em formação com ida de inferior a 18 (dezoito) anos. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).
2 Art. 29. A entidade de prática desportiva formadora do atleta terá o direito de assinar com ele, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 (cinco) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).
1. UM PAÍS JOVEM E APAIXONADO POR FUTEBOL – A INSERÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NESSE CONTEXTO
No Brasil, segundo dados do IBGE3, a população masculina entre 0 e 19 anos chegou, em 2010, ao patamar de 31.925.412 (trinta e um milhões, novecentos e vinte e cinco mil e quatrocentos e doze) habitantes. Considerando-se que o futebol, ainda predominantemente masculino, é o esporte mais popular do país, que acende nas crianças e nos jovens o lampejo do sucesso, da fama e do glamour derivados da profissão de jogador, é fato notório que parte expressiva desse contingente sonha em se tornar um profissional da bola.
Segundo levantamento realizado pela Universidade do Futebol, atualmente há 40 mil jogadores de base no Brasil, sendo que 35 (trinta e cinco) mil deles atuam em clubes sem o Certificado de Clube Formador – CCF (0,875 para cada um do total da base). Desse contingente,10 (dez) mil atletas estão alojados, ou seja, moram em alojamentos dos clubes. O estudo estimaque transitam anualmente pelo país 13 (treze) mil jovens participando de processos seletivos in loco, as chamadas peneiras, com uma média de 30 (trinta) a 500 (quinhentos) jovens participando anualmente das semanas de avaliação para ingresso nos diversos clubes brasileiros.4
Da rua ao terrão, do campinho de várzea ao gramado dos clubes sociais, da bola de jornal à bola de capotão, esse sonho reflete a utopia de uma vida de fama e riqueza. Para muitos desses ga-
3 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico. Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/tabela/1552#/n1/all/v/allxp/p/last%201/c1/0/c2/92956/c286/0/ c287/0,93070,93084, 93085,93086/l/v,p+c1+c2,t+c286+c287/resultado, acesso em 05/05/2022.
4 SALES, Arthur, “Fluxos Migratórios no Futebol de Base Brasileiro”, publicado em 31/08/2021, disponível em https://universidadedofutebol.com.br/2021/08/31/fluxos-migratorios-no-futebol-de-base- brasileiro/, acesso em 03/04/2022.
rotos, tornar-se um jogador de futebol profissional significa a única chance de ascensão social e de proporcionar à família melhores condições de vida – um sonho comumente compartilhado por pai, mãe, irmãos e outros parentes. Uma casa nova, um carro esportivo, roupas de grife e outros bens de consumo residem no imaginário do garoto e de todas essas pessoas que orbitam no seu entorno.
A realidade, no entanto, mostra que a concretização desse sonho é muito mais difícil do que se imagina. Segundo pesquisa realizada pela Universidade do Futebol5, os chamados postos de qualidade no futebol brasileiro, que seriam aqueles remunerados mediante um contrato de trabalho formal, são muito poucos, ascendendo ao patamar médio de 1.500 (um mil e quinhentos). O estudo considera as 03 (três) principais divisões do país, cujos clubes têm condições de fornecer um contrato de trabalho de pelo menos 01 (um) ano a seus jogadores. Segundo a pesquisa, esse número se soma aos cerca de 1.200 (um mil e duzentos) postos internacionais que têm como destino jogadores brasileiros, resultando em 2.700 (dois mil e setecentos) postos de trabalho considerados de qualidade existentes no mercado futebolístico para os atletas brasileiros. O estudo indica que, havendo 20.000 (vinte mil) jogadores de futebol profissionais no país, cerca de 17.300 (dezessete mil e trezentos) estariam em situação laboral precária ou mesmo desempregados.
Malgrado esse cenário pouco auspicioso para a grande maioria, os garotos, embalados por esse sonho que acaba premiando poucos, se lançam a essa tentativa cada vez mais cedo. Aspeneiras e avaliações, em muitos clubes, principalmente os mais bem estruturados, têm como alvo o preenchimento de vagas já nas equipes Sub-11, com a participação de crianças, geralmente, a partir dos 08 (oito) anos de idade. Muitas dessas crian-
5 Universidade do Futebol, “Relatório: educação e as categorias de base”, publicado em 1º/08/2019, disponível em https:// universidadedofutebol.com.br/2019/08/01/relatorio-educacao-e-as-categorias-de- base/ , acesso em 24/04/2022.
ças transitam por clubes menores, nos mais longínquos rincões do país, em grande parte levadas por um parente ou um conhecido da família.
O jornalista chileno Juan Pablo Meneses retrata com fina pena a realidade de crianças e jovens, sobretudo dos extratos mais pobres da sociedade, que se lançam à tentativa de se tornarem jogadores de futebol profissionais na América Latina, contexto em que se insere o Brasil. Com o fito de escrever um livro-reportagem, utilizando o pretexto de “comprar” um menino bom de bola para “vendê-lo” a um time da Europa, o jornalista percorreu diversos países do nosso continente para conhecer de perto toda a engrenagem que envolve essa saga. O seguinte trecho do seu livro “Dente de Leite S.A. – A Indústria dos Meninos Bons de Bola”6 ésignificativo para o âmbito deste artigo:
Segundo dados oficiais, o tráfico de crianças está crescendo. A Organização Internacional para as Migrações, a OIM, informou que em 2011 atendeu 2.040 casos. Em comparação com os 1.565 casos atendidos em 2008, isto representa um aumento de 27%. No estudo, classifica m-se como “crianças” os menores de dezoito anos e, geralmente aqueles que são vítima s de abusos, de trabalhos sexuais, por causa do analfabetismo e da pobreza. Nada é dito sobre suas condições para interceptar, dar passes ou chutar ao gol.
O tráfico e o contrabando de pessoas são crimes. De acordo com a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, assinada em Palermo, em 2000, embora os termos “contrabando de pessoas” e “tráfico de migrantes” sejam usados como sinônimos, não são a mesma coisa. O objetivo do contrabando é a exploração da pessoa; o tráfico, no entanto, tem como finalidade em si mesmo a entrada ilegal de imigrantes. No caso do contrabando não é essencial que as vítimas atravessem as fronteiras para que se con-
figure o fato delitivo, enquanto que para o tráfico sim.
Todos os estudos indicam que as crianças continuam sendo a população mais vulnerável ao engano. E que o contrabando de crianças pode acontecer internamente, dentro de seu país, ou para outras nações com mais recursos, como tráfico. Um menino que é levado para jogar futebol na Itália aos onze anos, sem sua família e com o passaporte nas mãos de seu representante, poderia ser perfeitamente considerado uma vítima de contrabando e de tráfico de menores.
Nesse ambiente, muitas dessas crianças se tornam alvo do interesse de intermediários em gerirem suas carreiras deste cedo, o que culmina com a assinatura, por parte dos pais ou responsáveis, de contratos de gerenciamento de carreira, muitas vezes cognominados de contratos de assessoria esportiva, bem como de procurações outorgando poderes a esses profissionais da intermediação para a gestão da carreira dos seus filhos.
2. - O INTERMEDIÁRIO DE FUTEBOL: FAZENDO
O MEIO DE CAMPO
O Regulamento Nacional de Intermediários (RNI) da CBF7, vigente no ano de 2022, define no seu artigo 1º a figura do intermediário:
Art. 1º - Considera-se Intermediário, para fins deste Regulamento, toda pessoa física ou jurídica que atue como representante de jogadores, técnicos de futebol e/ou clubes, seja gratuitamente, seja mediante o pagamento de remuneração, com o intuito de negociar ou renegociar a celebração, alteração ou renovação de contra-
7 FUTEBOL, Confederação Brasileira de. Regulamento Nacional de Intermediários. Rio de Janeiro: disponível em https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202201/20220103142001_775. pdf , acesso em 24/04/2022.
tos de trabalho, de formação desportiva e/ ou de transferência de jogadores.
Felipe Legrazie Ezabella8, ao discorrer sobre a amplitude das funções do intermediário,à época denominado Agente Fifa, assim esculpiu o quadro:
Como será analisado em capítulo específico, o agente, além da função de negociar com clubes e atletas (que é exclusividade do Agente FIFA), os assessora em diversos outros assuntos e contratos, negociando com diversas outras empresas, entidades e pessoas.
Como exemplos, podemos citar a negociação e prospecção de contratos de licença de uso de imagem, de patrocínio e publicidade, de material esportivo; a assessoria em questões fiscais, trabalhistas, contábeis, investimentos financeiros, na imagem pública, apólices de seguro, previdências privadas; coordena suas via gens, auxilia nos assuntos pessoais e familiares, no futuro após encerrada a carreira, nas questões especificamente esportivas como as características dos a dversários, pontos fracos e fortes, na escolha do tratamento médico ideal para uma lesão, melhor equipe para se atuar em virtude das características do atual treinador, dos companheiros, da torcida, cidade, região e país; enfim, numa gama interminável de serviços.
A amplitude da atuação dos intermediários na gestão de carreira do atleta de futebol se faz sob garantias estabelecidas pela própria CBF, como, por exemplo, a realização de exame de credenciamento, apresentação de ampla documentação que comprove reputação ilibada e conceito inatacável do profissional, bem como a pactuação de seguro de responsabilidade civil em seu
nome, com abrangência mundial, com o escopo de cobrir eventuais danos causados a terceiros (artigo 5º, caput e parágrafos do RNI). O regulamento estabelece, ainda, os princípios que devem nortear sua atuação profissional: lealdade, transparência, honestidade, probidade,boa-fé e diligência (artigo 33).
Por isso, é imperioso explicitar que a regra de nulidade fixada pelo inciso VI do artigo 27-C da Lei Pelé tem como escopo salvaguardar o atleta em formação menor de 18 (dezoito) anos de profissionais que não honrem a lisura e a idoneidade que qualificam inúmeros profissionais dessa área, devidamente habilitados pela entidade nacional de administração desse desporto.
Ezabella9, na obra citada, transcreve com precisão trechos da Exposição de Motivos 04/2005 do Projeto original da Lei Pelé, que abordaram a justificativa para imposição de invalidade ao aqui tratado contrato de gerenciamento de carreira. O seguinte trecho, em especial, vale a pena reproduzir:
Para impedir a ação nefasta de agentes e empresários desportivos que, com a cumplicidade de dirigentes oportunistas, mais têm contribuído para os efeitos nocivos da prática desportiva dentro das respectivas entidades que operam nas chamadas ‘escolinhas’, sem dar o mínimo contributo à formação de atletas, porque voltados apenas para investimento especulativo, deu-se nova redação ao § 10 para declarar nulas as cláusulas contratuais constantes de contratos e instrumentos procuratórios firmados entre empresários e agentes desportivos com atletas ou seus responsáveis, conforme as hipóteses ali previstas. Justifica -se a inclusão desse dispositivo porque os ‘atravessadores desportivos’ não se valem apenas de procurações, mas de ajustes especiais de diferentes matizes, que malferem postulados e princípios jurídicos, além de ‘escravizar’ promissores atletas no decorrer
9 EZABELLA, 2010, p. 99
da vida esportiva. Por isso, não podem nem devem receber proteção jurídica os numerosos contratos de prestação de serviços, com cláusulas injurídicas, abusivas ou atentatórias à boa -fé objetiva, ou ao fim social dos contratos no âmbito desportivo, em que estão envolvidos os atletas dotados de potenciais qualidades técnicas desportivas e já valorizados no mercado do desporto profissional. A adoção desta regra impõe limites jurídicos necessários à autorizada atuação dos agentes desportivos, com o fim de evitar possíveis incidências negativas e efeitos perniciosos quando da intermediação de atletas.
Vê-se que o legislador, ao inserir a focalizada norma de invalidade na Lei Pelé, não fechou os olhos para uma realidade que, infelizmente, existe e ainda persiste no cenário nacional.
3. - A LEI PELÉ, O CÓDIGO CIVIL, A NULIDADE DO ATO JURÍDICO E A IMPOSSIBILIDADE DE CONVALIDAÇÃO
A Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé) estabelece a nulidade de pleno direito dos contratos ou procurações outorgadas por atleta ou seus familiares que tenham como objeto o gerenciamento de carreira desportiva de menor de 18 (dezoito) anos em formação. Assim está tecido o preceito:
Art. 27-C. São nulos de pleno direito os contratos firmados pelo atleta ou por seu representante legal com agente desportivo, pessoa física ou jurídica, bem como as cláusulas contratuais ou de instrumentos procuratórios que: (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).
VI - versem sobre o gerenciamento de carreira de atleta em formação com idade inferior a 18 (dezoito) anos.
Vê-se que a lei, de modo objetivo e taxativo, ful-
mina com a pecha de nulidade tais contratos e procurações. Basta que o negócio jurídico praticado tenha esse objeto – gerenciamento de carreira desportiva de menor de 18 (dezoito) anos em formação – para que, de pleno direito, ipsu jure, seja ele nulo, de modo absoluto.
O Código Civil, ao tratar da invalidade do negócio jurídico, estabelece como uma de suas modalidades a declaração da mácula pela própria lei, de modo objetivo – exatamente o que ocorre no caso vertente. É o que dispõe o art. 166, caput e inciso VII de tal codex: “É nulo o negócio jurídico quando (...) VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.”
MARCOS BERNARDES DE MELLO10, ao discorrer sobre a questão da nulidade absoluta do ato jurídico por ilicitude do seu objeto, ensina que:
A recusa de validade a um ato jurídico consubstancia uma forma de punição, de penalidade, à conduta que infringe as normas jurídicas, através da qual se busca impedir que aqueles que a praticaram possam obter os resultados jurídicos e p ráticos vantajosos que o ato válido possibilitaria.
[...] há invalidades cujo fundamento é de ordem pública, como no caso de ilicitude do objeto, e que, por essa razão, são tratadas com mais rigor: são insanáveis e, por terem, em geral, eficácia erga omnes, podem ser alegadas por qualquer interessado, inclusive pelo Ministério Público, cabendo ao juiz decretá -las de ofício (= sem provocação das partes), tanto que tome conhecimento do ato ou de seus efeitos, e, por isso, seriam absolutas
Nessa mesma linha está o entendimento de ORLANDO GOMES11, citado em obra coletiva coordenada pelo Ministro Cezar Peluso, em comentário ao artigo 166 do Código Civil,verbis:
10 MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Validade. 15 ed. São Paulo: SaraivaEducação, 2019, p. 44 e 106.
11 GOMES, Orlando, apud Código Civil Comentado – Doutrina e Jurisprudência. Barueri [SP]: Manole, 2019,13ª ed., p. 112.
Segundo Orlando Gomes, a nulidade absoluta contém as seguintes características:
a) imediata (invalida o negócio desde sua formação); b) absoluta (pode ser alegada por qualquer interessado, pelo MP quando couber intervir e, encontrando -a provada, deverá o juiz pronunciá-la de ofício);
c) incurável (as partes não podem saná -la e o juiz não pode supri-la); e d) perpétua (porque não se extingue pelo decurso do tempo) (Introdução ao direito civil, 12. Ed. Rio de Janeiro, Forense, 1996, p.474).
Comungam dessa exegese os juristas HUMBERTO THEODORO JÚNIOR e HELENALANNA FIGUEIREDO12, segundo os quais:
Quando o negócio não produz os efeitos dele esperados por vício de estrutura (relativos a seus pressupostos constitutivos: capacidade, legitimação, idoneidade do objeto, licitude, vícios de vontade ou de forma), a ineficácia incide ab origine impedindo a configuração de uma relação idônea. Surge a ideia de nulidade, como inaptidão para produzir regularmente os efeitos jurídicos. [...] No caso de nulidade considera-se ultrajado um preceito de ordem pública, de sorte que a negativa de validade corresponde à tutela de um interesse público.
Vê-se que a nulidade absoluta compreende um interesse público em potencial, traduzido, num primeiro plano, pela defesa da higidez da ordem jurídica. Tanto que o Ministério Público, fiscal da lei e defensor do interesse público por natureza constitucional, tem legitimidade para arguir a eiva (art. 168, caput do Código Civil)13 e o juiz tem o dever de pronunciar essa nulidade de ofício, quando se deparar com o negócio jurídico nulo (artigo 168,parágrafo único do mesmo código)14
12 JÚNIOR, Humberto Theodoro; FIGUEIREDO, Helena Lanna. Negócio Jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2021, 1ª Ed., p. 148 e 159).
13 “Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir.”
14 “Art. 168 [...] Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do negócio
O artigo 169 do Código Civil é claro quando, nessa hipótese, não permite a convalidação do ato: “O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”. E o artigo 367 do mesmo diploma veda a novação: “Salvo as obrigações simplesmente anuláveis, não podem ser objeto de novação obrigações nulas ou extintas”
Ainda que, após a assinatura do contrato de trabalho desportivo aos 16 (dezesseis) anos, como permite a Lei Pelé (artigo 29, caput), seja firmado um novo instrumentocontratual de gerenciamento de carreira com o mesmo intermediário, para ajustar-se ao novo status do atleta, agora profissional e não mais em formação, saindo da esfera da norma proibitiva, os efeitos desse novo contrato não são passíveis de retroação a período pretérito ao de sua celebração, inviabilizando, assim, eventual afã de convalidação das obrigações írritas pactuadas outrora; o contrário seria uma maneira de burlar a regra objetiva do artigo 27-C, inciso VI da Lei Pelé, que fulmina com nulidade absoluta o negócio jurídico firmado entre o intermediário e o atleta menor ainda em formação, para fins de gerenciamento de sua carreira . Os atos praticados em tal interregno são colhidos, de modo peremptório, pela invalidade decretada pela norma.
É para essa direção que aponta o entendimento prevalecente no Superior Tribunal de Justiça, como se depreende do seguinte trecho da ementa do acórdão proferido pela sua Quarta Turma (Seção de Direito Privado) no AgRg no AREsp 489.474/MA15:
[...] 3. “Os negócios jurídicos inexistentes e os absolutamente nulos não produzem efeitos jurídicos, não são suscetíveis de confirmação, tampouco não convalescem com o decurso do tempo, de modo que a nulidade pode ser declarada a qualquer tempo, não se sujeitando a prazos prescricionais ou decadenciais.[...]
15 AgRg no AREsp 489.474/MA, relator Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, DJ 17/05/2018.
Na mesma direção, acórdão da Primeira Turma do STJ (Seção de Direito Público) prolatado no RESP Nº 1.582.388 – PE, que, consolidando a jurisprudência da Corte, assim decidiu, como se infere de trecho da sua ementa16:
[...] 2. Os arts. 168, parágrafo único, e 169 do Código Civil, consubstanciam a chamada teoria das nulidades, proclamam que o negócio jurídico nulo é insuscetível de confirmação, não sendo permitido nem mesmo ao Juiz suprimir a nulidade, ainda que haja expresso requerimento das partes.
3. O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça é de que a nulidade absoluta é insanável, podendo assim ser declarada de ofício.[...]
Nessa senda, importante asseverar, também, que o próprio Regulamento Nacional de Intermediários editado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), vigente desde 03 de janeiro de 2022, em obediência a esse panorama legislativo, veda a contratação de intermediário pelo atleta em formação menor de 18 (dezoito) anos, ainda não profissional, fazendo menção expressa à nulidade decretada pelo art. 27-C, inciso VI da Lei Pelé. É esta a dicção do preceito regulamentar, em especial do seu parágrafo único17:
“Art. 24 - Nenhuma comissão será devida e paga ao Intermediário em relação a jogador menor de 18 (dezoito) anos de idade, independente do pagador, em razão de expressa vedação no Regulamento sobre Relações de Intermediários da FIFA, sendo obrigatória a menção a este dispositivo no Contrato de Representação.
Parágrafo único – É vedada ao jogador não profissional menor de 18 (dezoito) anos de idade, a qualquer título ou sob qualquer
16 RECURSO ESPECIAL Nº 1.582.388 – PE, relator Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, DJ 09/12/2019.
17 Disponível no sítio eletrônico da CBF (https://conteudo.cbf. com.br/cdn/202201/20220103142001_775.pdf), acesso em 23/03/2022.
pretexto, a contratação dos serviços de Intermediário para negociar quaisquer dos instrumentos contratuais dispostos no art. 2º deste Regulamento, tendo em vista a nulidade estabelecida pelo art. 27-C, VI da lei 9.615/98, assim como fica proibida a realização de qualquer pagamento ao referido Intermediário.”
No âmbito do tema ora abordado, esse interesse jurídico em potencial, na defesa da higidez do ordenamento positivo, se soma ao interesse público sensível que emana do inciso VI do artigo 27-C da Lei Pelé: proteção à infância e à juventude, bem que o legislador, ao trazer à luz esse preceito legal, almejou claramente prestigiar e proteger.
4. PROTEÇÃO À INFÂNCIA E À JUVENTUDE: A CONSTITUIÇÃO FEDERAL, O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A LEI PELÉ
O interesse público sensível que o inciso VI do artigo 27-C da Lei Pelé buscou resguardar se traduz, em última instância, pela proteção à infância e à juventude, em especial diante da situação de vulnerabilidade social em que se encontra um enorme contingente de crianças e adolescentes no Brasil, o que se espraia, a título ilustrativo, também pelos rincões mais pobres dos países da América Latina.
Esse dispositivo legal, ao sancionar com invalidade jurídica os contratos firmados por menores de 18 (dezoito) anos em formação com intermediários, visando ao gerenciamento de sua carreira esportiva, encontra pano de fundo no artigo 227 da Constituição Federal, assim esculpido:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberda-
de e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a sa lvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
Dentro desse contexto constitucional protetivo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) vem reafirmar o cuidado que família, sociedade e Estado devem ter ao tratar de temas afetos ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, no que alude, especialmente, à sua dignidade, respeito e proteção contra toda forma de negligência e exploração. É o que refletem os artigos 3º, 4º e 5º do Estatuto:
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando- se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde,à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas;
destinação privilegiada de recursos pú-
blicos nas áreas relacionadas com a proteçãoà infância e à juventude.
Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.
O jurista JOSÉ GILMAR BERTOLO18 leciona que:
O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideais e crenças, dos espaços e objetos pessoais. É dever de todos velar pela dignidade prudência, enfim de todo o sistema jurídico.
5. Em cumprimento ao comando constitucional, sobreveio a Lei 8.069/9 0 – reconhecida internacionalmente como um dos textos normativos mais avançados do mundo –, que adotou a doutrina da proteção integral e prioritária como vetor hermenêutico para aplicação de suas normas jurídicas, a qual, sabidamente, guarda relação com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que significa a opção por medidas que, concretamente, venham a preservar sua saúde menta l, estrutura emocional e convívio social.
6. O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente tem por escopo salvaguardar “uma decisão judicial do maniqueísmo ou do dogmatismo da regra, que traz sempre consigo a ideia do tudo ou nada” (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Dicionário de direito de família e sucessões. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 588/589).
A nulidade objetiva, de caráter absoluto, que o artigo 27-C, inciso VI da Lei Pelé estampa, encontra pano de fundo nesse panorama constitucional de proteção à infância e à juventude,
18 BERTOLO, José Gilmar. Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina, Legislação e Prática Forense. Leme: J.H. Mizuno, 2012, p. 34.
no contexto de um país em que essa camada da população se encontra, em grande parte, em estado de vulnerabilidade social, devido em boa medida à extrema pobreza e à falênciado sistema de assistência e de educação públicas.
CONCLUSÃO
Diante de todos os aspectos examinados, podemos concluir que o contrato de gerenciamento de carreira de menor de 18 (dezoito) anos em formação, firmado por esses atletas com intermediários, padece de nulidade absoluta, de natureza objetiva, em face da clareza do que dispõe o artigo 27-C, inciso VI da Lei Pelé quanto à sua ilicitude.
A celebração de contrato profissional a partir dos 16 (dezesseis) anos pelo atleta, como permite a referida lei (artigo 29, caput), no curso da vigência do contrato de gerenciamento de carreira, não tem o condão de convalidar este último. Isso porque se está diante, no caso, de uma nulidade absoluta, insanável, cuja ineficácia incide ab origine, impedindo a configuração de uma relação idônea, cuja pecha remonta de modo indelével à gênese do ato jurídico, inviabilizando a sua convalidação. Por esse motivo, a confecção de um novo contrato de representação com o mesmo intermediário, após a celebração do contrato profissional pelo atleta menor de 18 (dezoito) anos, não tem o condão de fazer retroagir os seus efeitos ao período pretérito, em que o representado era um atleta menor ainda em formação.
Como demonstrado, a nulidade objetiva, de natureza absoluta, aqui focalizada, contém ultraje a um preceito de ordem pública, com sua declaração expressa pela própria lei, incidindo a mácula desde a origem do ato nulo. Essa nódoa é insanável, tem eficácia geral e pode ser alegada a qualquer tempo por qualquer interessado, inclusive pelo Ministério Público. O juiz, ao tomar conhecimento da nulidade, tem o dever de decretá-la de ofício.
Malgrado as garantias que cercam o exercício, pelo intermediário, do seu ofício, como estatuído no Regulamento Nacional de Intermediários da CBF, qualificando o mercado de trabalho desses profissionais, o certo é que, num contexto social de vulnerabilidade da criança e do adolescente como o que vige no Brasil, o princípio da precaução, cuja aplicação independe da exposição a uma situação concreta de risco, justifica o cuidado do legislador.
Avulta de todo o contexto abordado que o interesse público sensível subjacente à regra do artigo 27-C, inciso VI da Lei Pelé é o de proteção integral à infância e à juventude, o que encontra pano de fundo no artigo 227 da Constituição Federal. No contexto de um país subdesenvolvido como o nosso, em que milhares de crianças e adolescentes vivem em situação de extrema vulnerabilidade social, com um grande contingente de famílias desafortunadas esperançosas de que o filho se torne um jogador de futebol de sucesso, o que é dificílimo, a regra de nulidade ora estudada tem plena justificativa.
Esse cenário fortalece a interpretação aqui esposada das normas do Código Civil examinadas, no sentido da impossibilidade de convalidação do contrato de gerenciamento de carreira do atleta menor de 18 (dezoito) anos em formação, em face da sua nulidade absoluta.
BERTOLO, José Gilmar. Estatuto da Criança e do Adolescente – Doutrina, Legislação e Prática Forense. Leme: J.H. Mizuno, 2012.
CÓDIGO CIVIL Comentado: doutrina e jurisprudência/Claudio Luiz Bueno de Godoy...[et al.]; coordenação Cezar Peluso. -13. ed. – Barueri [SP]: Manole, 2019.
EZABELLA, Felipe Legrazie. Agente FIFA e o Direito Civil Brasileiro. São Paulo: Quartier Latin, 2010 . FUTEBOL, Confederação Brasileira de. Regulamento Nacional de Intermediários. Rio de Janeiro: disponível em
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Resp 1.582.388 – PE, relator Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Turma, DJ 09/12/2019.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, Resp 1.587.477/SC, 4ª Turma, relator Min. Luis Felipe Salomão, DJ 27/08/2020.
UNIVERSIDADE DO FUTEBOL, “Relatório: educação e as categorias de base”, publicado em 1º/08/2019, disponível em https://universidadedofutebol.com.br/2019/08/01/relatorio-educacao-e-as- categorias-de-base/ , acesso em 24/04/2022.
ZAPATER, Maíra. Direito da Criança e do Adolescente. São Paulo: Saraiva Educação, 2019 .
NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE CESSÃO DE USO DE IMAGEM
Os debates sobre a natureza jurídica de um contrato de cessão de uso de imagem permanecem vigentes mesmo após longo período de ideias e formatação de conceitos. A doutrina, ainda com a existência de dispositivos legais expressos, em conjunto com decisões proferidas pelo Poder Judiciário, mantém viva e aberta discussão que poderia estar superada, permitindo o desenvolvimento dos estudos acerca do tema. Assim, pretende-se por este artigo, expor o panorama geral dos conceitos mais importantes e correlatos ao direito de imagem, bem como identificar e esclarecer a natureza jurídica dos contratos de imagem, tendo como finalidade contribuir academicamente com a evolução dos argumentos e conteúdos relativos a este debate.
Palavras-chave
Direito de Imagem - Natureza Jurídica - Contrato
Gabriel Delbem Bellon
Advogado graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Especialista em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas – FGV; Pós-graduando em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP); Mestrando em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.
INTRODUÇÃO
O futebol é conhecido como o esporte mais popular do planeta, basta sair às ruas, bares, shoppings, comércios e restaurantes, para comprovar tal fato e notar que o brasileiro éapaixonado por essa modalidade esportiva, condição de torcedor que ultrapassa todos os limitesdo esporte, do explicável (RUSHDIE, 2000).
Com um mercado consumidor de potencial imensurável, a imagem dos atletas se mostraimprescindível no fomento e sustentação de altas fontes de receitas para os clubes, os próprios atletas, patrocinadores e demais envolvidos na engrenagem que movimenta o comércio desportivo. De acordo com Carlos Eduardo Ambiel (2015), “o direito de imagem, protegido legalmente contra usos indevidos, ganha ainda mais importância no atual momento da sociedade e tem nos atletas seus grandes ícones devido aos atributos mercadológicos e à exposição que sua atividade gera.”
Geralmente, a imagem de um atleta é utilizada, nas palavras de Bellon e Laupman (2020) “em eventos publicitários, comerciais e promocionais, envolvendo a marca, o nome, o símbolo, além de produtos oficiais do clube, bem como para produção de cards, games e figurinhas, gibis, cartoons, vinhetas, filmes, websites, revistas, jornais, outdoors, panfletos.”
Assim, nos recentes anos, a questão envolvendo o direito de imagem de atletas tem sido novamente muito debatida, especialmente em razão de significativas alterações legislativas e de entendimentos jurisprudenciais, até o presente momento, não consolidados e, de certa maneira, confusos. Ademais, produção de efeitos jurídicos e a natureza jurídica em si do instrumento particular de cessão de uso de imagem são constantemente abordados em razão dos diferentes entendimentos existentes para o tema, como poderá ser extraído ao longo do presentetrabalho.
Deste modo, justifica-se a produção deste artigo pela tentativa de elucidação de relevantes pon-
tos e ainda existentes lacunas sobre o tema, que hoje, por sua importância, merecem estabilidade de entendimentos, garantido maior segurança jurídica aos envolvidos.
Estrutura-se este estudo em cinco seções, já incluindo esta introdução, desenvolvidas para apresentar os direitos de personalidade e suas características intrínsecas, evidenciar questões atinentes à natureza jurídica do contrato de cessão de uso de imagem, discorrer sobre o instrumento particular de contrato, e, por fim, analisar os argumentos acerca da configuração de fraudes e o mecanismo legal para seu combate. Na sequência, será apresentada a conclusão, realizada pela conexão das ideias, conceitos e entendimentos apresentados, com as devidas e necessárias referências bibliográficas.
1. OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Os direitos da personalidade, como assevera Carlos Alberto Bittar (2006), podem ser definidos como aqueles reconhecidos à pessoa e tomados em si mesma, cujos reflexos e projeções são vistos na sociedade. Segundo o autor, esses direitos encontram-se previstos no ordenamento jurídico pátrio exatamente como forma de defesa aos valores inatos da pessoa humana, tais como a vida em si, sua higidez física, honra, intimidade, dentre outros.
Destaca-se que os direitos da personalidade, quando em confronto com terceiros são notados isto, uma vez que, a percepção de sua existência ocorre apenas e tão somente a partir da verificação e consolidação de lesão por seu titular (DINIZ, 2002). Por este motivo, são caracterizados como direitos subjetivos, os quais se manifestam de forma interna no ser humano como barreira, proteção, à individualidade de cada pessoa (DELBIN, 2009).
Sob a ótica da legislação, cumpre salientar que o Código Civil brasileiro possui capítulo próprio relativo aos direitos da personalidade, forma-
lizando em onze artigos, os entendimentos do legislador acerca do tema. Deste modo, estabelece seu artigo 2º que a personalidade civil da pessoa se inicia a partir de seu nascimento com vida. Além disso, conforme disposto no artigo 11 do mesmo diploma legal, excetuando-se os casos expressamente previstos pela lei, os direitos de personalidade são considerados intransmissíveis e irrenunciáveis, sendo certo que não podem sofrer limitação voluntária de seu exercício.
Portanto, os direitos da personalidade podem ser opostos a qualquer indivíduo, de modo que são tidos como absolutos e vitalícios, caracterizados por seu efeito erga omnes. De indispensável essência para a vida humana, são considerados extrapatrimoniais e, em indisponíveis como regra, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los (DELBIN, 2009), sendo relevante frisar que esta disponibilidade não deve ser confundida com intransmissibilidade ou irrenunciabilidade (BELLON e LAUPMAN, 2020).
2.1. Do Direito à Imagem
É possível afirmar que a imagem corresponde ao atributo de estimada quantia jurídicae social. Tanto é assim que a Bíblia caracteriza e destaca a figura humana como a imagem e semelhança de Deus (AMBIEL, 2015).
Para a doutrina, o direito à imagem, também conhecido popularmente como “direito de imagem”, pode ser definido como um direito personalíssimo cuja implicação imediata é a prerrogativa absoluta que cada indivíduo tem sobre sua própria imagem (BARBIERI, 2012).
Em outras palavras, é direito do indivíduo sobre sua estética, elementos essenciais que o distinguem e o individualizam no contexto de uma coletividade (DELBIN, 2009). De acordocom Regina Sahm (2002), o direito à imagem corresponde ao conjunto de faculdades e prerrogativas jurídicas que servem para expressar de maneira formal e sensível as peculiaridades que individualizam os serem humanos, pertencendo àquele que a tem reproduzida.
Jorge Miguel Acosta Soares (p.72, 2008) assim ensina:
Em uma definição relativamente de fácil compreensão, o Direito de Imagem é aquele que o indivíduo tem sobre sua estética, sob sua forma plástica sob os componentes peculiares que o distinguem e o individualizam dos demais. É o direito que recai sobrea forma física do indivíduo, exclusivamente sobre seus traços externos, sem qualquer relação com suas qualidades interiores. É a abstração que nasce da singularidade do corpo do sujeito, podendo este ser tomado em sua totalidade ou em suas partes individualizadas – a boca, os olhos, as pernas – desde que capazes de identificá-los no grupo.
Por se referir a uma espécie dos direitos da personalidade, o direito à imagem possui características muito similares às expostas anteriormente, senão idênticas. Realça-se que a autonomia e a disponibilidade são as mais relevantes para este estudo, de modo que as abordaremos com mais detalhes abaixo.
Nos termos acima mencionados, que os direitos da personalidade são indisponíveis, contudo, pode-se afirmar que essa indisponibilidade é relativa, tendo em vista que alguns direitos da personalidade podem ser objeto de cessão ou licença de uso por instrumento contratual próprio (DINIZ, 2002). Carlos Alberto Bittar (2006) segue nesta mesma linha garantindo a existência de direitos de personalidade disponíveis em que contratos adequados podem permitir sua utilização por terceiros, nos termos restritos ao quanto formalizado.
Deste modo, com a natural evolução da sociedade, a imagem se tornou algo intrinsecamente relacionado ao comércio, vendas, publicidades e propagandas que visam auferir lucros. Assim, Carlos Eduardo Ambiel (2015) enfatiza:
Nesse novo cenário é que deve ser interpretado eventual licenciamento da imagem de determinados empregados, espe-
cialmente os atletas profissionais, para utilização comercial por seus empregadores ou por terceiros, incluindo patrocinadores, fornecedores de material esportivo e parceiros comerciais dos próprios empregados, muitos dos quais condicionam o volume de investimento no clube à permissão para explorar a imagem de seus atletas empregados ou à garantia de que, no mínimo, os ídolos da equipe não possam vincular sua imagem a marcas e produtos concorrentes.
Bellon e Laupman (2020) sustentam que “dispor de um direito não implica em transferi-lo ou renunciá-lo, mas sim ceder o seu uso para terceiros, seja com a finalidade comercial ou não”.
Neste sentido, o artigo 20 do Código Civil brasileiro estabelece que:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção daordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Nota-se que o legislador, ao estabelecer a redação supra, apenas positiva a relativização do direito à imagem, nos exatos termos defendidos pela doutrina. Entretanto, como não poderia deixar de ser, a exploração do uso da imagem é limitada e protegida pela Constituição Federal do Brasil de 1988, a qual, em seu artigo 5º, incisos V e X, garante ser a imagem inviolável, assegurando a indenização em caso de dano. Desta forma, o texto constitucional foi responsável pela contemplação da autonomia e amplitude do direito à imagem em relação aos direitos de personalidade, enquanto, por outro lado, o Código Civil, de certa forma, os restringe por cláusula geral (SAHM, 2002).
Conforme explicam Bellon e Laupman (2020), “o
direito de imagem sendo uma espécie dos direitos da personalidade, poderá ser disponível pela vontade de seu titular e assim ingressar no comércio jurídico”. Desta feita, a seguir será abordada a natureza jurídica do contrato de cessão de uso de imagem.
2. NATUREZA JURÍDICA DO CONTRATO DE CESSÃO DE USO DE IMAGEM
Quando se fala em natureza jurídica, deve-se atentar para o conceito cujo escopo é explicar o princípio ou a essência de um instituto jurídico, seja ele uma medida, uma situação ou um fato existente no contexto do Direito. Outrossim, presta-se a natureza jurídica a explicar de onde determinados institutos surgiram, elencar seus princípios básicos e dizer os elementos que os compõem.
A partir deste entendimento, será possível identificar e analisar a natureza jurídica dos contratos de cessão de uso de imagem, partindo da legislação a eles aplicável para a posterior verificação dos entendimentos e posicionamentos jurisprudenciais.
2.1. A Legislação Aplicável
Dificilmente haverá no âmbito jurídico um tema que não esteja abordado, ainda que minimamente, pelo texto da Constituição Federal de 1988 e, em relação ao direito de imagem, não é diferente. Destaca-se neste momento, a alínea “a”, do inciso XXVIII, pertencente ao artigo 5º, pelo qual o constituinte protege as participações individuais em obras coletivas e a reprodução de imagem e voz humanas, incluindo as atividades desportivas. Ou seja, além da proteção ampla e geral que a Constituição Federal proporciona à imagem em si, como já amplamente exposto, há expressamente na redação a proteção no que concerne ao cenário do desporto.
Para além disso, não se pode olvidar o Código Civil, uma vez que este é o diploma legal destina-
do ao regimento da relação entre particulares. Foi ele o instrumento em que o legislador pátrio pôde positivar o que a doutrina entendia acerca da relativização do direito de imagem, mais precisamente em seu artigo 20, como exposto no início deste trabalho.
Porém, para os objetivos do presente estudo e considerando o tema principal que o cerca, o dispositivo normativo central a ser tratado e analisado a partir de agora, em detalhes, será a Lei Federal nº 9.615 de 26 de março de 1998, conhecida como Lei Pelé. Para entender a relevância da Lei Pelé para o tema, basta a singela leitura de seu artigo 87-A, o qual resume grande parte do quanto previamente dito sobre o direito à imagem e sua formalização em instrumento próprio, in verbis:
O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo.
Observa-se que o texto legal é expresso, claro, direto e inquestionável no que tange à natureza jurídica cível do contrato de cessão de uso de imagem, sendo este, com base naspalavras da própria redação legal, inconfundível com o contrato especial de trabalho desportivo.Ora, diante do evidenciado, como pode haver questionamentos ou, mais do que isso, decisões e entendimentos doutrinários e jurisprudenciais contrários, indicando possível natureza trabalhista desses contratos? Operadores do direito, até a presente data, permanecem em discordância sobre natureza dos contratos de cessão de uso de imagem, sob diferentes fundamentações e perspectivas.
2.2. Jurisprudência e Entendimentos
Ao final da exposição sobre a legislação aplicável, uma perspicaz indagação permaneceu em aberto. Entretanto, será mais simples de respondê-la a partir de agora, em que serão de-
monstrados argumentos favoráveis à natureza cível e entendimentos em direção à natureza trabalhista. Interessante notar que até mesmo altas cortes, como o Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, proferem decisões com conteúdo e fundamentos diferentes, o que provoca, de certa forma, instabilidade e insegurança jurídica, não obstante a natural e intrínseca discricionariedade dos magistrados em analisar e decidir de acordo com sua fundamentada convicção.
Pelas decisões que sustentam a natureza cível, exige-se, necessariamente, a existência de efetivo desvio de finalidade do contrato civil. Caso contrário, deve prevalecer o quanto estabelecido entre as partes signatárias. (E-RR-406-17.2012.5.09.0651). Essas decisões defendem arduamente o positivismo e, concomitantemente, o entendimento levado ao texto legal pelo legislador no Código Civil e, em especial o artigo 87-A da Lei Pelé, destacando a assertividade da legislação no que tange à natureza cível e reforçando a inexistência de fraudes. (TST-ARR-10149-08.2014.5.01.0068;Ag-AIRR-2894-77.2010.5.12.0053;RR-11769.2016.5.12.0034; RR - 595-11.2014.5.12.0014).
Por outro lado, há decisões que se concentram nos fundamentos relativos à suposta prática de fraude, argumentando que o contrato de cessão de uso de imagem teria como finalidade única diminuir o recolhimento de verbas trabalhistas e tributos, o que mascararia o real objeto da relação, devendo, sob esta perspectiva, haver a compensação do recolhimento de valores a título de salário (RR-127200/2004013-09-00.7; RR - 1442-94.2014.5.09.0014; RR - 60800-81.2007.5.04.0011; ARR - 7670019.2007.5.01.0034).
Contudo, nota-se que as decisões e entendimentos, ainda que pendentes ao argumento trabalhista, não questionam ou, se o fazem, de forma muito superficial, a questão da natureza jurídica em si. Tanto é assim que o Tribunal Superior do Trabalho reconhece que naquele casoespecífico
há indícios de fraude, em decisão recente. Em linhas gerais, de acordo com o Relatorda decisão, Ministro Lelio Bentes Corrêa, prevalece, na mencionada corte o entendimento de que os valores recebidos a título de direito de imagem não têm natureza jurídica salarial, com base no artigo 87-A da Lei Pelé (RR - 1442-94.2014.5.09.0014).
Pouquíssimos autores, como o professor Domingos Sávio Zainaghi (p.31, 2004), concordam com a tese de natureza trabalhista do direito de imagem e a ideia de fraude: “Não temos qualquer dúvida de que o pagamento efetuado em razão do direito imagem tem naturezasalarial.”
A esmagadora maioria da doutrina segue as palavras de Felipe Legrazie Ezabella (p.115, 2006):
Esse contrato firmado com o atleta tem por intuito utilizar a sua imagem fora da jornada de trabalho, extracampo, de forma diferente da que é utilizada no âmbito da relação empregatícia, implícita à sua profissão. Isso porque, a profissão de atleta, assim como a de ator, jornalista, apresentador de programa, possui uma característica especial no qual se pressupõe a difusão de sua imagem durante a atividade laboral.
O saudoso e inesquecível Álvaro Melo Filho (p. 128, 2011) complementa:
O contrato de cessão de direito de imagem (...) é de natureza civil, não se prestando para fins de registro na entidade de administração desportiva, despido, portanto, sem qualquer repercussão na relação laboral-desportiva.
Assim, pode se perceber que a confusão acerca da natureza jurídica do instituto não deve prevalecer, cabendo ao Poder Judiciário eventual análise de elementos, em determinados casos concretos, que possam configurar fraude ou algo similar. Isto porque, se revelam consolidados o entendimento e a intenção do legislador ao estabelecer de forma irrestrita e expressa no texto legal a inexistência de relação entre os contratos
de trabalho e de cessão de uso de imagem, sendo os mesmos, frisa-se, inconfundíveis.
2.3. As Diferenças entre Direito de Imagem e Direito de Arena
Apenas para fins de complementação e elucidação das ideais aqui expostas, de forma breve e objetiva, será destacada a diferença entre o direito de imagem, já ampla e detalhadamente exposto neste trabalho, e o direito de arena, importante instituto presente nos estudos sobre direito de imagem, notadamente no que se refere às transmissões de partidas de futebol.
O termo arena é oriundo do latim e significa areia, sua referência é direta aos gladiadores que lutavam e tinha seu sangue escorrido na areia utilizada nos locais da batalha., tendo como finalidade disfarçar as marcas vermelhas dos derrotados. Neste contexto, Jorge Miguel Acosta Soares (2018, p.101) nos ensina:
Arena é a parte central dos antigos anfiteatros de Roma, onde se realizavam os combates entre os gladiadores e as exibições de animais selvagens. O piso desses teatros era feito de areia, usada para esconder o sangue que brotava em profusão nessas apresentações.
De acordo com o artigo 42 da Lei Pelé, o direito de arena consiste:
Na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.
Na época de sua idealização, o direito de arena foi de significativa relevância para os clubes de futebol, tendo em conta que a evolução das transmissões de televisão por satélite garantiu um número muito mais elevado de pessoas assistindo e, consequentemente, a elevaçãodos lucros obtidos pelas entidades de prática desportiva (ANDRADE, 2021). Neste diapasão, Zainaghi
Ora, transmitidas por televisão, as partidas têm sua renda diminuída, e, ao mesmo tempo, milhares de espectadores acompanham-nas em suas residências sem nada pagar. Mesmo hoje em dia com as TVs por assinatura, o prejuízo dos clubes seria ponderável, sendo impossível cobrar de cada assinante a sua “cota parte”. [...] Portanto, não parece haver injustiça em outorgar-se aos clubes uma parcela maior da arrecadação, nem tampouco ser ele o detentor da titularidade do direito autoral.
Conforme exposto, notória e indubitavelmente, o direito de arena pertence às entidades de prática desportiva ou, na linguagem corriqueira, aos clubes de futebol. Contudo, é de suma importância destacar que a Lei Federal nº 14.205 de 17 de setembro de 2021 formalizou alterações importantes no que tange ao direito de arena, adicionando à Lei Pelé o artigo 42-A.
Dentre as principais inclusões, podemos citar a especificação do pertencimento do direito de arena em relação ao espetáculo desportivo à entidade de prática desportiva mandante, ou seja, aquela que, de acordo com os regulamentos gerais e específicos de uma entidade de organização do desporto e de uma competição, respectivamente, detém a prerrogativa de escolha do local edemais peculiaridades de uma partida.
Além disso, o artigo 42-A apresentou detalhes importantes, tal como a definição de atletas profissionais para fins do disposto no §2º do mencionado artigo, o qual trata sobre a distribuição, em partes iguais, de 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração dos direitos do espetáculo. Neste sentido, consideram-se atletas profissionais, no contexto único de cumprimento do quanto disposto neste mencionado artigo 42-A, todos aqueles escalados para a partida, tanto os que figuram na condição de titulares quanto os reservas.
Pequena digressão se mostra extremamen-
te relevante neste momento para esclarecer a questão relativa ao conceito de atleta profissional. Isto visto que, o artigo 28 da Lei Pelé determina o conceito elementar de atleta profissional, caracterizando-o como aquele cuja atividade é remunerada e formalizada em contrato especial de trabalho desportivo, celebrado junto a um clube de futebol. Sendo assim, dúvidas não pairam acerca do conceito fundamentalestabelecido pelo artigo 28, devendo a descrição trazida pelo artigo 42-A ser considerada apenase tão somente no que diz respeito ao seu conteúdo de direito de arena.
Importante notar que o direito de arena se difere do direito de imagem, entre outras características, por corresponder a uma limitação de distribuição de valores a um determinado grupo que tenha sua imagem de participação em evento esportivo transmitida, em negociação coletiva e igualitária. Seu foco encontra-se no coletivo, no conjunto de responsáveis pela composição do corpo profissional e humano do espetáculo esportivo, que são os atletas.
O direito de arena se revela importante no que diz respeito à proteção dos clubes no impedimento de transmissões realizadas por terceiros não autorizados. Os valores negociados e pagos pelos detentores dos direitos de transmissão são, em grande maioria, muito altos e perderão sentido para aquele que aportou o montante se outro realizar a transmissão de forma paralela (ROSSETTO, 2015).
Por outro lado, o direito de imagem está atrelado a uma formalização individual de relação, em que a exploração da imagem do atleta é realizada com outros critérios de mercado, de exposição e de adequação e conveniência do clube contratante. Enquanto o direito de arena se resume ao campo de jogo, o direito de imagem vai muito além disso e tem como escopo a
proteção da exploração da imagem do atleta em objetivos corporativos, comerciais e publicitários.
A seção a seguir abordará aspectos do instrumento particular que formaliza as disposições, termos e condições do acordo para cessão da imagem de um atleta.
3. O INSTRUMENTO CONTRATO DE IMAGEM
A liberdade contratual é garantida pelo Código Civil pátrio em seu artigo 421, sendo certo, nas palavras de Silvio Rodrigues, que o “contrato vai constituir uma espécie de lei privada entre as partes, adquirindo força vinculante igual a do preceito legislativo”.
A relevância do instrumento, contrato de imagem, pode ser ilustrada nas palavras de Felipe Ferreira Silva (p.66, 2009):
Um atleta profissional, em razão de sua habilidade na modalidade esportiva que pratica, pode multiplicar o valor de seus contratos em um curto espaço de tempo. Esta multiplicação, no mais das vezes, decorre de sua exposição nos meios de comunicação. É cediço que hoje não há fronteiras físicas para que a informação saia de um lugar específico no globo terrestre e chegue, num espaço de tempo quase imperceptível, a outro local a quilômetros de distância. Isto permite que pessoas desconhecidas e aqui, especificamente, os atletas, se tornem celebridades da noite parao dia.
De maneira geral, os instrumentos particulares de cessão de uso de imagem possuem como partes signatárias a entidade de prática desportiva, na qualidade de contratante, a pessoa jurídica detentora do direito de imagem do atleta, quando for o caso, na qualidade de contratadae o atleta, figurando como interveniente/anuente da contratação em questão.
Após algumas considerações iniciais no contrato para contextualização dos termos, formaliza-se a titularidade do direito. Em outras palavras, o detentor do direito de imagem do atleta, seja
ele atleta ou pessoa jurídica expressamente autorizada a realizar tal negociação, garante ao clube contratante, conforme explicam Bellon e Laupman (2020), ser parte única, “autorizada e habilitada a comercializar o uso do nome, apelido desportivo, voz e imagem do atleta com relação ao objeto do contrato”. O atleta, por sua vez, também reconhece e ratifica aautorização conferida à pessoa jurídica, caso ele não seja o único contratante.
O objeto da contratação nada mais é do que licenciamento e autorização para uso do nome, apelido desportivo, voz e imagem do atleta, para utilização, em termos gerais, com exclusividade pelo clube, seguindo a integralidade dos termos, condições, obrigações e deveres negociados e estabelecidas no contrato.
Por ser um instrumento de natureza cível, conforme demonstrado e amparado pela legislação específica, o contrato de uso de imagem permite múltipla negociação de suas cláusulas, podendo o clube optar por firmar um instrumento com um atleta, uma parte deles outodos os seus atletas, exercendo a mais legal e legítima liberdade de contratar. Além do mais, o preço de eventual exploração de imagem pode ser fixado de acordo com o modelo de negócio adotado entre os contratantes, ilustrando, assim, a liberdade contratual, em que as partes contratantes poderão optar os melhores termos e condições para compor, estabelecer e reger a relação.
Normalmente, esses instrumentos possuem vigência atrelada ao contrato especial de trabalho desportivo dos atletas, para que este acordo de exploração de imagem possa estar válido pelo mesmo período em que o atleta estiver prestando seus serviços desportivos ao clubecontratante.
Destaca-se, por fim, antes de adentrar ao tópico específico sobre fraude, que o período de vigência do contrato de imagem correspondente ao período do contrato de trabalho pode ser visto como possível mecanismo de fraude por entendimentos esparsos dos defensores da natureza
trabalhista do instrumento, tendo em vista que, de acordo com essa perspectiva, o atleta deveria ser remunerado de acordo com cada exploração de sua imagem, em detrimento de pagamentos mensais ou previamente programados e formalizados nos contratos.
4. A POSSÍVEL FRAUDE E O MECANISMO LEGAL DE CONTROLE
O legislador pátrio, no Parágrafo único do artigo 87-A da Lei Pelé, estabeleceu que o valor que atleta poderá receber de seu clube a título de direito de imagem não poderá exceder 40% (quarenta por cento) da remuneração total paga a ele. Tal remuneração, nos termos da lei, é composta pela somatória do salário e demais montantes a título de imagem. Este dispositivo, foi inserido em 2015, pela Lei Federal nº 13.155, como forma de prevenção a eventuais fraudesfiscais, havendo casos em que os empregadores buscavam alternativas de fugir de encargos trabalhistas.
Neste sentido, a Receita Federal do Brasil, com o escopo de minimizar a utilização indevida e comercialização desprovida de legalidade da imagem de atletas, incrementou e focou nos últimos anos seus esforços para combater o que considera práticas criminosas contra a ordem tributária (KAMPFF, 2020).
Torna-se imprescindível salientar neste momento a Lei Federal nº 9.610 de 1998 na qual o conteúdo regulamenta os direitos do autor e conexos. Referido texto legal, em seu artigo 89, estabelece que as normas atinentes aos direitos do autor vão se aplicar aos direitos dos artistas, intérpretes e executantes, os quais se caracterizam pela utilização, durante suas performances e atividades profissionais, de suas respectivas imagens.
É notório que a Lei Federal nº 9.610 de 1998 também autoriza a pessoa detentora do direito a conceder seu uso a terceiro, sem restringir a forma como esta exploração se dá ou dará.Portanto, ao não trazer qualquer vedação expressa, o
legislador permite que a própria pessoa utilize sua imagem ou a licencie a terceiro que poderá explorar, desde que regular e devidamente autorizado.
Ademais, a Lei Federal nº 11.196 de 2005 estabeleceu que os direitos personalíssimospodem ser objeto de exploração pela pessoa jurídica, conforme disposto em seu artigo 129:
Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ounão, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto noart. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.
Deste modo, é evidente que legislador, ao redigir os textos legais mencionados reconheceu expressamente que as pessoas jurídicas podem executar atividades decorrentes da utilização de direitos de personalidade, dando ênfase para a necessidade de respeito aos aspectos tributários.
Outrossim, é relevante destacar que as remunerações trabalhistas e cíveis se caracterizam por formas variadas de tributação, como asseverado por Bellon e Laupman (2020):
O Imposto de Renda (IR) que incide nos valores recebidos de natureza trabalhista pode chegar aos 27,5% (vinte e sete vírgula cinco por cento) do total arrecadado, enquanto a contribuição tributária pelos valores recebidos a título de direito de imagem por uma pessoa jurídica, atinge a alíquota máxima de 15% (quinze por cento).
Nesta toada, entende a Receita Federal do Brasil que o direito de imagem seria essencialmente personalíssimo, de modo que não poderia haver exploração dele por pessoa jurídica. Ademais,
consideram que a remuneração da imagem possuiria, de fato, um caráter salarial, vez que se relacionaria com o vínculo de trabalho firmado entre o atleta e a entidade de prática desportiva (KAMPFF, 2020). Assim, sob essa fundamentação, tem autuado, em grande monta, treinadores, atletas (BELLON e LAUPMAN, 2020).
Por conseguinte, para verificar a incidência de fraudes, a Receita Federal do Brasil tenta entender se de fato os 40% (quarenta por cento) recebidos pelo atleta a título de direitos de utilização de imagem tem sua exploração pelo clube contratante. Ainda, o Fisco verifica se a empresa contratada se encontra em atividade ou se apenas se refere à uma fachada (KAMPFF, 2020). Kampff (2020) também ressalta que a Receita Federal verifica o exercício de atividade econômica pela empresa, a existência de funcionários “devidamente registrados e se a razão da existência desta Pessoa Jurídica não se dá simplesmente pela tentativa de se economizar tributos.”
Não obstante, a respeitável interpretação e o compreensível entendimento da Receita Federal do Brasil, a legislação específica e própria para o assunto, qual seja, a Lei Pelé, como acima explanado, traz importante redação em seu artigo 87-A, estabelecendo, de modo claro, limite de remuneração como forma de coibir os abusos e as práticas fraudulentas.
Bellon e Laupman (2020) frisam que “a verificação da existência ou não de valores a serem recebidos pela utilização da imagem de um profissional passa por diversos critérios definidos entre clubes, atletas, demais membros e profissionais de outras áreas”. Dessa maneira, a constatação e avaliação da Receita Federal do Brasil, pelo menos em princípio, mostra-se falha por sua superficialidade e pela ausência de adoção de critérios mais plausíveis de checagem.
Nas palavras do renomado advogado Luiz Felipe Guimarães Santoro (p. 96, 2002):
Em nossa opinião, é equivocada a generalização de que tais verbas integram o sa-
lário do atleta, devendo ser analisado cada caso específico, com base nos termos do contrato celebrado e com base na forma de execução. Em que pese a existência de opiniões contrárias, defendemos a ideia de que tais contratos são independentes, sendo perfeitamente legal a celebração do contrato de licença de uso de imagem (que não se confunde com o contrato de trabalho), desde que a conclusão e execução do contrato observem determinadas precauções.
Por último, segundo Bellon e Laupman (2020), “a Receita Federal do Brasil segue entendimento de pequena parcela do Poder Judiciário e não as diretrizes da assertiva legislativa” ao considerar que os valores recebidos a título de direito de imagem possuem natureza salarial.
CONCLUSÃO
Parte relevante e integrante dos direitos personalíssimos, o direito de imagem detém proteção e regulamentação do ordenamento jurídico pátrio, tanto em conformidade com a ótica constitucional, quanto pela legislação infraconstitucional, com a finalidade de regulamentar e salvaguardar a utilização comercial da imagem, voz, apelido e demais características do ser humano.
Ainda que existam pensamentos em sentidos diversos, os quais devem ser respeitados e observados para fomento e evolução do debate acadêmico, ao entendermos as peculiaridades do direito de imagem, sua origem e detalhes inerentes, resta evidente e incontestável a natureza jurídica cível dos contratos de cessão de uso firmados entre clubes e atletas.
Ademais, não obstante a pura e natural convicção e fundamentação da decisão judicial,foi possível verificar com muita clareza que o ordenamento jurídico brasileiro se revela completo e robusto no que concerne aos conceitos, definições, parâmetros e demais disposiçõesinerentes ao direito de imagem. Ainda assim, as tentativas e ocor-
rências de fraudes neste certame mostram-se presentes no cotidiano.
Neste combate, o legislador brasileiro providenciou medidas legais cuja função é justamente organizar e estabelecer limites à relação de cessão de uso de imagem de um atleta pelo clube de futebol. Conjuntamente, órgãos de fiscalização como a Receita Federal atuam para que os transgressores da norma possam ser punidos na proporção de seus atos.
Finalmente, a partir de tudo aquilo que foi exposto, espera-se que este estudo contribua para a estabilização de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, bem como auxilie no preenchimento de eventuais lacunas que persistem em distorcer e atrapalhar o desenvolvimentodas discussões acerca do tema central.
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ÁRBITROS DESPORTIVOS E O DIREITO DE IMAGEM
O presente artigo tem como objetivo tecer algumas considerações acerca de um direito de personalidade de uma determinada categoria inserida dentro do esporte, o árbitro. Trata-se de um direito consagrado constitucionalmente, mas que quando se refere aos árbitros desportivos, este direito, que é amplamente protegido pela legislação brasileira, inclusive nas atividades desportivas, em especial quando utilizado para fins comerciais, é simplesmente jogado para “escanteio”. Justamente os árbitros, personagens estas que são os únicos legitimados para aplicação das regras do esporte dentro do campo de disputa.
Palavras-chave
Árbitros desportivos - Direitos de Personalidade - Direito de Imagem
Rafael Bozzano
Advogado. Doutorando em Direito (Núcleo de Direito Desportivo) pela PUC/SP. Mestre pelo Programa de Pós Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica PPCJ UNIVALI. Mestre em Máster Universitario en Derecho na Universidad de Alicante, Espanha. Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. Pós-Graduado em Direito Desportivo pela ESA-OAB/SP.
INTRODUÇÃO
O desporto profissional é, na realidade, um grande negócio, o sistema jurídico desportivo, construído a partir da Constituição Federal, artigo 2171, que em seu inciso III, trata justamente da distinção ao determinar “o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional”.
Citado ponto é de extrema importância, justamente por esta razão, que a própria Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXVIII, alínea “a”, expressamente assegurou “a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas”.
Não diferente, também a Lei n.º 9.615/98, Lei Geral do Desporto, em seu artigo 2ª, parágrafo único, destaca que a exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade econômica, como por exemplo a que ocorre no produto futebol.
Importante pontuar que o presente trabalho não analisará a imagem utilizada/explorada dentro do esporte amador, mas sim, dentro do esporte profissional.
Somente o produto futebol, movimentou um total de R$ 52,9 bilhões na economia, o que representou 0,72% do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro2, portanto, ninguém entra no futebol
1 CF/88: Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:
I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não- profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
2 Disponível em: https://rodrigomattos.blogosfera.uol. com.br/2019/12/13/futebol-movimenta-r-53-bi-na-economiado-brasil-mas-so-gera-1-de-imposto/ Acessado em: 27 de julho de 2021.
profissional para fazer caridade, todos que ingressam nesse meio, principalmente por meio de patrocínios, exploram comercialmente e se beneficiam com essa participação.
Mesmo diante de todos esses números, garantias e proteção constitucional a própria imagem, bem como os direitos de personalidade, um personagem indispensável para que toda essa engrenagem funcione é deixado de lado, os árbitros.
1. DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE
Antes de adentrarmos especificamente na questão dos árbitros desportivos, importante fazer uma breve consideração do que seriam os direitos de personalidade e as suas formas de proteção.
A situação aqui exposta remete ao título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, inserida no capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, em especial os artigos 5º, X e XXVIII, “a” da CF/883, artigos estes, que não trazem qualquer menção de que somente as pessoas destacadas terão os seus direitos de personalidade protegidos e ainda, expressamente garante que a “reprodução da imagem” será protegida “inclusive nas atividades desportivas”, nos termos da lei.
O texto expresso na Constituição da República
3 CF/88: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
(...)
XXVIII - são assegurados, nos termos da lei:
a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas;
é cristalino ao garantir a proteção da imagem nas atividades desportivas. Não há dúvidas de que os árbitros desportivos, que desempenham papel indispensável para a prática do desporto profissional, também têm a sua imagem reproduzida, exibida, explorada da mesma forma com que os atletas, seja em menor ou maior grau.
O direito de imagem é um direito de personalidade autônomo, possui natureza jurídica de caráter privativo e absoluto, com personalidade incontestável, que caracteriza e individualiza cada pessoa no meio da coletividade.
Para elucidar o que seria o direito de imagem, pode-se extrair o ensinamento de Walter Moraes, que se estacou como jurista, professor universitário e desembargador do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, que conceituou a imagem como sendo “toda expressão formal e sensível da personalidade de um homem é imagem para o Direito”4
Nas palavras de Carlos Alberto Bittar, o direito à imagem é um alongamento do direito da personalidade, que assim justifica:
Consiste no direito que a pessoa tem sobre a sua forma plástica e respectivos componentes distintos (rosto, olhos, perfil, busto) que a individualizam no seio da coletividade. Incide, pois, sobre a conformação física da pessoa, compreendendo esse direito um conjunto de caracteres que a identifica no meio social. Por outras palavras, é o vínculo que une a pessoa à sua expressão externa, tomada no conjunto, ou em partes significativas (com a boca, os olhos as pernas, enquanto individualizadoras da pessoa.5
Valendo-se do texto esculpido no Código Civil de 2002, logo em seu o artigo 2º, estabelece que “a personalidade civil da pessoa começa do nasci-
4 MORAES, Walter. Direito à própria imagem I. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 61, n.º 443, setembro de 1972, p. 64.
5 BITTAR, Carlos Alberto. Os Diretos da Personalidade. 7°. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004. p. 94.
mento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.
Como o objetivo para análise desse direito no presente estudo, refere-se exclusivamente aos árbitros desportivos, não se faz necessário maiores debates quanto ao exato momento em que esse direito de inicia, já que existem diferentes correntes de qual seria esse momento. A relevância com que os direitos da personalidade são tratados pelo ordenamento jurídico brasileiro, se pode observar pelo destaque e pela forma direta e simplificada com que a lei garante essa proteção, especialmente no Capítulo Segundo do Código Civil, entre os artigos 11 ao 21.
Dentre os direitos de personalidade, destacam-se o direito à vida, à liberdade, ao nome, ao próprio corpo, à imagem e à honra.
Pela função exercida pelos árbitros desportivos, tem-se que o direito à imagem e à honra são os mais afetados e que merecem uma proteção conforme previsão legal.
Importante também destacar, que no caso dos árbitros desportivos, não existe sequer a colisão entre dois direitos fundamentais, como por exemplo, o da liberdade de expressão, que foi o centro do debate no célebre caso julgado por este Excelso Tribunal na ADI n.º 4.815/DF, que analisou a situação da necessidade ou não de autorização das pessoas nas obras que escreviam as suas biografias.
Cita-se a conclusão adotada pela eminente Min. Cármen Lúcia, relatora da ADI n.º 4.815/DF, ao concluir o seu voto, entendeu por: “b) reafirmar o direito à inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e imagem da pessoa, nos termos do inc. X do artigo 5º da Constituição da República”.
Veja-se que no caso supracitado, a imagem da pessoa continuou sendo protegida constitucionalmente, sendo apenas, inexigível o consentimento de pessoa biografada, ou dos coadju-
vantes que dela participam, sendo mantida a indenização pelos danos sofridos em razão de qualquer excesso.
2. DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE DOS ÁRBITROS NO DESPORTE
Historicamente as atividades desportivas não se limitavam apenas aquelas praticadas na Grécia, nem tampouco ao período em que teve início os primeiros Jogos Olímpicos. A atividade física esteve presente no desenvolvimento das civilizações, uma vez que a utilização do corpo era fundamental não apenas para sobrevivência, que se retrata na busca pelo alimento, mas também na própria proteção da comunidade de ataques de animais e até de invasões de outras civilizações.6
Ao comentar sobre o início do esporte, a doutrina espanhola, representada aqui por um dos seus maiores ícones no estudo desportivo, Gabriel Real Ferrer, em sua obra “Derecho Publico Del Deporte”, sustenta que ao se pensar nas práticas esportivas, logo nos vem a cabeça competições organizadas e com grandes estruturas, sendo possível o seu desenvolvimento somente quando sustentada por um organismo com o mínimo de profissionalismo. Ocorre que tal ideia logo em seguida já é relativizada, haja vista que a prática desportiva pode ser desenvolvida por um grupo de pessoas, que se reúnem para disputar com “maior ou menor intensidade”, uma atividade física onde são seguidas regras anteriormente definidas, onde os participantes por meio do seu esforço físico alcançam os resultados.7
Quanto ao que seria o desporto, o Professor Martinho Neves Miranda, em sua obra intitulada “O Direito Desportivo”, ensina que:
6 DEMARCHI, CLOVIS; ANDRADE, J. A.; BOZZANO, Rafael. A integração entre o Meio ambiente, a sustentabilidade e o Desporto. In: Sergio Fernandes Aquino; Neuro José Zambam. (Org.). Teorias da Sustentabilidade e desenvolvimento sustentával. 1ed.Erechim: Deviant, 2016, v. 1, p. 118.
7 REAL, Gabriel Ferrer. Derecho Público del Deporte. Madrid: Civitas, 1991, p. 41.
Nos tempos atuais, o desporto encontra-se muito identificado com as atividades realizadas com intuito competitivo, em que sobreleva a característica do espetáculo, que, por sua vez, se desenvolve pela profissionalização dos agentes que tomam parte do acontecer desportivo.
Todavia, há muitas outras formas de se conceber a atividade desportiva, já que o desporto não se esgota nas práticas atinentes à competição e desenvolvidas unicamente no seio associativo, estando em evidência nas últimas décadas para deixar transparecer uma ampliação do seu conceito, de forma a abranger outras manifestações que são de grande importância para o progresso da civilização.8
No desporto profissional e consequentemente os seus atores, sejam eles principais ou coadjuvantes, por ser uma atividade desportiva, a proteção à imagem dos participantes é garantida constitucionalmente.
Especificamente quanto aos atletas, o artigo 87-A da Lei n.º 9.615/989 e suas alterações, somente estabeleceu um limite máximo para o pagamento dessa verba, bem como que o ajuste se dará por contrato de natureza civil, não se confundindo com o contrato especial de trabalho.
Quanto aos árbitros, a Lei Geral do Esporte não trouxe a forma como seria realizada essa remuneração, omisso está que não é suficiente para afastar a garantia constitucional de proteção a própria imagem.
Aliás, quanto aos árbitros, a Lei n.º 9.615/98 fez
8 MIRANDA, Martinho Neves. O Direito no Desporto. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 7.
9 Art. 87-A. O direito ao uso da imagem do atleta pode ser por ele cedido ou explorado, mediante ajuste contratual de natureza civil e com fixação de direitos, deveres e condições inconfundíveis com o contrato especial de trabalho desportivo. Parágrafo único. Quando houver, por parte do atleta, a cessão de direitos ao uso de sua imagem para a entidade de prática desportiva detentora do contrato especial de trabalho desportivo, o valor correspondente ao uso da imagem não poderá ultrapassar 40% (quarenta por cento) da remuneração total paga ao atleta, composta pela soma do salário e dos valores pagos pelo direito ao uso da imagem.
uma única referência, tratando do caráter autônomo da sua atividade quanto a prestação de serviços às entidades de administração do desporto10. Não diferente, a regulamentação da profissão de árbitro de futebol com a publicação da Lei n.º 12.867/13 também nada estabeleceu sobre limites ou forma para negociação acerca do direito de imagem dos árbitros, devendo ser aplicada, portanto, a previsão contida na Constituição Federal e a do Código Civil.
Aqui se faz um esclarecimento necessário, por ser o futebol o esporte mais desenvolvido no Brasil, tanto a legislação, quando a doutrina, na grande maioria das vezes fazem referência ao futebol, ocorre que quanto aos direitos de personalidade dos árbitros desportivos, sejam eles em qual modalidade for, deverão ser garantidos por haver expressa previsão constitucional quanto ao direito de imagem das pessoas.
Continuando no campo de futebol, cita-se os jogadores que levaram o Brasil a ser o único pentacampeão mundial, Pelé, Ronaldo Nazário, Garrinha, Zagallo, Romário, dentro centenas de outros, mas também participaram os árbitros de futebol e que apitaram finais de Copa do Mundo, Arnaldo Cezar Coelho (Espanha, 1982) e Romualdo Arppi Filho (México, 1986), bem como os mundialistas José Roberto Wright, Márcio Rezende de Freitas, Carlos Eugênio Simon e Sandro Meira Ricci, entre outros também tão importantes.
Como já destacado, o árbitro de futebol é uma figura indispensável para a prática do futebol profissional, explorado de forma econômica, como muito bem pontuado por Maurício Corrêa da Vei-
10 Art. 88. Os árbitros e auxiliares de arbitragem poderão constituir entidades nacionais, estaduais e do Distrito Federal, por modalidade desportiva ou grupo de modalidades, objetivando o recrutamento, a formação e a prestação de serviços às entidades de administração do desporto.
Parágrafo único. Independentemente da constituição de sociedade ou entidades, os árbitros e seus auxiliares não terão qualquer vínculo empregatício com as entidades desportivas diretivas onde atuarem, e sua remuneração como autônomos exonera tais entidades de quaisquer outras responsabilidades trabalhistas, securitárias e previdenciárias.
ga, advogado e escritor na área desportiva:
Não se pode duvidar da importância do árbitro para uma partida de futebol. Interpretações equivocadas, aplicação rigorosa ou complacente da regra, enfim, variadas circunstâncias influenciam o resultado de uma competição, a demonstrar a importância de uma arbitragem qualificada (...).
Em muitas ocasiões a arbitragem é decisiva para o resultado da competição, razão pela qual a exigência que recai sobre o árbitro é enorme. Trata-se de um partícipe do evento desportivo, cuja função é a assegurar a regularidade da competição, pois sua meta é a de garantir o cumprimento das regras técnicas e disciplinares da modalidade.11
Ocorre que mesmo desempenhando um papel fundamental e indispensável para a prática do futebol profissional, os árbitros não recebem nenhum valor referente a exploração e utilização da sua imagem, em especial, das emissoras de televisão que exploram o produto desportivo em sua grade de programação e patrocinadores dos uniformes que vinculam a sua marca aos árbitros.
Quanto ao direito à imagem dos árbitros de futebol, Maurício Corrêa da Veiga, cita justamente a previsão constitucional, e do próprio Código Civil, que garantem a proteção da imagem também nas atividades desportivas
Porém, o direito de imagem possui uma característica peculiar que o difere dos demais direitos da personalidade que é o conteúdo patrimonial, passível de exploração econômica.
Desta forma, o árbitro de futebol, em tese, pode ter a sua imagem passível de exploração eis que o instituto está assegurado na Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XXVIII e no art. 20 do Código Civil Brasileiro também ampara o direito à imagem da pessoa.12
11 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Diferentes dos Atletas Direito de Arena Não Vale para Árbitro de Futebol. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-06/ mauricio-correa-veiga-direito-arena-nao-vale-arbitrofutebol Acessado em: 02 de julho de 2022.
12 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Diferentes dos Atletas Direito de Arena Não Vale para Árbitro de Futebol. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-out-06/ mauricio-correa-veiga-direito-arena-nao-vale-arbitro-
Nos últimos anos, especialmente entre os árbitros de futebol, observou-se um grande movimento destes em busca do reconhecimento e recebimento de valores referentes aos seus direitos da personalidade
Quanto ao direito de arena, ainda que entenda que os árbitros também deveriam ser beneficiários desses valores, pois fazem parte do espetáculo e tem a sua imagem captada e utilizada por quem explora comercialmente o futebol, em a Lei n.º 9.615/98 não trazendo os árbitros como beneficiários de referido direito, não há como reconhecer tal possibilidade por ausência de previsão legal.
Importante aqui destacar que o fato de os árbitros não receberem o direito de arena, em nada exclui o seu direito de receber pela sua imagem utilizada e comercializada nas partidas de futebol.
Principalmente nas últimas décadas, as transmissões desportivas concentram uma grande parcela de todo o investimento das emissoras de televisão e do seu retorno com audiência e cotas de publicidade.
Um dos personagens dentro de todo esse espetáculo, é o árbitro. Ainda que alguns argumentem que ninguém vai a um jogo para ver o árbitro, quando se fala em direito de imagem, essa questão torna-se irrelevante, até porque como esculpido na Constituição brasileira, “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”.
Claro que cada personagem terá um valor diferente da sua imagem, afinal, não há como comparar a imagem de um atleta campeão mundial, com um árbitro em seu início de carreira, assim como não há como comparar um atleta em sua primeira partida profissional, com um árbitro com expressão e carreira internacional. Mas uma coisa deve ser reconhecida, ambos deverão ter a sua imagem protegida.
futebol Acessado em: 02 de julho de 2022.
Uma das provas da importância da imagem dos árbitros desportivos, é que diversas empresas investem vultuosas quantias para explorarem comercialmente os uniformes dos árbitros, valendo-se da imagem de um personagem que habita o mesmo cenário dos atletas.
Ocorre que não acontece dessa forma e por incrível que pareça, os árbitros não recebem nenhum valor referente a utilização e exploração da sua imagem. Os valores provenientes dos acordos firmados pelas entidades organizadoras dos eventos desportivos ficam exclusivamente com estas.
A importância dos árbitros também pode ser observada nas transmissões desportivas, pois normalmente a transmissão conta com um narrador, um comentarista técnico, que na maioria das vezes é um ex-atleta e um comentarista de arbitragem, este sendo sempre um ex-árbitro.
Portanto, a situação aqui exposta remete ao título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, inserida no capítulo “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, em especial os artigos 5º, V, X e XXVIII, “a” da CF/88, artigos estes, que não trazem qualquer menção de que somente as pessoas destacadas, no caso os atletas, terão os seus direitos de personalidade protegidos, mas sim todos os participantes, e, ainda, expressamente garante que a “reprodução da imagem” será protegida “inclusive nas atividades desportivas”, nos termos da lei.
Citada lei remete justamente ao artigo 20 do Código Civil de 2002, que expressa que “somente se autorizadas”, um terceiro poderá utilizar a imagem de uma pessoa quando “se destinarem a fins comerciais”, sob pena de responsabilização e consequente “indenização que couber”, matéria que trata a Súmula 403 do STJ13. A única possibilidade dessa imagem ser utilizada sem autorização do seu titular, ocorre quando “ne13 Superior Tribunal de Justiça. Súmula 403, Segunda Seção, em 28.10.2009, DJe 24.11.2009, ed. 486: Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais.
cessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública”, situações estas, que não se enquadram na captação e utilização comercial das imagens do produto futebol.
Destaca-se ainda, que o artigo 11 do CC/02 expressa serem os direitos de personalidade, dentre eles o da própria imagem, “intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”, e, ainda, o artigo 12 do CC/02 traz a possibilidade daquele que teve a sua imagem utilizada de forma indevida, pleitear perdas e danos.
Os árbitros de futebol são figuras de extrema relevância no produto futebol, a “exposição dos árbitros de futebol, na função de apitador ou de assistente (os chamados “bandeirinhas”) é expressiva [...] Ainda que em menor grau se em comparação a do árbitro principal, a atuação do auxiliar é de extrema importância, porquanto sabido que os denominados “impedimentos” no futebol são recorrentes, sendo esta a oportunidade em que o profissional mais é mostrado pelas redes televisivas e fotografado para jornais/portais de “internet”.14
Uma coisa é certa, não existe uma disputa desportiva profissional sem os árbitros, já que estes são os únicos legitimados pelas regras desportivas como responsáveis pela condução e aplicação das regras. Outrossim, “desnecessário relembrar que a exposição dos árbitros e assistentes de futebol é considerável durante as transmissões das partidas [...]”15
CONCLUSÃO
Como se pode observar no presente trabalho, o texto expresso na Constituição da República é cristalino ao garantir a proteção da imagem nas atividades desportivas. Não há dúvidas de que
14 TJSP, MM Juiz Fernando Bonfietti Izidoro, sentença n.º 0002688-72.2018.8.26.0108. Sentença confirmada pela E. 7ª Câmara de Direito Privado do E. TJSP, j. em 04.11.2020.
15 TJMT, AC n.º 1023686-39.2016.8.11.0041, Des. Carlos Alberto Alves da Rocha; Terceira Câmara de Direito Privado, j. em 02.06.2021.
os árbitros desportivos ao atuarem em partidas transmitidas com o objetivo comercial, bem como a exploração ocorrida nos uniformes que utilizam, somente poderá ocorrer mediante a cessão, gratuita ou onerosa dos próprios titulares, ou seja, os árbitros.
Deve-se registrar que o fato de os árbitros desportivos desempenharem um trabalho autônomo não afasta o direito a terem uma remuneração referente ao seu direito personalíssimo de imagem, afinal, não se pode confundir a remuneração recebida para fazer aplicar a regra da modalidade, com àquela referente a remuneração para utilização e exploração comercial da imagem, devendo cada uma ser individualmente detalhada.
Não há como se sustentar o entendimento de que a equipe de arbitragem ao prestar seus serviços – pelos quais é remunerada – num jogo de futebol, automaticamente permite a transmissão da sua imagem pelos meios televisivos, sites de internet, etc., porquanto a exibição das partidas ao público é ínsita nesse tipo de espetáculo. Citada conclusão encontra-se em rota de colisão com o que preceitua o artigo 20 do Código Civil, já que somente quando autorizadas, a imagem de uma pessoa poderá ser utilizada para fins comerciais.
Portanto, tem-se como lei principiológica, já que textualmente inserida no Código Civil, devendo assim, servir como princípio fundamental nas relações jurídicas, devendo submeter-se a todas as leis especiais16 a necessidade de autorização da pessoa que teve a sua imagem captada/ex16 “Principiológica é a lei que fixa diretrizes para as demais leis setorizadas. O conteúdo normativo da lei principiológica respeita à sua qualidade e não à quantidade. Portanto, às leis principiológicas não se aplica o princípio da especialidade, segundo o qual a norma especial derroga a geral, justamente porque a lei principiológica não é lei geral [...]
Isto quer dizer que, mesmo as regras especiais, da legislação extravagante [...] não podem contrariar as normas do Código Civil sobre a matéria.” NERY, Rosa Maria de Andrade; NERY JUNIOR, Nelson. Introdução à ciência do direito privado. 2. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 283/284.
plorada/transmitida/utilizada quando destinada para fins comerciais.
Sendo assim, quando o Código Civil fixou parâmetros normativos quanto a necessidade da autorização da pessoa que tem a sua imagem utilizada para fins comerciais, qualquer outra legislação especial quanto ao tema deverá submeter-se a esta premissa.
A necessidade da autorização da pessoa que tem a sua imagem utilizada de alguma forma para fins comerciais, além de visar uma garantia constitucional dos atributos da personalidade, possui o objetivo de se evitar o enriquecimento sem causa, nos termos do artigo 884 do Código Civil de 2002.
Também não parece razoável sustentar que os árbitros, ao aceitarem trabalhar em uma determinada partida, automaticamente cedem a sua imagem para que terceiros a explorem. Imperioso registrar que a renúncia deve ser interpretada de forma restritiva, mormente quando se trata de direito de proteção à própria imagem, direito este, como visto, consagrado na Constituição Federal e Código Civil.
Sendo assim, não pairam dúvidas quando analisada a legislação vigente, em especial, as garantias constitucionais quanto aos direitos de personalidade que devem também ser aplicados aos árbitros desportivos, os protegendo contra a exploração e a sua utilização quando destinada para fins comerciais.
BITTAR, Carlos Alberto. Os Diretos da Personalidade. 7°. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.
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BRASIL. Lei Geral do Esporte, Lei n.º 9.615/98. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/L9615consol.htm Acessado em: 02 de julho de 2022.
BRASIL. Lei que regula a profissão de árbitro de futebol, Lei n.º 12.867/13. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12867.htm Acessado em: 02 de julho de 2022.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Súmula 403, Segunda Seção, em 28.10.2009, DJe 24.11.2009, ed. 486.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Foro de Cajamar. Ação n.º 0002688-72.2018.8.26.0108. MM Juiz Fernando Bonfietti Izidoro. Julgado em 07.11.2018.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Apelação Cível n.º 1023686-39.2016.8.11.0041. Des. Carlos Alberto Alves da Rocha; Terceira Câmara de Direito Privado. Julgado em 02.06.2021.
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A NECESSIDADE DO VÍNCULO TRABALHISTA DOS ATLETAS DE ESPORTS
Frente ao surgimento dos esportes eletrônicos, ou eSports, como uma modalidade esportiva, manifesta-se a necessidade de reconhecer seus praticantes, os pro-players, como atletas esportivos. Desta forma, este artigo científico tem como objetivo discutir e analisar a profissionalização desses atletas perante a esfera trabalhista. Para isso, será demonstrada a evolução profissional desta atividade em um passado muito recente em nosso país. Durante a apresentação deste artigo, iremos explorar a relação jurídica-trabalhista havida entre os atletas e os times, também chamados de organização. A necessidade desta discussão dentro do meio jurídico acabou se tornando necessária nos últimos anos, tendo em vista o enorme crescimento da modalidade e a grande movimentação financeira que ocorre como consequência, pois se mostra um meio extremamente lucrativo. O presente estudo tem como propósito ainda, o resguardo das garantias jurídicas previstas para o vínculo de emprego dos atletas para com seus contratantes.
Palavras-chave
Atleta - E-Sports - Reconhecimento de Vínculo - Direito Desportivo
Leandro Lopes Camargo
Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Sorocaba (2018). Pós-Graduando em Direito Desportivo pela Escola Superior da Advocacia do Estado de São Paulo (2022).
desporto chamado não profissional é a prática esportivasem a existência de um contrato de trabalho, porém, sendo permitido o recebimento de incentivos materiais e de patrocínios.
Portanto, concluímos que a existência de um contrato de trabalho para exercer aquela atividade é o fator principal para configurar a profissionalização, ou não, do atleta.
O contrato de trabalho do atleta profissional é regido pela Lei n. 9.615/98, que estabelece as bases desta modalidade contratual, e regula o funcionamento do desporto profissional em nosso ordenamento jurídico.
Apesar da Lei Pelé ter em seu conteúdo os ditames da relação trabalhista- desportiva de todas as modalidades esportivas do país, com seu foco principalmente no futebol, não há distinção alguma sobre o esforço ou qualidade na prestação laboral da atividade.
As particularidades havidas na relação laboral do atleta determinaram algumas dificuldades para a aplicação da CLT nos casos. Entretanto, nada impede que ela seja aplicadade forma subsidiária nos momentos em que a Lei Pelé apresente alguma lacuna ou falha na sua aplicação.
As modalidades esportivas apresentam uma constante evolução, seja com mudança em alguma regra da modalidade esportiva ou até mesmo a criação de uma totalmente nova. Porém, não podemos permitir que essa evolução acabe prejudicando um atleta que busca no esporte o seu sustento e de seus familiares. É necessário que o ordenamento jurídico e o conhecimento de quem o aplica também evolua em uma mesma intensidade.
2. O VÍNCULO TRABALHISTA DO PRÓ-PLAYER
A febre dos esportes eletrônicos no Brasil já é uma realidade com proporções e cifras gigantescas. Muitos jovens buscam a sua profissiona-
lização pois acabam unindo o lazer à obrigação. Existem empresas específicas na capacitação de um atleta para a disputa de campeonatos ao redor do mundo. Campeonatos esses que atraem milhões de pessoas, seja pela internet ou de forma presencial. Os times, ou organizações, oferecem contratos milionários aos jogadores, valores que poderiam ser utilizados, por exemplo, no futebol.
Antes visto como apenas um passatempo pelas pessoas, jogar se tornou um trabalho que exige uma grande dedicação para aquele que deseja competir em alta performance, o pró-player
Os times profissionais de eSports chegam a treinar mais de 09 horas por dia e seusatletas muitas vezes possuem acompanhamento de profissionais da saúde, dentre eles psicólogos, nutrólogos e preparadores físicos. Todo esse preparo visa garantir que o atleta poderá entregar o seu máximo desempenho durante um campeonato e, consequentemente, se sagrar campeão.
Diante desse cenário, os atletas e os times precisam ter noções básicas de seus direitos trabalhistas, de forma que, no momento da contratação, nenhum deles acabe sendo prejudicado na constituição do vínculo empregatício.
Como não há, no Brasil, uma legislação específica para os atletas de eSports que regulamente a sua contratação, o mercado e os tribunais brasileiros tem se utilizado de uma atuação conjunta entre os preceitos da CLT (Consolidações das Leis Trabalhistas), Código Civil e a Lei Pelé (Lei 9.615/98). O mesmo conjunto de leis aplicado nos chamados esportes tradicionais.
Dentre princípios legais mencionados, aquele que se destaca é a CLT, tendo em vista que, de forma ampla, é ela que irá definir toda forma de relação de emprego.
Como já mencionado, a maioria das equipes profissionais de esportes eletrônicos foi criadas sob um olhar empresarial, visando o seu sucesso e consequente lucro. Para isso, é necessário que
INTRODUÇÃO
Com a evolução do mundo virtual, bem como a criação de jogos cada vez mais competitivos, deram-se início às competições de jogos eletrônicos ao redor do mundo, o eSport, cujo constante crescimento possibilitou-o tornarse um dos mercados com maior potencial de crescimento para os próximos anos.
No Brasil, esse movimento não é diferente. Com o seu crescimento exponencial principalmente a partir de 2010, advindo de uma maior organização de seus praticantes, os esportes eletrônicos começaram a chamar a atenção do meio jurídico visando proteger os maiores interessados no assunto, os pro-players.
Diante de grande avanço, maiores organizações e estruturas, bem como o número de adeptos crescendo cada vez mais, o resultado não poderia ser outro se não o reconhecimento dos eSports como o uma modalidade esportiva.
Entretanto, o reconhecimento deste novo esporte não acarreta apenas o surgimento de uma nova modalidade esportiva para seus praticantes e interessados, mas acabam voltando a atenção do mundo jurídico para as relações jurídicas entre atleta e o time, também chamado de organização.
Em que pesem as mais diversas formas contratuais possíveis de serem aplicadas nesta relação de pro-player com a organização na qual ele representa, a necessidade de se firmar a relação empregatícia é a que se destaca, tendo em vista o fato de que as equipes, acima de tudo, foram criadas e são mantidas sob um olhar empresarial.
As partes presentes na relação jurídica são, de um lado, o atleta interessado no seucrescimento profissional e aperfeiçoamento de suas habilidades através de treinos e participações em campeonatos e, de outro, a organização
contratante que não só está interessada na evolução do cenário dos eSports como um todo, mas também visa o lucro que ali irá obter.
Quando falamos de atletas profissionais de jogos eletrônicos, na grande maioria das vezes estamos tratando de jovens em busca de seus sonhos com uma média de idade entre 20 e 25 anos1 que estão apenas no começo da vida adulta e não possuem experiência de normas trabalhistas, de modo que, acabam se submetendo a certas condições que violam os seus direitos, permanecendo na ilegalidade.
Portanto, o reconhecimento da relação empregatícia desta nova modalidade se mostra de suma importância tendo em vista as partes presentes e o resguardo dos direitos de ordem pública ali presentes.
1. ASPECTO TRABALHISTA DO ATLETA PROFISSIONAL
Para darmos início em nossa análise a respeito da evolução das disposições legais que tratam da relação de trabalho dos atletas profissionais e os atletas profissionais de eSports, importante destacar a distinção trazida pela Lei 9.915 de 24 de março de 1998, comumente conhecida como Lei Pelé, entre atleta não profissional e atleta profissional, tendo em vista a diferença existente na essência de cada um.
A Lei Pelé, em seu artigo 3°, parágrafo 1°, inciso I caracteriza o atleta profissional, ou seja, aquele que na sua relação com o esporte existe uma “remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva”2. Por outro lado, em seu inciso II, o
1 STATS & INFO, ESPN. Juventude importa? Confirma a média de idade dos atletas de esports. ESPN. Disponível em: http://www.espn.com.br/noticia/729490_juventude-importa-confira-a-media-de- idade-dos-atletas-de- esports#:~:text=A%20idade%20m%C3%A9dia%20dos%20principais,jovem%3A%2021%2C2%20ano s.&text=Super%20Smash%20 Bros.,-Wii%20U%20%C3%A9
2 BRASIL. Lei 9.615/98, 24 março 1998. DOU, Brasília, 24 mar. 1998.
a equipe possua jogadores que a represente em competições e eventos patrocinados, expondo assim, a sua marca. Em contraprestação ela irá pagar ao jogador o seu salário, eventuais bônus e, ainda, pagar o direito para uso de sua imagem.
Desta forma, o jogador deve ser, indubitavelmente, um profissional que treine regularmente, cumpra as regras e condutas impostas pela equipe e receba o seu salário para isso, caracterizando os princípios do vínculo empregatício.
Leciona o Artigo 3º da CLT3:
“Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.
Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.”
A Pessoalidade está presente quando somente aquele atleta contratado pelo clube poderá realizar suas atividades ou representar a organização. A Não Eventualidade se constitui no fato de que o jogador deve treinar periodicamente em favor do seu time. Já a Onerosidade é o fato de o jogador receber o seu salário em contraprestação aos serviços prestados. E, por último, a Subordinação é caracterizada pelo fato de o profissional estar sujeito e seguir as regras e diretrizes definidas pelo seu contratante.
Estando o vínculo presente, essa categoria de contratação, atualmente, se mostra a mais segura, pois todos os impostos necessários serão recolhidos no ato do pagamento do salário e registrados perante os órgãos fiscalizadores
A nossa Lei Geral do Desporto configura, em seu artigo 28-A, o atleta autônomo4:
“28-A. Caracteriza-se como autônomo o
3 BRASIL. Decreto-Lei 5,452, 01 maio 1943. DOU, Brasília, 01 maio 1943.
4 BRASIL. Lei 9.615/98, 24 março 1998. DOU, Brasília, 24 mar. 1998.
atleta maior de 16 (dezesseis) anos que não mantém relação empregatícia com entidade de prática desportiva, auferindo rendimentos por conta e por meio de contrato de natureza civil.
§ 1º O vínculo desportivo do atleta autônomo com a entidade de prática desportiva resulta de inscrição para participar de competição e não implica reconhecimento de relação empregatícia.
§ 2º A filiação ou a vinculação de atleta autônomo a entidade de administração ou a sua integração a delegações brasileiras partícipes de competições internacionais não caracteriza vínculo empregatício.
§ 3º O disposto neste artigo não se aplica às modalidades desportivas coletivas.”
No mundo dos games o atleta será autônomo quando praticar determinado jogo de forma individual ou não possua a subordinação a uma equipe. Mesmo que aquela atividade seja a sua fonte de renda e subsistência, para a Lei 9.615/98 ele não será consideradoprofissional.
Sobre esse tema, dispõe Ricardo Georges Affonso Miguel5:
“Diante desta disposição, entendemos que para todas as modalidades deesporte eletrônico em que o game for coletivo não poderá haver o enquadramento do atleta como autônomo, razão pela qual o desporto eletrônico, quando caracterizado pela pratica de forma coletiva, será regido subsidiariamente pela lei trabalhista, podendo a modalidade optar pela aplicação dos dispositivos legais da Lei Geral do Desporto específicos para o futebol, na forma do artigo 94 da lei”
Importante destacar que o mencionado artigo 94 da Lei Pelé estabelece um Rol de artigos também da mesma Lei que serão de uso obrigatório
e exclusivo da modalidade futebol. Já em seu parágrafo único é facultado a outras modalidades esportivas a aplicação destas disposições.
Assim, ao considerar a proximidade entre a atividade exercida pelo atleta profissional de futebol e o pro-player é possível fornecer um tratamento igualitário para eles, mas sempre observando e respeitando as particularidades de cada modalidade.
Para Ricardo Georges Affonso Miguel atletas e equipes de esporte eletrônico poderiam optar em ter suas relações jurídicas reguladas pelos mesmos comandos normativos aplicados ao futebol”.6
3. A PROBLEMÁTICA DA PEJOTIZAÇÃO DO PRÓ-PLAYER
Não obstante o fato de que os princípios da relação empregatícia sempre estiveram presentes, muitas organizações se valeram da utilização dos contratos de prestação de serviço como modo de contratação de atletas para compor as suas equipes e representá-las competições.
Attila Magno e Silva Barbosa e Juliani Veronezi Orbem, em seu excelente estudo sobre o tema, descrevem a “pejotização”:7
“A “pejotização” pode ser caracterizada como uma forma de contratação na qual a empresa contratante para a efetivação da contratação ou para a manutenção do posto de trabalho exige que o trabalhador, pessoa física, constitua uma pessoa jurídica, que pode ser uma firma individual ou uma sociedade empresária, para a prestação de serviços de natureza persona-
6 MIGUEL, Ricardo Georges Affonso. “O ENQUADRAMENTO JURÍDICO DO ESPORTE ELETRÔNICO. Edição 1. São Paulo: Quartier Latin, 2019.
7 BARBOSA, Attila Magno e Silva e et al. “PEJOTIZAÇÃO”: PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO, DAS RELAÇÕES SOCIAIS E DAS RELAÇÕES HUMANAS. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 2/2015. Disponível em https:// periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/20184/pdf.
líssima. Assim, realiza-se um contrato de prestação de serviços de natureza civil para a execução das atividades, sendo tal modalidade de contratação regulamentada, então, pelo Direito Civil e não pelo Direito do Trabalho.”
O intuito da empresa ao contratar uma pessoa jurídica (PJ) para exercer as atividades, é não mais recolher encargos trabalhistas e fiscais, como por exemplo, o recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço ou o pagamento da multa dos 40% ao fim de uma relação contratual, a contribuição de INSS e, ainda, terá uma carga tributária reduzida.
Para o contratado, ser contratado como PJ também tem os seus benefícios, uma vez que a empresa poderá lhe oferecer um valor a mais na contraprestação de seus serviços, pois os encargos foram diminuídos.
Porém, essa visão tem mudado com o passar dos anos e também com o fato de que cada vez mais o atleta de esporte eletrônico tem buscado os seus direitos trabalhistas básicos.
De acordo com Attila Magno e Silva Barbosa e Juliani Veronezi Orbem8:
“Esse trabalhador perde as proteções decorrentes do contrato de emprego e da sua condição de sujeito de direito, não sendo mais abrigado pelo Direito do Trabalho. Modo que, diante de um contrato de prestação de serviços de natureza cível qualquer controvérsia será discutida na Justiça Civil e não na Justiça do Trabalho, sendo apenas discutidas na jurisdição civil as cláusulas do contrato de prestação de serviços, preponderando à paridade entre os litigantes, inexistindo garantias e direitos sociais trabalhistas.”
8 BARBOSA, Attila Magno e Silva e et al. “PEJOTIZAÇÃO”: PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO, DAS RELAÇÕES SOCIAIS E DAS RELAÇÕES HUMANAS. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 2/2015. Disponível em https:// periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/20184/pdf.
A jurisprudência já vem pacificando o seu entendimento quanto a “pejotização” a fim de considerá-la como uma forma de contratação fraudulenta perante a esfera trabalhista, pois o trabalhador é excluído de seus direitos e proteção conferidos pelo Direito do Trabalho.
Ressalte-se que o direito do trabalho, apoiado nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, do valor social do trabalho e do pleno emprego, que corroboram a justiça social, deve proteger toda a sociedade. Por tal razão, é necessário combater estas modalidades de contratação fraudulenta como forma de efetivar a justiça social.
CONCLUSÃO
A evolução da sociedade global tende a diversificar cada vez mais as modalidades de esportes já conhecidas, e inclusive criar outras completamente novas, como acontecera no surgimento do tema deste presente estudo, os eSports.
O surgimento da internet acarretou na criação de uma nova modalidade esportiva, com um enorme investimento financeiro em todo o mundo, trazendo ainda mais desafios para a sua manutenção.
Cabe a nós, operadores do Direito, garantir que a Lei evolua de forma simultâneaà sociedade, a fim de garantir a proteção e segurança jurídica para os pró-players, que hoje, apesar da pouca idade, são vistos como modelos a serem seguidos por pessoas ainda mais novas.
Frente a esse contexto, o presente estudo conclui que estamos diante de uma nova fase do desporto brasileiro. Essa fase é essencialmente e primordialmente digital, tecnológica e conectada mundialmente, indo de encontro ao esporte tradicional, onde a tecnologia é aplicada na atividade esportiva.
STATS & INFO, ESPN. Juventude importa? Confirma a média de idade dos atletas de esports
ESPN. Disponível em: http://www.espn.com.br/noticia/729490_juventude-importa- confira-a-media-de-idade-dos-atletas-de-esports#:~:text=A%20idade%20m%C3%A9dia%20dos%20 principais,jovem%3A%2021%2C2%20anos.&text=Super%20Smash%20Bros.,-Wii%20U%20 %C3%A9 .
BRASIL. Lei 9.615/98, 24 março 1998. DOU, Brasília, 24 mar. 1998. Institui normas gerais sobre desporto e dá outras providências.
MIGUEL, Ricardo Georges Affonso. O ENQUADRAMENTO JURÍDICO DO ESPORTE ELETRÔNICO
Edição 1. São Paulo: Quartier Latin, 2019.
BARBOSA, Attila Magno e Silva e et al. PEJOTIZAÇÃO”: PRECARIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO, DAS RELAÇÕES SOCIAIS E DAS RELAÇÕES HUMANAS. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 10, n. 2/2015. Disponível em https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/ view/20184/pdf.
AS ESPECIFICIDADES DO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO DOS ATLETAS PROFISSIONAIS
O meio ambiente do trabalho é o local onde os seres humanos passam a maior parte do tempo de sua vida, sendo certo o entendimento de que o meio ambiente laboral exerce influência direta na saúde psicofísica dos trabalhadores. Desta forma a compreensão e garantia do meio ambiente do trabalho equilibrado é fundamental para a garantia de direitos básicos dos seres humanos, tais como direito à saúde, à segurança e à higiene. Desta forma, o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado deve ser compreendido como direito fundamental para a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana. O meio ambiente do trabalho dos atletas profissionais difere dos ambientes laborais dos trabalhadores comuns. Nesse sentido, a falta de compreensão do meio ambiente do trabalho de um atleta profissional dificulta a efetivação do direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado para a categoria. Usualmente, os atletas profissionais, em especial os de alto rendimento, são tratados pela sociedade como heróis ou grandes astros, sendo avaliados pelo seu desempenho esportivo em espaços e ambientes exclusivamente de competição. Contudo, o meio ambiente do trabalho de um atleta profissional é muito mais complexo, sendo necessário à sua melhor compreensão para garantia do direito fundamental ao meio ambiente do trabalho equilibrado.
Palavras-chave
Atleta Profissional - Direito Fundamental - Direito à Saúde - Meio Ambiente do Atleta Profissional
Guilherme Augusto Assis Dadalto
Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP (FCHS/UNESP). Membro cofundador do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da UNESP Franca (GEDiDe). E- mail:guilhermeadadalto@gmail.com
INTRODUÇÃO
O meio ambiente do trabalho de um atleta profissional de futebol é extremamente distinto dos trabalhadores ordinários que exercem sua atividade laboral em ambientes industriais ou comerciais. As especificidades do meio ambiente do trabalho de um atleta profissional dificultam a sua compreensão e a efetivação do meio ambiente do trabalho equilibrado. Nesse sentido, o presente trabalho se utilizará como método de procedimento, a técnica de pesquisa bibliográfica em materiais publicados, e como método de abordagem, o método dedutivo, visando elucidar algumas das especificidades do meio ambiente do trabalho de atleta profissional que dificultam a efetivação do direito fundamental ao meio ambiente do trabalho equilibrado.
No primeiro capítulo, o trabalho abordará o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado como direito fundamental, trazendo os aspectos e princípios que garantem efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana através da garantia de um ambiente de trabalho salubre e equilibrado.
Em um segundo momento, o trabalho abordará o ambiente do esporte e quais são algumas das especificidades do meio ambiente do trabalho do atleta profissional do que diferem e dificultam a sua compreensão para efetivação do direito fundamental ao meio ambiente do trabalho equilibrado.
Desta forma, o presente trabalho pretende compreender como a alta competitividade, atrelada a questões de popularidade, bem como ao uso excessivo dos limites físicos do corpo podem influenciar de forma negativa na garantia do direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado aos atletas profissionais.
1. O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO EQUILIBRADO
José Afonso da Silva (1995) disserta que o meio ambiente do trabalho é o lugaronde o ser humano passa grande parte do tempo de sua vida, sendo o ambiente com grande influência na qualidade de vida do trabalhador.
Conforme preceitua Otávio Pinto e Silva (2004), as grandes mudanças na sociedade advindas pela globalização interferiram diretamente nas relações de trabalho, bem como são responsáveis pela extinção e criação de diversas profissões. A Declaração de Estocolmo de 1972 é um marco legislativo pela proteção doambiente de trabalho equilibrado, sendo que a busca incessante pela garantia de direitos basilares aos trabalhadores, como acabam por influenciar o desenvolvimentode estudos com a finalidade de proteção ao meio ambiente do trabalho (PADILHA, 2011).
Nota-se que Declaração de Estocolmo elucidou o tema do meio ambiente do trabalho equilibrado, sendo o considerado um marco legislativo que gerou influência direta para as constituições nacionais que foram promulgadas à sua época, sendo regulado meio ambiente do trabalho equilibrado como direito fundamental, conforme previsto na Constituição Federal (CF) do Brasil de 1988 (SILVA, 2007).
1.1. A noção do meio ambiente do trabalho equilibrado
A Constituição Federal, prevê no artigo 255 que o meio ambiente deve ser considerado o bem de uso comum da popução e fundamental para a garantia da qualidade de vida dos seres humanos. A Lei 6.938/1981 desenvolve o raciocínio sobreo instituto do meio ambiente como um conceito jurídico aberto, sendo plenamente aplicável sua proteção jurídica sob todos os seus aspectos
(ALMEIDA, 2017).
Dentre os tipos de meio ambiente garantidos pelo ordenamento jurídico brasileiro, o enfoque do presente trabalho é análise da noção de meio ambiente do trabalho.
É importante observar que apesar das divergências doutrinárias, entende-se por não adequada a conceitução restritiva do instituto do meio ambiente do trabalho, visto que, seus aspectos são subjetivos. Desta maneira, é recomendável não seja realizada uma conceitução estática, sendo prudente e adequado o estudo de uma noção do meio ambiente do trabalho onde todos os tipos de ambientes laborais, por mais variados e específicos que sejam, possam ser incorporados pelo instituto e por sua proteção constitucional. (ALMEIDA, 2017).
É importante uma proposta de noção do meio ambiente do trabalho, sem restrições ou enrigessimentos ao instituto jurídico, sendo objeto de estudo de uma forma dinâmica, e com compreesão extensiva. (MARANHÃO, 2016).
Sendo assim. para Guilherme Guimarães Feliciano (2011), a noção de meio ambiente do trabalho deve ser compreendida pelo conjunto de influência e interaçõesde ordem física, biológica, psicológica, ambiental, estando ou não submetido ao poderdiretivo do empregador.
Desta forma, o conhecimento da influência em que o meio ambiente do trabalho exerce na vida dos seres humanos, com o viés subjetivo e abrangente que ocompõem, é que se faz necessária a proteção do meio ambiente do trabalho equilibrado para se ter a garantia de direitos básico, como o da saúde, higiene e segurança para o trabalhador (ALMEIDA, 2017).
A noção de saúde é outro instituto fundamental para compreensão do presente trabalho, sendo apontado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1946, como “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de afecções e enfermidades” (OMS, 1946).
A noção de saúde influencia diretamente na concepção da Convenção nº 155da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1983, ratificada pelo ordenamentojurídico brasileiro pelo Decreto 1.254/94, onde determina que a busca pela saúde, relacionado ao trabalho, deve abranger não somente a ausência de doenças, mas a ausência de elementos físicos e mentais que afetem a saúde do trabalhador (MARANHÃO, 2016).
Sendo assim, a busca pelo meio ambiente do trabalho equilibrado deveabranger a noção de meio ambiente do trabalho de forma extensiva, sem restrições, na busca incessante pela garantia da saúde, segurança e higiene do trabalho, em todas as esferas e formas de meio ambiente do trabalho, bem como sendo direito fundamental previsto na CF de 1988, na garantia do princípio da dignidade da pessoa humana. (MARANHÃO, 2016).
1.2. A meio ambiente do trabalho equilibrado como direito fundamental.
Os direitos fundamentais são institutos jurídicos advindos da necessidade de controle de excessos praticados pelo poder estatal, bem como para garantia de direitos basilares que garantem a condição humana e a convivência harmônica de uma sociedade. (ALMEIDA, 2017).
No âmbito do direito positivo, os direitos fundamentais são aqueles quegarantem o convívio harmônico, igualitário e digno entre os seres que convivem em sociedade. (SILVA, 1992)
Para Salet (1998), os direitos fundamentais são de difícil conceituação, mas pode-se dizer que são aqueles que garantem a proteção ao princípio da dignidade dapessoa humana, sendo base e finalidade dos direitos humanos na busca incessante pela proteção da dignidade aos seres humanos.
Assim, de uma forma resumida, pode-se dizer que os direitos fundamentais são direitos garantidos na Constituição Federal com a intenção de assegurar a convivência harmônica através da
efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana (ALMEIDA, 2017).
O direito fundamental ao meio ambiente equilibrado acaba por ser consolidadono ordenamento brasileiro com o advento da Constituição Federal de 1988. O direito ao meio ambiente equilibrado tem a finalidade de proteger a influência de ambientes desequilibrados na vida dos seres humanos. (PADILHA, 2011).
Por ser bem de uso comum da população e necessário para o desenvolvimentoda qualidade de vida, o meio ambiente do trabalho equilibrado deve ser protegido, conforme previsão do artigo 255 e artigo 200, inciso VII da Constituição Federal. (ALMEIDA, 2017).
Assim, é no artigo 255 da CF que se tem o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado. Sendo assim, a proteção ao meio ambiente do trabalho equilibrado se faz necessário através do instituto dos direitos fundamentais pois apresenta a finalidade de proteção ao ser humano, a dignidade da pessoa humana, visto que, regula direitos essenciais do trabalhador, tais como saúde, higiene e segurança (ALMEIDA, 2017).
O meio ambiente do trabalho equilibrado como direito fundamental se justificapela proteção da qualidade de vida do trabalhador que influencia e é influenciado diretamente pelo ambiente laboral, sendo necessário a proteção do ambiente equilibrado como fora de garantir a humanização do trabalhador (PADILHA, 2011).
2. AS ESPECIFICIDADES E OS DESAFIOS DO MEIO AMBIENTE
DO TRABALHO EQUILIBRADO DE UM ATLETA PROFISSIONAL
3. Dentre diversas categorias de trabalhadores, é notório que o atleta profissional,em especial os de alto rendimento, acaba por ser uma categoria específica, sendo absolutamente diferente do trabalhador comum, que
exerce sua atividade laboral emambientes comerciais ou industriais. Nesse sentido, para compreensão do presente trabalho, entende-se que o atleta profissional é aquele que pratica modalidadeesportiva como meio de sua subsistência. (ZAINAGHI, 2000).
Diferente de um trabalhador comum, a disposição de um atleta profissional para alcançar seus objetivos profissionais acaba por ser a consequência do nível de alcance da capacidade física e psíquica frente ao nível de capacidade da execução de suas habilidades esportivas (GRANEELL; CEVERA, 2003).
Além do ambiente de competição, o atleta depende de treinamentos exaustivos, onde o atleta deve reagir aos estímulos esportivos, sendo necessário levar em consideração as informações fisiológicas, biomecânicas, psicológicas, sociais, etc. para o desenvolvimento esportivo. (BOMPA, 2002).
Diante dessa especificidade, não por coincidência, a legislação brasileira regulou através da Lei 9615/98, também conhecida como “Lei Pelé”, questões relacionadas ao esporte, e especialmente ao esporte como atividade profissional. Asespecificidades são tantas que, diante de sua popularidade extrema, a Lei 9.615/98 faz até mesmo distinções aos atletas profissionais da modalidade de futebol e de demais modalidades (ZAINAGHI, 2000).
Sendo assim, é evidente que a prática da atividade profissional de um atleta não se equipara as demais, especialmente no que tange a modalidade de futebol, visto que, se trata da prática do esporte mais popular do mundo, sendo os atletas considerados ídolos, estrelas, sendo amados e odiados por seus torcedores ou rivais,o que implica em consequências diretas no meio ambiente e no dia a dia desses atletas (ZAINAGHI, 2014).
2.1. A competitividade no meio ambiente do trabalho do atleta profissional.
É extremamente importante analisar que o es-
porte de alta performance exige dos atletas, desenvoltura com padrão atlético do corpo. Nesse sentido, o ambiente esportivo apresenta viés muito competitivo, sendo comum a pressão por resultados e estatísticas de desempenho. (MUNIZ; RIBEIRO, 2020).
A compreensão do conceito de atleta como um herói com grande vigor físico implica no impedimento da compreensão do atleta como ser humano, sendo quase que proibido a demonstração de sofrimento ou demais sentimento de tristeza pelos atletas profissionais (MEDEIROS, 2020).
Assim, o meio ambiente esportivo proporciona e incentiva a competitividade extrema, sendo o fato de risco para o desenvolvimento de transtornos do mais variados, até mesmo de transtornos mentais com problemas alimentares na busca pelo padrão atlético. (FORTES; ALMEIDA; FERREIRA, 2013)
No ambiente laboral de um atleta profissional, é comum o uso de palavras como conquistas, troféus, rankings, vitórias e performance. Por vezes, o atleta é compreendido como um exemplo de herói, quase de um sobre-humano, e deixa de lado aspectos inerentes a vida humana (PIERI; GARCIA, 2020).
Nota-se que ao ser submetido a uma rotina de treinos e jogos com habitualidade, os atletas acabam por se afastar das suas relações familiares e demaissentimentos inerentes a condição humana, como de tristezas, angustias e incertezas.(RÚBIO, 2011)
O ambiente competitivo exige psicologicamente dos atletas profissionais, de forma progressiva ao aumento de sua performance, sendo submetidos a sentimentos de frustração, raiva, ansiedade e insegurança (LAVOURA; ZANETTI; MACHADO, 2008).
Não por coincidência, cada vez é mais comum casos de depressão e transtornos mentais com atleta profissionais. Há inclusive casos recor-
rentes de suicídio, abusos sexuais, etc., e que chamam a atenção da grande mídia e demonstra a importância de serem analisadas as questões ambientais inerentes a saúde psicofísica dos atletas. (PIERI; GARCIA, 2020).
2.2. A saúde física de atleta profissional.
Diferentemente daquilo que o senso comum preceitua em relação a saúde dos atletas, a prática profissional no esporte não é necessariamente saudável (MAIOLINI;BARRETO, 2019).
O nível de exigência das demandas esportivas na busca por resultados implica em treinamentos excessivos e com grande carga psicofísica, levando a todo instante,o corpo e a mente do atleta profissional ao limite. (FILGUEIRAS, 2020).
Nota-se que desde a formação dos atletas, há elevados índices de lesões físicas, onde adolescentes de 14 ou 15 anos de idade, são submetidos com recorrência a cirurgias médicas após sofrerem com lesões relacionadas a prática desportiva. (FILGUEIRAS, 2020).
É certo que todos os trabalhadores dependem de suas condições físicas para o desenvolvimento de sua profissão. Entretanto, no caso do esporte como atividade profissional, a dependência é ainda maior, sendo considerada uma atividade de riscocom grandes índices de doenças físicas relacionadas ao trabalho, equiparando-se as da construção civil e a da mineração (MAIOLINI; BARRETO, 2019).
Os limites físicos dos atletas são colocados em risco a todo instante, seja em ambiente de competição ou treinamento, visto que, é comum estarem submetidos a rotinas de treinamentos excessivos, com lesões e cansaços. (LAVOURA; ZANETTI; MACHADO, 2008).
É visando a garantia da saúde dos atletas profissionais que o artigo 45 da Lei9.615/98 prevê a obrigatoriedade de contratação de seguro esportivo de vida e de acidentes pessoais, vinculado à atividade desportiva para mitigar os danos que podem ser causados pelo desenvolvimento da prática esportiva de maneira profissional.
(MAIOLINI; BARRETO, 2019).
2.3. As especificidades gerais da organização do meio ambiente do trabalho doatleta profissional.
Além do ambiente ser distinto de um trabalhador comum, a jornada de trabalho dos atleta profissional é absolutamente distinta das 8 horas diárias ou 44 horas semanais trabalhadas, sendo inegável a sua distinção de um trabalhador convencional (COUTINHO, 2018).
Sendo assim, apesar da Lei 9615/98 regular a jornada de trabalho do atleta profissional, não é simples a sua organização, visto que, habitualmente os atletas estão em regime de concentração, treinamentos, recuperação física, viagens, etc. (COUTINHO, 2018).
A legislação específica quanto aos atletas profissionais de futebol, preceitua egarante o descanso semanal remunerado, onde, preferencialmente deve ser concedido nas 24 horas subsequentes ao dia de competição. Contudo, a especificidade do meio esportivo, implica grande dificuldade para o cumprimento desse direito pelos atletas profissionais. No futebol, por exemplo, é comum que equipes brasileiras disputem duas partidas por semana, sendo impossível a concessão de dois dias de repousos remunerados. Ademais, há a necessidades dos atletas profissionais realizaram treinamento regenerativo no dia subsequente ao evento de competição, outro ponto que dificulta o cumprimento da legislação (CHIMINAZZO, 2014).
As férias apesar da previsão legal de 30 dias anuais era objeto de discussão entre os atletas em um passado recente, visto que, nem sempre era possível a sua
concessão em uma única oportunidade pelo calendário das competições.(CHIMINAZZO, 2014).
Assim, o desenvolvimento da vida de um atleta profissional de alto rendimentopassa pelas exigências físicas, psicológicas e sociais durante a sua formação esportiva, onde habitualmente, os atletas são excluídos de uma plena
integração social, visto que, estão envolvidos em rotinas sistematizadas de treinamento, com pouco descanso, muitas viagens e competições (LAVOURA; ZANETTI; MACHADO, 2008).
CONCLUSÃO
No decorrer da análise do presente trabalho, buscou-se estudar o instituto do meio ambiente do trabalho e elencar as especificidades do meio ambiente laboral dosatletas profissionais que dificultam a efetivação do direito fundamental ao meioambiente do trabalho equilibrado.
Diante do levantamento bibliográfico concluiu-se que meio ambiente do trabalho equilibrado é um direito fundamental, garantido pela Constituição Federal, e necessário para efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana através da garantia do direito à saúde, à higiene e a segurança de todos os trabalhadores.
Ademais, o presente trabalho pode elencar que a compreensão do instituto domeio ambiente do trabalho não deve ser estudada de maneira estática, sendorecomendável o estudo abrangente do instituto através de uma noção do que é meio ambiente do trabalho. Assim, todos os tipos e características que incorporam o ambiente de trabalho devem ser estudados e protegidos pelo instituto, seja físico, psicológico, geográfico, etc.
Em relação ao meio ambiente de um atleta profissional, o trabalho concluiu que a especificidade da categoria dificulta a interpretação daquilo que é o meio ambiente do trabalho de um atleta profissional, e por consequência, aumenta o desafio da efetivação do meio ambiente do trabalho equilibrado aos atletas.
É comum a compreensão restritiva do meio ambiente do trabalho dos atletas profissionais, onde por vezes, a análise acaba por ser restrita ao ambiente de competição, não sendo analisado ambiente de treinamento, concentrações, tratamentos médicos e até mesmo toda a pressão psicológica exagerada pela busca do resul-
tado esportivo.
A alta competitividade, a popularidade, as especificidades formais e altadependência do porte físico dos atletas precisam ser levadas em consideração durante a análise do ambiente laboral do atleta profissional.
Outro ponto que merece ser observado é a rotina e dedicação necessária para a formação e manutenção da condição de um atleta de alto rendimento, sendo habitualmente inseridos em rotinas sistematizadas de treinamento, sendo a todo instante levados ao extremo físico e psicológico, e por vezes, excluídos do convívio social externo ao ambiente esportivo.
Portanto, diante da análise do presente trabalho, conclui-se que o meioambiente do trabalho dos atletas profissionais é extremamente específico, sendo repleto de condições que dificultam a efetivação do direito fundamental ao meio ambiente do trabalho equilibrado, sendo necessário a sua compreensão geral de suascaracterísticas para que seja garantidos aos atleta profissionais o direito à saúde, higiene e segurança durante a relação de trabalho.
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ANÁLISE JURÍDICA SOBRE AS APOSTAS ESPORTIVAS NO BRASIL
As recentes discussões no Congresso Nacional acerca das apostas esportivas reacenderam os debates acerca da sua legalidade e de um marco regulatório das apostas esportivas, em consonância ao que tem ocorrido ao redor do mundo. Os debates são sempre marcados pela forma acalorada com que o tema é travado entre os especialistas e parlamentares, contrários e favoráveis à legalização dos jogos de azar, em um contexto geral, muitas vezes também de maneira rasa e sem os devidos conhecimentos técnicos e sem o conhecimento dos efetivos resultados da medida. Neste condão, a especificidade do assunto demanda um estudo aprofundado da prática e da sua natureza, requerendo, inclusive, um tratamento jurídico diferenciado para a correta adequação demandada pela modalidade dos jogos de azar. Visa o presente trabalho apresentar o contexto em que os jogos de azar, em especial, a diferença destes para o conceito das apostas esportivas, enquanto um fenômeno social e analisar o tratamento dado pela legislação brasileira, junto da possibilidade de sua legalização.
Palavras-chave
Apostas Esportivas - Sports Betting - Jogos de Azar
Giulio Zanone Eugenio
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo - FDSBC. Pós-graduando em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil – ESA OAB-SP. Procurador do STJD da Liga Nacional de Basquete – NBB, Procurador do TJD da Liga Paulista de Futsal. Membro efetivo da Comissão Especial de Direito Desportivo da OAB São Paulo.
INTRODUÇÃO
A paixão pelo esporte é intrínseca ao homem e está contida em um seleto rol de atividades que transcenderam as gerações da humanidade, sendo hoje uma forma de saúde, educação e entretenimento.
Esta chama pelo esporte é tão intensa que produz muitas faíscas. Um jogo de futebol, que é praticado por 90 minutos, pode repercutir por dias, semanas e até meses. A prática esportiva faz parte das conversas, discussões, reuniões em casa com os amigos para assistir jogos e inúmeras outras situações do dia-a-dia de uma pessoa comum.
Em decorrência dessa alta demanda gerada pelo esporte, alinhado ao exponencial crescimento da tecnologia das últimas décadas, é natural que as apostas tenham encontrado um setor que anseia cada vez mais por formas de garantir, além do entretenimento, uma forma de gerar receita com a exploração das apostas esportivas.
Em um país que vive o esporte, em especial o futebol, de maneira intensa, em que as pessoas entendem, ou acham que entendem, muito sobre o assunto, os sites de apostas esportivas se tornaram cada vez mais populares1
Difícil hoje encontrar um time de futebol que não ostente em seu uniforme alguma das casas de apostas como sua patrocinadora. Em 2021, 19 dos 20 clubes que disputaram a Série Ado Campeonato Brasileiro de futebol eram patrocinados por sites de apostas esportivas2.
1 BIASI, Rafael. Apostas Esportivas: Importantes Dados sobre o Mercado e Apostadores Brasileiros. Brasil Fernandes Adv. 2021. Disponível em: <https://www.brasilfernandes.adv.br/ post/apostas-esportivas-importantes- dados-sobre-o-mercado-e-apostadores-brasileiros>. Acesso em 18 jun. 2022.
2 Estado de Minas. Sites de apostas patrocinam 19 dos 20 clubes da Série A do Brasileirão. 2021. Disponível em:<https:// www.em.com.br/app/noticia/empresas/2021/08/26/interna-empresas,1299654/sites-de-apostas- patrocinam-19-dos-20-clubes-da-serie-a-do-brasileirao.shtml>. Acesso em 24 fev. 2022.
Desde 1941, como abordaremos no presente trabalho, a Lei de Contravenções Penais proíbe os jogos de azar no Brasil. Vivemos, assim, oitenta anos de longas discussões acerca dos conceitos e definições trazidas pelo legislador, que atingiram também as apostas esportivas.
Evidencia-se, portanto, que a discussão no Brasil não é recente, mas ainda muito prematura. As apostas esportivas enfrentam, além das questões legais, o preconceito e falsas premissas acerca de sua regulamentação.
Apostas esportivas estão envolvidas no mesmo contexto que os jogos de azar? Quais situações são definidas e proibidas pela legislação? O presente artigo tem por objetivo elucidaros questionamentos levantados acerca das apostas esportivas, desde o surgimento e crescimento desse mercado, quanto do enquadramento jurídico da prática à luz do ordenamento pátrio.
1. CONCEITO E SURGIMENTO DAS APOSTAS ESPORTIVAS
Podem as apostas esportivas serem definidas como uma aposta sobre o resultado de determinado jogo que, caso concretizado, o indivíduo recebe o que apostou acrescido de um valor extra, e caso não, perde tudo aquilo que apostou. Ainda, a definição é trazida pela própria Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018:
“Art. 29 – §1º A modalidade lotérica de que trata o caput deste artigo consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais de temática esportiva, em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico.”
Mais importante do que a mera definição, necessário o entendimento acerca do surgimento da aposta esportiva no Brasil e o contexto em que ela está inserida para o avanço do presente trabalho.
Os jogos de azar são uma prática social tão an-
tiga quanto a própria humanidade. Em registros históricos de pinturas ou anotações em paredes, os arqueólogos dizem que o ato de apostar ou simplesmente jogar com outra pessoa com o objetivo de ganhar algo, é uma prática milenar3
As apostas são datadas da Grécia antiga, tendo como palco os Jogos Olímpicos da Antiguidade4. As primeiras Olimpíadas incluíam em seu calendário diversas modalidades, entre elas, maratonas, salto em distância, lançamento de dardo e disco, wrestling e boxe. Em paralelo, os espectadores apostavam valores sobre os resultados de cada disputa.
No Brasil, a Loteria Esportiva surgiu através do Decreto-Lei nº 594, de 27 de maio de 1969, instituída pelo então presidente Artur Costa e Silva. Seguindo o sucesso das loterias na Europa, a paixão pelo futebol fez com que a Loteria Federal vendesse, em sua inauguração, 100 mil bilhetes, com um valor de premiação de 200 mil cruzeiros.
Como curiosidade histórica, não houve ganhador no jogo inaugural, tudo por causa deuma famosa “zebra”5. O termo já utilizado como sinônimo de surpresa em jogos de azar protagonizou a estreia da Loteria Esportiva no Brasil. Para levar o prêmio, o apostador deveriaacertar o resultado de 13 jogos, disponibilizados no cartão de aposta, escolhendo entre vitória do time da casa, empate e vitória do time visitante. Ocorre que na partida entre Esportivo x Grêmio, onde o segundo era tido como amplo favorito, os donos da casa
3 PERAZZO, Denner. Aposta esportiva: evolução da antiguidade ao digital. Inset, 2022. Disponível em: <https://www. inset.com.br/dinheiro/aposta-esportiva-evolucao-da-antiguidade-ao-digital>. Acesso em 17 jun. 2022https://www.inset. com.br/dinheiro/aposta-esportiva-evolucao-da-antiguidade-ao-digital
4 Blog do Juares. Conheça a tradição das apostas na Europa. 2020. Disponível em: <https://blogdojuares.com.br/noticia/48778/conheca-a-tradicao-das-apostas-na-europa.html#gsc.tab=0>. Acesso em 17 jun. 2022
5 A zebra se tornou tão popular que ganhou destaque no “Fantástico”, programa de maior destaque da TV Globo e do país, passando a partir de 1978, durante o quadro que eram apresentados os resultados da Loteria Esportiva,figurar como apresentadora.
venceram a partida por 1x0.
Ao longo dos anos a Loteria Esportiva foi perdendo prestígio, afetada desde a inflaçãoda década de 1970, fazendo com que os apostadores deixassem de tentar a sorte, até os escândalos de corrupção, como publicado pela Revista Placar6, em 1982, dirigida pelo jornalista Juca Kfoury, o qual expos jogadores, técnicos, dirigentes e até árbitros envolvidos.
Em 2006, na tentativa de sanear os débitos fiscais dos clubes profissionais de futebol do Brasil, em 15 de setembro, por meio da Lei nº 11.345, foi criada uma nova loteria: a Timemania.
Também instituída sob a forma de concurso de prognósticos, à época de sua aprovação, a Timemania foi considerada a salvação para os times brasileiros, afundados em dívidas tributárias7, 22% das receitas seriam destinadas aos clubes para quitação de dívidas com a União em FGTS, INSS e Receita Federal. Ainda, a Timemania visava incrementar a arrecadação estatal para a realização de programas governamentais, bem como financiar o desenvolvimento do desporto nacional.
No entanto, ao longo dos anos, a loteria foi cada vez mais caindo em descrédito para apostadores, clubes e governo, uma vez que nunca rendeu os valores esperados à época da suacriação.
2. TRANSFORMAÇÃO TECNOLÓGICA E O IMPACTO NAS APOSTAS ESPORTIVAS
A internet revolucionou diversas áreas da so-
6 VALENTE, Rafael. 'Hora de o povo ficar rico', a origem da zebra e máfia: os 50 anos da Loteria Esportiva. ESPN, 2020. Disponível em: <https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/ id/6866153/hora-de-o-povo-ficar-rico-a- origem-da-zebra-e-mafia-os-50-anos-da-loteria-esportiva>. Acesso em 24 fev. 2022.
7 Clubes vêem aprovação da Timemania como salvação. NSC Total, 2006. Disponível em: <https://www. nsctotal.com.br/noticias/clubes-veem-aprovacao-da-timemania-como-salvacao>. Acesso em: 24 fev. 2022.
ciedade e com o mercado de apostas não foi diferente, a globalização propiciou a proliferação dos apostadores ao redor do mundo.
A partir dos anos 1990, impulsionadas pela evolução da qualidade da internet e das máquinas, as empresas ligadas às apostas esportivas passaram a se espalhar por praticamente todos os países, migrando para o mundo digital, com exceção àqueles que de maneira breve passaram a impor restrições ao setor.
A crucial vantagem das operadoras de apostas esportivas online sobre os bookmakers8 tradicionais encontra-se no fato de que o custo para o seu funcionamento é substancialmente menor, visto que não precisam possuir uma sede física e estão, na grande maioria, instaladas em paraísos fiscais.
Ademais, diante da facilidade de acesso à rede, qualquer pessoa com um computador ou smartphone, um razoável conhecimento de como usá-lo e um cérebro capaz de entender a mudança das probabilidades, está apto a apostar9
Feitosa, com muito brilhantismo, trata acerca deste assunto. Pode para alguns parecer uma loucura abandonar sua carreira, muitas vezes estável, para ingressar no mundo das apostasem busca de renda. Ocorre que, entre os atrativos, seja para apostadores jovens quanto para experientes, está a possibilidade de atuar diretamente do conforto de sua residência, além de iniciar a atuação neste universo com baixo investimento10
8 Trata-se de uma pessoa ou empresa que aceita e intermedia as apostas de um evento futuro. Ele é o responsável por apresentar as remunerações de cada aposta para o mercado, organizar as diferentes visões dos jogadores em um mesmo local, segurar o dinheiro de todas as apostas e ao final do evento pagar a remuneração da aposta ao seu vencedor. Em contrapartida, o Bookmaker recebe um percentual em dinheiro de todas as apostas.
9 ATHERTON, Mike. Gambling. Londres: Hodder & Stoughton, 2006
10 FEITOSA, Luis. Mercado em alta: o crescimento das apostas esportivas no Brasil. Torcedores, 2020. Disponível em: <https://www.torcedores.com/noticias/2020/07/mercado-em-alta-o-crescimento-das- apostas-esportivas-no-brasil>. Acesso em: 28 fev. 2022.
Ainda, se antes apenas os resultados finais dos eventos esportivos poderiam ser objetode aposta, como mencionado acerca do início das apostas esportivas no Brasil, agora, todos osfatos que acontecem durante o seu andamento igualmente o podem. Por exemplo, os indivíduos podem apostar em qual jogador marcará o primeiro gol em uma partida de futebol, quantos escanteios terão durante o primeiro tempo de um jogo ou, expandindo para outros esportes, por quantos pontos a equipe A vencerá a equipe B em uma partida de basquete.
Destaca-se que diferente da forma como ocorria no século passado, agora as apostas podem acontecer ao vivo. Isto se deve ao fato de as novas tecnologias permitir que os sites continuem aceitando apostas, inclusive, após o início das partidas. No futebol e no basquete tal prática também é bastante comum.
Se no passado as apostas existiam tão somente sob o sistema parimutuel11, as apostasvia internet funcionam, atualmente, no modelo de odds ou cotações.
Em suma, as odds, também chamadas de cotações, são a chance ou probabilidade de que um evento aconteça, seja em uma partida de futebol, de vôlei, basquete ou até mesmo umacorrida de cachorros ou cavalos. Elas são calculadas a partir da análise feita pelas casas de apostas, que apontam a perspectiva daquele duelo. As casas de apostas representam uma odd de três formas:
11 Aposta Parimutuel (do francês pari mutuel, "aposta mútua") é um sistema de apostas em que todos os valores são depositados e agrupados em um único montante (“pool”) e, ao final, após descontados os valores legais e da casa de apostas, a premiação total é rateada entre os vencedores, muito comum nas corridas de cavalo e em alguns países a única forma legal de aposta disponível, como ocorre no Brasil com as loterias federais. Na Timemania, por exemplo, do total dos recursos arrecadados com o concurso, 46% são destinamos à premiação, 22% para remuneração dos clubes de futebol que aderem ao programa, 20% para o custeio e manutenção do serviço, 3% para o Ministério do Esporte, 3% para o Fundo Penitenciário Nacional, 3% para o Fundo Nacional da Saúde, 2% para os Comitês Olímpico e Paraolímpico Brasileiro e 1% para o orçamento da seguridade social.
Decimais, Frações e Modelo Americano. Elas parecem diferentes, mas são no fundo a mesma coisa. Além de dados matemáticos, outros matizes também são incluídos no processo de fixação das odds, como a campanha das equipes, a lesão de jogadores importantesa motivação dos jogadores, entre outros.
O valor da premiação, nesse caso, é representado pela quantidade dispendida pelo apostador multiplicado pela cotação correspondente. Para um melhor entendimento, vejamos um exemplo prático:
na apenas como uma espécie de corretora, possibilitando aos seus clientes apostarem uns contra os outros. Dessa forma, as casasatuam como simples intermediárias, arrecadando o dinheiro apostado e redistribuindo aos ganhadores, estabelecendo uma determinada comissão por este serviço12
Para melhor elucidação, podemos utilizar o mercado financeiro, onde um apostador (comparado à figura de um investidor) residente em um país pode arriscar (investir) em resultados esportivos (ações) acontecendo em territórios muito distantes do seu, por meio dos sites (bolsas) sediadas num terceiro país. Por exemplo, pode um brasileiro, sem quaisquer dificuldades, apostar em uma partida válida pelo campeonato armênio de futebol, por meio da operadora Bet365, empresa sediada no Reino Unido.
O Brasil possuía uma odd a 1.22 para vencer a Costa Rica. Isso significa que a cada R$ 1,00 apostado, havia um retorno de R$ 1,22 na aposta vencedora, ou seja, retorno do R$ 1,00 apostado mais R$ 0,22 de lucro. O mesmo cálculo pode ser utilizado para as demais possibilidades de aposta.
Assim, é possível distinguirmos dois modelos de serviços disponibilizados pelas casas de apostas na internet. Majoritariamente, temos as empresas que operam sob o modelo do chamado Sportbook, nos quais os indivíduos apostam em determinados eventos, cujas probabilidades de resultados são determinadas pela própria casa, chamadas de cotas fixas. Portanto, o cliente aposta diretamente contra as casas de apostas.
O segundo formato funciona sob a forma de Exchanges, ou bolsas de apostas, de constituição similar ao mercado de ações, em que há valorização e desvalorização das ações. Aqui os preços são determinados pelos próprios apostadores, de acordo com a regras de ofertae demanda, ou seja, são cotas dinâmicas, e a operadora funcio-
Em meio a uma estrutura complexa das casas de apostas esportivas, criou-se um enorme impasse para os governos federais: afinal, como controlar uma atividade virtual, disponibilizada por empresas sediadas em outras jurisdições e suscetíveis a diferentes regulações?
Dessa forma, verifica-se diversos problemas de ordem política e econômica que, mais do que nunca, requerem respostas eficazes.
3. AS APOSTAS ESPORTIVAS À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Conhecido o surgimento das apostas esportivas no Brasil, passamos a analisar a forma com que o ordenamento jurídico brasileiro a encara, tecendo, então, breves críticas acerca da perspectiva adotada pelo legislador.
Preliminarmente, para melhor compreensão do tema, cabe conceituar o que são jogos de azar.
12 Sportsbook ou Exchange: qual opção escolher na hora de apostar?. VVale, 2021. Disponível em: <https://www.vvale.com. br/esportes/sportsbook-ou-exchange-qual-opcao-escolher-na-hora-de-apostar/>. Acesso em: 07 mar. 2022
Jogo, segundo o Dicionário Michaelis da língua portuguesa13, trata-se de “qualquer atividade recreativa que tem por finalidade entreter, divertir ou distrair”, da “competição ou passatempo desse tipo, em que de ordinário se arrisca dinheiro ou qualquer outra espécie de bem”. Evidencia-se, assim, dois conceitos distintos: por um lado, os jogos podem ser compreendidos como uma atividade lúdica, de diversão para os praticantes, mas por outro, podem também carregar uma extensão econômica, voltada à obtenção de lucro.
Azar, por outro lado, é sinônimo de lance adverso, acaso e eventualidade. De forma análoga, sorte é “força desconhecida e poderosa a que supostamente se atribuem os acontecimentos e o seu desenrolar e que independe da vontade do ser humano”.
Podemos notar que o caráter racional é ausente quando se trata de sorte ou azar, considerando-se um ambiente inteiramente fundado na aleatoriedade, ou seja, sem o fundamento uma de causa.
Este parece ser o objetivo do artigo 50, parágrafo terceiro, da Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei de Contravenções Penais). O dispositivo define os jogos de azar como aqueles em que “o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte”, assim dizendo, sem que haja possibilidade de o indivíduo realizar qualquer julgamento sobre o seu resultado se não de ordem subjetiva.
Embora a legislação criminal equipare “as apostas sobre qualquer outra competição esportiva” aos jogos de azar, conforme o artigo 50, parágrafo 3º, c, vislumbramos que esta última possui um conteúdo próprio e diverso.
Aposta, ainda segundo o Dicionário Michaelis é o “ajuste entre pessoas cujas opiniões divergem acerca de um fato (hipótese, suspeita etc.) que terá sua veracidade determinada posterior-
13 Definição de “jogo”. MICHAELIS. Disponível em: <https:// michaelis.uol.com.br/moderno- portugues/busca/portugues-brasileiro/jogo/>. Acesso em: 07 mar. 2022
mente, devendo aquela que não acertar ou não tiver razão pagar à outra uma quantia ou coisa determinada de antemão”. Consequentemente, as apostas esportivas verificam-se quando seu substrato material tem origem em algum evento ou fato esportivo.
Neste condão, foi ignorado pelo legislador que nas apostas esportivas os indivíduos realizam criteriosos juízos acerca das possibilidades de ocorrência de cada situação. Efetivamente, nos jogos puramente de azar os resultados dos eventos são ditadosexclusivamente pelo acaso, isto é, pelas regras de probabilidade. De outro modo, se tratando de apostas esportivas, os sujeitos efetuam rigorosas análises dos fatos relacionados aos esportes, tais como as prováveis escalações dos times, o momento das equipes no campeonato, bem como, as diversas outras estatísticas e informações disponíveis pelas mídias especializadas.
Portanto, enquanto o que se obtém através dos jogos de azar é determinado pela mecanicidade das máquinas ou pelo lançamento fortuito dos dados ou cartas, nas apostas esportivas o sucesso do apostador depende essencialmente da habilidade do apostador em fazer prognósticos precisos sobre os resultados dos eventos esportivos. É, assim, equivocado considerar a conduta de comprar bilhetes de loteria, sentar-se diante de máquinas caça-níqueis ou fazer a chamada “fezinha” na Mega-Sena com o ato de apostar em uma partida de futebol, por exemplo. Classificar de forma semelhante essas situações implica, necessariamente, em reconhecer, de forma indireta, a aleatoriedade dos resultados esportivos.
Mesmo que se reconheça a imprevisibilidade das partidas, pois, do contrário, tratar- se-á de autêntico caso de manipulação, elas estão longe de serem definidas pelas leis do acaso ou de terem seus resultados previamente determinados por leis matemáticas. Como exposto por Nelson Rodrigues14, “o começo de qualquer partida é
14 RODRIGUES, Nelson. Confira o quinto texto da série de crôni-
uma janela aberta para o infinito. Ao soar o apito inicial, todas as possibilidades passam a ser válidas”, mas, ao final, a vitória pertence à dedicação, à entrega e à competência dos competidores, ainda que tal desfecho seja inimaginável. Outra característica acerca da distinção entre os jogos e as apostas diz respeito à influência dos indivíduos na definição do resultado. Nesta, os indivíduos não concorrem ativamente para o evento, mas tão somente expressão a sua opinião sobre o fato futuro. De modo adverso, no jogo os sujeitos atuam diretamente, por meio das suas qualidades ou em razão da sorte, conforme arrematam Gagliano e Pamplona Filho15:
“A proximidade entre os dois institutos, porém, é evidente, notadamente pelo elemento comum da álea que os envolve, pois, apenas para recordar o velho clássico da corrida entre a lebre e a tartaruga, nem sempre o mais habilidoso ou capaz vence uma competição...
Há tanta afinidade entre eles que, na prática, muitas vezes acabamos fazendo referência a um quando pretendemos utilizar o outro. É o caso, por exemplo, quando dois amigos dizem “vamos apostas uma corrida?”. Isto, na verdade, não é propriamente uma aposta, mas, sim, um jogo, pois depende da participação efetiva dos contendores (habilidade, força ou velocidade) e não somente da sorte [ou da maestria em realizar prognósticos precisos]. Da mesma forma, fala-se em “jogar nos cavalos”, quando o indivíduo está realizando, de fato, apostas em corridas em um hipódromo”.
recorrente quando se fala em apostas esportivas: afinal, o brasileiro pode ou não ser responsabilizado criminalmente por apostar?
Em verdade, a Lei 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) proíbe os indivíduos de “estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o pagamento de entrada ou sem ele”.
Vemos, então, que a norma delimita quatro requisitos essenciais para tipificação da contravenção: a) ser jogo de azar, ou seja, estar diante de uma das situações previstas no rol do parágrafo terceiro, do artigo 50; b) ser a prática explorada economicamente; c) exercer a atividade em local público ou acessível ao público; d) não ter autorização legal. Portanto, se ausente uma ou mais destas imposições legais a prática não deve ser alcançada pelas sanções cominadas.
Podemos, ainda, entender que a principal característica da contravenção do jogo de azar não está no elemento sorte, mas reside na própria organização do jogo, ou seja, no fato de estabelecê-lo ou explorá-lo. Desta forma, se não tiver a figura do explorador não há que se falar em jogo de azar.
Fiuza16 resume bem a questão, discorrendo que é “errônea a ideia de ser proibido o jogo no Brasil. Afora os jogos proibidos, o que a Lei das Contravenções Penais proíbe não é ojogo em si, mas sua exploração econômica. O que não se permite é explorar jogo alheio, como fazem os cassinos. O simples fato de se jogar, mesmo que a dinheiro, é tolerado”.
Feito tais considerações, surge a questão mais cas de Nelson Rodrigues. Secretaria Especial do Esporte, 2014. Disponível em: <http://arquivo.esporte.gov.br/index.php/noticias/24-lista-noticias/46432- confira-o-quinto-texto-da-serie-de-cronicas-de-nelson-rodrigues>. Acesso em: 22 mar.
2022
15 Stolze, Pablo ; Pamplona Filho, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único. – 4. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020
O ponteiro ou o apostador, como prevê o parágrafo segundo do artigo 50 da Lei das Contravenções Penais, através da redação dada pela Lei n. 13.155 de 2015, incorrem na pena de multa de R$ 2.000,00 (dois mil reais) a R$ 200.000,00 (duzentos mil reais), por participar do jogo, mesmo que ocorra pela internet ou qualquer outro meio de comunicação.
16 FIUZA, César. Direito Civil: Curso Completo. – 22. ed. – Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2021.
A respeito das apostas esportivas online, tendo em vista que a internet faz parte do espaço público17, ou no mínimo facilmente acessível a este, o setor obedece às regras da Lei de Contravenções Penais, como bem assevera a própria lei.
Quanto a autorização legal, os jogos classificam-se em ilícitos e lícitos, subdividindo-se em tolerados e autorizados, ou legalmente permitidos.
Os jogos ilícitos, de maneira expressa, são aqueles proibidos pela Lei de Contravenções Penais, entre os artigos 50 e 58, nos quais inserem-se as apostas esportivas, como já tratamos.
Em paralelo, há jogos que pelo ordenamento jurídico tutelados.
Primeiramente, entre os tolerados e autorizados, cita-se os jogos tolerados, abordadospor Gagliano e Pamplona Filho18, como:
galmente permitidos, isto é, aqueles em que a lei confere a exigibilidade das dívidas, conforme prevê o artigo 814, § 2º, do Código Civil. Neste âmbito, encontram-se as loterias federais e as competições de natureza esportiva.
Por certo, o que se verifica é a imprecisão quanto aos critérios utilizados na categorização dos jogos lícitos e ilícitos. Enquanto algumas modalidades são autorizadas e mantidas pelo Poder Público, como as loterias esportivas, as apostas geridas por empresas privadas continuam ilegais pelo simples arbítrio estatal.
Todavia, mesmo com a falta de licença para atuar no país, as operadoras facilmente utilizam o meio eletrônico para disponibilizar os seus serviços aos brasileiros.
[...] toda modalidade de jogo ou aposta que não esteja tipificada é considerada lícita, como a “corrida apostada” entre amigos para ver quem chega primeiro, a rifa feita por uma comissão de formatura ou o “carteado a dinheiro” entre membros da família (fora, portanto, do âmbito de incidência do art. 50, § 4º, a, da LCP).
Em tal modalidade de jogo ou aposta há apenas a tolerância do ordenamento jurídico,pois, em que pese a aceitação de sua licitude, não se admite a produção total dos efeitos do negócio jurídico, gerando obrigações naturais, às quais também se aplicamas regras aqui tratadas.
Adiante, a respeito dos jogos autorizados, ou le-
17 DELARBRE, Raúl Trejo. Internet como expressão e extensão do espaço público. Revista Matrizes, vol. 2, n. 2, p. 71-92, 2009. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ matrizes/article/download/38225/40996. Acessoem: 30 abr. 2022.
18 Stolze, Pablo; Pamplona Filho, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único. – 4. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
Nogueira19, de maneira brilhante, aborda esta questão afirmando que a matéria além de confusa é também incoerente, uma vez que o legislador tratou o tema de maneira rasa, bastando a autorização para que o ilícito venha a se tornar lícito, e vice-versa. Essência ou a natureza do tema ficou diretamente nas mãos do legislador. Há de se mencionar ainda, segundo o autor, que o governo é o “mais banqueiro do jogo de azar, explorando as mais diversas modalidades de loterias. E complementa:
Muitos desses jogos têm sido praticados com certa tolerância, pois muitas vezes a própria justiça se sente impotente para reprimi-los em face dos nossos costumes tão arraigados à prática de diversos jogos; em outras ocasiões, o que se verifica é uma flagrante incongruência da própria justiça, que reprime certas situações, que, aliás, são perfeitamente normais na vida comum do brasileiro, em cujo meio o jogo vai ganhando novos aspectos e tolera a prática de outros, que se constituem ilícitos, criando assim certa perplexidade em tratar o mesmo assunto.
Em torno da loteria esportiva, que é mantida pelo governo, tem surgido novas formasde apostar, mantidas por particulares ou donos de casas lotéricas, sem que as autoridades tomem providências contra essas pessoas, que estão ligadas à exploraçãodo jogo de azar.
Assim como na Lei de Contravenções Penais, o Código Civil destina aos jogos e às apostas tratamento idêntico, embora, como elucidado, a essência das duas modalidades seja diversa. Assim, a temática é regulada nos artigos 814 a 817 da legislação civil, no capítulo queversa exclusivamente do jogo e da aposta.
Em relação à inexigibilidade das dívidas contraídas em apostas não autorizadas, Gagliano e Pamplona Filho20 consideram que este tratamento decorre “da concepção tradicionalde que tanto o jogo quanto a aposta eram condutas socialmente indesejáveis, desagregadoras do ambiente familiar, pelo estabelecimento de posturas viciadas e possibilidade de ruína do patrimônio dos envolvidos”.
Evidencia-se, então, a contradição existente por parte do legislador. Se por um lado, as apostas feitas juntas aos Caixa Econômica Federal constituem serviço público, com todos osseus efeitos, por outro, é negada a exigibilidade dos contratos feitos entre particulares, demonstrando, assim, toda a interferência estatal sobre a matéria.
Ainda, personagem comum nas apostas esportivas, os bookmakers, são conceituados por Coelho21, que os definem como padrinhos, sendo “terceiro desinteressado pelo resultado da disputa, encarregado de recolher as quantias dos apostadores para a participação na contenda (chamada de “aposta”, também) e pagar o vencedor ou repartir o prêmio entre os vencedores”. Eles podem, ou não, receber remuneração pelo serviço. No caso da Loteria Esportiva, por
20 Stolze, Pablo ; Pamplona Filho, Rodolfo. Manual de direito civil – volume único. – 4. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
21 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil vol. 3 – Ed. 2020. 2. Ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil,2020.
exemplo, a Caixa Econômica Federal atua como bookmaker, percebendo 20% do total dos recursos arrecadados na realização do concurso para despesa de custeio e manutenção de serviços.
Por fim, ainda que qualquer acontecimento possa servir de substrato material para os apostadores, desde o nome da princesa real britânica22 ao vencedor do Oscar de melhor filme, as apostas esportivas devem versar, obviamente, sobre eventos esportivos.
4. RECENTES AVANÇOS E OS PRÓXIMOS PASSOS DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
A partir de 2018, através da Lei nº 13.756/201823, a legislação brasileira em muito avançou, após os mais de setenta anos de proibição na exploração de jogos de azar. A mencionada lei legalizou as chamadas apostas de quota-fixa relativas a eventos reais de temática esportiva.
A referida Lei determinou que o Ministério da Economia teria dois anos, prorrogáveispor igual período, para regulamentar o tema. Por tanto, o prazo para a tão aguardada regulamentação encerrou-se no final de 2022.
Com a regulamentação, a atividade econômica das apostas esportivas poderá ser explorada pela iniciativa privada, o que poderá propiciar inúmeros benefícios ao Brasil, por exemplo, a atração de investimentos estrangeiros, geração de empregos e arrecadação de impostos pelo Estado. Ocorre que, tais benefícios apenas se materializarão efetivamente se a regulamentação da atividade for feita de maneira eficaz e observando as melhores práticas internacionais.
Será necessário, para isso, um sistema regula-
22 Folha de São Paulo. Nome de princesa Charlotte rende R$ 4,7 mi a apostadores. Disponível em: <https://m.folha.uol.com. br/mundo/2015/05/1624788-nome-da-princesa-charlotte-rende-r-47-mi-a- apostadores.shtml>. Acesso em: 30 abr. 2022. 23 BRASIL. Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2018/lei/L13756.htm>.
tório que respeite os anseios dosprincipais envolvidos no mercado das apostas esportivas. Nesta seara, a Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia (SECAP), a responsável pela elaboração do Decreto que regulamentará a atividade, realizou, até o início doano de 2022, três consultas públicas para ouvir sugestões do setor e da sociedade sobre o tema.
Já no dia 24 de fevereiro de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou, em uma apertada votação de 246 votos a 202, o texto base do Projeto de Lei 442/199124, após mais de trinta anos de tramitação, que legaliza diversas modalidades de jogos de azar e apostas no Brasil, em suma, entre eles, os jogos de cassino, jogos de bingo, jogos do bicho e jogos online.
Entre outras previsões, o texto prevê a revogação dos artigos 50 e 58 da Lei de Contravenções Penais, que proíbem o estabelecimento e a exploração de jogos de azar em território brasileiro.
Caberá, ainda, ao Ministério da Economia elaborar regulamento específico para a exploração de jogos online. Era esperada ainda para o ano de 2022 a publicação tanto do Decreto regulatório dos jogos online, caso o Projeto de Lei 442/1991 fosse convertido em lei, quanto a regulamentação das apostas esportivas de quota-fixa, conforme disciplinado pela Lei nº 13.756/2018. Algo que acabou não ocorrendo.
A última minuta disponibilizada pelo Ministério da Economia agradou, e muito, o mercado de apostas esportivas25. Entre os pontos de apreensão estava a forma como seria concedida a licença para operação das casas de aposta.
24 Câmara dos Deputados. PL 442/1991. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=15460>. Acesso em: 17 jun. 2022.
25 Ministério da Economia. Minuta de Proposta de Decreto. Disponível em: <https://www.gamesbras.com/u/archivos/2022/5/1/Minuta_de_Proposta_Decreto_SECAP_COGEL. pdf>. Acesso em: 23 jun. 2022
O modelo adotado foi o de autorização. Nele os operadores que apresentarem as documentações necessárias, cumprirem os requerimentos exigidos e pagarem as taxas aplicáveis deverão obter a licença. De outro modo seria no modelo de concessão, onde os operadores deveriam ser submetidos à um processo de licitação.
A atual minuta de Decreto ainda aborda outras questões, como o valor da taxa de licenciamento e duração, válida por cinco anos, no montante de R$ 22.200.000,00, forma de atuação dos operadores estrangeiros, que deverão estabelecer pessoa jurídica no Brasil, bem como, campanhas de conscientização do jogo responsável e mecanismos de prevenção à lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo e fraudes.
Após publicado o Decreto regulamentando as apostas esportivas, deverá vir portaria – ou portarias – com demais pormenores acerca da operacionalização dos procedimentos para se garantir as autorizações para os operadores.
Resta aos apostadores aguardar a tramitação do Projeto de Lei 442/1991 no Congresso Nacional, enquanto que, com atenção, acompanham o avanço das discussões acerca da minutade Decreto que regulamentará as apostas esportivas no Brasil, no Ministério da Economia.
Enquanto isso, sem a regulamentação, as empresas seguirão operando da mesma maneira que já fazem há anos, com escritórios fora do país, através de offshore26, aceitando apostas de brasileiros e sendo tributadas nos países em que mantém sede.
CONCLUSÃO
Quando falamos em apostas esportivas, estamos tratando de um mercado estratosférico, que até 2030 deve ultrapassar os US$ 180 bilhões. Se-
26 Trata-se de empresa estabelecida em país diverso daquele em que opera, não submetida à legislação do país emque se encontram. A principal finalidade da abertura de uma offshore são os benefícios fiscais e tributários oferecidos em alguns desses países.
gundo o relatório da Grand View Research, em 2022 o mercado foi avaliado em US$ 83.65 bilhões27. O aumento expressivo deve-se, em grande parte, à flexibilização e regulamentação do mercado de apostasao redor de todo o mundo28
Proibida a prática das apostas esportivas desde o advento da Lei de Contravenções Penais em 1941, equiparada aos jogos de azar, o Brasil nunca deixou de apostar, por meios controversos e que dão margem para extensas discussões acerca de sua legalidade, como nas casas de apostas com sede no exterior.
Muitos problemas são gerados pela falta de regulamentação no país, enquanto o Estado deixa de arrecadar e aproveitar a onda – e porquê não um tsunami – global das apostas esportivas. Conforme exposto no trabalho, existe Projeto de Lei tramitando há trinta anos no Congresso Nacional, tal qual o prazo para a regulamentação não foi cumprido.
Com os recentes avanços da legislação, em consonância ao que tem ocorrido ao redordo mundo, o Brasil se abre para a possibilidade de explorar um mercado ainda mal visto por muitos setores da sociedade, mas que, além de tudo, pode gerar empregos, mais receitas aos cofres públicos e legalizar, de fato, uma prática que na verdade nunca deixou de acontecer.
27 Grand View Research. Market Analysis Report. Disponível em: <https://www.grandviewresearch.com/industry-analysis/ sports-betting-market-report>. Acesso em: 17 jun. 2022.
28 Segundo os dados levantados pelo Instituto Jogo Legal, o Brasil é um dos 37 países, dentre os 193 países- membros da Organização das Nações Unidas, que proíbem atividades como apostas esportivas (Instituto Jogo Legal. Jogo Legal, ganham Estado e sociedade. Disponível em: <http://www.institutojogolegal.com. br/Home/Conteudo/NossaCausa>. Acesso em: 17 jun. 2022).
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VVale. Sportsbook ou Exchange: qual opção escolher na hora de apostar? 2021. Disponível em: <https://www.vvale.com.br/esportes/sportsbook-ou-exchange-qual-opcao-escolher-na-hora-de-apostar/>. Acesso em: 07 mar. 2022.
REFLEXÕES ACERCA DA OBRIGATORIEDADE DE REGISTRO DO INTERMEDIÁRIO PERANTE ENTIDADE DE ADMINISTRAÇÃO DO DESPORTO
O presente artigo discute a exigência de registro perante entidade de administração do desporto do futebol para que o intermediário possa exercer sua atividade, haja vista ausência de legislação infraconstitucional que regule a profissão. A autonomia desportiva do artigo 217, inciso I, da Constituição Federal, assegura à entidade de administração do desporto o poder de regulamentar a atividade de intermediário, o que se traduz pelo Regulamento Nacional de Intermediários da CBF. Por sua vez, o artigo 5º, inciso XIII, da Carta Magna prevê o livre exercício de trabalho, ofício ou profissão, desde que atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Para tanto, este trabalho será fundamentado em doutrinas especializadas acerca dos temas abordados, regulamentos da CBF e da FIFA, jurisprudência nacionais e internacionais.
Palavras-chave
Intermediário - Registro - Autonomia Desportiva - Livre exercício da profissão - Regulamento Ricardo Issao Kaneshiro
Formado no curso de Direito da Universidade Nove de Julho. Advogado.
INTRODUÇÃO
A Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entidade privada organizadora dofutebol brasileiro criou o Regulamento Nacional de Intermediários (RNI), amparada pela autonomia desportiva constitucional e pelo §1º, do artigo 1º, da lei 9.615 de 1998(Lei Pelé).
No entanto, o livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, é direitofundamental garantido no artigo 5º, XIII, da Constituição Federal, protegido como cláusula pétrea.
Vale consignar que não há legislação infraconstitucional que regule a atividadede intermediário.
Diante do cenário apresentado, o presente artigo busca trazer reflexões sobrea obrigatoriedade de registro do intermediário perante entidade de administração do desporto para que possa exercer sua atividade, sob o prisma dos dispositivos constitucionais mencionados, bem como suas limitações constitucionais e jurisprudência nacionais e internacionais, além dos regulamentos que direcionam toda atuação do profissional inserido no ecossistema futebolístico.
1. DO LIVRE EXERCÍCIO DE QUALQUER TRABALHO, OFÍCIO OU PROFISSÃO
O livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão insculpido no artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal, é cláusula pétrea inserida como direito e garantia fundamental de primeira dimensão. Vejamos:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão,
atendidas as qualificações profissionais que a leiestabelecer.
O renomado jurista José Afonso da Silva nos ensina (2011, p. 257):
O dispositivo confere liberdade de escolha de trabalho, de ofício e de profissão, de acordo com as propensões de cada pessoa e na medida em que a sorte e o esforço próprio possam romper as barreiras que se antepõem à maioria do povo. Confere, igualmente, a liberdade de exercer o que fora escolhido, no sentido apenas de que o Poder Público não pode constranger e escolher e a exercer outro. Quanto a saber se há ou não condições de aquisição de ofício ou de profissão escolhida, não é tema que preocupe o enunciado formal da norma.
O Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, Guilherme Augusto Caputo Bastos, leciona que os direitos e garantias fundamentais positivados na Constituição Federal foram a saída de um estado antidemocrático para um Estado Democrático deDireito, que assegurou as liberdades individuais e protegeu o cidadão contra um Estado totalitário que, para manter a sua soberania, decidia muitas vezes sem qualquer base normativa (2013. p. 305).
Portanto, a liberdade de trabalho, ofício ou profissão é um direito fundamental do cidadão, com amparo no princípio da dignidade humana, e deve ser vista como uma forma de exteriorização da personalidade do indivíduo por meio das suas capacidades, de realização pessoal e profissional sem qualquer intervenção estatal na sua escolha.
1.1.
Não obstante a natureza de direito fundamental, em um Estado Democrático de Direito, a liberdade de trabalho, ofício ou profissão não deve ser interpretada como
um direito de caráter absoluto, sendo necessário observar a existência de legislação especial ou limitação de norma constitucional.
Em virtude do princípio da reserva legal, positivado no inciso II, do artigo 5º, da Constituição Federal, que impede o Estado de agir de forma arbitrária em suas relações com o indivíduo, é conferido ao indivíduo o direito de fazer tudo o que a lei não lhe proíbe.
Desse modo, nos casos em que determinada matéria deve ser tratada de formaexclusiva por lei formal, a reserva legal se dividirá em relativa e absoluta.
A reserva legal absoluta estabelece que determinada matéria somente seja disciplinada por lei em sentido estrito. Por sua vez, a reserva legal relativa, autoriza que determinado ato infralegal cuide de determinada matéria, desde que obedecidos os requisitos e condições reservados à lei, como nos casos dos decretos.
Nos ensina o doutrinador Fabio Rodrigues Gomes (2008, p. 181), que estamos diante da “reserva de lei qualificada”, isto é, “não basta que a restrição seja inserida no mundo jurídico através de lei formal, mas também que ela (a lei) guarde pertinência temática com a finalidade contida na norma constitucional”.
Nota-se, portanto, a preocupação do legislador em preservar direitos fundamentais que assegurem a qualquer indivíduo o acesso ao trabalho, desde que respeitadas as limitações previstas em lei, decorrentes de determinadas profissões que exijam, em razão de sua especificidade, qualificação profissional técnica específica minimamente admissível, pois, sem ela, há riscos de causar danos individuais ou coletivos.
1.2. Da Obrigatoriedade de Registro em Conselho de Classe
cício de determinada profissão que não esteja regulamentada em lei: não são os casos, por exemplo, do educador físico, profissão regulamentada pelaLei nº 9.696, de 1998, e a do advogado, conforme prevê o Estatuto da Advocacia, Leinº 8.906, de 1994.
As profissões regulamentadas por lei especial estabelecem diretrizes, direitos e deveres da atividade profissional, sendo que um dos requisitos exigidos é aobrigatoriedade de registro perante o conselho de classe como condição indispensável para o exercício regular da profissão.
O STJ tem enfrentado o tema de profissionais questionando esta obrigatoriedade para o exercício regular da profissão.
Ao julgar o Recurso Extraordinário 603.583/RS, referente à constitucionalidadeda obrigatoriedade de aprovação do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)como requisito à inscrição nos quadros de advogados para o exercício legal da advocacia, esclarece o eminente relator Ministro Marco Aurélio Belize Cunha:
Dispõe o artigo 5º, XIII, da Constituição Federal, que não haverá qualquer restrição para o exer-
Há de entender-se a aprovação no exame, sem equívocos, um elemento quequalifica alguém para o exercício de determinada profissão. Qualificar-se não é apenas se submeter a sessões de ensino de teorias e técnicas de determinado ramo do conhecimento, mas sujeitar-se ao teste relativamente àciência adquirida. O argumento do recorrente não se sustenta: se o exame da Ordem “não qualifica”, também não teriam o mesmo efeito as provas aplicadas pelas próprias universidades, as quais são condições essenciais à obtenção do bacharelado. Também elas seriam inconstitucionais? A resposta é desenganadamente negativa. O exame da Ordem serve perfeitamente ao propósito de avaliar se estão presentes as condições mínimas para o exercício escorreito da advocacia, almejando-se sempre oferecer à coletividade profissionais razoavelmente capacitados.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurelio enfatiza a importância do papel que o advogado desempenha na preservação do Estado Democrático de Direito e que o exame alcança o objetivo de proteger a sociedade dos riscos ocasionados pela má aplicação do Direito.
Acrescenta, ainda, que a parte final do inciso XIII, do artigo 5º, da Constituição Federal, a saber, “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”, é a proteção constitucional de limitar profissões que representam riscos à sociedade, e somente profissionais dotados de conhecimento técnico estão autorizados a exercê- la.
Por outro lado, o STJ assegurou a liberdade da atividade aos professores e mestres de dança, ioga e artes marciais (STJ - AgInt no REsp: 1.602.901 – RS) e ao professor ou instrutor de tênis independentemente do registro perante o Conselho Regional de Educação Física (CREF), sem que esta envolva a preparação física do indivíduo, limitado tão somente à transmissão dos conhecimentos técnicos adquiridospela prática da modalidade (STJ - AgInt no REsp: 1767702 SP).
A discussão envolveu a obrigatoriedade de registro do professor ou instrutor de tênis perante o CREF para o exercício da atividade. O CREF sustentou violações aosartigos 2º e 3º da Lei nº 9.696 de 1998, que regulamenta a atividade dos profissionaiscom diploma em educação física.
Em julgamento de 2020, o Ministro Relator Herman Benjamin explicou em seuvoto que, na ausência de previsão legal que obrigue a inscrição do profissional ou instrutor no conselho de classe para o exercício regular da atividade, qualquer restrição nesse sentido ofenderia o direito fundamental da liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, nos termos do artigo 5º, inciso XIII, da Constituição Federal, tendo em vista que a referida atividade não é exclusiva ao profissional com diploma em educação física.
Nesse ponto, abre-se parênteses para destacar
o entendimento de que o diploma que regulamenta a profissão de educação física não dispõe de comando normativo que limite o exercício da profissão de técnico esportivo, ou instrutor esportivo, apenas aos graduados em educação física.
O tema será abordado adiante em tópico específico, mas a lei geral dodesporto, de nº 9.615 de 1998, conhecida como Lei Pelé, é silente no que diz respeito à regulamentação da atividade do intermediário.
2. A AUTONOMIA DESPORTIVA DAS ENTIDADES DE ADMINISTRAÇÃO DO DESPORTO
O desporto brasileiro conquista novos rumos ao garantir autonomia desportiva das entidades de administração do desporto, conforme prevê o artigo 217, inciso I, daConstituição Federal, a seguir:
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados: I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização efuncionamento.
Da redação do mencionado dispositivo, conclui-se que o Estado não pode intervir na organização e funcionamento das entidades desportivas, algo comum em um Estado intervencionista.
O doutrinador em Direito Desportivo e Coordenador Geral da Câmara Nacionalde Resolução de Disputas, Rafael Terreiro Fachada, (2017, p. 94), leciona que:
Em um país onde o Estado possui tamanha força econômica como no Brasil,é preciso que a preocupação não resida apenas na intervenção política, esta de fácil percepção e de cristalina proteção. A grave preocupação dos estudiosos da autonomia desportiva deve residir hoje, também, nas ferramentas econômicas utilizadas para
Esclareça-se que a autonomia desportiva prevista na Constituição Federal nãoveda o Estado de regular normas gerais sobre o desporto, tendo em vista o quanto previsto no artigo 24, inciso IX, § 1º, da Constituição Federal, que define as regras decompetência legislativa concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal.
Desse modo, com amparo na autonomia desportiva insculpida na Constituição Federal, as entidades de administração de quaisquer modalidades esportivas se autorregulam, seguindo regras e normas uniformizadas estabelecidas por uma federação internacional, sem a intervenção do Estado na organização e funcionamento da entidade.
2.1. Limitação da Autonomia Desportiva
Importante destacar que a autonomia desportiva conferida às entidades de administração do desporto deve ser interpretada com comedimento, na medida que este princípio não é um direito de caráter absoluto, sendo necessário observar os demais princípios constitucionais do ordenamento jurídico pátrio.
O dispositivo do texto constitucional possui o intuito da não intervenção estatalno modus operandi da entidade de administração do desporto, impedindo que o Estado determine normas de boas práticas de gestão, por exemplo.
Nesse sentido, destacamos os ensinamentos do saudoso e renomado jurista jusdesportivo, Professor Álvaro Melo Filho (1995; p.48):
Autonomia não quer dizer anárquica inexistência de normas, nem significa independência e insubordinação às normas gerais fixadas na legislação desportiva e indispensáveis àquele mínimo de coerência reclamado pelo próprio sistema desportiva nacional, sob pena de trazer nefastas consequências para o desporto brasileiro.
O entendimento do STJ caminha no mesmo sentido dos ensinamentos do Professor Álvaro Melo Filho.
Na ADIn 3.045-1/DF, proposta pelo PDT – Partido Democrático Trabalhista, ação arquivada sem julgamento do mérito, tendo em vista a alteração do artigo 59 doCódigo Civil, que retirou as competências da assembleia geral, cerne da controvérsiaconstitucional submetida à apreciação do Poder Judiciário, não deixou dúvidas acerca da autonomia desportiva das entidades de administração do desporto, como se extraido seguinte excerto:
O legislador constituinte brasileiro, por isso mesmo, pretendendo assegurar e incentivar a participação efetiva das referidas associações no âmbito do desporto nacional – conferiu-lhes um grau de autonomia que propicia, a tais entes, especial prerrogativa jurídica consistente no prevalecimento de sua própria vontade, em tema de definição de sua estrutura organizacional e de seu interno funcionamento, embora tais entidades estejam sujeitas às normasgerais fundadas na legislação emanada pelo Estado, eis que a noção de autonomia, ainda que de extração constitucional, não se revela absoluta, nem tem a extensão e o conteúdo inerentes ao conceito de soberania e independência.
Sendo assim, a autonomia desportiva constitucional conferida às associações de administração do desporto é uma questão interna corporis da entidade, com a prerrogativa de editar seus próprios regulamentos de acordo com a especificidade decada modalidade desportiva, sem intervenção estatal na sua organização e funcionamento, o que assegura maior controle no desenvolvimento da modalidade com base na cultura, princípios e valores, visando garantir a sua identidade desportiva.
to da validade das normas pertencentes ao ordenamento jurídico é a norma fundamental, ou seja, as normas inferiores buscam sua validade nas normas superiores.
Assim, o ordenamento jurídico brasileiro é formado por um conjunto de normasestabelecidas hierarquicamente e deverá, nos casos da existência de uma legislação especial regulamentando determinada matéria, prevalecer sobre a norma geral, sem retirar o caráter de validade desta lei. Trata-se do princípio da especialidade, por meiodo qual a norma especial afasta a incidência da norma geral.
Importante consignar que o desporto brasileiro permaneceu por um longo período carente de legislação específica que o regulamentasse. Nos ensina o Professor Álvaro Melo Filho (2006, p. 68) acerca da evolução histórica da legislação desportiva pátria:
O percurso trilhado pela legislação desportiva brasileira pode ser desdobradonas categorias funcional, operacional e de resultados. Ou seja, na legislação desportiva nominada de “funcional (de 1941 ao advento da Constituicao Federal de 1988) o desporto era tutelado pelo Estado. Já no âmbito da legislação desportiva aqui chamada “operacional (da Constituicao Federal de 1988 até a revogação da Lei Zico, em março de 1998) o desporto foi liberalizado para amoldar-se ao mercado de trabalho. E, na legislação desportiva organizada como de “resultados (a partir da Lei Pelé) ao desportoprofissional foi formalmente impingido o perfil empresarial, além de passar a ser “monitorado coo se fosse res pública, adotando uma inconstitucional e abominável filosofia interventiva, restritiva, elitizadora e conducente à exclusão desportiva.
No sistema federativo que o futebol está inserido, os regulamentos editados pelas entidades de administração do desporto nacionais e internacionais são válidos e eficazes, conforme estabelece o artigo 1º, § 1º, da Lei Pelé, a seguir:
Art. 1º O desporto brasileiro abrange práticas formais e não-formais e obedece às normas gerais desta Lei, inspirado nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito. § 1o A prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.
Desse modo, enquanto não houver uma lei especial, o Regulamento Nacional de Intermediários da CBF1, que estabelece as diretrizes da atividade do intermediário,pode nos conduzir ao entendimento de que é o comando normativo que regulamentaa atividade de intermediário em âmbito nacional.
Cumpre ressaltar que foi aprovado no Senado Federal o Projeto de Lei de nº 68/2017, que institui a Lei Geral do Esporte e, nos termos do artigo 94, reconhece a atividade do intermediário.
Há de se destacar o parágrafo primeiro do mencionado dispositivo que autorizaa representação do atleta de futebol aos parentes em primeiro grau, cônjuge e ao advogado, sem a necessidade de registro na entidade de administração do desporto para o exercício regular da atividade de intermediário.
A proposta que visa consolidar em um único diploma todas as legislações desportivas do país foi aprovada na Câmara dos Deputados. Contudo, após as modificações em seu texto originário, o Projeto de Lei que tramita atualmente sob o nº 1.153/2019, foi devolvido para apreciação ao Senado Federal.
1 Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Regulamento Nacional de Intermediários. Disponível em: https://www. cbf.com.br/a-cbf/regulamento/nacional-intermediarios/ regulamento-nacional-de- intermediarios Acesso em: 20 mai. 2022.
DO INTERMEDIÁRIO
O futebol encontra-se inserido em um sistema federativo protegido e com objetivos em comum, com regramento próprio e universais, sem a intervenção estatalna organização e funcionamento da entidade de administração da modalidade.
Nesse sentido, a FIFA, entidade máxima do futebol, regulamentou a atividade do à época denominado Agente FIFA, pessoa autorizada a operar no mercado de transferências de atletas de futebol de acordo com regulamento estabelecido pela entidade visando controlar os negócios dos stakeholders que compõem o ecossistemada família futebol.
Nessa linha, no dia 1º de abril de 2015, por meio da Circular2 nº 1.417, entrou em vigor o Regulamento de Intermediários da FIFA, “Regulations on Working with Intermediaries”, com importantes alterações no Regulamento dos Agentes de Jogadores, entre as quais destacamos (i) a atribuição de cada associação filiada elaborar seus regulamentos de intermediários, respeitados os princípiosestabelecidos pela FIFA, e (ii) a modificação da nomenclatura de Agente FIFA para Intermediário.
Em conformidade com o texto normativo instituído pela FIFA, a CBF, entidadea ela filiada, por intermédio da Resolução da Presidência da CBF sob o nº 05/20153, elaborou o Regulamento Nacional de Intermediários (RNI), que regulamentou a atividade de intermediário no futebol brasileiro, com regras estabelecidas para o trabalho de intermediação. O mencionado regulamento se aplica aos atletas, técnicos e entidades de prática desportiva que contratem os serviços do
2 Fédération Internationale de Football Association (FIFA) Circular de nº 1417. Disponível em: https://digitalhub.fifa. com/m/7f84304f422af19b/original/szfmmpddbsjun3t5hic9-pdf
Acesso em: 20 mai. de 2022.
3 Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Resolução de Diretoria. RDI 05/2015. Disponível em: https://www.cbf.com. br/a-cbf/institucional/preidente-rdp/rdp-n-052015 Acesso em: 20 mai. 2022.
intermediário.
3.1. A Atividade do Intermediário
O intermediário é o profissional autorizado pela CBF que, por intermédio de um contrato de representação firmado entre os contratantes, nos termos do artigo 12 do RNI, defende os interesses do atleta profissional, técnico ou entidade de prática desportiva, prestando serviços de consultoria e assessoria, negociando contratos de trabalho desportivo, de transferências nacionais ou internacionais, de patrocínio, os decorrentes da exploração comercial dos direitos da personalidade, nos termos do artigo 87-A da Lei Pelé, entre outros.
Insta salientar que, para o atleta ter uma performance no nível de excelência que o futebol atual exige, torna-se imprescindível que esteja focado exclusivamente nas atividades de campo, outorgando poderes para assuntos extracampo a um profissional qualificado e capaz de planejar a carreira do atleta, oferecendo as melhores oportunidades do mercado e proporcionando ao jovem a concretização de sucesso profissional.
O Professor Felipe Legrazie Ezabella (2010, p. 34) adverte que um agente esportivo que não tenha conhecimento específico do mercado, poderá elaborar um contrato que comprometa a carreira do atleta, pois, pode ser o denominado “contrato da vida”, a única oportunidade de o atleta alcançar a estabilidade financeira.
De fato, a carreira do atleta de futebol é curta e imprevisível, na medida que uma lesão pode destruir uma carreira promissora, bem como um contrato defeituoso,que não esteja alinhado com as constantes alterações legislações desportivas e dos regulamentos das entidades de administração do desporto em âmbito internacional enacional, pode acarretar prejuízos irreversíveis ao contratante.
3.2. Mercado Atrativo E Lucrativo
Recentemente foi publicado o 75º Relatório Men-
sal do Observatório de FutebolCIES4, que aponta o Brasil como sendo o maior exportador de atletas profissionais atuando nas ligas estrangeiras em 2022, com 1219 futebolistas.
Atualmente são 1.672 intermediários5 devidamente registrados e autorizados a negociar perante entidades de prática desportiva, conforme lista de intermediários disponível no sítio eletrônico da CBF.
Segundo o relatório6 divulgado pela FIFA por meio do sistema TMS - Transfer Matching System, que armazena os dados das transferências internacionais dos atletas de futebol, o valor das comissões pagas aos intermediários entre os anos de 2014 e 2021 ultrapassam a casa de três bilhões de dólares, sendo que, somente no ano de 2021, os intermediários faturaram o valor histórico de quinhentos milhões e oitocentos mil dólares.
No Brasil, conforme relatórios publicados anualmente no site da CBF7, nos últimos seis anos, compreendidos de 2017 a 2022, os pagamentos de comissão relativos à prestação de serviços realizados aos intermediários por atletas ou entidades de prática desportiva alcançou o montante de R$ 863.744.264,22.
Diante deste cenário, evidentemente que existem inúmeras pessoas interessadas neste mercado bilionário, tornando a presença do intermediário imprescindível no mundo futebolístico.
3.3.Dos Requisitos e das Decisões sobre a
4 CIES Football Observatory. Football players’ export: 20172022. Disponível em: https://www.football- observatory.com/ IMG/sites/mr/mr75/en/ . Acesso em: 21 mai. 2022.
5 Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Intermediários Cadastrados. Disponível em: https://www.cbf.com.br/a-cbf/ intermediarios/cadastro Acesso em 04.02.2023.
6 Fédération Internationale de Football Association (FIFA) Relatório Intermediários em Transferências Internacionais 2021. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/ m/1e9f687425b018af/original/Intermediaries-In-InternationalTransfers- 2021.pdf Acesso em: 30 mai. 2022.
7 Confederação Brasileira De Futebol (CBF). Relatório de Intermediários. Registro e Transferência. Disponível em: https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/registrotransferencia Acesso em: 30 mai. 2022.
Atividade do Intermediário
O artigo 3º do RNI estabelece a obrigatoriedade de registro do intermediário no sistema de registro da CBF. Desse modo, a pessoa física ou jurídica interessada deverá apresentar ao Departamento de Registro, Transferência e Licenciamento da CBF (DRT) uma série de documentos comprobatórios indicados no artigo 5º do RNI.
Tendo em vista as constantes alterações regulamentares e exigências atuais do mercado, o intermediário passará por uma avaliação, nos termos do artigo 5-A doRNI, visando controlar a demanda do mercado e qualificar melhor o profissional.
Ademais, da leitura do artigo 42 do RNI, conclui-se que é expressamente proibido firmar contrato de representação com intermediário não cadastrado no sistema de registro da CBF, sob pena de sanções elencadas no artigo 40 doRegulamento da Câmara Nacional de Resolução de Disputas8 (CNRD).
Sendo assim, entidades de prática desportiva, técnicos e atletas profissionais deverão ter a devida cautela e consultar a lista disponível dos intermediários autorizados no sítio eletrônico da CBF, a fim de evitar quaisquer sanções previstas em regulamento.
No caso de descumprimento ao contrato de representação, a CNRD é o órgãocompetente para dirimir quaisquer controvérsias decorrentes do mencionado contrato, vez que é expressamente obrigatório reconhecê-la como único órgão competente, nostermos do inciso VII, do artigo 12 do RNI.
Nesse passo, a CNRD advertiu clube e atleta por violação ao dispositivo do regulamento ao firmar contrato de representação com intermediário
8 Confederação Brasileira De Futebol (CBF). da Câmara Nacional de Resolução e Disputas. 2022. Disponível em: https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/resolucao-litigios/ regulamento-da-cnrd Acesso em: 31 mai. 2022.
não cadastrado no sistema CBF, a seguir:
USO DE INTERMEDIÁRIO NÃO REGISTRADO. O art. 38 do RNI proíbe que
clubes e atletas façam uso de serviços de intermediários não registrados. Intermediário que auxilia atleta na operação com sugestões. Clube participante de negociação com intermediário não registrado atuando em prol de atleta de pouca experiência. Tipicidade da conduta. Pena de advertência ao clube e ao atleta (Processo CNRD 2016/DRT/002).
Frisa-se que é expressamente proibido firmar contrato de representação com intermediários não cadastrados na CBF. No entanto, o Poder Judiciário pátrio já se manifestou acerca do recebimento de comissão de intermediário não cadastrado no sistema da CBF.
No caso, a empresa intermediária ajuizou ação de execução de título extrajudicial em face da entidade de prática desportiva, visando o recebimento de comissão advinda da prestação de serviços de agenciamento de atleta de futebol profissional, uma vez que a cessão temporária do atleta que atuava à época em clubedo exterior se concretizou, fazendo jus ao recebimento da comissão celebrada em contrato.
Ao opor Embargos à Execução, o clube alegou, em síntese, a ilegitimidade ativa da intermediária Embargada, haja vista que a pessoa jurídica não detinha a licença expedida pela CBF para o exercício regular da atividade de representação, nos termos da RDI nº 06/2004 da CBF, sendo prerrogativa somente das pessoas físicas.
Ao julgar o Recurso de Apelação de nº 112324163.2015.8.26.0100, interposto contra a sentença que julgou improcedentes os Embargos à Execução, o Desembargador Relator Jayme Queiroz Lopes, do Tribunal de Justiça de São Paulo,observou que:
Se a apelante entendia que pessoas jurídicas não poderiam celebrar contratos de
agenciamento de jogadores de futebol, não deveria ter firmado com a exequente aquele que foi inadimplido e ensejou a propositura da execução.
Ademais, a decisão caminhou no sentido de que o valor pleiteado pela empresaintermediária era devido, haja vista que o clube não apresentou nenhum vício ou falha na prestação dos serviços de intermediação que justificasse o não cumprimento obrigacional, sendo certo que o princípio da boa-fé objetiva, insculpido no artigo 422 do Código Civil, impede o venire contra factum proprium, já que a ninguém é dado o direito de se beneficiar da própria torpeza.
No campo do Direito Comparado, o Tribunal de Relação de Lisboa, Portugal, decidiu de forma diversa acerca do recebimento de comissão de intermediário não cadastrado na Federação Portuguesa de Futebol (FPF).
Como visto, a FIFA incumbiu às associações nacionais filiadas os poderes para elaborarem os seus próprios regulamentos de intermediários.
Conforme estabelecido no RNI, em Portugal, somente os intermediários cadastros no sistema da FPF9 estão aptos ao exercício da atividade de representação, nos termos do artigo 6º, pelo qual “só podem exercer a atividade de Intermediário as pessoas singulares ou coletivas registadas na FPF”.
No Recurso de Apelação de nº 625/19.0T8LSB. L1-7, o pai de um atleta que atuou como intermediário do seu filho ajuizou ação visando a condenação de um clube português ao pagamento de comissões, sob o fundamento de que este teria descumprido o contrato firmado entre as partes, que resultou na assinatura do aditamento do contrato de trabalho desportivo do filho com a entidade, sendo devida a comissão referente aos serviços de intermediação.
Não obstante a obrigação assumida, o clube por9 Federação Portuguesa de Futebol (FPF). Regulamento de Intermediários. Disponível em: https://www.fpf.pt/ Institucional/Intermedi%C3%A1rios Acesso em: 05 jun. 2022.
tuguês não efetuou o pagamento da comissão, alegando, em síntese, em sede de contestação e reconvenção, que o pai não era intermediário registrado na FPF, o que tornaria o contrato nulo, sendo indevida qualquer indenização.
Irresignado contra a sentença que julgou improcedente a ação, o intermediáriorecorreu ao tribunal Ad Quem, que confirmou a sentença do juiz de origem e julgou improcedente o pedido, sob o fundamento que o exercício da profissão de intermediário está condicionado ao registro na FPF.
Assim sendo, para exercer a atividade de empresário desportivo nos contratos outorgados com o seu filho, tinha o A. de, pelo menos, estar registado como tal na FPF e na Liga, o que não resulta demonstrado, a implicar a inexistência do contrato e das cláusulas que estabeleceram a correspondente retribuição [10]. Em conclusão de quanto se deixa dito, entendemos que bem andou o tribunal recorrido em considerar inexistente o contrato invocado pelo A. nos termos do nº 4 do art. 23º do RJCTPD, por nãoter resultado demonstrado que o A. estivesse registado na FPF e na Liga.
Por outro lado, no mesmo Tribunal português, no Recurso de Apelação registrado sob o nº 1691/19.4T8LSB.L1-7, o entendimento caminhou em sentido contrário.
Consoante o contrato de representação avençado entre o clube português e a intermediária, restou estabelecido o pagamento de comissão pelos serviços deintermediação que resultaram na assinatura de contrato de trabalho de um jogadoritaliano com o clube português, acrescido de um adicional decorrente da cessãodefinitiva dos direitos federativos e econômicos do atleta em referência a outro clube.Em razão do alegado incontroverso e indevido atraso no pagamento de duas parcelas do aludido contrato, a intermediária se socorreu do Poder Judiciário para orecebimento da comissão devida. O clube sustentou que a dívida era inexistente, uma vez
que a intermediária não era empresa registrada no sistema da FPF.
Em 23 de março de 2021, o Tribunal português julgou improcedente a Apelaçãointerposta pelo clube português contra sentença do Juízo a Quo, e o condenou ao pagamento de comissão decorrente do contrato firmado entre as partes, em que peseo intermediário não possuir registro na FPF, uma vez que a ausência de requisito formal não impediu a concretização negocial.
Vejamos:
(...) Invocar a omissão de um requisito formal na celebração do Contrato, cuja redação é da sua responsabilidade, e cuja ausência em nada interferiu na conclusão de todas as suas pretensões económicas e jurídicas por si prosseguidas, ou seja, sem que possa invocar um qualquer interesse real, efectivo e prático para a conclusão dos contratos aqui em causa e, para, coma invocação deste expediente, não cumprir suas obrigações perante a A., e que se encontram expressas no Contrato celebrado com esta, sempre configuraria uma situação de Abuso de Direito, na modalidade de venire contra factum proprium a que o Direito nunca poderia dar cobertura legal.
Como visto, o entendimento não é pacífico, pois o mesmo Tribunal divergiu aointerpretar a obrigatoriedade de registro perante a FPF para o recebimento decomissão referente à prestação de serviços de intermediação.
CONCLUSÃO
O presente artigo se propôs a analisar a atividade do intermediário de futebol sob o prisma do artigo 5º, XIII, e do artigo 217, I, ambos da Constituição Federal.
Sem a pretensão de encerrar o tema, torna-se imprescindível um estudopermanente sobre a possibilidade de atuação do intermediário sem a exigência deregistro perante a CBF a fim de garantir segurança jurídica ao mercado fute-
bolístico. Como visto, as sanções previstas nos regulamentos FIFA e CBF decorrem do sistema associativo do futebol: sob o manto protetivo do ordenamento jurídico pátrio,em especial o princípio constitucional da autonomia desportiva, regula a relação entreas partes, estabelece normas e suas consequências jurídicas próprias. Frisa-se quetais sanções afetam diretamente a entidade de prática desportiva e o atleta profissional de futebol que estabelecem contrato de representação com intermediário não registrado no sistema privado do futebol.
A ausência de previsão legal que regulamenta a profissão do intermediário torna o sistema associativo do futebol desprotegido e suscetível de causar litígios comdecisões divergentes perante o poder judiciário, tendo em vista que a liberdade de profissão é garantia constitucional. Apesar da insegurança normativa, o princípio da autonomia desportiva é a medida mais eficaz para assegurar proteção ao mercado futebolístico, vez que por expressa declaração de vontade dos players do mercado, aceitam e se submetem ao regramento jurídico futebol estabelecidos pela FIFA.
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A PRECOCE ATRIBUIÇÃO DE IGUALDADE NA PARTICIPAÇÃO DE ATLETAS TRANSGÊNERO NO ESPORTE
O presente artigo tem como objetivo trazer à tona a diferença de velocidade em que caminham o Direito e as Ciências Médicas para fins de se conquistar efetivamente os direitos de participação das atletas transgênero em equipes de atletas cisgênero, sem prejudicar os direitos deste último grupo. Enquanto o Direito entende que a igualdade já se encontra presente, a Medicina, através de dados científicos comprovados em diversas modalidades, bem como a análise de resultados recentes de superior performance de atletas transgênero sobre atletas cisgênero, provam o contrário, mostrando que ainda há um enorme caminho a ser trilhado para que esta igualdade seja justa e corretamente alcançada, sem prejuízo a qualquer dos grupos envolvidos.
Palavras-chave
Transgênero - Esporte - Atleta - Direito - Lex Sportiva - Inclusão - Igualdade - Paridade de Armas
Thais Xerfan Melhem Morgado
Advogada com atuação nas áreas patrimonial, imobiliária e desportiva. Especializanda em Direito Desportivo pela Escola Superior de Advocacia – ESA/SP; Especialista em Direito dos Contratos e Direito e Processo do Trabalho, pela Escola Paulista de Direito. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Membro Efetivo da Comissão Especial de Direito Desportivo da OAB/SP (2021). Membro da Comissão de Direito Desportivo da OAB Subsecção de Santana (2020/2021). Auditora Suplente da 2ª Comissão Disciplinar da Liga Paulista de Futebol de Salão (2020/2024); Auditora da Comissão Disciplinar da Liga Nacional de Basquete - LNB (2020/2024); Auditora da 2ª Comissão Disciplinar da Liga Nacional de Futsal – LNF; Auditora da Comissão Disciplinar da Federação Paulista de Tênis – FPT; Auditora da Comissão Disciplinar da Liga Nacional de Futebol do Brasil (2022); Auditora da Federação de Voleibol do Rio de Janeiro. Defensora Dativa do Tribunal de Justiça Antidopagem. Sócia Fundadora do escritório Melhem Morgado Advocacia e Diretora Jurídica da F.Melhem Consultoria e Perícia, empresa especializada em consultoria patrimonial e imobiliária.
INTRODUÇÃO
A discussão acerca da participação de atletas transgênero no esporte não é tema novo, tampouco se encontra perto de ser exaurido. A corrente favorável à atual participação das atletas transgênero apenas com base na adequação hormonal opta por ignorar todo e qualquer estudo científico a respeito do tema e todos os resultados fáticos recentes que comprovam, sem sombra de dúvidas, a superioridade física das atletas transgênero sobre as atletas cisgênero na maioria das modalidades desportivas.
O presente artigo não pretende exaurir a discussão, apenas tratar da enorme diferença de velocidade entre a Medicina e o Direito em se chegar em um patamar onde a igualdade será atingida sem que qualquer das atletas – cisgênero ou transgênero – seja prejudicada.
Enquanto no campo médico, os estudos têm como base dados pautados na fisiologia humana completa, considerando adequação hormonal, capacidade muscular e respiratória, entre outros fatores também determinantes para a análise de uma futura igualdade, no campo jurídico e sócio político trata-se apenas sobre a inclusão, a qualquer custo, com movimentos infundados e apelativos pela igualdade, sem a preocupação básica da manutenção de todos os direitos conquistados recentemente pelas atletas cisgênero.
O assunto em questão traz apenas posições extremamente polarizadas em ambos os sentidos: de um lado, a simples alegação de impossibilidade da inclusão, sem trazerem efetivas soluções para o que pode ser feito para que isto ocorra, garantindo a igualdade para todas as atletas; e de outro lado, sem qualquer fundamentação científica, argumentos apelativos de preconceito e transfobia, esquecendo-se que estamos tratando de esporte, onde a principal ferramenta de trabalho é o corpo e a potência física das atletas e, no momento atual a inclusão apenas com base nestas argumentações, por si só, vai de encontro ao princípio de paridade das armas,
conceito básico do Desporto, sendo prejudicial às atletas cisgênero.
Caso estivéssemos lidando com qualquer outra profissão, o assunto estaria resolvido e a inclusão é inquestionável. Contudo, em se tratando de desporto, devemos levar em consideração além da questão social, também a questão física.
Ratifica-se que não se trata de transfobia, preconceito ou qualquer outra definição neste sentido. Ao contrário, o objetivo deste estudo é de trazer um olhar para a necessidade de união dos pólos, em um âmbito multidisciplinar, com pessoas realmente interessadas em resolver tais divergências, para que se possa criar um ambiente justo para todas as atletas trans e cisgênero, sem que nenhum direito de qualquer das partes seja prejudicado, garantindo, assim, uma competitividade justa e igualitária.
1. CONCEITOS E HISTÓRICO
Conforme definido pela Resolução nº 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina o paciente transexual é o “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”. Como refere Paulo Roberto Ceccarelli1, “não se trata de um desejo de pertencer a outro sexo, tampouco um delírio, mas, antes, de uma evidência inquestionável: o sujeito é do outro sexo”
Dentre os direitos fundamentais assegurados pelo Estado democrático brasileiro, se encontram a proteção e o respeito aos direitos à personalidade, que abrangem o direito ao tratamento igualitário aos cidadãos, respeitadas as suas diferenças, em especial, no que tange à sua orientação sexual.
Em que pese já ter ocorrido pouca evolução social sobre o tema, os transexuais se encontram inseridos em uma sociedade onde se predomina
o comportamento heterossexual como “regra”, e quem não se encaixar neste estereótipo infelizmente ainda é alvo de preconceito, discriminação e violência.
2. DADOS HISTÓRICOS DO DESPORTO FEMININO
Na Era Antiga, os Jogos Olímpicos de 776 a.C. proibiam a participação das mulheres a, inclusive, assistir às partidas e disputas e caso tal regra fosse descumprida por uma mulher casada, esta era condenada à morte. Apenas as Sacerdotisas ( “mensageiras dos deuses”) eram permitidas nos jogos, responsáveis por entregarem as coroas de oliveiras aos vencedores, pois acreditava-se que traziam boa sorte para os competidores 2
Na Era Moderna, a primeira edição dos Jogos Olímpicos se deu em Atenas, no ano de 1.896. Foram idealizados por Pierre de Coubertin (Barão de Coubertin), e contou com a participação de 241 (duzentos e quarenta e um) atletas, representantes de 14 (quatorze) países, exclusivamente homens, mantendo-se a proibição da participação de mulheres. Contudo, a grega Stamata Revithi realizou, em forma de protesto, o percurso da maratona ao lado de fora do estádio que sediou a competição, finalizando o trajeto em tempo inferior ao de alguns dos atletas homens que participavam da prova3.
O próprio Barão de Coubertin era resistente à prática de esporte pelas mulheres, manifestando-se, em 1.912 sobre a igualdade de gênero no esporte:
“Sejam quais forem as ambições atléticas femininas, não podem ter a pretensão de ganhar dos homens em corridas, esgrima, em equitação... Portanto, fazer que aqui interviesse o princípio da igualdade teórica dos sexos equivaleria a incorrer em uma manifestação platônica carente de 2 SOARES, Thais. Mulheres nas Olimpíadas: Uma Longa Trajetória. Disponível em: http://nodeoito.com/mulheres-nas-olimpiadas/ Acesso em 19/06/2022.
3 Idem 2
sentido e de alcance.”
O século XIX iniciou a participação feminina na prática de esportes [...] “apenas para mulheres brancas e ricas, como forma de embelezamento e para proporcionar melhores condições de aprimoramento físico entendido necessário para o exercício da maternidade”5 [...], em modalidades como natação, esgrima, tênis, arco e flecha. Nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1.900, ocorreu a primeira participação das mulheres restrita, ainda, ao tênis e ao golfe, esportes sem contato físico e que possibilitavam o culto à “beleza”.
Desde sempre, enquanto a dedicação masculina ao esporte ocorria visando competições de alto rendimento em cenários nacional e internacional, as mulheres iniciaram sua luta por mais um importante item adicionado aos direitos básicos que foram objeto da garra da classe feminina no final do século XIX, tais como o voto, divórcio, educação, trabalho – o de praticar esportes.
A participação feminina na qualidade de atletas oficiais se deu apenas 40 (quarenta) anos após os primeiros jogos da Era Moderna, em 1.936, quando o Comitê Olímpico Internacional (COI), atento aos Jogos Femininos Mundiais ocorridos em 1932 proporcionados pela Federação Esportiva Feminina Internacional (criada em 1.917 pela francesa Alice Milliat6). Esta competição mundial foi fruto das realizações pela citada federação de competições femininas realizadas em 1.922, 1.926 e 1.930.
Somente em 2.012, há menos de 10 anos, nas
4 CALIXTO, Vinícius Machado. Lex Sportiva e Direitos Humanos. Entrelaçamentos transconstitucionais e aprendizados recíprocos. Belo Horizonte: Editora D´Plácido, 2017 (2ª edição) apud MULLER, Norbert; TODT, Nelson Schneider. Pierre de Coubertin (1863-1937) Olimpismo – Seleção de Textos. Porto Alegre: Editora ediPUCRS,2015. p. 703-704.
5 GOELLNER, Silvana apud CASTRO, Luciane de; RICCA, Darcio. Futebol Feminista: ensaios. Rio de Janeiro: Livros de Futebol, 2020.p.36-37
6 Traduzido do inglês-Alice Joséphine Marie Milliat née Million foi uma pioneira do esporte feminino. Seu lobby em nome de atletas femininas levou à inclusão acelerada de mais eventos femininos nos Jogos Olímpicos. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Alice_Milliat (em inglês). Acesso em 04/02/2023
Olimpíadas de Londres, foi permitida a participação das mulheres em todas as modalidades. Em 2024, em Paris, teremos os primeiros Jogos Olímpicos com igualdade de gênero na distribuição de vagas7
Verifica-se, portanto, que enorme e injusta é também a luta das mulheres pela igualdade no âmbito do Desporto.
3. TRANSGÊNERO NO ESPORTE - REGRAS DE INCLUSÃO ELABORADAS PELO COMITÊ OLÍMPICO INTERNACIONAL – COI
Desde os anos 70, a tenista Renee Richards, quando impedida de competir no torneio oficial do U.S. Open, fez valer nos tribunais o seu direito de participar do torneio8.
O ano de 2.003, através do consenso de Estocolmo9, deu-se início às regulamentações sobre a participação dos atletas transgênero no esporte, diante as seguintes regras: cirurgia de mudança de sexo, inclusive com a gonadectomia, (procedimento cirúrgico consistente na retirada dos ovários ou dos testículos10); reconhecimento legal do país de origem e tratamento hormonal apropriado durante o período de 02 (dois) anos. Estas regras foram adotadas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), no ano de 2004, com a aceitação da participação de atletas transgênero no âmbito olímpico, bem como pelas entidades desportivas coligadas ao Comitê.
7 COCCENTRONE, Gabriel. Olimpíada de Paris terá breakdance e igualdade de gêneros. Disponível em https://leiemcampo. com.br/olimpiadas-de-paris-2024-tera-breakdance-e-igualdade-de-generos/ Acesso em 19/06/2022.
8 CAMARGO, Wagner Xavier. O tênis na trajetória de Renée Richards. Disponível em https://ludopedio.com.br/arquibancada/o-tenis-na-trajetoria-de-renee-richards/ Acesso em 19/06/2022.
9 INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE. Statement of the Stockholm consensus on sex reassignment in sports. Estocolmo, 28 de Outubro de 2003. Disponível em https://stillmed.olympic. org/Documents/Reports/EN/en_report_905.pdf Acesso em 19/06/2022.
10 Disponível em https://www.dicio.com.br/gonadectomia/ Acesso em 20 de março de 2022.
Na continuação de alterações de regulamentação sugestiva do tema, em 2.015, com base nos estudos de Joanna Harper (também atleta transgênero e atualmente médica conselheira do COI11), o documento produzido pelo COI prevê que “as restrições à participação são apropriadas na medida em que são necessários e proporcionais à realização desse objetivo” Estabelece, ainda, que “exigir alterações anatômicas cirúrgicas como uma pré-condição para a participação não é necessário para preservar a concorrência leal e pode ser inconsistente com desenvolvimento de legislação e noções de direitos humanos”12
Seu estudo à época foi extremamente contestado, haja vista que feito apenas com oito pessoas, não podendo ser considerado para conclusões significativas. Ademais, a própria pesquisadora reconhece que os estudos médicos ainda estão em fase inicial, e declarou recentemente, em agosto de 2.021 (seis anos após seu primeiro estudo): “O ideal seria se pudéssemos encontrar uma forma de integrar atletas trans no esporte feminino de uma forma que seja justa para todo o mundo.”13
Desta forma, pelas regras genéricas estabelecidas pelo COI em 2.015, mediante a pressão pela inclusão, bastaria que:
• A atleta transgênero fizesse uma declaração
11 VESPA, Talyta. Para cientista, terapia hormonal anula vantagem de atletas transgênero. Publicado em 17 de dezembro de 2019. Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/corrida-de-rua/ultimas-noticias/2019/12/17/terapia-hormonal-anula-vantagem-de-atletas-transgenero-afirma-cientista.htm Acesso em 20 de junho de 2022
12 INTERNATIONAL OLYMPIC COMMITTEE. IOC Consensus Meeting on Sex Reassignment and Hyperandrogenism. November 2015. Lausanne, 2015. Disponível em:
https://stillmed.olympic.org/Documents/Commissions_PDFfiles/Medical_commission/2015-11_ioc_consensus_meeting_ on_sex_reassignment_and_hyperandrogenism-en.pdf Acesso em 20 de março de 2.022.
13 BBC News. Olimpíada de Tóquio 2021: a proposta radical de cientista e atleta trans para incluir transgêneros no esporte ‘de forma justa’. Publicado em 02 de Agosto de 2021. Disponível em https://epocanegocios.globo.com/Olimpiada/noticia/2021/08/ olimpiada-de-toquio-2021-proposta-radical-de-cientista-e-atleta-trans-para-incluir-transgeneros-no-esporte-de-forma-justa.html Acesso em 20 de junho de 2.022.
sobre seu gênero feminino, e tal declaração não poderia sofrer alteração durante 04 (quatro) anos;
• Os níveis de testosterona desta atleta deveriam ficar abaixo de 10 nmol/L por 12 meses antes de sua primeira competição e durante toda sua carreira de atleta.
Tais regras poderiam ser continuamente monitoradas, sob pena de punição, e servem como sugestão para outras entidades e competições. Em que pese tenha o foco social relativamente correto, reduziram drasticamente as exigências para o mínimo alcance da igualdade entre atletas trans e cisgênero. Isto porque, ainda com as regras anteriores, que previam a cirurgia de alteração de sexo além do controle hormonal, o cenário trazia uma maior (ainda não completa) proximidade de igualdade física entre os dois grupos de atletas, no tocante à força e capacidade muscular.
Ainda que, no papel, as circunstâncias pareçam ideais e perfeitas em termos de inclusão e igualdade, na prática, estas diferenças corporais excluem a possibilidade das atletas cisgênero exercerem os seus direitos de competição (tão arduamente conquistados) assegurados com igualdade.
Em novembro de 2.021, houve nova manifestação do COI, desta vez, abstendo-se de definir uma regra única que valha para todos os esportes.
Ao invés disso, cada federação internacional será responsável por estabelecer suas próprias exigências, entendendo-se que os níveis hormonais e outras especificidades para um esporte não necessariamente serão os mesmos para outro. Cada Comitê definirá essas regras, principalmente para o alto rendimento, com revisões periódicas em cada uma das políticas que forem estabelecidas. Outros pontos fundamentais trazidos pelo novo documento do COI tratam da Não-Discriminação e Não Presunção de Vantagem, a Abordagem Baseada em Evidências e o
Direito à Privacidade.
Diante deste novo cenário, o objetivo do COI é maior inclusão dos atetas trans, assegurando a paridade de armas na competição.
Por fim, com base nesta regra, veremos adiante neste trabalho que a Federação Internacional de Natação recentemente foi a pioneira em abrir uma categoria aberta para que as atletas transgênero participem das competições, resguardando os direitos das atletas cisgênero a uma competição justa.
4. DOS RESULTADOS ATUAIS DE VANTAGENS FÍSICAS DAS
ATLETAS TRANSGÊNERO SOBRE AS ATLETAS CISGÊNERO.
Os movimentos de inclusão imediata das atletas transgênero se baseiam em apelo emocional e não rebatem com argumentos sólidos os fatos notórios e incontroversos, advindos das performances superiores das atletas transgênero. Contra estes fatos, não há qualquer argumento plausível sobre a inexistência de vantagem das atletas transgênero sobre as atletas cisgênero.
Eventualmente, e após profundos estudos multidisciplinares sobre o tema, a inclusão de todos no âmbito esportivo ocorrerá, na oportunidade em que a igualdade e a paridade de armas prevaleçam entre TODAS as competidoras, sem qualquer vantagem desleal de um grupo sobre outro.
Estudo médico publicado recentemente na Revista Brasileira de Medicina do Esporte corroboram com a conclusão de que “há escassez de estudos que comparem os indivíduos transgênero com a população do mesmo gênero desejado. Esses estudos são necessários para melhor definir as regras da participação de transgêneros nos esportes olímpicos.” 14
14 ESPORTES E DESEMPENHO NA POPULAÇÃO TRANSGÊNERO: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA E METANÁLISE. Revista Brasileira de Medicina do Esporte – Vol. 27, Nº 6, 2021. – Página 637. Disponível em https://www.scielo.br/j/rbme/a/CDkTksYcMP-
Como exemplo, apresentamos o caso de duas atletas transgênero recentes, com fatos incontroversos que demonstram vantagens corporais do grupo de atletas transgênero sobre as atletas cisgênero.
Estreamos com a primeira jogadora de vôlei transexual a atuar na Superliga Brasileira de Voleibol Feminino - Série A15, atual atacante do time de Osasco, Tifanny Abreu. Com uma história de vida incrivelmente admirável, Tifanny cumpriu com as regras anteriores do COI e efetivou a transição para o sexo feminino, também se adequando às exigências hormonais das regras então vigentes.
Antes de sua transição, era conhecida como Rodrigo Abreu. Enquanto jogador de equipes masculinas, Rodrigo, atleta então mais jovem, embora tenha jogado por poucas oportunidades na Superliga Brasileira de Voleibol MasculinoSérie A16, nunca foi um atleta que tenha se destacado entre seus pares à época, tendo atuado mais nas ligas menores, tanto no Brasil quanto no exterior. Seus treinos e jogos sempre foram realizados entre homens, com força física equi-
cKYTHGfcJLX4K/?lang=en Acesso em 20/06/2022.
15 “A Superliga Brasileira de Voleibol Feminino - Série A é o "nome-fantasia" da principal divisão do Campeonato Brasileiro de Voleibol. A denominação "Série A" passou a ser utilizada a partir da temporada 2013/2014, na qual foi criada a Série B. Todos os campeões anteriores da Superliga são reconhecidos como campeões brasileiros de voleibol, assim como todos os campeões da Série A desta temporada em diante. O torneio é organizado anualmente pela Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) e dá acesso ao seu campeão ao Campeonato Sul-Americano de Clubes. Os dois últimos colocados são rebaixados à Série B na temporada seguinte.” Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Superliga_Brasileira_de_Voleibol_Feminino_ -_S%C3%A9rie_A Acesso em 04/02/2023.
16 “A Superliga Brasileira de Voleibol Masculino é o "nome-fantasia" da principal divisão do Campeonato Brasileiro de Voleibol.
A denominação "Série A" passou a ser utilizada a partir da temporada 2011/2012, na qual foi criada a Série B. Todos os campeões anteriores da Superliga são reconhecidos como campeões brasileiros de voleibol, assim como todos os campeões da Série A desta temporada em diante. O torneio é organizado anualmente pela Confederação Brasileira de Voleibol (CBV) e dá acesso ao seu campeão ao Campeonato Sul-Americano de Clubes. Os dois últimos colocados são rebaixados à Série B na temporada seguinte.” Disponível em https://pt.wikipedia.org/ wiki/Superliga_Brasileira_de_Voleibol_Masculino. Acesso em 04/02/2023.
valente e perante a rede masculina do voleibol, que mede 2,43m.
“ Antes de jogar em campeonatos femininos, entrou em quadra pela Superliga A e B no Brasil e em outros campeonatos masculinos nas ligas da Indonésia, Portugal, Espanha, França, Holanda e Bélgica. Enquanto defendia o clube JTV Dero Zele-Berlare da segunda divisão belga, resolveu concluir a transição de gênero.”17
O processo de transição da atleta teve início quando tinha 27 (vinte e sete) anos de idade18 e a cirurgia de transição foi concluída em 2.016, quando a atleta tinha 30 (trinta) anos de idade. Após sua recuperação, a atleta foi liberada pela Federação Internacional de Voleibol (FIVB) a jogar com as mulheres cisgênero. Sua primeira atuação foi no time italiano de segunda divisão e logo já se destacou, pois, jogando com uma rede de 2,24m (medida da rede em partidas femininas), sua memória muscular de um corpo masculino, por ter treinado durante a maior parte de sua carreira desportiva com equipes masculinas, em alturas e potências superiores às de costume das equipes femininas, ainda que tenha passado por todas as dificuldades da cirurgia de transição realizada e adequação hormonal, a levou a uma atuação quase irreparável e, com 28 pontos naquela primeira partida, seu destaque enalteceu a polêmica sobre sua vantagem corporal sobre as demais19. Ao final daquela temporada, seu time foi classificado para a primeira divisão do campeonato italiano.
Posteriormente, a equipe paulista de Bauru, que
17 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Tifanny_Abreu Acesso em 21 de junho de 2.022
18 ZALCMAN, Fernanda. O pioneirismo de Tifanny e o que diz a ciência. Publicado em 28 de junho de 2.020. Disponível em: https://www.olimpiadatododia.com.br/volei/247268-o-pioneirismo-de-tiffany-e-o-que-diz-a-ciencia/ Acesso em 21 de junho de 2022.
19 SIMÕES, Rui Marques. Rodrigo virou Tiffany, o ícone transexual que agita o voleibol. Publicado em 22 de fevereiro de 2.017. Disponível em: https://www.dn.pt/desporto/rodrigo-virou-tiffany-o-icone-transexual-que-agita-o-voleibol-5683123.html - acesso em 20 de junho de 2.022.
disputa a Superliga Feminina A20, contratou a atleta ao final de 2.017 e, desde então, ela continua se destacando no mais alto escalão de disputa do voleibol brasileiro e mundial. Um ponto a se considerar é que a atleta passou a atuar no esporte feminino já com 33 (trinta e três) anos, idade relativamente elevada para o esporte. Hoje, com 38 (trinta e oito) anos, sua atuação no âmbito feminino de altíssimo escalão do voleibol, continua quase irreparável.
Novamente, o respeito e admiração pela história pessoal desta atleta aumentam a cada dia. Trata-se de uma pessoa que abrirá caminhos para que futuras atletas transgênero participem de competições, à medida que os estudos da Medicina consigam avançar propriamente para que se estabeleça efetivamente tal igualdade. Contudo, a igualdade e a paridade de armas devem ser respeitadas em relação às atletas cisgênero.
Outro cenário trazido pelas vantagens corporais de atletas transgênero sobre atletas cisgênero vem sendo claramente retratado nas piscinas universitárias norte-americanas pela atleta Lia Thomas.
Segundo as regras da NCAA21, desde 2.011 até janeiro deste ano, bastava apenas o controle e supressão de hormônios nos 12 (doze) meses anteriores à competição para que a atleta transgênero seja apta a participar da mesma.
Lia Thomas, que cumpriu a supressão hormonal durante a pandemia e não tendo passado pela transição cirúrgica, foi a primeira atleta transgênero a ganhar a Liga Universitária de Natação dos Estados Unidos. Anteriormente era Will Thompson, também nadador, que competiu por 03 (três) anos, não atingindo nem a 400ª colocação entre seus pares à época.
20 Idem 15
21 “National Collegiate Athletic Association ou NCAA é uma associação composta de 1281 instituições, conferências, organizações e indivíduos que organizam a maioria dos programas de esporte universitário nos Estados Unidos. A sua sede está situada em Indianápolis, Indiana.” Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/National_Collegiate_Athletic_Association. Acesso em 04/02/2023.
Durante a pandemia, fez a transição hormonal para nadar com atletas cisgênero e quando começou a nadar pela Universidade Estadual da Pensilvânia como atleta transgênero, competindo com mulheres, “na competição Zippy Invitational in Akron, realizada no estado de Ohio, Lia fez um tempo de 1m41s93 no 200-yard freestyle (o equivalente à competição de 200 metros livres), sete segundos à frente da segunda colocada, cravando-se como o tempo mais rápido do país, de acordo com a universidade”22; uma semana depois, “ venceu o 1650-yard freestyle (1500 metros livres) com o tempo de 15m59s71, mais de 38 segundos à frente de Anna Kalandadze, que ficou em segundo lugar, garantindo mais um recorde universitário.”23; e “Em um confronto anterior contra os rivais da Ivy League Princeton e Cornell, ela também garantiu os 500 metros livres no que foi o melhor tempo colegial (um recorde que pertencia a Princeton, 4m35s06) até agora.”24
Seus resultados atuais são inalcançáveis por mulheres cisgênero que optem pelo jogo limpo e não se aproveitem de substâncias proibidas pelas regras antidopagem. Isso provocou polêmica e muita revolta por parte das atletas que com Lia competiram, as quais enviaram uma carta contra sua participação, baseada na notória injustiça de competitividade a elas relacionada25 e até cogitaram em não participar de um dos eventos promovidos pela entidade, contudo se viram coagidas pelo receio de sofrerem qualquer sanção na disputa da Liga Principal. Esta carta, destinada à entidade responsável (NCAA) foi assinada pela ex-nadadora Olímpica Nancy Hogshead-
22 Agência O Globo. Nadadora transexual enfrenta críticas ao quebrar recordes femininos após competir com homens. Disponível em https://www.folhape.com.br/esportes/nadadora-transexual-enfrenta-criticas-ao-quebrar-recordes-femininos/208587/. Publicado em 08 de dezembro de 2.021. Acesso em 20/06/22.
23 Idem 22
24 Idem 22
25 NEWSROOM INFOBAE. Thomas no centro da cena nos campeonatos da NCAA. Publicado em 17 de março de 2.022. Disponível em: https://www.infobae.com/br/2022/03/17/a-nova-polemica-que-tem-a-nadadora-transexual-lia-thomas-no-centro-da-cena-nos-campeonatos-da-ncaa/ Acesso em 20 de junho de 2.022.
-Makar26 com os seguintes dizeres:
“Apoiamos totalmente Lia Thomas em sua decisão de afirmar sua identidade de gênero e fazer a transição de homem para mulher. Lia tem todo o direito de viver sua vida autenticamente. No entanto, também reconhecemos que, quando se trata de competições esportivas, a biologia sexual é um tópico separado da identidade de gênero de alguém. Biologicamente, Lia tem uma vantagem injusta sobre a competição na categoria feminina, como evidenciado por seus rankings: ela passou do número 462 como homem para o número 1 como mulher”, disse o escrito.” 27
Em fevereiro deste ano, após os incríveis resultados da atleta sobre as atletas cisgênero que ficavam em segundo lugar, e em resposta aos pedidos das atletas supramencionado, a USA Swimming28 (federação nacional de natação americana) alterou a regra para que a supressão ocorra durante 36 (trinta e seis) meses e que a taxa hormonal seja reduzida pela metade.
Em continuidade à intenção de prover uma competição justa, com a inclusão possível na atualidade, recentemente, mais precisamente em 19 de junho de 2.022, com base na determinação do COI de novembro de 2.02129, a qual deixou a cargo de cada federação internacional o desenvolvimento dos critérios de elegibilidade para a participação de atletas transgênero e intersexuais, a Federação Internacional de Natação – FINA, introduziu pioneiramente uma regra, criando uma “categoria aberta” que permite a
26 Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/Nancy_Hogshead-Makar Acesso em 20 de junho de 2.022.
27 Por Redação. Publicado em 29 de dezembro de 2021. Disponível em: https://noticias.plu7.com/140101/internacional/ os-companheiros-de-equipe-da-nadadora-transgenero-lia-thomas-pensaram-em-boicotar-o-encontro-final-em-protesto/ . cesso em 20 de junho de 2.022.
28 https://www.usaswimming.org/
29 Globo Esporte – Redação (site). COI divulga nova diretriz para inclusão e elegibilidade de atletas transgêneros e intersexuais. Publicado em 16 de novembro de 2021. Disponível em: https://ge.globo.com/olimpiadas/noticia/coi-divulga-nova-diretriz-para-inclusao-e-elegibilidade-de-atletas-transgeneros-e-intersexuais.ghtml Acesso em 20 de junho de 2.022.
participação de atletas transgênero.
Esta regra foi votada por 71,5% de seus 152 membros provenientes de diversos países, com base em um relatório realizado por um grupo multidisciplinar: Grupo Atletas, Grupo Jurídico e Grupo Científico, este último formado especialistas em fisiologia, endocrinologia, performance humana, todos com conhecimento sobre as diferenças entre sexos medicina transgênica30
Este novo regulamento cumpre com a função social de inclusão das atletas transgênero, bem como assegura a competitividade justa para as atletas cisgênero. Pelas palavras do Presidente da FINA, Sr. Husain Al-Musallam: “Temos que proteger os direitos de nossos atletas de competir, mas também temos que proteger a justiça competitiva em nossos eventos, especialmente a categoria feminina nas competições da Fina.” 31
Trata-se de um primeiro passo à evolução de estudos e regras para que se atendam os interesses de todos os grupos envolvidos. Ações como esta serão objeto de desenvolvimento e servirão de exemplo para que as entidades de outras modalidades iniciem suas medidas efetivas em relação ao tema.
Algumas posições contrárias à justa inovação da FINA alegam que os Direitos Humanos regem os esportes, não podemos negar os fatos.
30 “The Science Group was comprised of independent experts in the fields of physiology, endocrinology, and human performance, including specialists in sex differences in human performance and in transgender medicine.” Disponível em: https:// resources.fina.org/fina/document/2022/06/19/525de003-51f4-47d3-8d5a-716dac5f77c7/FINA-INCLUSION-POLICY-AND-APPENDICES-FINAL-.pdf Acesso em 27 de junho de 2.022. 31 Globo Esporte – Redação (site). Federação Internacional de Natação pretende criar "categoria aberta" para atletas transgêneros. Publicado em 19 de junho de 2.022. Disponível em: https://ge.globo.com/natacao/noticia/2022/06/19/federacao-internacional-de-natacao-pretende-criar-categoria-aberta-para-atletas-transgeneros.ghtml Acesso em 20 de junho de 2022.
O tema é extremamente importante e faz-se necessário urgentemente iniciar um trabalho multidisciplinar efetivo que traga um cenário justo a todos os envolvidos, sem qualquer alegação baseada simplesmente em apelo emocional.
O caminho para a inclusão imediata propriamente dita já foi aberto recentemente pela Federação Internacional da Natação – FINA. A ação inicial para que atletas transgênero não sejam excluídas das competições já foi dado e como tudo, será melhorado ao decorrer dos anos. Atualmente, é o que se pode ser feito em termos de se garantir a competitividade para todos os grupos, sem que nenhum deles saia prejudicado.
Não se trata de transfobia, preconceito nem qualquer outra denominação ou apelo que tenha por objetivo desviar a realidade do que ocorre dentro das quadras, piscinas e demais campos de disputa desportivos.
A desigualdade proporcionada pelas vantagens físicas que a atleta transgênero ainda possui sobre a atleta cisgênero é comprovada por fatos e dados científicos e ainda gera revolta tanto pelas demais atletas prejudicadas quanto pela sociedade como um todo.
Não se pode fechar os olhos para esta realidade, tampouco pela urgente necessidade de inclusão das atletas transgênero, contudo com reais possibilidades de competitividade entre estas e as atletas cisgênero, cumprindo-se o princípio de paridade de armas, basilar do Direito Desportivo o fair play (jogo justo).
Diversos ramos do Direito vêm se adaptando às rápidas mudanças da sociedade neste contexto, contudo dentro do Direito Desportivo, estas mudanças também ocorrerão oportunamente, mas faz-se necessário manter a ponderação de valores com os direitos das atletas cisgênero. Para tanto, ainda remanesce a necessidade de uma série de estudos e adaptações físicas para que se alcance efetivamente a igualdade entre as
atletas trans e cisgênero.
Somente o respeito temporal que o tema exige, sem qualquer atropelamento e imposição, nos permitirá ajustar o real cenário esportivo às constantes mudanças de nossa sociedade.
Já no campo médico, em que pese a discussão seja bem antiga, os estudos ainda estão em início de descobertas. Atualmente, há escassez de estudos que compare a atleta transgênero com atletas do gênero desejado e a maioria das publicações existentes comprova a superioridade física da atleta transgênero sobre a cisgênero.
Estamos tratando de um cenário onde as condições, principalmente a força física são essenciais para a realização da performance. E qualquer vantagem torna o desporto injusto.
No cenário das atletas transgênero, a questão se torna ainda mais polêmica, pois há o movimento social de inclusão, que em qualquer outro cenário ou profissão, não há qualquer discussão ou resistência em que tenha que ocorrer. Contudo, para o esporte, tais movimentos sociais fecham os olhos e tentam enaltecer apelativamente apenas a importância da inclusão, sem prestar atenção às vantagens físicas e corporais das atletas transgênero e, principalmente, sem levar em conta toda a luta das atletas cisgênero para alcançarem suas conquistas. Ou seja, a inclusão deve ser feita a todo custo, apagando todo o histórico de lutas e conquistas dos direitos humanos das mulheres, principalmente ao direito ao esporte e à justa competição.
No cenário contrário, onde o atleta transgênero opta por disputar entre os atletas masculinos, na maioria das modalidades verifica-se pouca ou a inexistência de vantagem física envolvida. Por mais que a terapia hormonal seja cumprida, não há estudos de aumento de performance entre esse atleta e os atletas cisgênero. Ao contrário, verifica-se uma considerável diferença física deste atleta que, antes da transição poderia até se destacar entre as atletas mulheres, mas após, quando na competição com atletas homens, não
se destaca, ou ainda, sofre prejuízos devido à diferença física.
Desta forma, ainda que a terapia hormonal seja a única base de permissão atual para a participação de atletas transgênero em competições com atletas cisgênero, não se faz suficiente para garantir a igualdade dentro do esporte. Isto porque, além dos hormônios, não podemos esquecer de toda a preparação daquela atleta até aquele momento, de sua capacidade física presente em sua memória muscular, bem como todos os demais meios em que treinava durante anos.
“Até a puberdade, as meninas e os meninos são muito semelhantes em altura, massa muscular, tamanho do coração, capacidade aeróbica e, consequentemente, em performance esportiva. A partir da puberdade, quando os hormônios entram efetivamente em ação, há maior produção de estradiol nas mulheres e de testosterona nos homens. E a partir daí, as mudanças que isso causa são muito grandes. O volume do coração, a capacidade pulmonar, massa muscular…”, explica Tathiana Parmigiano, ginecologista do COB (Comitê Olímpico do Brasil).
“E isso acaba impactando na performance. Então se a pessoa transexual fizesse a transição antes da puberdade, ele poderia competir em grau de igualdade. Uma vez que isso seja feito depois, essa igualdade não existe mais. No caso das mulheres trans, a simples aferição do nível de testosterona não vai ser suficiente para dizer que eles são iguais. Porque existiu um período todo depois da puberdade em que capacidades fisiológicas foram desenvolvidas de maneiras diferentes em decorrência do hormônio que preponderava. Claro que existe a necessidade de inclusão da transexualidade no esporte, mas ainda tem muito a ser feito”, completa.”32
Somente após a superação dos demais fatores envolvidos para se assegurar a real igualdade física e corporal entre atletas mulheres trans32 Idem 14
gênero e cisgênero, o que exigirá uma união multidisciplinar, com pessoas comprometidas a exceder essas questões, é que o esporte poderá finalmente cumprir com sua função social de integração, acolhimento, sem deixar de lado a justiça da competição, pois a igualdade e a paridade de armas já estarão devidamente estabelecidas.
Agência O Globo. Nadadora transexual enfrenta críticas ao quebrar recordes femininos após competir com homens. Disponível em https://www.folhape.com.br/esportes/nadadora-transexual-enfrenta-criticas-ao-quebrar-recordes-femininos/208587/. Publicado em 08 de dezembro de 2.021
BBC News. Olimpíada de Tóquio 2021: a proposta radical de cientista e atleta trans para incluir transgêneros no esporte ‘de forma justa’. Publicado em 02 de Agosto de 2021.Disponível em: https://epocanegocios.globo.com/Olimpiada/noticia/2021/08/olimpiada-de-toquio-2021-proposta-radical-de-cientista-e-atleta-trans-para-incluir-transgeneros-no-esporte-de-forma-justa. html
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DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DAS ASSOCIAÇÕES DESPORTIVAS PARA SATISFAÇÃO DO CRÉDITO TRABALHISTA
O presente artigo pretende realizar uma breve abordagem sobre a necessidade de atingir o patrimônio dos dirigentes das entidades desportivas sempre que ficar comprovado que agiram com ingerência e imprudência, prejudicando o sistema financeiro das associações, colocando em risco, inclusive sua existência. Para isso será abordado os aspectos trazidos pela Lei nº 14.073, de 14 outubro de 2020, que trouxe importantes alterações à Lei 9.615/98 (Lei Pelé).
Palavras-chave
Desconsideração da Personalidade Jurídica – Associação – Clubes – Dirigentes – Responsabilidade Patrimonial – Direito do Trabalho – Dignidade da Pessoa Humana
Talita Novaes
Advogada. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Pós-Graduada Direito Desportivo (com docência para o ensino superior) pela ESA-OAB/SP. Pós-Graduada no Novo Processo Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Vice-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB/Campinas 2022/2024.
RELEVÂNCIA
DO TEMA
Esse artigo tem como propósito discorrer sobre a possibilidade de atingir o patrimônio dos dirigentes das entidades de prática desportiva através do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, principalmente no que diz respeito a dívidas de natureza trabalhista, ficando demonstrado que o dirigente agiu com dolo e prejudicou a entidade.
Para tanto, será feita uma análise da legislação atual, em especial a Lei Pelé (Lei nº 9.615/98), Jurisprudência, Doutrinas e Artigos Científicos, destacando a responsabilidade patrimonial dos dirigentes desportivos.
Será evidenciada a importância da comprovação da ingerência e negligência que demonstrem a real circunstância dos prejuízos causados aos clubes. Além disso será utilizado o método histórico, que faz críticas e interpreta a legislação, jurisprudência, artigos científicos e doutrinas específicas sobre o tema.
Não é um tema amplamente discutido na área acadêmica, refletindo na jurisprudência que inúmeras vezes deixa de analisar tais fatos, no entanto, a sua análise é de suma importância tendo em vista, inclusive a alteração da Lei Pelé, através da Lei 14.073/2020 que ampliou a responsabilidade patrimonial dos dirigentes.
Importante mencionar que, a despeito da possibilidade de se atingir o patrimônio dos responsáveis pela Sociedade Anônima do Futebol (SAF), este artigo trata apenas dos clubes enquanto associações.
A questão que será discutida, gira em torno da necessidade de que haja uma análise do fato concreto para que, assim, seja desconsiderada a personalidade jurídica das associações, fazendo com que os dirigentes sejam responsabilizados diante de atitudes que geraram prejuízos os cofres dos clubes, que são associações sem fins lucrativos e para sua manutenção dependem do bom rendimento técnico e financeiro. Nesse
viés, como é possível desconsiderar a personalidade jurídica das associações desportivas e atingir o patrimônio daqueles que a gerenciam?
1. ENTIDADES DE PRÁTICA DESPORTIVA ENQUANTO ASSOCIAÇÕES
As entidades de prática desportiva, popularmente chamadas de clubes, são entidades de direito privado, sem fins lucrativos, constituídas como associações que utilizam recursos privados e públicos para sua manutenção e desenvolvimento.
Sabe-se que o Estado, mesmo diante da obrigatoriedade prevista no artigo 217 da Constituição Federal, não consegue fomentar o esporte como deveria, se fazendo necessário transferir a sua responsabilidade para as entidades privadas que desenvolvem a prática desportiva, ou seja, para os clubes.
Para isso, o Estado fornece alguns benefícios financeiros e fiscais, auxiliando o desenvolvimento do esporte no país. Mas para que as entidades recebam a verba pública, é preciso seguir diversas formalidades, como as previstas no artigo 18 da Lei Pelé, bem como as determinações da Lei de Incentivo ao Esporte (Lei nº 11.438/2006), PROFUT (Lei nº 13.155/2015) e da Lei nº 13.204/2015.
Dentre as principais obrigações estabelecidas pelas Leis citadas acima, estão a necessidade de os Estatutos Sociais possuírem dispositivos que determinam a obrigatoriedade do Conselho Fiscal como órgão autônomo, de modo a fiscalizar rigorosamente as contas e finanças das associações, limitação do recebimento de salários pelos dirigentes, limitação do tempo de mandato, gestão transparente, impossibilidade de contratação de parentes de até 3º grau dos dirigentes, dentre outros. A ausência de qualquer requisito previsto em algumas das disposições legais, impede o recebimento, pelos clubes, de auxílio financeiro do Estado.
Cabe destacar que, o descumprimento de qualquer previsão dos Estatutos Sociais das entidades desportivas pode, e deve, ser considerado como ato gestão temerária e atuação com dolo do seu dirigente.
Nesse sentido, é de responsabilidade do dirigente a administração da entidade de prática desportiva, tendo o dever de planejar, organizar e controlar os recursos financeiros e, principalmente, o cumprimento do Estatuto Social e legislação vigente.
Em linhas gerais é do dirigente a responsabilidade pelos passos que o clube dará, definindo como será utilizada a receita recebida, seja através do incentivo do Estado, de patrocínios, de associados, sócios torcedores, ingressos, dentre outras possibilidades de fonte de receita.
Em um cenário de precarização das gestões esportivas, é comum encontrar dirigentes que tomaram atitudes que lhe beneficiem, tanto através de empréstimos financeiros, como transações de jogadores, reformas em estádios, venda de “naming rights”, formalização de contratos.
De toda sorte, os associados possuem condições de fiscalizar se as metas propostas estão sendo desenvolvidas, fazendo-se cumprir o Estatuto Social, verificando se os responsáveis estão mantendo o setor financeiro saudável. Para tanto, possuem procedimentos administrativos que tem como objetivo proteger as associações dos interesses privados do dirigente, que não devem se sobrepor aos do clube.
Não é raro, no entanto, acontecer investigações como no caso do Esporte Clube Cruzeiro, em que o Ministério Público investigou e indiciou o Presidente e demais dirigentes do clube por praticas que envolvem falsidade ideológica e documental, apropriação indébita, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Sendo condenados, deverão a ressarcir os danos causados ao clube.
Um clube, seja de futebol, basquete, vôlei ou
qualquer outra modalidade, vive de títulos, sua torcida é composta por pessoas que se identificam com a história do time, mas para que tenham resultados positivos é preciso que haja investimento e para isso as finanças devem ser rigorosamente cuidadas, ainda mais se tratando de associações sem fins lucrativos que possuem limitações comerciais.
2. RESPONSABILIDADE PATRIMONIAL DOS DIRIGENTES
A Lei nº 14.073, de 14 outubro de 2020, trata de ações emergenciais ao setor esportivo, trazendo algumas alterações à Lei 9.615/98 (Lei Pelé), sendo que em relação aos dirigentes das entidades do Sistema Nacional do Desporto, a Lei 14.073/20 acrescentou os artigos 18-B, 18-C, 18-D e 18-E que tratam de sua responsabilidade.
Importante lembrar que, em seu artigo 13, a Lei Pelé define como entidades do Sistema Nacional do Desporto, aquelas que possuem a finalidade de “promover e aprimorar as práticas desportivas de rendimento”, podendo ser pessoa física ou jurídica, com ou sem fins lucrativos. Assim, são entidades do Sistema Nacional do Desporto o Comitê Olímpico Brasileiro (COB), o Comitê Paralímpico Brasileiro, as entidades nacionais de administração do desporto, as entidades regionais de administração do desporto, as ligas regionais e nacionais, o Comitê Brasileiro de Clubes (CBC), o Comitê Brasileiro de Clubes Paralímpicos (CBCP) e as entidades de prática desportiva filiadas ou não àquelas referidas anteriormente. Com as alterações feitas no artigo 18, o dirigente, que é aquele que exerce, de fato ou de direito, poder de decisão na gestão da entidade, tem seus bens particulares sujeitos ao disposto no artigo 50 do Código Civil, ou seja, ocorrendo desvio de finalidade ou confusão patrimonial entre os bens da entidade e do dirigente, ocorrerá o abuso da personalidade jurídica, que ensejará a desconsideração da personalidade jurídica, por meio de requerimento da parte ou do Ministério Público.
Ocorrendo a desconsideração, as obrigações da entidade serão estendidas aos bens particulares do dirigente, bem como aos administradores ou sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Entende-se como desvio de finalidade, a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Já confusão patrimonial é a ausência de separação de fato entre os patrimônios. Caracteriza-se pela transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações e outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Importante mencionar que a Lei Pelé já previa a responsabilização dos dirigentes, nos termos do seu artigo 27, caput e §11, antes da mencionada alteração legislativa. Vejamos:
Art. 27. As entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais e as entidades de administração de desporto ou ligas em que se organizarem, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes ao disposto no art. 50 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, além das sanções e responsabilidades previstas no caput do art. 1.017 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 20021, na hipótese de aplicarem créditos ou bens sociais da entidade desportiva em proveito próprio ou de terceiros.
(...)
§11. Os administradores de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados, de gestão temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto, nos termos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil. (grifo
1 Código Civil, artigo 1.017. O administrador que, sem consentimento escrito dos sócios, aplicar créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, terá de restituí-los à sociedade, ou pagar o equivalente, com todos os lucros resultantes, e, se houver prejuízo, por ele também responderá.
nosso)
No âmbito exclusivo do futebol, a Lei do PROFUT, em seu artigo 24 também prevê a responsabilidade solidária dos dirigentes, submetendo a aplicação do artigo 50 do Código Civil:
Art. 24. Os dirigentes das entidades desportivas profissionais de futebol, independentemente da forma jurídica adotada, têm seus bens particulares sujeitos ao disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil.
(...)
§ 2º Os dirigentes de entidades desportivas profissionais respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados e pelos atos de gestão irregular ou temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto.
§ 3º O dirigente que, tendo conhecimento do não cumprimento dos deveres estatutários ou contratuais por seu predecessor ou pelo administrador competente, deixar de comunicar o fato ao órgão estatutário competente será responsabilizado solidariamente.
Com isso, os dirigentes respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados e pelos atos de gestão irregular ou temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto.
Nesse caso, os ilícitos praticados são decorrentes do inadimplemento do acordado, ou seja, ao assumir a gestão de uma entidade desportiva, os dirigentes se comprometem previamente a cumprir o Estatuto Social da Associação bem como a legislação nacional, principalmente, em efetuar corretamente o pagamento de salários e reflexos trabalhistas de todos aqueles que são contratados pelo clube.
Os atos de gestão irregular ou temerária, são aqueles que revelem desvio de finalidade na direção da entidade ou que gerem risco excessivo
e irresponsável para seu patrimônio, tais como a aplicação de créditos ou bens sociais em proveito próprio ou de terceiros, obtenção, para si ou para outrem, de vantagem a que não faz jus e de que resulte ou possa resultar prejuízo para a entidade desportiva, celebração de contrato com empresa da qual o dirigente, seu cônjuge ou companheiro, ou parente, em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, sejam sócios ou administradores, exceto no caso de contratos de patrocínio ou doação em benefício da entidade desportiva, recebimento de qualquer pagamento, doação ou outra forma de repasse de recursos oriundos de terceiros que, no prazo de até 1 (um) ano, antes ou depois do repasse, tenham celebrado contrato com a entidade desportiva profissional, antecipar ou comprometer receitas em desconformidade com o previsto em lei, não divulgar de forma transparente informações de gestão aos associados, deixar de prestar contas de recursos públicos recebidos.
A responsabilização do dirigente por sua má gestão também encontra respaldo no artigo 2º da Lei Pelé2, que traz os princípios norteadores à exploração e gestão da atividade exercida pelos clubes.
Nota-se que, sem prejuízo dos demais princípios norteadores do direito brasileiro, os princípios relacionados à gestão desportiva têm como base a transparência, a moralidade e a responsabilidade dos dirigentes. Isso significa que os próprios princípios trazem a possibilidade de responsabilizar os dirigentes pelos seus atos.
Assim, fica evidente que a violação da norma gera o ato danoso, surgindo a obrigação de indenizar, portanto, os dirigentes que praticarem atos de gestão irregular ou temerária poderão ser responsabilizados por meio de mecanismos
2 Parágrafo único. A exploração e a gestão do desporto profissional constituem exercício de atividade econômica sujeitando-se, especificamente, à observância dos princípios: I- da transparência financeira e administrativa; II- da moralidade na gestão desportiva; III- da responsabilidade social de seus dirigentes; IV- do tratamento diferenciado em relação ao desporto não profissional; e V- da participação na organização desportiva do País.
de controle social internos da entidade, sem prejuízo da adoção das providências necessárias à apuração das eventuais responsabilidades civil e penal. Somente não serão responsabilizados quando comprovarem que não agiram com culpa grave ou dolo, ou seja, deverão comprovar que agiram de boa-fé e que as medidas realizadas visavam a evitar prejuízo maior à entidade.
3. DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Na tentativa de evitar que pessoas jurídicas sejam criadas e usadas para ter vantagem e praticar atos de má-fé, por ter seus bens protegidos das consequências inerentes ao ato ilícito, o legislador nacional criou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, com regulação nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil.
A instauração do incidente tenta ampliar a segurança jurídica ao combater as fraudes patrimoniais e atingir o bem daqueles sócios, ou no presente caso, dos dirigentes, que derem causa aos danos, devendo prevalecer o princípio da utilidade para o credor, como bem definido pelo jurista Carlos Herique Bezerra Leite3, “a execução deve ser útil ao credor”.
De igual forma, defende o Magistrado Mauro Schiavi4, em seu livro sobre execução trabalhista, a seguir:
A execução trabalhista se faz no interesse do credor. Desse modo, todos os atos executivos devem convergir para a satisfação do crédito exequente. Isso se justifica em razão de o credor possuir seu direito con-
3 Princípio da utilidade para o credor – LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Princípios do cumprimento da sentença e da execução trabalhista. Curso de Direito Processual do Trabalho. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 1343.
4 Princípio do credor trabalhista – SCHIAVI, Mauro. Dos princípios da execução trabalhista em espécie: primazia do credor trabalhista. Execução no processo do trabalho: de acordo com o novo CPC e a reforma trabalhista. 11. ed. São Paulo: Ltr, 2019. p. 30.
sagrado num título com força executiva, que delimita a obrigação a ser cumprida, bem como o devedor dessa obrigação. (...) Na execução trabalhista, o presente princípio se destaca em razão da natureza alimentar do crédito trabalhista e da necessidade premente de celeridade do procedimento executivo.
Desse modo, no que tange as entidades de prática desportiva, é comum que os Estatutos tragam como definição que se tratam de associações sem fins lucrativos, dotadas de personalidade jurídica distinta de seus associados, não sendo eles responsáveis solidaria e subsidiariamente pelas obrigações assumidas em nome da entidade.
No entanto, essa definição não impede que seus dirigentes tenham seus patrimônios atingidos em caso da prática de gestão temerária e ingerência como dispõe o artigo 18 da Lei Pelé.
Além disso, o artigo 27, §135 traz uma equiparação dos clubes com sociedades empresariais para fins fiscais. Portanto, por analogia, é possível utilizar a mesma equiparação para desconsiderar sua personalidade jurídica de modo que o patrimônio daqueles que lhe causarem danos seja responsável por ressarci-lo.
No campo trabalhista é possível observar com maior facilidade a aplicação desse instituto, considerando o dirigente como responsável pela dívida, sendo possível quando há o esgotamento de todas as tentativas de localização de bens da associação.
Entende-se que o não pagamento de verbas trabalhistas é um ato de ingerência e negligência dos dirigentes que deixam de cumprir a Constituição e CLT, afinal, houve a contraprestação por um serviço sem a correspondente remuneração.
5 Lei Pelé, artigo 27, § 13. Para os fins de fiscalização e controle do disposto nesta Lei, as atividades profissionais das entidades de que trata o caput deste artigo, independentemente da forma jurídica sob a qual estejam constituídas, equiparam-se às das sociedades empresárias.
Nesse sentido, o jurista Carlos Henrique Bezerra Leite, em seu Curso de Direito Processual do Trabalho6, afirma que “os sócios-gerentes poderão responder solidária e ilimitadamente se praticarem atos com excesso de mandato ou desrespeitarem normas legais ou do contrato social”.
Permitir a desconsideração da personalidade jurídica dos clubes ou associações privadas, é uma forma proteção ao trabalhador, que é hipossuficiente, e possui como crédito uma verba de natureza alimentar, que é crucial para o seu sustento e de sua família, justificando, assim, a responsabilização direta daquele que deixou de pagá-lo.
Desse modo, na Justiça do Trabalho deve prevalecer o princípio da dignidade da pessoa humana, usado como fundamento da Constituição Federal, e que está diretamente relacionado a preceitos morais e da honra do ser humano, de modo que, o trabalho não remunerado, viola inequivocamente tão princípio.
Nesse sentido, o jurista Arion Sayão Romita7, em sua obra que trata dos direitos fundamentais no contexto do trabalho, destaca o princípio da dignidade humana, conforme transcrição a seguir:
O ato do Estado-legislador ou do Estado-juiz que venha a conculcar a dignidade da pessoa humana agride o próprio fundamento do Estado brasileiro. O respeito à dignidade da pessoa humana impõe-se não só nas relações Estado/particular como também nas relações particular/ particular, por força da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, já que estes, por Estado de direito, representam meios de desinficação do valor fundamental em
Ainda no contexto do importante e um dos mais relevantes princípios fundamentais previsto na Constituição Federal, o jurista Rizzatto Nunes8 ressalta que “na real colisão de honras, é a dignidade que servirá – via proporcionalidade – para sopesar os direitos, limites e interesses postos, e gerar a resolução”.
Portanto, diante da possibilidade e necessidade de se atingir os bens patrimoniais daquele que feriu princípios basilares do direito, causando prejuízos ao hipossuficiente, vale destaque ao trecho de acórdão que manteve a inclusão do dirigente no polo passivo da demanda, após não serem encontrados bens da associação:
Desconsideração da Personalidade Jurídica. Constatação de insuficiência patrimonial da pessoa jurídica. Aplicação da teoria objetiva. (art. 28, § 5º, da Lei n.º 8.078/90). Autorizado o prosseguimento em face dos bens dos sócios. O redirecionamento da execução trabalhista, contra os bens dos sócios, prescinde da comprovação de fraude e abuso da personalidade jurídica. Para tanto, e em razão da aplicação da teoria objetiva prevista no Código do Consumidor (art. 28, §5º, da Lei 8.078/90), basta a mera constatação de insolvência ou insuficiência patrimonial da empresa, para que os integrantes do quadro societário, e que se beneficiaram, direta ou indiretamente da prestação de trabalho, sejam responsabilizados pelas obrigações contraídas pela pessoa jurídica. Agravo não provido. (...) Nesse sentido, resta perfeitamente aplicável a teoria objetiva da desconsideração da personalidade jurídica do empregador, prevista no art. 28, caput, do CDC (Lei n.º 8.078/90), segundo a qual, basta a mera constatação de insolvência ou insuficiência de bens da empresa, para que os respectivos sócios sejam chamados a responder com os respectivos bens. Isto porque, a exemplo das
8 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana - NUNES, Rizzatto. Dignidade, igualdade e proporcionalidade. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pesosa Humana. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 78.
relações de consumo, em que o consumidor é a parte mais fraca, o trabalhador ostenta a condição de hipossuficiência na relação de trabalho. Não há, pois, necessidade de provas a respeito de fraude, abuso ou desvio da personalidade jurídica (art. 50 do CC), como condição para que, aqueles que se beneficiaram direta ou indiretamente da prestação de trabalho, sejam responsabilizados pelo pagamento do crédito, cujo inadimplemento, no mínimo, ocorreu em razão de má administração da pessoa jurídica
(TRT2 - AP nº 0001681-50.2012.5.02.0051, Relator Adalberto Martins, 8ª Turma, Data de julgamento: 01/12/2021, Data de publicação: 17/12/2021)
Importante mencionar que para a desconsideração da personalidade jurídica e consequente responsabilização do dirigente, há a aplicação do artigo 50 do Código Civil (“Teoria Maior”) ou do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (“Teoria Menor”), sendo ambas as teorias aceitas e aplicadas pela Justiça do Trabalho.
Assim, no que diz respeito à entidade de prática desportiva, o seu dirigente, aquele que exerce, de fato ou de direito, poder de decisão na gestão da entidade, é responsável pela sua administração, de modo terá seus bens particulares sujeitos ao disposto no artigo 50 do Código Civil, ou seja, aplicação da “Teoria Maior”, ao passo que há ingerência do dirigente que descumpriu a CLT e ensejou demanda trabalhista, nos termos do artigo 18-B da Lei 9.615/98, a seguir transcrito:
Art. 18-B. Os dirigentes das entidades do Sistema Nacional do Desporto, independentemente da forma jurídica adotada, têm seus bens particulares sujeitos ao disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)
(...)
§ 2º Os dirigentes de entidades desportivas respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados e pelos atos
de gestão irregular ou temerária ou contrários ao previsto no contrato social ou estatuto.
Com relação a “Teoria Menor”, que utiliza o artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor9, para a sua aplicação basta que o clube seja inadimplente e não tenha bens suficientes para satisfazer seu débito, como afirma o Magistrado Mauro Schiavi10:
Atualmente, a moderna doutrina e a jurisprudência trabalhista encamparam a chamada teoria objetiva da desconsideração da personalidade jurídica que disciplina a possibilidade de execução dos bens sócio, independentemente de os atos destes violarem ou não o contrato, ou haver abuso de poder. Basta a pessoa jurídica não possuir bens para ter início a execução aos bens do sócio. No processo do trabalho, o presente entendimento se justifica em razão da hipossuficiência do trabalhador, da dificuldade que apresenta o reclamante em demonstrar a má-fé do caráter alimentar do crédito trabalhista.
Como já informado, os créditos trabalhistas possuem natureza alimentar e são de titularidade de hipossuficiente, portanto, na Justiça do Trabalho, prevalece o entendimento quanto à possibilidade de aplicação da Teoria Menor. A exemplo da sua validade, vale transcrição da decisão, a seguir:
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
MENTO EM FACE DOS SÓCIOS. ART. 28, § 5º, DO CDC. POSSIBILIDADE. A desconsideração da personalidade jurídica no processo do trabalho não se restringe às hipóteses do artigo 50 do Código Civil (teoria maior). Nesta especializada, privilegia-se o princípio da proteção ao trabalhador, exigindo-se tão-somente a inadimplência do devedor e a ausência de bens que possam garantir a satisfação do crédito em execução (teoria menor), em aplicação analógica do artigo 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor.
(TRT 3 - 0000511-46.2012.5.03.0138, Relatora: Cristiana Maria Valadares Fenelon, 7ª Turma, Data de Julgamento: 14/02/2020, Data de Publicação: 17/02/2020)
Sem prejuízo dos demais princípios norteadores do direito brasileiro, os princípios relacionados à gestão desportiva previstos no artigo 2º, parágrafo único, da Lei 9.615/98, têm como base a transparência, a moralidade e a responsabilidade dos dirigentes. Com isso, os dirigentes respondem solidária e ilimitadamente pelos atos ilícitos praticados e pelos atos de gestão irregular ou temerária.
Portanto, a desconsideração da personalidade jurídica pode atingir o patrimônio do dirigente para sanar os débitos com terceiros, sejam eles atletas, intermediários/agentes, dentre outros, mas também para ressarcir os cofres dos clubes e indenizar pelos danos provocados ilicitamente por ele.
NOTAS CONCLUSIVAS
9 O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
10 SCHIAVI, Mauro. Da responsabilidade do sócio (desconsideração da personalidade jurídica). Execução no processo do trabalho: de acordo com o novo CPC e a reforma trabalhista. 11. ed. São Paulo: Ltr, 2019. p. 204.
Diante do que foi demonstrado, é possível concluir que aquele que é responsável por administrar o clube deve ser responsabilizado pelas dívidas que contrair, na proporção de sua atuação, em especial verbas trabalhistas que possuem amparo legal e possuem natureza alimentar.
É preciso ter cautela, nem todos os problemas que acontecem em um clube são consequências
de atos de má fé de seus dirigentes. Mas quando ficar comprovado qualquer coisa diferente disso, a associação não pode ser prejudicada.
Assim, alterações trazidas pela Lei nº 14.073, constituem uma importante ferramenta para melhorar o Sistema Desportivo, que muitas vezes tem suas entidades prejudicadas por atos de ingerência daqueles que deveriam zelar e não depreciar as associações que representam. Com isso, espera-se que a possibilidade de ressarcimento pelos prejuízos causados ao patrimônio da entidade e a inelegibilidade por dez anos para cargos eletivos em qualquer entidade desportiva profissional, sejam suficientes para que os dirigentes passem a atuar com responsabilidade, colocando os interesses das associações acima do benefício próprio.
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O PAPEL DO DEFENSOR DATIVO NO NOVO CÓDIGO BRASILEIRO ANTIDOPAGEM
O texto destaca a relevância do Defensor Dativo no direito desportivo, especialmente na proteção do atleta hipossuficiente em situações de dopagem. Ao abordar a legislação brasileira pertinente, como a Constituição Federal e o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o texto ressalta a atuação desse profissional nos códigos que tratam de doping no cenário esportivo nacional e internacional. O documento também detalha as dificuldades financeiras enfrentadas por atletas profissionais no Brasil, demonstrando a necessidade de suporte jurídico gratuito, tanto na justiça comum quanto na desportiva, para assegurar o direito de defesa. Conclui-se sublinhando a crescente importância do Defensor Dativo, sobretudo nas questões relacionadas ao doping, que têm se tornado cada vez mais frequentes.
Palavras-chave
Defensor Dativo - Direito Desportivo - Atleta Hipossuficiente - Dopagem - Constituição Federal - Lei
Pelé - Código Brasileiro de Justiça Desportiva - Código Brasileiro Antidopagem - Desporto Nacional - Justiça Comum - Justiça Desportiva
Débora Passos
Advogada. Graduada em Direito pela Uniara. Pós-Graduada em Direito Desportivo pela ESA/OABSP. Membro Efetivo da Comissão de Direito Desportivo da OAB Araraquara/SP.
O presente texto tem por objetivo demonstrar a importância do Defensor Dativo no direito desportivo, especificamente sua atuação na defesa do atleta hipossuficiente em casos de dopagem.
Será analisada a legislação nacional vigente pertinente ao tema, como a Constituição Federal, Lei Pelé, Código Brasileiro de Justiça Desportiva, Código Brasileiro Antidopagem e demais leis esparsas, além de enfatizado o papel do Estado no desporto nacional.
Será demostrada a importância que o Defensor Dativo assumiu no Código Mundial Antidopagem e Código Brasileiro Antidopagem, códigos que regem o desporto nacional e internacional quando são tratadas as questões relacionadas ao doping.
O texto abordará a vida do atleta profissional no Brasil, suas lutas, a média de ganhos e quais as suas necessidades financeiras para conseguir se manter como um atleta de ponta, sem necessitar de uma segunda profissão para sobreviver financeiramente.
A abordagem do tema proposto, a atuação do Defensor Dativo na Justiça Desportiva Antidopagem vem em seguida, objetivando conceituar o tema, mostrar como atua o Defensor Dativo na justiça comum, no direito desportivo em defesa do atleta, além de trazer o conteúdo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem.
Tanto a justiça comum, quanto a justiça desportiva, por lei, são obrigadas a oferecer defensores sem custo, para garantirem o direito à ampla defesa e ao contraditório.
As considerações finais demonstrarão a importância da figura do advogado na defesa dos direitos do atleta profissional, em especial do Defensor Dativo na vida do atleta hipossuficiente, cada vez mais necessária quando a questão do doping é abordada e que, infelizmente, tem
se tornado cada vez mais recorrente.
2. LEGISLAÇÃO DESPORTIVA NACIONAL
A partir de 1938 o Estado sentiu a necessidade de regulamentar o esporte e foi em 1941 que Getúlio Vargas, Presidente da República na época, instituiu o Decreto Lei n° 3.199/41, definindo as bases de organização do desporto e criando o Conselho Nacional do Desporto, pois o esporte evoluiu através dos tempos e precisou ser disciplinado pelo direito.
O direito ao desporto é um direito social fundamental, uma vez que o esporte é provido de uma natureza predominantemente social, capaz de promover transformações e de integração social.
Do ponto de vista da Administração Pública Federal, o desporto fica sob a responsabilidade do Ministério do Esporte.
Não se pode estudar o Direito Desportivo, sem a leitura atenta das disposições constitucionais a respeito do tema.
Diz o artigo 24 da CF/881 que:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
[...]
IX - educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação;
O já citado artigo 217 da CF/882 dispõe que:
Art. 217. É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados:
1 Constituição da República Federativa do Brasil, Artigo 24. 1988
2 Constituição da República Federativa do Brasil, Artigo 217. 1988
I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;
II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;
III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não profissional;
IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.
O mesmo artigo em seu § 1º, da CF/88, estabelece que:
§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei.
§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.
A Constituição Federal de 1988 define o papel do Estado em relação ao desporto, dando autonomia às entidades de práticas desportivas quanto à organização e funcionamento, limitando o prazo para que a justiça desportiva profira decisões e, somente após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, é que o atleta pode se utilizar da justiça comum.
Porém, como impedir que questões relacionadas ao desporto não se curvem ao princípio da inafastabilidade da jurisdição? Também conhecido como Princípio do acesso à justiça e previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, dispõe que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Porém, há exceções e o Direito Desportivo é uma delas. Protegido pelo artigo 217 da CF quando determina que questões relacionadas à dis-
ciplina e às competições desportivas devem ser dirimidas no âmbito da justiça desportiva e, somente após serem cumpridos todos os trâmites determinados dentro dos tribunais desportivos, é que as questões incontroversas podem ser levadas ao judiciário.
Nesse sentido, a Lei n° 9.615, conhecida como Lei Pelé, foi criada em 1998 como forma de estabelecer diretrizes, incentivar e garantir o direito essencial à prática desportiva.
O Capítulo VII – Da Justiça Desportiva – da Lei Pelé, regulamenta o que determinou o artigo 217, §§ 1º e 2°, em relação à organização, funcionamento e às atribuições da Justiça Desportiva, limitando sua atuação ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas.
Cumprindo a determinação da Constituição Federal de 1988, e seguindo o que regula a Lei 9.615 de 1998, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), foi aprovado em 2003 através da Resolução n°01 do Conselho Nacional de Esportes. Nele consta o conjunto de normas que disciplinam a conduta de todos os profissionais ligados diretamente à prática desportiva no Brasil.
Até 2016, os casos de dopagem eram regulados pelo CBJD, segundo determinavam os artigos da Seção VI Da Dopagem, sendo julgados pelos Tribunais Desportivos de cada modalidade.
Contudo, com o advento dos Jogos Olímpicos do Rio 2016, o Brasil editou a Lei 12.035 de 1º de outubro de 2009 que instituiu o Ato Olímpico, estabelecendo regras especiais à sua realização.
O artigo 11 desta Lei trata sobre o doping, conforme segue:
“Art. 11. Serão aplicadas, sem reservas, aos Jogos Rio 2016 todas as disposições contidas no Código da Agência Mundial Anti-Doping - WADA, bem como nas leis e demais regras de antidoping ditadas pela WADA e pelos Comitês Olímpico e Paraolímpico Internacionais vigentes à época das compe-
Parágrafo único. Havendo conflito entre as normas mencionadas no caput e a legislação antidoping em vigor no território nacional, deverão as primeiras prevalecer sobre esta última, específica e tão somente para questões relacionadas aos Jogos Rio 2016.”
Assim, com o objetivo de harmonizar a legislação nacional com a internacional, o Brasil criou um Tribunal específico para serem julgados os casos de doping de todas as modalidades esportivas.
Nesse sentido, a Lei 13.322 de 28 de julho de 2016, aprovou o Código Brasileiro Antidopagem (CBA) e a criação do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem (TJD-AD).
Este breve histórico relata como o Direito Desportivo brasileiro se desenvolveu através dos tempos, demonstrando a importância que este ramo do direito tem atualmente.
O Direito Desportivo é marcado pela sua especificidade. Autônomo, tem a necessidade de celeridade.
Os Tribunais são compostos por auditores e procuradores que não são remunerados para atuar, e o fazem por amor ao esporte.
Dentro deste contexto, surge a figura do Defensor Dativo, que será abordada brevemente.
1.1. A Justiça Desportiva Antidopagem
A Lei n° 13.322, de 28 de julho de 2016, criou a JAD – Justiça Desportiva Antidopagem, sendo composta de forma paritária por representantes indicados pelo Poder Público, pelas entidades nacionais de administração do desporto e pelas entidades sindicais dos atletas.
A JAD tem por objeto a organização do sistema brasileiro antidopagem e a previsão das regras e procedimentos aplicáveis à prevenção e combate ao doping no esporte nacional.
Regida pelo Código Brasileiro Antidopagem, a JAD é composta pelo Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem – TJD-AD e pela Procuradoria da Justiça Desportiva Antidopagem – PROC-JAD. É o único Tribunal Desportivo regulamentado por LEI, estatizando a responsabilidade de julgar os casos relacionados ao assunto, antes competentes aos tribunais desportivos, além de suprimir das confederações esportivas o direito ao julgamento de casos relacionados ao doping
3. CÓDIGOS ANTIDOPAGEM MUNDIAL E BRASILEIRO
A WADA (World Anti-Doping Agency), Agência Mundial Antidoping, criada em 1999, é a autoridade mundial de controle de doping e tem signatários no mundo todo, sendo o Brasil um deles.
Em 2003, a WADA desenvolveu o Código Mundial Antidoping, implementado em 2004 por organizações esportivas a partir dos Jogos Olímpicos de Atenas, padronizando as regras que governam o antidoping em todos os esportes mundialmente. Era um modelo único, rígido.
Em 2009 esse Código foi atualizado, ainda rígido, mas com visão global.
Em 2015 houve outra atualização do Código que resultou uma grande abertura em busca da verdade. Há maior rigidez para fraudadores e mal-intencionados e maior flexibilidade para os casos de doping acidental.
Recentemente o Código foi revisto, entrando em vigor em 01 de janeiro de 2021.
A Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) é o órgão responsável pelo controle de doping no Brasil.
Como já citado, o Código Brasileiro Antidopagem (CBA) foi aprovado pela Lei 13.322 de 28 de julho de 2016. Regulamenta as regras de comba-
te ao doping no esporte e deve estar em consonância com as regras internacionais constantes no Código Mundial Antidopagem, portanto, também entrou em vigor sua nova versão em 01 de janeiro de 2021.
4. A REALIDADE DO ATLETA PROFISSIONAL NO BRASIL
Vida de atleta profissional atualmente é bem difícil. Há muitos esforços para que o atleta atinja seus objetivos.
E quais são esses objetivos? Na verdade, o atleta profissional busca sua melhor performance para atingir a desejada vitória. Para que isso ocorra, sabemos que é necessária muita dedicação, treinamentos intensos, quase sempre chegando à exaustão física e mental.
Por trás do atleta profissional há uma equipe inteira de apoio, abrangendo treinadores, médicos, psicólogos, fisioterapeutas, escaltes, e outros que possam contribuir para o bom desempenho do atleta.
A grande questão é: a que o atleta se submete para chegar ao topo e ganhar sua desejada medalha, fama, busca pela recompensa dos esforços e tudo o que vem com as grandes conquistas? Fará o que for preciso, desde que atinja seu objetivo.
Mas isso é atual? Sabe-se bem que não. Segundo relatos do escritor Philostratus, desde há muito, na Grécia Antiga, por volta de 776 a.C., quando foi realizada a 1° Olimpíada da Antiguidade, os esportistas utilizavam chás compostos por diversas ervas, ingeriam cogumelos, bebidas alcoólicas e testículos de animais para atingirem uma melhor performance. 3
Com o tempo, essas ações foram se aperfeiçoando e surgiram as substâncias químicas que auxiliam o desportista a atingir suas melhores
3 O doping na Grécia Antiga – disponível https://brasilescola. uol.com.br/historiag/o-doping-na-grecia-antiga.htm Acesso em 20/06/2022
marcas, correndo o sério risco de ser pego no doping.
E todo esforço por ganhos baixos, em sua maioria das vezes.
Em pesquisa divulgada pela plataforma CupomValido, que reuniu dados da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Statista e Ernest Young, 55% dos jogadores de futebol no Brasil ganham um salário-mínimo, ou seja, o valor de R$ 1.212,00. 33% ganham até R$ 5 mil reais e somente 12% têm ganhos acima desses valores. 4
Já em outros esportes a realidade salarial e condições dadas aos atletas profissionais é muito desproporcional, sendo que a média de valores atinge o patamar de R$ 1.450,00, predominantemente do sexo masculino, e a maior concentração é São Paulo/SP. 5
Considerando essa realidade salarial, como conseguiria o atleta ter condições de assumir os gastos de sua defesa, caso o teste seja positivo no doping?
A triste realidade de um atleta profissional no Brasil, é que a grande maioria tem que ter outra profissão paralela para conseguir se sustentar e também sua família.
Já demonstramos que o Estado tem a responsabilidade de fomentar o desporto profissional no Brasil. O artigo 217, II diz que é dever do Estado destinar recursos para o esporte profissional, porém não são suficientes. Muitos atletas recebem bolsa atleta do Estado, que complementa sua renda, e às vezes é sua única renda.
Tudo isso pelo sonho de ser um atleta reconhecido nacional e internacionalmente, atingindo seus objetivos de estar sempre entre os melhores dentro do esporte que pratica.
4 Mais da metade dos jogadores de futebol vivem com um salário mínimo – disponível em https://edicaodobrasil.com. br/2021/07/09/mais-da-metade-dos-jogadores-de-futebolbrasil-vivem-com-um-salario-minimo/ Acesso em 20/06/2022
5 Atleta Profissional. disponível em https://www.salario. com.br/profissao/atleta-profissional-outras-modalidadescbo-377105/ - Acesso em 20/06/2022
5. A IMPORTÂNCIA DADA AO DEFENSOR DATIVO NA JUSTIÇA DESPORTIVA ANTIDOPAGEM.
Desde a Constituição Federal de 1934, a assistência judiciária é tratada como direito e garantia individual, porém somente a Constituição Federal de 1988 tratou da Defensoria Pública como instituição Pública, órgão responsável por garantir ao indivíduo, uma defesa sem custos. Contudo, o defensor público tem garantia salarial para cada processo em que atua.
Mas afinal, qual o papel do Defensor Dativo?
Advogado Dativo, diferente do constituído, é aquele nomeado pelo juiz para atuar na defesa de pessoas hipossuficientes quando não há um membro da defensoria pública na comarca. A nomeação do Advogado Dativo se faz para assegurar direitos estabelecidos na Constituição.
O Advogado Dativo presta todos os serviços de uma advocacia constituída ou da defensoria pública: acompanhamento de processos, elaboração da defesa, assessoria e consultoria jurídica dentre outros O Sistema de Assistência Judiciária Gratuita - AJG - permite o cadastro de pessoas físicas e jurídicas de forma que possam atuar como advogados voluntários e dativos.
Sabemos que o direito de defesa é considerado um direito fundamental inerente à pessoa humana, elencado em nossa Constituição Federal de 1988, no seu artigo 5º, inciso LV, nos seguintes termos: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” 6
No mesmo artigo constitucional, seu inciso LXXIV, determina que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Já o Código de Processo Penal, traz no artigo
6 Constituição da República Federativa do Brasil, Artigo 5°. 1988
263, a previsão do Defensor Dativo: “Se o acusado não o tiver, ser-lhe-á nomeado defensor pelo juiz, ressalvado o seu direito de, a todo tempo, nomear outro de sua confiança, ou a si mesmo defender-se, caso tenha habilitação.” 7
O artigo 22 do Estatuto da Advocacia trata da remuneração do advogado que atuar como defensor dativo, assim como reforça a sua necessidade com a respectiva nomeação na impossibilidade de atuação da Defensoria Pública.
Destacou-se primeiramente como o defensor dativo é nomeado na justiça comum, e em alguns casos, recebe financeiramente para isso.
E como funciona no direito desportivo?
Todos os cargos assumidos nos tribunais desportivos são voluntários, não há remuneração, e não seria diferente com o Defensor Dativo.
O Código de Justiça Desportiva contempla a figura do defensor dativo no artigo 31, conforme segue:
Art. 31. O STJD e o TJD, por meio de suas Presidências, deverão nomear defensores dativos para exercer a defesa técnica de qualquer pessoa natural ou jurídica que assim o requeira expressamente, bem como de qualquer atleta menor de dezoito anos de idade, independentemente de requerimento. (Redação dada pela Resolução CNE n° 29 de 2009).
Já o Código de Justiça Desportiva Antidopagem trata o assunto com maior ênfase. NA Seção IV, o artigo 54 discorre sobre o trabalho do Defensor Dativo, conforme segue:
SEÇÃO IV – DA OGANIZAÇÃO DA DEFESA NA JUSTIÇA DESPORTIVA ANTIDOPAGEM
Art. 54. O TJD-AD organizará um cadastro de defensores dativos para atuação pro bono em favor dos atletas ou outras pessoas que não possam arcar com o ônus da defesa constituída.
7 Código de Processo Penal, Artigo 263. 1941
§ 1º Para fins do disposto no caput, o atleta ou outra pessoa poderá solicitar a defesa dativa no prazo para manifestação perante o TJD-AD, cabendo-lhe expressamente declarar que não possui recursos para arcar com o ônus da defesa constituída.
§ 2º Na hipótese do § 1º, caso o atleta ou outra pessoa opte, em qualquer momento do processo, por constituir defensor, deverá ressarcir o defensor dativo pelo trabalho até então desenvolvido, com base na tabela de honorários da seção da Ordem dos Advogados do Brasil em que inscrito o defensor dativo.
§ 3º Em caso de réu revel, será outorgada defesa dativa, independentemente da declaração de que trata o § 1º, para apresentação de defesa técnica, relacionada estritamente à observância do devido processo legal e à regularidade da aplicação das normas antidopagem.
§ 4º Compete à Secretaria a gestão do cadastro de que trata o caput e o sorteio dos defensores para atuação em cada procedimento.
§ 5º Não serão incluídos no sorteio de que trata o § 4º os advogados que possuam vínculo profissional com a Confederação da qual o atleta ou outra pessoa faça parte.
§ 6º Portaria do Presidente do TJD-AD disporá sobre a formação do cadastro, a forma de distribuição dos casos, as hipóteses de exclusão, de ofício ou a pedido e preverá o modelo de declaração para os fins dos § 1º e 2º.
O Regimento Interno do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, aprovado pela Resolução Plenária n° 1, de 8 de abril de 2021, dá a importância devida ao Defensor Dativo, em vários artigos, conforme seguem:
Art. 35. Será mantido, junto à Secretaria, cadastro de defensores e assistentes dativos, os quais poderão atuar em caso de hipossuficiência econômica ou revelia do
atleta ou outra pessoa.
§ 1º O cadastro será realizado através da abertura anual, mediante Edital publicado no sítio eletrônico da Justiça Desportiva Antidopagem, de oportunidade para que advogados inscrevam-se nos quadros da Defensoria Dativa do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem e para que estudantes de Direito inscrevam-se nos quadros da Assistência Dativa do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem.
§ 2º O cadastro ocorrerá automaticamente, bastante a inscrição e o encaminhamento das informações solicitadas, observada a necessidade de inscrição ativa na respectiva seção da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, no caso dos defensores.
§ 3º O defensor cadastrado perante o Tribunal comprometer-se-á a realizar as defesas para as quais sorteado ou, em caso de impossibilidade, informar no prazo máximo de 24 horas contadas do seu sorteio para o caso.
§ 4º O defensor será excluído do cadastro a seu pedido ou caso, sorteado, não informe sua impossibilidade de atuação e deixe de apresentar defesa no prazo legal.
Art. 36. Compete à Secretaria a gestão do cadastro de que trata o art. 35 e o sorteio dos defensores e assistentes para atuação em cada procedimento.
Parágrafo único. Não serão incluídos no sorteio de que trata o caput os advogados que possuam vínculo profissional com a Confederação da qual o atleta ou outra pessoa faça parte.
Art. 37. A Secretaria deverá manter cadastro atualizado acerca de pessoas físicas ou jurídicas que tenham sofrido qualquer tipo de sanção decorrente de decisão do Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem, do qual deverá constar, no mínimo:
I – o nome completo do sancionado;
II – o número do processo SEI em que foi processado e julgado;
III – a sanção imposta;
IV – a data do julgamento;
V – a data final do cumprimento da sanção;
VI – outras informações relevantes para o cumprimento da sanção.
Parágrafo único. A Secretaria deverá manter, ainda, registro de todos os requerimentos de homologação de decisões estrangeiras, deferidos ou não.
Seção I
Dos procedimentos preparatórios à audiência de instrução e julgamento
Art. 74. O oferecimento de denúncia é obrigatório no caso de relatório de gestão de resultados que ateste provável violação à regra antidopagem.
§ 1º A denúncia poderá incluir, desde logo, eventuais infrações conexas à violação à regra antidopagem apurada.
§ 2º A manifestação da Procuradoria proferida em audiência não caracteriza aditamento da denúncia, devendo ser este expressamente realizado até o encerramento da instrução.
§ 3º Em caso de aditamento, será oportunizada nova manifestação da defesa, adiando-se, se for o caso, a sessão de julgamento.
Art. 75. O atleta ou outra pessoa poderá postular em causa própria ou fazer-se representar por advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, observados os impedimentos legais e o disposto no Estatuto da OAB.
Parágrafo único. O estagiário de advocacia regularmente inscrito na OAB poderá atuar com conjunto com o advogado constituído,
que se responsabilizará por seus atos.
Art. 76. Em caso de hipossuficiência econômica, o atleta ou outra pessoa poderá solicitar defesa dativa no prazo para sua manifestação perante o Tribunal, cabendo-lhe expressamente declarar que não possui recursos para arcar com os ônus da defesa constituída, bem como com as demais obrigações relacionadas à defensoria dativa, conforme declaração constante do Anexo II.
Parágrafo único. Na hipótese do caput, caso o atleta ou outra pessoa opte, em qualquer momento do processo, por constituir defensor, deverá ressarcir o defensor dativo pelo trabalho até então desenvolvido, com base na tabela de honorários da seção da Ordem dos Advogados do Brasil em que inscrito o defensor dativo.
Art. 77. Em caso de réu revel, será outorgada defesa dativa, independentemente da declaração de que trata o artigo anterior, para apresentação de defesa técnica, relacionada estritamente à observância do devido processo legal e à regularidade da aplicação das normas antidopagem.
Art. 78. A Secretaria certificará nos autos o nome do defensor dativo sorteado, intimando o atleta ou outra pessoa.
§ 1º O defensor dativo deverá, no prazo de 24 horas, preencher e assinar o compromisso de exercício da defesa do atleta, o qual será encaminhado pela Secretaria por e-mail e por WhatsApp.
§ 2º Caso tenha interesse em ser auxiliado por assistente dativo, o defensor deverá solicitá-lo no mesmo prazo previsto no § 1º.
§ 3º Na hipótese do § 2º, a Secretaria irá sortear imediatamente assistente dativo, o qual também deverá assinar compromisso para atuação perante o Tribunal, no prazo de 24 horas.
§ 4º Em caso de não assinatura do compromisso no prazo assinalado, considerar-se-á como recusado o exercício da defesa ou da assistência dativa, ressalvado pedido de prorrogação embasado em questões técnicas, a ser analisado pela Secretaria.
§ 5º Será renovado o prazo para apresentação da defesa, o qual será contado a partir da intimação de juntada do compromisso assinado pelo defensor e do assistente, se for o caso, e abertura de acesso externo do processo.
ANEXO II
DECLARAÇÃO DE HIPOSSUFICIÊNCIA ECONÔMICA
Eu, (nacionalidade), (estado civil), (profissão), portador (a) da Carteira de Identidade nº , expedida pelo , inscrito (a) no CPF sob o nº residente e domiciliado (a) , com endereço eletrônico , DECLARO, para fins de concessão de defensoria dativa, que sou carente de recursos financeiros, não dispondo de condições econômicas para arcar com as custas sem sacrifício do meu próprio sustento e da minha família.
Comprometo-me a colaborar com o defensor dativo sorteado para a realização de minha defesa, fornecendo-lhe todas as informações e documentos necessários ao seu ofício. Comprometo-me, outrossim, a, caso decida, a qualquer tempo até o trânsito em julgado, substituí-lo por defensor de minha escolha, ressarcir-lhe pelo trabalho realizado na forma do art. 54, § 2º, do Código Brasileiro Antidopagem.
Desta forma, requeiro a concessão da Gratuidade de Justiça e, por ser a expressão da verdade, assumo inteira responsabilidade pelas declarações acima e sob as penas da lei, em especial o artigo 234 do Código Brasileiro de Justiça DesportivaCBJD, assinando a presente declaração para que produza seus devidos efeitos legais.
(Nome completo)
Porém, antes do Regimento Interno atual entrar em vigor, a citação ao Defensor Dativo era somente a que segue:
Art. 52. Se o Atleta ou outra Pessoa não se manifestar dentro do prazo legal, deverá ser nomeado advogado dativo para apresentação de defesa prévia escrita no prazo de dois dias, renováveis. Parágrafo único. Não será apresentada defesa sempre que o atleta, devidamente citado, negar- se a apresentá-la ou, ainda que não negando-se expressamente, deixar de colaborar com o defensor dativo sorteado.
E, assim também, ocorria no Código Brasileiro Antidopagem, uma breve citação.
O Defensor Dativo passou a ter um papel essencial na vida do atleta hipossuficiente, dando ao mesmo o direito a se defender sendo representado por advogado regularmente registrado na OAB, que se dedica ao caso, tendo a chance de demonstrar a inocência ou de diminuição de pena, através de circunstâncias atenuantes.
Da mesma forma, tanto o Código quanto o Regimento deram ao atleta a obrigação de remunerar o Defensor Dativo quando optar por escolher um advogado remunerado durante o processo, usando a Tabela da OAB como referência de valores. Uma inclusão muito importante.
Outro item importante a ser salientado: se o atleta for réu revel, o Tribunal deverá nomear um defensor dativo para apresentar a defesa, dando ao atleta o direito à ampla defesa e ao contraditório.
A Declaração de Hipossuficiência Econômica acrescentada no Regimento Interno é um docu-
mento que auxilia o atleta a solicitar o Defensor Dativo e muitos atletas utilizam dessa ferramenta podendo ser auxiliados pelos que se dedicam como voluntários em favor de sua defesa.
CONCLUSÃO
A história da figura do Defensor Dativo se desenvolveu ao longo dos anos no Brasil, destacando-se a partir da Constituição Federal de 1988.
Demonstrou-se a importância dada ao tema através da Constituição Federal, Código Penal, Estatuto da Advocacia, das Leis e Códigos relacionados ao Direito Desportivo, como a Lei 9.615/98 (Lei Pelé), o Código Brasileiro de Justiça Desportiva, o Código Brasileiro Antidopagem e seu Regimento Interno.
Ao longo deste artigo, foi demonstrado que o Defensor Dativo pode ser remunerado, caso atue na justiça comum, porém, atuando no Direito Desportivo, não há qualquer tipo de remuneração, assim como nenhum cargo assumido em Tribunais Desportivos.
Porém, na Justiça Desportiva Antidopagem, sua importância é realçada tanto no Código Brasileiro Antidopagem como, e principalmente, em seu Regimento Interno.
As alterações relacionadas ao Defensor Dativo no Código e Regimento que passaram a vigorar em 2021 foram muito importantes para demonstrar a necessidade de sua atuação, levando em conta a hipossuficiência da maioria dos atletas brasileiros, demonstrada no capítulo 3.
Demonstrou-se também que, caso o atleta solicite Defensor Dativo para apresentar sua defesa, encaminhando a Declaração de Hipossuficiência Econômica ao Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem e, durante o processo, resolva contratar um advogado que o remunere, terá a obrigatoriedade de ressarcir o Defensor Dativo pelos serviços prestados até o momento de sua atuação, com base na tabela da OAB do Estado em que o Defensor Dativo esteja inscrito.
Essa foi uma grande inovação, comprovando que a figura do Defensor Dativo realmente passou a ser valorizada devidamente.
Portanto, não há dúvidas da real necessidade de sua atuação e importância.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988
BRASIL. Lei N° 9.615, de 24 de março de 1998. Lei Pelé, DF, 1998.
BRASIL. Lei N° 13.322, de 28 de julho de 2016, DF, 2016
SCHMITT, Paulo M. Código Brasileiro de Justiça Desportiva. Notas & Legislação Complementar. iBooks. 2015.
https://www.gov.br/cidadania/pt-br/composicao/esporte/tjdad/arquivos/codigo_brasileiro_antidopagem_2018.pdf- acesso em 20/06/2022
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/resolucao-plenaria-n-1-de-8-de-abril-2021-323567988acesso em 20/06/2022
https://portal.trf1.jus.br/sjmt/servicos/ajg-assistencia-judiciaria-gratuita/ajg-assistencia-judiciaria-gratuita.htm - acesso em 20/06/2022
https://www.educamundo.com.br/blog/advogado-dativo#:~:text=O%20que%20%C3%A9%20 um%20advogado,assegurar%20direitos%20estabelecidos%20na%20Constitui%C3%A7%C3%A3o. – acesso em 21/06/2022
https://edicaodobrasil.com.br/2021/07/09/mais-da-metade-dos-jogadores-de-futebol-brasil-vivem-com-um-salario-minimo/ - acesso em 04/07/2022
https://www.salario.com.br/profissao/atleta-profissional-outras-modalidades-cbo-377105/acesso em 04/07/2022
http://defensoria.sc.def.br/historia-da-defensoria-publica-no-brasil-e-no-estado-de-santa-catarina/#page-content – acesso em 04/07/2022
CESSÃO TEMPORÁRIA DE ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL: ASPECTOS LEGAIS E NOVAS LIMITAÇÕES IMPOSTAS PELA FIFA
O presente artigo tem como objetivo apresentar as regras legais para a cessão temporária nos termos do Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol de 2022, expedido pela CBF no começo do ano de 2022, e as alterações apresentadas pela FIFA (Fédération Internationale de Football Association) por meio da última versão de seu Regulations on the Status and Transfer of Players, de julho de 2022, que apresenta modificações e limitações importantes e que deverão ser implementadas pela CBF nos próximos 03 anos, no máximo..
Palavras-chave
Cessão Temporária - CBF - FIFA - Futebol - Atleta
Felipe Abrantes Rossetto
Advogado. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Pós-Graduado em Direito Desportivo pela ESA/OABSP.
INTRODUÇÃO
O universo do futebol profissional, mercado no qual há cada vez mais novos players envolvidos devido à entrada de grandes conglomerados esportivos, aos grandes investimentos financeiros e, consequentemente, às transferências que envolvem cada vez mais dinheiro, passa por modificações legais pela Fédération Internationale de Football Association (FIFA), a fim de que o esporte assegure a mínima condição de igualdade – tanto no âmbito financeiro como no desportivo.
Após a implantação do famoso “fair play financeiro”, a FIFA almeja equiparar todos os clubes, evitando com que ocorra uma desigualdade diante àqueles com maior capital. Com isso, a FIFA emitiu novas regras para as transferências temporárias internacionais, as quais deverão ser implementadas pelas federações nacionais, nas transferências temporárias domésticas, em um curto período de tempo. Esse novo regramento impõe novas limitações na quantidade e na forma, como será exposto no presente texto.
Para uma melhor análise das novas limitações impostas pela FIFA em relação às transferências temporárias internacionais, é de suma importância compreender a maneira como esse assunto vinha sendo regulamentado – ou até negligenciado – pela Entidade até julho de 2022 – momento em que a FIFA divulgou o novo Regulamento sobre o Status e Transferência de Jogadores (“Regulations on the Status and Transfer of Players” – RSTP) –, assim como quais são as limitações preexistentes no Brasil no que se refere às cessões temporárias domésticas, previstas no Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol (“RNRTAF”) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).
Diante disso, esse artigo busca, inicialmente, apresentar as regras de cessões temporárias internacionais aplicadas pela FIFA até o mês de junho de 2022, bem como o regramento da Confederação Brasileira de Futebol para as transferências temporárias domésticas.
Em seguida, analisaremos as novas imposições da FIFA quanto às cessões temporárias internacionais – por exemplo, as novas regras poderão auxiliar nos objetivos da FIFA quanto ao equilíbrio desportivo e a forma que o Brasil será afetado e deverá se adequar ao novo regramento.
1. DA REGULAMENTAÇÃO DAS TRANSFERÊNCIAS TEMPORÁRIAS ATÉ JUNHO DE 2022
Em se tratando das transferências temporárias internacionais, conforme discutido, as novas regras entraram em vigor a partir de 01º de julho de 2022. Até junho de 2022, tal assunto era negligenciado pela maior Entidade do esporte à medida que haviam escassos regramentos deixando a critério de cada Confederação Nacional a aplicação de normas, o que variava de acordo com o meio ambiente desportivo em que estavam inseridas.
Em suma, a FIFA previa apenas quatro regras para a cessão temporária de atletas, quais sejam:
• Que a cessão temporária fosse firmada através de Instrumento Particular envolvendo o clube cedente, o clube cessionário e o Atleta;
• Que as regras de mecanismo de solidariedade e mecanismo de formação seriam aplicadas nas transferências temporárias dos Atletas – ou seja, tanto o período do Atleta na nova equipe contaria para computo de eventual pagamento de indenização, como em caso de transferência temporária onerosa, os clubes deveriam efetuar os respectivos pagamentos de mecanismo de solidariedade e mecanismo de formação, quando aplicáveis;
• Que o período mínimo da transferência temporária seria o lapso de tempo entre duas janelas de transferências;
• Que o clube cessionário que fosse receber o atleta por empréstimo não poderia transferir o
atleta a uma terceira entidade desportiva sem a autorização expressa e escrita da equipe cedente, bem como seria necessária a anuência do atleta para esta nova transferência.
Ou seja, até junho de 2022 não havia qualquer previsão no regulamento da FIFA quanto a limitações na quantidade de empréstimos internacionais entre equipes, bem como não havia limitação referente à quantidade de atletas que fossem cedidos por uma única equipe ou para uma única agremiação.
Com o aumento dos conglomerados desportivos, financiados em grande parte por bilionários ao redor do mundo, a FIFA deparou-se com o aumento dos interesses dessas equipes em contratar cada vez mais cedo jovens atletas, sem que houvesse o real interesse em contar com esses em seu plantel principal no momento da aquisição, repassando os mesmos de imediato a outras equipes em cessão temporária – inclusive para equipes do mesmo conglomerado desportivo.
Um dos casos de grande notoriedade foi o ocorrido com o Chelsea no ano de 2019, cujo dono era o russo Roman Abramovich. Na época, o clube foi sancionado pela FIFA com a proibição de contratar novos atletas pelo período total de duas janelas de transferências posteriores à data da sanção. No entanto, como o clube possuía um total de 41 (quarenta e um) atletas emprestados para times ao redor do mundo, o simples retorno desses atletas auxiliou na montagem da equipe para a próxima temporada em decorrência da sanção recebida pelo clube, o qual não violou a punição sofrida mas conseguiu reformular seu elenco para a temporada onde as punições seriam notadas.1
Como dito acima, em decorrência da ausência de uma regulamentação rigorosa por parte da FIFA, as Federações Nacionais aplicavam – e ainda aplicam – regras mais específicas para as
1 https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/5308258/ chelsea-proibido-de-contratar-tem-41-emprestados-parachamar-de-volta-do-irmao-de-hazard-a-tres-brasileiros
transferências temporárias domésticas. E, nesse sentido, a CBF possuí uma previsão própria quanto a esta modalidade de negociação, destacando abaixo as regras previstas no RNRTAF, as quais somam-se ao regramento da FIFA:
• O prazo de cessão temporária, em regulamento da CBF, não pode ser inferior a 3 (três) meses, não podendo também ser superior ao prazo restante do contrato especial de trabalho desportivo do atleta com o clube cedente;
• O salário do atleta transferido não poderá ser inferior ao que consta no contrato de trabalho firmado com o clube cedente, salvo expressa previsão em acordo ou convenção coletiva de trabalho;
• O período de cessão temporária poderá ser prorrogado, desde que limitada ao prazo do contrato especial de trabalho desportivo firmado com o clube cedente e por este expressamente autorizada;
• Não é autorizada a transferência temporária de atleta não profissional;
• Os efeitos do contrato especial de trabalho desportivo firmado com o clube cedente, durante o período de cessão temporária, restarão suspensos;
• É vedado o reempréstimo de atleta pela equipe cessionária;
• Os clubes cedentes e cessionários deverão ajustar as condições para participação do atleta nas partidas em que se enfrentem.
Somado a isso, o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol prevê sanções para as denominadas “transferências ponte”, ou seja, toda transferência que envolva o registro do atleta sem finalidade desportiva e visando à obtenção de vantagem, direta ou indiretamente. Uma das negociações onde o regulamento expressamente prevê a presunção da “transferência ponte” é exatamente o “registro
definitivo seguido de transferência temporária, sem que o atleta participe de competições oficiais pelo clube cedente” (Artigo 34, §2º, alínea “b” do RNRTAF).
Ademais, o Regulamento Específico da Competição, referente ao Campeonato Brasileiro da Série A de 2022, prevê expressamente um limite de inscrição por clube, sendo no máximo 3 (três) Atletas advindos de um mesmo clube (Artigo 12, §3º do Regulamento Específico da CompetiçãoCampeonato Brasileiro da Série A de 2022).
Concluindo, até junho de 2022 a FIFA não possuía um regulamento que limitasse às transferências temporárias, enquanto a CBF já atuava de forma específica para a promoção de equilíbrio competitivo entre as equipes do futebol brasileiro no âmbito doméstico.
2. DA NOVA REGULAMENTAÇÃO DAS TRANSFERÊNCIAS
TEMPORÁRIAS INTERNACIONAIS
A PARTIR DE JULHO DE 2022
Com o intuito (i) de combater o domínio dos conglomerados desportivos e bilionários, (ii) de impedir a utilização precária das transferências internacionais provisórias por meio do monopólio de mercado dos grandes clubes em relação aos menores e (iii) promover o equilíbrio competitivo entre as equipes, a FIFA implementa uma regulamentação mais específica, rígida e limitadora em se tratando dos empréstimos internacionais.
Diante disso, a partir de 1º de julho de 2022, com a entrada em vigor do novo Regulamento sobre o Status e Transferência de Jogadores (RSTP) da FIFA, novas regras para transferências internacionais temporárias deverão ser observadas, com destaque para a limitação das transferências temporárias internacionais entre clubes no mundo, inclusive para o futebol feminino.
Entre as principais mudanças – e que irão, de fato, alterar a forma como serão firmados os ne-
gócios daqui para frente –, destacam-se as mais relevantes:
• O período de cessão temporária internacional terá como duração mínima o período entre duas janelas de transferência e no máximo um período de 01 (um) ano, sendo que qualquer cláusula com previsão de cessão temporária por período maior será considerada nula;
• A data final do empréstimo internacional deverá ser dentro do período de janela de transferências do clube cedente;
• A cessão temporária internacional poderá ter o período estendido, desde que respeitado os prazos mínimo e máximo quando de sua extensão;
• Vedação ao reempréstimo de atleta pela equipe cessionária, ainda que haja acordo entre os clubes;
• Um clube poderá emprestar, no máximo, 3 (três) atletas para um mesmo clube, durante o período de uma temporada;
• Um clube poderá receber emprestado, no máximo, 3 (três) atletas de um mesmo clube, durante o período de uma temporada.
Adicionalmente às regras acima apresentadas, a FIFA estabeleceu limites ao número de empréstimos de uma equipe, seja como cedente ou cessionários, que serão progressivos a partir de 01º de julho de 2022 até 01º de julho de 2024, quando a limitação chegará ao mínimo estabelecidos pela FIFA:
• De 1º de julho de 2022 a 30 de junho de 2023: um clube poderá ter, no máximo e concomitantemente, 8 (oito) atletas emprestados internacionalmente e 8 (oito) atletas trazidos por empréstimo internacionalmente;
• De 1º de julho de 2023 a 30 de junho de 2024: um clube poderá ter, no máximo e concomitantemente, 7 (sete) atletas emprestados internacionalmente e 7 (sete) atletas trazidos por empréstimo internacionalmente; e
• A partir de 1º de julho de 2024: um clube poderá ter, no máximo e concomitantemente, 6 (seis) atletas emprestados internacionalmente e 6 (seis) atletas trazidos por empréstimo internacionalmente.
Em relação à aplicação da regra, esta não será acumulativa para as equipes, seja no futebol masculino ou seja no feminino. Um determinado clube deverá observar o limite na equipe masculina e o mesmo limite, na feminina, porém estes empréstimos são contados separadamente.
Além disso, a FIFA estabeleceu uma exceção nessa limitação de atletas emprestados internacionalmente: os atletas que sejam considerados como formados pelo clube (club-trained players) poderão ser cedidos sem impactar o limite estabelecido acima. Para ser considerado como “club-trained players” o atleta, profissional ou não, deverá ter idade entre 15 (quinze) e 21 (vinte e um) anos, bem como deverá ter registro como atleta do clube cedente por pelo menos 36 (trinta e seis) meses, ainda que não contínuos. Estes dois requisitos devem ser cumpridos concomitantemente para o jogador ser considerado uma exceção à regra.
Ainda que esta nova regra que entrou em vigor a partir de 1ª de julho de 2022 refira-se às transferências internacionais temporária, ou seja, entre clubes de associações distintas, a FIFA determinou que alguns regramentos serão aplicados automaticamente em operações domésticas a partir de 01ª de janeiro de 2025.
Ademais, como foi feito na criação de janela de transferências domésticas, a FIFA concedeu o prazo de 03 (três) anos para que as Federações Nacionais graduem e estabeleçam as limitações para as cessões temporárias locais – já tendo a CBF, inclusive, feito uma consulta pública aos clubes quanto às limitações a serem impostas, eis que a realidade brasileira difere da realidade internacional, com previsão de limitações a partir de 01º de janeiro de 2024 nas cessões temporárias domésticas.
Ou seja, ainda que as limitações agora em vigor e acima expostas versem tão somente sobre transferências temporárias internacionais, já existe uma determinação da entidade para que cada Federação Nacional estabeleça limites em cessões temporárias domésticas em um prazo de, no máximo, 03 (três) anos.
Os objetivos da FIFA com este novo regramento com as cessões temporárias internacionais são claros: valorização e cuidado dos jovens atletas, assegurando que suas transferências tenham como principal propósito o desenvolvimento desportivo e não meramente comercial; promover o equilíbrio desportivo; prevenir que clubes acumulem atletas de forma excessiva e desproporcional e, além disso, que sanções aplicadas aos clubes tenham efetividade, evitando o caso do Chelsea conforme citado.
É evidente que a forma de negociação dos grandes clubes, principalmente aqueles pertencentes aos conglomerados desportivos, deverá mudar consideravelmente frente as limitações impostas – como por exemplo o Grupo City, dono de 12 (doze) equipes ao redor do mundo2, que ainda neste ano assegurou a compra de dois jovens talentos do Brasil: Gabriel Pereira, ex-Corinthians3 e Sávio Moreira de Oliveira (Savinho), ex-Atlético Mineiro4
No Brasil, será interessante ver como os times brasileiros irão se adaptar à nova regra, principalmente após a entrada em vigor dos limites de cessões temporária domésticas e se esses regramentos irão se aplicar em transferências regionais.
A base dos clubes é, inquestionavelmente, uma das formas utilizadas pelos clubes brasileiros
2 https://ge.globo.com/futebol/futebol-internacional/futebolitaliano/noticia/2022/07/04/grupo-do-city-compra-opalermo-e-conglomerado-chega-a-12-clubes.ghtml
3 https://ge.globo.com/futebol/times/corinthians/ noticia/2022/03/17/corinthians-anuncia-venda-de-gabrielpereira-ao-new-york-city.ghtml
4 https://ge.globo.com/futebol/times/atletico-mg/ noticia/2022/06/30/savinho-se-despede-do-atletico-mg-erecebe-homenagens-de-amigos-vai-ser-ainda-mais-feliz. ghtml
para obtenção de lucros e também resultado em campo, sendo que as dificuldades financeiras dos clubes no Brasil obrigam os clubes, cada vez mais, incorporar aos seus elencos jovens talentos, que ao mesmo tempo são transferidos cada vez mais cedo para equipes de fora do país.
Entretanto, o empréstimo de jovens atletas a outras equipes, além de auxiliar equipes de menor poderio financeiro na montagem de elencos principalmente no âmbito estadual, serve como uma forma de maturação e amadurecimento desses atletas, voltando às equipes “mais prontos” para o futebol profissional de alto rendimento.
Ademais, a exceção prevista pela FIFA em seu Regulamento mostra-se bastante excessiva, principalmente quando exige o registro do atleta pelo período mínimo de 36 (trinta e seis) meses no clube cedente para que sua transferência temporária seja caracterizada como exceção, ainda que não seja necessário que isso ocorra de forma contínua.
No Brasil, a Lei nº 9.615/98 (Lei Pelé) já considera o clube como formador no caso de o Atleta estar inscrito pelo clube, na respectiva entidade regional de administração do desporto, há, pelo menos, 1 (um) ano (artigo 29, § 2º, inciso II, “a”) da Lei Federal n. 9.615/98).
Assim, parece mais assertiva a redução deste período indicado pela FIFA para as limitações que serão impostas nas transferências temporárias domésticas, reduzindo o mesmo para um prazo de 12 (doze) meses de registro, equiparando a situação de formação com a lex desportiva já existente.
Desta forma, não haveria prejuízo aos objetivos na FIFA o aumento do número de empréstimos em relação ao determinado pela FIFA aqui no Brasil, bem como a redução do prazo para configuração do atleta como formado no clube (club-trained players), tendo em vista que um ajuste no número de empréstimos significa desenvolvimento de riqueza econômica, aumento
de possibilidades aos jovens atletas de se manterem ativos e competindo em diversos clubes, preservando sua formação e aumentando as chances de atletas não utilizados de atuarem em outros clubes e manterem seus salários.
Entretanto, visando apenas o combate ao domínio desportivo dos grandes clubes europeus, as exceções colocadas na regra podem torna-la inócua diante do que já acontece atualmente, eis que a proteção aos jovens atletas pode deixar de ser aplicável – podendo provocar, na verdade, um aumento no número de transferências de atletas cada vez mais jovens, visando exatamente adequar os atletas à exceção.
CONCLUSÃO
Conclui-se que a FIFA, após anos sem qualquer previsão específica em relação às transferências temporárias, principalmente no âmbito internacional, negligenciando o tema, verificou que situações envolvendo transferências temporárias impediam a própria entidade de alcançar seus objetivos quanto à valorização e ao cuidado dos jovens atletas, à promoção do equilíbrio desportivo e à prevenção de que clubes acumulem atletas de forma excessiva e desproporcional.
Assim, a FIFA buscou ser mais rígida quanto às previsões legais acerca das transferências temporárias internacionais, sendo que desde 01º de julho de 2022 passou a limitar o número destas transferências entre clubes internacionais, com proibição ainda de reempréstimos de atletas e excetuando estas normativas a atletas formados nos clubes.
Com isso, além dos objetivos já apresentados acima, a FIFA busca também uma maior profissionalização dos clubes, sendo que esses deverão ter maior cuidado na forma de como prosseguir com negociações, reduzindo a margem de erro ante as limitações que passam a envolver as negociações temporárias, o que obrigará aos clubes darem maior ênfase e valorização ao trabalho de base com jovens atletas.
VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da; SOUSA, Fabrício Trindade de. A evolução do futebol e das normas que o regulamentam: aspectos trabalhistas-desportivos. São Paulo: LTr, 2013
SÁ FILHO, Fábio Menezes de. Contrato de trabalho desportivo: revolução conceitual de atleta profissional de futebol. São Paulo: LTr, 2010.
BRASIL. Lei nº 9.615/98. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol. htm. Data de Publicação: 24 de março de 1998.
FIFA. Regulations on the Status and Transfer of Players. Disponível em fifa.com. Data de publicação: 01 de julho de 2022.
FIFA. Regulations on the Status and Transfer of Players. Disponível em fifa.com. Data de publicação: 01 de março de 2022.
BRASIL. Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol. Disponível em: https://www.cbf.com.br/a-cbf/regulamento/de-registro-e-transferencia/regulamentos-de-registro-e-transferencia-e-de-intermediarios-1. Data de Publicação: 16 de dezembro de 2021.
BRASIL. Regulamento Específico da Competição: Brasileirão Assaí – 2022. Disponível em: https://www.cbf.com.br/futebol-brasileiro/competicoes/campeonato-brasileiro-serie-a#rules. Data de Publicação: 08 de fevereiro de 2022.
O REGIME DE CENTRALIZAÇÃO DE EXECUÇÕES SEGUNDO A LEI SAF – UMA ANÁLISE CRÍTICA DO INSTITUTO
Os debates relacionados a Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021, frequentes durante a fase de sua concepção, foram impulsionados a partir da entrada em vigor da nova Lei. De imediato, um determinado instituto por ela regulado chamou atenção. Entidades Esportivas que figuram entre as mais tradicionais do país, imediatamente passaram a recorrer à alternativa de quitação concentrada de obrigações, de características peculiares, regulada com singela e rudimentar amplitude. É nesse passo, que se pretende por este artigo, expor o panorama geral do Regime Centralizado de Execuções, tratando de suas implicações e potenciais efeitos práticos, sob a perspectiva dos riscos incorridos pelas entidades interessadas, com o fim de contribuir academicamente com a evolução dos argumentos e conteúdos relativos a este debate.
Palavras-chave
SAF - Regime de Centralização de Execuções - Plano de Pagamentos
Guilherme Henrique Bosquê Salutti
Advogado graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP
INTRODUÇÃO
Na data de 9 de agosto de 2021, entrou em vigor a Lei nº 14.193, de 6 de agosto de 2021 (doravante designada como “Lei SAF”)1, que instituiu a Sociedade Anônima do Futebol e passou a dispor sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, tratamento dos passivos das entidades de prática desportiva e regime tributário específico para estas figuras.
Dentre as matérias reguladas pela Lei SAF, a alternativa de quitação de obrigações consistente no Regime de Centralização de Execuções (doravante designado como “RCE”), prontamente chamou a atenção das entidades desportivas potencialmente legitimadas a utilizar dessa ferramenta. Diante de sua atratividade, este instituto foi objeto das primeiras provocações relacionadas a Lei, dirigidas ao Poder Judiciário2.
Nesse sentido, diante da excessiva singeleza e precariedade que a Lei SAF trata o RCE, o tratamento integrativo que o Poder Judiciário dará a Lei torna-se questão de especial relevância, essencialmente, sob o prisma do juízo de conveniência dos interessados.
Desse modo, pretende-se realizar neste Artigo, análise crítica do instituto do RCE, pautada na identificação das vertentes, mais patentes, de necessidade de aperfeiçoamento que a norma requer, identificando-se, a partir daí, os riscos e implicações que devem ser, de proêmio, sopesados pelos eventuais interessados, além de trazer uma breve análise das primeiras decisões judiciais que acessaram a Lei SAF e recepcionaram os RCEs, que assim, corroboram com as
1 LEI SAF. Lei Federal nº 14.193 de 6 de agosto de 2021. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20192022/2021/lei/L14193.htm. Acesso em 15 de janeiro de 2022, 11h45.
2 SIQUEIRA, João Marcos Guimarães. Lei Em Campo. A Sociedade Anônima de Futebol e suas Nuances. Reflexões Iniciais Acerca da Entrada em Vigor da Lei. 2021 Disponível em https://ibdd.com.br/a-sociedade-anonima-de-futebole-suas-nuances-reflexoes-iniciais-acerca-da-entrada-emvigor-da-lei-n-14-193-2021/ . Acesso em 7 de janeiro de 2022, 10h.
impressões do Autor deste Artigo.
1. O REGIME CENTRALIZADO DE EXECUÇÕES
De interesse para este trabalho, tem-se que a Lei SAF, na Seção V – Do Modo de Quitação das Obrigações, disciplina duas alternativas de satisfação de obrigações e tratamento de passivo direcionado as entidades desportivas contempladas.
Nesse sentido, na forma do art. 13 do texto legal, tanto o clube, na condição de associação regida pelo Código Civil, dedicada ao fomento e à prática do futebol, como a pessoa jurídica original, entendida como a sociedade empresarial também dedicada ao fomento e à prática do futebol, poderão efetuar o pagamento de suas obrigações (i) por intermédio de concurso de credores, procedimento nominado como Regime Centralizado de Execuções, hipótese do inciso I, do art. 13, e (ii) por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.
Nesse passo, a primeira questão a chamar atenção, é inexistência de critério quanto ao nível de endividamento do interessado, de modo que, em uma análise literal, a legislação apresenta uma alternativa pura e simples para a quitação de obrigações, para qualquer legitimado que possua débito em execução, indistintamente, independentemente do grau de comprometimento que essas ações judiciais representem.
O dispositivo em questão, sob a acepção da alternativa prevista no inciso I, supriu a necessidade de institucionalizar, a partir de regramento específico, a centralização de execuções, medida que antes da Lei SAF era costumeiramente manejada de ofício pelos Tribunais Pátrios, por atos normativos próprios e internos destes órgãos jurisdicionais.
Além disso, a Lei SAF parece ter buscado pacificar a possibilidade do clube, enquanto as-
sociação desportiva, postular a decretação de recuperação judicial, questão que, até então, encontrava tratamento desuniforme na jurisprudência.
Passando para efetiva análise dos dispositivos que regulam o RCE, quais sejam, os artigos 14 a 24, estes tratam de questões como a competência, o formato de tramitação, os limites obrigacionais, entre outras, relacionadas preponderantemente a forma e conteúdo do requerimento para a provocação de um RCE.
Na forma do art. 14, o concurso de credores estabelecido por meio do RCE, consiste na concentração das execuções que são movidas em face do interessado, de suas receitas e os valores arrecadados na forma do art. 10 da Lei, em um único juízo centralizador. Centralização que é operada com a finalidade de realizar a ordenada distribuição dos valores aos credores, em regime de concurso, cujas diretrizes e formato são estabelecidas em plano de pagamento, elaborado pelo requerente do RCE e aprovado por seus credores.
Esmiuçando o dispositivo, os valores indicados como “arrecadados na forma do art. 10 da Lei SAF”, referem-se ao percentual de 20% do que seriam as receitas correntes mensais, auferidas pela SAF, além da parcela de 50% dos dividendos, dos juros sobre o capital próprio ou de outra remuneração recebida pelo promovente do RCE, na condição de acionista da SAF.
E da análise deste conceito, já se identifica um possível entrave quanto a conveniência do RCE, relacionado a abrangência do conceito de “receita corrente mensal”.
Ao empregar esta expressão, genérica e indeterminada, para estabelecer o fato jurídico de incidência da norma, além de tangenciar potencial ofensa ao princípio da legalidade estrita e formal, a Lei SAF dá margem a discussões diversas, relacionadas a distinção e identificação de quais são as verbas que irão compor a base de cálculo da receita e para a eventual prestação
de contas pelo clube devedor.
Afinal, quais seriam a natureza e a base de recorrência das receitas indicadas pelo legislador?
De acepção lógica, serão verbas mensais e recorrentes em um determinado exercício, aquelas estabelecidas por obrigações periódicas e ordinárias, ou seja, verbas que comporiam o racional de afetação de faturamento em uma penhora desta natureza. Por exemplo, as provenientes de contratos de patrocínio e de exploração do uso do direito de marca, entre outras.
Verbas esporádicas e aleatórias, sem recorrência nos exercícios dos clubes em geral, relacionadas, por exemplo, ao desempenho esportivo ou qualquer outro vetor de alea, por outro lado, ficariam de fora da hipótese de incidência. São exemplos destas verbas: as cessões de direitos econômicos de atletas, premiações por conquistas e classificações, patrocínios pontuais, eventos e ativações de marketing, entre outras.
A limitação da abrangência dos eventos geradores do conceito referenciado no art. 10, certamente será objeto de enfrentamento pelo Judiciário, tornando específico o conceito aberto empregado na legislação. Maturação da interpretação que trará como consequência maior segurança na análise de conveniência do RCE, permitindo visualizar quais as suas receitas que efetivamente serão afetadas, permitindo conciliar a projeção de um plano de pagamentos concreto e tangível, com a projeção de investimentos e custeio de suas atividades dedicadas ao futebol.
Vale destacar que, ao tratar do Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF), a Lei, no §1º do seu art. 32, assinala que para fins específicos do disposto no caput deste artigo, que trata da base de cálculo de determinados tributos, será considerada “receita mensal” a totalidade das receitas recebidas pela SAF, inclusive aqueles referentes a prêmios e programas de sócio torcedor, excetuadas, apenas, as relativas à cessão dos direitos desportivos de atletas.
Ocorre que, de uma análise literal do dispositivo, não há vedação para que o conceito ali empregado seja replicado para as outras questões reguladas pela Lei, o que torna ainda mais questionável a base de cálculo dos vetores indicados no inciso I, do art. 10, vez que não se permite concluir se o §1º, do art. 32, cuida de hipótese mais abrangente ou restrita de “receitas mensais”.
Ora, questiona-se, se para fins tributários se incluirá verbas decorrentes de prêmios e programas de sócio torcedor, no que se refere ao repasse previsto no art. 10, tais verbas serão excluídas? E a exceção das verbas relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas, também se aplica ao art. 10? Aliás, o que são direitos desportivos? Esta expressão se traduz em direitos econômicos e federativos? Fala-se em cessões definitivas e temporárias? São questões que serão lapidadas pela jurisprudência.
Assim, o instituto do RCE invariavelmente necessitará ser integralizado pelo Poder Judiciário, conferindo segurança aos critérios de identificação das verbas afetadas por suas regras, ao menos até que sedimentado o entendimento quanto ao tema. Inegável, no entanto, que o interessado em requerer o RCE, ao menos nessa fase inicial de vigência da Lei SAF, terá que considerar a assunção de riscos quanto a efetiva abrangência das receitas afetadas para o pagamento de seus credores.
Retomando a sistemática do RCE, o pedido de sua instauração deve ser apresentado ao Presidente do Tribunal Regional do Trabalho, quanto às dívidas trabalhistas, e ao Presidente do Tribunal de Justiça, quanto às dívidas de natureza civil, observados os requisitos de apresentação do plano de credores, conforme disposto no art. 16 desta Lei.
Nesse diapasão, outra patente omissão da Lei SAF refere-se a hipótese de o interessado buscar em um único pedido de RCE, contemplar suas dívidas trabalhistas e cíveis, vez que a legislação não indica qual será o Juízo universal,
competente para processá-lo.
Analisando a literalidade dos seus dispositivos, no entanto, a Lei SAF parece referenciar em seus dispositivos, justamente a hipótese do requerimento baseado em um único plano de pagamento. Nesse sentido, por exemplo, compulsando a regra do inciso I, do artigo 10, denota-se que o legislador, ao tratar das receitas mensais recorrentes da SAF, fez expressa menção a unicidade de plano
Ora, entender que poderiam ser apresentados dois planos, individuais e distintos, um para cada RCE, cível e trabalhista, sujeitaria os procedimentos ao risco decisões conflitantes e capazes de propiciar dificuldades extremas ao promovente do RCE, como obrigar o interessado a ter que destinar um total de 40% da receita mensal da SAF para os pagamentos inseridos em dois RCEs, cível e trabalhista.
Prosseguindo, o §2º, do art. 14, faz referência a disposição do art. 16, que de influência para o requerimento do RCE, indica quais são os documentos obrigatórios e essenciais a sua instrução.
Além disso, no parágrafo único do art. 16, está previsto outro requisito obrigatório, consistente no fornecimento e publicação de informações e documentos especiais, de relevância para terceiros credores e parceiros, semelhante ao que ocorre nas recuperações judiciais.
Cabe ao Poder Judiciário disciplinar o RCE, por meio de ato próprio dos seus Tribunais, é o que ensina o art. 15 da Lei SAF. Não possuindo ato normativo ao tempo do recebimento do requerimento do RCE, competirá ao Tribunal Superior respectivo, TST ou STJ, suprir a omissão quanto a falta de direcionamento interno. O TJSP e o TJRJ, por exemplo, já possuem ato normativo para atendimento dos eventuais pedidos.
Veja-se que este dispositivo atribui poder discricionário para os Tribunais Estatuais e Regionais, permitindo que disciplinem quaisquer questões
relativas ao RCE, seja material ou processual, não enfrentadas na Lei SAF.
Nesse sentido, exemplificativamente, questões como competência de juízos, prazos diversos (por exemplo, para impugnar e divergir de créditos apontados no plano), habilitações de credores, direitos dos credores retardatários, formato e efeitos das reuniões ou assembleias para discussão e negociação do plano de pagamentos, a qualidade da maioria ou natureza dos votos para a aprovação do plano, consequências do descumprimento do plano, prestação de contas, entre tantas outras, estarão completamente sujeitas a subjetividades e a vontade de cada Tribunal competente, seja via ato normativo ou pelas próprias decisões individuais dos juízos centralizadores. Esta disposição, prevista no art. 15, cuida-se de outra abstração que certamente ensejará uma miscelânia de decisões judiciais díspares, afetando o juízo de conveniência do interessado quanto ao instituto do RCE.
Partindo para a questão do prazo para pagamentos, ainda na forma do art. 15, o plano deve comtemplar o prazo de 6 (seis) anos para a integral satisfação dos débitos centralizados. O §2º do mencionado artigo, por sua vez, confere a possibilidade do clube ou pessoa jurídica original obter a benesse de prorrogação do RCE por mais 4 (quatro) anos, caso comprove adimplência de, ao menos, 60% (sessenta por cento) do seu passivo original ao final dos 6 (seis) primeiros anos de pagamentos.
Nesse sentido, sem dispor se o deferimento do benefício é objeto de juízo de valor exclusivo do juízo centralizador ou dependerá da anuência dos credores, a Lei SAF permite a prorrogação do RCE por mais 4 (quatro) anos, período em que o percentual a que se refere o inciso I, do caput do art. 10 da Lei (de 20%), poderá, a pedido do interessado, ser reduzido para 15% (quinze por cento) das suas receitas correntes mensais.
Ou seja, percorrendo a exegese da norma em comento, resta permitido que, quando enfrentado
o pagamento de parcela significativa dos débitos centralizados, o clube possa fomentar seus investimentos particulares, voltando maior volume de receitas as suas próprias atividades, sem, contudo, deixar de reverter parcela substancial para o pagamento dos credores (15% das receitas).
Novamente tratando do art. 16, verifica-se que o prazo para apresentação do plano de pagamentos é de até sessenta dias, contados, a princípio, da decisão que o defere. Desse modo, a Lei SAF confere ao Poder Judiciário o condão de arbitrar o prazo para cumprimento da obrigação de apresentar o plano aos credores.
Tratando-se de prazo singelo, que pode ser inferior a 60 (sessenta) dias, invariavelmente, o interessado em requerer o RCE deverá ter as bases do plano e sua estratégia de condução dos pagamentos bem definidas, prontas para eventual apresentação imediata e reformulação de arestas, até porque, a Lei SAF, não traz expressa a possibilidade de serem ofertados pedidos de dilação do referido prazo, questão que também ficará a critério do Poder Judiciário.
Prosseguindo com a análise do instituto, os artigos 17 e 18 regulam as questões de preferência e privilégio dos credores do RCE. Quanto a ordenação do pagamento, terão preferência, nessa sequência: idosos, assim identificados nos termos do Estatuto do Idoso; pessoas com doenças graves, não dispondo a Lei de critério expresso para identificação do grau de gravidade da moléstia; pessoas cujos créditos de natureza salarial sejam inferiores a 60 (sessenta) salários-mínimos; gestantes; pessoas vítimas de acidente de trabalho oriundo da relação de trabalho com o clube ou pessoa jurídica original; e credores com os quais haja acordo que preveja redução da dívida original em pelo menos 30%.
O art. 18 ensina ainda que, o pagamento das obrigações previstas no art. 10 da Lei SAF, relacionado aos percentuais das receitas correntes mensais e recebidas na condição de acionista
da SAF, deverão privilegiar os créditos trabalhistas, premissa que deve embasar o plano de pagamento dos credores, apresentado pelo clube ou pessoa jurídica original.
Especial atenção merece o disposto no parágrafo único do art. 18! Como ensina o dispositivo, a partir da centralização das execuções, as dívidas de natureza cível e trabalhista serão corrigidas somente pela taxa “Selic”, ou outra taxa de mercado que vier a substitui-la. Esmiuçando essa regra, temos que, não a partir do início dos pagamentos, mas, sim, com o deferimento do RCE, todos os débitos alcançados, independentemente do que constar dos contratos, decisões judiciais ou outras fontes de origem do direito creditório, passarão a ser corrigidos unicamente pela Selic.
Essa disposição figura como vetor de grande atração à devedores que possuem débitos atrelados, por exemplo, ao IGP-M ou outros índices que sofreram grande variação positiva nos últimos anos, bem como a devedores de contratos bancários, vinculados a taxas de substancial caráter remuneratório, a qual poderá ser afetada e suprimida na atualização dos valores devidos.
Peculiar é, também, a disposição do art. 19 da Lei SAF. Apesar de discorrer sobre o que seriam as disposições básicas para conciliar, minimante, os interesses de credores e devedores, a Lei concede a estes a possibilidade de, havendo composição nesse sentido, se desvincularem integralmente de suas normas, estabelecendo plano de pagamentos que contemple apenas o que foi objeto da eventual negociação coletiva.
Trata-se de regra que privilegia a cooperação e vontade das partes, permitindo que alcancem denominadores e bases não especificadas, capazes de emantar integralmente os seus interesses, mesmo que de forma dissociada da “base mínima aceitável”, estatizada na norma, conforme visualizado pelo legislador.
Os artigos 20, 21 e 22 tratam das possibilidades de manuseio do crédito por parte do credor.
Destaque para a previsão do art. 21, ao tratar que o credor, de qualquer valor, pode anuir ou não a deságio sobre o valor do débito, eventualmente proposto no plano de pagamento. Aqui, se visualiza uma falha grave da Lei SAF, uma vez que a norma não dispõe das consequências da recusa ao deságio.
Ora, o credor que recusar o deságio, mas que ver aprovado o plano de pagamentos pela maioria dos credores, será tratado como? Será submetido ao plano, lhe sendo imposto o deságio anteriormente recusado, sufragando ou tornando ineficaz o direito de recusa indicado na Lei? Será tratado como um credor extraconcursal, mas quais as consequências e efeitos disso? Ou receberá seu crédito sem deságio, observado a dinâmica do plano de pagamentos? São questões de extrema complexidade e incerteza, que deverão ser integralizadas pelo Poder Judiciário, visto a patente necessidade de modulações mais seguras quanto os direitos do credor.
Questão de maior ressonância para o que será tratado nos tópicos subsequentes deste trabalho, cuida-se da regra do art. 23. Este dispositivo ensina que, no período em que o clube ou pessoa jurídica original cumprir os pagamentos do plano aprovado, é vedada qualquer forma de constrição ao patrimônio ou as suas receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie sobre as suas receitas.
Com efeito, diversamente do que ocorre nas Recuperações Judiciais, pela literalidade da Lei SAF, no RCE, não se fala em suspenção de execuções, mas, sim, de medidas constritivas que atinjam os ativos do contemplado. Suspensão de medidas que só terá início e perdurará no período em que estiverem sendo feitos os pagamentos do plano aprovado.
Ou seja, em tese, no RCE, a suspensão das medidas executivas depende não apenas do eventual deferimento do processamento do procedimento ou, indo mais além, da própria aprovação do
plano, mas, mais do que isso, depende do efetivo início dos pagamentos para produzir os seus efeitos.
Ao postergar a blindagem patrimonial para o início dos pagamentos estabelecidos no plano, a regra da Lei SAF se mostra contraditória com a própria finalidade do RCE, que seria permitir o pagamento orgânico dos débitos do devedor, ao mesmo tempo que concede a este segurança para se reerguer e reestruturar.
Ora, o soerguimento do interessado demanda que seja suprimido o risco que está exposto de ser afetado por medidas constritivas indiciosas, que paralisem seus ativos, para que, assim, dentre outras questões, possa provisionar e planejar com efetividade e segurança o plano de pagamentos a ser deliberado, contando com todos os seus recursos.
Contudo, não sendo imediata a suspensão das medidas constritivas, todo o provisionamento, elaboração e a própria negociação do plano de pagamentos com os credores fica comprometida, pois, caso antes de aprovado o plano e iniciados os pagamentos, advenha uma constrição de valor ou afetação de bem substancial, as bases do plano apresentado ou trabalhado serão impactadas, postergando ainda mais a aprovação, estabilização e encerramento do RCE.
Assim, a aplicação literal do art. 23, diante da precariedade do comando que o regula, figura como um fator de potencial desestímulo ao uso e requerimento do RCE, considerada a insegurança e instabilidade que sua aplicação pode gerar nas bases de um esboço de plano, como nas próprias tratativas e negociações que antecedem a aprovação do plano.
Por fim, o art. 24 arremeta o capítulo da Lei SAF destinado ao RCE, dispondo que, a SAF responderá, nos limites estabelecidos no art. 9º da Lei, subsidiariamente, pelo pagamento das obrigações civis e trabalhistas anteriores à sua constituição, caso as partes (devedor e credores) não estabeleçam forma diversa (art. 19).
Os indicados limites do art. 9º, relacionam-se ao fato de que a SAF não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei.
Feitas tais considerações, críticas a superficialidade e a indiciosa incompletude da Lei SAF, que requer aperfeiçoamento, passa-se a demonstrar que na prática, estas questões de receio já vêm impactando grandes Clubes do país.
Nesse sentido, no tópico seguinte, serão abordadas as primeiras decisões proferidas pelo TJSP, TJRJ e TJMG, exacerbando a interpretação dedicada por cada um destes órgãos às questões colhidas da Lei SAF, para o deferimento dos RCEs requeridos por Botafogo, Fluminense, Vasco, Corinthians, Portuguesa e Cruzeiro, e as nuances de tratamento da Lei em cada Estado, passando por breves comentários sobre os seus potenciais efeitos práticos.
É o que se passa a apresentar.
2. DAS PRIMEIRAS DECISÕES JUDICIAIS QUE RECEBERAM OS PEDIDOS DE RCE
2.1. Das Decisões Cariocas
Inicialmente, quanto ao Estado do Rio de Janeiro, as decisões avaliadas para compor a pesquisa objeto deste trabalho foram as colhidas nos requerimentos de RCE apresentados pelo Botafogo3, Fluminense4 e Vasco da Gama5
3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo nº: 0069035-13.2021.8.19.0000. Requerente: Botafogo Futebol e Regatas. Relator: Des. José Carlos Maldonado. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2021.
4 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo nº: 0078735-13.2021.8.19.0000. Requerente: Fluminense Football Club. Relator: Des. José Carlos Maldonado. Rio de Janeiro, 25 de outubro de 2021
5 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo
Nesse sentido, características abstraída das decisões do TJRJ, é que este define o RCE previsto na Lei SAF como um procedimento que “tem por objetivo promover a reunião de todos os processos em fase executiva em um único Juízo Centralizador (art. 14), com a suspensão das penhoras (art. 23), permitindo, com isso, que possam ser adimplidas as dívidas do Clube, em observância às preferências indicadas no art. 17, da lei em comento”.
Os três Clubes cariocas, ao tempo do requerimento, possuiam natureza de associação desportiva. Nesse sentido, o TJRJ entendeu que diante desta natureza jurídica, os clubes preenchiam os pressupostos de legitimidade fixados na Lei SAF.
De especial realce, os requerimentos de RCE vieram acompanhados de pedido de antecipação da tutela recursal, visando a imediata suspensão das execuções e medidas constritivas em seu desfavor. Em todos os casos, os pedidos liminares foram deferidos, sem, contudo, que o TJRJ tivesse apresentado em suas decisões, motivação relacionada a identificação dos elementos para o preenchimento dos requisitos quanto a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
De todo modo, o reconhecimento da legitimidade do requerente e cabimento do RCE foi suficiente para a antecipação dos efeitos da tutela em específico.
Com efeito, ao deferir o processamento dos RCEs, o TJRJ suspendeu todas as execuções e medidas constritivas de cunho patrimonial em curso, promovidas em face dos Clubes requerentes, nos termos em que requerido nos pedidos iniciais.
O TJRJ expressou o entendimento de que o art. 23 não só admite a antecipação dos seus efeitos, permitindo a aplicação imediata, em momento
nº: 0063814-49.2021.8.19.0000. Requerente: Club de Regatas Vasco da Gama. Relator: Des. José Carlos Maldonado. Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2021.
anterior à aprovação do plano e início dos pagamentos aos credores, refletindo, assim, o tratamento que é despendido para as execuções nas ações de Recuperação Judicial, como, também, admite interpretação expansiva, para que as próprias ações de execução, não só as medidas de constrição, sejam suspensas.
Além disso, o Tribunal carioca demonstrou ser dispensável a análise individual, caso a caso, para que se promova a suspensão das ações judiciais e das medidas constritivas, independentemente da natureza, objeto e da fase da ação judicial afetada, atribuindo este juízo exauriente e mais aprofundado quanto a questão, se provocado pela interessado nesse sentido, ao juízo centralizador.
Amealhadas as características e interpretações dispostas nas decisões cariocas, vê-se cenário de que, considera a aplicação prática da norma, a posição do TJRJ é tendente a privilegiar a proteção e o soerguimento do devedor, conferindo benesses que superam expectativas da Lei nesse sentido.
2.2. Das Decisões Paulistas
Em São Paulo, as decisões avaliadas para compor a pesquisa objeto deste trabalho, foram proferidas nos requerimentos de RCE apresentados pelo Sport Club Corinthians Paulista6 e pela Associação Portuguesa de Desporto7
Essencialmente, a diferença do tratamento despendido pelo TJSP quando comparado ao TJRJ, revela-se no formato de apreciação do pedido de suspensão de ações de execução e medidas constritivas.
A legitimidade e cabimento do requerimento de RCE por associação desportiva foi chancelada
6 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº: 2049891-87.2022.8.26.0000. Requerente: Sport Club Corinthians Paulista. Relator: Des. Ricardo Anafe. São Paulo, 11 de março de 2022.
7 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº: 2286806-88.2021.8.26.0000. Requerente: Associação Portuguesa de Desportos. Relator: Des. Ricardo Anafe. São Paulo, 14 de janeiro de 2022.
pelo TJSP, sendo dispensado a eventual adoção do modelo de SAF para obter a ferramente de quitação de obrigações por concurso de credores.
No que confere ao pedido de suspensão das execuções e das medidas de constrição de patrimônio, a Presidência do TJSP apresentou entendimento de que, por demandar análise mais aprofundada do caso concreto, das questões envolvendo as execuções em si, não competeria a Presidência apreciar o pedido.
E foi além, apresentando entedimento de que cabe ao Juízo Centralizador avaliar o cabimento do pedido de suspensão das execuções e medidas constritivas, que a análise deve ser individual, caso a caso, vedando ou, ao menos, tornando precário eventuais provimentos indistintos, que fujam dessa análise individual da posição de cada ação.
O posicionamento do TJSP parece ir no sentido de que a suspensão dos efeitos das medidas expropriatórias, além da análise individual dos casos afetados, deve demandar, também, a verificação de elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo em relação ao requerente, avaliando-se o caso concreto, débito por débito, consideradas suas especificidades e os reflexos do eventual deferimento da concessão do efeito suspensivo, considerados, além disso: o nível de endividamento, afetação a consecução de suas atividades, segurança e possibilidade de elaboração de plano de pagamento, entre outras inerentes ao tema.
Tal posição, figura como elemento de considerável efeito desistimulador do manuseio do RCE no Estado, visto que sua aplicação dificulta a obtenção da blidagem patrimonial, subsídio da elaboração e eficácia de qualquer esboço de plano de pagamentos. Por óbvio, a postergação e ausência suspensão imediata das medidas constritivas, atravanca o soerguimento do interessado.
2.3. Da Decisão Mineira
Em Minas Gerais, por sua vez, a decisão avaliada foi proferida no requerimento de RCE apresentado pelo Cruzeiro Esporte Clube8, que teve tratamento completamente distinto do encontrado nas decisões avaliadas em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Nesse sentido, o TJMG apresentou interpretação peculiar quanto ao §2º, do art. 14, da Lei SAF, dispondo que esta norma teria fixado como requisito à concessão do RCE, a efetiva apresentação do plano de pagamentos, o que entendeu pela análise do teor do art. 16.
Segundo o Tribunal mineiro, o art. 16 estabelece rol de requisitos para a concessão do RCE, incluindo aqui a própria apresentação do plano de pagamentos para que o procedimento tenha início, ou seja, se faz necessária a apresentação de todos os documentos indicados no artigo, incluindo a instrução do requerimento com o plano de pagamentos, para o deferimento do pleito.
Com base nessas razões, o TJMG deixou de apreciar o pedido de concessão do RCE feito pelo Cruzeiro, diferindo esse juízo de valor para o momento em que apresentados os documentos indicados no art. 16 da Lei SAF.
Porém, mesmo não concedendo o RCE, e aqui, a mais excepcional vertente da decisão proferida pelo TJMG, este Tribunal, verificando que na hipótese do Cruzeiro estariam presentes a probabilidade do direito alegado e o perigo de dano ao resultado útil do processo, com base no exercício do seu poder geral de cautela, determinou com espeque na antecipação dos efeitos do art. 23 da Lei SAF, a vedação de qualquer forma de constrição ao patrimônio do Clube mineiro ou as suas receitas, por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie.
Com efeito, o Tribunal mineiro divisou outro en8 BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Processo nº: 1.0000.21.232276-2/000. Requerente: Cruzeiro Esporte Clube. Relator: Des. Gilson Soares Lemes. Belo Horizonte, 30 de outubro de 2021.
tendimento, com características próprias, exigindo a apresentação do plano de pagamentos para a concessão do RCE, de forma única, e além disso, permitiu a obtenção da tutela antecipada dos efeitos do art. 23 da Lei SAF, para momento anterior, inclusive, a própria concessão e deferimento do RCE.
Ou seja, entendimento distinto do apresentado pelo TJSP e TJRJ.
CONCLUSÃO
A Lei SAF, diante das lacunas que apresenta, dá margem para diversos cenários contaminados por insegurança jurídica.
Grande parte dos pontos de incerteza identificados, poderiam ser superados caso a Lei dipusesse, expressamente, da aplicação residual ou subsidiária, naquilo que couber, das regras aplicadas às Recuperações Judicias ou Extrajudiciais.
Contudo, assim não o fez o legislador, pecando pela falta de cuidado ou conhecimento do funcionamento dos clubes de futebol e dos procedimentos legais relacionados a centralização de ações judiciais e recuperação de empresas.
Acredita-se que o uso subsidiário da Lei das Recuperações Judiciais e da jurisprudência já consolidada deste instituto, deve ser aplicado para integralizar as regras do RCE, que apesar de alternativa autônoma, tem notória relação com a recuperação judicial, institutos que, igualmente, são direcionados ao soerguimento e restruturação da pessoa jurídica.
Ocorre que, as primeiras decisões proferidas nos pedidos de RCE, baseadas pela Lei SAF, revelam que hoje o Clube que venha avaliar apresentar requerimento desta natureza, terá que sopesar diversas incertezas, figurando como um refém de subjetividades e impressões colhidas de decisões instáveis, para exarar seu juízo de conveniência quanto ao RCE.
Nesse cenário, a solidificação da jurisprudência baseada na Lei SAF, é essencial para permitir que os Clubes interessados em se valer do RCE, possam tomar decisões mais adequadas e seguras, otimizando essa via de satisfação de obrigações no alcance da finalidade maior, que tem por ideal, o pleno soerguimento financeiro das instituições desportivas e o fortalecimento do futebol nacional, passando a representar, efetivamente, uma solução concreta para clubes endividados
LEI SAF. Lei Federal nº 14.193 de 6 de agosto de 2021. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14193.htm. Acesso em 15 de janeiro de 2022, 11h45.
LEI DE RECUPERAÇÕES JUDICIAIS.
Lei Federal nº 11.101 de 9 de fevereiro de 2005. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm. Acesso em 15 de janeiro, 12h.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo nº: 0063814-49.2021.8.19.0000. Requerente: Club de Regatas Vasco da Gama. Relator: Des. José Carlos Maldonado. Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2021.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo nº: 0069035-13.2021.8.19.0000. Requerente: Botafogo Futebol e Regatas. Relator: Des. José Carlos Maldonado. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2021.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo nº: 0078735-13.2021.8.19.0000. Requerente: Fluminense Football Club. Relator: Des. José Carlos Maldonado. Rio de Janeiro, 25 de outubro de 2021.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº: 2049891-87.2022.8.26.0000. Requerente: Sport Club Corinthians Paulista. Relator: Des. Ricardo Anafe. São Paulo, 11 de março de 2022.
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº: 2286806-88.2021.8.26.0000. Requerente: Associação Portuguesa de Desportos. Relator: Des. Ricardo Anafe. São Paulo, 14 de janeiro de 2022.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Processo nº: 1.0000.21.232276-2/000. Requerente: Cruzeiro Esporte Clube. Relator: Des. Gilson Soares Lemes. Belo Horizonte, 30 de outubro de 2021.
SIQUEIRA, João Marcos Guimarães. Lei Em Campo. A Sociedade Anônima de Futebol e suas Nuances. Reflexões Iniciais Acerca da Entrada em Vigor da Lei. 2021 Disponível em https:// ibdd.com.br/a-sociedade-anonima-de-futebol-e-suas-nuances-reflexoes-iniciais-acerca-da-entrada-em-vigor-da-lei-n-14-193-2021/ . Acesso em 7 de janeiro de 2022, 10h.
A VALIDADE DA ARBITRAGEM EM DISSÍDIOS INDIVIDUAIS TRABALHISTAS NA CNRD
Este artigo possui como escopo analisar a possibilidade da utilização do instituto da arbitragem como meio de resolução de disputas no que tange aos litígios de natureza trabalhista na esfera desportiva. O tema proposto analisa uma complexidade de institutos que permeiam o setor e a própria jurisdição nacional, haja vista que as principais problemáticas a serem abordadas tratam das discussões doutrinárias e jurisprudenciais trabalhistas sobre a possível inconstitucionalidade da arbitragem para as ações individuais trabalhistas (tópico este de relevante alteração na reforma trabalhista), bem como sob a perspectiva da posição da doutrina arbitralista concernente ao tópico. A partir de uma análise da lex sportiva sobre o tema, a presente pesquisa analisa os regulamentos internacionais e nacionais do sistema associativo, com maior enfoque na modalidade futebol, para estabelecer quais as premissas identificadas e vantagens que a arbitragem possui para a resolução de disputas do setor, inclusive se utilizando dos princípios e regramentos do instituto para julgar casos referentes a competições, doping e formação de tribunais para resolução de disputas. Ao final, o artigo se propõe a esclarecer pontos de importante questionamento sobre o tema, qual seja, a validade da arbitragem em matéria trabalhista em dissídio individual, o procedimento e a natureza das decisões de matéria trabalhista na CNRD, bem como os benefícios de sua utilização para o setor esportivo.
Palavras-chave
Direito do trabalho - Hipossuficiência - Arbitragem - Heterocomposição - Lei Pelé - Câmara Nacional deRresolução de Disputas - Arbitrabilidade - Empregado Hipersuficiente
Felippe Lima Sant’Anna
Bacharel em Direito pela Universidade de Ribeirão Preto, inscrito na Ordem dos Advogados de São Paulo. Consultor Acadêmico do Futebol Interativo. Pós-graduando em Direito Constitutional Aplicado, Direito e Processo Civil e Direito e Processo do Trabalho pelo Instituto Legale Educacional. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo-IBDD.
INTRODUÇÃO
O desafio colocado pelo autor de escrever sobre a utilização da arbitragem como forma de solução de conflitos de matéria trabalhista, por si só se faz por meio de um instigante trabalho que nas últimas alterações legislativas suscita acalorados debates doutrinários e jurisprudenciais. Para tanto, buscou-se no primeiro capítulo abordar o instituto da arbitragem dentro da sistemática trabalhista, a partir da sua positivação na Constituição Federal de 1988, bem como na Lei de Arbitragem e na legislação trabalhista, passando por uma necessária análise do tema em consonância com a reforma trabalhista, por fim, indagando-se sobre a indisponibilidade e disponibilidade dos direitos trabalhistas. Ademais, outro ponto de imprescindível discussão no que tange a proteção do Estado, a prima facie, da disparidade existente na relação entre empregador e empregado, que este último se presume em situação de vulnerabilidade e hipossuficiência, porém sob o tema proposto, correlacionando tais premissas às novas figuras trazidas pela reforma trabalhista do empregado “hipersuficiente” e do critério econômico do empregado adotado pelo legislador a partir do art. 507-A da CLT, viabilizando a este utilizar-se da arbitragem para dirimir litígio individual trabalhista.
Ao final, no capítulo segundo, a presente pesquisa passa a adentrar no sistema esportivo, mais propriamente ao Direito Desportivo ou a lex sportiva, de modo a explanar sob a estrutura atual do setor esportivo, especificamente no futebol, do qual a partir de iniciativa da própria Confederação Brasileira de Futebol, criou a Câmara Nacional de Resolução de Disputas (CNRD) para dirimir disputas concernentes a sua modalidade, dentre elas, possibilitando a formalização de disputas entre clube e empregado, pelo que passamos no decorrer do capítulo a expor sobre esta viabilidade e analisar o regulamento da Câmara e a sua composição em concomitância com a legislação trabalhista e a Lei de Arbitragem nacional.
1. O INSTITUTO DA ARBITRAGEM NA ESFERA TRABALHISTA.
Antes da promulgação da reforma trabalhista, com exceção do art. 90-C da Lei 9.615/98 (Lei Pelé), não havia qualquer dispositivo legal que deliberasse sobre a possibilidade da utilização da arbitragem nos dissídios individuais trabalhistas, tão somente na disposição constitucional que prospectava a alternativa da arbitragem como forma de resolução de conflitos nos dissídios coletivos de trabalho.
Com a promulgação da Carta Magna de 1988, passou-se a disciplinar sobre a oportunidade da utilização do instituto nas relações de trabalho, de forma específica no que se refere as negociações coletivas, por faculdade das partes, conforme disposição ao art. 114 §1º.
Registra-se que a disposição do constituinte em estabelecer tal alternativa teria advindo da Convenção n. 154 da Organização Internacional do Trabalho, adotada em Genebra, em 19 de junho de 1981 e ratificada pelo Brasil, na qual autoriza e recomenda a utilização da arbitragem nos conflitos coletivos do trabalho.
Neste ínterim, leis ordinárias subsequentes previram, igualmente, a possibilidade do procedimento arbitral, a exemplo da Lei de Greve ( n. 7.783/1989) em seus arts. 3º e 7º, e da Lei Complementar n. 75, em seu art. 83, em que prevê a competência do Ministério Público do Trabalho na atuação como árbitro, facultado as partes, nos dissídios de competência da Justiça do Trabalho.
Dessa maneira, a reflexão trazida pela utilização da arbitragem nos dissídios trabalhistas coletivos é a sua plena compatibilidade com os princípios da criatividade jurídica da negociação coletiva e o da equivalência dos contratantes coletivos, haja vista que a negociação por meio do sindicato visa equiparar o poder de negociação entre os entes coletivos envolvidos. Dessa forma, os empregados, reunidos no âmbito coletivo, e o
empregador, encontrar-se-iam em pé de igualdade.
Sendo assim, forçoso concluir que inexiste controvérsia quanto à aplicabilidade da utilização da arbitragem como forma de solução de conflitos nas relações coletivas de trabalho.
Noutro giro, embora o constituinte explicitamente permitisse a utilização da arbitragem nos dissídios laborais coletivos, quedou-se silente quanto à possibilidade de sua aplicação nos dissídios trabalhistas individuais. Todavia, não há, no âmbito do próprio art. 114 nem de qualquer outro dispositivo constitucional, qualquer referência ao uso do instituto nas controvérsias trabalhistas individuais, tampouco de lei ordinária, anterior a reforma trabalhista.
Em razão do vazio do constituinte sobre o tema, o grande questionamento é saber destrinchar do que se conclui a falta de previsão constitucional da arbitragem nos dissídios individuais em comparação com a sua previsão constitucional para os dissídios coletivos trabalhistas.
Porém, não parece razoável defender a tese de que a arbitragem para os conflitos individuais seria inconstitucional por esse motivo, haja vista que não há, em toda a Constituição Federal, qualquer previsão permitindo a sua utilização nos conflitos de natureza cível ou comercial, por exemplo.
Isto é, a Constituição não é silente apenas em relação à possibilidade de uso da arbitragem para os litígios trabalhistas individuais, mas também com relação a todos os outros conflitos de natureza para além da categoria dos coletivos trabalhistas.
E, como se sabe, não há dúvida de que estes últimos litígios são, via de regra, plenamente arbitráveis no Direito brasileiro, independentemente de previsão constitucional nesse sentido, desde que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis e envolvam pessoas capazes.
Não obstante, há de se ressalvar, para afastar de vez a tese de inconstitucionalidade da aplicação do instituto nos dissídios individuais trabalhistas em razão do silêncio do constituinte, que a situação em tela ensejaria a aplicação do princípio da legalidade privada (art. 5º, inciso II, da CF88), na qual o que não está proibido pela lei (aí se incluindo a norma fundamental, obviamente) é permitido.1
1.2 Direitos Patrimoniais Disponíveis
Para além da reflexão concernente ao silêncio do constituinte sobre os possíveis cenários de utilização da arbitragem, em relação ao ponto da arbitrabilidade, estabelecida no artigo 1º da lei de arbitragem, qual seja, a sua aplicação limitada a litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, necessário se faz nesse contexto da arbitrabilidade de causas trabalhistas, em sua aplicação na seara patrimonial, indagar sobre a indisponibilidade e disponibilidade dos direitos trabalhistas.
É sabido que o ordenamento jurídico confere tratamento diferenciado aos dispositivos laborais, com normas de incidência imperativa, decorrentes do chamado princípio da indisponibilidade de direitos, tal qual o princípio da proteção do empregado, em situação economicamente débil em relação ao empregador, pelo que, os direitos estabelecidos por normas trabalhistas, via de regra, de ordem pública, não se incluem no âmbito de livre disposição pelo empregado, sendo assim os direitos trabalhistas são, em regra, irrenunciáveis, indisponíveis e inderrogáveis. 2
Todavia, note-se importante que a concepção de indisponibilidade dos direitos trabalhistas comporta implicações casuísticas que em inúmeras situações, concluímos que, em relação a alguns desses direitos, tal característica irrenunciável se revela absoluta ou relativamente inexistente.
1 VERÇOSA, Fabiane. Arbitragem para a Resolução de Dissídios Individuais Trabalhistas em Tempos de Reforma da CLT e de Conjecturas sobre a Extinção da Justiça do Trabalho: o Direito Trabalhista na Encruzilhada. p. 24.
2 DIAS, Resende Ricardo. Direito do Trabalho. 7 Ed. São Paulo. Método, 2017.Pag. 117
A exemplo de situações concretas da mitigação do princípio da absoluta proteção do empregado, mostra-se clarividente no cenário futebolístico, mais especificamente junto aos atletas de clubes que disputam as divisões A e B do campeonato brasileiro, em que dificilmente atletas, diretores e chefes de comissão técnica recebem uma remuneração abaixo dos R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
Para além, no que concerne a própria relação empregatícia junto aos clubes, a Lei Geral do Desporto confere as partes situações muito atípicas das demais relações de trabalho, através da figura do Contrato Especial de Trabalho Desportivo.
Dentre as várias diferenças em relação ao Contrato de Trabalho típico da CLT, está a possibilidade de o clube realizar o pagamento do salário do atleta em 60% do total no registro deste na carteira de trabalho, e os 40% restantes a titulo de “direito de imagem”, conforme preceitua o parágrafo único do art. 87-A da Lei 9.615/98.
Noutro giro, o incentivo marcante à conciliação no ordenamento jurídico trabalhista, assim o faz por se tratar de uma natureza patrimonial e disponível, suscetivel a heterocomposição arbitral. Nessa mesma linha se explicita o raciocinio de Márcio Yoshida:
“A disponibilidade dos direitos trabalhistas relativos a contratos rescindidos é flagrante e insofismável, caso contrário seria impossível o instituto da conciliação na Justiça do Trabalho”. 3
Sob tal análise, forçoso concluir que a indisponibilidade relativa se encontraria para além dos núcleos mínimos de proteção juridica, admitindo a sua negociação condicionada ao interesse do empregado, desde que não implique em seu prejuízo. Dessa forma, sua incidência de disponibilidade depende da aplicação casuística, não ostentando sua condição absolutamente indisponível, mas também, comportando, por vonta-
3 YOSHIDA, Márcio. A arbitragem e o judiciário trabalhista Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Abitragem. 2005. p. 37
de do seu titular, atos transacionáveis.
Vulnerabilidade e Hipossuficiência do empregado
No aspecto juslaboral, para a consagração da possibilidade de utilização da arbitragem nos dissídios laborais individuais, como já abordado anteriormente, o grande entrave que se vem a abordar a presente pesquisa, é a liberdade negocial do empregado em aderir a cláusula compromissória ou ao compromisso arbitral, em comparação a outros cenários dos quais, via de regra, as partes se encontram em posição equânime.
Para além do aspecto da disponibilidade do direito, anteriormente abordada, outro entrave que força os mais diversos posicionamentos se mantém no real caráter subjetivo do Principio da Proteção no Direito do Trabalho, em que se presume como detentor do poder econômio, o empregador se encontra em situação elevada ao empregado, tendo o Estado o dever de invervir em benefício do trabalhador, a fim de evitar abusos por parte do contratante, garantindo ao obreiro o mínimo de proteção nesta relação.
Tal desequilíbrio de forças entre os atores de uma relação de emprego estipula a condição de sujeito vulnerável a acatar todos os termos do empregador, a ponto de prejudicar a manifestação da vontade dos convenentes de uma convenção de arbitragem ou de compromisso arbitral, invalidando o negócio jurídico, do qual, sem a declaração de vontade das partes, é nulo de direito.
Nessa esteira, questiona-se por qual critério há uma diferenciação que tornaria mais branda a limitação da liberdade negocial por parte dos empregados. Por esta indagação se invoca o mesmo raciocínio trazido pela reforma, que trouxera a figura do “empregado hipersuficiente”, bem como aplicou o critério de possibilidade da utilização da arbitragem nos dissídios individuais do trabalho do art. 507-A, qual seja, o diferenciado plano econômico, técnico e hierárqui-
co em relação aos empregados.
Levando em consideração esses critérios, o empregado que possui uma posição mais privilegiada dentro da empresa, o jogador de futebol de um clube que figura entre as principais ligas nacionais e intercontinentais, entre outros exemplos de profissionais que gozam de uma condição econômica privilegiada, não se evidencia a mesma vulnerabilidade jurídica da maioria dos empregados, que recebem o piso de uma categoria, dispensando um tratamento mais protetivo do Estado a estes trabalhadores excepcionais.
Este mesmo critério de diferenciação entre empregados através do caráter econômico-social, que inspirou a uma grande inovação trazida pela Reforma Trabalhista, no parágrafo único do art. 444, da CLT, tendo cedido maior grau de autonomia negocial aos empregados que portam diploma de nível superior e percepção de remuneração superior ao dobro do teto dos benefícios previdenciários.
A nova figura do “empregado hipersuficiente” disposta na Consolidação das Leis do Trabalho através da reforma trabalhista, outorgou a este trabalhador a possibilidade de negociar individualmente os direitos que lhe são permitidos no âmbito coletivo, conferindo a esta gama excepcional de obreiros menor debilidade e desigualdade de forças para com seus contratantes.
Em consentâneo com a figura do empregado hipersuficiente, estabelecido no art. 444 p.u da CLT, na esfera jusdesportiva, não há precisão acerca dos empregados desportivos hipersuficientes na Lei Pele. Em razão dessa lacuna normativa, aplica-se o disposto na própria CLT para a caracterização do empregado hipersuficiente.
Valorosa a menção de que há, no projeto de Lei de n. 10.319/2018 para modificar a Lei Pelé, uma tentativa de enquadramento legal do empregado desportivo hipersuficiente.4 A disposição tem 4 art. 21 §3º do Projeto de Lei 10.319/2018. Disponível em: [https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramita -
o intuito de excluir a exigência do diploma de nível superior, e em comparação com o estabelecido na norma trabalhista, um salário-mínimo calcado ao valor de três vezes, e não duas vezes, o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social. 5
De certo que o Projeto de Lei peca ao querer inserir novo enquadramento legal ao empregado desportivo hipersuficiente apenas ao atleta de futebol, deixando um vazio legal aos empregados desportivos de outras modalidades.
Por demais, independentemente da especificidade da norma ao estabelecer o empregado hipersuficiente desportivo, ou, até levando em consideração a atual disposição vigente na norma celetista, o trabalhador hipersuficiente é a exceção da exceção, sendo poucos que gozam de liberdade contratual no cenário desportivo , em que, por mais que tenhamos atletas que percebem um patamar salarial suntuoso, segundo relatório da Ernst Young que forneceu os dados das faixas salariais dos atletas de futebol nacional, 88% do total recebem entre menos de R$ 1.000,00 (um mil reais) a R$ 5.000,00 (cinco mil reais), desses, 55% recebem menos de R$ 1.000,00 (um mil reais), e apenas 2% recebem entre R$ 100.000,00 (cem mil) a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Revela-se, portanto, evidente a desigualdade entre os empregados desportivos, assim como em outras profissões nas quais a excepcionalidade do empregado hipersuficiente se manifesta.
O legislador estabeleceu no art. 507-A da CLT um critério econômico para afastar de determinados empregados o que em uma situação casuística haveria uma alta probabilidade de não estarem em plena e livre manifestação de vontade para anuir a cláusula compromissória ou ao compromisso arbitral, em razão do patamar remuneratório desse empregado
Embora o critério remuneratório não poscao?idProposicao=2177000] Acesso: 04.07.2022.
5 RAMOS. Rafael Teixeira. Curso de Direito do Trabalho Desportivo, Editora JusPodivm, São Paulo, 2022. p. 114
sa ser exatamente o mais adequado, este se revela satisfatório e eficaz, mormente porque não dá margem a subjetividade na definição dos empregados que podem contratar a cláusula compromissória, afastando-se, assim, insegurança jurídica quanto ao tema.
Conquanto o critério estabelecido pelo legislador seja alvo de críticas, no sentido de defender uma maior restrição a utilização da arbitragem aos empregados de fato hipersuficientes, em cargos de confiança e de gestão, não há no texto legal margem para interpretações e subjetividades, em comparação com a possibilidade de dispor no artigo legal um critério por cargos, por exemplo, o que traz maior segurança jurídica aos contratantes.
Para além da discussão quanto ao retromencionado dispositivo na reforma trabalhista quanto ao trabalhador que adere a arbitragem para a solução do seu litígio particular, por óbvio que, não apenas no cenário esportivo quanto em outros setores da economia, uma parcela ínfima da população percebe os rendimentos acima do patamar estabelecido.6 Isso significa dizer que toda a tese aqui defendida para a melhoria e maior utilização da arbitragem nos dissídios trabalhistas desportivos não defende ao mesmo tempo a substituição ou o “desafogamento” do judiciário, pois são discussões muito distintas.
O instituto não deve ser visto como um instrumento a substituir o poder judiciário ou diminuir o número de demandas que lá estão, mas sim oferecer uma forma de heterocomposição que possa ser melhor integrada ao setor econômico em discussão inserida na lide, levando-se em consideração o tempo desse processo, a qualificação dos julgadores e a aplicação de leis e regulamentos específicos desse setor.
2. A ARBITRAGEM TRABALHISTA NA CNRD
A Câmara Nacional de Resolução de Disputas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) foi criada no ano de 2016, sendo incumbida de dirimir litígios desportivos envolvendo os participantes do futebol brasileiro em território nacional, dentro do sistema associativo do futebol sob jurisdição da CBF.
A CNRD possui extrema importância em razão de conferir uniformidade de suas decisões, contudo existem controvérsias sobre a sua natureza jurídica, havendo pleno dissenso quanto a natureza arbitral das decisões por ela proferidas.
A Câmara segue os moldes estabelecidos pela FIFA através do NDRC Standard Regulations, com bcaase no DRC/FIFA, sendo este um órgão decisório que a arbitragem e demais resoluções de disputas aos conflitos de relevância internacional no sistema do futebol mundial.
Porém, a discussão acerca da natureza jurídica, tanto do procedimento quanto das decisões proferidas pela Câmara emergem inúmeros posicionamentos. Diante disso, vamos apresentar algumas das razões pelas quais a CNRD não apenas pode ser considerada como arbitragem, mas também, sua evolução e seu aproveitamento consequentemente auxiliam no crescimento do setor jus desportivo.
Para melhor apuração da sua natureza jurídica, o ponto de partida para analisar seu caráter arbitral se avulta junto aos pressupostos essenciais para que determinado litígio possa ser submetido à arbitragem, a denominada “arbitrabilidade”.
6 Disponível em: [https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/ periodicos/1075/cd_2010_trabalho_rendimento_amostra.pdf ]
Acesso: 11 jan. 2019.
A arbitrabilidade poderá ser tanto subjetiva ou objetiva, fazendo referência aos sujeitos que detenham de capacidade para sujeitarem-se à arbitragem, bem como a matéria na qual decorre a controvérsia a ser resignada pelo procedimento, conforme disposto no art. 1º da Lei de Arbitragem, qual seja:
“Art. 1º As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”
No que tange a arbitrabilidade subjetiva, aos jurisdicionados da CNRD, de acordo com seu regulamento, serão submetidos à Câmara os atletas profissionais e não profissionais devidamente registrados na CBF.
Sendo assim, o primeiro questionamento que traria o requisito da arbitrabilidade subjetiva aos jurisdicionados da CNRD o faz, para além dos atletas com maioridade, aos relativamente e absolutamente incapazes, uma vez que o Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol abrange a possibilidade de registro junto a CBF de atletas não profissionais, a partir dos 14 anos, e, aos profissionais a partir dos 16 anos de idade, o que os tornaria, pelo regulamento, jurisdicionados a CNRD, porém impossibilitados, em razão do caráter disposto no artigo 1º da Lei de Arbitragem, de se valerem da arbitragem.
Dessa forma, a partir do pré-requisito da arbitragem subjetiva, essencial reconhecer que, em relação às pessoas físicas capazes de fato e de direito, dentro dos requisitos contratuais dispostos no Código Civil, a partir do litígio que se envolve na Câmara pode ser considerado como arbitral, ao contrário dos menores, que, por serem incapazes e não cumprindo com o requisito da arbitrabilidade subjetiva, não se pode considerar arbitragem em qualquer procedimento instaurado na CNRD que tenha este menor envolvido.
Em relação ao ponto da arbitragem objetiva, estabelecida no art. 1º da Lei de Arbitragem, que considera arbitráveis litígios referentes a “direitos patrimoniais disponíveis”, considera-se a matéria dos procedimentos, como nos casos de vínculo esportivo, rompimento contratual, mecanismos de solidariedade, inseridos dentro do requisito da arbitragem objetiva, havendo, inclusive no regulamento da Câmara, disposição com
relação aos litígios de natureza laboral, conforme nos ensina Pedro Henrique Sousa7:
“Litígios de natureza contratual, pecuniária que versam sobre vínculo esportivo e estabilidade contratual estão inseridos no pressuposto da arbitrabilidade objetiva. Contudo, resta alguma dúvida quanto aos litígios de natureza laboral, para saber se seriam considerados direitos patrimoniais disponíveis. Dispõe o Regulamento da CNRD que a Câmara tem competência para reconhecer destes litígios, sem prejuízo do direito de qualquer atleta, treinador, membro de comissão técnica ou clube de se recorrer da Justiça do Trabalho.”
Ademais, a Lei Pelé, em seu art. 90-C, reforça a arbitrabilidade objetiva dos conflitos de natureza esportiva, ressalvando os conflitos de competência da Justiça Desportiva.
Para além das considerações já permeadas no primeiro capítulo da presente pesquisa quanto ao tema do enquadramento dos direitos patrimoniais disponíveis em matéria trabalhista, importante aqui apresentar o que dispõe o regulamento da própria Câmara. Da leitura do parágrafo único do art. 3º, deve-se interpretar a possibilidade das partes de ajuizar o litígio na Justiça do Trabalho, não como um recurso de decisão da CNRD.
2.1 Cláusula Compromissória:
Os artigos 3º, 4º e 9º da Lei de Arbitragem estabelecem o que no contrato costuma ser batizado de convenção de arbitragem, que pode ser de dois tipos: a) a cláusula compromissória, hipótese em que as partes, ainda antes do surgimento de um conflito concreto já se comprometem a submetê-lo à arbitragem caso este se configure em momento futuro; b) compromisso arbitral, em que, após configurado o litígio, ambas as partes acordam em solucioná-lo por meio da
7 SOUSA, Pedro Henrique. A Câmara Nacional de Resolução de Disputa da CBF: Instauração do processo, procedimento e natureza das decisões à luz do Instituto da Arbitragem. Rio de Janeiro. Anuário MH. 2019. P. 267
arbitragem.
Trazendo à baila o contexto do regular procedimento da CNRD, em consonância com o parágrafo 1º do artigo 4º da Lei de Arbitragem, havendo cláusula compromissória no Contrato Especial de Trabalho Desportivo pactuado entre atleta e jogador ou de Contrato de Trabalho junto à membro de comissão técnica, que eleja a CNRD com competência para instaurar um procedimento arbitral para resolução de algum litígio advindo deste contrato laboral, estando o salário deste obreiro dentro do requisito do art. 507-A da CLT, estamos diante de uma típica convenção de arbitragem.
O mesmo podemos afirmar com relação ao enquadramento arbitral, em consonância com o art. 4º da LA, de procedimento da CNRD, denominado “Ata de Missão”, no qual se preenche uma ata que ordena todo o processo.8
Sendo assim, as partes acordam em solucionar uma lide por meio da arbitragem na CNRD a partir da assinatura de ambas da respectiva Ata de Missão, documento em que se configura um litígio concreto pois algum dos participantes já deve ter acionado a Câmara.
Na divisão trabalhista da CNRD, competente para julgar lides de natureza laboral, igualmente como ocorre na cláusula compromissória inserida no CETD, há de se fazer remissão ao art. 507-A da CLT para observar-se o piso legal do atleta ou membro de comissão técnica para que possa ser instituído o procedimento arbitral de resolução de disputas na Câmara.
Conclui-se então que, tanto por meio de cláusula compromissória disposta no Contrato Especial de Trabalho Desportivo, como por compromisso arbitral estabelecido entre as partes quando já configurado o litígio pela assinatura da Ata de Missão, em consonância com o requisito econômico positivado, tem-se como válida a instauração da arbitragem, nos ditames do que prescreve a Lei 9.307/96.
8 Ibidem, p. 269.
2.2. Cláusula por Referência.
Para além da seara trabalhista na CNRD, mas no sentido de contextualizar o cenário esportivo e da própria Câmara, façamos uma importante menção sobre as chamadas “cláusulas por referência”, na possibilidade de conflitos desportivos principalmente nos quais figuram dois clubes na disputa, entre intermediários, e jogadores ou clubes e intermediários.
Embora tenhamos analisado acima as hipóteses de arbitragem na disputa que envolvem partes que tenham compactuado com a arbitragem, seja através de compromisso arbitral ou cláusula compromissória, na cláusula por referência não há um documento ou contrato entre as partes que delega à jurisdição da Câmara para a disputa de futuro litígio, mas sim através de regulamento, estatuto ou qualquer outro documento em separado no qual as partes estão vinculadas.
As associações nacionais que representam o futebol de cada país se associam à Federação Internacional de Futebol, organização máxima internacional do futebol, e, nessa circunstância, para que sejam inseridas dentro do sistema associativo do órgão, as mesmas recepcionam e incorporam as disposições alocadas nos seus estatutos e regulamentos. Similar a um “contrato de adesão”, os órgãos a partir da inserção no sistema, reconhecem mutuamente os regulamentos internacionais entre cada associação nacional e a FIFA.9
Sendo assim, a partir do momento em que os clubes, intermediários, jogadores e demais membros da comissão técnica se registram a CBF, todos cumprem as regras pré-estabelecidas pela Confederação, que é vinculada à FIFA.
Neste ponto, para que haja a hierarquia das normas da federação máxima do futebol em con-
sonância com as demais federações e confederações de âmbito nacional e intercontinental, o sistema piramidal associativo do futebol se impõe através dos regulamentos realizados pela entidade máxima, que são absorvidos internamente por cada associação.
A título de exemplo, o Regulamento sobre o Estatuto e a Transferência de Jogadores (RSTP) determina que as associações implementem normas para o registro e transferência dos jogadores interligados a FIFA, o que, em território nacional, a CBF por exigência das implementadas do órgão máximo do futebol, atualiza o seu sistema nacional através do Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol, sendo a própria CNRD um componente que evidencia a relação piramidal associativa do futebol, uma vez que é criada a partir dos ditames do DRC da FIFA.
Ou seja, a partir do momento em que os “players” do setor futebolístico optam por se inserirem neste mundo, aderem as regras estabelecidas pelo sistema piramidal associativo. Neste melindre, a CNRD se mostra competente para resolução de disputas que, por ventura, não tenham sido compactuadas diretamente em instrumento contratual, dentre elas, sob força do art. 64 do Regulamento Nacional de Registro e Transferência do Futebol da CBF.
Não obstante, o Regulamento Nacional dos Intermediários, escrito pela CBF, no qual advém do Regulamento sobre Relações de Intermediários da FIFA, estabelece que a jurisdição da CNRD para resolução de disputas que sobrevenham do contrato de representação10 , bem como de sanções a serem impostas ao profissional em caso de descumprimento do regulamento.
Todavia, o cuidado que se deve ter as chamadas cláusulas por referência que jurisdicionam a CNRD seria de chamar o procedimento de arbitragem, mas sim procedimento administrativo, ou “procedimento sancionador”, conforme ex-
plicita em seu regulamento dos arts. 13ª ao 15º, haja vista a sua falta de previsão contratual entre as partes, em consonância com a Lei de Arbitragem, o que nos torna precavidos a chamar esses procedimentos de arbitragem.
Neste contexto, cumpre fazer menção a súmula 485 do STJ:
“A Lei de Arbitragem aplica-se aos contratos que contenham cláusula arbitral, ainda que celebrados antes da sua edição.’’
Deste modo, concluímos que a vinculação a CNRD se dá a todos os “players” do mundo do futebol haja vista a vinculação junto ao sistema FIFA, que por seguinte, os torna jurisdicionados e sujeitos ao ordenamento jurídico desportivo do futebol organizado. 11
2.3. Membros e divisões da CNRD.
O parágrafo primeiro do art. 13 da Lei de Arbitragem estabelece que as partes nomearão um ou mais árbitros sempre em número ímpar, podendo também, nomear suplentes.
De acordo com o Regulamento da CNRD, a Câmara é composta por 10 (dez) membros, sendo dois indicados pela CBF (um deles a quem cabe o exercício da presidência); dois indicados pelos clubes, (por meio da entidade sindical de abrangência nacional ou, na ausência desta, por meio de entidade de classe de abrangência nacional); dois indicados pelos atletas (por meio de entidade sindical de abrangência nacional); e dois indicados pelos treinadores e membros de comissão técnica (por meio de entidade sindical de abrangência nacional ou, na ausência desta, por meio de entidade de classe de abrangência nacional).12
A Câmara possui 4 (quatro) divisões, sendo estas:
a) a divisão sobre intermediação, responsável por dirimir as disputas envolvendo intermediários e outros intermediários, clubes, atletas ou membros de comissão técnica; b) a divisão tra-
11 Op cit. MARCONDES, p. 50.
12 Art. 5º Regulamento da CNRD.
balhista, responsável pelas disputas entre clubes e atletas ou membros de comissão técnica; c) divisão comercial responsável pelas disputas entre clubes; d) divisão sobre regulação, responsável pelas disputas resultantes de descumprimento do RNRTAF ou do RNI, entre clubes e federações, de qualquer natureza, cuja competência não seja da Justiça Desportiva, bem como os de competência originária da antiga CRL.13
Com exceção a Divisão sobre Regulação, que deve ser julgada por cinco membros, tanto as divisões sobre Intermediação, Trabalhista e Comercial possuem obrigatoriamente um painel formado por três membros, sendo que, tanto na de intermediação quanto na trabalhista, um dentre os membros indicados pela categoria do requerente, um dentre os membros indicados pela categoria do requerido e um membro indicado pela CBF.
Na divisão comercial, sendo um litígio envolvendo dois clubes, o painel será composto pelos dois membros indicados por estes, e um membro indicado pela CBF.14
Especial atenção ao regulamento que determina que os membros, deverão, após sua nomeação, assinar termo de compromisso declarando que exercerão sua função de forma independente e imparcial, não podendo, sob qualquer condição, integrar ou exercer outra função oficial na CBF, entidades de administração do desporto a ela filiadas, clubes e da Justiça Desportiva do futebol. Os membros também estão impedidos de atuarem em procedimentos vinculados a CNRD, formal ou informalmente, como consultores, patrocinadores de interesses ou procuradores de quaisquer jurisdicionados, estando vinculados aos deveres de sigilo e confidencialidade previstos no Regulamento.15
Tais exigências tem o objetivo de oferecer uma maior independência e imparcialidade da Câmara, no qual, a partir da representação dos
13 §1º do Art. 5 do Regulamento da CNRD.
14 §2º do art. 8º do Regulamento da CNRD.
15 §3º, §4º, §5º e §6º do art. 5º do Regulamento da CNRD.
jurisdicionados da CNRD em diferentes grupos, estes membros são indicados. Este conceito advém do próprio DRC da FIFA, e no RSTP da FIFA, sendo que o DRC/FIFA é composto por membros que representam jogadores e clubes. 16
Frisa-se, neste ponto, a importância do principio arbitral da imparcialidade, haja vista que o árbitro não pode com sua atuação pender deliberadamente para uma das partes, devendo, em verdade, atuar de forma imparcial à solução da lide, sendo aplicáveis as hipóteses de impedimento e suspeição previstas no CPC.17
Não obstante, o Regulamento da Câmara dispõe sobre as a possibilidade de impedimento ou suspeição do membro, devendo este de ofício informar ao presidente da CNRD sobre o fato, para que seja afastado e substituído por outro membro de mesma categoria a ser indicado pelo presidente, podendo as partes manifestarem recusa de um ou mais membros em caso de dúvida justificada sobre sua imparcialidade ou sua independência. 18
A se aplicar por analogia o princípio da livre convicção do árbitro, haja vista se tratar de uma consequência lógica de sua atividade jurisdicional. Este princípio, por intuição do próprio nome, confere ao julgador a sua total independência para, de forma livre e fundamentada, chegar a sua própria convicção sobre o caso.
Todas as características da escolha e atuação dos membros da CNRD estão em perfeita consonância com o que explicita o art. 13 e seguintes da Lei de Arbitragem. Desde o seu primeiro regulamento até o atual, a Câmara dobrou o seu número de membros, contudo, poderia haver uma possibilidade mais extensa e efetiva na escolha dos membros que julgam as demandas, não da forma indireta na qual ela é realizada, o que por mais que as partes possam contestar, não há a possibilidade de estes serem escolhi-
16 SOUSA, Op. Cit. p. 19.
17
dos, apenas pela sua representação diante da categoria das partes.
Muito embora o questionamento com relação a autonomia das partes para a escolha dos membros seja uma reflexão que diverge opiniões e torna mais delicado seu caráter arbitral, não se pode olvidar que a CNRD possui um minucioso regulamento para a atividade e escolha dos seus membros, o que, por si só, preenche o requisito previsto na Lei de Arbitragem, em seu §3º do art. 13.
Os integrantes terão mandato de 4 anos, permitida uma única recondução por quatro anos (este período foi multiplicado desde o primeiro regulamento da Câmara), e, a fim de serem evitadas as indicações políticas, o Regulamento exige a comprovação de experiência e preparo técnico dos indicados pelas associações, determinando que a CBF publique uma lista atualizada dos membros com seus respectivos currículos.19Ao contrário dos Tribunais Desportivos, não há voluntariado na CNRD: todos os membros são remunerados.
CONCLUSÃO
Após o introdutório Capitulo I que estabeleceu uma necessária discussão sob aplicabilidade da arbitragem em dissídios individuais de natureza laboral, a partir do capítulo segundo do presente artigo, buscou-se apresentar os pontos de maior relevância do regulamento da CRND, em consonância com a Lei de Arbitragem nacional para traçar um paralelo e um entendimento consensual sobre a possibilidade de interpretação do caráter arbitral das decisões emitidas pela Câmara frente aos litígios individuais trabalhistas.
De acordo com o último Boletim divulgado pela CNRD em maio de 2020, os conflitos de matéria trabalhista já assumiam o terceiro lugar entre as disputas julgadas pela Câmara, correspondendo a 9% do total das mesmas, empatadas com os conflitos sobre mecanismos de solidariedade nacionais, e atrás dos de natureza associativa vinculados ao art. 64 do RNRTAF (11%), e referentes a disputas sobre intermediários (52%). Im19 Art. 6º e 7º do Regulamento da CNRD.
portante mencionar que da data de publicação do presente artigo, mais de dois anos após o primeiro boletim informativo, há uma grande possibilidade de o número de disputas de natureza trabalhista ter aumentado exponencialmente. Outro importante dado colhido no Boletim da Câmara é o do tempo de tramitação dos procedimentos, que na divisão trabalhista corresponde a uma média de 273 dias, o menor entre todas as divisões da CNRD. 20
Por derradeiro, o que se pode extrair desses números é uma ampla aceitação do mercado com relação do trabalho da Câmara e o entendimento da sua própria existência, em sincronia com as características e benesses do instituto da arbitragem, pelo que, embora haja entendimentos divergentes em relação á natureza do procedimento da CNRD ser arbitragem ou não, é inegável que esta apresenta um corpo de membros altamente qualificados e inseridos no meio acadêmico e profissional do setor jus desportivo, e que proporciona a alta celeridade requisitada no contexto do setor desportivo.
O que podemos concluir a partir do objetivo da presente pesquisa é que há um contexto, ainda que pouco representativo nas relações de trabalho no Brasil, em que a vulnerabilidade e desigualdade de condições dessas relações é mitigada ou até mesmo inexistente a partir da vultuosa remuneração percebida por este empregado que, a partir do entendimento do legislador, o possibilita a pactuar uma cláusula compromissória que estabeleça a solução de futuro conflito a arbitragem, afastando a jurisdição estatal para sua solução.
Na conjuntura do futebol, a CNRD abre um leque poderoso e muito frutífero para a estratégia que pleiteia o procurador de seu atleta traçar. A depender do pedido e do cenário de uma ação trabalhista, talvez seja mais eficiente pleiteá-la na Justiça do Trabalho, porém inegável que ofertar a este profissional uma possibilidade de resolução da sua disputa de uma forma célere e que ofereça outros meios sancionatórios que apenas uma Câmara integrada ao sistema associativo do futebol pode proporcionar, traduz um avanço e um grande êxito a todos os envolvidos no setor.
20 Disponível em: [https://www.cbf.com.br/a-cbf/informes/ index/credibilidade-faz-cnrd-chegar-a-560-casos-em-menos-de-quatro-anos]. Acesso: 11.Jun.2022.
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AS PARTICULARIDADES DO CONTRATO ESPECIAL DE TRABALHO DESPORTIVO
O presente trabalho visa explicar o Contrato Especial de trabalho Desportivo, apresentando brevemente algumas peculiaridades deste tema. Tendo em vista que, a cada ano o Futebol vem ganhando cada vez mais espaço no cotidiano das pessoas e hoje se torna quase impossível conhecer alguém que não tenha nenhuma noção sobre o tema, fica um questionamento aqui: quem nunca parou para assistir a um jogo de futebol sem torcer para nenhum dos times que estavam jogando? O futebol se transformou em um dos maiores espetáculos da modernidade e dessa forma, movimentando uma quantia enorme de dinheiro. Aliás, não podemos negar que os Atletas são a principal atração desse espetáculo.
Entretanto, a seguir, iremos adentrar nas relações envolvendo os Atletas e os Clubes para entendermos como se dá este vínculo entre as partes, denominado de Contrato Especial de Trabalho Desportivo. Apresentamos as peculiaridades do referido Contrato Especial de Trabalho Desportivo, para que desta maneira, demonstremos, de forma clara, a necessidade da Legislação Específica e não só da aplicação da Consolidação das Leis Trabalhistas nas relações trabalhistas entre Clubes e Atletas.Por ora, as leis que regulam as relações jurídicas citadas são a Constituição Federal (CF/88), Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e Lei Pelé.
Palavras-chave
Contrato Especial de Trabalho Desportivo - Atleta - Clube - Futebol - Peculiaridades - Lei Pelé
Filipe Marques E Silva
Advogado. Pós-Graduado em Direito Desportivo pela ESA/OABSP.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho, tem como principal enfoque apresentar as principais peculiaridades relacionadas ao contrato de trabalho do atleta de futebol.
O tema levantado é de grande relevância social, pois o desporto movimenta grandes quantias monetárias anualmente, tornando-se uma ferramenta importantíssima para a economia mundial. O futebol, especificamente, passou a ser um mundo de grandes investimentos.
Acerca do tema, importante esclarecermos as principais particularidades do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, tendo em vista que o ordenamento jurídico brasileiro realizou mudanças nas leis até chegar a jurisdição que temos na atualidade, o que faz que seja importantíssima a análise acadêmica e aperfeiçoamento do tema.
Verificaremos, as leis que regulam as relações jurídicas citadas são a Constituição Federal (CF/88), Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e Lei Pelé.
Nesse sentido, mostrará de forma simplificada o tema, para o aprimoramento do direito e aprofundamento em um tema de conhecimento limitado entre os profissionais da área, tendo em vista a sua singularidade.
1. O CONTRATO DE TRABALHO DO ATLETA DE FUTEBOL
1.1. Contrato de trabalho de trabalho genérico
Contrato de trabalho pode ser considerado como a relação jurídica em que o empregado se dispõe prestar individualmente/pessoalmente serviços de forma não eventual a uma pessoa jurídica ou física, sendo subordinado, recebendo salários de forma continuada. Esta definição é de suma importância para o entendimento do Contrato Especial de Trabalho do Atleta que será exposto neste artigo.
Cabe asseverar os ensinamentos do jurista Amauri Mascaro Nascimento, o qual expõe que é possível se entender que contrato de trabalho e relação de trabalho são expressões diferentes de uma mesma e única realidade: o vínculo entre empregado e empregador. É possível também sustentar que se trata de duas figuras diferentes, dividindo-se aqui, os critérios de diferenciação, uma vez que para alguns o contrato de trabalho é o fato gerador da relação de trabalho. O contrato, portanto, faz nascer a relação1.
A legislação pátria, que engloba, em especial referente ao assunto tratado neste artigo, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), traz a definição de contrato de trabalho nos artigos 442 e 443, como o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego e que poderá ser acordada de forma expressa ou tácita, por escrito ou verbalmente, por prazo determinado ou indeterminado, ou ainda, para a prestação de trabalho intermitente2
Desta maneira, tem-se como empregador a empresa jurídica ou individual ou grupal, que assume os riscos de atividade econômica, contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal do serviço, ou seja, oferece ao empregado atividade laborativa. Por outro lado, o empregado é toda pessoa física que presta serviços de natureza não eventual, sob a dependência deste e mediante remuneração, conforme explanado nos artigos 2º e 3º da CLT respectivamente.
Por sua vez, o artigo 9º da CLT preconiza que será nulo de pleno direito, todo e qualquer ato que venha desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação do que é exposto pela Consolidação das Leis do Trabalho. Assim, presente os requisitos da pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade, será constituída a relação de
trabalho, mesmo que seja firmado qualquer outro compromisso que desconfigure esta relação, ou tente de alguma forma fraudar a aplicação das regras contidas na legislação.
Assim, pode-se afirmar que para que as disposições contidas nas fontes de Direito do Trabalho fossem efetivadas, fora necessário o desenvolvimento do contrato de trabalho, reconhecendo a suma importância do trato laboral, com o fito de garantir que todas as medidas no mesmo sejam cumpridas na melhor forma de direito.
1.2. O contrato de trabalho do jogador de futebol
Adentrando no conteúdo do Contrato de Trabalho do Jogador de Futebol, também conhecido como Contrato Especial de Trabalho Desportivo, cabe asseverar que a regra prevista nos artigos 442 e 443 da CLT que regulam o contrato do trabalhador ordinário não se aplicam ao atleta profissional, posto que de acordo com a legislação desportiva este celebrará contrato com características próprias3
O Contrato Especial de Trabalho Desportivo é o negócio jurídico celebrado entre agremiação de prática desportiva e pessoa física (Atleta), dispondo sobre as condições de trabalho, com algumas normas já pré-estabelecidas pela na lex sportiva (regras transnacionais regulatórias de determinada modalidade), de forma onerosa e sob a subordinação do clube empregador4
Uma diferenciação de caráter importantíssimo do contrato especial de trabalho desportivo, é a duração do contrato, uma vez que, este sempre será regulado por um prazo determinado, com duração mínima de 3 meses e duração máxima de 5 anos de acordo com o disposto no artigo 30 da Lei Pelé. Essa distinção talvez seja uma das mais relevantes, pois o contrato de trabalho do trabalhador ordinário, em regra vigora por prazo
3 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Manual de Direito do Trabalho Desportivo. 3ª edição, São Paulo: Editora LTr, 2020, p. 72.
4 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Manual de Direito do Trabalho Desportivo. 3ª edição, São Paulo: Editora LTr, 2020, p. 72
indeterminado, ou seja, são exceções os contratos que versam prazo determinado.
Assim, as características especiais do atleta profissional, justificam por si só o contrato de trabalho com duração de prazo determinado, uma vez que caso contrário o jogador de futebol poderia sair do clube em meio ao campeonato desportivo disputado, causando grande prejuízo ao empregador.
Em um giro de 180º, esta disposição evita situações em que o Atleta é contratado somente para uma determinada partida ou competição, e.g., Campeonato Mundial de Clubes de Futebol, Final de um Campeonato Nacional, (etc), o que afronta a estabilidade da competição e, em última análise, a própria ética ou identidade esportiva5
Deste modo, é muito comum e recorrente que os clubes e atletas de futebol, acordem entre si contratos de trabalhos curtos, compreendendo apenas o período de determinado campeonato, ou até mesmo até o fim da temporada.
As características atinentes ao Contrato Especial de Trabalho Desportivo estão previstas no artigo 28 da Lei Pelé, vejamos algumas peculiaridades que merecem reflexão.
O Primeiro ponto que merece destaque, trata-se do inciso I do artigo supra, o qual preleciona que o contrato de trabalho do jogador de futebol deverá conter expressamente a chamada cláusula indenizatória desportiva vejamos:
“Art. 28. A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:
I - cláusula indenizatória desportiva, devida exclusivamente à entidade de prática desportiva à qual está vinculado o atleta, nas seguintes hipóteses:
a) transferência do atleta para outra entidade, nacional ou estrangeira, durante a vigência do contrato especial de trabalho desportivo;
b) por ocasião do retorno do atleta às atividades profissionais em outra entidade de prática desportiva, no prazo de até 30 (trinta) meses;”
Referida cláusula, portanto, consiste na quantia devida ao clube empregador do atleta profissional de futebol que pretende se desvencilhar da agremiação no curso do contrato.
A cláusula indenizatória, tem sua origem na extinção do instituto conhecido popularmente como “passe6”. Sendo assim, a cláusula indenizatória confere ao empregador o direito de ser ressarcido dos investimentos realizados em prol do atleta quando da rescisão e/ou término do contrato7
Nesta linha, referido instituto foi implementado como promessa de maior garantia e estabilidade aos atletas para o caso de demissão sem justa causa ou rescisão indireta do Contrato Especial de Trabalho Desportivo8.
Neste sentido, visando a garantia dos investimentos realizados pelos clubes aos atletas, por exemplo, nas transferências destes para o mercado interno, o legislador estabeleceu um limite, para a cláusula indenizatória, de até 2.000 (duas mil) vezes o valor médio contratual para outros clubes de âmbito nacional. Já para clubes internacionais, não há qualquer limitação para que seja expressamente pactuado pelas partes no
6 Decreto nº 53.820/1964 - Art. 2º Na cessão de atleta profissional de futebol, a associação desportiva empregadora cedente poderá exigir da associação desportiva cessionária o pagamento de uma indenização ou "passe", estipulado na forma das normas desportivas internacionais, dentro dos limites e nas condições que venham a ser estabelecidas pelo Conselho Nacional de Desportos
7 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Manual de Direito do Trabalho Desportivo. 3ª edição, São Paulo: Editora LTr, 2020, p. 122
8 Chiminazzo,João Henrique Cren, Particularidades do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, Revista do Advogado. São Paulo.2014, p.28
instrumento contratual de trabalho.
Além disso, visando a garantia do recebimento da entidade de prática esportiva, o § 2º do artigo 28 da Lei Pelé, dispõe que o atleta transferido, bem como a nova entidade de prática desportiva empregadora serão solidariamente responsáveis pelo pagamento da cláusula indenizatória.
Desta feita, a finalidade seria manter no mesmo patamar os clubes com receitas baixas e os clubes com receitas altas, diminuindo assim a disparidade entre ambos, posto que a cláusula não só garante o retorno dos investimentos direcionados aos atletas de futebol profissional, como também garante que, caso o negócio seja firmado, capitaliza o clube para novos investimentos, não só em atletas ou jogadores da base em ascensão, mas também permite os investimentos em infraestruturas das entidades de prática do desporto.
Outro aspecto de grande relevância para compreensão do contrato de trabalho desportivo, é o que preleciona o § 4º do artigo 28 da Lei Pelé. Confira-se:
“§ 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:”
Voltando às normas gerais e comuns da Legislação Trabalhista e da Seguridade Social e levando-se em conta a sua aplicação subsidiária a atividade do atleta profissional, mostra-se importante a análise do § 4º do artigo 28 da Lei Pelé, que estabelece o que denomina-se de diálogo das fontes, que nada mais é do que o uso simultâneo e ponderado de diplomas legais, respeitando as peculiaridades da atividade esportiva e competitiva.
Conforme nos ensina o Mestre Leonardo Andreotti9, “ A aplicação subsidiária das normas traba-
lhistas e previdenciárias ao trabalho desportivo, deve se dar de maneira ponderada e proporcional à especificidade do desporto, porquanto a atividade esportiva assume uma característica única e distinta das demais manifestações e fenômenos sociais”.
Não obstante, o tempo que o atleta de futebol fica à disposição da entidade de prática desportiva também é diferenciado em relação ao trabalhador comum, uma vez que este terá o computo de horas extras em qualquer hipótese que extrapolar a jornada de trabalho diária.
A concentração é uma particularidade do esporte, principalmente do futebol, durante anos se discutiu a necessidade de regulamentação da concentração do atleta, pois inúmeras eram as demandas pleiteando pagamentos adicionais em virtude de período de concentração.
Desta feita, estabelecem os incisos I a III do artigo 28 §4º da Lei Pelé:
desde que esteja prevista partida oficial naquela semana.
Apenas por curiosidade, caso o atleta seja convocado para a seleção brasileira, o período poderá ser majorado, sem o pagamento de qualquer adicional.
Outra previsão diferencial, se diz respeito ao limite de tempo trabalhado, ou seja, a previsão que compõe o contrato especial de trabalho do atleta de futebol, traz uma limitação semanal e não mensal como o trabalhador comum. Desta forma, a limitação se consagra em 44 horas semanais, não tendo o que se falar em 8 horas diárias conforme o contrato de trabalho ordinário.
No entanto, o atleta poderá fazer jus à acréscimos remuneratórios, em razão os períodos de pré-temporadas, participação em partidas, bem como viagens desde que esteja expresso em seu contrato especial de trabalho, conforme previsão legal do artigo 28, § 4º, III da Lei Pelé.
“I - se conveniente à entidade de prática desportiva, a concentração não poderá ser superior a 3 (três) dias consecutivos por semana, desde que esteja programada qualquer partida, prova ou equivalente, amistosa ou oficial, devendo o matleta ficar à disposição do empregador por ocasião da realização de competição fora da localidade onde tenha sua sede;
II - o prazo de concentração poderá ser ampliado, independentemente de qualquer pagamento adicional, quando o atleta estiver à disposição da entidade de administração do desporto;
III - acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente, conbforme previsão contratual.[...]”
Constata-se que a concentração não poderá ser superior a três dias consecutivos por semana,
Nos ensinamentos do Professor Álvaro Melo Filho, o contrato especial desportivo possui características diferenciadas pelos seguintes aspectos10 :
“-Aspectos desportivos (treinos, concentração, preparo físico, disciplina tática em campo);
-Aspectos pessoais (alimentação balanceada, peso, horas de sono, limites à ingestão de álcool);
-Aspectos íntimos (uso de medicamentos dopantes, comportamento sexual);
-Aspectos convencionais (uso de brincos, vestimenta apropriada);
-Aspectos disciplinares (ofensas físicas e verbais a árbitros, dirigentes, colegas, adversários e torcedores, ou recusa em par-
10 FILHO, Álvaro Melo. Balizamentos jus-laboral-desportivos. In: Bastos, Guilherme Augusto Caputo (org.). Atualidades sobre direito desportivo no Brasil e no mundo. 1. Ed. Dourados: Seriema, 2010 t. II, p. 22-23
ticipação em entrevistas depois do jogo).”
Desta forma, determinados aspectos acima mencionados, não seriam admitidos em uma relação de emprego comum, pois configurariam evidente intromissão na vida privada do trabalhador, podendo gerar direito a indenização por tais atos que seriam considerados ilícitos. Todavia, se tratando do atleta de futebol, por sua própria natureza do trabalho desempenhado, há um abrandamento destas regras.
A luz dos ensinamentos do Professor Maurício de Figueiredo Corrêa da Veiga, conclui-se, portanto, que o contrato de trabalho desportivo é um contrato típico, sinalagmático, intuitu personae e com prazo de duração determinado11
Outra cláusula obrigatória que deverá constar no contrato especial de trabalho desportivo, está prevista no Inciso II do artigo 28 da Lei Pelé, o qual consagra a cláusula compensatória, referida cláusula também encontra amparo no § 3º do mesmo artigo, in verbis:
“Art. 28. A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente:
[...]
II - cláusula compensatória desportiva, devida pela entidade de prática desportiva ao atleta, nas hipóteses dos incisos III a V do § 5º.
[...]
§ 3º O valor da cláusula compensatória desportiva a que se refere o inciso II do caput deste artigo será livremente pactuado entre as partes e formalizado no contrato especial de trabalho desportivo, observando-se, como limite máximo, 400
11 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Manual de Direito do Trabalho Desportivo. 3ª edição, São Paulo: Editora LTr, 2020, p. 74.
(quatrocentas) vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão e, como limite mínimo, o valor total de salários mensais a que teria direito o atleta até o término do referido contrato.”
A indenização fixada na cláusula compensatória, será devida ao atleta profissional pela entidade de prática desportiva nas hipóteses previstas nos incisos III a V do § 5º do artigo 28, quais sejam: dispensa imotivada e rescisão indireta do contrato de especial de trabalho. Vejamos:
“§ 5º O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício, dissolvendo-se, para todos os efeitos legais:
III - com a rescisão decorrente do inadimplemento salarial, de responsabilidade da entidade de prática desportiva empregadora, nos termos desta Lei;
IV - com a rescisão indireta, nas demais hipóteses previstas na legislação trabalhista; e
V - com a dispensa imotivada do atleta.”
Com tal previsão, importante asseverar que a legislação especial do atleta de futebol é mais favorável em comparação a norma geral prevista na CLT, mais especificamente no artigo 479. Isto posto, por ser o contrato de trabalho por tempo determinado a Lei Pelé estabelece que a cláusula compensatória poderá alcançar o limite 400 (quatrocentas) vezes o valor do salário mensal no momento da rescisão, ou como limite mínimo o valor total de salários mensais a que teria direito o atleta até o término do referido contrato, quando o texto da CLT prevê apenas o valor de 50%, ou seja, metade da remuneração que o trabalhador teria por direito até o fim do contrato pactuado12
12 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Manual de Direito do Trabalho Desportivo. 3ª edição, São Paulo: Editora LTr, 2020, p. 128
Assim, a garantia mínima garante a subsistência do atleta de futebol pelo período avençado no contrato, evitando secundariamente a pressão do clube estabelecer uma cláusula compensatória de valor ínfimo, posto que o valor mínimo a ser recebido será o valor total dos vencimentos do atleta até o fim do prazo contratual.
Ao adentrar neste tema da cláusula compensatória é inevitável a comparação com a cláusula indenizatória, já exposta neste capítulo. Em que pese o limite da cláusula compensatória estar disposto em 400 (quatrocentos) salários devidos pelo empregador ao atleta de futebol, e haver a limitação de 2000 (dois mil) devidos pelo atleta ao clube pela cláusula indenizatória, não há desproporcionalidade e muito menos quebra de isonomia.
Primordialmente, cabe destacar a diferença de gastos entre os clubes e os atletas. Os atletas por sua vez, além da questão da subsistência advinda da necessidade de receber os salários, sofrem incidência dos impostos em razão do contrato firmado. Já as entidades de prática desportiva, os chamados clubes de futebol, englobam despesas para manutenção de sua estrutura física (sejam elas: estádio, centro de treinamento etc.), pessoal (excluídos jogadores e comissão técnica), concentrações e, até mesmo viagens, além dos impostos e alíquotas manifestamente superiores que as dos atletas.
Diante o exposto, a discrepância entre os valores permitidos pela legislação atribuídas a ambas as cláusulas, não configuram ofensa a isonomia, posto que as entidades de prática desportiva assumem vasto compromisso tributário, riscos atinentes a prática negocial do esporte, encargos sociais, os quais não alcançam os atletas, sem contar que a previsão legislatória da cláusula indenizatória é perfeitamente possível de ser cumprida pela nova entidade de prática esportiva contratante.
Assim, quando da comparação das cláusulas indenizatória e compensatória, ambas de caráter
desportivo, não se vislumbra qualquer quebra ou relativização do princípio da isonomia, justamente porque pelos critérios acima elencados, são situações fáticas completamente diversas, o que motiva o tratamento diferenciado dado a cada uma delas. Vale ressaltar que, se cláusula compensatória desportiva preserva os interesses dos atletas, a cláusula indenizatória defende a função social dos clubes, e ambas têm como interesse comum o bem e fomento do desporto.
Neste sentido, cabe asseverar os diversos entendimentos compilados por Álvaro Melo Filho ao tratar do tema quando expõe que a jurisprudência do STF leciona que o Poder Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, tampouco criar normas legais em que seu objeto traga deliberações totalmente despregadas dos padrões da razoabilidade (MCHC n. 96.715-9-SP, Min. Celso de Mello). Não obstante, contempla que a elaboração da lei, deverá ser pautada com disposições de mesmo ônus e vantagens idênticas e, reciprocamente, fazer a distinção na repartição de benefícios e encargos, dividindo-as em proporção as suas diversidades. Ademais, o grande jurista pondera que a própria CLT traz normas que levam em conta a posição jus laboral da relação jurídica, exatamente por serem assimétricas, como ocorre claramente entre os clubes e os atletas. Nesta linha, a discriminação entra a cláusula indenizatória e compensatória, não engloba nenhuma ofensa ao ordenamento jurídico em sede jus desportiva, pois há uma clara harmonia com as especificidades da Lex sportiva, ou seja, um critério completamente razoável13
Outro aspecto a ser arrolado, diz respeito ao vínculo desportivo. Isto porque este sempre será sempre acessório ao vínculo empregatício. Desta forma, o vínculo de emprego nascerá com a celebração do contrato especial de trabalho, que deverá ser feito por prazo determinado além de conter cláusulas obrigatórias.
Assim, o Vínculo Desportivo será acessório, na
13 FILHO, Álvaro Melo. Nova Lei Pelé: avanços e impactos. Rio de Janeiro: Maquinária, 2011. P.126
medida em que surgirá apenas com a averbação do contrato principal, ou seja, o contrato especial de trabalho desportivo, conforme o prelecionado no artigo 28, § 5º, da Lei Pelé. Confira-se:
“§ 5º O vínculo desportivo do atleta com a entidade de prática desportiva contratante constitui-se com o registro do contrato especial de trabalho desportivo na entidade de administração do desporto, tendo natureza acessória ao respectivo vínculo empregatício [...].”
Neste contexto, a entidade de administração do desporto, citada pela previsão legal supra, será a Federação correspondente ao clube empregador.
A premissa para o registro desportivo do atleta de futebol perante a entidade de prática do desporto é o contrato de trabalho, ou seja, com o cumprimento das exigências previstas da legislação desportiva, principalmente no que tange às cláusulas obrigatórias, período de duração do contrato, informações cadastrais das partes envolvidas e documentação a ser apresentada.
Conseguinte, o Regulamento Nacional de Registros e Transferências de Atletas de Futebol (RNTRAF) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) indica as exigências formais do contrato a ser averbado.
1.2.1. Conteúdo do contrato de trabalho
No que tange ao conteúdo do contrato de trabalho, nele deverá conter os nomes das partes envolvidas, buscando a individualização e caracterização da pessoa física e jurídica envolvidas.
No contexto desportivo, mais especificamente o futebol, as partes que integram esta relação, figurando como empregador e empregado respectivamente, neste caso são os atletas profissionais ou os auxiliares desportivos e a entidade de prática desportiva, entendida como clube.
O clube empregador, necessita ser pessoa jurídica, ou seja, associação civil ou sociedade em-
presária, não podendo, portanto, figurar no polo tomador dos serviços laborais do atleta pessoa física. Conforme asseverado já neste trabalho, a entidade de prática desportiva deverá estar inscrita na respectiva entidade estadual de Prática do Desporto, bem como na Confederação Brasileira de Futebol, entidades responsáveis pelo registro do contrato especial de trabalho desportivo, nas quais originarão o vínculo desportivo firmado entre atleta e clube.
No contrato de trabalho deverá constar o salário e remuneração do atleta, tema que será tratado adiante no presente trabalho, bem como o número da carteira do empregado para que o clube proceda com as devidas anotações.
1.2.2. Jornada de Trabalho
Como é notório e sabido por todos os operadores do direito, este constitui-se uma ciência social de constante mutabilidade. E, com o Direito Desportivo não é diferente, podemos constatar que ao longo dos anos foram efetivadas diversas mudanças, tentando regular um assunto extremamente complexo.
Ao longo da história muito se discutiu sobre como se deveria ser regulado a Jornada de Trabalho do Jogador de futebol. É de ressaltar, que o direito a uma Jornada de Trabalho regulada e limitada, tem como principal objetivo a proteção da saúde do trabalhador, seja do trabalhador comum como do atleta profissional de futebol.
Analisando especificamente as modificações realizadas pelo legislador no PL 5186/05, inserindo ao texto original o período de 44 horas semanais, conforme já exposto aqui, podemos constatar a clara intenção do legislador em se dar um tratamento diferenciado ao atleta de futebol devido a atribuição específica de sua profissão e devidas peculiaridades, uma vez que o trabalhador comum, conforme previsão do artigo 58 da CLT, terá a duração de trabalho que não exceda 8 horas diárias.
Assim, cumpre expor os brilhantes ensinamen-
tos da Magistrada mineira Alice Monteiro de Barros quando diz que o tratamento desigualado a respeito das relações trabalhistas comuns se fundamenta frente a natureza especial dessa prática laborativa, que consiste em uma particular disposição da jornada entre partidas, treinos e excursões14
Com a entrada em vigor da Lei nº 12.395/11, houve uma alteração substancial na lei, inserindo este novo limite de 44 horas semanais, posto que este assunto causava muita polêmica e controvérsias.
Desde meados de 2001, parte da doutrina e jurisprudência entendia que devido a peculiaridade da profissão e suas diversas diferenças do trabalhador comum, não seria possível estabelecer um limite de jornada ao atleta de futebol profissional.
Porém, insta salientar que o entendimento assinalado acima fere diretamente preceito expresso em nossa Constituição Federal, mais especificamente o artigo 7º, inciso XIII, que versa sobre os direitos dos trabalhadores rurais e urbanos, além de outros que pretendem melhorar sua condição social. In Verbis:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
Neste contexto, cabe arrolar a doutrina de Jean Marcel Mariano de Oliveira o qual expõeque15:
“como é cediço, a limitação da jornada de trabalho dos empregados em geral vem prevista em sede constitucional e ampara qualquer trabalhador, salvo aqueles excluídos deste regime, como é o caso do próprio empregado doméstico, conforme entende parte da doutrina acerca da matéria”.
Assim, a alteração inserida pela Lei nº 12.395/11, fortaleceu o entendimento da doutrina majoritária, sedimentando que o jogador de futebol tem direito a uma limitação à jornada de trabalho, porém de forma diferenciada que ao trabalhador comum, conforme já explanado no presente trabalho, de 44 horas semanais.
Desta forma, deve-se computar como período de jornada de trabalho o período em que o jogador de futebol esteja à disposição do clube empregador, aplicando subsidiariamente o artigo 4º da CLT, compreendido em jogos, treinos entre outras atividades, na medida em que, o clube deverá propiciar ao atleta de futebol condições para que ele execute suas funções da melhor forma possível e com o maior preparo físico e até psicológico.
1.2.3. Adicional noturno
XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho.”
Desta forma, a corrente majoritária da doutrina não tinha dúvidas que deveria ser respeitada a previsão constitucional de limitação diária do atleta profissional de futebol, por se tratar de preceito fundamental expresso na Carta Magna.
14 BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 126
Conforme já asseverado, o artigo 7º da Constituição Federal, traz à luz quais são os direitos dos trabalhadores, e dentre deles o inciso IX, dispõe sobre os adicionais remuneratórios oriundos de trabalhos realizados durante o período noturno.
Vejamos:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IX - remuneração do trabalho noturno su-
15 OLIVEIRA, Jean Marcel Mariano de. O contrato de trabalha do atleta profissional de futebol. 1. Ed. São Paulo: LTr, 2009. p. 75
perior à do diurno;”
A CLT, por sua vez traz a regulação do que é entendido como trabalho noturno, e as especificações de remuneração devidas por este período. O artigo 73 da referida Consolidação das Leis Trabalhistas, preleciona que a remuneração do trabalhador terá um acréscimo de 20%, pelo período laboral compreendido entre as 22 horas de um dia e as 5 horas do dia seguinte, conforme disposição do § 2º do mesmo artigo.
Ocorre que a jurisprudência não é uníssona sobre o assunto em relação aos atletas profissionais de futebol. O Min Idélio Martins do TST- 1ª Turma no RR 3.866/82- 16.12.1983, entendeu que as peculiaridades inerentes a profissão do atleta de futebol, não aceitam a incidência do adicional noturno, em respeito aos critérios intrínsecos a exibição do atleta. Ainda, entende que a exibição noturna do atleta de futebol está inserida e abrangida no contrato de trabalho deste.
Correlacionando decisão mais recente proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região:
“ATELTA PROFISSIONAL
Em face das peculiaridades que envolvem a profissão de atleta, este não se beneficia das normas da CLT e aquelas extravagantes, que regulamentam a dobra dos domingos trabalhados sem folga compensatória e nem o trabalho no horário noturno. (TRT4ª Região- RO n. 11400-51.2008.5.04.0662Rel. João Alfredo Borges Antunes de Miranda- 29.7.2009)”
Entendimento diverso é da brilhante Desembargadora Iara Teixeira Rios, ao expor que:
“Ainda que o trabalho em período noturno seja inerente à atividade do atleta profissional, ele tem direito à percepção do adicional correspondente. Há muitas outras profissões em que o trabalho noturno é imprescindível e intrínseco ao ofício desenvolvido – como é o caso dos porteiros,
vigilantes, profissionais de saúde – e tal circunstância não afasta o direito do empregado ao pagamento do adicional.
Friso que o art. 28, § 1º, da Lei 9.615/1998 prevê a aplicabilidade da legislação trabalhista aos atletas profissionais, ressalvadas as peculiaridades expressas na referida lei ou integrantes do contrato de trabalho. Lembro que o art. 73 da CLT e o art. 7º, IX, da Constituição Federal estabelecem a remuneração do trabalho noturno superior ao trabalho diurno.
Assim, as disposições do art. 35 da Lei 9.615/1998 não obstam o pagamento do adicional noturno. (TRT-18 – RO: 001189206.2016.5.18.0005, Data de Julgamento: 06/02/2018, Segunda Turma; Relatora Desembargadora Iara Teixeira Rios)”
Assim, temos duas vertentes diversas de entendimentos. Há quem diga que ao aplicar o instituto de adicional noturno ao atleta profissional de futebol, deve-se levar em conta todas as peculiaridades inerentes a profissão, principalmente no que tange ao horário que é transmitido os jogos de futebol, que por sua vez são comprados cada vez por valores mais altos pelas emissoras interessadas nos direitos de transmissão do espetáculo, e que por este motivo precisam ser expressos na relação contratual, uma vez que o empregador não escolhe em que horário seus atletas entrarão em campo.
Já o entendimento diverso, decorre da aplicabilidade subsidiária da CLT, no tocante de casos em que há lacunas na Lei Pelé, pois ela mesma expressa em seu artigo 28, § 1º, que no caso de omissão deverá aplicar as normas previstas na CLT. Desta forma, o adicional noturno é devido ao atleta de futebol, posto que não há previsão específica na legislação especial que regula o contrato de trabalho do atleta de futebol profissional, restando a aplicação do previsto no artigo 70 da Consolidação das Leis Trabalhistas.
1.2.4. Salário e remuneração
Conforme os ensinamentos de Mauricio Godinho Delgado,remuneração e salário são as parcelas contra prestativas recebidas pelo o trabalhador, na relação jurídica entre empregado e empregador, denotadoras da particularidade onerosa do contrato de trabalho firmado16 .
Neste sentido, a Lei Pelé no seu artigo 31,§ 1º traz a definição do que deve ser entendido como salário para efeitos legais, sejam eles: abono de férias, o décimo terceiro salário, as gratificações, os prêmios e demais verbas inclusas no contrato de trabalho.
Assim, conforme dispõe Maurício da Veiga17:
“em que pese a origem comum, remuneração e salário, em hipótese alguma, são sinônimos, na medida em que o primeiro pode ser considerado como o gênero de contraprestações devidas e pagas ao empregado em razão da relação de emprego existente, enquanto o salário é espécie, paga pelo empregador e traduzindo-se na mais importante parcela contraprestativa”.
À luz do entendimento do Ilustríssimo Ministro Alexandre Agra Belmonte a remuneração do jogador de futebol profissional é constituída por uma parte fixa, englobada pelo salário mensal, e por uma parte mutável, consistente em prêmios, gratificações e demais vencimentos proporcionados pelo contrato. Assim, as parcelas de natureza retributivas são consideradas com finalidade salarial e remuneratória, e as parcelas pagas por terceiros em razão do pactuado, mesmo que indiretamente pelo clube, entoam somente FGTS, nas férias e gratificações natalinas, exemplificativamente as gorjetas. Ademais, parcelas de cunho indenizatório, como por exemplo diárias por viagens ou ajuda de custo, não compõe
16 DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito de trabalho São Paulo: LTr, 2004. P. 681.
17 VEIGA, Maurício de Figueiredo Corrêa da. Manual de Direito do Trabalho Desportivo. 3ª edição, São Paulo: Editora LTr, 2020, p. 272.
o salário e a remuneração(18)
Desta forma, muito têm-se discutido sobre o que se enquadraria como salário e/ou remuneração, pois no âmbito jurídico há entendimentos divergentes quanto a natureza jurídica das luvas, bichos, do direito de arena e do direito de imagem, institutos específicos do contrato de trabalho especial do atleta profissional de futebol. Contudo, nos adentraremos a análise somente do direito de imagem, que compõe objeto de estudo do presente artigo, como se verá adiante.
1.2.5. Descanso Semanal Remunerado
Todo o trabalhador tem direito a um dia de descanso semanal remunerado. Para os jogadores, há a previsão de que esse descanso seja de 24 horas ininterruptas, preferencialmente no dia subsequente à partida.
E essa é uma das grandes discussões, pois o elevado número de jogos dos atletas impede que a legislação seja cumprida, pois no dia seguinte da partida existe o treino regenerativo e também por que no Brasil o calendário obriga o atleta a fazer dois jogos por semana, sendo que a lei só assegura um dia de descanso semanal remunerado.
CONCLUSÃO
No presente artigo foi analisado as particularidades do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, bem como as principais diferenças do contrato de trabalho do atleta profissional de futebol e do trabalhador ordinário. Foram analisados diversos doutrinadores, artigos das legislações atinentes ao tema, bem como jurisprudência.
O presente artigo tem como base os seguintes materiais: obras jurídicas existentes referentes aos estudos do tema levantado; legislações nacionais pertinentes ao tema; jurisprudência re-
18 BELMONTE, Alexandre Agra. Direito desportivo, justiça desportiva e principais aspectos jurídico-trabalhistas da relação de trabalho do atleta profissional. Revista do TRT, 1ª R., p. 85.
levante ao conteúdo proposto
Concluímos que o Contrato Especial de Trabalho Desportivo traz consigo algumas peculiaridades, que tem como fundamento a lei específica, porém, nesta mesma lei específica descreve que será possível a utilização da CLT de maneira subsidiária ao que a lei for omissa.
Não obstante, a pesquisa demonstra as principais diferenças na contratação do atleta profissional e do trabalhador ordinário, explanando de forma substancial as peculiaridades do contrato de trabalho, mostrando os ensinamentos de doutrinadores.
Nesta linha, fora demonstrado de forma clara as cláusulas obrigatórias do contato de trabalho do atleta profissional, o tempo de duração do instrumento, além de apresentar a limitação semanal que o atleta poderá ficar à disposição das entidades de prática desportiva.
Todos as dúvidas e objetivos constantes na introdução desta pesquisa ficaram evidentes e esclarecidos ao decorrer do trabalho, no qual todas elas foram suprimidas por entendimentos jurisprudenciais, ensinamentos de doutrinadores e, ainda, fora feita uma análise sob a ótica das leis aplicáveis ao tema, compreendendo todo o conteúdo proposto.
Oliveira, Leonardo Andreotti P de. Direito do Trabalho e Desporto. Volume II, São Paulo: Editora Quartier Latin, 2015.
BELMONTE,Alexandre Agra. Direito desportivo, justiça desportiva e principais aspectos jurídico-trabalhistas da relação de trabalho do atleta profissional. Rio de Janeiro: Revista do TRT, 1ª Região, 2010.
Chiminazzo,João Henrique Cren, Particularidades do Contrato Especial de Trabalho Desportivo, Revista do Advogado. São Paulo.2014.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito de trabalho. São Paulo: LTr, 2004.
FILHO, Álvaro Melo. Balizamentos jus-laboral-desportivos. In: BASTOS, Guilherme Augusto Caputo (org.). Atualidades sobre direito desportivo no Brasil e no mundo. 1. Ed. Dourados: Seriema, 2010.
Sítios de internet:
VEIGA, Mauricio de Figueiredo Corrêa da. Poder Disciplinar do Empregador – “Caso Afonsinho”. IBDD, 2018. Disponível em:<https://ibdd.com.br/poder-disciplinar-do-empregador-caso-afonsinho/>. Acesso em: 02 de Junho de 2020.
ANDREOTTI, Leonardo. O Princípio da Autonomia Constitucional Desportiva. IBDD, 2013. Disponível em: <https://ibdd.com.br/o-principio-da-autonomia-constitucional-desportiva/>. Acesso em: 02 de Junho de 2020.
HOMOFOBIA ESTRUTURAL NO FUTEBOL E A TARDIA QUEBRA DE BARREIRAS COM AS PUNIÇÕES SOCIOEDUCATIVAS.RESOLVEM?
O esporte é uma atividade multifuncional de natureza física e sociocultural, praticada desde a infância, tendo múltiplas finalidades, incluindo socialização, recreação, lazer e educação. Atualmente, é visto como um fenômeno que abrange práticas predominantemente físicas, podendo ser competitivas ou recreativas, com diferentes regras e objetivos. No entanto, o esporte, especialmente o futebol, tem origens enraizadas em uma cultura dominada por homens e ligada à masculinidade, o que reflete uma mentalidade frequentemente machista e homofóbica. A trajetória do futebol se originou com a elite no Reino Unido, mas com o tempo, tornou-se acessível às classes proletárias. A prática esportiva, conforme entendemos hoje, foi consolidada durante a revolução industrial, período marcado por lutas sociais, de classes e de gênero. Ainda assim, persiste um desafio significativo em combater o preconceito e a homofobia no esporte.
Palavras-chave
Esporte - Fenômeno Sociocultural - Prática Física - Futebol - Revolução Industrial - Masculinidade
Homofobia - Cultura Machista - Classe Proletária - História Esportiva
Nicolas Neves de Souza
Especialista em Direito Desportivo com Docência para o Ensino Superior.
INTRODUÇÃO
O esporte é a prática de atividade física desenvolvida desde o início da vida do indivíduo, multifuncional e um fenômeno tido como sociocultural. Sendo a prática da modalidadediferentes manifestações esportivas, como para socialização, recreação, criação de lazer e educação (quando no início da vida).
Tem-se atualmente como conceito o esporte como um fenômeno sociocultural que envolve a prática de atividades predominantemente físicas, competitivas ou não, praticado com regras, regulamentos e/ou convenções ou não, de forma profissional ou amadora, com finalidade de rendimento, recreação ou lazer, podendo contribuir para a formação física, intelectual e/ou psíquica e ética de seus praticantes e espectadores. Também pode ser visto com produto de negócio e/ou político. (HATZIDAKS, 2019).
Nos séculos XVIII e XIX, o esporte e a ginastica foram inventados pelo homem e para o homem, eles desenvolveram as atividades, práticas e performances esportivas de acordo com as suas próprias necessidades e ideais. (...) Hoje, o esporte é um mundo masculino, mas as mulheres estão fazendo sentir sua presença (COUTO, 2019 p. 501).
A origem do futebol ocorreu pela elite no Reino Unido e, com o passar do tempo foi sendo inserida à classe proletária. A prática como conhecemos atualmente, ocorreu de fato durante a revolução industrial, um período em que se buscava direitos sociais, luta de classes, de gêneroonde as minorias já se viam extremamente fragilizadas (HELAL, 1990; BRACHT, 2003), incluindo a homofobia.
decorrer da história, o esporte se tornou símbolo de masculinidade/virilidade, refletindo uma cultura machista, e muitas vezes homofóbica.
O preconceito inserido no futebol é consequência da ideia de que a orientação sexual do individuo está diretamente ligada ao seu caráter. Se tratando de atletas em especial a situação se agrava, tendo em vista um esporte predominantemente masculino, onde as mulheres foram inseridas somente em 1894 em Londres, momento em que homens já o praticavam desde 1863(SILVA, 2019) o futebol na visão de muitos entusiastas não pode ser praticado por homossexuais. Os atletas homossexuais vislumbram a manifestação homofóbica através de xingamentos baixos, chegando nas vias de fato pelo simples fato de não aceitar a orientação dooutro.
Destaca-se no futebol feminino uma gama de atletas assumidamente lésbicas, como o caso da Formiga (atual volante do São Paulo); Debinha (atual atacante do North Carolina Courage); Cristiane Rozeira (atacante do Santos), que não sofrem a represália que aletas homens gays sofrem ou sofreriam se assumissem a sua sexualidade. Isto porque, notadamente a virilidade que o futebol carrega consigo enquadra e vincula as escolhas pessoais do atleta na suaqualificação profissional.
O que não quer dizer que deixam de sofrer ataques homofóbicos, mas, devido a cultura popular e predominantemente machista os ataques às mulheres no futebol comparados aos atletas homens são diferentes.
Nesse sentido o percurso ainda é grande e árduo para se seguir visando o combate ao preconceito e à homofobia no futebol, tendo em vista que com a evolução da prática durante o
De certo, explicito também neste como a quebra de paradigma vem atuando nesse ramo do esporte e as penalidades impostas na seara civil, penal e também pela justiça desportiva.
Por fim, a conclusão do presente trabalho visa verificar quanto a repressão e punição ao tema
são suficientes para sanar esses ataques em uma modalidade que entende-se ser a mais “democrática” e de abrangência mundial, que une as nações, quem torce, quem pratica e quemtrabalha com o futebol.
1. CONCEITO DE HOMOSSEXUALIDADE
A palavra homossexual é usada para designação de pessoa de um gênero que sente atrações físicas e afetivas por uma outra pessoa do mesmo gênero. Em relação a etimologia da palavra ela vem do grego homos e do latim sexus, significando respectivamente “o mesmo sexo” (HOMOSSEXUAL, 2022), porém, verifica-se que a esta definição também deve-se levar em consideração que a homossexualidade relaciona-se diretamente com a orientação sexual, ou seja, ser homossexual é sentir atração por alguém do mesmo gênero, sem direito a escolha, fazendo parte da personalidade do indivíduo, sendo ele assumido ou não na sociedade (COUTO, op. Cit., p. 106).
Não se conhece a origem dos homossexuais, mas sabe-se que o homossexual não surgiu de umafigura hibrida ou que manchasse o que definia a Igreja, como estar possuído ou doente. A figurada pessoa que sente atração por pessoas do mesmo sexo perdura nas raízes de muitas sociedadese com clareza e liberdade na cultura grega onde a prática de sexo com pessoas do mesmo sexoera comum entre os homens da época (ANDRADE, 2017).
Ocorre que a homossexualidade vem de um passado onde era considerado algo normal. Na Grécia, a homossexualidade era uma prática de homens mais velhos com homens mais novos,com o consentimento da família do mais novo. À época, o mais velho, chamado de Erastes, educava o Erômenos, que era o garoto mais novo e, se a família permitisse o Erastes poderia deitar o seu corpo ao do jovem (Id, 2017. p. 58).
Quando chega a Era Justiniana o termo e o conceito do que era permitido sofre alterações pelofanatismo religioso.
Justiniano era fervorosamente católico e após uma peste que devorava a cidade e as pessoas, deduziu que tudo que estava acontecendo derivava dos pecados dos homens e definiu que a prática sexual de pessoas do mesmo sexo era um dos pecados e causadores da peste que acabavacom a sociedade, sendo estabelecido através do Código de Justiniano de 533 d.C. ilícita a relação íntima entre pessoas do mesmo sexo, “colocando-a na mesma categoria do divórcio e do adultério - tudo o que violava o ideal cristão do casamento entre pessoas de sexos distintos” (Eskridge, 1993, p. 1447 e 1449).
As pessoas então começaram abominar os homossexuais, aplicando-lhes sanções como práticas de tortura, mortes, e outros meios cruéis. A imagem do que era comum torna-se uma ameaça para aqueles que buscam não pecar e é por esse motivo que a Igreja tem uma imensa ligação com o que passou a significar ser homossexual (ADAID, 2019).
No Brasil, pós Ditadura Militar a homossexualidade deixa de ser considerada como um mal do homem que deveria pagar pelos seus pecados com a própria vida ou com severas punições. Anos depois, em 1993 a Organização Mundial da Saúde desclassificou a homossexualidade como uma doença mental e passou a classificá-la como uma forma natural de desenvolvimento sexual do ser humano, sendo assim, a homossexualidade é característica de uma pessoa que sente atração física, emocional, sexual e afetiva por uma pessoa do mesmo sexo biológico queo seu, é o estado de ser (COELHO, 2019 p. 02).
O Brasil antes mesmo da desclassificação pela OMS, no ano de 1985 já não mais classificava a homossexualidade como “homossexualismo”
(EBC, 2018). Ou seja, não era considerado como uma doença ou patologia do ser humano, homossexuais, lésbicas, transsexuais, pansexuais e bissexuais, e diante disso, começam a buscar proteção legítima do Estado, sendo um dever dele além de garantir a dignidade da pessoa humana independente do seu ser.
Ocorre que a sociedade ainda é presa a pré-conceitos que pejora e exclui homossexuais do convívio social e que no futebol vemos tão latente esse preconceito.
O indivíduo homossexual ainda é minoria nos campos de futebol, minoria de uma população volumosa como a brasileira, minoria que ainda é rechaçada pelo ego inflado de alguns homofóbicos. No Brasil, 2,9 milhões de pessoas de 18 anos ou mais se declaram lésbicas, gays ou bissexuais (Agência Brasil, 2022). Ora, inconcebível a ideia de que de os clubes profissionais existentes no Brasil são compostos apenas por heterossexuais.
1.1 Conceito de homofobia
A aversão ao diferente associada pela fobia ou medo gerou um desconforto a palavra homofobia, porque passou a transitar entre a aversão e a violência contra o homossexual, a lésbica, bissexual, etc. Com isso, criou se nos indivíduos a cultura da violência contra a população LGBTQIAP+ e que chamamos de homofobia.
Trata-se de um neologismo formado por dois radicais gregos (homo=igual + phobia=medo). A sua origem tem como marco inicial o ano de 1971, quando foi cunhado pelo psicólogo norte-americano George Weinberg em seu livro “Society andthe Healthy Homosexual (WEINBERG, 1972, p. 15).
A repulsa e a aversão chegam em alguns casos à níveis gravíssimos de violência. De acordo com o Relatório de Assassinatos LGBT no Brasil, elaborado pelo Grupo Gay da Bahia a morte
de LGBT vem crescendo em números latentes do ano 2000 para cá, indicando que os direitos e a proteção que o homossexual, a lésbica, as transsexuais recebem do Estado ainda não é preventivo.
Só no ano de 2018 foram registradas 420 (quatrocentos e vinte) mortes de pessoas LGBT, mortes derivadas da homofobia presente na sociedade, que deveria abraçar a todos com fraternidade e companheirismo (BRASIL DE FATO, 2019).
Isso demonstra que mesmo com o avanço dos direitos conquistados no Brasil ao longo do tempo, como por exemplo o direito a união estável e o casamento entre pessoas do mesmo sexo,ainda é escassa a proteção dessas pessoas devido a segregação e intolerância de outras.
420 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) morreram no Brasil em 2018 vítimas da homolesbotransfobia: 320 homicídios (76%) e 100 suicídios (24%). Uma pequena redução de 6% em relação a 2017, quando registraram-se 445 mortes, número recorde nos 39 anos desde que o Grupo Gay da Bahia iniciou esse banco de dados (MICHELS, 2018).
Essa diminuição do indivíduo homossexual, retirando-lhe a humanidade é estereotipado aindamais no futebol pelo “contrário do que um homem faria” prejudica muito que se revelem na sociedade, principalmente na modalidade supra.
Segundo Rodrigo Rosa (2010), a associação entre homofobia e os esportes contém vários sentidos. Um deles é a manifestação homofóbica, contra os homossexuais com discursos de que eles são incapazes para práticas esportivas, outras com discriminação com os indivíduos LGBT, (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais) desejando afastamento deles do esporte, julgando seus corpos e comportamentos fora do
padrão. Em contrapartida, também há resistências do público alvo, que lita para a muitos exemplos de criação de equipes, campeonatos ou confederações homossexuais. Inúmeras denúncias de atos homofóbicos e campanhas anti-homofobica são realizados sendo eles bem ou mal sucedidos (COUTO, op. Cit. P. 72).
A questão da homofobia no futebol é discrepante, fazendo com que se saiba pouco sobre os atletas assumidamente gays. Isso porque, o público-alvo, como dito, é extremamente machista e pela cultura, ainda arcaica, tem-se o cuidado de quem é gay não revelar a sexualidade devidoa profissão. Ultraje e sem embasamento na sociedade atual, a homofobia como demonstrada mata.
Mata por não poder ser quem é, mata porque apanham, mata porque não consegue viver em uma sociedade hipócrita.
2. CASOS EMBLEMÁTICOS NO FUTEBOL INTERNACIONAL E NACIONAL
Sabe-se de poucos atletas assumidamente gays, principalmente no futebol, ao passo em que vivemos em uma sociedade com preconceito estrutural em várias nuances, tornando-se ainda muito difícil para que os jogadores gays revelem sua orientação sexual publicamente porque araiz da homofobia ainda é preponderante no esporte.
(PREVIDELLI, 2020).
Se hoje a sociedade ainda é preconceituosa, homofóbica e racista, 30 anos atrás a situação era ainda pior. A época o atleta foi duramente punido, não treinava mais com o time principal e chegou a ser banido de entrar nas dependências do estádio por policiais.
Mas Fashanu teve um fim trágico. Após novos rumores de assédio e depois de ter sido acometido com um acidente de trabalho, tempos depois da sua aposentadoria resolveu tirar a própria vida em 1998, aos 37 anos (Id, 2020).
Em uma entrevista para Gabriel Escobar, um dos amigos de Fashanu relata que: “Ele mostrou que os gays podem assumir seu espaço mesmo em esportes machistas, como o futebol. Isso ajudou a minar alguns estereótipos” (ABEL, 2018 p. 29).
Pouco lembrado e falado, Fashanu deixou a sua marca no futebol, já foi reconhecido em outros tempos como o jogador negro mais caro do futebol e o seu desempenho em campo era o que deveria ter prevalecido. Hoje há uma gama de atletas assumidamente gays ou lésbicas, mas nãono futebol, que ainda é machista, misógino, homofóbico, visto pela característica da virilidadee másculo.
Um exemplo longínquo, mas existente até hoje é o que o técnico Muricy Ramalho afirmou em 2009:
Em 1990, o atacante negro Justin Fashanu resolveu “abrir o jogo” após especulações sobre a sua orientação sexual, e em um veículo de comunicação famoso à época, Fashanu assumiu publicamente os rumores. Fashanu foi um atleta incomparável, chegando a ser transferido por um milhão de libras para o Nottinghan
Se o cara se assumir, está morto para o futebol”. Ainda completou “que o cara tem de ter liberdade para escolher do que gosta. O mais importante é que ele cumpra a sua obrigação. É triste ter de conviver com o preconceito contra os homossexuais e os pobres. Isso sem falar no racismo (A CAPA, 2009).
Existe, portanto, grande dificuldade em encontrar jogadores dos times profissionais que fossem assumidamente gays, contudo vislumbra-se o brasileiro, atleta profissional e que atuava como goleiro (hoje aposentado) em uma entidade de prática desportiva do Rio Grande do Norte, o Messi. Jamerson Michel da Costa é o seu nome de batismo, mas no clube levou o apelido de Messi, que já era chamado assim pela família (Tribuna do Norte, 2010).
Em 2010, Messi aos seus 20 anos resolveu assumir sua orientação sexual a todos publicamente.Por atuar em um clube profissional, a notícia logo se espalhou. Em um primeiro momento foi uma avalanche local e veio a tomar proporções em âmbito nacional em outubro daquele ano quando a ESPN divulgou após o Globo Esporte também noticiar.
Afinal, em 2010 o Brasil tinha o seu primeiro atleta profissional da modalidade assumidamente gay, um prato de bandeja para a mídia com o assunto polêmico no ambiente viril e másculo (Id,2010).
Messi conseguiu lidar muito bem com a situação, a sua competência em campo como goleiro sempre falou mais alto que qualquer outro aspecto da sua vida pessoal. Nos times pequenos quepassou e no seu time Palmeira de Goianinha, por mais que ouvisse de alguns adversários e da torcida piadas como “gosta de segurar as bolas”, a sua equipe sempre o apoiou e ele sempre sedestacou, até como um dos maiores goleiros da região. Tinha sempre o apoio do seu treinador que o acolheu e sabiamente entendia à época que a qualidade em campo era o que importava (Camargo, 2016).
mais se deve duvidar do profissionalismo de alguém e rejeita-los em razão da sexualidade ou por qualquer outro ato discriminatório. A luta de Messi foi pouco falada, mas é vivida por muitos atletas que se “esconderam” e se “escondem” pelo medo da rejeição pública e pela institucionalização do preconceito de dirigentes, torcidas e da sociedade em si.
3. CÂNTICOS HOMOFÓBICOS
As torcidas protagonizaram um verdadeiro circo de horrores revestidos de “normal da torcida” utilizando-se de cânticos homofóbicos. Identificando dois problemas: não é normal da torcida e invade o extracampo. O extracampo é a verdadeira face dessas pessoas, ou seja, os cânticos nunca ficam só ali durante as partidas e podemos relatar diversos casos em que tais gritos ou músicas levaram as vias de fato, mas as punições ainda são revestidas de transições disciplinares, que não conseguem fomentar a redução dos casos (NEVES, 2021).
Neste sentido, vemos que a sociedade é fragilizada neste aspecto pois, a maioria das vezes quem assume é racista ou homofóbico dentro de um estádio, assim também na sociedade civil. E claro, não há como naturalizar que tais ofensas aconteçam dentro ou fora dos estádios. Isto só reflete que a sociedade ainda vive no viés da necessidade de punição e restrição de liberdade para “pensar” em mudar e se “ressocializar”.
A partir do momento que a fala ou o canto não atingirá o outro de uma forma positiva, com certeza negativamente estará atingindo um coletivo de pessoas; seja este coletivo de mulheres,negros, gays ou qualquer outra categorização de pessoas.
A coragem de Messi e a sua luta por ser quem é, mesmo que em um clube de baixo exponencial só evidencia que qualificação profissional é o que realmente deve ser levado em conta. Ja-
Caso que foi julgado no processo nº 1197/2021A1 pela 4ª Comissão Disciplinar do STJD que condenou o Fluminense Football Club em pena
pecuniária de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Na Súmula da partida retirada do Acórdão, o arbitro relatou o que segue:
Informo que aos 40 e 47 minutos do segundo tempo da partida, por alguns segundos a torcida do fluminense entoou de forma rápida o canto (por duas vezes em cada momento): “arerê gaúcho da o cú e fala tchê”. o fato foi informado ao 4º árbitro sr. felipe da silva gonçalves paludo pelo delegado da partida sr. marcelo carlos nascimento viana e por ter cessado o canto de maneira rápida em um curto espaço de tempo, não houve necessidade de paralisar a partida, pois os cânticos não foram maispercebidos após o telão do estádio e o sistema de som solicitarem aos torcedores para que não entoassem cantos homofóbicos. Diante disso, a Procuradoria pede a punição da referida agremiação pela prática de conduta descrita no art. 243-G, § 1º, do CBJD(STJD, 2021).
Ainda no caso em comento o Relator José Cardoso Dutra Júnior expressa que:
tos homofóbicos praticados por sua torcida na partida de 15 de setembro de 2021 contra o Grêmio pela Copa do Brasil julgado pela Primeira Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva; em 24 de janeiro de 2022 o Paysandu também foi penalizado com multa devido a cânticos homofóbicos destinados ao atleta Neto do Remo, julgado pela Primeira Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva, no processo de nº 1300/2021. Fez parte do voto do Relator no caso Paysandu contraRemo:
O que falta, ainda nos dias correntes, é, sem dúvida, educação acerca do tema. Falta entender que num Estado Democrático não se pode promover a intolerância e o desrespeito, que processam o afastamento e a segregação, incompatíveis com uma sociedade democrática e plural como se pretende seja a brasileira. Assim, é gravíssimo qualquer ato de discriminação, merecendo a punição adequada e proporcional conforme o caso (Id., 2021)
Conduto, pune o Clube citado na multa pecuniária do art. 243-G do CBJD sem aplicar os parágrafos do artigo. Noutra visão, multa pecuniária sem a devia coerção dos infratores não gera de fato uma reeducação de quem pratica.
Tem se também punição ao Flamengo por can-
Eu não acolho a questão da ilegitimidade do noticiante. Ela não deslegitima adenuncia porque a autora da denuncia é a Procuradoria e ela pode se valer de qualquermeio de prova. Eu entendo que manifestações homofóbicas são passiveis da incidência do artigo 243-G, apesar de não ter taxativamente o termo homofóbico, porque quando da edição do nosso Código não havia ainda toda essa consciência, masassim como a Justiça Comum e outros Tribunais têm evoluindo no acolhimento da tese de que a homofobia se equivale à discriminação racial e de sexo, assim também tem o meio desportivo. A própria FIFA já tem apenado a homofobia nas suas competições (STJD, 2022).
O entendimento de que não se tolera mais qualquer violência verbal, principalmente de cunho sexual, quanto a orientação e raça. Enquanto ainda tivermos que punir, entendemos que há esperança de que o preconceito; ainda que utópico; se encerre na sociedade atual.
4. ROMPIMENTO DE BARREIRA E PUNIÇÕES ATUAIS
Em um século onde o preconceito vem sendo rompido aos poucos, principalmente em relaçãoa parcela da população LGBTQIAP+, nota-se que grandes clubes incluem, ainda que discretamente a adesão dessa comunidade.
Todos os anos no mês de junho, comemora-se o Dia do Orgulho LGBTQIAP+. A data foi escolhida em homenagem aos protestos que aconteceram no ano de 1969 nos Estados Unidos,mas vem ganhando de fato um espaço na sociedade nos últimos 10 (dez) anos.
Isso porque, conforme os direitos humanos e a desclassificação da homossexualidade como doença, empresas, clubes e a sociedade (em parte) entenderam que os homossexuais, são parte de um conjunto da sociedade que é estritamente qualificado para assumir os postos que quiserem.
Essa quebra de paradigma de que o futebol é esporte para “homem macho” já vem sendo desmistificada por alguns coletivos de torcedores há algum tempo, como os coletivos da Coligay (1977- 1983); Flagay (1977) - com duração ínfima pelo preconceito a época que não apoiava; Galo Queer (2013).
Essa barreira vem a curtos passos sendo quebrada, porém, está longe de terminar. O extra campo é ainda pior, a ofensa que não deveria existir invade a vida privada dos atletas trazendo uma exposição que não é natural (NEVES, 2021).
Recentemente, as torcidas organizadas do Vasco assinaram um termo de conduta e ética onde adotarão práticas em fomento à luta contra violência, assédio e discriminação nos estádios, justamente no mês em que se comemora mundialmente o Orgulho da população LGBTQIAP+.
A notícia veiculada pelo Globo Esporte ainda traz o depoimento do Sr. Presidente da entidade, Jorge Salgado:
O Vasco sempre foi pioneiro na luta contra a desigualdade e o preconceito. Abrimos o futebolpara pretos, pobres e operários no início do século passado e hoje nos engajamos nas causas do século XXI, como o combate à homofobia e transfobia. Mais uma vez o estádio de São Ja-
nuário será palco de um momento histórico de transformação do futebol, honrando os ideais que motivaram a sua construção (GLOBO ESPORTE, 2022).
Analisando os comentários na notícia que também foi veiculada no Instagram, nota-se que o público masculino ainda é extremista e homofóbico com comentários que não somam. Ocorreque o tabu de ser quem é ainda esbarra na institucionalização do preconceito, principalmente no futebol.
Como por exemplo o atacante hetero cis do Corinthians, Emerson Sheik que deu um selinho em um amigo, também hetero e casado, após a comemoração de uma vitória do Timão. Aquele fatídico selinho entre amigos mostra quão preconceituoso é o torcedor. O atleta possuía
rendimento de altíssimo nível e uma brincadeira entre amigos, levou a torcida aquela época a imposição de que Sheik deveria pedir perdão pelo que fez. Segundo a torcida ainda, o ato foi desonroso com a agremiação. Ainda que fosse gay, ou mesmo sendo hetero, não há mais espaçono futebol, em qualquer outra modalidade ou em qualquer profissão que a sexualidade valha mais que a capacidade técnico-profissional do indivíduo.
Se um heterossexual em sua intimidade sofreu tamanha represália, um atleta assumidamente gay seria ainda mais almejado de críticas e consequências no desenvolvimento de sua carreira. É ultraje e arcaico a inserção da homofobia na sociedade atual. Mas sabe-se que os indivíduos começam a mudar (ainda muito devagar) quando se impõe restrição de liberdade, pena pecuniária entre outras formas de repressão impostas pela lei.
Como dito no capítulo 3.2 deste artigo, o atleta Messi não sofreu maior represália porque o clube em que atuava entendia e sabia sua capacidade como atleta. Era bom, ágil na posição
em que atuava e o que fazia extra campo não importava durante as partidas.
É notório que, pelo clube ser de pequena expressão os ataques foram em escalas menores, mas, se este atuasse em uma agremiação de expressão nacional a represália seria absurda, que foi o caso do Richarlyson há época em que atuava como atleta e até então sempre informando que era heterossexual, indo inclusive contra as massas que sempre afirmaram que ele era homossexual. Ou pela voz, ou pelos trejeitos, Richarlyson sempre foi a figura emblemática gay quando torcedores, comentarias de futebol entre outros queriam falar sobre a homossexualidadeno futebol.
Hoje, sendo comentarista do Grupo Globo, renomado e sempre aplaudido pelos colegas de campo pelo exemplar trabalho, Richarlyson decidiu declarar que é bissexual em um podcast. Justamente em um mês como dito alhures, é o mês que se comemora o Orgulho da ComunidadeLGBTQIAP+.
Vai pintar uma manchete que o Richarlyson falou em um podcast que é bissexual. Legal. E aí vai chover de reportagens, e o mais importante, que é pauta, não vai mudar,que é a questão da homofobia. Infelizmente, o mundo não está preparado para ter essadiscussão e lidar com naturalidade com isso”, completou o ex-jogador (UOL, 2022).
O comentarista foi ovacionado por ex companheiros de equipe que o aplaudiram pela decisão de expor e contar sobre sua orientação sexual, em um momento crítico social que não se deve deixar de lado o que é para que os outros pensem sem preconceito. Tem que apenas ser e mesmo
ção de liberdade, penalidades pecuniárias etc.
4.1. Punição do CBJD e a ADO 26/STF equiparadora da homofobia ao racismo
Há pouco tempo no Brasil a homofobia passou a integrar o artigo penal equiparando-se ao racismo. Essa lacuna ocasionou tamanhas atrocidades como vimos pelo relatório do Grupo Gay da Bahia. Não que depois da inserção da norma pelo STF na ADO 26/STF os crimes relacionados a sexualidade findaram-se. Mas hoje há uma proteção jurídica que visa a inibição desses atos cruéis.
Em se tratando do esporte, sabemos que existe normas e regulamentos que regem o futebol no Brasil, bem como pela sua associação a COMENBOL E FIFA, no sistema associativo. Nesses sistemas, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva traz uma penalidade expressa quanto ao ato discriminatório, onde podemos pela obviedade enquadrar a homofobia em razão da discriminação de gênero. Como vimos nos cânticos emanados das torcidas no item 4 deste artigo o CBJD ainda não consegue por si só penalizar com afinco as torcidas ou os indivíduos homofóbicos, vez que a punição pecuniária por vezes não basta para reeducação ou desestímulopara pô fim à prática do ato.
Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
assim tem que haver o respeito. E como bem dito, a sociedade passa a mudar, mesmo que em pequenos passos, quando se impõe restri-
PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Não podemos naturalizar que a justiça desportiva receba hoje mais casos relacionados a homofobia do que em relação as disputas das partidas, as faltas ou infrações disciplinares inerentes da modalidade. Um relatório de Rafael Oliveira publicado no Esportes Yahoo em junho do presente ano mostra um levantamento em que só em 2022 no país tivemos 06 casos de homofobia em estádios de futebol:
Este ano, foram registrados até agora nove processos enquadrados no artigo 243-G, que trata dos diversos tipos de discriminação. São seis por homofobia e mais três porinjúria racial. Já em todo 2021 (que não contou com a presença de torcida nos estádios em boa parte da temporada), foram sete casos: três de preconceito de cor, dois contra as mulheres e dois de orientação sexual. Isso apenas na esfera do STJD. Ou seja: sem contar os tribunais estaduais (OLIVEIRA, 2022).
Como visto nas pesquisas das decisões elencadas neste artigo, as punições do CBJD ainda se nota que por vezes a homofobia é por aqueles que julgam discriminada, como no caso do julgamento do Atlético/MG onde a torcida ecoou cânticos homofóbicos, mas foram julgados pelo artigo que trata sobre desordem. Naquele julgamento entenderam que o ato não fora lesivo.
— Vai depender de cada caso concreto e da interpretação do tribunal. Em tese, até pela jurisprudência da Fifa, o tribunal pode punir, ainda que o diretamente envolvido não se sinta envolvido. Ali é uma questão mais de postura do torcedor do que de ofensa direta a um determinado envolvido no espetáculo — explicou Salomão Filho. Além do STJD, promotores do Juizado Especial Criminal (Jecrim), que cuida de processos relacionados ao futebol, já discutem sobre as possibilidades abertas pela decisão do STF. Estudos técnicos devem ser publicados após a divulgação do acórdão. Entre os promotores, há o sentimento de que o STF mostrou a importância que o
Estado brasileiro vai conferir ao combate à homofobia (CARVALHO, 2019).
Tem se hoje a procedência com eficácia geral e efeito vinculante ao reconhecimento da mora inconstitucional do Congresso Nacional com a ADO 26/STF, para a elaboração de lei para criminalizar a homofobia. Sendo assim, com este entendimento as condutas que são homofóbicas enquadram-se nas espécies de racismo, passíveis e puníveis pelo Código Penal. Não é o que se espera do Poder Judiciário, Executivo e Legislativo, mas, por ora a interpretação extensiva da norma vem para suprir os anseios da sociedade e que pune àquele que ainda vivenas amarras de um preconceito banalizado.
CONCLUSÃO
Este artigo visa estabelecer e estruturar alguns casos de quebra de barreiras no futebol quanto ao preconceito pela orientação sexual. Com isso, entende-se que ainda há muito que se fazer para que a homofobia seja disseminada no futebol, nas outras modalidades ou em outras áreasdo viver.
Notória é a necessidade da elaboração de normas mais eficientes para a punição quanto ao preconceito e, principalmente para a criminalização da homofobia dentro dos estádios e na sociedade como um todo. Tais normas, ainda que não haja lei específica, merecem fiel cumprimento a fim de barrar a homofobia, principalmente pelos participantes dos espetáculos esportivos, cuja finalidade é proporcional lazer mesmo sendo de alto rendimento.
Assim, em análise histórica e doutrinaria visualiza-se a urgência na implementação de medidas inibidoras, punitivas e educativas mais significativas para retroceder esses eventos violentos,
visto que a institucionalização do preconceito é
uma raiz que só não nos será mais um problema quando a repressão for intensificada, a fim de banalizar qualquer ato que atente à vida do outrona sua intimidade.
Em campo ou extra campo o que importa única e exclusivamente é a qualificação do profissional quanto ao jogo para que se tenha um espetáculo esportivo de alto nível. Não há mais espaço hoje para cânticos ou qualquer forma de homofobia, sendo certo que velar o preconceito o revestindo de “normal do jogo” principalmente pelas arquibancadas nunca fez defato parte do jogo limpo.
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