Revista Científica da ESA: VIII Congresso de Atualização Jurídica da OAB de Bauru - Ed. 42

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DIRETORIA OAB SP (GESTÃO 2022/2024)

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Santos

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Guilherme Hansen Cirilo

Guilherme Magri de Carvalho

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Helcio Honda

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lsabela Castro de Castro

João Vinícius Manssur

José Chiachiri Neto

Juliana Fernandes de Marco

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Kelly Greice Moreira

Leandro Godines do Amaral

Ligia Maura Fernandes Garcia da Costa

Lívio Enescu

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Gonçalves

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Roberta Guitarrari Azzone Colucci

Rodrigo Lemos Arteiro

Rosa Ramos

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Thaís Proençaa Cremasco

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Afonso Pacileo Neto

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Aleksander Mendes Zakimi

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Ana Laura Teixeira Martelli

Ana Paula de Almeida Santos

Ana Paula Menezes Faustino

André Aparecido Barbosa

Andreia Capucci

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Bruna Fernanda dos Santos Umberto

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Cesar Amendolara

Charlene Aparecida Francisco da Silva

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Daniel Amorim Assumpção Neves

Daniel da Silva Castelo Oliveira

Diego Tavares

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Erick Anselmo Barbosa

Eudécio Teixeira Ramos

Ezequias Alves da Silva

Fabiano Reis de Carvalho

Fabio Paulo Reis de Santana

Fábio Rodrigues Goulart

Fernando Jorge Neves Figueiredo

Flávia de Oliveira Santos do Nascimento

Flávio Marques Alves

Glaudecir José Passador

Gonçalo Batista Menezes Filho

Heloisa Helena Cidrin Gama Alves

Jesualdo Eduardo de Almeida Junior

João Carlos Rizolli

Jocelino Pereira da Silva

José Fabiano de Queiroz Wagner

José Umberto Franco

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Juliana Abrusio Florencio

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Leisa Boreli Prizon

Leopoldo Luis Lima Oliveira

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Lucimara Ferreira de Sousa

Luís Henrique Neris de Souza

Luiz Eduardo de Moura

Luiza Alexandrina Vasconcelos Oliver

Marco Antonio Pinto Soares Junior

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Maria Adelaide da Silva

Maria do Carmo Roldan Gonçalves

Marilza Nagasawa

Marina Priscila Romuchge

Mauricio Baptistella Bunazar

Max Fernando Pavanello

Natália Sukita Barboza dos Santos

Nathália Carmo Silva Santos

Neilton Correia Neves

Nelci da Silva Rodrigues

Nelson Massaki Kobayashi Junior

Néria Lucio Buzatto

Ricardo Ferrari Nogueira

Rosana Rufino

Roseli da Silva Santos

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Silvio Henrique Mariotto Barboza

Simone das Merces Sapienza

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Tatiana Giorgini Fusco Cammarosano

Thalita Fernanda da Cruz Barreto Costa

Vanessa Rafael de Freitas

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Alberto Zacharias Toron

Carlos Jose Santos da Silva

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MEMBROS SUPLENTES PAULISTAS NO CONSELHO FEDERAL

Daniela Campos Liborio

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Alessandra Benedito

DIRETORIA ESA OAB SP (GESTÃO 2022/2024)

Conselho Curador

DIRETOR ESA OAB SP

FLÁVIO MURILO TARTUCE SILVA

VICE-DIRETORA ESA OAB SP

SARAH HAKIM

COORDENADOR CIENTÍFICO

CARLOS EDUARDO NICOLETTI CAMILLO

COORDENADOR PEDAGÓGICO

ANTÔNIO RODRIGUES DE FREITAS JÚNIOR

COORDENADOR GERAL DAS ÁREAS GEOGRÁFICAS

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ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA NÚCLEOS TEMÁTICOS

Direito e Relações Interdisciplinares

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Direito Eleitoral

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Direito Constitucional

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Direito do Consumidor

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Direito do Trabalho

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Direito, Diversidade e Gênero

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Direito Processual

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Contencioso Estratégico

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COORDENAÇÃO GESTÃO 2022-24

Coordenador Cientifico

Carlos Eduardo Nicoletti Camillo

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Geográficas

Sérgio Carvalho de Aguiar Vallim Filho

Coordenador Pedagógico

Antonio Rodrigues de Freitas Jr.

CONSELHO CURADOR: Gestão 2022/2024

PRESIDENTE

Oscar Vilhena Vieira

VICE-PRESIDENTE

Maria Garcia

CONSELHEIROS

Ana Cláudia Torezan Andreucci

Felipe Chiarello de Souza Pinto

Giselda Maria Fernandes Novaes

Hironaka

José Fernando Simão

Ivete Senise Ferreira

Márcio Vicente Faria Cozatti

Apresentação

11

01. CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIAS E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Bruno Florentino Matos

Letícia Gibelle

19

02. Os Direitos Sociais Fundamentais e a Judicialização das Políticas Públicas no Estado Democrático de Direito

Denise Carvalho Klaus

24

03. Escola Clássica e o paradigma da indiferenciação/discernimento dos menores em conflito com a lei

Diego Marques da Silva

05. Agricultura de subsistência - uma alternativa plurima para remição de pena

Ingrid Adriana Bezerra de Sá 60

06. OS DIREITOS AUTORAIS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E SEUS REFLEXOS NO DIREITO COMPARADO

Iriana Maira Munhoz Salzedas

70

07. A O FORNECIMENTO DE DADOS DE USUÁRIO DE IP PELOS PROVEDORES DE SERVIÇOS DE CONEXÃO À INTERNET E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

João Guilherme de Oliveira

35

04. COMO É DETERMINADA A BASE DE CÁLCULO DO IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI NOS CASOS DE INTEGRALIZAÇÃO DE BENS IMÓVEIS NO CAPITAL SOCIAL DE HOLDINGS E SOCIEDADES EMPRESÁRIAS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES?

Felipe Gonsales

Júlia Herrera Firetti

77

08. A EDUCAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA COMO FERRAMENTA PARA FOMENTAR A PARTICIPAÇÃO ATIVA DA SOCIEDADE, NA BUSCA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO IDEAL

Katia Cristina Gonçalves

90

09. ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR: Um problema intrínseco em nossa sociedade

Leandro Galvão

98

10. SISTEMA PENITENCIÁRIO NO BRASIL

Mariana Cristina Arnez

105

11. A LEI MARIA DA PENHA E AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Marta Adriana Gonçalves Silva Buchignani

Taís Nader Marta

119

12. A Revisão da Vida Toda: Breve análise sobre a Decadência e a Igualdade de Direitos

Mayara Mihoko Kodima Cury

125

13. O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CÍVEL NO ÂMBITO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Nilo Kazan de Oliveira

Gabriela da Silveira

132

14. INCONSTITUCIONALIDADE DAS ALÍQUOTAS PROGRESSIVAS DOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL DAS CARREIRAS NACIONAIS

Ramon Leandro Freitas Arnoni

146

15. OS REFLEXOS DA PANDEMIA COVID-19 NO DIREITO DE FAMILIA

Thais Fernanda da Silva Teodoro

153

16. A OBRIGATORIEDADE DOS ESTADOS OBSERVAREM AS CONVENÇÕES INTERNACIONAIS INTERNALIZADAS E AS NORMAS GERAIS DA UNIÃO PARA GARANTIR A INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Tiago Augusto Pereira De Oliveira

162

17. BASES TEÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

Vinicius de Carvalho Carreira

Marianne Ramos Feijó

171

18. AS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER PREVISTAS NA LEI 11.340/2006

Wallas Richerd Trovelli

Edição 42 Ano 2023

ESCOLA SUPERIOR DE ADVOCACIA

São Paulo, OAB SP - 2023

COORDENAÇÃO TÉCNICA

COORDENADOR GERAL

Adriano de Assis Ferreira

COORDENADOR ACADÊMICO

Erik Chiconelli Gomes

COORDENADOR AUDIOVISUAL

Ruy Dutra

PROJETO GRÁFICO

Rubia Duarte

Fale Conosco

Largo da Pólvora, 141- Sobreloja - São Paulo/ SP

Tel. .55 11.3346.6800

Pubicação Trimestral

ISSN - 2175-4462

Direitos - Periódicos.

Ordem dos Advogados do Brasil

Apresentação

É com grande honra que lhe damos as boas-vindas à mais recente edição da Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia, que apresentamos um conjunto abrangente de artigos, cuidadosamente selecionados, apresentados no VIII Congresso de Atualização Jurídica da OAB de Bauru, nos dias 09 a 11 de agosto de 2023.

A OAB Bauru é Presidida pela Doutora Marcia Regina Negrisoli Fernandez Polettini, em seu segundo mandato de 2022/2024, tem 100 Comissões temáticas que se envolveram, direta e indiretamente, na organização desse Congresso. Ele recebeu mais de 1.300 participantes, aproximando advogados e advogadas de todas as idades e da região Centro este paulista e contou com palestrantes magníficos que nos brindaram com apresentações memoráveis.

Apresentamos artigos científicos em que os autores compartilham suas análises e oferecem soluções para os desafios complexos que a sociedade enfrenta hoje, usando a lei como ferramenta fundamental para a construção de um mundo mais justo e equitativo numa visão aprofundada de várias questões legais relevantes da atualidade; abordam tópicos que abrangem uma ampla gama de áreas do direito com uma variedade de temas fundamentais e emergentes do direito e da justiça.

Esperamos que esta edição seja uma fonte de informações para pesquisas e que os auxiliem a compreender e enfrentar alguns desafios legais e sociais de nossa sociedade e os inspire na reflexão crítica no mundo jurídico contemporâneo.

Taís Nader Marta

Coordenadora da ESA-Bauru

Coordenadora Científica do VIII Congresso de Atualização Jurídica da OAB de Bauru

CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIAS E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Este artigo científico tem a finalidade de explanar sobre a Contribuição de Melhoria e o por seguinte o Estado Democrático de Direito, estudo que percorre a área do direito tributário brasileiro. Para a criação desse texto jurídico científico foram realizadas pesquisas em livros, sites, doutrinas e jurisprudências, a fim de contribuir com informações para aqueles que buscam conteúdo e aprendizagem. Portanto, será mencionado citações de grandes autores no ramo do direito, leis e peculiaridades sobre o tema, razão em que expressa imensa honra em participar e buscar pela submissão do artigo científico e posterior sua publicação na Revista Científica Virtual da Escola Superior da Advocacia da OAB/SP.

Palavras-chave

Direito Tributário - Estado Democrático de Direito - Contribuição de Melhorias

Bruno Florentino Matos

Advogado, pós-graduado em MBA em Gestão da Produção, Pós-Graduando em Direito Negocial e Imobiliário pelo EBRADI (Escola Brasileira de Direito), e Pós-graduando em MBA em Agronegócio pela USP (Universidade de São Paulo), atualmente Presidente da Comissão de Estágio da OAB –Bauru e membro da Comissão Seccional Exame de Ordem OAB -SP (matos.bruno@adv.oabsp.org. br)

Letícia Gibelle

Acadêmica do 8º período do curso de Bacharel em Direito pela Faculdade Nove de Julho de Bauru, pós-graduada em Direito Empresarial e Gestão Tributária pela Faculdade Focus, cursou Técnico em Serviços Jurídicos na ETEC Ernesto Monte Bauru, Tecnólogo em Gestão Pública pela Universidade Paulista e bacharel em Administração pela FACEP, secretária da Comissão de Estágios OAB - Bauru (2023) (leticiagibelle@hotmail.com).

DESENVOLVIMENTO

1.2. Da tributação e a contribuição de melhorias.

À princípio, compreende-se que o tributo é uma contribuição monetária cobrada pelo Estado aos contribuintes (pessoas físicas e pessoas jurídicas), financiando as atividades governamentais e consequentemente possibilitando a manutenção na máquina estatal.

De acordo com o entendimento Amaro (2006, p.25): “[...] Tributo é a prestação pecuniária não sancionaria de ato ilícito, instituída em lei e devida ao Estado ou a entidades não estatais de fins de interesse público[...]”.

Adiante o Código Tributário em seu artigo 3º consolida que: “[...] Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada [...]”.

Em conformidade com a Constituição Federal Brasileira de 1.988 em seu artigo 145, III designa a União, Estados, Distrito Federal e aos Municípios a instituir e cobrar (ius imperii) o tributo de contribuição de melhoria (tributo vinculado).

A contribuição de melhoria é definida com uma espécie de tributo, ao passo que decorre à um serviço de melhoria que valoriza ou desvaloriza o imóvel de propriedade do contribuinte.

Por um lado, a obra pública pode beneficiar o proprietário e a sociedade regional, em entendimento contrário, poderá prejudicar quando inacabada ou contendo vícios.

Elucida Amaro (2006,p.46) sobre a definição de contribuição de melhoria:

“Esse tributo, a exemplo das taxas conecta-se com determinada atuação estatal, qual seja, a realização de uma obra pública de que decorra, para os proprietários de

imóveis adjacentes, uma valorização (ou melhoria) de suas propriedades. Melhorias (melhora ou melhoramento) expressa a elevação de algo para um estado ou condição superior. É antônimo de pioria (piora ou pioramento). O vocábulo “melhoria” não se refere (salvo em linguagem metonímica) 2 obra em si; esta é a causa: aquela, a consequência: a melhoria. A vista do engate necessário entre melhoria e valorização, onde esta inexistir, descabe, a nosso ver, a contribuição. O tributo não se legitima pela simples realização da obra. Também não se trata de um tributo que se atrele apenas ao patrimônio ou à plus-valia patrimonial; é preciso que haja mais-valia, agregada ao patrimônio do contribuinte, mas, além disso, requer-se que essa mais-valia decorra de obra pública (uma avenida, por exemplo), para que se justifique a cobrança”.

Para tanto, o surgimento do princípio do special assessment ou betterment tax, concedia o entendimento que o proprietário do imóvel era beneficiário e pagador do tributo, posteriormente revertida em obra pública.

Segundo Ricardo Alexandre (2023, p.82):

“Em 1605, na Inglaterra, a coroa inglesa realizou uma obra de grande porte e com enorme dispêndio de dinheiro para retificar e sanear as margens do Rio Tâmisa, tornando-o mais navegável e estimulando o incremento da atividade econômica nas áreas ribeirinhas. Os proprietários dos imóveis localizados nessas áreas foram muito beneficiados, pois passaram a ter suas terras, antes sujeitas a frequentes alagamentos, bastante valorizadas. Visando a sanar o enriquecimento sem causa, foi criado, por lei, um tributo (betterment tax), a ser pago pelos beneficiários, limitado ao montante da valorização individual. Nascia a contribuição de melhoria, até hoje responsável pelo financiamento de obras de grande vulto”.

No Brasil, sucedeu a evolução na contribuição de melhorias, vejamos o quadro abaixo onde são

observadas as transformações legais:

Ou seja, a contribuição de melhoria é uma arrecadação com o objetivo construir, agregando valor aos imóveis de proprietário, sendo custeado proporcionalmente aos proprietários da comunidade, como exemplo de obras como: passagem de gás natural, serviços de fibra ótica, pavimentação asfáltica, entre outras.

Nas palavras do autor Luciano Amaro (2023, p.28), conceitua:

“A contribuição de melhoria liga-se a uma atuação estatal que por reflexo se relaciona com o indivíduo (valorização de sua propriedade). Esse reflexo é eventual, já que da obra nem sempre resulta aquela valorização; por vezes ocorre o contrário: a obra desvaloriza o imóvel, ensejando pedido de reparação do indivíduo contra o Estado, com o mesmo fundamento lógico que embasa a contribuição de melhoria: se a coletividade não deve financiar a obra que enriquece um grupo de indivíduos, também não se pode empobrecer esse grupo, para financiar uma obra que interessa à coletividade”.

No pensamento do jurista Leandro Paulsen (2023, p.83): “[...]As contribuições de melhoria constituem tributos cobrados de quem obteve valorização imobiliária decorrente de uma obra

pública de infraestrutura, prestando-se a fazer frente ao custo dessa obra e não podendo ultrapassar a valorização gerada[...]”.

Na interpretação de Ricardo Alexandre (2017, p.77):

“O fato gerador da contribuição de melhoria não é a realização da obra, mas sim sua consequência, a valorização imobiliária. A melhoria exigida pela Constituição é, segundo o STF, o acréscimo de valor à propriedade imobiliária dos contribuintes, de forma que a base de cálculo do tributo será exatamente o valor acrescido, ou seja, a diferença entre os valores inicial e final do imóvel beneficiado. Assim, para efeito de cobrança da exação, há de se considerar melhoria como sinônimo de valorização”.

Ressalta que a realização de obra pública tem previsão no Artigo 2º do Decreto de nº. 195/67, qualquer obra não indicada nesse dispositivo, não terá a cobrança do tributo, consideramos:

“Art 2º Será devida a Contribuição de Melhoria, no caso de valorização de imóveis de propriedade privada, em virtude de qualquer das seguintes obras públicas:

I - abertura, alargamento, pavimentação, iluminação, arborização, esgotos pluviais e outros melhoramentos de praças e vias públicas;

II - construção e ampliação de parques, campos de desportos, pontes, túneis e viadutos;

III - construção ou ampliação de sistemas de trânsito rápido inclusive tôdas as obras e edificações necessárias ao funcionamento do sistema;

IV - serviços e obras de abastecimento de água potável, esgotos, instalações de redes elétricas, telefônicas, transportes e comunicações em geral ou de suprimento de gás, funiculares, ascensores e instalações de comodidade pública;

V - proteção contra secas, inundações, erosão, ressacas, e de saneamento de drenagem em geral, diques, cais, desobstrução de barras, portos e canais, retificação e regularização de cursos d’água e irrigação;

VI - construção de estradas de ferro e construção, pavimentação e melhoramento de estradas de rodagem;

VII - construção de aeródromos e aeroportos e seus acessos;

VIII - aterros e realizações de embelezamento em geral, inclusive desapropriações em desenvolvimento de plano de aspecto paisagístico”.

Não obstante, é válido salientar que há exceções, como paradigma a cobrança indevida de recapeamento asfáltico, tendo em vista se tratar de manutenção.

Logo, a jurisprudência atenta ao tema dispõe de seus precedentes quanto a execução fiscal:

1 – Processo de execução fiscal em face dos sucessores do autor falecido:

“Ementa: Apelação cível. Execução fiscal. Débitos de IPTU, taxas inominadas e contribuição de melhoria do exercício de 2005. A sentença extinguiu a execução ao reconhecer a ilegitimidade passiva do executado e a nulidade do título executivo e deve ser mantida. A decisão proferida está em consonância com o entendimento jurisprudencial do STJ no sentido de ser inadmissível o redirecionamento da execução para o espólio ou sucessores, quando o executado falecer antes de ser validamente citado nos autos do processo executivo. No mais, o título executivo é flagrantemente nulo por não apresentar o fundamento legal de nenhum dos débitos principais e realizar o destaque do valor relacionado a cada uma das exações. Não há, portanto, sob qualquer ângulo que se analise a controvérsia, ensejo à reforma

da sentença e ao acolhimento da irresignação recursal fazendária, de modo que a sentença recorrida deve ser mantida em sua integralidade. Nega-se provimento ao recurso fazendário, nos termos do acórdão.

(...)

Portanto, para que a contribuição de melhoria possa ser exigida pelo Poder Público, além da necessidade de lei específica, é imperativo que seja comprovada também a valorização do imóvel decorrente da realização da obra, de modo que a base de cálculo resultará da diferença entre os valores do imóvel individualmente considerado antes do início e depois da conclusão da obra.”

(TJSP; Apelação Cível 000131252.2006.8.26.0082; Relator (a): Beatriz Braga; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Público; Foro de Boituva - Setor de Execuções Fiscais; Data do Julgamento: 27/06/2023; Data de Registro: 27/06/2023).

Grifo nosso.

2 – Processo referente ao exemplo mencionado anteriormente sobre a pavimentação asfáltica:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO – Execução Fiscal – Município de Monguaguá - Contribuição de Melhoria “Pavimentação Asfáltica”. I - Exceção de Pré-Executividade parcialmente acolhida para afastar somente a cobrança da Taxa de Expediente. II – Recurso do executado-excipiente – Matéria que extrapola a mera existência de defeitos no título executivo e demanda dilação probatória, devendo ser discutida por meio de embargos à execução - Inadequação da via eleita - Precedentes deste Egrégio Tribunal de Justiça, em casos análogos. III – Mantida a decisão que rejeitou parcialmente a exceção de pré-executividade - Prosseguimento da execuçãoRecurso não provido.

Como se sabe, a instituição da contribuição de melhoria decorre obrigatoriamente de lei específica para cada obra, não bastando basear-se em disposições acerca do referido tributo de forma geral, conforme disposto no artigo 150, inciso I, da Constituição Federal e artigos 81 e 82 do Código Tributário Nacional.

(TJSP; Agravo de Instrumento 210000678.2023.8.26.0000; Relator (a): Adriana Carvalho; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Público; Foro de Mongaguá - SEFSetor de Execuções Fiscais; Data do Julgamento: 15/06/2023; Data de Registro: 19/06/2023)”.

Grifo nosso.

No entendimento do Supremo Tribunal Federal, cabe repisar:

“Esta Corte consolidou o entendimento no sentido de que a contribuição de melhoria incide sobre o quantum da valorização imobiliária.

(AI 694.836 AgR, rel. min. Ellen Gracie, j. 2411-2009, 2ª T, DJE de 18-12-2009)

(...) Tributo que tem por fato gerador benefício resultante de obra pública, próprio de contribuição de melhoria, e não a utilização, pelo contribuinte, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto a sua disposição. Impossibilidade de sua cobrança como contribuição, por inobservância das formalidades legais que constituem o pressuposto do lançamento dessa espécie tributária.

(RE 140.779, rel. min. Ilmar Galvão, j. 2-81995, P, DJ de 8-9-1995)

Sem valorização imobiliária, decorrente de obra pública, não há contribuição de melhoria, porque a hipótese de incidência desta é a valorização e a sua base é a diferença entre dois momentos: o anterior

e o posterior à obra pública, vale dizer, o quantum da valorização imobiliária.

(RE 114.069, rel. min. Carlos Velloso, j. 15-41994, 2ª T, DJ de 30-9-1994)

Sem valorização imobiliária decorrente de obra pública não há contribuição de melhoria, porque a hipótese de incidência desta é a valorização e sua base de cálculo é a diferença entre os dois momentos: o anterior e o posterior à obra pública, vale dizer o quantum da valorização imobiliária.

(STF, 2ª. T. RE 114.069-1/SP, Rel. Min. Carlos Velloso.j. 30.09.1994, p. 26.171)

“Contribuição de melhoria. Recapeamento de via pública já asfaltada, sem configurar a valorização do imóvel, que continua a ser requisito ínsito para a instituição do tributo, mesmo sob a égide da redação dada, pela Emenda nº 23, ao art. 18, II, da Constituição de l967. Recurso extraordinário provido, para restabelecer a sentença que julgara inconstitucional a exigência.

(RE 116.148, Rel. Min. Octavio Gallotti, Primeira Turma, DJ de 21/5/1993).”

Destarte, há previsão legal e requisitos para cobrança da contribuição de melhorias disposto no artigo 81 e 82 do Código Tributário Nacional a serem observados, bem como o Decreto nº. 195/67 mencionada inicialmente, dispõe sob normas gerais da contribuição de melhoria.

Nesse sentido, a contribuição de melhoria é importante devido a distribuição de despesas de obra pública do Estado com a comunidade, tanto aos cidadãos que recebem uma obra pública seja ela pavimentação, iluminação, vias públicas, pontes, parques entre outros, assim como ao proprietário que tem seu imóvel valorizado tanto para venda, aluguel ou comercial.

Notoriamente, insta salientar que não cabe ao

proprietário que não gozou da valorização do imóvel, a cobrança da contribuição de melhoria.

1.2. A originalidade do Estado Democrático de Direito e a tributação.

Conforme o preâmbulo da Constituição Federal em seu artigo 1º, manifesta-se em seu texto que a República é constituída pelo Estado Democrático de Direito e tem como fundamento: a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e livre iniciativa e o pluralismo político.

Nas palavras de Sacha Calmon Navarro Coêlho (2020,p.102) esclarece quanto o dever da ordem jurídica:

“Em primeiro lugar, verifica-se que várias são as pessoas políticas exercentes do poder de tributar e, pois, titulares de competências impositivas: a União, os Estados-Membros, o Distrito Federal e os Municípios. Entre eles será repartido o poder de tributar. Todos recebem diretamente da Constituição, expressão da vontade geral, as suas respectivas parcelas de competência e, exercendo-as, obtêm as receitas necessárias à consecução dos fins institucionais em função dos quais existem (discriminação de rendas tributárias). O poder de tributar originariamente uno por vontade do povo (Estado Democrático de Direito) é dividido entre as pessoas políticas que formam a Federação”.

Outrossim, a intenção do Estado Democrático de Direito é a igualdade e a lei como ferramenta de transformação da sociedade, desse ponto o entendimento do pagamento do tributo em favor da garantia de concretizar os direitos sociais e individuais, resultando no bem comum.

Por razão, o bem comum é rodeado pelo princípio da dignidade da pessoa humana que está presente em diversas doutrinas com a sua popularidade de “princípio base” na legislação brasileira.

Trata-se de um princípio pela qual admite valores constitucionais, bem como representa um conjunto de liberdade, cidadania, igualdade, solidariedade, dentre outras que refletem nos hábitos éticos para o bom convívio social, limitando conflitos de relações que expressam violação à vida digna e segurança dos indivíduos.

E mais, assegura a aplicabilidade do Estado Democrático de Direito, que tem por finalidade de inibir todos os tipos de abusos que ferem os direitos humanos, objetivamente identificado nos primeiros artigos da Constituição Federal, mas principalmente em seu artigo 5º, que discorre a afirmação de uma igualdade nos direitos de qualquer natureza.

Em um pensamento mais profundo, a existência do princípio é garantir para aqueles que são fragilizados em seus direitos, a mesma possibilidade de dignidade atingida por outros.

Assim, a concepção sobre os temas expõe que o Estado Democrático de Direito é mecanismo utilizado em busca do justo cumprimento dos direitos fundamentais (já que representa o povo), principalmente ao que se refere a tributação.

A sociedade necessita da ordem estatal para democracia seja concedida, basta perceber que houve evolução da contribuição de melhorias na história do ordenamento jurídico brasileira, admitiu que os tributos sejam essenciais para os cidadãos.

Não obstante, a contribuição de melhoria é resultado do poder de tributar garantido na Constituição Federal, que consequentemente, sofre interferência sócio-econômica tanto para o proprietário como ao setor público, sem deixar de mencionar aqueles que usufruem da obra pública direta e indiretamente.

Eventualmente, ao notar que efetiva obra pública foi findada, hipoteticamente um parque em meio a um loteamento novo, todos os proprietários terão seu imóvel valorizado (não somente

será usuário do espaço público), em contrapartida colabora com a cultura, lazer, um espaço de socialização da comunidade e seus moradores, referência turística ao município.

Segundo o autor Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho (2021, p.193-197) esclarece:

“o Estado brasileiro é constituído pela legalidade, por meio de princípios constitucionais, aberto a valores que asseguram direitos fundamentais, fortalecimento da jurisdição e limitação ao poder de tributar. (...)

O princípio da legalidade é essencial ao Estado Democrático de Direito em termos de imposição tributária, e na elaboração legislativa, que deve guardar absoluta coerência com os preceitos válidos e eficazes, em obediência aos princípios constitucionais, hierarquicamente superiores, numa compatibilização entre a lei e a Constituição.

Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ensina que o princípio da legalidade: juntamente com o controle da Administração pelo Poder Judiciário, nasceu com o Estado de Direito e constitui uma das principais garantias de respeito aos direitos Individuais. Isto porque a lei, ao mesmo tempo em que os define, estabelece também os limites da atuação administrativa que tenha por objeto a restrição ao exercício de tais direitos e benefício da coletividade. É aqui que melhor se enquadra aquela ideia de que, na relação administrativa, a vontade da Administração Pública é a que decorre da lei”.

Em análise, é possível identificar que o direito de propriedade (do bem imóvel valorizado), está acompanhado dos direitos coletivos e sociais, quando Maria Sylvia menciona sobre o princípio da legalidade e o controle estatal, a reflexão que se define é a contribuição de melhorias atribuído ao desenvolvimento regional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Constatado a importância da contribuição de melhoria e a atuação do Estado, permite observar que o tributo busca financiar e consequentemente diminuir o custeio das obras públicas, que ficaram dispostos aos cidadãos.

Outra reflexão importante é o destino do recolhimento da contribuição, uma vez que, a fiscalização das obras públicas assegura a aplicação de dinheiro público gasto com eficiência.

Isto porque, ao contribuinte cabe a obrigação tributária, bem como ao Estado a administrar a cobrança devida dos tributos e a máxima prevenção diante da corrupção, sendo indispensáveis a

punição aos atos ilícitos e o cumprimento das garantias constitucionais empregados pelo Estado Democrático de Direito.

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OS DIREITOS SOCIAIS FUNDAMENTAIS E A JUDICIALIZAÇÃO

DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O presente artigo aborda a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, conforme o estabelecido no art. 5°, § 1° da Constituição Federal, bem como a obrigação do Estado em garantir os direitos sociais fundamentais. A judicialização das políticas públicas é discutida como meio de responsabilizar o Estado por sua omissão na implementação desses direitos. O princípio da dignidade da pessoa humana e seus reflexos na construção de uma sociedade justa e solidária são destacados, assim como a necessidade de evolução do Estado de acordo com os direitos humanos.

Palavras-chave

Políticas Públicas - Judicialização - Direitos Fundamentais - Estado Democrático de Direito

Denise Carvalho Klaus

Bacharel em Direito pela Faculdade Anhanguera de Bauru - Advogada comprometida e dedicada com uma sólida formação jurídica e experiência em diversos campos do Direito.

1. INTRODUÇÃO

No contexto do Estado Democrático de Direito, os Direitos Sociais Fundamentais têm se mostrado um elemento crucial para a concretização da justiça social e da dignidade humana. Fundamentados em princípios de igualdade e solidariedade, esses direitos representam uma evolução no campo dos direitos fundamentais, estabelecendo obrigações do Estado em prover condições mínimas para uma vida digna a todos os cidadãos.

Nessa perspectiva, a judicialização das políticas públicas tem se apresentado como uma importante ferramenta para a efetivação dos Direitos Sociais. A judicialização consiste na utilização do Poder Judiciário como uma via para garantir o cumprimento das políticas públicas, quando estas não são implementadas de maneira adequada ou quando há omissão dos órgãos estatais. Essa abordagem tem ganhado cada vez mais espaço diante dos desafios enfrentados na efetivação de políticas públicas eficazes e acessíveis a todos os cidadãos.

Contudo, é importante destacar que a judicialização das políticas públicas também suscita debates acerca do equilíbrio entre os poderes e a independência das esferas institucionais. A atuação do Poder Judiciário na implementação de políticas pode ser vista por alguns como uma interferência indevida no campo de atuação dos poderes Executivo e Legislativo, o que levanta questões sobre o respeito ao princípio da separação dos poderes.

Nesse contexto, é fundamental analisar os limites e o papel do Poder Judiciário no contexto das políticas públicas, considerando a necessidade de resguardar a autonomia dos demais poderes e, ao mesmo tempo, garantir a proteção dos direitos sociais assegurados pela Constituição. A interpretação judicial deve ser cuidadosa, buscando um equilíbrio que evite tanto a inefetividade dos direitos quanto o excesso de intervenção judicial no campo político-administrativo.

O objetivo desse texto é, portanto, analisar a relação entre os Direitos Sociais Fundamentais e a judicialização das políticas públicas no Estado Democrático de Direito, destacando os desafios e as possibilidades dessa abordagem na efetivação dos direitos sociais. Serão examinados casos e exemplos que evidenciam a relevância do Poder Judiciário nesse processo, principalmente no tocante a necessidade da atuação do advogado, bem como as potenciais consequências de uma atuação judicial excessivamente intervencionista. Além disso, buscar-se-á propor reflexões sobre alternativas e mecanismos que possam contribuir para uma atuação mais eficiente dos poderes públicos na garantia dos Direitos Sociais, de forma a consolidar um Estado Democrático de Direito cada vez mais inclusivo e justo.

2. DIREITOS FUNDAMENTAIS: APLICABILIDADE, OMISSÃO ESTATAL E JUDICIALIZAÇAO

A Aplicabilidade dos Direitos Fundamentais e a Omissão Estatal são temas intrínsecos no estudo da Judicialização das Políticas Públicas no campo do Direito Constitucional.

Segundo ensina George Marmelstein1, direitos fundamentais “são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico”, esses direitos, aliados aos princípios constitucionais estabelecem a base da organização do Estado Democrático de Direito e garantem a proteção dos indivíduos contra eventuais abusos do poder estatal, bem como de outros particulares.

Dentre vários princípios merece destaque o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana que

1 MARMELS TEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016, p. 18

é um dos pilares fundamentais do ordenamento jurídico moderno, presente em diversas Constituições e tratados internacionais. Ele reconhece que cada ser humano possui um valor intrínseco e inalienável, independentemente de suas características individuais, status social, econômico, religião, raça ou nacionalidade. Essa concepção implica que toda pessoa merece respeito, proteção e o pleno exercício de seus direitos fundamentais.

A República Federativa do Brasil, adota a ideia consagrada da separação de poderes segundo Montesquieu, em que o executivo é responsável pela ação da administração pública, e o legislativo, deve formular normas que sejam coerentes e respeitem os princípios gerais de direito, e todos os poderes devem exercer suas funções na formulação de políticas públicas adequadas à garantia dos direitos sociais, para efetivá-los corretamente.

Nesse sentido, a construção de um verdadeiro Estado democrático de direito leva, sem dúvida, à formulação e elaboração de políticas públicas que garantam o mínimo existencial por intermédio dos direitos fundamentais. Portanto, manifesto que a abordagem dos direitos humanos não pode apenas contemplar as políticas públicas que os tratam diretamente, como também deve estar integrada a todas as demais políticas públicas do Estado

No contexto da aplicabilidade dos Direitos Fundamentais, é importante mencionar a definição trazida por José Afonso da Silva2 que aplicabilidade refere-se à aptidão, à potencialidade da norma de produzir os efeitos jurídicos nela previstos, o Estado ideal deve garantir a igualdade de tratamento e oportunidades para todos, independentemente de sua origem étnica, orientação sexual, gênero, religião ou qualquer outra característica pessoal. Isso requer a adoção de políticas públicas eficaz, ações afirmativas, combate à discriminação e o incentivo à diversi-

2 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 13

dade e inclusão.

Contudo, em oposição aos direitos estabelecidos na carta constitucional, cotidianamente, ocorre um processo infindável de relegação, através do qual sujeitos (coletivos ou individuais), em função de suas características, são empurrados e mantidos em posições marginais ou em condições obscuras e inferiores, e nesse mote diz respeito à inércia do poder público em garantir e proteger os direitos fundamentais dos cidadãos.

A inércia ocorre quando o Estado deixa de agir ou não cumpre com suas obrigações constitucionais de forma adequada, seja por falta de regulamentação, recursos ou efetividade das políticas públicas.

A respeito de políticas públicas Vieira3 leciona, “Quase sempre não se concretizam, apenas se transformam em programas e diretrizes para serem exibidos à sociedade, sem intervenção nela, porque não tem função de intervir.” ou seja, não há vontade de intervenção para que se promova as mudanças necessárias e essa inércia, o não fazer, também é considerado parte da política pública, conforme bem explicitado por Dye4

A omissão estatal pode gerar sérias consequências para os cidadãos, prejudicando o pleno exercício de seus direitos e limitando o alcance das garantias constitucionais. Nesse contexto, o papel do Poder Judiciário ganha relevância, pois cabe a ele, muitas vezes, suprir a omissão dos poderes Legislativo e Executivo, garantindo a aplicabilidade necessária dos direitos fundamentais, e nessa seara a atuação do advogado, protegendo o interesse dos mais vulneráveis, resgatando-os novamente como sujeitos de direitos.

Como muito acertadamente elenca Marcelo Novelino5, “o advogado desempenha um papel

3 VIEIRA, Evaldo. Os direitos e a política social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2007.

4 DYE, Thomas D. Understanding Public Policy. Englewood Cliffs, N.J.: PrenticeHall. 1984

5 NOVELINO, Marcelo. Curso de direito constitucional. 12. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: Jus Podivm, 2017, p. 799

fundamental dentro do Estado constitucional democrático, exercendo uma função constitucionalmente privilegiada, na medida em que é indispensável à administração da justiça” ou seja, o papel do advogado é fundamental, complexo e crucial para assegurar o respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, aprimorar a qualidade das políticas implementadas e promover a equidade social.

O advogado atuante, combatente, funciona como um motor propulsor, provocando o judiciário a fim de obter a tutela desejada, para que os tribunais possam desempenhar sua função interpretando a Constituição e as leis, muitas vezes reconhecendo omissões inconstitucionais e determinando que o Estado adote medidas para proteger os direitos fundamentais dos cidadãos. Esse fenômeno, conhecido como “jurisdição constitucional”, é uma das principais formas de assegurar a efetividade dos direitos fundamentais frente à omissão estatal.

Nesse contexto, concebe-se a judicialização das políticas públicas, que é um fenômeno complexo e controverso, alusivo à crescente intervenção do Poder Judiciário na resolução de questões relacionadas à implementação, execução e avaliação de políticas públicas. A judicialização das políticas públicas pode ocorrer nos mais diferentes contextos e envolver uma gama de temas, tais como saúde, educação, meio ambiente, direitos sociais, entre outros.

Essa tendência tem se manifestado em diversos países, levantando discussões importantes sobre o papel do Judiciário, a separação de poderes e o sistema democrático como um todo. Esse processo resulta de uma série de fatores sociais, políticos e jurídicos que convergem e ultimam em uma maior ingerência do Judiciário na formulação e implementação de políticas públicas.

É importante destacar que a intervenção do Poder Judiciário em questões políticas pode gerar debates sobre a legitimidade dessa atuação, contudo, havendo omissão estatal, essa lacuna

deve ser preenchida, de maneira a não deixar o cidadão, parte mais vulnerável, desassistido.

Conforme análise de jurisprudências do Supremo Tribunal Federal, verificou-se que o entendimento dominante no Tribunal é que o Poder Judiciário, em situações excepcionais, pode determinar que o Estado adote as medidas necessárias a fim de efetivar direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais, sem que configure contrariedade ao princípio da separação dos poderes.

Mais especificamente, no julgamento do ARE 639337 AgR, do Supremo Tribunal Federal, com relatoria do Ministro Celso de Mello6, o “descumprimento de políticas públicas definidas em sede constitucional gera hipótese legitimadora de intervenção jurisdicional.” Denotando que “a intervenção do Poder Judiciário, objetiva neutralizar os efeitos lesivos e perversos, provocados pela omissão estatal”, o Ministro supracitado entende que não há qualquer transgressão a esse conceito, uma vez que a necessidade de se manter a primazia da Constituição Federal justifica o comportamento afirmativo do Poder Judiciário.

A maior corrente crítica sobre a jurisdição constitucional, aponta para o ativismo judicial, alegando judicialização excessiva e interferência ativa do judiciário nas políticas governamentais, de forma que os tribunais ultrapassem seu papel de interpretação da lei e interfiram ativamente de maneira a criá-las. Contudo, não haveria necessidade de intervenções judiciais, se houvesse a efetiva consolidação dos direitos fundamentais exposto na carta constitucional.

Evidente que, a aplicabilidade dos direitos fundamentais e a omissão estatal jazem interligados e são os fios condutores da judicialização, portanto, garantir que os direitos fundamentais sejam plenamente respeitados e efetivamente aplicados é fundamental para a consolidação de um Estado Democrático de Direito, no qual os ci-

6 BRASIL. STF, ARE 639.337 AgR/SP. 2ª Turma. Rel. Min, Celso de Mello, DJe 15/09/2011.

dadãos possam viver com dignidade, liberdade e igualdade.

Diante dessas questões, é essencial encontrar um equilíbrio entre a atuação do Judiciário e dos demais poderes, de modo a garantir a efetividade das políticas públicas sem comprometer a legitimidade democrática e a separação de poderes. Para tanto, é basilar promover um debate amplo e aprofundado sobre o tema, buscando soluções que respeitem os princípios democráticos e o Estado de Direito. Além disso, é importante investir na prevenção de conflitos por meio do diálogo e da busca por consensos políticos, evitando que questões relevantes cheguem aos tribunais como última instância.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, diante do contexto exposto, é inegável que o todo Estado que se pronuncie como Democrático de Direito tem o dever de assegurar a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, pois os direitos fundamentais positivados pela Constituição de 1988 constituem cláusulas pétreas, não podendo ser abolidos ou alterados. Tais direitos não são meros objetivos, declarados como metas a serem alcançadas a longo prazo. Ao contrário, nasceram dotados de eficácia plena e o Estado tem obrigação de desenvolver políticas públicas em prol da proteção da dignidade da pessoa humana e da construção de uma sociedade justa e solidária.

A judicialização das políticas públicas, embora controversa em alguns pontos, surge como uma importante ferramenta para responsabilizar o Estado por sua omissão na efetivação desses direitos, garantindo que os cidadãos possam exigir seus direitos e a devida prestação dos serviços públicos essenciais, pois é através da atuação do Poder Judiciário que cidadãos e grupos vulneráveis podem buscar efetividade em suas demandas e reivindicações por políticas públicas mais adequadas.

Não agindo os demais poderes, surge ao Judici-

ário, através da suscitação do Advogado, o dever de determinar que tais políticas sejam concretizadas, pois é assim que prevê o texto que irradia a todo o nosso ordenamento jurídico.

É essencial que o Estado evolua de acordo com o desenvolvimento dos direitos humanos, adaptando-se às necessidades e demandas da sociedade, aprimorando a legislação e as políticas públicas, de modo a combater as desigualdades sociais e promover o bem-estar da população.

Assim, a efetividade das políticas públicas torna-se imprescindível para garantir que os direitos fundamentais sejam concretizados, proporcionando um ambiente mais justo e igualitário para todos os cidadãos.

Portanto, a aplicação plena dos direitos fundamentais e sociais é um imperativo para que a sociedade possa alcançar seus objetivos de justiça e solidariedade. Som ente por meio da observância desses princípios é que o Estado Democrático de Direito poderá garantir a proteção e a realização dos direitos de todos os cidadãos, assegurando uma sociedade mais equitativa e inclusiva onde a dignidade da pessoa humana é valorizada e respeitada em sua plenitude. Cabe, portanto, aos órgãos estatais, em conjunto com a sociedade, zelar pela plena efetivação desses direitos, como pilares essenciais de uma ordem jurídica justa e humanitária.

ESCOLA CLÁSSICA E O PARADIGMA DA INDIFERENCIAÇÃO/ DISCERNIMENTO DOS MENORES EM CONFLITO COM A LEI

O presente artigo situa-se no âmbito da história da criminologia. Partindo do compromisso do iluminismo perante o conhecimento e dos princípios atinentes ao contrato social e ao utilitarismo clássico, aborda as principais ideias da escola clássica da criminologia no que diz respeito à reforma do sistema penal e à explicação do crime. Para o efeito, recorre sobretudo aos autores mais relevantes daquela escola, Cesare Beccaria, Francesco Carrara, dentre outros. Tem-se como objetivo compreender de que modo as crianças e adolescentes eram responsabilizados quando praticavam delitos durante a vigência dessa escola. Para isto, a pesquisa observou aspectos relacionados a evolução histórica de normas que tratam sobre a temática da criança e ao adolescente com suporte da criminologia crítica.

Palavras-chave

Escola Clássica - Livre Arbítrio - Contrato Social - Delito - Iluminismo

Diego Marques da Silva

Advogado. Mestrando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Email: diego.2016230173@unicap.br.

1. INTRODUÇÃO

A Escola Penal Clássica tem suas origens em doutrinas da antiga filosofia grega, a qual sustentava ser o delito afirmação da justiça, desenvolvendo-se no século XVIII como uma corrente de pensamento que reage contra as arbitrariedades do ancien regime para garantir os direitos do indivíduo (VIANA, 2018, p. 40). Por volta do final do século XVIII, as escolas penais lutavam para melhor conceituar sobre o crime e o criminoso.

Nesta época que começaram a surgir as escolas criminológicas, nas quais lutavam para encontrar respostas sobre a origem do crime, a maneira de combatê-lo e de preveni-lo.

As Escolas usaram a interdisciplinaridade de várias áreas do saber tais como: Biologia, Psicologia, Sociologia, Antropologia, Psiquiatria, entre outras, em que serviram de base de análises criminológicas, sendo fundamental o auxílio de estatísticas e observações, para definir o método de pesquisa para cada período.

A primeira Escola Sociológica do Crime foi a Escola Clássica, onde seu surgimento se deu através do Iluminismo italiano do século XVIII, que se apoiava em determinados princípios, entre eles estão: O delito é um ente jurídico; A ciência do Direito Penal é uma ordem de razões emanadas da lei moral e jurídica; A tutela jurídica é o fundamento legítimo de repressão e seu fim; A qualidade e quantidade de pena, que é repressiva, devem ser proporcionadas ao dano que se ocasionou com o delito ou perigo ao direito; A responsabilidade criminal se baseia na imputabilidade moral, desde que não exista agressão ao direito, livre arbítrio não se discute.

Cabe destacar ainda que neste período não existiam leis e penas específicas para as crianças e adolescentes infratores, que eram tratados da mesma forma que os adultos, caso já tivessem alcançado a idade mínima para serem considerados culpados por seus atos (paradigma da in-

diferenciação/ discernimento) ocorrido do séc. XVIII ao final do séc. XIX. A temática desta pesquisa se justifica pela contribuição de um estudo do Direito Penal não apenas por compreender as leis da época em questão, mas sim interpretá-las criticamente dentro de seu contexto histórico, político e social. Para a realização do trabalho, adotaram-se os pressupostos teóricos da metodologia da pesquisa bibliográfica, procedendo à coleta, análise e interpretação dos dados à luz do método histórico, investigando os reflexos do Direito penal da época.

Por fim, busca-se com a pesquisa compreender de que modo eram responsabilizados os menores em conflito com as leis, durante o período da escola clássica de Direito Penal, sendo este objeto desta pesquisa.

2. O ILUMINISMO E O CONTRATO SOCIAL

As teorias contratualistas têm como ponto central a análise do homem em sociedade e entende- se após as pesquisas realizadas por seus pensadores que, independentemente da razão, o homem não teria a capacidade/competência de construir uma comunidade sem que houvesse um poder hierarquicamente mais alto e forte do que os outros para conduzir a sociedade para seus fins comuns.

Desse modo, afirma (BITTAR, 2012, p. 296-297).

O contrato social é, portanto, um pacto, ou seja, uma deliberação conjunta no sentido da formação da sociedade civil e do Estado. Trata-se de uma troca entre a liberdade natural x utilidade comum. O homem poderia escolher entre continuar em sua situação inicial, ou seja, no estado de natureza, ou, então, por meio de uma convenção, fundar uma associação tendente à realização de seu estado social. Em poucas palavras, a partir da união de muitos em torno de um objetivo comum, o que há é a formação de um corpo maior e diver-

sos dos corpos individuais dos membros que o compõem.

Assim, o Estado contratualista possui como primeiras características um governo absolutista, cujo rei detinha todos os poderes concentrados em si, e, desse modo, usufruía da capacidade de governar os subordinados sem se preocupar com a atividade legislativa positivada que justificava suas ações.

A Revolução Francesa apresenta-se como força contrária ao Império Absolutista, que se manteve reivindicando a abolição da monarquia e a construção e promulgação de leis positivadas, sendo o Código de Napoleão de 18041 uma mistura de ideais liberais e tradicionais. Juntamente com a positivação dos códigos, encontra-se na Revolução Francesa o surgimento de um novo tipo de pensamento, o qual retira o centro das pesquisas da religiosidade e o coloca na racionalidade, isto é, o Iluminismo, que apresenta respostas fundamentadas na racionalidade, afastando a religião de discussões científicas.

O Iluminismo é concebido como ideologia de contracultura àquela que se manifestava no Estado absolutista, cujos Estado e Igreja estavam reunidos. A secularização do Estado trouxe a independência das normas religiosas e o foco em questões científicas, entendendo-se, desse modo, que o Iluminismo retirou a população francesa da idade das trevas2.

Durante os regimes absolutistas das Idades Média e Moderna, através de uma conduta infratora o indivíduo ofendia a soberania e o poder absoluto do monarca, que então empenhava uma severa reação punitiva como meio de vingança e justiça.

1 O Código Civil Francês foi o código civil francês outorgado por Napoleão Bonaparte e que entrou em vigor 21 de março de 1804. O Código Napoleônico propriamente dito aborda somente questões de direito civil, como as pessoas, os bens e a aquisição de propriedade.

2 Foi o termo adotado pelos humanistas do século XVII, aonde generalizaram toda a civilização da Europa do século IV ao século XV como um tempo de ruína e flagelo.

Como reação a esse período surge a Escola Penal Clássica, também conhecida como idealista que predominou entre o final do século XVIII e a metade do século XIX, surgindo como uma espécie de reação ao totalitarismo do Estado Absolutista da época e carregando influência do movimento Iluminista. Essa corrente doutrinária desenvolve a visão de que a pena é algo imposto a um indivíduo que cometeu, voluntária e conscientemente, ato grave (crime) e, portanto, merece um “castigo”.

Sobre isso afirma (BARATTA, 2014)

Assim é reconhecida a Escola Clássica da Criminologia, também intitulada de Escola Liberal, cuja emergência data de meados do século XVIII na Europa. Pautada nos ideais iluministas, a Escola Clássica foi forjada em meio a um ambiente de contestações às ideias e práticas penais vigentes ao longo de toda a Idade Média. Surge, portanto, em um nítido fluxo de transformações políticas, econômicas e ideológicas pelas quais passava a Europa e seus sistemas punitivos

Faz-se necessário salientar que a intitulação da Escola Clássica foi forjada por Ferri, representante fervoroso da escola positiva. Salvo melhor juízo, em contramão ao que parte da doutrina mundial declara, quando Ferri assim a intitulou, através de uma exposição oral acerca dos novos caminhos do direito e do processo penal, de fato, não parece tê-la feito de forma depreciativa. Disse ele expressamente:

(...) por isso a Escola Clássica, em seguida à Revolução Francesa, teve uma orientação político-social em pleno acordo com as reivindicações dos ‘direitos do homem’. Mas o estudo da justiça penal não pode deixar de refletir, outrossim, as correntes filosóficas e especialmente as filosófico-jurídicas predominantes em cada período histórico: pelo que a Escola Clássica Criminal, como sistematização filosófico-jurídica, foi inspirada pela doutrina do ‘direito natural’, que foi um dos confluen-

tes ideais da Revolução Francesa e valeu-se do método dedutivo, então imperante sem contrate nas ciências morais e sociais (FERRI, 1999, p. 57).

Assim, consideradas como cruéis e desumanas, as penas vigentes no chamado Ancien Régime3 passaram a ser duramente criticadas em virtude de seus excessos baseadas em parâmetros considerados subjetivos para dosimetria dos castigos aplicados. Considerando os ordenamentos jurídicos vigentes até então, pode-se falar que o Código de Hamurabi4 e a Lei de Talião5 figuram entre os dispositivos penais mais conhecidos deste período histórico. A lógica do “olho por olho, dente por dente” naturalizava e positivava a execução de uma gama de suplícios como torturas, enforcamento, decapitação, morte por inanição, esquartejamentos, encarceramento por tempo indeterminado e outras penas (FOUCAULT, 2000):

[...] os dolorosos gemidos do fraco, sacrificado à ignorância cruel e aos opulentos covardes; os tormentos atrozes que a barbárie inflige por crimes sem provas, ou por delitos quiméricos; o aspecto abominável dos xadrezes e das masmorras, cujo horror é ainda aumentado pelo suplício mais insuportável para os infelizes, a incerteza; tantos métodos odiosos, espalhados por toda parte, deveriam ter despertado a atenção dos filósofos, essa espécie de magistrados que dirigem as opiniões humanas (BECCARIA, 1764, p. 8).

A mudança penal anteriormente citada não pode ser compreendida sem vincularmos tal processo aos ideários e interesses burgueses.

3 Refere-se originalmente ao sistema social e político aristocrático que foi estabelecido na França.

4 Foi o primeiro código de leis da história e vigorou na Mesopotâmia, quando Hamurabi governou o primeiro império babilônico, entre 1792 e 1750 a.C. Esse código se baseava na Lei do Talião, que punia um criminoso de forma semelhante ao crime cometido, ou seja, “olho por olho, dente por dente”.

5 A lei de talião, também dita pena de talião, consiste na rigorosa reciprocidade do crime e da pena — apropriadamente chamada retaliação. Na perspectiva da lei de talião, a pessoa que fere outra deve ser penalizada em grau semelhante, e a punição deve ser aplicada pela parte lesada.

Detentora do poderio econômico, a classe burguesa vislumbrou no Direito Penal um potente dispositivo de ascensão ao poder político, formulando, para tanto, uma nova racionalidade punitiva capaz de proteger seus próprios interesses e, simultaneamente, contrapor as tradicionais práticas penais absolutista. (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004). A Escola Clássica também conhecida como período pré-científico da criminologia, contou com a colaboração teórica de diversos intelectuais, dentre os quais pode-se destacar como o personagem mais importante Cesare Beccaria, aristocrata italiano, considerado o maior expoente do iluminismo penal europeu. Foi um Jurista, filósofo e economista, é de sua autoria a famosa obra Dos delitos e das penas, publicada originalmente em 1764 e avaliada, ainda hoje, como uma das bases do Direito Penal moderno, nesta obra, discorre minuciosamente por assuntos que caracterizariam posteriormente o pensamento penal clássico, como a função da pena, a natureza do ato criminoso e o impacto da estrutura jurídica penal sobre a sociedade. Além dele, pode-se destacar também autores estudiosos como Jeremy Bentham6 (Inglaterra), Francesco Carrara7 (Itália), Alselm von Feuerbach 8(Alemanha) pertencentes a essa Escola.

Dos Delitos e das Penas pode ser considerado um tratado filosófico, cujo conteúdo foi amplamente incorporado pela legislação penal dos principais países europeus. Trata-se de uma publicação de confronto aos modelos penais vigentes até então, refutando a tradição jurídica e invocando novos elementos como a razão e a consciência pública contra as atrocidades dos sistemas punitivos. Forja-se, pela primeira vez na seara penal, a fronteira entre a justiça dos homens e

6 Foi filósofo, jurista e um dos últimos iluministas a propor a construção de um sistema de filosofia moral, não apenas formal e especulativa, mas com a preocupação radical de alcançar uma solução a prática exercida pela sociedade de sua época.

7 Foi um jurista e político liberal italiano. Ele foi um dos principais estudiosos do direito penal e defendia a abolição da pena de morte na Europa do século XIX.

8 Foi um jurista alemão. Foi o fundador da moderna doutrina do direito penal da Alemanha, com a teoria da dissuasão psicológica; foi o autor do Código Penal da Baviera de 1813.

a de Deus, delineando claramente o hiato entre crimes e pecados. A referida obra estabelece as leis como parâmetros únicos para regulação das relações e suplícios e, corajosamente para o período histórico, declara a inutilidade da pena de morte. Ele acreditava que a privação de liberdade gerava um efeito muito mais relevante socialmente do que a própria pena de morte, uma vez que a uma pessoa privada de sua liberdade faria com que a sociedade lembrasse todos os dias da conduta do transgressor e, portanto, teria um caráter inibitório muito mais eficaz.

É possível dizer, sobretudo, que as obras escritas por Beccaria muito provavelmente não existiriam sem a Accademia dei Pugni9. Grande parte do conteúdo de “Dos Delitos e Das Penas”, assim como o estímulo para escrevê-lo, vieram dos irmãos Verri. Apesar da longa parceria existente entre Beccaria e os irmãos Verri10, o rompimento entre eles aconteceu após a viagem do Marquês para Paris, onde o mesmo foi reconhecimento por toda a ilustração francesa. A partir de então, Alessandro e Pietro passaram a atacar Beccaria em suas correspondências, sempre com ácidas críticas a sua obra e a sua pessoa. Impressiona o teor das críticas feitas pelos irmãos Verri, relatadas por Calamandrei, que as define como “trinta anos de maledicentes correspondências”. Percebe-se que a verdadeira razão do rompimento é o êxito de “Dos Delitos e das Penas”. Em razão da ruptura supracitada, muito se discutiu acerca da autenticidade de “Dos Delitos e das Penas”, tendo alguns doutrinadores, inclusive, afirmado que os verdadeiros autores da obra seriam os irmãos Verri. Entretanto, não há o que se questionar quanto à autenticidade do livro, já que o próprio Pietro admitiu que Beccaria teria sido o autor: “O livro o fez Beccaria; qual-

9 Academia dos Punhos, cujo objetivo era combater as ideias conservadoras da época. Nos encontros intelectuais da Academia, Beccaria conheceu a crueldade do sistema penal vigente da época, graças aos relatos de Alessandro, que exercia o cargo de protetor dos encarcerados.

10 Apesar de a obra de Beccaria ter sido influenciada pelos irmãos Verri, houve o rompimento entre eles. Além dos irmãos Verri, destacadamente Pietro, Beccaria foi influenciado pelas ideias de Montesquieu e Rosseau.

quer pessoa que tenha sentido do estilo, tem de compreender que não é meu.”. Além disso, Pietro redigiu monção, em 1796, sugerindo que fosse erguido um monumento de reconhecimento ao Marquês, que já havia falecido.

Percebe-se, portanto, que não há que se falar em originalidade quanto às ideais de Beccaria, já que o Marquês apenas reproduziu aquilo que aprendeu com os irmãos Verri durante a sua passagem pela Accademia dei Pugni. Todavia, é impossível negar que o modo como Beccaria apresentou os princípios criminológicos em questão foi cuidadosamente primoroso, fato este que levou a obra à ascensão. Ainda que as ideias reproduzidas por Beccaria em “Dos Delitos e das Penas” fossem pouco originais, suas palavras foram cirúrgicas contra o sistema penal vigente à época, já que influenciaram diretamente diversas reformais penais, como, por exemplo, a abolição da tortura em diversos Estados: Rússia, em 1766, com a reforma penal empreendida por Catarina II; Áustria, em 1776, por ordem da imperatriz Maria Teresa; França, em 1780, por ordem de Luís XVI; etc. Salienta-se, por fim, que embora seja inegável a influência de Beccaria e de seus companheiros ideológicos nas reformas penais supracitadas, não se pode esquecer que os iluministas não foram teóricos herméticos, alheios ao que se passava a seu redor; muito pelo contrário, eram constantemente perseguidos pela dura realidade social. O ambiente era propício para o surgimento de tais ideias, de modo que tais reformas penais não eram fatos isolados, tampouco meramente decorrentes de obras iluministas. Havia uma tendência generalizada, uma convicção europeia predominante.

À vista disso, é possível inferir que, tanto os irmãos Verri, como o Beccaria, foram alguns dos principais responsáveis por difundir novas concepções de matriz iluminista no direito penal, estando seus pensamentos, críticas e proposições concentrados didaticamente em “Dos Delitos e das Penas”. Além de ter tido uma enorme repercussão à época de sua publicação, tal obra

influenciou, ainda, pensadores subsequentes, inclusive até a contemporaneidade.

Em sentido comum ao pensamento de Beccaria, em 1859, outra obra de sólida referência liberal foi publicada. Trata-se do Programma del Corso de Diritto Criminale, de autoria de Francesco Carrara (1907), um dos principais ícones históricos do direito penal italiano e cujo pensamento exerceu influência direta sobre a formulação do II Código Criminal Italiano, publicado em 1889.

O legado de Carrara obteve projeção e repercussão internacional, notadamente no tocante à concepção de crime como um ente exclusivamente jurídico e suas inúmeras manifestações e publicações contrárias à pena capital. Sobre isso afirma o autor:

Definido o crime como entidade jurídica, estabeleceu-se de vez o limite perpétuo da proibição; não poder reconhecer um crime, exceto naquelas ações que ofendem ou ameaçam os direitos dos associados. E como a lei não pode ser atacada senão por atos externos procedentes de uma vontade livre e inteligente, esta primeira Passagens. o conceito veio estabelecer a necessidade constante em todo crime de suas duas forças essenciais: inteligência e livre arbítrio; fato externo lesivo ao direito, ou perigoso ao mesmo (CARRARA, 1907, p. 12).

A noção de pena como repressão ao dano causado está fundamentada em dois pilares teóricos do universo jurídico: o jusnaturalismo e o contratualismo. O primeiro toma por pressuposto o direito como algo natural, imutável e universal. Além disso, concebe o homem como ser natural (indivíduo), a-histórico, desembaraçado de atravessamentos sociais e, portanto, autônomo. O segundo, compreende o Estado como fruto de um grande pacto firmado tacitamente entre os cidadãos que, em prol de sua segurança coletiva, cederiam parcelas de sua liberdade individual.

Assim, para a Escola Clássica o homem é um ser livre e, portanto, dotado de condições plenas para escolher entre o bem e o mal (livre arbítrio). Segundo este entendimento, se o homem comete um crime, o fato deve-se única e exclusivamente a uma escolha pessoal, não cabendo explicações outras (BARATTA, 2014). Esta linha de pensamento utilizava um método racionalista, partindo da observação geral para um fato específico, de forma que o ato-crime foi mais evidenciado do que o criminoso em si. Um progresso importante realizado nesse período foi a valorização da defesa do indivíduo contra as arbitrariedades do Estado, pois através da lei os indivíduos (as) sabiam o que podia fazer e o que não podia fazer, tendo segurança jurídica, pois, agora, crime é aquela conduta prevista em a lei.

Segundo (BECCARIA, 2003, p. 27) “as leis são as condições em que os homens isolados e independentes se uniram em sociedade, cansados de viver em um contínuo estado de guerra e de gozar de uma liberdade que não tinham certeza da utilidade de conservá-la”. Assim, o criminoso é um cidadão normal, dotado de livre arbítrio e que, ao delinquir, rompe o contrato social autorizador do seu convívio coletivo, afrontando, assim, todo o corpo social que o circunda, do qual deve ser reparado. Sua traição requer uma resposta do Estado defensor da sociedade, o qual deve lhe infringir um sofrimento que o faça “pagar” pelo mal cometido (natureza retributiva), evitando a reincidência e servindo de exemplo para que os demais não busquem o mesmo caminho (caráter intimidador). No temor do castigo se assentava a esperança de inibir ações refratárias ao pacto de convivência.

A teoria do Contrato do Contrato Social pressupõe a igualdade absoluta entre todos os homens. Sob a concepção de que o delinquente rompeu o pacto social, cujos termos supõe-se que tenha aceito, considera-se que se converteu em inimigo da sociedade.

Assim, o contratualismo11 fundamenta-se em três pressupostos básicos: 1) postula um consenso entre os homens racionais acerca da moralidade e da imutabilidade da atual distribuição de bens; 2) todo comportamento ilegal produzido em uma sociedade é patológico e irracional: comportamento típico de pessoas que, por seus defeitos pessoais, não podem celebrar contratos (daí, a ideia da pena como sanção para reabilitar o delinquente); 3) os teóricos do contrato social tinham um conhecimento especial dos critérios para determinar a racionalidade ou irracionalidade de um ato. Esses critérios seriam definidos através de um conceito de utilidade. Nas palavras de Bittencourt,

A teoria do Contrato Social representou um marco ideológico adequado para a proteção da burguesia nascente, insistindo, acima de tudo, em recompensar a atividade proveitosa e a castigar a prejudicial. Em outras palavras, não fez mais do que legitimar as formas modernas de tirania (2008, p. 33).

O contrato social, amparado da ideologia do liberalismo, era tido como expressão da absoluta liberdade humana. Conforme explica, (Rosa Del Olmo, 2004) dentro desse esquema, “o indivíduo que recusa a ordem social é um indivíduo que recusa ser livre e, portanto, é perverso. A perversão pode ter causas distintas, mas dá direito a obrigar o indivíduo a ser livre e em caso de rebeldia a tratá-lo como um animal irracional.

Assim, para Carrara crime é uma ofensa a lei decorrente do mal uso do livre arbítrio. Sendo a pena um conteúdo necessário do direito. É o mal que a autoridade pública inflige a um culpado por causa de seu delito. A pena é meio de tutela jurídica, desta forma, se o crime 11 É um modelo teórico criado para explicar o surgimento da sociedade. Esta teoria é baseada na ideia de que os seres humanos viviam em um estado pré-social, chamado de estado de natureza e abandonaram-no para firmar um pacto, o contrato social. As teorias do contratualismo surgem da necessidade de explicar o fato dos seres humanos terem se organizado em torno de sociedades regidas por leis criadas pelo Estado.

é uma violação do direito, a defesa contra este crime deverá se encontrar no seu próprio seio. A pena não pode ser arbitrária, desproporcional; deverá ser do tamanho exato do dano causado, deve se também retributiva, porém a figura do delinquente não é importante.

Conclui-se sobre as ideias da Escola Penal Clássica que o crime é uma violação do Direito, de forma que a defesa contra este ato provém do próprio ordenamento jurídico. A pena como meio de tutela jurídica deve ser retributiva e não pode ser arbitrária ou desproporcional. Por fim, o criminoso não se mostra como objeto primordial de estudo, tendo em vista que realiza o ato conscientemente utilizando o livre-arbítrio.

3. PARADIGMA DA INDIFERENCIAÇÃO/

DISCERNIMENTO DE MENORES EM CONFLITO COM A LEI

Cabe destacar ainda que neste período não existiam leis e penas específicas para as crianças e adolescentes infratores, que eram tratados da mesma forma que os adultos, caso já tivessem alcançado a idade mínima para serem consideradas culpados por seus atos.

No antigo Direito Romano12, no Direito Canônico13, no Direito Inglês14 do século XVI (ESCANDÓN, 2006) e nas Ordenações Filipinas15, vigentes no Brasil de 1603 a 1830 (SARAIVA, 2009), essa maioridade penal, ou idade da razão, correspondia aos sete anos de idade. Acima des-

12 É o nome que se dá ao conjunto de princípios, preceitos e leis utilizados na antiguidade pela sociedade de Roma e seus domínios.

13 É o conjunto de leis que rege a estrutura institucional da Igreja Católica Apostólica Romana. Ele regulamenta todos os segmentos da vida eclesiástica; sua organização, governo, ensino, culto, disciplina e práticas processuais.

14 É o sistema jurídico da Inglaterra e Gales e é a base da common law, um sistema legal.

15 As Ordenações Filipinas, ou Código Filipino, é uma compilação jurídica que resultou da reforma do código manuelino, por Filipe II de Espanha, durante o domínio castelhano. Ao fim da União Ibérica, o Código Filipino foi confirmado para continuar vigendo em Portugal por D. João IV.

ta idade, a criança já podia ser punida. Abaixo não, pois nesses anos iniciais se supunha que o sujeito não dispusesse de plena capacidade de discernimento e autodeterminação perante seus atos.

As condutas classificadas como crimes, pelas ordenações, coincidiam, segundo (SILVA, 2011), com os comportamentos considerados pecaminosos pela Igreja. Tal homologia, de acordo o mesmo autor, deveria ser encarada como uma das formas de expressão jurídica da superposição dos poderes secular e religioso.

A apenação, segundo o Capítulo V das Ordenações Filipinas, iniciava-se aos sete anos de idade. Até os dezessete, os menores estavam livres da pena de morte, entre essa idade e os vinte e um anos, eles deveriam ser submetidos ao sistema de “jovem adulto”. Neste havia a possibilidade de condenação a pena capital, ou, a depender das circunstâncias, a redução da pena. (ARRUDA, 2011; SARAIVA, 2009).

De acordo com Irene (RIZZINI, 2009), apesar da menoridade ter atuado como um atenuante, as crianças foram severamente punidas, no decorrer do período colonial.

O objetivo das penas, na opinião de Antônio Luiz Paixão (1987 apud SILVA, 2011), era o de “intimidar pelo terror”, motivo, pelo qual, as penas cruéis (inclusive a morte8) estariam associadas à uma série de títulos da lei. Entretanto, este objetivo, para outros autores, seria apenas o mais evidente. Muito mais do que a “intimidação pelo terror”, a rigidez punitiva visava a legitimação do sistema de dominação. (SILVA, 2011) Dito de outra maneira, a previsão das penas cruéis, em vários títulos, expressava a função política que elas desempenhavam e que transcendia o eixo punitivo-intimidador.

A manutenção do sistema de dominação era o resultado positivo das práticas punitivas que não se limitavam a castigar ou “intimidar pelo terror”. Como afirmou Michael Foucault, “as medidas punitivas não são simplesmente mecanismos ‘negativos’ que permitem reprimir, im-

pedir, excluir, suprimir; [...] elas estão ligadas a toda uma série de efeitos positivos e úteis que elas têm por encargo sustentar [...]” (FOUCAULT, 2000, p. 27).

O encarceramento, no período colonial, não se configurava como uma forma de pena. Existiam cadeias, mas estas eram utilizadas apenas como espaços de custódia9, nos quais, os presos ficavam à disposição da justiça, aguardando o término do julgamento ou a execução da punição. (AGUIRRE, 2009).

[...] as cadeias não eram instituições demasiadamente importantes dentro dos esquemas punitivos implementados pelas autoridades coloniais. Na maioria dos casos, tratava-se de meros lugares de detenção para suspeitos que estavam sendo julgados ou para delinquentes já condenados que aguardavam a execução da sentença. Os mecanismos coloniais de castigo e controle social não incluíam as prisões como um de seus principais elementos. [...] Localizadas em lugares fétidos e inseguros, a maioria das cadeias coloniais não mantinha sequer um registro dos detentos, das datas de entrada e saída, da categoria dos delitos e sentenças. [...] o encarceramento de delinquentes durante o período colonial foi uma prática social [...] destinada simplesmente a armazenar detentos, sem que se tenha implementado um regime punitivo institucional que buscasse a reforma dos delinquentes. (AGUIRRE, 2009, p.38-39).

Não obstante, é importante ressaltar que havia outro aspecto, presente na maioria dos códigos penais retribucionistas do século XIX: a imputabilidade relativa. Tratava-se de um intervalo etário, no qual caberia ao juiz decidir, intuitivamente, sobre o discernimento do réu. Desse modo, tem-se que o magistrado decidia sobre a condenação ou a absolvição. No Brasil, o Código Penal do Império16, de 1830, estabelecia

16 O Código Criminal do Império do Brasil foi sancionado pela lei de 16 de dezembro de 1830, substituindo o livro V das Ordenações Filipinas (1603), codificação penal portuguesa

esse intervalo entre os sete e os quatorze anos; o Código Penal da República, de 1890, entre nove e quatorze. Uma vez sentenciada à prisão, a criança se misturava, indistintamente, com os adultos do cárcere (GOMES, 2009).

Na aplicação das penas, levava-se em conta o fato de as pessoas serem formalmente desiguais. A sociedade colonial era organizada hierarquicamente e isso implicava em tratamentos distintos para cada categoria social. Os infratores de posições elevadas eram imunes a penas corporais, sendo castigados, em geral, com penas leves, já os de categoria social inferior eram submetidos a penas pesadas e humilhantes. A posição social ocupada influía, na verdade, desde o início do processo judicial, na medida em que um crime poderia não ser avaliado como tal, a depender de quem o tivesse cometido. (SILVA, 2011).

[...] a noção de crime implicava a ruptura das normas reais e dos princípios cristãos, entretanto, ressaltamos que essa conduta tenderia a ser interpretada de modo tão mais ofensivo quanto menor fosse a categoria social do infrator. Enfim, no direito pré-moderno, a conduta inimiga que desafiava o poder soberano sujeitava o seu autor a punições cruéis que se intensificariam na proporção da desqualificação social do criminoso e que se atenuariam segundo as qualidades do infrator. (SILVA, 2011, p.25).

As medidas punitivas privadas, tais como as previstas pelas Ordenações, visavam castigar, intimidar, mas, sobretudo, permitir a manutenção do sistema de dominação vigente. Além dos objetivos comuns, elas compartilhavam de um mesmo espaço de atuação, o corpo, “objeto” tangível, sobre o qual se aplicavam uma boa parte das punições.

Os castigos físicos parecem mesmo ter feito parte do ethos da sociedade colonial. Esses não

que continuou em vigor depois da Independência (1822), seguindo determinação da Assembleia Nacional Constituinte de 1823.

foram empregados apenas pelo poder colonial e pelos senhores de terras, mais também, como esclarece Mary Del Priori (1999), foram utilizados pelo patriarca, no espaço privado da casa. No ambiente familiar, os castigos físicos eram práticas habituais, sendo administrados na educação dos filhos. “As ‘disciplinas’, os bolos e beliscões revezavam-se com as risadas e mimos.” (DEL PRIORI, 1999, p. 98).

O castigo físico em crianças não era nenhuma novidade no cotidiano colonial. Introduzido, no século XVI, pelos padres jesuítas, para horror dos indígenas que desconheciam o ato de bater em crianças, a correção era vista como uma forma de amor. O “muito amor” devia ser repudiado. Fazia mal aos filhos. [...] O amor de pai devia inspirar-se naquele divino no qual Deus ensinava que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida”. Vícios e pecados, mesmo cometidos por pequeninos, deviam ser combatidos com “açoites e castigos”. (DEL PRIORI, 1999, p. 97).

Na segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das chamadas Aulas Régias, à palmatória passou a ser utilizada pelos professores como instrumento no processo educativo. (DEL PRIORI, 1999).

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme foi abordado, não existiu propriamente uma Escola Clássica, que foi assim denominada por Ferri, um positivista). Os, assim denominados, Clássicos, partiram de duas teorias distintas: o jusnaturalismo, baseava-se no direito natural, que decorria da natureza eterna e imutável do ser humano, e o contratualismo (contrato social ou utilitarismo, de Rousseau), em que o Estado surge a partir de um grande pacto entre os homens, no qual estes cedem parcela de sua liberdade e direitos em prol da segurança coletiva.

Cabe destacar ainda que a burguesia em as-

censão procurava afastar o arbítrio e a opressão do poder soberano com a manifestação desses seus representantes através da junção das duas teorias, que, embora distintas, igualavam-se no fundamental, isto é, a existência de um sistema de normas anterior e superior ao Estado, em oposição à tirania e violência reinantes.

Está-se diante de um Direito Penal que proclama a construção de uma sociedade justa, não apenas punindo o agente do delito, mas também evitando a prática de crimes, pois uma sociedade justa e fraterna não é aquela que pune os criminosos, mas, sobretudo, aquela que evita que os crimes sejam praticados.

Tal “escola” situa-se na chamada fase pré-científica da Criminologia, pois vale-se do método abstrato, dedutivo e formal. A etapa pré-científica da criminologia foi marcada por uma abordagem acidental e superficial do delito, e tinha duas formas de abordagens: a de caráter filosófico, ideológico ou político e as de natureza empírica.

A escola clássica tem por objeto de estudo o delito, visto como fato individual, isolado, mera infração à lei. A aplicação da pena surge como consequência lógica do descumprimento ao ordenamento jurídico e tem como tração marcante a ideia de livre arbítrio. O homem é visto como um ser racional e livre, e a teoria do pacto social é tida como fundamento da sociedade e do poder.

Os clássicos não se interessam pelos os motivos que levam à criminalidade, não se preocupando com a etiologia do fenômeno criminoso sendo incapazes de fornecer aos poderes públicos as informações necessárias para um programa político-criminal de prevenção e luta contra o crime. Ainda neste período, não existiam leis e penas específicas para as crianças e adolescentes infratores, que eram tratados da mesma forma que os adultos, caso já tivessem alcançado a idade mínima para serem considerados culpados por seus atos.

Uma vez sentenciada à prisão, a criança se misturava, indistintamente, com os adultos do cárcere. O período da indiferenciação perdura até o final do século XIX, embora há bastante tempo se verifiquem incipientes exemplos de atenuação penal, em decorrência da branda idade do réu.

Espera-se que o objeto de estudo desenvolvido e as conclusões a que chegou à pesquisa oportunizem ao estudioso do Direito Penal uma formação crítico-humanística, despertando novos estudos acerca dos princípios que regem o ordenamento jurídico-penal brasileiro.

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COMO É DETERMINADA A BASE DE CÁLCULO DO IMPOSTO SOBRE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI NOS CASOS DE INTEGRALIZAÇÃO DE BENS IMÓVEIS NO CAPITAL SOCIAL DE HOLDINGS E SOCIEDADES EMPRESÁRIAS À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS SUPERIORES? 04

O presente estudo traz à discussão a incidência do ITBI nos casos de integralização de bens imóveis no capital social de sociedades empresárias e Holding, assunto que é objeto de controvérsia nos municípios brasileiros, principalmente em relação à sua base de cálculo e ao momento do pagamento. As Holdings revelam-se como estrutura cada vez mais presente na sociedade contemporânea, especialmente por facilitar a governança corporativa, gestão patrimonial e organização sucessória, impactando diretamente o direito público e privado Palavras-chave

Integralização de bens imóveis no capital social de sociedades empresárias e Holdings - Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI - Imunidade - Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF - Superior Tribunal de Justiça - STJ.

Felipe Gonsales

Advogado tributarista em projetos de consultoria planejamento tributário, e advocacia contenciosa administrativa e judicial voltada para implantação de teses visando a redução da carga tributária, e administração de passivo tributário.

Júlia Herrera Firetti

Advogada formada em Direito pela Universidade Paulista - UNIP, em 2015. Concluiu a Pós-Graduação em Processo Civil pela Escola Superior de Advocacia - ESA em 2018. Coordenadora do Departamento Societário de empresa de Consultoria Empresarial.

1. INTRODUÇÃO

A Holdings se estrutura de maneira concisa seguindo as seguintes etapas: (i) criação de uma sociedade empresarial, geralmente de responsabilidade limitada, composta por membros de um núcleo familiar; (ii) incorporação de ativos, tangíveis e/ou intangíveis, como bens móveis e/ ou imóveis, ao patrimônio da Holdings; (iii) estabelecimento de uma governança societária para garantir o controle patrimonial e político a um sócio específico, conforme as necessidades do caso concreto; e (iv) transferência ao longo do tempo, ou de forma imediata, das cotas dos sócios a outros membros da família (geralmente dos ascendentes para os descendentes/herdeiros legais), de modo a transmitir também o patrimônio contido na Holdings1.

Nesse contexto, ao desenvolver o planejamento (fases “ii” e “iv”), pode surgir a incidência de dois tributos: o Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD ou ITCD).

O Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), em linhas gerais, incide quando há a transferência “onerosa” de um bem imóvel de uma pessoa para o patrimônio de outra. No contexto de uma Holdings, essa incidência pode ocorrer quando um indivíduo transmite um bem imóvel para a empresa - como parte da integralização de capital.

Já o Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD ou ITCD) incide quando há a transmissão de um bem, seja ele móvel ou imóvel, por meio de doação ou herança, para outra pessoa. No cenário da Holdings, o ITCMD incide quando um dos sócios realiza a doação total ou parcial de suas cotas para outro sócio.

Todavia, o foco central deste artigo recai sobre o ITBI e sua complexidade quanto à sua incidência

1 CONJUR. Ana Paula Babbulin: Planejamento sucessório e holding familiar. Disponível em: https://www.conjur. com.br/2022-mar-20/ana-paula-babbulin-planejamentosucessorio-holding-familiar. Acesso em: 29 jul.2023.

ou não. Essa questão merece uma análise mais detalhada para compreendermos os contornos dessa tributação e suas implicações no âmbito das operações imobiliárias e societárias2

2. DESENVOLVIMENTO

O Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis – ITBI é um tributo que gera bastante controvérsia no cenário das políticas fiscais estabelecidas pelos municípios brasileiros.

São vários os fatores que turvam a inteligência dos aspectos das regras de incidência tributária do imposto, fomentando acirrados embates entre os contribuintes e os Fiscos municipais, que se iniciam nas esferas administrativas, e, invariavelmente, são solucionadas pelo Poder Judiciário.

As discussões envolvem, principalmente, os aspectos temporais (quando o imposto deve ser recolhido?) e quantitativo (qual a base de cálculo a ser utilizada?) da hipótese de incidência tributária, e, frequentemente, desbordam para questões registrais (em qual momento o imposto deve ser recolhido? Na lavratura da escritura pública? No momento do registro na matrícula?).

Dadas as múltiplas controvérsias que orbitam o assunto, buscaremos, por meio do presente artigo, trazer à tona a discussão sobre qual a efetiva base de cálculo do ITBI nos casos de integralização de bem imóvel no capital social de sociedades empresárias e Holdings à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

O Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis e de Direitos a ele Relativos - ITBI é imposto de competência municipal, que incide sobre a transmissão de bens “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, da propriedade ou domínio

2 MIGALHAS. Holding e ITBI: a consolidação de um novo entendimento. Migalhas, São Paulo, 1 set. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/387535/holding-e-itbia-consolidacao-de-um-novo-entendimento. Acesso em: 29 jul. 2023.

útil de bens imóveis e de direitos a eles relativos, consoante infere-se do art. 156, II da Constituição Federal.

Nesta linha, o § 2º, inciso I do artigo 156 da Constituição Federal, dispõe que não incide o referido imposto de competência municipal, quando da integralização de bens imóveis no capital social de pessoa jurídica (transmissão de bens e/ou direitos):

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

(...)

II - transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

(...)

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;”3

Regulamentando o dispositivo constitucional, o Código Tributário Nacional – CTN estabelece, em seus artigos 36, inciso I e 37, § 1º, os requisitos necessários para afastar a incidência do imposto nos casos em que os bens imóveis forem destinados à integralização do capital social:

“Art. 36. Ressalvado o disposto no artigo seguinte, o imposto não incide sobre a transmissão dos bens ou direitos referidos no artigo anterior:

3 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ constituicao.htm: acesso em 29/09/2023, às 11h48.

I - quando efetuada para sua incorporação ao patrimônio de pessoa jurídica em pagamento de capital nela subscrito;

Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.

§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.

§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.

§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.

§ 4º O disposto neste artigo não se aplica à transmissão de bens ou direitos, quando realizada em conjunto com a da totalidade do patrimônio da pessoa jurídica alienante.”

É de praxe observarmos que os argumentos utilizados pelos municípios para cobrança do imposto são basicamente dois: (i) que a pessoa jurídica a quem se está transferindo determinado bem imóvel tenha atividade preponderantemente imobiliária, pelo simples fato de constar o objeto social da mesma o Código Nacional de Atividade Econômica - CNAE de natureza imobiliária, utilizando-se da parte final do inciso I, § 2º, do artigo 156, da Constituição Federal; e (ii)

que ”a imunidade em relação ao Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI), prevista no inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”, em razão do julgado de agosto de 2020 pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário nº 796.376 (Tema 796), com repercussão geral.

Na primeira circunstância apresentada, a análise correta a ser feita pelo município deverá, no entendimento dos Autores deste artigo, seguir o disposto no artigo 37 do Código Tributário Nacional (CTN), que estabelece os critérios para aferir a preponderância de atividades imobiliárias para aferir a incidência ou não do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) quando a pessoa jurídica possui receita operacional decorrente de atividades imobiliárias, como a comercialização ou aluguel de propriedades imobiliárias ou a transferência de direitos relacionados a elas, embora concordemos que seja possível a discussão judicial pelos motivos a seguir expostos.

Ou seja, em linhas gerais, para determinar a preponderância de receitas operacionais de natureza imobiliária, existem dois critérios que consideram o tempo de atividade da sociedade empresarial ou Holdings:

(i) A atividade imobiliária será considerada preponderante quando mais de 50% (cinquenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subsequentes à aquisição, provenha de transações relacionadas à venda, locação ou cessão de direitos sobre propriedades imobiliárias; e (ii) Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, a preponderância será avaliada considerando os 3 (três) primeiros anos após a data da aquisição.

Caso a preponderância mencionada seja constatada, o imposto devido será calculado com base na legislação vigente à data da aquisição,

considerando o valor do bem ou direito nessa data.

Apesar disso os municípios, muitas vezes, consideram que apenas pelo fato de constar no objeto social da sociedade ou Holdings, ou no Comprovante de Inscrição e de Situação Cadastral da Receita Federal algum Código Nacional de Atividade Econômica - CNAE relacionado à atividade imobiliária, há a incidência do ITBI na hipótese de integralização de bem imóvel no capital social, utilizando-se como fundamento para sua cobrança a parte final do Inciso I do § 2º, do artigo 156, da Constituição Federal.

Apesar disso, não se pode perder de vistas o voto do Ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento do RE nº 796.376, que resultou na fixação do Tema 796. Em sua ratio decidendi posicionou-se, no sentido de que, para fins de incidência do ITBI, a preponderância das atividades imobiliárias diz respeito apenas às figuras de incorporação, cisão ou fusão, aplicando-se de forma irrestrita a imunidade nos casos de integralização do capital social, ainda que a empresa possua como atividade econômica preponderante as atividades de natureza imobiliária, conforme é possível observar:

“É dizer, a incorporação de bens ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, que está na primeira parte do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF/88, não se confunde com as figuras jurídicas societárias da incorporação, fusão, cisão ou extinção de pessoas jurídicas referidas na segunda parte do referido inciso I.

Nesses últimos casos, há, da mesma forma, incorporação de bens, mas que decorre da ‘incorporação que é uma operação pela qual uma ou mais sociedades são absorvidas por outra, que lhes sucede em todos os direitos e obrigações’ (art. 227 da Lei 6.404/1976 – Lei de Sociedades Anônimas); cisão – operação pela qual uma sociedade transfere parte de seu patrimônio

para uma ou mais empresas (art. 229 da Lei das S.A); ou fusão – operação pela qual se unem duas ou mais sociedades para formar uma nova sociedade que lhe sucederá em todos os direitos e obrigações (art. 228 da Lei das S.A.).

E, todas essas hipóteses, há incorporação do patrimônio imobiliário de uma sociedade para outra, mas sem qualquer relação com incorporação (integralização) referida na primeira parte do citado inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF, que alude à transferência de bens para integralização do capital.

Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I – ‘nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil’ – revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão ‘nesses casos’ não alcança o ‘outro caso’ referido na primeira oração do inciso I do § 2º, do art. 156 da CF.”

O voto foi acompanhado pelos Ministros Gilmar Mendes, Luiz Fux, Rosa Weber, Dias Toffoli, Roberto Barroso e Celso de Mello, deixando claro que a hipótese de imunidade tributária relativa à integralização de bem imóvel no capital social, independe da atividade econômica desenvolvida pela empresa; fator este a ser levado em consideração apenas nas operações de incorporação de imóveis aos patrimônios de sociedades sem aumento de capital, isto é, apenas nos casos de fusão, cisão ou incorporação.

Apesar disso, o objeto central do RE 796.376 foi dimensionar a extensão da imunidade em integralização de capital social no qual o valor dos

imóveis integralizados superasse o valor do capital a ser subscrito, razão pela qual não vinculou a orientação dos Tribunais sobre o assunto, apesar de sinalizar o entendimento preponderante na Suprema Corte.

Dessa forma, entendemos ser possível questionar a incidência do ITBI nos casos de integralização de bens imóveis no capital social de empresas ou Holdings, ainda que possua atividade preponderantemente imobiliária.

Em prosseguimento, é possível notar que os órgãos municipais quando não se beneficiam ao exigir o pagamento integral do ITBI com base no valor total do imóvel a ser transferido, optam por cobrar o ITBI sobre a diferença entre o valor declarado do imóvel, geralmente associado ao valor nominal (valor contábil para fins de Imposto de Renda), e seu valor venal.

Nesse sentido é o entendimento das Câmaras especializadas em tributos municipais do Estado de São Paulo:

APELAÇÃO – MANDADO DE SEGURANÇA

– ITBI – IMUNIDADE - Integralização de imóvel ao capital social – Holding familiar – Administração dos bens próprios e participação no capital de outras sociedades - Impossibilidade de aferição da atividade preponderante – Ônus probatório que incumbe ao Fisco, após o decurso do período balizador – CTN, art. 37, parágrafos 1º, 2º e 3º - Abuso de direito não evidenciado - Implementação da holding para o planejamento tributário da sociedade - Inexistência proibição – Presunção descabida – Imunidade Reconhecida - Sentença reformada. Recurso provido, com possibilidade de verificação posterior para efeito do artigo 37, parágrafos 1º, 2º e 3º, do CTN. (TJ-SP - AC: 10013510520188260246 SP 1001351-05.2018.8.26.0246, Relator: Octavio Machado de Barros, Data de Julgamento: 25/11/2021, 14ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 26/11/2021)

“Tributário Apelação Ação Anulatória ITBI

Município de Arujá. Insurgência contra a r. sentença que julgou procedente a ação. Apelo do Município. Integralização de imóveis ao capital social - Imunidade nos termos do artigo 156, § 2º, I da Constituição da Republica. Pretensão de reconhecimento da imunidade do ITBI de sociedade recém- constituída Aplicabilidade do art. 37, § 2º, do Código Tributário Nacional Incidência do tributo sujeita a condição temporal Precedentes desta C. Câmara Possibilidade de lançamento complementar ao fim do período de três anos da aquisição dos imóveis Necessidade, contudo, de comprovação contábil da preponderância da atividade imobiliária. No caso dos autos, o contrato social da empresa, com a descrição dos imóveis a serem adquiridos para a integralização de capital, foi registrado em 03/02/2017 na Junta Comercial, que é a data inicial do prazo trienal a ser observado antes do lançamento do ITBI Inexigibilidade do tributo reconhecida Precedentes desse E. Tribunal de Justiça. Honorários recursais [...] Sentença mantida Recurso desprovido”. (TJSP; Apelação Cível 1002280-59.2018.8.26.0045; Relator (a): Eurípedes Faim; Órgão Julgador: 15a

Câmara de Direito Público; Foro de Arujá - 1a Vara; Data do Julgamento: 12/02/2021; Data de Registro: 12/02/2021)

“Apelação Cível - Mandado de Segurança - ITBI - Município de São Sebastião - Integralização de imóvel a capital social - Pretendida não incidência do tributo municipal, nos termos do art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal - Procedência - Impossibilidade de se aferir a atividade preponderante da empresa impetrante, conquanto seu objeto social tenha incluído a compra/venda e o aluguel de imóveis próprios - Inteligência do art. 37, § 2º, do Código Tributário NacionalSentença reformada - Ordem concedida - Recurso provido”. (TJSP; Apelação Cível 1003336-19.2019.8.26.0587; Relator (a): Silvana Malandrino Mollo; Órgão Julgador: 14a Câmara de Direito Público; Foro de

São Sebastião - 1a Vara Cível; Data do Julgamento: 19/05/2020; Data de Registro: 19/05/2020)”

Muito se discute a respeito da amplitude da imunidade conferida pela Constituição Federal nos casos de integralização de bem imóvel no capital social de pessoa jurídica, e o principal ponto de controvérsia reside justamente em sua base de cálculo. Dispõe o art. 38 do Código Tributário Nacional:

“Art. 38. A base de cálculo do imposto é o valor venal dos bens ou direitos transmitidos.”

De plano, é preciso diferenciar o valor venal para fins da incidência do IPTU, do valor venal para fins da incidência do ITBI. O art. 33 do Código Tributário Nacional define a base de cálculo do IPTU, como sendo o valor venal:

“Art. 33. A base do cálculo do imposto é o valor venal do imóvel.”

A partir de uma análise superficial, é fácil incorrer na equivocada interpretação de que a base de cálculo para ambos os impostos é a mesma. Apesar disso, o Ministro Gurgel de Faria, do Superior Tribunal de Justiça, em seu voto no julgamento do Recurso Especial nº 1.937.821/SP4, de forma bastante didática, trouxe a distinção nos termos seguintes:

“a) a base de cálculo do ITBI está vinculada à do IPTU?

A resposta é negativa.

Não obstante a lei se refira como base de cálculo do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e do ITBI o ‘valor venal’, a apuração desse elemento quantitativo difere

4 STJ. Recurso Especial no 1.937.821-SP. Primeira Seção. Rel. Min. Gurgel de Faria. Julgado em 24 de fevereiro de 2022. https://processo.stj.jus.br/processo/ julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_ tipo=91&documento_sequencial=144784493&registro_ numero=202000120791&peticao_numero=&publicacao_ data=20220303&formato=PDF. Acesso em: 29/07/2023, às 13h10.

em relação aos dois impostos, notadamente diante da distinção existente entre os fatos geradores e a modalidade de lançamento de cada um deles.

No IPTU, tributa-se a propriedade, lançando-se de ofício o imposto tendo por base de cálculo a Planta Genérica de Valores aprovada pelo Poder Legislativo local, que considera aspectos mais amplos e objetivos como, por exemplo, a localização e a metragem do imóvel.

Já no ITBI, a base de cálculo deve considerar o valor de mercado do imóvel individualmente considerado, que, como visto, resulta de uma gama maior de fatores, motivo pelo qual o lançamento desse imposto se dá, originalmente e via de regra, por declaração do contribuinte, ressalvado o direito da fiscalização tributária de revisar o quantum declarado, por meio de regular instauração de processo administrativo.

Em face disso, tem-se a impossibilidade de vinculação da base de cálculo do ITBI à estipulada para o IPTU, nem mesmo como piso de tributação, pois, repita-se, o valor adotado para fins de IPTU considera, apenas, os critérios fixados na Planta Genérica de Valores, que ‘são padrões de avaliação de imóveis em consonância com a metragem e com outros fatores, tais como localização, acabamento e antiguidade, ou seja, consistem em presunções relativas, no contexto da praticabilidade tributária, que auxiliam na fixação da base de cálculo desse imposto’ (STF, ARE 1245097 RG, relator: MINISTRO PRESIDENTE, Tribunal Pleno, julgado em 09/04/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-102 DIVULG 2704-2020 PUBLIC 28-04-2020).

Tais padrões são gerais e, por isso, embora facilitem a arrecadação, desconsideram a realidade de cada operação de transmissão da propriedade imobiliária efetivamente realizada, não refletindo, portanto, o real valor de mercado da coisa.”

Em suma, para fins de IPTU, o valor venal é o resultado da estimativa realizada pela Fazenda Municipal, com base em elementos objetivos e concretos existentes em seus cadastros acerca de pesquisas no local, levando em consideração imóveis com as mesmas características do imóvel em discussão, desprezando as características subjetivas do negócio.

Em contrapartida, para fins de ITBI, o valor venal é necessariamente o valor do negócio realizado, onde até os fatores subjetivos podem interferir na fixação do preço, como, por exemplo, a existência de benfeitorias, estado de conservação dos interesses pessoais do vendedor (necessidade da venda para despesas urgentes, mudança de investimentos, etc.) e do comprador (escassez do imóvel na região, proximidade com o trabalho e/ou com familiares, etc).

Na mesma esteira, é frequente observar que os municípios consideram como base de cálculo o valor venal de referência, que consiste em valor previamente fixado pelo fisco municipal como parâmetro para a fixação de base de cálculo do ITBI. Apesar disso, o Ministro Gurgel de Faria, em seu voto, igualmente concluiu pela ilegalidade, trazendo as seguintes ponderações em seu voto:

“b) É legítima a adoção de valor venal de referência previamente estipulado pelo fisco municipal como parâmetro para a fixação da base de cálculo do ITBI?

Essa resposta também é negativa.

De início, cabe refutar a alegação da municipalidade recorrente de que a prévia adoção do valor venal de referência não modifica a modalidade de lançamento do imposto, que, segundo a edilidade, continuaria sendo por homologação.

Como dito antes, o lançamento do ITBI se dá por declaração ou por homologação.

No caso, diversamente do afirmado pelo município recorrente, a sua tributação do

ITBI não se dá por homologação, visto que não há pagamento antecipado do imposto sem prévio exame do fisco, mas, ao contrário disso, a Administração impõe ao contribuinte o valor do crédito a ser recolhido.

Em verdade, ao fixar a base de cálculo com lastro em valor de referência previamente estabelecido, o fisco busca, de fato, realizar o lançamento de ofício do imposto, o qual, todavia, está indevidamente amparado em critérios que foram por ele escolhidos unilateralmente e que apenas revelariam um valor médio de mercado, de cunho meramente estimativo, visto que despreza as peculiaridades do imóvel e da transação que foram quantificadas na declaração prestada pelo contribuinte, que, como cediço, presume-se de boa-fé.

Além disso, a adoção desse valor de referência como primeiro parâmetro para fixação da base de cálculo do ITBI, com a inversão do ônus da prova ao contribuinte para demonstrar o contrário, subverte o procedimento instituído no art. 148 do CTN, pois, a toda evidência, resulta em arbitramento da base de cálculo sem prévio juízo quanto à fidedignidade da declaração do sujeito passivo.

Esse denominado valor venal de referência, ou equivalente, quando muito, poderá justificar a ação fiscal para apurar a veracidade da declaração prestada, mas, em hipótese alguma, pode servir para antecipar tal juízo, porquanto, além de não abranger todas as áleas definidoras do valor de mercado daquele específico imóvel, acaba por subtrair a garantida do contraditório assegurada ao contribuinte, cujo exercício pressupõe a prévia instauração de regular processo administrativo.”

Ao fim do julgamento, o Superior Tribunal de Justiça fixou a seguinte tese, por meio do Tema 1.113:

“a) a base de cálculo do ITBI é o valor do

imóvel transmitido em condições normais de mercado, não estando vinculada à base de cálculo do IPTU, que nem sequer pode ser utilizada como piso de tributação;

b) o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, que somente poder ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração do processo administrativo próprio (art. 148 do CTN);

c) o Município não pode arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valor de referência por ele estabelecido unilateralmente.”

Assim, para fins de definição da base de cálculo do ITBI, nos casos de operação de transmissão de bens inter vivos, não pode a Fazenda Municipal lançar de ofício o imposto sobre a diferença entre o valor negociado entre as partes, e o valor venal para fins de IPTU, ou valor venal de referência, na medida em que a declaração do valor negociado pelas partes goza de presunção de boa-fé.

A Fazenda Municipal, caso verifique que o preço pago pelo adquirente do imóvel não reflita as condições normais de mercado, ou que existem indícios de simulação do preço no negócio jurídico, pode, motivadamente, instaurar procedimento administrativo fiscal para apurar a real base de cálculo do imposto para então arbitrar o valor do imposto devido, assegurando ao contribuinte o contraditório e a ampla defesa, conforme prescreve o art. 148 do Código Tributário Nacional:

Art. 148. Quando o cálculo do tributo tenha por base, ou tome em consideração, o valor ou o preço de bens, direitos, serviços ou atos jurídicos, a autoridade lançadora, mediante processo regular, arbitrará aquele valor ou preço, sempre que sejam omissos ou não mereçam fé as declarações ou os esclarecimentos prestados, ou os documentos expedidos pelo sujeito

passivo ou pelo terceiro legalmente obrigado, ressalvada, em caso de contestação, avaliação contraditória, administrativa ou judicial.

Feita essa análise a despeito da base de cálculo do ITBI, é preciso tecer algumas considerações. O precedente firmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) por meio do Recurso Especial nº 1.937.821/SP, que resultou no Tema 1.113, trouxe como pano de fundo uma operação de compra e venda entre particulares. O que os Autores propõem por meio do apresente artigo é a extensão dessa interpretação, por meio da analogia, aos casos de integralização dos bens imóveis ao capital social de sociedades empresárias e Holdings, conciliando-o ao entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário nº 796.376 (Tema 796).

Portanto, chegamos ao seguinte questionamento: e nos casos de integralização de bem imóvel no capital social de sociedade empresária e Holdings? Deve ser considerado o valor contábil (informado na Declaração de Imposto de Renda Pessoa Física – DIRPF, ou Declaração de Imposto de Renda Pessoa Jurídica – DIRPJ), ou o valor venal do imóvel?

E mais: sendo o imóvel integralizado por seu valor contábil no capital social da sociedade empresária, pode a Fazenda Municipal constituir o crédito de ITBI sobre a diferença deste valor e do valor venal, ou ainda do valor venal de referência?

O Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário com Repercussão Geral nº 796.376, por meio do voto vencedor do Ministro Alexandre de Moraes, fixou o Tema 796, no seguinte sentido:

“Tema 796. A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”

No caso concreto, a empresa contribuinte pretendia integralizar um capital social de R$ 24.000,00 e, para tanto, utilizou um total de 17 imóveis, no valor de R$ 802.724,00. Requereu à Prefeitura Municipal a emissão de guia de Imposto de Transmissão de Bens imóveis (ITBI), com imunidade integral na transferência dos bens.

A tese sustentada pelo Contribuinte foi a de que a imunidade alcançaria o valor da subscrição do capital social (R$ 24.000,00), e também o excedente que formaria a reserva de capital.

O Ministro Marco Aurélio, relator do caso, concluiu que a finalidade da imunidade prevista no art. 156, § 2º, inciso I da Constituição Federal, é facilitar o trânsito jurídico de bens considerado o ganho social decorrente do desenvolvimento nacional, reconhecendo a imunidade integral sobre a integralização, ainda que excedesse o valor do capital social:

“As ressalvas seriam duas: imunidade na incorporação ao capital de sociedades e dedução, do ITBI, do valor devido a título de Imposto sobre a Renda, benefício esse não mantido na Carta de 1988.

A razão de ser da imunidade – e nada surge sem causa, princípio lógico e racional do determinismo – é facilitar o trânsito jurídico de bens, considerado o ganho social decorrente do desenvolvimento nacional, objetivo fundamental da República – artigo 3º, inciso III, da Lei Maior.

Embora, ordinariamente, a contrapartida dos sócios se exprima na figura do capital social, nem sempre isso ocorre, seja em razão da vontade, seja em consequência de fatores econômicos. Nesses casos, o ágio alimentará outra conta do patrimônio líquido, chamada reserva de capital.

(...)

O ágio na subscrição de cotas ou ações representa investimento direto em sociedade empresária, tanto quanto a integra-

lização de capital pura e simples, devendo receber idêntico tratamento. É consagrada a noção: onde houver o mesmo fundamento, aplica-se o mesmo direito.

E nem se diga ter o constituinte, ao lançar a expressão ‘em realização de capital’, afastando a interpretação teleológica ora proposta. Mediante a previsão, buscou-se manter a incidência do ITBI em outras formas de aquisição da propriedade, como a dação em pagamento e a compra e venda – situações nas quais os bens se incorporam ao patrimônio da pessoa jurídica, ausente realização de capital.”

Ao fim, propôs a seguinte tese: “Revela-se imune, sob o ângulo tributário, a incorporação de imóvel ao patrimônio de pessoa jurídica, ainda que o valor total exceda o limite do capital social a ser integralizado”.

No entanto, o Ministro Alexandre de Morais abriu divergência para não conferir interpretação extensiva à imunidade, limitando-a ao valor a ser subscrito no capital social, no que foi acompanhado pela maioria dos Ministros:

“Ainda que o preceito constitucional em apreço tenha por finalidade incentivar a livre iniciativa, estimular o empreendedorismo, promover a capitalização e o desenvolvimento das empresas, não chega ao ponto de imunizar imóvel cuja destinação escapa da finalidade da norma.

No caso concreto, a diferença entre o valor do capital social e os imóveis incorporados é de R$ 778.724,00. É de indagar-se a razão pela qual uma empresa, cujo capital social é de R$ 24.000,00, pretende constituir uma reserva de capital em montante tão superior ao seu capital, e, sobretudo, livre do pagamento de imposto.

Assim, não cabe conferir interpretação extensiva à imunidade do ITBI, de modo a alcançar o excesso entre o valor do imóvel incorporado e o limite do capital social a ser integralizado.”

Portanto, a tese que prevaleceu, fixada por meio do Tema 796, foi a de que “A imunidade em relação ITBI, prevista no inciso I do § 2º do art. 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado.”

Observe-se que, no contexto do julgamento do RE nº 796.376, em momento algum discutiu-se a questão da base de cálculo do ITBI: se o valor contábil (admitido pela legislação do Imposto de Renda), ou se o valor venal ou de referência. A discussão restringiu-se a delimitar a abrangência da imunidade do imposto nas hipóteses de integralização do capital em que ocorre a subscrição de ações ou cotas com ágio. Isto é, o valor dos bens imóveis incorporados supera o valor nominal nas cotas a serem subscritas, e, o excedente, é destinado à reserva de capital.

Conforme discorrem Daniel Zugman, Frederico Bastos e Beatriz Ghilardi, em artigo intitulado “O STF, o ITBI e a integralização de imóveis ao capital social”, muitos municípios vem sustentando que independentemente da existência de ágio na subscrição, sempre que o valor venal, ou o valor venal de referência for superior ao valor contábil atribuído ao imóvel para fins de integralização, a diferença estará sujeita à incidência do ITBI.

Apesar disso, essa posição não se sustenta. Entendemos que a correta interpretação sobre o alcance da norma de imunidade deve ser interpretada à luz da jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal, por meio do Tema 796, e pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio do Tema 1.113.

O Supremo Tribunal Federal, por meio do Tema 796, limitou-se a declarar que a imunidade do ITBI alcança apenas o valor a ser subscrito no capital social. Portanto, a título de ilustração, se o que se pretende é subscrever um capital social de R$ 100.000,00, e, para tanto, o contribuinte utiliza um imóvel cujo valor contábil seja de R$ 100.000,00, haverá imunidade integral sobre

a integralização. Caso o valor venal, ou o valor venal de referência do imóvel para o município seja de R$ 150.000,00, a Fazenda Municipal não está autorizada a exigir o ITBI sobre essa diferença de R$ 50.000,00, sob penal de violar o art. 148 do Código Tributário Nacional.

Nessa linha, deve-se conciliar à hipótese concreta o Tema 1.113 do Superior Tribunal de Justiça, que assegura que a declaração do valor do imóvel pelas partes goza de presunção de boa-fé. Sendo assim, caso a Fazenda municipal entenda que o valor declarado para o imóvel não reflita as condições normais de mercado, ou que existem indícios de simulação do preço no negócio jurídico, pode, motivadamente, instaurar procedimento administrativo fiscal tendente a apurar a real base de cálculo do imposto para então arbitrar o valor do imposto devido, assegurando ao contribuinte o contraditório e a ampla defesa, conforme prescreve o art. 148 do Código Tributário Nacional.

Em conclusão, não pode o Fisco municipal se recusar a reconhecer a imunidade sobre a operação de integralização de bem imóvel ao capital social de sociedade empresária ou de Holdings sob o fundamento de que o valor declarado não está condizente com o valor venal, valor venal de referência, ou valor de mercado, e exigir o prévio recolhimento do imposto sobre essa diferença. Deverá sim reconhecer a imunidade sobre a operação, e, posteriormente, poderá instaurar procedimento fiscal na forma do art. 148 do Código Tributário Nacional, assegurando o contraditório e ampla defesa, para então arbitrar o imposto que entender devido.

CONJUR. Ana Paula Babbulin: Planejamento sucessório e holding familiar. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-mar-20/ana-paula-babbulin-planejamento-sucessorio-holding-familiar. Acesso em: 29 jul.2023.

MIGALHAS. Holding e ITBI: a consolidação de um novo entendimento. Migalhas, São Paulo, 1 set. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/387535/holding-e-itbi-a-consolidacao-de-um-novo-entendimento. Acesso em: 29 jul. 2023.

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm: acesso em 29/09/2023, às 11h48.

STJ. Recurso Especial nº 1.937.821-SP. Primeira Seção. Rel. Min. Gurgel de Faria. Julgado em 24 de fevereiro de 2022. https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=91&documento_sequencial=144784493&registro_numero=202000120791&peticao_numero=&publicacao_data=20220303&formato=PDF. Acesso em: 29/07/2023, às 13h10.

https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4529914. Acesso e, 30/07/2023, às 2H01.

https://www.conjur.com.br/2021-abr-27/opiniao-stf-itbi-integralizacao-imoveis-capital-social#:~:text=A%20tese%20estabelecida%20pelo%20STF,destinada%20%C3%A0%20reserva%20 de%20%C3%A1gio. Acesso em 30/07/2023, às 13h24.

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AGRICULTURA DE SUBSISTÊNCIA - UMA ALTERNATIVA PLURIMA PARA REMIÇÃO DE PENA

Este trabalho, tem como escopo analisar como a remição de pena está embricada às demandas de ressocialização e bem estar do apenado, sobretudo, analisando como essa estrutura complexa pode ser transformada por meio da horticultura, aplicando um modelo de agricultura de subsistência às penitenciárias, trazendo benefícios de modo a aprender e desenvolver uma nova função de trabalho, auxiliando no bem estar nutricional e psicológico do encarcerado, não obstante, influenciando no ambiente interno, pois novas demandas e engrenagens de ocupação surgirão, reverberando no cenário socioeconômico do Estado brasileiro, uma vez que, com a agricultura de subsistência, os apenados poderão consumir, ao menos, alimentos base, substituindo o modelo atual, por um modelo mais humanizado, com o propósito de tornarem-se os responsáveis pela alimentação da penitenciária que estão encarcerados (via de mão dupla). Deste modo, os gastos fixos com a alimentação dos encarcerados tende a diminuir, encolhendo os gastos públicos, tal qual a mão de obra que será realizada pelos apenados utilizando-se do instituto da remissão de pena, artigo 126, parágrafo 1º, da Lei de Execução Penal.

Palavras-chave

Remissão de Pena - Agricultura de Subsistência - Penitenciária - Ressocialização

Ingrid Adriana Bezerra de Sá

Graduada em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru. Graduada em Alta Gastronomia pelo Instituto Gastronômico das Américas, IGA/Bauru. Formada na especialização de “Direitos Humanos, Políticas Educacionais e Legislação” da PUC/SP. Formada em “Educação em Direitos Humanos pela Escola de Inverno” da UFMG. Participação ativa nas Comissões de Direito do Consumidor, Mulher Advogada, Jovem advocacia e OAB Vai à Escola da OAB Bauru.

INTRODUÇÃO

O presente texto foi confeccionado inicialmente como trabalho para a o VIII Congresso de Atualização Jurídica de Bauru e Região. O objeto de pesquisa se destaca ao associar como a alimentação influencia o ser humano em sua integralidade, relacionado ao trabalho com efeito de remição de pena, com o propósito de analisar os custos atuais em contraponto à um modelo de agricultura de subsistência para suprir as necessidades alimentares dos condenados.

Pretende-se jogar luz sobre a complexidade da alimentação, bem como observar a engrenagem que se desenvolverá no ambiente prisional, responsabilizando e ressocializando os reeducandos que manusearão o alimento em seu ciclo completo, isto é, desde o plantio, até a colheita para o consumo final, isto, sendo feito dentro das penitenciarias, reverberará no interior e no exterior do apenado.

Destarte, uma análise acerca dos custos referentes à alimentação dos reeducandos é primordial, haja vista ser um tópico de suma importância, que reflete diretamente na sociedade, sobretudo no que diz respeito à economia e à ressocialização dos condenados.

O texto está dividido em cinco partes, inicialmente expõe-se o papel dos Direitos Humanos na sociedade contemporânea, posteriormente dispõe sobre o instituto da remição de pena, seguido de tópicos referentes ao modelo de agricultura de subsistência no ambiente prisional, demonstrando seus benefícios multidisciplinares no tópico seguinte, com uma análise de custos no tocante a alimentação, para, enfim, apresentar as conclusões.

OS DIREITOS HUMANOS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Os direitos humanos discorrem sobre a efetivação da proteção dos direitos básicos dos seres humanos, isto posto, faz-se valer a leitura do ar-

tigo 1º (primeiro) e do artigo 25 (vinte e cinto) da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Artigo 1

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Artigo 25

1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.1

No que se refere ao ambiente prisional, assim como os demais cidadãos, os reeducandos possuem direitos assegurados, a Constituição Federal de 1988 em seu 5º, inciso XLIX dispõe:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XLIX - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial;2

Além dos direitos assegurados na Carta Magna, o artigo 41 da Lei de Execução Penal (LEP) tratou de elencar outros direitos da população prisional igualmente importantes, quais sejam:

1 Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracaouniversal-dos-direitos-humanos>. Acesso em 13 jun. 2023.

2 Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 27 jul. 2023.

Art. 41 - Constituem direitos do preso:

I - alimentação suficiente e vestuário;

II - atribuição de trabalho e sua remuneração;

III - Previdência Social;

IV - constituição de pecúlio;

V - proporcionalidade na distribuição do tempo para o trabalho, o descanso e a recreação;

VI - exercício das atividades profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com a execução da pena;

VII - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa;

VIII - proteção contra qualquer forma de sensacionalismo;

IX - entrevista pessoal e reservada com o advogado;

X - visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos em dias determinados;

XI - chamamento nominal;

XII - igualdade de tratamento salvo quanto às exigências da individualização da pena;

XIII - audiência especial com o diretor do estabelecimento;

XIV - representação e petição a qualquer autoridade, em defesa de direito;

XV - contato com o mundo exterior por meio de correspondência escrita, da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes.

XVI – atestado de pena a cumprir, emitido anualmente, sob pena da responsabilidade da autoridade judiciária competente.3

3 Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/

Parágrafo único. Os direitos previstos nos incisos V, X e XV poderão ser suspensos ou restringidos mediante ato motivado do diretor do estabelecimento.

Ademais, a Constituição Federal dispõe sobre os Direitos Sociais, especialmente em seu artigo 6º, que se refere, além de outros direitos, sobre a alimentação e o trabalho, vejamos:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.4

No que tange ao aspecto social, o instituto da ressocialização dos apenados é intrínseco. Isto porquê, o Estado e a sociedade desempenham papel de suma importância na recuperação do condenado, com objetivo de recuperá-lo e reinseri-lo na sociedade.

Contudo, a ressocialização têm sido falha (sem a pretensão de esgotar o assunto, em especial sobre os elementos sociais e estatais) sobretudo porque o indivíduo que comete crimes, principalmente crimes contra o patrimônio, e não dispõe de uma profissão, possui altas chances de obter a sua liberdade mas manter-se na mesma atividade criminosa, tendo em vista que a sociedade recrimina e rejeita os ex-presidiários, dificultando a sua reinserção na sociedade.

Sem juízo de valor no que se refere ao comportamento da maioria da sociedade quanto aos ex-presidiários, mas ao passo que a sociedade rejeita um ex-condenado, em especial aqueles que não possuem formação ou profissão, o curso natural é de que eles se mantenham nas mesmas atividades criminosas e aperfeiçoem-se em suas funções, e, como consequência lógica, l7210.htm>. Acesso em 13 de jun. 2023.

4 Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 27 jul. 2023.

tornem-se cada vez mais perigosos.

Analisemos um trecho do vigésimo artigo, intitulado “evolução histórica da pena e a ressocialização”, dos autores Francisco Clayton Brito Junior, Lia Mara Silva Alves e Lya Maria de Loiola Melo para o I Encontro Virtual do Conpedi:

A ressocialização promovida pelos estabelecimentos penitenciários visa recuperar o indivíduo para que este possa voltar à sociedade sem, no entanto, cometer novos crimes, sem praticar novos delitos. O apenado deve sair da prisão, após o cumprimento da pena, reabilitado, apto ao convívio harmônico em sociedade. Essa é a função ressocializadora.

A sociedade e o Estado, por meio do sistema penitenciário brasileiro, desempenham um importante papel no processo de ressocialização do preso. Entretanto, a rejeição social do apenado é um fator que contribui para sua reincidência, uma vez que, não encontrando o amparo na sociedade, em regra, volta a delinquir.

O processo de ressocialização do apenado deve ser resultado de um trabalho conjunto do sistema penitenciário, que irá contribuir prestando a assistência necessária dentro e fora dos estabelecimentos penais, e da sociedade, no momento em que acolhe o apenado, proporcionando meios necessários para a sua readaptação.5

O sistema penitenciário brasileiro apresenta-se como um instrumento importante no processo de ressocialização do apenado. Porém, ele vem demonstrando uma série de problemas que tem dificultado a recuperação do preso. (I ENCONTRO VIRTUAL DO CONPEDI - DIREITO PENAL, PROCESSO PENAL E CONSTITUIÇÃO I, p. 301, 2020).

A finalidade de implementar um modelo de

5 Disponível em: < http://site.conpedi.org.br/publicacoes/ olpbq8u9/36824706/2R6iL63wSVhSWFmI.pdf>. Acesso em 14 de jul. 2023.

agricultura de subsistência nas penitenciárias, em síntese, é de prover uma melhor dignidade alimentar aos reeducandos, bem como lhes ensinar um novo ofício, enquanto se beneficiam da remição de pena, observando o propósito da ressocialização.

REMIÇÃO DE PENA

Remição de pena “consiste na redução de um dia de pena por três dias trabalhados, pelo condenado que cumpre pena em regime fechado ou semiaberto”, trecho extraído do glossário do Conselho Nacional do Ministério Público.

A fim de complementação, o artigo 126 da Lei de Execução Penal, conceitua remição de pena:

Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.

§ 1o  A contagem de tempo referida no caput será feita à razão de:

I - 1 (um) dia de pena a cada 12 (doze) horas de frequência escolar - atividade de ensino fundamental, médio, inclusive profissionalizante, ou superior, ou ainda de requalificação profissional - divididas, no mínimo, em 3 (três) dias;

II - 1 (um) dia de pena a cada 3 (três) dias de trabalho.

§ 2o As atividades de estudo a que se refere o § 1o deste artigo poderão ser desenvolvidas de forma presencial ou por metodologia de ensino a distância e deverão ser certificadas pelas autoridades educacionais competentes dos cursos frequentados.

§ 3o Para fins de cumulação dos casos de remição, as horas diárias de trabalho e de estudo serão definidas de forma a se compatibilizarem.

§ 4o O preso impossibilitado, por acidente, de prosseguir no trabalho ou nos estudos continuará a beneficiar-se com a remição.

§ 5o O tempo a remir em função das horas de estudo será acrescido de 1/3 (um terço) no caso de conclusão do ensino fundamental, médio ou superior durante o cumprimento da pena, desde que certificada pelo órgão competente do sistema de educação.

§ 6o O condenado que cumpre pena em regime aberto ou semiaberto e o que usufrui liberdade condicional poderão remir, pela frequência a curso de ensino regular ou de educação profissional, parte do tempo de execução da pena ou do período de prova, observado o disposto no inciso I do § 1o deste artigo.

§ 7o  O disposto neste artigo aplica-se às hipóteses de prisão cautelar.

§ 8o A remição será declarada pelo juiz da execução, ouvidos o Ministério Público e a defesa.6

O nobre professor Mirabete, em sua obra Execução Penal, assim define remição “pode-se definir a remição, nos termos da lei brasileira, como um direito do condenado em reduzir pelo trabalho prisional ou pelo estudo o tempo de duração da pena privativa de liberdade. Trata-se de um meio de abreviar ou extinguir parte da pena”. (2014, p. 559).7

Neste sentido, tendo o estudo e o trabalho como formas de remição de pena, uma vertente oriunda do trabalho é a horticultura, que pode ser feito em espaços com terra fértil, por qualquer pessoa, estando apta para ser realizada em presídios, sobretudo porque demanda de pouca estrutura, sobretudo prisional.

Nesta linha de raciocínio, a Quinta Turma

6 Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/ l7210.htm>. Acesso em 13 de jun. 2023.

7 MIRABETE, Júlio Fabbrini. São Paulo. Execução Penal. 2014. P. 599.

do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no AgRg no HC n. 671.172/RS, Supremo Tribunal de Justiça, em decidiu a respeito de remição de pena, no que tange a trabalho artesanal:

AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. EXECUÇÃO PENAL. REMIÇÃO DA PENA. TRABALHO ARTESANAL EM AMBIENTE PRISIONAL. POSSIBILIDADE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO NESTE STJ. AGRAVO DESPROVIDO. I – Assente nesta Corte que “os sentenciados que cumprem pena no regime semiaberto ou fechado têm direito à remição da pena pelo trabalho, consoante a previsão legal do art. 126 da Lei de Execução Penal. Precedentes” (AgRg no REsp 1.505.182/RS, Quinta Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 11/5/2018). II – No caso em apreço, observa-se que o reeducando efetivamente exerceu o trabalho artesanal, tendo sido essa tarefa devidamente atestada pela administração carcerária. Por tal motivo, esta Quinta Turma entende que “descabe ao intérprete opor empecilhos praeter legem à remição pela atividade laboral, prevista pelo citado art. 126 da Lei de Execução Penal, uma vez que a finalidade primordial da pena, em fase de execução penal, é a ressocialização do reeducando” (AgRg no REsp 1.720.785/RO, Quinta Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe de 11/5/2018). III – Embora as memoráveis considerações tecidas pelo d. agravante, o entendimento já consagrado pela jurisprudência desta eg. Corte impõe a manutenção do decisum agravado, por seus próprios fundamentos. Agravo regimental desprovido. (AgRg no HC n. 671.172/RS, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em 25/10/2022, DJe de 4/11/2022.)8

Destarte, o modelo de remição de pena por trabalho possui previsão legal (art. 126, LEP), sendo assim, o trabalho artesanal é mais uma espécie de trabalho, com decisões à respeito, observan8 Disponível em <https://www.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/stj/1714347384.> Acesso em 4 de jul. 2023.

do que a finalidade da pena, é a ressocialização do reeducando.

Ademais, no que se refere à atividade laboral de horticultura, o contato com a terra e o ato de plantar, cultivar, desenvolver e colher o alimento, faz com que o reeducando esteja presente em todas as etapas do processo, do plantio até à mesa, e sinta-se responsável por isso.

Não obstante, a horticultura trabalha com elementos repletos de vida, isto é, dependem de uma mão de obra para de desenvolverem, isto quando o plantio é realizado com objetivo definido de colheita.

MODELO ANÁLOGO DE AGRICULTURA DE SUBSISTÊNCIA

NO AMBIENTE PRISIONAL

Preliminarmente, é justo conceituar agricultura de subsistência, vejamos:

A agricultura de subsistência é uma modalidade que tem como principal objetivo a produção de alimentos para garantir a sobrevivência do agricultor, da sua família e da comunidade em que está inserido, ou seja, ela visa suprir as necessidades alimentares das famílias rurais.9

Nesse sentido, a implementação de um modelo análogo ao de agricultura de subsistência no ambiente prisional é possível e repleto de benefícios. Especialmente porquê, as penitenciárias são uma comunidade de reeducandos que possuem necessidades alimentares passíveis de serem supridas com o modelo em estudo.

Não obstante, o Guia Alimentar para a População Brasileira, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça, dispõe que:

O consumo de arroz, feijão, milho, mandioca, batata e vários tipos de legumes, verduras e frutas tem como consequência 9 Disponível em: <https://mundoeducacao.uol.com.br/ geografia/agricultura-subsistencia.htm>. Acesso em 11 de jul. 2023.

natural o estímulo da agricultura familiar e da economia local, favorecendo assim formas solidárias de viver e produzir e contribuindo para promover a biodiversidade e para reduzir o impacto ambiental da produção e distribuição dos alimentos. (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 32, 2016).10

À vista disso, é possível observar que os alimentos supracitados são totalmente viáveis de serem plantados e, posteriormente, colhidos com o propósito de alimentar a população carcerária, e, consequentemente, nutr-los melhor.

Uma gênero desse modelo está sendo desenvolvido no Estabelecimento Penal de Regime Semiaberto, Aberto e Assistência ao Albergado de Corumbá (EPRSAAAC), a iniciativa está sendo tão positiva que hortaliças oriundas deste plantio estão sendo doadas para reforçar a alimentação (e consequente nutrição) de famílias de baixa renda.11

Um projeto de ressocialização das pessoas privadas de liberdade no município de Remígio, localizado no Agreste paraibano trabalha com o plantio e cultivo de vários tipos de pimenta, sendo possível trabalhar com o insumo e transformá-los em produtos, como geléias e molhos de pimenta, a fim de serem comercializados.12

O objetivo é de que, inicialmente, uma variedade de agricultura de subsistência seja implementada e desenvolvida nas penitenciárias, a ponto de alimentar todos os reeducandos em suas refeições diárias, com o que for colhido das plantações.

10 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/ assuntos/saude-brasil/publicacoes-para-promocao-asaude/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>. Acesso em 10 de jul. 2023.

11 Disponível em: <https://www.agepen.ms.gov.br/ hortalicas-cultivadas-no-semiaberto-de-corumba-saodoadas-a-instituicoes-filantropicas/>. Acesso em 4 de jul. 2023.

12 Disponível em <https://paraiba.pb.gov.br/diretas/ secretaria-de-administracao-penitenciaria/noticias/oplantio-de-pimenta-e-projeto-de-ressocializacao-depessoas-privadas-de-liberdade-na-comarca-de-remigio>. Acesso em 4 de jul. 2023.

Posteriormente, caso a implementação seja um sucesso e supra as necessidades alimentares dos reeducandos, havendo excedentes da produção, sejam os sobressalentes encaminhados para as respectivas famílias dos apenados, ou para instituições de caridade da comarca da penitenciária.

AÇÃO MULTIDISCIPLINAR

A alimentação não se resume a ingestão dos alimentos simplesmente, há uma complexa gama de etapas que vão do solo à mesa, e posteriormente, refletem de maneira a dissipar todas as suas propriedades e respectivos nutrientes no corpo humano.

Isto posto:

Alimentos in natura ou minimamente processados, em grande variedade e predominantemente de origem vegetal, são a base para uma alimentação nutricionalmente balanceada, saborosa, culturalmente apropriada e promotora de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável. (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 50, 2016).13

A tarefa de cuidar e desenvolver os alimentos a partir do solo, tendo como responsáveis os reeducandos, os aproximará do alimento, conferindo-lhes intimidade com a plantação e os insumos, e, simultaneamente, aprenderá um novo ofício, podendo o trabalho ser objeto de remição de pena e ressocialização.

Ainda, a colheita dos alimentos, oriundos deste trabalho, irá gerar alimentos vegetais que “costumam ser boas fontes de fibras e de vários nutrientes e geralmente têm menos calorias por grama do que os de origem animal”. (GUIA ALI-

Nesse sentido, objetivando a assertividade, especialmente no que se refere as características da população brasileira, análises da Pesquisa de orçamentos Familiares (PoF), realizada pelo instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre maio de 2008 e maio de 2009, demonstrarão tais características:

A PoF 2008-2009 mostra que alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias feitas com esses alimentos ainda correspondem, em termos do total de calorias consumidas, a quase dois terços da alimentação dos brasileiros.

Arroz e feijão correspondem a quase um quarto da alimentação, a seguir, aparecem carnes de gado ou de porco (carnes vermelhas), carne de frango, leite, raízes e tubérculos (em especial, mandioca e batata), frutas, peixes, legumes e verduras e ovos. (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 55, 2016).

A PoF 2008-2009 revela também que um quinto da população brasileira (cerca de 40 milhões de pessoas, se considerarmos todas as idades) ainda baseia sua alimentação largamente em alimentos in natura ou minimamente processados. esses alimentos e suas preparações culinárias correspondem a 85% ou mais do total das calorias que consomem no dia. Análises da mesma pesquisa evidenciam que a alimentação desses brasileiros se aproxima das recomendações internacionais da organização mundial da saúde para o consumo de proteína, de gorduras (vários tipos), de açúcar e de fibras e que o seu teor em vitaminas e minerais é, na maior parte das vezes, bastante superior ao teor médio observado no Brasil.

14 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/ assuntos/saude-brasil/publicacoes-para-promocao-asaude/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>. Acesso em 10 de jul. 2023.

13 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/ assuntos/saude-brasil/publicacoes-para-promocao-asaude/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>. Acesso em 10 de jul. 2023. MENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 31, 2016).14

Pequenas mudanças no consumo desses brasileiros que baseiam sua alimentação em alimentos in natura ou minimamente processados, incluindo o aumento na ingestão de legumes e verduras e a redução no consumo de carnes vermelhas, tornariam o perfil nutricional de sua alimentação praticamente ideal. A alimentação desses brasileiros, que são encontrados em todas as regiões do País e em todas as classes de renda. (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 56, 2016).15

Desse modo, é possível observar que aproximadamente 2/3 (dois terços) das calorias totais consumidas são de alimentos in natura ou minimamente processados, ou seja, abrangem as necessidades alimentares dos reeducandos. No mais, é totalmente possível a implementação de um modelo de agricultura de subsistência que abasteça a penitenciária e alimente igualmente os apenados.

Ademais, os reflexos da implementação deste modelo de agricultura de subsistência nas penitenciárias serão internos e externos. Isto porquê internamente os efeitos serão dos benefícios da alimentação no organismo dos reeducandos, além da aprendizagem de um novo ofício, com a possibilidade de remir a pena e ressocializar. Externamente, além da alteração no quadro financeiro, outros prefeitos permeiam a atividade, vejamos:

A opção por vários tipos de alimentos de origem vegetal e pelo limitado consumo de alimentos de origem animal implica indiretamente a opção por um sistema alimentar socialmente mais justo e menos estressante para o ambiente físico, para os animais e para a biodiversidade em geral. (GUIA ALIMENTAR PARA A POPULAÇÃO BRASILEIRA, p. 32, 2016).16

15 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/ uploads/2021/11/calculando-custos-prisionais-panoramanacional-e-avancos-necessarios.pdf>. Acesso em 10 de jul. 2023.

16 Disponível em: <https://www.gov.br/saude/pt-br/ assuntos/saude-brasil/publicacoes-para-promocao-asaude/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed.pdf/view>.

No ambiente prisional, os efeitos que implicam em menor fator de estresse, oriundos de uma alimentação in natura, são interessantes, tendo em vista que os ânimos neste ambiente ficam naturalmente mais exaltados.

Destarte, os benefícios de um modelo de agricultura familiar nas penitenciárias são múltiplos, como aprender um novo ofício, remir parte da pena com o trabalho na horticultura, ressocialização.

Bem como efeitos nutricionais no organismo do reeducando, uma melhora psíquica e consequente diminuição no estresse do ambiente prisional, tal como uma inevitável alteração e diminuição dos gastos com compra de alimentos ou “marmitas”, entre outros. A implementação de um modelo de agricultura de subsistência no ambiente prisional é fundamental.

ANÁLISE DE CUSTOS NO TOCANTE À ALIMENTAÇÃO DOS REEDUCANDOS

A presente análise será realizada de maneira genérica acerca dos gastos atuais com os reeducandos no que se refere à alimentação, em contraponto ao valor despendido em um modelo de agricultura de subsistência implementado nas penitenciárias.

Um relatório de 2021 nomeado “Calculando Custos Prisionais: Panorama Nacional e Avanços Necessários”, integra a série Fazendo Justiça, desenvolvido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), junto com o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD BRASIL) faz uma comparação entre os gastos mensais com alimentação per capita no sistema prisional com o valor da cesta básica estimado pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – o DIEESE –, por meio da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de AliAcesso em 10 de jul. 2023.

São Paulo é o estado que observa-se a maior discrepância entre esses valores: há uma diferença de R$ 343 entre o valor da cesta básica no estado (R$ 520) e o valor gasto por mês com alimentação por pessoa privada de liberdade (R$177).

Não obstante, com dados provenientes do relatório supracitado, “em resposta à solicitação de acesso à informação, o Departamento Penitenciário Nacional forneceu os dados mais recentes disponíveis acerca dos gastos no SPF”, isto é, no Sistema Penitenciário Federal. O cálculo do custo mensal do preso é resultante do total de despesas realizadas no mês de referência dividido pela população carcerária do mesmo mês. Desta forma, o custo mensal do preso não é um valor fixo, variando de acordo com os gastos efetivados no mês analisado e com a variação do quantitativo total da população carcerária. Assim, visando informar um valor mais próximo do real, foi informada a média dos levantamentos realizados ao longo do ano de 2020: R$35.215,60. Como se pode observar, a diferença é tamanha chega a ser 16 vezes maior que a média nacional dos sistemas penitenciários estaduais.

Resta saber como esse gasto mensal por preso é alocado no SPF. A decomposição

17 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/ uploads/2021/11/calculando-custos-prisionais-panoramanacional-e-avancos-necessarios.pdf>. Acesso em 10 de jul. 2023.

dos gastos é possível através da análise de planilha fornecida pelo Depen, a qual traz as despesas realizadas no mês de setembro de 2020 desagregadas por uma série de indicadores, conforme a resolução no6 do CNPCP. No gráfico a seguir é possível observar que, as- sim como visto nos sistemas estaduais, a maior parte dos gastos do Sistema Penitenciário Federal (82%) é destinada ao pagamento de salários dos servidores. Do restante do gasto, a maior despesa é com o transporte de presos sob custódia – equivalente em média a R$ 2.034 mensais por preso – e alimentação –R$ 1.028. (CALCULANDO CUSTOS PRISIONAIS: PANORAMA NACIONAL E AVANÇOS NECESSÁRIOS, p. 29, 2021).18

Gráfico de gastos do Sistema Penitenciário.

Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2021.

Com o objetivo de complementar a análise, foram solicitados documentos às Coordenadorias Regionais e ao Serviço de Informações ao Cidadão – SIC, do Governo do Estado de São Paulo, com informações referentes aos gastos públicos com a alimentação dos reeducandos, bem como uma listagem dos produtos alimentares fornecidos nas penitenciárias.

No que tange ao estado de São Paulo, a população carcerária no mês de junho de 2023 chegou a 195.789 (cento e noventa e cinco mil setecentos e oitenta e nove) reeducandos, com um gasto de R$ 50.415.492,00 (cinquenta milhões, quatrocentos e quinze mil, quatrocentos e noventa e dois reais).

18 Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/ uploads/2021/11/calculando-custos-prisionais-panoramanacional-e-avancos-necessarios.pdf>. Acesso em 10 de jul. 2023.

Custo mensal da alimentação dos presos vs. preço da cesta básica na UF.
Fonte: Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 2021

Valores referentes à alimentação no sistema prisional do estado de São Paulo no ano de 2023.

Fonte: Serviço de Informações ao Cidadão – SIC, 2023.

Isto significa que o valor per capta mensal para alimentação dos reeducandos é de R$ 257,50 (duzentos e cinquenta e sete reais e cinquenta centavos). Aplicando tais valores às penitenciárias utilizadas como paradigma, ou seja, Balbinos I e II, com população carcerária de 2.300 (dois mil e trezentos) detentos, o valor é de R$ 592.250,00 (quinhentos e noventa e dois mil duzentos e cinquenta reais) por mês.

Por conseguinte, o valor total gasto por semestre (referente ao 1º semestre de 2023) com a alimentação dos apenados das penitenciárias supramencionadas, é de R$ 49.794.352,50 (quarenta e nove milhões, setecentos e noventa e quatro mil, trezentos e cinquenta e dois reais e cinquenta centavos).

Conjuntamente aos dados referentes aos valores gastos com a alimentação dos reeducandos do estado de São Paulo, foi disponibilizado o cardápio padrão das unidades prisionais, que são divididos por semana, contudo, seguem o mesmo molde. Os demais anexos, referentes às outras 3 (três) semanas estarão no anexo do artigo.

É possível observar no Anexo I que a alimentação dos reeducandos é dividida em 4 refeições ao longo do dia, baseadas em arroz e feijão nas refeições principais, acompanhados de verduras, legumes e proteínas de origem animal, com sobremesa inclusa e refresco, podendo ser algum tipo de doce ou frutas, bem como nas refeições de café da manhã e ceia sendo pães ou bolachas com bebidas variando entre café e leite.

Deste modo, mais da metade do cardápio da penitenciária pode ser plantado, isto porquê, proteínas de origem animal, produtos industrializados ou lácteos (bolacha, pães, pó de café, farofa pronta, macarrão, óleo de cozinha, temperos secos, margarina, leite, entre outros), podem continuar a serem comprados.

Contudo, ainda assim, é possível que os pães, o macarrão, a farofa e derivados, possam ser produzidos na penitenciária pelos próprios reeducandos, havendo espaço de cozinha, em razão de que os ingredientes são mínimos (base de farinha diversas e ovos) e a complexidade é baixa. As frutas e os temperos podem ser plantados em consórcio, sendo adicionados às demais culturas.

Ademais, os ovos podem ser oriundos de uma criação de galinha, ambos servindo de alimento para os apenados. A manutenção e os custos para este modelo de criação são baixos, podendo diminuir a quantidade de compras destes

Anexo I - Ofício circular cardápio padrão das unidades prisionais

Fonte: Serviço de Informações ao Cidadão – SIC, 2023.

produtos, ou, até mesmo, vir a suprir a necessidade da penitenciária.

Analisando sob a ótica da implementação de um modelo de agricultura de subsistência no ambiente prisional, e utilizando-se de técnicas de consórcio para o cultivo, é possível plantar diversos grãos, tubérculos e vegetais que suprem as necessidades alimentares dos cidadãos, sobretudo dos apenados.

Alimentos como arroz, feijão, abóbora, mandioca, batata, quiabo, cenoura, tomate, alface, espinafre, rúcula, couve, entre outras, são aptas para o plantio em ambiente prisional. Não há a necessidade de que cada uma das culturas ocupe um hectare, de maneira a otimizar o espaço, bem como o uso da força braçal dos reeducandos.

De acordo com José Roberto da Silva Junior, biólogo-agroecólogo, agricultor e educador social, “em apenas 4 (quatro) hectares é possível extrair a produção máxima de cada uma das seguintes culturas (feijão, arroz, abóbora, mandioca, batata e quiabo). Em termos práticos, a produção de 1 (um) hectare supre a necessidade alimentar de cerca de 30 (trinta) pessoas”.19

No que se refere a horticultura na relação “consumo x produção”, se expressa de maneira muito mais proveitosa, ao passo que apenas 10m2 (dez metros quadrados) sejam suficientes pra subsistência de uma pessoa por ano, segundo o biólogo-agroecólogo.

Considerando 4 (quatro) horas de trabalho por dia com aplicação de força para obter tais resultados, é possível pensar em escalas de revezamento do trabalho a fim de suprir toda a demanda produtiva sem explorar a mão de obra, seguindo o modelo de remição de pena por trabalho, conforme previsto no art. 126 da LEP.

Para uma população carcerária de 2.300 apenados, tendo como exemplo as Penitenciárias

19 José Roberto da Silva Junior, biólogo-agroecólogo, agricultor e educador social.

de Balbinos I e Balbinos II, que contam com 1.040 (mil e quarenta) e 1.263 (mil duzentos e sessenta e três) reeducandos respectivamente, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária do Governo do Estado de São Paulo, seriam necessárias as quantidades dispostas na tabela de alimentos base (sem verduras, frutas, lácteos, industrializados e proteínas de origem animal, acompanhados do valor de venda.

Produto Volume de Produção Anual

Valor de Venda Data de Referência

Arroz Agulhinha 8 ton/ha R$ 13.969,60 28/07/2023

Feijão 6 ton/ha R$ 20.000,00 31/07/2023

Mandioca 25 ton/ha R$ 14,444,25 21/07/2023

Batata Asterix 30 ton/ha R$ 120.000,00 31/07/2023

Abóbora 12 ton/ha R$ 22.560,00 31/07/2023

Cenoura 30 ton/ha R$ 75.000,00 27/07/2023

Quiabo 22 ton/ha R$ 99.000,00 31/07/2023

Tomate Italiano 60 ton/ha R$ 120.000,00 28/07/2023

Total Anual de Venda R$ 484.973,85

Tabela anual de alimentos plantados em área total de 5 hectares. Fontes: CEPEA, CEASA, HF BRASIL e AGROLINK.

Contudo, a cultura na prática pode ser desenvolvida em consórcio, isto é, variação de vegetais plantadas em conjunto, aproximadamente 30% (trinta por cento) de cada produção, consorciando até 5 variedades.

Para que a plantação seja desenvolvida na penitenciária, serão necessários insumos, ferramentas de trabalho, mão de obra (reeducandos) e um planejamento personalizado para a implementação do modelo de agricultura de subsistência, desenvolvido por um profissional da área como um biólogo-agroecólogo.

No que se refere à plantação, é possível verificar nas tabelas exemplificavas a seguir quais insumos e ferramentas são necessárias para o seu desenvolvimento, bem como seus valores correspondentes.

Cerca Arame 115 rolos

Cerca Mourão bambu 161

Cerca Estaca Bambu 460

Cerca Tela de galinheiro 2.300m

Ferramentas Carrinho de mão 25

R$ 20.00,00

R$ 2.300,00

R$ 3.220,00

R$ 9.200,00

R$ 18.400,00

R$ 3.750,00

Ferramentas Cavadeira 92 R$ 5.520,00

Ferramentas Enxada 161 R$ 5.635,00

Ferramentas Enxadão 115

R$ 4.600,00

Ferramentas Martelo 15 R$ 450,00

Ferramentas Pá 115

Ferramentas Peneira 70

Ferramentas Serrote 15

Ferramentas Tonéis 200L 115

R$ 7.475,00

R$ 700,00

R$ 450,00

R$ 16.000,00

Irrigação Aspersores 345 R$ 10.350,00

Irrigação Mangueira 100m 23.000m

Outros Calcário 1.150kg

Outros Fertilizante NPK 1.150kg

R$ 1.840,00

R$ 1.150,00

R$ 46.000,00

Fontes: José Roberto da Silva Junior, Biólogo-Agroecólogo, Agricultor e Educador Social e Google Shopping.

Os itens e valores supramencionados na tabela são finais, ou seja, referem-se ao custo de investimento e desenvolvimento da implementação de um modelo de agricultura de subsistência na penitenciária, tendo como base o número de 2.300 reeducandos.

A durabilidade dos materiais citados são praticamente ad eaternum, necessitando de baixíssima manutenção, além disso, é possível substituir alguns itens por outros de maior quantidade e praticidade, como por exemplo, substituir os tonéis por caixas d’água ou investir autocultivadores (valores em torno de R$ 3.500,00 cada), dirimindo ainda mais os custos.

Com exceção das mudas, sementes, adubos, calcário e fertilizantes, os grandes responsáveis pela vida e rotatividade de ingredientes nas culturas, não há outras preocupações com outros investimentos para o desenvolvimento da agricultura de subsistência no ambiente prisional.

Ademais, os valores descritos, são referentes ao

investimento da implementação do modelo de agricultura no ambiente prisional, somado com valores da alimentação anual dos reeducandos, isto é, para suprir os reeducandos por 12 (doze) meses, dividindo, posteriormente, pelo número total de apenados, isto é, 2.300 (dois mil e trezentos), tendo como referência a população carcerária das penitenciárias de Balbinos I e Balbinos II, o resultado seria de R$ 5,70 (cinco e setenta) por mês per capta

O valor é altamente expressivo, pois, teoricamente, é possível observar uma economia de 97,78%. Contudo, devemos considerar que, não haverá a necessidade de compras recorrentes dos materiais para a implementação das culturas, serão raras as ocasiões.

Os pilares dos gastos mensais serão, primordialmente, de sementes, mudas, adubos (não incluso na tabela por sua diversidade), calcário e fertilizantes. No mais, é possível que as culturas abranjam outras necessidades, como o plantio

de árvores frutíferas e temperos, bem como a criação de galinhas e a produção de bolos, pães, massas e derivados no ambiente prisional, oferecendo maior liberdade alimentar e diminuindo os gastos públicos neste aspecto.

Baseando-se nesta ótica, multiplicando o valor per capta de R$ 5,70 (cinco e setenta) por mês, de maneira geral, pelas demais necessidades (árvores frutíferas, plantio de temperos, criação de aves e produção in loco de massas e derivados), ou seja, por 5 (cinco), seria de R$ 28,50 (vinte e oito e cinquenta), arredondando para cima, R$ 30,00 (trinta reais), isto é, ainda assim, pode-se observar uma economia de 88,32%.

Para obter números ainda mais realísticos, de acordo com o que é possível implementar em cada penitenciária, é necessário analisar o que pode ser plantado e não mais comprado, visando atingir o objetivo final, isto é, de se limitar a comprar itens como proteínas de origem animal, com exceção dos ovos, que podem ser oriundos da criação de galinhas; além dos industrializados e dos lácteos, para que a expressiva porcentagem de 88,32 seja possível de aproximar-se.

Deste modo, é indispensável o olhar de um profissional técnico habilitado nesta área para desenvolver o modelo ideal de agricultura de subsistência nos moldes do que foi observado no presente trabalho, bem como um profissional técnico para responsabilizar-se pela parte financeira no que diz respeito aos efeitos positivos nos cofres públicos.

À título de conhecimento, é sabido a respeito da periculosidade de algumas ferramentas de trabalho, contudo, um procedimento similar ao adotado em cozinhas e demais espaços de trabalho que contam com ferramentas e materiais que podem se tornar armas brancas, deve ser adotado neste caso, ou seja, deve-se catalogar todas as ferramentas e inspecionar no início e ao final do trabalho.

À vista disso, é possível observar que, ao implementar um modelo de agricultura de subsistência no ambiente prisional, involuntariamente cria-se uma engrenagem onde, ao trabalhar com o objetivo de remir parte de sua pena, o reeducando pode ocupar-se das culturas, ao passo que remirá sua pena, mas também ganhará um novo ofício e ressocializará, alimentando-se

das colheitas, com reflexos nutricionais positivos para os reeducandos e para o ambiente como um todo.

Logo, o apenado será mais útil para si e para a sociedade, de modo que diminuirão os gastos públicos com a alimentação, reverberando de maneira positiva no cenário econômico e tributário.

CONCLUSÃO

Os direitos humanos enfrentam cenários difíceis em seu caminho, não seria diferente no que se refere ao ambiente prisional. Ter o direito a dignidade efetivado é um trabalho árduo, sobretudo dentro das penitenciárias em todo país.

A ressocialização do apenado é um conjunto complexo de ações que competem ao Estado e a sociedade, com o objetivo de recuperar o reeducando e reinseri-lo na sociedade, de modo que este indivíduo não reincida em seus crimes, contudo, esta não costuma ser a realidade.

A remição da pena para o condenado é um instituto que o benefício em amplo modo, além de remir a sua pena, seguindo as regras dispostas no artigo 126 da Lei de Execução Penal, o reeducando tem a oportunidade de melhorar como pessoa/cidadão aprendendo um novo ofício e ganhando conhecimento por meio do trabalho e do estudo.

A remição da pena por trabalho artesanal permite que o reeducando tenha a sua pena diminuída com este trabalho e ainda tenha benefícios em seu estado psicológico. Isto posto, é viável unir o trabalho artesanal, com a remição de pena e com um modelo de agricultura de subsistência.

O propósito do trabalho dos condenados é de desenvolver a plantação, e colher desta atividade laboral alimentos para suprir a necessidade carcerária, com diminuição expressiva dos gastos públicos no que se refere a alimentação, bem como a ressocialização do condenado.

Consequentemente, haverá uma diminuição com os gastos relativos a alimentação dos reeducandos, possibilitando uma atenuação nos cofres públicos, inclusive com melhora no campo tributário.

06

OS DIREITOS AUTORAIS DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E SEUS REFLEXOS NO DIREITO COMPARADO

Diante do constante desenvolvimento tecnológico, nos deparamos recentemente com a criação dos NFTs (non-fungible tokens ou tokens não fungíveis), com base na tecnologia Blockchain. O NFTS vem sendo adotado por diversos segmentos de mercado, principalmente no das artes, onde seu uso está cada vez mais consolidado. Devido a sua recente criação e rápida expansão, o presente trabalho tem por intuito tratar de algumas implicações jurídicas advindas do setor artísticos, que ainda estão em pauta de discussão uma vez que ainda não é possível vislumbrar todos os impactos gerados.

Palavras-chave

Inteligência Artificial - Direitos Autorais - Impactos no Direito Comparado

Iriana Maira Munhoz Salzedas

Procuradora Jurídica. Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Marechal Rondon. Professora nos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Procuradora Jurídica. Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Processo Civil e Direito Civil pela Instituição Toledo de Ensino. Doutoranda na Universidade de Buenos Aires – UBA. Doutoranda da Universidade Nove de Julho – UNINOVE.

INTRODUÇÃO

A propriedade intelectual é o conjunto de obras literárias, científicas, artísticas, programas de computador, dentre outras criações, como dispõe o caput do art. 7º da Lei 9610/98, logo as obras intelectuais são criações do espírito.

Tudo que se cria pode ser copiado, logo se faz necessário uma legislação que garanta os direitos dos inventores, para que estes sejam incentivados a criar. No Brasil, a lei que regulamenta a propriedade industrial é a Lei 9.279/96, sendo o órgão responsável pela concessão dos direitos de propriedade intelectual, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI.

O Brasil é signatário desde 1994 do Trips - Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights (Acordo sobre Aspectos do Direito de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), o acordo foi criado pela Organização Mundial do Comércio (OMC) e estabelece um padrão de proteção mínima à propriedade intelectual. Os países signatários deste acordo obrigaram-se a revisar suas leis nacionais de modo a adaptá-las a esse modelo.

Interessante é que o sistema de propriedade intelectual não apenas protege a criatividade propriamente dita, como também os investimentos realizados para inserir essas invenções ao mercado.

A propriedade intelectual é protegida no mundo inteiro por leis específicas contra o uso não autorizado de criações humanas, ou seja, essas legislações se referem apenas a proteção das invenções de origem humana, não se estendo a criações advindas de uma inteligência artificial (IA).

Esta ausência de proteção intelectual em face das inteligências artificiais, atualmente é o desafio do direito contemporâneo, pois a possibilidade de uma máquina possuir algo semelhante a um “estado de consciência”, através das informações recebidas, pode por exemplo, criar uma

obra literária.

Nessa esteira, a pergunta que não se cala: Quem é o autor da obra? O programador ou profissional que criou a máquina, ou a própria máquina, que através de sua base de dados autonomamente criou o livro?

Estamos diante de um tema desafiador e reflexivo, à medida que esses acontecimentos não são respostas que se espera do futuro, mas sim acontecimentos atuais, que estão questionando o espaço em branco das legislações ao redor do mundo, o que inclusive, pode gerar prejuízos econômicos, pois empresas que investem em tais tecnologias não terão segurança jurídica, em razão das inteligências artificiais não possuírem regramento em face das suas possíveis criações, podendo ocorrer reproduções não autorizadas, que não serão penalizadas por falta de regulação.

1. BREVES CONSIDERAÇÕES

SOBRE A PROPRIEDADE INTELECTUAL

A propriedade intelectual passou a ser definida pela Convenção da Organização Mundial da Propriedade Intelectual como “a proteção aos direitos relacionados às criações artísticas, literárias, científicas e invenções, marcas, desenhos industriais, softwares e muitos outros1”.

A proteção é direcionada aos bens incorpóreos, ou seja, bens que não podem ser tocados fisicamente, uma vez que são criações da mente humana. Essas invenções geralmente possuem valor econômico, por isso devem ser protegidas evitando reproduções não autorizadas.

Conforme, o art. 7º da Lei nº 9.610/98 são obras intelectuais e devem ser protegidas: a) os textos de obras literárias, artísticas ou científicas; b) as conferências, alocuções, sermões e outras obras

1 DUARTE, Melissa de F; BRAGA, Prestes C. Propriedade intelectual. p.07

da mesma natureza; c) as obras dramáticas e dramático-musicais; d) as obras coreográficas e pantomímicas, cuja execução cênica se fixe por escrito ou por outra qualquer forma; e) as composições musicais, tenham ou não letra; f) as obras audiovisuais, sonorizadas ou não, inclusive as cinematográficas; g) as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia; h) as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética; i) as ilustrações, cartas geográficas e outras obras da mesma natureza; j) os projetos, esboços e obras plásticas concernentes à geografia, engenharia, topografia, arquitetura, paisagismo, cenografia e ciência; l) as adaptações, traduções e outras transformações de obras originais, apresentadas como criação intelectual nova; m) os programas de computador; n) as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.

Para melhor compreensão do tema, se faz necessário compreender que a propriedade intelectual é gênero, tendo três espécies: direitos autorais, propriedade industrial e proteção sui generis

Os direitos autorais são obras intelectuais que protegem as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, conforme dispõe a Lei 9.610/98. Esses direitos podem não ser registrados, porém seu registro evita problemas futuros. O órgão competente para registro depende da obra, por exemplo, se obra for literária ou cientifica deve ser registrada na Biblioteca Nacional, já os desenhos, pinturas, etc. são registradas na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro.

O direito autoral ainda se divide em duas partes: o direito do autor e o direito conexo. O direito do autor se relaciona com criações literárias, artísticas e científicas, tendo por requisito a criação do espírito humano, ou seja, livros e artigos

científicos, por exemplo. Já os direitos conexos são os direitos dos artistas, intérpretes ou executantes, produtores fotográficos e empresas de radiodifusão, como, por exemplo, os de filmes, shows, novelas, programas de rádio e televisão2

A Lei 9.610/98, desdobra o direito autoral em duas espécies: direito autoral patrimonial e direito autoral moral. O primeiro assegura ao autor os lucros oriundos da sua obra, podendo inclusive ser cedido para editoras ou gravadoras, enquanto o segundo vincula o autor em relação a obra, sendo este direito inalienável e irrenunciável, o art. 24 da lei acima mencionada elenca os direitos morais do autor.

A propriedade industrial é disciplinada pela Lei 9.279/06 e abrange: a) concessão de patentes de invenção e de modelo de utilidade; b) concessão de registro de desenho industrial; c) concessão de registro de marca; d) repressão às falsas indicações geográficas; e) repressão à concorrência desleal. Diferentemente do direito autoral, que a depender do tipo da obra, o órgão competente para registro varia, O registro da propriedade industrial é feito exclusivamente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

E por último temos a proteção sui generis, que é o ramo da topografia de circuitos integrados e de cultivares, assim como de conhecimentos tradicionais e de exploração genética. Nela, cada direito depende de proteção regulamentada por legislação específica, necessitando ainda de registro em órgão competente, sendo que o prazo de validade varia de acordo com cada espécie. Aqui o objeto de projeção é a configuração tridimensional das camadas sobre uma peça de material semicondutor que visa realizar funções eletrônicas em equipamentos3

O desenvolvimento da tecnologia perante a globalização e a concorrência entre empresas nacionais e transacionais, impõe aos países a regulamentação das criações e invenções, pois estamos diante de circulação de riquezas, a qual

2 Idem, p. 12

3 Idem, p.14

constantemente gera conflitos, dessa forma necessitamos de legislações atuais para a prevenção e solução destes embates na seara da propriedade intelectual.

1.1. Normas que disciplinam a propriedade intelectual no Brasil

A última rodada do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), encerrada em 1994, a qual criou a Organização Mundial do Comércio (OMC) e firmou o Acordo sobre os aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (ADPIC) na tentativa de se criar normas mais rígidas em face da propriedade intelectual.

O ADPIC é um conjunto de normas que asseguram o funcionamento dos direitos de propriedade intelectual em escala mundial. Embora alguns Estados permaneçam fora do sistema OMC, isto representa uma parcela insignificante em termos negociais. De forma que está constituído um ordenamento jurídico de propriedade especial, que por sua vez se insere no sistema mais amplo do comércio4

Com a instituição da Organização Mundial do Comércio na Rodada Uruguai do Gatt, foi imposto aos países membros, dentre eles o Brasil um novo formato em relação aos objetos passíveis de apropriação intelectual, a partir de então, o Brasil disciplinou um conjunto de normas referentes a propriedade intelectual, logo, os países que não possuírem normas de propriedade intelectual eficazes e seguras serão afastados dos investimentos internacionais, o que consequentemente atrasará o desenvolvimento intelectual daquele país.

A estrutura da legislação da propriedade intelectual no Brasil está na Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º, incisos XXVII, XXVIII e XXIX, os quais tratam diretamente o direito de autor.

4 PIMENTEL, Luiz Otávio. O ACORDO SOBRE OS ASPECTOS DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL RELACIONADOS COM O COMÉRCIO. acessado em 24/10/22, SITE: O ACORDO SOBRE OS ASPECTOS DOS DIREITOS DE... https://periodicos. ufsc.br/link:file:///C:/Users/Win%2010/Downloads/15338Texto%20do%20Artigo-47210-1-10-20100928%20(1).pdf

Na sequência temos as leis ordinárias atinentes a propriedade intelectual. A Lei 9610/98, trata dos direitos autorais em face das obras artísticas e culturais, bem como seus autores e intérpretes.

No que tange a propriedade industrial, temos a Lei 9.279/96, disciplinando as patentes e marcas.

A Lei 9.456/97, que assegura os direitos relativos à propriedade intelectual no desenvolvimento de novos cultivares e efetua mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar.

A Lei 10.973/04, conhecida como Lei da Inovação, trouxe importantes elementos acerca do incentivo à pesquisa científica e tecnológica.

O Brasil, concede proteções distintas mediantes as leis citadas, com escopo de abarcar de forma ampla as manifestações dos autores, sendo que o conceito de autor, conforme a lei 9.610/98 em seu artigo 11 é pessoa física, logo as leis acima mencionadas são aplicáveis as criações oriunda de seres humanos.

1.2. Normas internacionais que permeiam a Propriedade Intelectual

Prof. Melissa de Freitas, faz um apanhado no âmbito internacional em relação as normas que tratam da propriedade intelectual, dando destaque a Convenção de Paris, iniciada em meados de 1880, tendo como principal tema a proteção dos direitos de propriedade industrial. A Convenção de Berna, em 1886, tratou da proteção de direitos relativos a obras artísticas e culturais. O Tratado de Haia de 1925 foi importante na tentativa de proteção aos desenhos industriais. Já a Convenção de Roma de Direitos Conexos, de 1961, protegeu principalmente as produções musicais, sejam as pessoas que as interpretam, executam, compõem ou transmitem. Ainda sobre a legislação internacional, o Acordo de Madrid de 1981 se coloca como instituidor de uma legislação internacional sobre o registro de marcas5

Ainda em âmbito internacional temos o Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelec5 Idem, p.18

tual sobre Copyrigh, responsável pela sistematização da propriedade intelectual nos últimos anos. O Tratado de Cooperação em Patentes de 1978, o qual veio para ser um facilitador dos procedimentos de solicitação, busca e exame de patentes. Finalizando a exemplificação de normas internacionais, a Rodada Uruguai de 1986, que figurou como um momento de discussão sobre o comércio internacional6. marcas7

Ainda em âmbito internacional temos o Tratado da Organização Mundial da Propriedade Intelectual sobre Copyrigh, responsável pela sistematização da propriedade intelectual nos últimos anos. O Tratado de Cooperação em Patentes de 1978, o qual veio para ser um facilitador dos procedimentos de solicitação, busca e exame de patentes. Finalizando a exemplificação de normas internacionais, a Rodada Uruguai de 1986, que figurou como um momento de discussão sobre o comércio internacional8

2. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Não é de agora que estamos vivenciando uma revolução tecnológica, a qual se faz presente em todas as áreas da sociedade. Iniciamos nosso aprendizado frente as novas tecnologias aos poucos, vamos citar alguns momentos de transição relativamente recentes para que todos reflitam, que os desafios do passado, hoje são indispensáveis para nossas vidas.

A chegada dos caixas eletrônicos facilitou muito a vida da sociedade, que deixou de enfrentar filas demoradas para pagar contas, mas o melhor ainda estava por vir, os aplicativos dos bancos em nossos aparelhos celulares, os quais passou a nos proporcionar a comodidade de pagar contas sem fila e sem sair de casa. Esses exemplos foi uma pequena ilustração de como a tecnologia modifica nosso modo de viver.

E o que a tecnologia vem preparando para impactar nossas vidas? Para essa pergunta não

6 Idem, p. 19

7 Idem, p.18

8 Idem, p. 19

há uma única resposta, pois, a tecnologia está em todas as áreas, e em cada uma delas neste momento tem algo de inovador para melhorar a vida do ser humano, como por ex, um remédio para uma determinada enfermidade, uma nova técnica cirúrgica através de aparelhos de uma última geração, um programa de computador que inova a área da educação, enfim não há limites para a tecnologia e a ciência.

Este estudo irá analisar o avanço da tecnologia em face das inteligências artificiais e seus impactos na propriedade intelectual, para isso vamos entender o que é a inteligência artificial (IA).

O professor de ciência da computação de Standford, John McCarthy, conceituou a IA como a ciência e a engenharia de construir máquinas inteligentes9 E o que seriam máquinas inteligentes? Máquinas que possam pensar e agir como ser humano, porém o grande desafio é que essas máquinas são limitadas em termos de inteligência emocional; ela só pode detectar os estados emocionais humanos básicos, como raiva, alegria, tristeza, medo, dor, estresse e neutralidade. A inteligência emocional é uma das fronteiras de níveis mais elevados de personalização10

Logo, quanto mais a IA se assemelhar a conduta humana, mais próxima estará de ser considerada uma inteligência forte.

Nesse sentido, as tecnologias de IA atualmente disponíveis se enquadram na categorização do que chamamos de “Inteligência Artificial Fraca” ou “Narrow AI”. Isso porque as aplicações de IA hoje existentes simulam um comportamento como se fossem inteligentes sem raciocínio ou vontade própria11

Por outro lado, a “Inteligência Artificial Forte” ou “General AI” é um campo de estudos que traz a

9 Alencar, Ana Catarina de. Inteligência Artificial, Ética e Direito, p. 05

10 Santos, Marcelo Henrique dos. Introdução à Inteligência Artificial, p. 13

11 Alencar, Ana Catarina de. Inteligência Artificial, Ética e Direito, p. 03

hipótese de máquinas que realizem todas as ações desempenhadas por seres humanos, experimentando sensibilidade e autoconsciência.

Entretanto, em nossos dias, a “Inteligência Artificial Forte” é vista como uma hipótese de estudo, e não como uma tecnologia disponível e existente no mercado12

Estaremos no campo de análise da “IA Fraca”, pois as máquinas disponibilizadas no mercado simulam ações humanas, para as quais foram programadas.

Nessa esteira, recentemente em outubro de 2021, o jornal El País noticiou que uma empresa russa realizou 150 demissões, através do crivo de uma IA. O CEO da empresa, manifestou que não concorda plenamente com a decisão da IA, todavia, a empresa está à mercê de outras pressões de natureza econômica que podem ser atendidas por meio da IA.

A notícia acima, apenas vem reafirmar que não há possibilidade de voltarmos ao status a quo, retirando a tecnologia da sociedade, apesar das variáveis e riscos que ela nos proporciona, pois, os benefícios são maiores que os riscos apresentados.

2.1. Posicionamento no ordenamento jurídico brasileiro sobre os direitos autorais em face da IA.

O Brasil como já salientamos dispõe de diversas leis especificas que disciplinam a propriedade intelectual e nenhuma delas assegura a IA direitos autorais. A fundamentação desta proibição está implícita no art. 11 da Lei 9.610/98, que aduz que autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica

Portanto, se autor é pessoa física, não podemos considerar que uma máquina criada e alimentada pelo seu inventor possa ter assegurado direitos autorais.

Foi neste sentido o Parecer nº 00024/2022/

12 Idem, p. 04

CGPI/PEE-INPI/PGF/AGU13 da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial, a qual recebeu uma consulta encaminhada pela Diretoria de Patentes Programas de Computador e Topografias de Circuitos Integrados – DIRPA, em que se questiona sobre a possibilidade de indicação e nomeação de inteligência artificial como inventora em um pedido de patente apresentado no Brasil.

O requerente protocolou o pedido de patente em escritórios de propriedade industrial ao redor do mundo, indicando como inventor a IA denominada de “DABUS”.

O procurador federal, que concedeu o parecer Dr. Marcos da Silva Couto, aduz que a discussão deste pedido se fundamenta na seguinte questão: “a quem” ou “o que” realizou a descoberta, em detrimento do resultado obtido14”.

Dessa forma, o Dr. Marcos da Silva Couto, aponta a necessidade de que seja elaborada e editada legislação específica que discipline a inventividade desenvolvida por máquinas dotadas de inteligência artificial, o que provavelmente deve ser antecedido pela celebração de tratados internacionais específicos destinados a uniformizar os princípios para a proteção nos ordenamentos nacionais. E afirma que a disciplina normativa do tema impacta na necessária preservação de investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, evitando o desestímulo no segmento ao garantir o devido reconhecimento de direitos de propriedade industrial gerados por agentes diversos da pessoa humana15 .

A conclusão do parecer foi enfática em afirmar que as IA não possuem direitos autorais16: Diante de todo exposto, a vista da consulta formulada, a Procuradoria, em estrito juízo

13 Site: gov.br, acessado 24/10/22 link: https://www.gov.br/inpi/ pt-br/central-de-conteudo/noticias/inteligencia-artificialnao-pode-ser-indicada-como-inventora-em-pedido-depatente

14 Idem, p.o4

15 Idem, p.04

16 Idem, p. 05

de legalidade, manifesta-se no sentido da impossibilidade de indicação ou de nomeação de inteligência artificial como inventora em um pedido de patente apresentada no Brasil, ex vi do contido no art. 6º da Lei 9.279/96 e do disposto na Convenção da União de paris (CUP) e no Acordo Trips.

Sobre o tema o Brasil possui alguns projetos de lei em andamento, como o PL 21/20 de autoria do deputado Eduardo Bismark em tramitação na Câmara dos Deputados, qual prevê o uso da Inteligência Artificial (IA) pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas físicas, estabelecendo princípios, direitos, deveres e instrumentos de governança para a IA17

Também tramita pela Câmara dos Deputados o PL 1473/23 de autoria do deputado Auro Ribeiro, o qual obriga empresas que operam sistemas de inteligência artificial (IA) a disponibilizar ferramentas que garantam aos autores de conteúdo na internet a possibilidade de restringir o uso de seus materiais pelos algoritmos, o objetivo é preservar os direitos autorais18.

Por fim, o Senado Federal vai analisar o projeto de lei apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco, o PL 2.338/2023, que tem como escopo regulamentar os sistemas de inteligência artificial no Brasil. O projeto é resultado do trabalho de uma comissão de juristas que analisou, ao longo de 2022, outras propostas relacionadas ao assunto, além da legislação já existente em outros países19

17 Site Câmara dos Deputados. Link: https://www.camara. leg.br/noticias/641927-projeto-cria-marco-legal-parauso-de-inteligencia-artificial-no-brasil/ , acessado em 03/08/2023.

18 Idem, Link: https://www.camara.leg.br/noticias/976585projeto-obriga-empresas-de-inteligencia-artificiala-oferecer-ferramenta-para-proteger-direitoautoral/#:~:text=O%20Projeto%20de%20Lei%20 1473,%C3%A9%20preservar%20os%20direitos%20 autorais, cessado 03/08/2023.

19 Site Senado Notícias. Link: https://www12.senado.leg. br/noticias/materias/2023/05/12/senado-analisa-projetoque-regulamenta-a-inteligencia-artificial, acessado em 03/08/2023

Enquanto, o Brasil aguarda o trâmite desses projetos de lei, a solução levantada é a da autoria ser dada às pessoas físicas ou jurídicas que tenham utilizado a IA, se tornando titulares da obra feita e mantendo um ambiente jurídico confiável e seguro20

2. POSICIONAMENTOS SOBRE OS DIREITOS AUTORAIS DA IA NO DIREITO COMPARADO

Atualmente, não existe uma legislação internacional projetada, especificamente, para regulamentar o uso de IA. Os sistemas de IA são “regulados” de forma transversal por inúmeras iniciativas legislativas esparsas em vários países. Isso inclui, por exemplo, leis sobre privacidade e proteção de dados, leis sobre relações com consumidores, leis de defesa da concorrência, leis sobre serviços financeiros, entre outras21 Em 2020, foi lançada a “Parceria Global em Inteligência Artificial” para o desenvolvimento de abordagens democráticas e com base nos direitos humanos para a IA seguindo a recomendação do Conselho de Inteligência Artificial da OCDE sobre o tema22

Os países participantes desta parceria são: Austrália, Canadá, União Europeia, França, Alemanha, Índia, Itália, Japão, República da Coréia, México, Nova Zelândia, Cingapura, Eslovênia, EUA e Reino Unido.

Atualmente, a União Europeia vem desempenhando papel pioneiro referente a regulação da Inteligência Artificial no mundo. No ano de 2019, a UE publicou sua “Estratégia Europeia de Inteligência Artificial”, estabelecendo diretrizes 20 Wachowicz. Marcos; Michelotto. Giulia. Entre a máquina e o homem: de quem são os Direitos Autorais das obras produzidas por Inteligência Artificial. Jan. 06, 2022. Artigos / 1 Comentários. Link: https://ioda.org.br/entre-amaquina-e-o-homem-de-quem-sao-os-direitos-autoraisdas-obras-produzidas-por-inteligencia-artificial/ acessado em 03/08/2023.

21 Alencar, Ana Catarina de Inteligência Artificial, Ética e Direito [recurso eletrônico] : Guia prático para entender o novo mundo.- São Paulo : Expressa, 2022

22 Idem.

éticas com o escopo de apresentar uma “Inteligência Artificial Confiável23”.

Nos Estados Unidos, a partir de 2018, foi instituída uma Comissão de Segurança Nacional sobre a temática e, em 2019, foi publicado o “Plano Estratégico Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento para Inteligência Artificial”. Adicionalmente, tramita no Poder Legislativo Federal estadunidense o projeto de lei intitulado “Artificial Intelligence Initiative Act24”.

Em 2019, a Casa Branca divulgou um projeto de Orientação para Regulamentação de Aplicações de Inteligência Artificial, que inclui dez princípios para as agências dos Estados Unidos ao decidirem como regular a IA. O documento traz uma estrutura a partir da qual futuras regulamentações podem ser construídas em uma abordagem setorial e descentralizada. Assim, o relatório da Casa Branca estimula os reguladores setoriais a formularem regras para as aplicações de IA dentro de suas competências25

O FDA (Food and Drug Administration) emitiu um plano de ação para a IA utilizada em dispositivos médicos. Cinco reguladores financeiros, incluindo o Federal Reserve e o Controller of the Currency, realizaram uma ampla consulta ao setor em março de 2021. Os reguladores são informados de que devem evitar ações regulatórias que dificultem desnecessariamente a inovação e o crescimento da IA26

Nesse sentido a autora Ana Catarina Alencar, afirma que nos Estados Unidos vige uma certa tendência na qual a regulação é vista como um possível obstáculo para o mercado e somente deve ser implementada se realmente necessário. A abordagem estadunidense sobre o assunto indica que a verdadeira tarefa dos reguladores de IA é criar uma estrutura formal de regras que proteja o público e promova a inovação do

setor27

Convém, ressaltar que nos EUA várias cidades e estados possuem legislações próprias, dessa forma Estados ou cidades podem disciplinar legislação própria sobre a aplicação da Inteligência Artificial. Como exemplo, podemos citar estado de

Illinois que aprovou uma lei intitulada “Artificial Intelligence Video Interview Act”. A lei prevê regras para a notificação, o consentimento e a transparência sobre o uso da IA na análise de vídeos em entrevistas de emprego.

O posicionamento de Portugal sobre a autoria das produções advindas de IA, devem ser mantidas em Domínio Público, o que nos parece coerente, tendo em vista que as Inteligências Artificiais não se beneficiam diretamente dos valores arrecadados em razão da criação.

No mundo oriental, as estratégias de regulação de países como a China têm recebido inúmeras críticas. A proposta de regulação chinesa promoveria a vigilância excessiva do governo sobre a liberdade de escolha de usuários e imporia ônus excessivos à iniciativa privada, infringindo regras de confidencialidade, segredo de negócio e propriedade intelectual das empresas28

O regulador de segurança cibernética da China divulgou a proposta de regulação da inteligência artificial do país em agosto de 2021. A proposta tem como objetivo regular o uso dos chamados algoritmos de recomendação, ou seja, dos algoritmos que sugerem ou tomam decisões sobre usuários da aplicação29.

Como vimos o impacto das criações advindas das IA é algo extremamente complexo, que deverá caminhar de forma conjunta entre os países, haja vista que muitos estão à frente nas pesquisas sobre os impactos e a responsabilidade dessas criações.

23 Idem

24 Idem.

25 Idem.

26 Idem

27 Idem.

28 Idem

29 Idem.

Estamos engatinhando sobre o tema, apesar de alguns juristas serem enfáticos, como o Desembargador Erickson Gravazza, ao afirmar que qualquer criação advinda de IA é apócrifa, pois não há embasamento jurídico que possa conferir qualquer direito autoral a uma máquina.

CONCLUSÃO

Como vimos estamos diante de um tema desafiador e reflexivo, à medida que muitas são as propostas e pesquisas desenvolvidas, porém nada sedimentado sobre os possíveis direitos das criações advindas das IA.

Apesar das Lei 9610/98, que trata dos direitos autorais em face das obras artísticas e culturais, bem como seus autores e intérpretes; a Lei 9.279/96, disciplinando as patentes e marcas e a Lei 9.456/97, que assegura os direitos relativos à propriedade intelectual no desenvolvimento de novos cultivares e efetua mediante a concessão de Certificado de Proteção de Cultivar, nenhuma delas servem para solucionarem os novos desafios que as IA estão causando no ordenamento jurídico brasileiro e no mundo.

O Brasil, possui alguns projetos de leis em trâmite na Câmara dos Deputados, como o PL 21/20 (autoria do deputado Eduardo Bismark); o PL 1473/23 (autoria do deputado Auro Ribeiro), ambos tramitando na Câmara dos Deputados e por fim, o projeto de lei apresentado pelo senador Rodrigo Pacheco, o PL 2.338/2023, que aguarda análise do Senado Federal.

Mas, não temos nada sedimentado a respeito do tema, logo ainda nos encontramos à deriva sobre essas criações artificiais, o que nos causa insegurança, pois uma IA tanto pode criar algo positivo como negativo para sociedade, e quem irá se responsabilizar pelas consequências?

Este estudo teve como objetivo despertar no leitor uma reflexão sobre o momento que estamos vivenciando, pois, o mundo digital ou artificial não tem retrocesso, por isso a sociedade deve ter consciência dos impactos deste novo

mundo, que inocentemente acreditamos ser os melhores do mundo!

Alencar, Ana Catarina de. Inteligência Artificial, Ética e Direito [recurso eletrônico]: Guia prático para entender o novo mundo / Ana Catarina de Alencar. - São Paulo: Expressa, 2022.

DUARTE, Melissa de F.; BRAGA, Prestes C. Propriedade intelectual. [Digite o Local da Editora]: Grupo A, 2018. E-book. ISBN 9788595023239. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca. com.br/#/books/9788595023239/. Acesso em: 18 out. 2022.

GONÇAÇVES. Lucas Reuthes. Inteligência Artificial e Criatividade: Novos Conceitos na Propriedade Intelectual.Curitiba: Gedai, 2019.

LANA. Pedro de Perdigão. A Questão da Autoria em Obras Produzidas por Inteligência Artificial. Instituto Jurídico, Faculdade de Coimbra: Portugal, 2019.

SANTOS, Marcelo Henrique dos. Introdução à Inteligência Artificial, Londrina: Editora e Distribuidora Educacional S.A. 2021.

PIMENTEL, Luiz Otávio. O ACORDO SOBRE OS ASPECTOS DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUALRELACIONADOS COM O COMÉRCIO. Acessado em 24/10/22, SITE: O ACORDO SOBRE OS ASPECTOS DOS DIREITOS DE ...https://periodicos.ufsc.br / link: file:///C:/Users/Win%2010/ Downloads/15338-Texto%20do%20Artigo-47210-1-10-20100928%20(1).pdf

https://oecd.ai/en/ai-principles trata sobre princípios da inteligência artificial

https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age_en#documents

Wachowicz. Marcos; Michelotto. Giulia. Entre a máquina e o homem: de quem são os Direitos Autorais das obras produzidas por Inteligência Artificial. Jan. 06, 2022. Artigos / 1 Comentários. Link: https://ioda.org.br/entre-a-maquina-e-o-homem-de-quem-sao-os-direitos-autorais-das-obras-produzidas-por-inteligencia-artificial/ acessado em 03/08/2023.

Site Câmara dos Deputados. Link: https://www.camara.leg.br/noticias/641927-projeto-cria-marco-legal-para-uso-de-inteligencia-artificial-no-brasil/ , acessado em 03/08/2023.

Site SenadoNotícias.Link:https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/05/12/senado-analisa-projeto-que-regulamenta-a-inteligencia-artificial, acessado em 03/08/2023

A O FORNECIMENTO DE DADOS DE USUÁRIO DE IP PELOS

PROVEDORES DE SERVIÇOS DE CONEXÃO À INTERNET E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

Palavras-chave

Internet Protocol – Dados Pessoais – Requisição de Dados – Provedor de Internet

João Guilherme de Oliveira

Advogado, professor universitário (FMR/UNINOVE), pós-graduado em direito processual civil e mestrando em sistema constitucional de garantias de direitos (CEUB-ITE), sob orientação do Professor Livre-Docente Walter Claudius Rothemburg

1. INTRODUÇÃO

O presente escrito pretende enfrentar o tema do devido processo legal no fornecimento de dados de usuários de endereço de IP (Internet Protocol), especialmente das requisições feitas sem que seja observado o devido processo legal e que têm vulnerabilizado, de maneira desnecessária e ilegal, uma grande quantidade de dados pessoais.

Para tanto, passaremos por uma breve exposição sobre a atividade de provimento de conexão à internet, passando pelo funcionamento (e problemas) dos protocolos atuais para então indicar quais as hipóteses em que a legislação permite e quais as condições para que sejam fornecidos os dados de usuários.

Nosso intento é o de levantar alguma informação e, especialmente, tentar descortinar esse emaranhado de procedimentos, protocolos e processos que envolvem o fornecimento de dados pessoais de usuários de IP.

2. DO SERVIÇO DE CONEXÃO À INTERNET

Em linhas gerais, a internet pode ser conceituada como um ambiente pelo qual se interconectam equipamentos e, através desses, pessoas. Ocorre que para esta interconexão acontecer são necessários alguns elementos, como o meio físico, a mensagem, o equipamento emissor, o equipamento receptor e o protocolo, estando esta organização à cargo dos Provedores de Serviço de Conexão à Internet (PSCI)1

Embora muitas pessoas acreditem que o serviço de conexão à internet (SCI) seja um dos serviços de telecomunicações, estabelecendo-se, até mesmo uma relação de sinonímia entre os mesmos, isso não procede2

1 TEIXEIRA, Tarcisio. Internet: conceito da atividade empresarial de provimento de acesso para fins tributários. Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 71/2016, p. 119 – 146, nov./dez. 2016

2 TEIXEIRA, Tarcisio. op cit.

O SCI, em verdade, é um serviço de valor adicionado (SVA), serviço este que é prestado através de um serviço de comunicação multimídia (SCM), mas que com este não se confunde, conforme expressamente definido pelo art. 613 da Lei 9.472 de 16 de julho de 1997, mais conhecida como Lei Geral das Telecomunicações (LGT).

Na verdade, para melhor compreender o SCI é imprescindível um breve resgate histórico, em especial para o ano de 1994, quando a comitiva de técnicos e cientistas vinculados à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) foi até os Estados Unidos e conseguiu, junto a Internet Assigned Numbers Autority (IANA), o primeiro bloco que IP para o Brasil, permitindo, assim, que fosse possível o provimento de acesso à internet ao cidadão comum4

Os blocos de IP são combinações numéricas ou alfanuméricas utilizadas pelo protocolo denominado TCP/IP5, que, por sua vez, pode ser definido como um conjunto de regras que governam e viabilizam esta navegação, é um dos elementos essenciais a esta prestação6

Com a chegada dos endereços de IP a atividade provimento de conexão a internet começou a se difundir, sendo que o ano de 1995 ficou marcado como o ano de surgimento de diversos provedo-

3 Art. 61. Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta, a um serviço de telecomunicações que lhe dá suporte e com o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou recuperação de informações.

§ 1º Serviço de valor adicionado não constitui serviço de telecomunicações, classificando-se seu provedor como usuário do serviço de telecomunicações que lhe dá suporte, com os direitos e deveres inerentes a essa condição.

§ 2° É assegurado aos interessados o uso das redes de serviços de telecomunicações para prestação de serviços de valor adicionado, cabendo à Agência, para assegurar esse direito, regular os condicionamentos, assim como o relacionamento entre aqueles e as prestadoras de serviço de telecomunicações.

4 GETSCHKO, Demi. Em 95, o ambiente estava pronto para o crescimento que viria. O Estado de São Paulo, São Paulo, 04 de mai. de 2015. Economia, p. B11.

5 Acrônimo para o termo em inglês: Transmission Control Protocol/Internet Protocol Suit

6 COMER, Douglas Earl. Computer networks and internets. 6. ed. London: Pearson Education, 2015.

res no Brasil e, por consequência, algumas providências e regulamentações foram adotadas pelo poder público7

A Portaria Interministerial nº 147 de 31 de maio de 1995, criou o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e definiu, dentre as suas atribuições, a de “acompanhar a disponibilização de serviços Internet no país” (art. 1º)

Naquele mesmo dia, foi baixada a Portaria Interministerial nº 148, que aprovou a “Norma nº 004/95 – uso de meios de rede pública de telecomunicações para acesso à internet”, com âmbito de aplicação aos provedores e usuários de serviços de conexão à internet.

A Norma nº 004/95, define os conceitos de serviço de valor adicionado, de serviço de conexão à internet e de provedor de serviço de conexão à internet e de nos seguintes termos:

“b) Serviço de Valor Adicionado: serviço que acrescenta a uma rede preexistente de um serviço de telecomunicações, meios ou recursos que criam novas utilidades específicas, ou novas atividades produtivas, relacionadas com o acesso, armazenamento , movimentação e recuperação de informações;

c) Serviço de Conexão à Internet (SCI): nome genérico que designa Serviço de Valor Adicionado, que possibilita o acesso à Internet a Usuários e Provedores de Serviços de Informações;

d) Provedor de Serviço de Conexão à Internet (PSCI): entidade que presta o Serviço de Conexão à Internet;”

Assim, pelo conceito normativo, o provedor de serviço de conexão à internet tem como objeto de atuação a prestação do serviço que possibilita a seus assinantes o acesso à internet, sendo que este serviço, como dito, não se confunde com um serviço de telecomunicações8 .

7 GETSCHKO, Demi. op. cit.

8 TEIXEIRA, Tarcisio. op cit.

Este conceito foi muito questionado e objeto de muita discussão, notadamente no bojo do direito tributário, haja vista a contraposição dos interesses das fazendas públicas estaduais, que pretendiam cobrar o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre o preço cobrado pelos provedores, com os interesses dos empresários do setor, que se agarraram nas disposições e conceitos da norma nº 004/95 para afastar a não insciência.

As discussões chegaram até os tribunais e, mais tarde, foram apreciadas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) que, prestigiando a tese defendida pelos contribuintes, editou a súmula com o seguinte teor: “O ICMS não incide no serviço dos provedores de acesso à Internet.” (Súmula STJ nº 334).

Em virtude deste contexto e, especialmente pela relevância econômica, as discussões sobre o tema continuam até hoje.

Mais recentemente, em 09 de junho de 2022, foi iniciada, pela Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL), uma consulta pública na qual se pretendeu debater sobre a simplificação da regulamentação dos serviços de telecomunicações e, neste contexto, a área técnica daquela entidade concluiu que a melhor alternativa, ao sopesar vantagens e desvantagens, seria a revogação da Norma nº 004/95, eliminando, assim, a figura do provedor de serviço de conexão à internet9

No entanto, após um acalorado debate, a consulta pública foi encerrada e, malgrado a recomendação da área técnica da ANATEL, a norma 004/95 foi mantida em vigor, sendo que o Comitê Gestor da Internet CGI.br chegou divulgar uma

9 SOUZA FILHO, Agostinho Linhares de; et. all. Análise de impacto regulatório: simplificação da regulamentação de serviços de telecomunicações. mar. 2021. Brasília, DF, SEI. Disponível em: < https://sei.anatel.gov.br/sei/modulos/ pesquisa/md_pesq_documento_consulta_externa.php?eEPwqk1skrd8hSlk5Z3rN4EVg9uLJqrLYJw_9INcO6LD46D9roX8dTxYDKXZ5KgzykuR2sLKA0UxLcoc-u1WWG8-WaFcUuoGC LEO9eb0DWpfjKqZUUvKdnRGhAhmA9>. Acesso em: 09 jun. 2023.

nota pública10 em apoio a decisão do Conselho Diretor da Anatel em não propor a revisão da Norma 004/95.

Portanto, o provimento de serviço de conexão à internet continua, para o ordenamento jurídico brasileiro, sendo um serviço de valor adicionado diverso dos serviços de telecomunicação e, inclusive, sendo um serviço não regulado pela ANATEL.

3. ENDEREÇO IP COMO INSTRUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO

Conforme já explicado linhas acimas, são os números de IP que viabilizam a conexão com a internet, sendo que a gestão dos blocos de numeração é feita, mundialmente, pelo Internet Assigned Numbers Authority (IANA), e, no Brasil, pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.BR).

Por meio do protocolo TCP/IP todo equipamento conectado à internet recebe um código identificador, um “endereço” único, que ficará visível e poderá ser registrado, como uma cre-

10 A nota circulou por e-mail em 09 de setembro de 2022 e uma cópia esta disponível para consulta em < https://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.

dencial em todas as atividades na rede11

Vale esclarecer que o endereço de IP é conferido ao terminal e, portanto, identifica apenas o equipamento e não o usuário, assim, se duas ou mais pessoas estiverem simultaneamente com seus computadores conectados à uma rede local que esteja conectada à internet por um mesmo terminal, elas navegarão pela rede mundial sob o mesmo endereço de IP, haja vista que ele foi atribuído ao terminal e não aos seus respectivos computadores12.

Atualmente existem duas versões de IP que são utilizadas no Brasil, o IPV4, mais antigo e com menor quantidade de endereços, e o IPV6, mais atual e com mais blocos de endereço que possibilitam um número de conexões mais adequado para a demanda hodierna13

Como no Brasil, a migração para o IPV6 não se completou totalmente e, diante do esgotamento dos blocos de IPV4, muitos provedores de internet são obrigados a adotar uma técnica chamada Carrier Grade Network Addres Transation – CGNAT o que, inclusive, foi expressamente autorizado pelas autoridades brasileiras da internet14.

O CGNAT é um protocolo que viabiliza a conexão dos usuários através do compartilhamento de um mesmo endereço de IP entre vários terminais, ou seja, faz com que àquele conceito pelo qual um IP identifica um terminal também não possa mais ser aplicado haja vista que um mesmo endereço pode estar sendo utilizado de forma simultânea por inúmeros terminais15

Assim, embora o IP seja, de fato, um elemento de identificação na rede, a individualização de um usuário não é tão simples, tampouco automática ou decorre logicamente dos dados em posse do provedor de internet.

Não é demais ressaltar que o provedor detém apenas os dados cadastrais de seus assinantes, ou seja, os dados dos tomadores de serviço que, não necessariamente, se confundem com os usuários do serviço.

O Marco Civil da Internet estabelece, dentre as garantias dos usuários, que estes tem assegurado o direito ao não fornecimento de seus dados pessoais, inclusive registros de conexão salvo nas hipóteses previstas em lei, assegurada ainda o sigilo e a inviolabilidade no fluxo de suas comunicações.

O mesmo diploma destaca ainda que os registros de conexão, de forma autônoma ou associados a dados pessoais ou outras informações que possam identificar o terminal somente podem ser fornecidas mediante ordem judicial (art. 10 §1º) e ressalva que poderão ser informados dados cadastrais que informem qualificação pessoal, filiação e endereço, na forma da lei, pelas autoridades administrativas que detenham competência legal para a sua requisição (art. 10 §3º).

jsp?data=01/06/1995&jornal=1&pagina=31&totalArquivos=44>. Acesso 09 jun. 2023.

11 COMER, Douglas Earl. op. cit.

12 COMER, Douglas Earl. op. cit.

13 MARTINS, Patricia Helena Marta; KILMAR, Sofia Gavião. A identificação de usuários na internet e a controversa questão da coleta, guarda e fornecimento do dado de porta lógica de origem. Revista de Direito e as Novas Tecnologias. vol. 12. ano 4. São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2021.

14 MARTINS, Patricia Helena Marta; KILMAR, Sofia Gavião. op. cit.

15 MARTINS, Patricia Helena Marta; KILMAR, Sofia Gavião. op. cit.

A EDUCAÇÃO CÍVICA E POLÍTICA COMO FERRAMENTA PARA FOMENTAR A PARTICIPAÇÃO ATIVA DA SOCIEDADE, NA BUSCA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO IDEAL

O presente artigo tem como objetivo investigar que a falta da educação cívica, política e jurídica, tem como principal consequência a falta de participação ativa na vida política e social pelo cidadão.

Sem acesso a esse tipo de educação, o cidadão não tem a plena compreensão de seus direitos e deveres, deixando de exercer sua cidadania de forma efetiva, como por exemplo: votar, participar de movimentos sociais e fiscalizar e exigir a transparência de prestação de contas pelo poder público.

É imperativo promover além da educação cívica e jurídica, o acesso às informações claras e acessíveis sobre os princípios e valores do Estado Democrático de Direito, a fim de fortalecer a participação da sociedade, a justiça e a igualdade entre todos.

Palavras-chave

Estado Democrático de Direito - Participação ativa - Educação cívica e política

Katia Cristina Gonçalves

Graduação em Administração pela Uni Sant’Anna; MBA em Gestão Pública; Graduanda no curso de Direito pela Faculdades Integradas de Bauru – FIB, atualmente servidor pública na Fundação de Previdência dos Servidores Públicos Municipais Efetivos de Bauru

1. INTRODUÇÃO

Esse tema tem a intenção de demonstrar a importância da educação focada na ciência social, cívica e jurídica, a fim de conscientizar o cidadão da importância de sua participação na vida pública não apenas através do voto, mas também através de sua participação partidária, interesse nos debates sociais e políticos e na apresentação de planos de governo pelos candidatos.

O conceito, os tipos e os elementos fundamentais do Estado são amplamente debatidos e conceituados pelos filósofos desde a Antiguidade. Por exemplo: para Platão, o Estado ideal, defende em sua obra “A República”1, a ideia de que cada classe social deveria ter função específica na sociedade, trabalhando em harmonia para garantia da justiça a todos os cidadãos; já Maquiavel, com sua obra “O Príncipe”2, adotou uma abordagem mais realista em que o Estado é uma entidade política baseada no poder e na autoridade, buscando a estabilidade e a preservação do governo dirigido por um príncipe forte e eficaz, capaz de tomar decisões difíceis em prol do bem do Estado.

Igualmente a Democracia foi amplamente discutida, para Aristóteles, em suas análises das diversas Cidades-Estados gregas, observou três formas de governo fundamentais, considerando o número de governantes: a) Monarquia cujo governo é dirigido por apenas 01 (um) governante; b) Oligarquia no qual o governo é dirigido por uma elite e c) Democracia onde o governo é gerido pela maioria, no entanto nenhuma dessas formas são perfeitas:

“Cada Estado tem costumes que lhe são próprios, de que dependem sua conservação e até sua instituição. São os costumes democráticos que fazem a democracia e os costumes oligárquicos que fazem a

1 Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado –Brasília: Editora Kiron, 2012.

2 Maquiavel, Nicolau. “O Príncipe” – tradução de Maurício Santana Dias, prefácio de Fernando Henrique Cardoso, 2010 –Penguin Companhia

oligarquia. Quanto mais os costumes são bons, mais o governo também o é. Estas três formas podem degenerar: a monarquia em tirania; a aristocracia em oligarquia; a república em democracia. A tirania não é, de fato, senão a monarquia voltada para a utilidade do monarca; a oligarquia, para a utilidade dos ricos; a democracia, para a utilidade dos pobres. Nenhuma das três se ocupa do interesse público. Podemos dizer ainda, de um modo um pouco diferente, que a tirania é o governo despótico exercido por um homem sobre o Estado, que a oligarquia representa o governo dos ricos e a democracia o dos pobres ou das pessoas pouco favorecidas.”3

Outro pensador, Jean-Jacques Rousseau, em sua principal obra “O Contrato Social”4, acreditavam que a democracia era a melhor forma de governo, por ser a única que garantia a liberdade e a igualdade dos cidadãos:

“Quem faz a lei sabe melhor que ninguém como deve ser ela executada e interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que essa em que o poder executivo está unido ao legislativo; mas é justamente isso que torna esse governo sob certos aspectos insuficiente, uma vez que as coisas que deveriam ser diferenciadas não o são, e o príncipe e o soberano, sendo a mesma pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo.”

E no que se diz em relação ao Direito, esses mesmos filósofos traziam a luz suas ideias de como as leis contribuíam para a manutenção de Estado ideal. Sócrates, pensador grego que não expressou suas opiniões através de obras próprias, porém teve seus pensamentos difundidos por seus discípulos. Em “Criton”5, Platão expõe

3 Aristóteles. “Política” – Coleção a obra-prima de cada autor –Martin Claret

4 Rousseau, Jean-Jacques – “O Contrato Social” – tradução: Antonio de Pádua Danesi – 3ª edição – Editora Martins Fontes, 1996

5 Platão. “Critão (Criton) ou o DEVER” – extraído do livro Diálogos, da Coleção Classicos Cultrix - tradução Jaime Bruna

“Sócrates - Bem, reflete no seguinte. Se, no momento em que eu estivesse para me evadir daqui, ou como quer que se diga, chegassem as Leis e a Cidade, assomassem perguntado: “Dize-nos, Sócrates: que pretendes fazer? Que outra coisa meditas, com a façanha que intentas, senão destruir-nos a nós, as Leis e toda a Cidade, na medida de tuas forças? Acaso imaginas que ainda possa subsistir e não esteja destruída uma cidade onde nenhuma força tenham as sentenças proferidas, tornadas inoperantes e aniquiladas por obra de simples particulares?” – Que responder, Critão, a essas e semelhantes perguntas? Muitos argumentos poderiam ser aduzidos, sobretudo por um orador, em defesa da lei por nós violada que estabelece a autoridade das sentenças proferidas. Acaso responderei que a Cidade me agravou, não me julgou, conforme a justiça? Direi isso? Direi o quê?” (grifo nosso)

Para Immanuel Kant, na “Crítica da Razão Prática”6, alega que o Direito é baseado na razão e que é universal, isto significa, pois é necessário para a paz e a ordem social, garantindo a liberdade e a igualdade dos indivíduos.

“A heterogeneidade dos fundamentos de determinação (empírico e racional), dá-lhe a conhecer essa resistência de uma razão praticamente legisladora contra toda a inclinação que se imiscua, por meio de um modo de sensação peculiar a isso, a qual, todavia, não procede à legislação da razão prática, mas é efetuada de melhor forma só por esta mesma e na verdade como uma coação que é o sentimento de um respeito que nenhum homem tem para com as inclinações, sejam da classe que forem, mas sim para com a lei. Esta diferença ressalta de um modo tão claro e evidente que não há nenhum intelecto, ainda

6 Kant, Immanuel – “Crítica da Razão Prática” - Tradução e Prefácio: Afonso Bertagnoli - Edições e Publicações Brasil Editora S.A., São Paulo, 1959

que seja o mais comum, que não se convença no momento, proposto um exemplo, de que, mediante fundamentos empíricos do querer, podemos certamente aconselhar-lhe a que siga as suas seduções, mas nunca se pode exigir dele que obedeça a outra coisa que não seja a lei pura prática da razão.”

Mas afinal o que tem haver Educação com conceitos de Estado, Democracia e Direito? Esses mesmos autores acreditavam que a Educação é essencial na construção de um Estado ideal. Para Platão a educação era vista como essencial na construção de um estado ideal. Ele enfatizava que a educação deveria concentrar-se no cultivo das virtudes, como sabedoria, justiça, coragem e temperança:

“Assim, os indivíduos que não têm a experiência da sabedoria e da virtude, que estão sempre nas festas e nos prazeres afins, são, ao que me parece, transportados para a região baixa, depois de novo para a média, e erram assim durante toda a vida. Não sobem mais alto; nunca viram as verdadeiras alturas, nunca para lá foram transportados, nunca foram realmente cheios do Ser e não experimentaram prazer sólido e puro. A semelhança dos animais, de olhos sempre voltados para baixo, de cabeça inclinada para a terra e para a mesa, pastam na pastagem gorda e acasalam-se; e, para satisfazerem ainda mais seus apetites, escoicinham, batem-se com seus chifres e matam-se uns aos outros no furor do seu apetite insaciável, porque não encheram de coisas reais a parte real e estanque de si mesmos.”7

O filósofo do século XIX, Herbert Spencer, defende a educação para a cidadania ajudando os cidadãos a serem produtivos e a contribuírem para o bem-estar da sociedade:

“[...]. Nem a educação dos tempos passados, nem a da época atual, permitiram que

7 Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado –Brasília: Editora Kiron, 2012.

muita gente formasse uma ideia cientifica da sociedade, que lhes é apresentada como uma estrutura natural - estrutura que, em certo sentido, é orgânica - donde todas as instituições: governamentais, religiosas, industriais, comerciais, etc., estão em dependência reciproca – [...].8

O objetivo geral desse artigo é trazer através de conceitos e elementos fundamentais; de análise inferencial a partir de uma pesquisa online, e seus resultados sobre a educação social, política e cidadã, e por fim, os desafios a serem superados.

2. DESENVOLVIMENTO

Se o foco deste artigo é a educação sobre o Estado Democrático de Direito, nada mais correto do que conceituar esses termos, primeiramente de forma singular, a fim de entender seu significado primário, a seguir de forma combinada, para entender como esses termos movem a sociedade, e, por fim o conceito final do objeto desta matéria.

Começando pelo Estado, segundo o dicionário Houaiss9, temos 04 (quatro) definições: “país soberano, com estrutura própria e politicamente organizado”; “conjunto das instituições (governo, forças armadas, funcionalismo público etc.) que controlam e administram uma nação”; “forma de governo, regime político”; e, por fim “divisão territorial de determinados países”, donde concluímos que o que importa é a abrangência onde o Estado irá atuar e a população nela contida, sendo administrada por um sistema de governo que possui instituições que exercem poder e autoridade para tomada de decisões e estabelecimento de leis dentro desse território.

Democrático é um adjetivo, cuja definição clás-

8 Spencer, Herbert – “O indivíduo conta o Estado – texto retirado do site: https://filosofia.com.br/figuras/livros_ inteiros/268.txt (acesso em 29/07/2023) 9 https://houaiss.uol.com.br/corporativo/apps/uol_www/ v6-1/html/index.php#1 (acesso em 04/07/2023).

sica proferida por Abraham Lincoln: “Democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo.”, em seu discurso de Gettysburg, em 19 de novembro de 1863.

A Democracia é um sistema de governo em que o poder é exercido pelo povo ou por seus representantes eleitos, buscando a igualdade de direitos e oportunidades para todos, além da proteção das liberdades individuais e coletivas, e, a promoção da justiça social. Neste sistema, as decisões são tomadas por meio de processos transparentes, como eleições, debates públicos, consultas populares e negociações entre diferentes grupos de interesses.

Já a conceituação de Direito, pelo Dicionário Michaelis10, é: “a ciência das leis tribunais superiores, adaptando as normas às relações dos homens em sociedade.”; “complexo de leis vigentes em um país.”; e, conjunto de normas jurídicas que funcionam como referencial de justiça.”

Dessa forma podemos dizer que Direito é um campo de conhecimento, na qual regras e normas estabelecidas regulam a convivência entre as pessoas em uma sociedade, buscando estabelecer e manter a justiça, a ordem e a equidade nas relações humanas definindo e protegendo os direitos e deveres dos indivíduos, bem como estabelecer as consequências legais para o descumprimento dessas normas.

Para entender como esses termos movem a sociedade, deveremos estudá-los de forma combinada, começando pelo Estado Democrático, que é uma forma de organização política em que o poder é exercido pelo povo, o governo é baseado na vontade da maioria e em princípios de igualdade, liberdade, justiça, e direitos e liberdades garantidos, a participação dos cidadãos está presente na tomada de decisões, como eleições periódicas, referendos e consultas populares.

O Estado de Direito é um princípio fundamental do sistema jurídico que estabelece que todas

10 https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/ portugues-brasileiro/direito/ (acesso em 04/07/2023)

as pessoas, estão sujeitas às mesmas leis, aplicadas de forma justa e imparcial, garantindo a igualdade e que ninguém está acima delas. As decisões e ações do governo devem ser tomadas dentro dos limites estabelecidos pela lei.

Dessa forma, o Estado Democrático de Direito é um conceito que representa um sistema político e jurídico em que os poderes do Estado são exercidos dentro dos limites estabelecidos pela Constituição Federal, e, asseguram a proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos. É um modelo de organização estatal que busca conciliar a democracia, com a participação popular na tomada de decisões, e o respeito ao Estado de Direito, que garante a supremacia da lei e a proteção dos direitos individuais.

O Brasil tem assegurado o Estado Democrático de Direito, através da Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político.

Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Outro fator importante no Estado Democrático de Direito, é a independência e a interdependência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, atuando como freios e contrapesos para evitar o abuso de poder, sendo previsto no artigo 2º da CF/1988:

“Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.”

De maneira simplista, a Constituição Federal seria como um “contrato”, no qual os cidadãos transferem ao Estado o poder de geri-los em prol do bem comum, e, em contrapartida o Estado compromete-se a atender e satisfazer as necessidades de seus cidadãos, respeitando ambos os lados os limites impostos por este “contrato”.

Além disso, o Estado Democrático de Direito tem como finalidade a garantia de igualdade de todos as pessoas, independentemente de sua raça, gênero, religião, posição social ou qualquer outra característica pessoal, e que todos têm os mesmos direitos e obrigações legais e devem se submeter ao mesmo conjunto de leis, ou seja, significa que ninguém está acima da lei e que todos devem ser tratados de maneira justa e imparcial pelo sistema jurídico, em nosso ordenamento esses direitos estão no artigo 5º da Constituição Federal de 1988:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]”

Em suma, o Estado Democrático de Direito é um sistema que combina os princípios da democracia com o Estado de Direito, e busca estabelecer o equilíbrio entre a vontade popular e a proteção dos direitos individuais, assegurando a justa governança, transparente e responsável.

A seguir, serão apresentados apenas alguns elementos fundamentais, sem a pretensão de exaurir um assunto tão amplo e controverso, pois esses elementos podem variar de acordo com perspectivas, contextos e continuar evoluindo e se adaptando às necessidades e desa-

fios, sistemas políticos e contextos históricos.

Além dos elementos anteriormente desenvolvidos como a democracia, os direitos fundamentais e a separação de poderes, pode-se elencar da mesma forma:

i. Supremacia da Constituição: Para Hans Kelsen em “Teoria Pura do Direito”11, “A produção das normas jurídicas gerais, isto é, o processo legislativo, é regulado pela Constituição, e as leis formais ou processuais, por seu turno, tomam a sua conta regular a aplicação das leis materiais pelos tribunais e autoridades administrativas.”. No Estado Democrático de Direito, a Constituição é considerada a norma suprema, e todas as leis e atos normativos devem estar em conformidade com seus preceitos e nenhum órgão ou autoridade pública pode agir em desacordo com o que está estabelecido nela, caso isso ocorra, ela pode ser considerada como um ato inconstitucional.

ii. Controle de Constitucionalidade: É exercido pelos órgãos jurisdicionais, os quais têm o poder de declarar a inconstitucionalidade de uma norma e, consequentemente, excluí-la do ordenamento jurídico, com o intuito de assegurar a harmonia e a coerência do sistema jurídico brasileiro com os princípios e valores estabelecidos na Constituição Federal. Ainda parafraseando Hans Kelsen:

“Se a Constituição nada preceitua sobre a questão de saber quem há de fiscalizar a constitucionalidade das leis, os órgãos a quem a Constituição confere poder para aplicar as leis, especialmente os tribunais, portanto, são por isso mesmo, tornados competentes para efetuar esse controle. Visto que os tribunais sido competentes para aplicar as leis, eles têm de verificar se algo cujo sentido subjetivo é o de ser uma lei também objetivamente tem este sentido. E só terá esse sentido objetivo quando

11 KELSEN, Hans, 1881-1973. “Teoria Pura do Direito” – tradução: João Baptista Machado — 6* ed. — São Paulo: Martins Fontes, 1998. — (Ensino Superior) página 80

seja conforme a Constituição.”12

No Brasil, existem diferentes formas de controle de constitucionalidade, sendo as principais: (a) controle difuso: qualquer juiz ou tribunal pode analisar a constitucionalidade de uma lei em um caso concreto, se declarada a inconstitucionalidade da norma ela será limitada ao caso em análise, sem efeito vinculante a outros processos.; (b) controle concentrado: realizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), através de ferramentas como: Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs), Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), na qual a constitucionalidade de uma lei é analisada de forma abstrata, ou seja, sem um caso concreto. SE o STF declarar a inconstitucionalidade de uma lei a tornará inválida em todo o território nacional, ou seja, com efeito “erga omnes” (para todos).

Cabe ressaltar que o Brasil adota o sistema de jurisdição constitucional concentrada, isso significa, que o STF é o principal órgão responsável pelo controle de constitucionalidade no país, tendo a palavra final em muitos casos.

iii. Participação popular: é valorizada a participação ativa, direta ou indireta, dos cidadãos na vida política e nas decisões que afetam a sociedade como um todo. Isso assegura que as vozes das pessoas sejam ouvidas e que elas tenham influência sobre as políticas e leis que impactam suas vidas.

Existem várias formas de participação popular na democracia, entre elas: referendos, plebiscitos; iniciativas populares; audiências públicas e consultas públicas, além dessas formas mais tradicionais, a participação popular também pode ser promovida por meios digitais, como sites governamentais interativos, plataformas de consulta online e redes sociais. Mas são as eleições onde o cidadão exerce plenamente seus direitos políticos, como o direito de votar 12 KELSEN, Hans, 1881-1973. “Teoria Pura do Direito” – tradução: João Baptista Machado — 6* ed. — São Paulo: Martins Fontes, 1998. — (Ensino Superior) página 276

e de serem eleitos. Eleições livres, justas e periódicas são fundamentais para a expressão da vontade popular e a renovação democrática, na conceituação de Dallari:13

“É preciso reconhecer que a participação do povo tem limitações, não podendo abranger todas as decisões dos governos, mas, ao mesmo tempo, é evidente que a participação popular é benéfica para a sociedade, sendo mais uma forma de democracia direta, que pode orientar os governos e os próprios representantes eleitos quanto ao pensamento do povo sobre questões de interesse comum.

Uma forma de participação popular que já era praticada por alguns Estados e que teve expressiva ampliação foi a iniciativa popular de projetos de lei.”

Outro benefício da participação popular é a promoção da transparência, da prestação de contas. Os órgãos governamentais operam de forma aberta, honesta e responsável perante seus cidadãos, disponibilizando informações relevantes de forma clara e acessível sobre suas ações, gastos públicos e tomada de decisões.

Os governantes devem ser éticos, agir de acordo com as leis, ouvir as demandas dos cidadãos e responder a eles de maneira justa e adequada, sendo obrigados a prestar contas de suas ações e decisões, bem como garantir que os recursos públicos sejam utilizados de maneira eficiente e para o benefício da sociedade como um todo, respondendo perante ao público e aos órgãos de controle.

A “accountability” são os mecanismos de controle, como auditorias, investigações e punições, que visam garantir a integridade e a ética na administração pública, e está relacionada à responsabilização dos agentes públicos pelos seus atos e decisões, e responsabilizados por eventuais abusos de poder, corrupção ou outras 13 DALLARI, Dalmo de Abreu – “Elementos de Teoria Geral do Estado” – 30ª edição – 2011 – Editora Saraiva

irregularidades.

Em resumo, um governo transparente e responsável traz uma série de benefícios, como promover a confiança entre governantes e cidadãos, fortalecer a democracia e contribuir para um ambiente político mais ético e íntegro.

iv. Pluralismo político: é um dos fundamentos previstos no artigo 1º, inciso V, da CF/88, cujo conceito é a existência de diferentes correntes ideológicas e partidos políticos, permitindo a diversidade de opiniões e a livre competição política. O pluralismo político é essencial para a expressão da vontade dos cidadãos e para o funcionamento do sistema democrático.

“[...] pluralismo político em fundamento da República Federativa do Brasil, implicando que nossa sociedade deve reconhecer e garantir a inclusão, nos processos de formação da vontade geral, das diversas correntes de pensamento e grupos representantes de interesses existentes no seio do corpo comunitário.”14 (PAULO, Vicente)

v. Estado de bem-estar econômico ou bem-estar social: Além do Estado de bem-estar social mencionado anteriormente, o Estado Democrático de Direito também busca promover o bem-estar econômico e social dos cidadãos. Isso envolve a criação de condições favoráveis para o desenvolvimento econômico, a proteção dos direitos dos trabalhadores, a regulação do mercado, a promoção da igualdade de oportunidades econômicas, proteção dos direitos sociais, igualdade de oportunidades, estabilidade social: entre outros aspectos.

vi. Proteção dos direitos humanos: O respeito e a proteção dos direitos humanos são pilares fundamentais do Estado Democrático de Direito. Isso envolve a garantia dos direitos civis e políticos, como a liberdade de expressão e de reunião, bem como os direitos sociais, econômi-

14 PAULO, Vicente, 1968- “Direito Constitucional descomplicado I” - Vicente Paulo, Marcelo Alexandrino. - 16. ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2017. página 90

cos e culturais, como o direito à saúde, à moradia e à educação.

vii. Autonomia e independência do Poder Judiciário: O Poder Judiciário desempenha um papel fundamental no Estado Democrático de Direito, ele assegura a imparcialidade e a aplicação conforme as leis, para isso, são necessárias a garantia de sua autonomia e imunidade frente às interferências externas. Nas palavras de Konrad Hesse a respeito da função do Poder Judiciário, no sentido de que:

“a peculiaridade dessa função básica não se deixa, como isso muitas vezes já foi tentado caracterizar pelo característico geral da aplicação do direito a fatos concretos. Porque esta é assunto de todos os órgãos estatais que, em conformidade com a densidade diferente de sua vinculação jurídica, têm de concretizar direito, especialmente administração. Também o característico da decisão do conflito não possibilita determinação suficiente da peculiaridade da jurisdição, já porque ela não compreende a tarefa da justiça criminal, que não decide litígios. Jurisdição é, antes, caracterizada em sua psicologia dos tipos fundamentais pela tarefa de decisão autoritária e, com isso, obrigatória, independentizada, em casos de direito contestado ou violado, em um procedimento especial; ela serve exclusivamente à conservação e, com essa, à concretização e aperfeiçoamento do direito”15

viii. Direitos das minorias e a promoção da diversidade e da inclusão: Um Estado Democrático de Direito valoriza a proteção dos direitos das minorias, que podem incluir minorias étnicas, religiosas, linguísticas, de gênero, sexuais, pessoas com deficiência, entre outros, garantindo que todos os indivíduos tenham acesso igual aos direitos humanos básicos e sejam tratados de forma igualitária, a fim de proteger 15 HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Trad. Luís Afonso Heck. 20 ed. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1998, p. 411.

esses grupos contra discriminação, marginalização, exclusão social e violência. Trata-se de criar ambientes e sociedades que valorizem e respeitem a pluralidade de características e identidades das pessoas, proporcionando igualdade de oportunidades e acesso a todos e desenvolver ações como por exemplo: promover a conscientização sobre a importância da diversidade e da inclusão, destacando os benefícios que ela traz para indivíduos e organizações, implementar políticas e práticas inclusivas, treinamentos e capacitações para os colaboradores e membros da comunidade, criação de espaços seguros nos quais as pessoas se sintam à vontade para serem autênticas, expressarem suas opiniões e compartilharem suas experiências sem medo de discriminação ou preconceito, garantir a representação diversificada em todos os níveis e setores da sociedade, implementar medidas para identificar, denunciar e combater atitudes discriminatórias e preconceituosas, criando canais de denúncia e adotando políticas de tolerância zero, entre outras para combater a discriminação e promover a igualdade de oportunidades.

ix. Proteção da privacidade e dos dados pessoais: A privacidade refere-se ao direito de cada pessoa controlar o acesso e o uso de suas informações pessoais e busca evitar que essas informações sejam coletadas, utilizadas ou divulgadas sem o consentimento do titular dos dados e é garantida por meio de leis e regulamentações específicas, como o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR, na sigla em inglês), aplicado na União Europeia, e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em vigor no Brasil desde setembro de 2020 essa necessidade deve-se ao avanço da tecnologia, cada vez mais dados pessoais são coletados, armazenados e utilizados por empresas, organizações e governos

x. Liberdade de imprensa: Ela é essencial para a garantia da pluralidade de ideias, transparência governamental e para o exercício da cidadania e desempenha um papel crucial ao informar

a população sobre questões de interesse público, fiscalizar o poder público, denunciar abusos e promover o debate democrático. Ao assegurar a liberdade de expressão e de imprensa, um Estado democrático garante que os cidadãos tenham acesso a informações diversas, possibilitando que formem opiniões informadas e participem ativamente da vida política. Além disso, a liberdade de imprensa contribui para a accountability (responsabilização) dos agentes públicos, pois a imprensa tem o poder de investigar e expor irregularidades, corrupção e abusos de poder. Essa função de vigilância da imprensa é crucial para a manutenção da transparência e do controle sobre os atos do governo.

xi. Desenvolvimento sustentável e proteção do meio ambiente: busca promover a harmonia entre o desenvolvimento econômico, a proteção ambiental e o respeito aos direitos humanos, para garantir um futuro melhor para as gerações presentes e futuras. O desenvolvimento sustentável refere-se a um modelo de crescimento econômico que leva em consideração os limites ecológicos do planeta, visando atender às necessidades das pessoas sem comprometer a capacidade das futuras gerações de suprir suas próprias demandas. A proteção do meio ambiente reconhece o direito fundamental e uma responsabilidade coletiva. Isso envolve a adoção de políticas de preservação, a regulação de atividades que possam causar danos ambientais.

xii. Educação e cultura: O Estado Democrático de Direito reconhece a importância da educação e da cultura na formação dos cidadãos e na construção de uma sociedade democrática. Garantir o acesso à educação de qualidade, promover a liberdade acadêmica, valorizar a diversidade cultural e proteger o patrimônio cultural são elementos fundamentais nesse contexto.

Quando esses elementos fundamentais são violados ou preteridos, causa uma gama de desafios a serem vencidos, tais como: a interferência de um poder sobre o outro, podendo comprometer a imparcialidade e efetividade destas ins-

tituições, levando a polarização política extrema, divisão ideológica fomentada por debates políticos em confrontos acirrados entre diferentes grupos, tornando mais complicado alcançar consensos e promover diálogo construtivo.

A influência desproporcional de interesses econômicos e corporativos na política pode minar a integridade e a imparcialidade das instituições e pode levar o Estado à falta de prestação de contas e ao enfraquecimento dos mecanismos de controle oportunizando a corrupção, que prejudica a confiança dos cidadãos nas instituições públicas, através dos constantes dos desvios de recursos públicos que deveriam ser utilizados para o bem comum, propiciando a desigualdade socioeconômica que compromete a equidade e a justiça dentro da sociedade.

Essas disparidades de renda, limita o acesso social às oportunidades e recursos, forçando a migração e deslocamento populacional e favorecendo a criminalidade e violência e a falta de segurança pode minar a confiança dos cidadãos nas instituições e dificultar a efetivação dos direitos fundamentais.

Outras dificuldades a serem superadas são os desafios tecnológicos para que possam garantir a proteção dos direitos individuais e coletivos no mundo digital, tais como privacidade, segurança cibernética, regulação das redes sociais e a inteligência artificial, sem esquecer o combate à desinformação, aos “Fake News” e a manipulação da opinião pública por meio das redes sociais

Outro obstáculo é a proteção dos direitos humanos e das minorias, são desafios relacionados à discriminação, violência e exclusão social de certos grupos, mas sem incentivar os movimentos extremistas e populistas, que se fundamentam em discursos polarizados, desrespeitando os direitos humanos e a diversidade e ameaçando os princípios como igualdade, a tolerância e a liberdade de expressão.

Esses desafios por si só, já são suficientemente

graves, e a falta de educação política e cívica dos cidadãos favorece o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito.

A alienação, o desinteresse na participação política pelo cidadão, faz com que haja baixa taxa de participação nas eleições, falta de engajamento cívico e menor fiscalização das ações dos governantes, tornando essa população suscetível à manipulação de políticos populistas ou demagogos, pois sem a capacidade de discernimento de informações confiáveis e sem compreender os mecanismos políticos, esses indivíduos podem ser seduzidos por discursos simplistas, demagógicos e de promessas vazias. O baixo nível de qualidade do debate público contribui para a ausência de conhecimento sobre questões políticas, sociais e econômicas podendo resultar em discussões superficiais, polarizadas e baseadas em emoções em vez de fatos e argumentos fundamentados.

Os cidadãos que não entendem plenamente seus direitos e responsabilidades, têm menos probabilidade de denunciar atos de corrupção ou de exigir prestação de contas dos políticos. Limitando a capacidade dos cidadãos em avaliar e analisar informações políticas de forma crítica, abre-se espaço para a dificuldade dos cidadãos em distinguir informações falsas das verdadeiras, o que pode afetar negativamente o debate público, a formação de opiniões e a tomada de decisões informadas, prejudicando a qualidade e desvalorizando da democracia.

Pode ainda causar o aumento da intolerância, discriminação e preconceito, a falta de compreensão e empatia em relação a diferentes identidades, culturas e perspectivas pode resultar em divisões sociais, conflitos e violações dos direitos humanos, e com esses elementos é impossível construir uma cultura democrática sólida, baseada no respeito pelos direitos e liberdades fundamentais, na tolerância, no diálogo e na participação cidadã.

Resumindo, a educação política e cívica ade-

quada é essencial para cultivar uma cultura de cidadania ativa e responsável. A falta de educação cívica pode levar à desvalorização da cidadania, diminuindo a compreensão e o respeito pelos direitos e deveres cívicos, e prejudicando a construção de uma sociedade participativa e comprometida.

A fim de determinar se há necessidade, e, se é importante da educação política e cidadã para a manutenção do Estado Democrático de Direito, buscamos a opinião, através de uma pequena pesquisa online, entre alguns seguidores nas redes sociais. Foram coletadas respostas de 51 participantes, sendo um conjunto de 54,9% (cinquenta e quatro e noventa por cento) de mulheres e 45,1% (quarenta e cinco e dez por cento de homens.

Em um universo onde a maioria (27,5%) pertencem a faixa de 18 a 23 anos, seguida da faixa acima de 55 anos (23,5%), sendo 37,3% (trinta e sete, e trinta por cento) possuem ensino superior incompleto, 27,5% (vinte e sete e meio por cento) possuem Pós Graduação completa, 19,6% (dezenove e sessenta por cento) já tem o Ensino Superior completo, 9,8% (nove e oitenta por cento) tem o ensino médio completo e aproximadamente 5,8% (cinco e oitenta por cento) possuem curso técnico e Pós Doutorado.

Verificamos que todos já ouviram o termo “Estado Democrático de Direito” e 88,2% (oitenta e oito e vinte por cento) acredita que a educação política e cidadã atua de forma positiva no combate a desinformação, a polarização política e a apatia eleitoral, inclusive acreditam que esse tipo de educação contribui para o empoderamento dos cidadãos, estimulando-os a participar de forma ativa e responsável no processo político (98%).

Dentro desta amostragem, foi questionada se deveria ser ministrada nas escolas a educação política e cidadã e quais metodologias deveriam ser usadas. Apenas 1% se mostrou contrário a esse tipo de educação nas escolas, 1% não tem opinião a respeito.

Dentre as várias opções metodológicas, que poderiam ser escolhidas de forma unitária ou combinadas, 58,8% (cinquenta e oito e oitenta por cento) acham que a educação política e cidadã nas escolas deveriam ser ministradas através de aulas teóricas regulares, 51% (cinquenta e um por cento) acreditam que as aulas práticas seriam uma grande aliada, 25,5% (vinte e cinco e cinquenta por cento) escolheram o clube de debates e 19,6% (dezenove e sessenta por cento) optaram pelas palestras, como podemos verificar no gráfico abaixo:

Atualmente, 62,7% (sessenta e dois e setenta por cento) dos entrevistados se consideram bem informados sobre as propostas e plataformas políticas dos candidatos e fazem a escolha dos seus candidatos principalmente através dos quesitos: integridade e ética (66,7%) e seu posicionamento quanto a questões importantes (62,7%).

Baseado nas respostas apresentadas, verificamos que a população acredita ser crucial o investimento na educação política dos cidadãos, promovendo o acesso a informações confiáveis, o desenvolvimento de habilidades de pensamento crítico e a participação ativa na vida política. Isso pode ser feito por meio de programas educacionais, currículos escolares, debates públicos, mídia responsável e outras

iniciativas que visem a capacitar os cidadãos a compreender, questionar e influenciar o ambiente político em que vivem.

A educação desempenha um papel fundamental na promoção e fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Ela contribui para o desenvolvimento de cidadãos conscientes, informados e engajados, capazes de exercer seus direitos e cumprir suas responsabilidades dentro de uma sociedade democrática. Aqui estão algumas maneiras pelas quais a educação pode ser uma solução para enfrentar os desafios do Estado Democrático de Direito: a) Conhecimento dos direitos e deveres; b) consciência cívica; pensamento crítico; tolerância e respeito à diversidade; participação cidadã e ética e responsabilidade

É importante destacar que a educação para o Estado Democrático de Direito deve ser abrangente e contínua, começando desde a infância e continuando ao longo da vida. Além disso, ela deve ser acessível a todos, independentemente de sua origem socioeconômica ou contexto cultural.

Além das soluções mencionadas anteriormente, a educação também traz outros benefícios para enfrentar os desafios do Estado Democrático de Direito. Aqui estão alguns exemplos: empoderamento dos cidadãos; redução da desigualdade; prevenção da violência e do extremismo; desenvolvimento econômico; participação informada; proteção dos direitos humanos e sustentabilidade ambiental.

Esses são apenas alguns dos benefícios da educação na promoção e no fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Através de uma abordagem abrangente e investimentos adequados, a educação pode contribuir significativamente para superar os desafios e construir sociedades mais democráticas e justas

CONSIDERAÇÕES

FINAIS

E assim chegamos ao que fazer para atingirmos ao Estado Democrático de Direito ideal e mantê-lo?

A participação cívica é a chave. Um aspecto fundamental de uma sociedade democrática, pois permite que os cidadãos exerçam seus direitos e influenciem as decisões políticas e sociais. A participação cívica vai além do ato de votar, mas também se envolver em atividades cívicas, como protestos pacíficos, petições, trabalho voluntário e engajamento em organizações da sociedade civil. Essas atividades permitem que os cidadãos expressem suas preocupações, influenciem a agenda política e trabalhem coletivamente para promover mudanças.

No entanto, o desconhecimento sobre o Estado Democrático de Direito pode limitar essa participação e levar à falta de envolvimento ativo na vida política e social.

Quando os cidadãos não compreendem plenamente seus direitos e deveres, eles podem não perceber a importância de exercer sua cidadania de forma efetiva. Isso inclui a participação em eleições, onde cada voto conta para a escolha de representantes e governantes. A falta de participação eleitoral pode resultar em uma representação política deficiente e na ausência de vozes diversas na tomada de decisões.

Portanto, é essencial promover a educação cívica e o acesso à informação para garantir que os cidadãos compreendam plenamente seus direitos e deveres no Estado Democrático de Direito. Isso pode envolver a inclusão desse tema nos currículos escolares, a realização de campanhas de conscientização e a disponibilização de informações claras e acessíveis sobre o funcionamento do sistema político e dos direitos civis. Dessa forma, os cidadãos estarão mais aptos a exercer sua cidadania de forma efetiva e participar ativamente na vida política e social.

Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado – Brasília: Editora Kiron, 2012. Maquiavel, Nicolau. “O Príncipe” – tradução de Maurício Santana Dias, prefácio de Fernando Henrique Cardoso, 2010 – Penguin Companhia

Aristóteles. “Política” – Coleção a obra-prima de cada autor – Martin Claret

Rousseau, Jean-Jacques – “O Contrato Social” – tradução: Antonio de Pádua Danesi – 3ª edição – Editora Martins Fontes, 1996

Platão. “Critão (Criton) ou o DEVER” – extraído do livro Diálogos, da Coleção Classicos Cultrixtradução Jaime Bruna

Kant, Immanuel – “Crítica da Razão Prática” - Tradução e Prefácio: Afonso Bertagnoli - Edições e Publicações Brasil Editora S.A., São Paulo, 1959

Platão. “A República” - Organização: Daniel Alves Machado – Brasília: Editora Kiron, 2012.

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ABUSO SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR: UM PROBLEMA INTRÍNSECO EM NOSSA SOCIEDADE

O presente artigo trás uma explicação do que se trata o abuso sexual cometido dentro do ambiente familiar, entendido como abuso sexual intrafamiliar, o porque isso ocorre com tanta facilidade. Explicações sobre a responsabilidade e omissão dos responsáveis que são garantidores das crianças e adolescentes. E meios aptos para que possa haver uma prevenção e a erradicação do abuso sexual infantil intrafamiliar.

Palavras-chave

Abuso Sexual - Família - Estupro de Vulnerável Intrafamiliar - Violência Sexual

Leandro Galvão

Graduado em Direito 2013 pela antiga FSP - Faculdade Sudoeste Paulista e atualmente UNISP – Universidade Sudoeste Paulista na cidade de Avaré/SP, Advogado atuando desde de 2013 nas áreas do Direito Cível, Direito Criminal, Direito Tributário, Direito Empresarial, Pós Graduado em Direito Imobiliário e Direito Público pela Faculdade Legale, Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente 2023/2024 - Subseção Avaré/SP, Vice Presidente da Comissão da Jovem Advocacia 2022/2024 - Subseção Avaré/SP e Membro Efetivo da Comissão de Ética - Subseção Avaré/SP.

1.

INTRODUÇÃO

Vivenciamos tempos assombrosos em nossa sociedade, sabemos que falar sobre abuso sexual infantil é um tema muito delicado e complexo para as familias, e se torna mais dificil quando o assunto é referente ao abuso intrafamilia, ou seja, dentro da própria familia que tem o dever de cuidar e proteger.

É um fenômeno sombrio que ocorre dentro das paredes de uma casa onde crianças são vítimas de abuso por parte de seus próprios familiares. Este grave problema tem consequências devastadoras e requer atenção urgente e ação coletiva para combater esta forma de violência.

Este artigo busca explicar o contexto do abuso sexual infantil dentro da familia, o porque esse fenômeno ocorre sendo que este deveria ser um ambiente de segurança para a criança ou adolescente.

2. TRAJETÓRIA HISTÓRICA

COM RELAÇÃO A CRIANÇA

E ADOLESCENTE

É nitido que a proteção da criança e adolescente é recente, temos uma Constituição de 1988 que trouxe a proteção integral da criança e adolescente e uma Lei de 1990 – Estatuto da Criança e Adolescente. E

Aos poucos com os acontecimentos há a inserção em nosso ordenamento jurídico de novas leis como; LEI Nº 14.344/2022 denominada Lei HENRY BOREL que cria mecanismos para a prevenção e o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, Lei da escuta especializada 13.431/2017 que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, Lei Menino BERNARDO 13.010/2014 que altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), para estabelecer o direito da criança e do adolescente de serem edu-

cados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante.

Mas evidente que antigamente não era assim, havia o tão famoso código de Hamurabi (17001600 a.C) que permitia práticas que atualmente são considerados crimes. O filho que batesse no pai sua mão seria cortada, o filho que falasse algo que não era apropriado sua lingua seria cortada. Já na data de 449 a.C mais precisamente em Roma era permitido que o pai matasse seu filho se o mesmo nascia com algum problema de saúde ou fisico, isso tendo como base que seu filho era sua propriedade e tinha o poder na vida ou morte, isso também ocorreu na Grécia antiga, ou seja, as crianças não tinham direito algum.

Podemos começar a pensar em distinção somente no século XVIII, onde se constatou que a infância seria uma fase diferente da fase adulta, mas mesmo assim as punições e castigos ainda existiam com paus, ferros, espancamentos.

Porém somente em meados de 1871 com a fundação em Nova York da Sociedade para Prevenção da Crueldade contra Crianças a história começou a tomar um rumo diferente, mas após o caso da menina Mary Ellen que sofreu diversos maus-tratos na familia substituta, já que sua familia havia a abandonado.

Mas temos que destacar que em nosso Brasil também não foi tão diferente assim, a relatos históricos que crianças que estavam presentes em embarcações eram submetidas a desejos sexuais dos marujos, além de trabalhos escravos, e também eram lançadas ao mar já que não serviam mais e havia necessidade de controle da população a bordo.

Interessante a abordagem de Maria Berenice Dias;

Apesar de toda a consolidação dos direitos humanos, o homem continua sendo considerado proprietário do corpo e da vontade da mulher e dos filhos. A sociedade protege a agressividade masculina, respeita

sua virilidade, construindo a crença da sua superioridade. Afetividade e sensibilidade não são expressões que combinam com a idealizada imagem masculina. Desde o nascimento, o homem é encorajado a ser forte, não chorar, não levar desaforo para casa, não ser „mulherzinha”. Precisa ser um super-homem, pois não lhe é permitido ser apenas humano. Essa errônea consciência de poder é que assegura, ao varão, o suposto direito de fazer uso de sua força física e superioridade corporal sobre todos os membros da família. Venderam para a mulher a ideia de que ela é frágil e necessita de proteção, tendo sido delegado ao homem o papel de protetor, de provedor. Daí à dominação, do sentimento de superioridade à agressão, é um passo.

3. PROTEÇÃO EM NOSSO

ORDENAMENTO JURÍDICO

Estabelece em nossa Constituição Federal em seu artigo 227 que é dever da familia assegurar a proteção da criança e adolescente, também é estendido para a sociedade e estado.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Importante destacar que quando a familia não tem a capacidade de cuidar ou que esteja omissa quando há evidencias de crime cabe a sociedade ou o estado esse papel, trazendo para ambos o dever de cuidar.

Também temos na Lei 8.068/1990 – Estatuto da Criança e Adolescente artigos relacionados ao tema em especifico;

Art. 4º É dever da família, da comunidade,

da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Art. 5º Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais.

Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor

O Estatuto da Criança e Adolescente deixa bem claro em sua redação que é obrigação e dever da familia o cuidado, proteção, educação, respeito, dignidade.

Outra lei que abrange nosso artigo é a Lei nº. 14.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima, ou testemunha de violência explícita às formas de violência, dividindo-as em física, psicológica, sexual e institucional. Com esta lei precisamos entender o que é abuso sexual e exploração sexual, ambas consideradas violencias sexuais.

O abuso sexual tem com premissa básica sendo uma pessoa forçada ou coagida a participar de atividades sexuais sem o seu consentimento. Isso pode ocorrer em diversas situações, como em relações familiares, entre conhecidos ou em contextos de trabalho. Geralmente, o abusador é alguém que a vítima conhece ou em quem confia.

Já a exploração sexual se difere sendo quando uma pessoa é coagida ou forçada a se envolver em atividades sexuais em troca de dinheiro, bens ou serviços. Isso pode incluir a prostituição, a pornografia infantil e o tráfico humano

para fins sexuais. Na exploração sexual, o agressor é geralmente um explorador que se beneficia financeiramente da exploração da vítima.

Deste modo, é visivel que há uma preocupação maior com relação as crianças e adolescentes em nosso ordenamento jurídico, temos como base nossa constituição federal, além de leis que operam a favor das crianças e adolescentes.

Mas tudo isso precisa ser colocado em pratica, não basta as leis sem o seu devido cumprimento e efetividade. Temos que ter em nossos pensamentos que a proteção da criança e adolescente depende de uma engrenagem que envolve, família, sociedade e estado.

4. DEFINIÇÃO DE ABUSO SEXUAL

INFANTIL

INTRAFAMILIAR

E OMISSÃO DE QUEM TEM O DEVER DE CUIDAR

O abuso sexual infantil doméstico refere-se ao abuso sexual de crianças ou adolescentes na família por parentes próximos, como pais/mães, padrastos/madrastas, irmãos/irmãs, tios/tias ou avôs/avós. Essa forma de abuso pode assumir várias formas, como toques inapropriados. divulgação de conteúdo sexual e obsessão para praticar atos sexuais ou coerção mental.

O abuso sexual infantil por parte de familiares, sob qualquer forma, é uma violação inaceitável dos direitos humanos e uma tragédia que traz consequências profundos e irreversíveis para a vida de suas vítimas.

Por muitas vezes o abuso sexual é continuo, não se trata de algo que acontece uma única vez e ponto final, acontece por anos, há relatos que os abusos começaram aos 2 anos e terminaram aos 15 anos, ou seja, começou quando era criança e se estendeu até a adolescência, inaceitável sabermos que isso ocorre em nossa sociedade, e dentro das próprias residências.

O que mais chama atenção dentro do abuso se-

xual intrafamiliar é a conduta do responsável, que muitas vezes sabe o que está acontecendo, mas acaba encobertado o abusador/agressor.

Um dos fatores mais chocantes que leva a omissão é o fato do abusador ser a única pessoa responsável pela parte financeira da residência, único trabalhador.

Temos que ter em mente que a omissão também é crime, tão aterrorizante quanto ao próprio abuso, em muitos casos constatados a omissão a penalização para o omissor é a mesma tipificação do crime cometido. Exemplo: Se houve um abuso sexual e estaáprovado que houve o crime de estupro de vulnerável o omissor é condenado também pelo crime de estupro de vulnerável.

Isto é entendido desta forma tendo como parâmetros que o responsável pela criança ou adolescente tinha e tem o dever de cuidados e proteção, mas não o faz, e pior, deixou algo acontecer sabendo que poderia tere protegido.

Nesse ponto destaco os julgados do Rio Grande do Sul e Distrito Federal que destaca o ponto citado;

APELAÇÃO. DELITO CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL PRATICADO MEDIANTE OMISSÃO PENALMENTE RELEVANTE. FATO-CRIME. (...) Todavia, na espécie, em que atribuída à ré conduta omissiva imprópria (no qual a agente não causou diretamente o resultado, mas permitiu que ele ocorresse, abstendo-se de agir quando deveria e poderia para evitar a sua ocorrência), tal circunstância (ascendência) caracteriza-se na própria elementar do tipo penal (estupro de vulnerável), justamente pela posição de garante da agente, que tinha a obrigação legal de cuidado, proteção e vigilância para com a vítima, sua filha. Assim, de ofício, vai afastada a causa de aumento para evitar indesejado bis in idem entre a consideração concomitante da... elementar do tipo penal e a majorante da ascendência. Precedentes.(...)(TJ-RS - ACR:

70079617783 RS, Relator: Vanderlei Teresinha Tremeia Kubiak, Data de Julgamento: 30/05/2019, Sexta Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 04/06/2019).

Estupro de vulnerável no âmbito doméstico e familiar. Omissão imprópria. Nulidade. Provas. Pena. Individualização: agravante, fração e causa de aumento. Continuidade delitiva. Perda do cargo. Dano moral. Valor. 1 - Compete ao juiz, como destinatário final da prova, valendo-se de sua discricionariedade regrada, avaliar quais provas são pertinentes e úteis ao deslinde da causa. Se a carta que a defesa pretendia periciar não era relevante para a elucidação dos fatos, não se declara nula a sentença por cerceamento de defesa. 2 - As declarações firmes e coesas da vítima - criança à época dos fatos - de que o réu cometeu abusos sexuais contra ela durante três anos, corroboradas pelo depoimento de testemunhas e a confissão parcial do réu, são provas suficientes para condenação. 3 - A mãe que, sabendo que a filha, então criança, estava sendo abusada sexualmente pelo padrasto, omite seu dever de cuidado, proteção e vigilância, nada fazendo para evitar os abusos, chegando a recusar fazer ocorrência policial e a dissuadir a filha a revelar os abusos, comete crime sexual na forma omissiva imprópria. 4 - Se a imputação do crime à ré - por omissão imprópria - decorreu do fato de ser ela mãe da vítima, considerar novamente a condição de mãe para aumentar a pena na terceira fase caracteriza bis in idem, que impede a causa de aumento do art. 226, II do CP. 5 - Predomina no e. STJ e no Tribunal o entendimento de que o aumento para cada agravante deve ser de 1/6. Aumento em fração superior exige fundamentação concreta. 6 - Há continuidade delitiva entre os crimes de estupro e estupro de vulnerável, da mesma espécie, cometidos contra a mesma vítima, nas mesmas condições de tempo, lugar e modo de execução. Devido ao sig-

nificativo período em que ocorreram os abusos - três anos - o aumento deve ser na fração de 2/3. 7 - Cometido crime incompatível com o cargo público que ocupa - agente penitenciário - e a condenação é em pena privativa de liberdade superior a 4 anos, decreta-se a perda de cargo público como efeito da condenação (art. 92, I, b, do CP). 8 - Havendo pedido expresso na denúncia, admite-se, na sentença condenatória criminal, fixar indenização mínima a título de dano moral, independentemente de instrução probatória (STJ, REsp 1.643.051/MS). 9 - Inexistem parâmetros rígidos e apriorísticos para se fixar indenização por dano moral, devendo ser levados em conta critérios de proporcionalidade e razoabilidade, atendidas as condições do ofensor, do ofendido e do bem jurídico lesado. Fixada em valor razoável, deve ser mantida a indenização. 10 - Apelações dos réus providas em parte. Não provida a do assistente de acusação. (TJ-DF 00150830420168070009 - Segredo de Justiça 0015083-04.2016.8.07.0009, Relator: JAIR SOARES, Data de Julgamento: 22/10/2020, 2ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 27/10/2020 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)

Esclarece os doutrinadores Albuquerque e Osório (2017, p. 03) o que são crimes omissivos impróprios,

Os crimes omissivos impróprios são caracterizados por uma omisssão dolosa ou imprudente de evitar um resultado previsto como crime (morte, lesão corporal, etc.), que somente pode ser atribuída ao agente que detinha a especial responsabilidade de evitar o resultado, ou seja, a pessoa que ocupa a posição de garantidor.

É de extrema importância destacar que a omissão é um descumprimento de cuidados e proteção da criança e adolescente e será responsabilizada criminalmente.

O Código Penal regulou expressamente as hipóteses em que o agente assume a condição de

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.

[...]

§ 2º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem:

a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância

b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado

c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

Neste caso em especifico em que tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; do dever de cuidar dos pais em relação aos filhos. A mãe que deixa de proteger a filha, que, por conta da sua negligência, acaba sendo estuprada. Essa mãe deverá responder pelo resultado gerado, qual seja, estupro. Se, de outro lado, a mãe desejou sabia do que estava acontecendo e não fez nada ou assumiu o risco de produzi-lo, responderá pelo crime de estupro.

Dessa maneira, os crimes cometidos por meio de omissão sempre geraram dúvidas quanto a sua responsabilidade dos envolvidos, pois, a conduta criminosa é quase sempre associada à ideia de ação, mas se pode pensar desta forma, como foi explanado, o não-agir, o deixar de fazer, a conduta negativa, a omissão também pode se enquadrar em tipos penais.

5. FATORES INTRASSOCIAIS

O abuso sexual de crianças em casa é um reflexo de muitos fatores inerentes à nossa sociedade.

Alguns desses fatores incluem:

Uma cultura de silêncio e tabus: O assédio sexual é frequentemente cercado por uma cultura de silêncio. As vítimas sentem vergonha, culpa e medo de falar sobre o que aconteceu. Estamos vivenciando tempos em que o abusador se torna a vitima e a vitima se torna o abusador, uma inversão de papeis.

Temos como bas inúmeros mitos que nossa sociedade insere no dia a dia;

- As crianças consentem e gostam do abuso.

- As crianças só revelam se tiverem sido fisicamente agredidas.

- As crianças mentem e inventam.

- É melhor não falar sobre abuso sexual.

- Não se deve perguntar sobre abuso. A criança esquecerá.

- As seqüelas não existem.

- As adolescentes provocam o abuso.

- As adolescentes seduzem o abusador.

- As adolescentes inventam.

- Rivalidade mãe- filha.

- As adolescentes gostam do abuso.

- As roupas usadas são para provocar o abusador

- O abuso sexual se deve ao álcool.

- Abusadores sexuais foram abusados na infância.

- Os homens são seres hipersexuais.

- Os abusadores são incapazes de se controlar.

- Os abusadores não têm vida sexual adultas.

- O abusador é um homem “tarado” fácil de identificar.

- O abusador é um estranho ou um doente mental.

- O abusador é somente o homem.

Além disso, o tabu sobre a sexualidade muitas vezes dificulta a discussão aberta sobre o assunto.

Evidente que em muitos casos, o abuso sexual ocorre em famílias disfuncionais, familias desestruturadas onde há problemas de violência doméstica, abuso de substâncias, desemprego ou pobreza extrema. Esses fatores aumentam o risco de violações e dificultam o acesso aos recursos de suporte.

O abuso sexual infantil dentro da família é muitas vezes motivado pelo desejo de exercer poder e controle sobre as vítimas. Abusadores podem usar sua posição familiar para explorar e manipular crianças, tirando proveito de sua vulnerabilidade e confiança.

As consequências do abuso sexual infantil intrafamiliar são profundas e duradouras. Essas crianças enfrentam um grande impacto físico, psicológico e social, incluindo, trauma emocional com pensamentos suicidas, dificuldade em relacionamentos, problemas de intimidade, isolamento social e dificuldades de interação.

6. SINAIS DE ALERTA PODEM SER A SALVAÇÃO

Temos inúmeros sinais que as crianças ou adolescentes levam, o que temos que entender também que não há uma idade especifica para o abuso começar sendo assim apesar que algumas crianças ainda estão em processo de desenvolvimento e não falam o seu corpo fala, a vítima pode apresentar lesões ou dores físicas inexplicáveis, como lesões nos órgãos genitais, hematomas, arranhões, dores ao urinar ou defecar, entre outros.

Mudanças repentinas no comportamento, como ansiedade, agressividade, tristeza, isolamento, dificuldade de concentração, alterações no sono e no apetite, entre outros.

Um sinal que todos devemos estar sempre atentos é o comportamento sexual inapropriado para a idade, como tocar as partes íntimas em público, fazer referências sexuais, imitar comportamentos sexuais de adultos, entre outros, temos que ter em mente que criança não namora, se há um comportamento sexual aflorado algo de errado esta acontencendo.

Um sinal que muitas vezes é entendido de outra forma é a apresentação de medo ou resistência em relação a certas pessoas ou situações, como recusar-se a ficar sozinha com um determinado adulto, ou demonstrar medo em relação a determinado ambiente ou atividade, não se força nenhuma criança ou adolescente a beijar, sentar no colo, ficar sozinha com qualquer adulta quando ela não deseja.

Destaco a importância que esses sinais não são conclusivos e que a presença de um ou mais deles não significa necessariamente que houve abuso sexual. Cada caso deve ser avaliado individualmente por profissionais capacitados. Caso haja suspeita de abuso sexual, é fundamental buscar ajuda especializada e denunciar o caso às autoridades competentes.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O abuso sexual infantil intrafamiliar é uma questão intrínseca e profundamente preocupante em nossa sociedade, muitas vezes tida como uma vergonha para familia e que isso nçao deve ser denunciado. Para proteger nossas crianças e adolescentes, devemos enfrentar o silêncio e o tabu através de programas de prevenção, educação sexual, fortalecimento do vínculo familiar, criação de politicas públicas, fornecer apoio às vítimas e responsabilizar os perpetradores. Somente através de um esforço coletivo, que envolva a sociedade como um todo, poderemos criar um ambiente seguro e saudável para nossas crianças e adolescentes, onde o abuso sexual intrafamiliar seja erradicado.

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SISTEMA PENITENCIÁRIO NO BRASIL

O presente artigo pretende trazer à baila a atual situação do Sistema Penitenciário Brasileiro, analisando-o desde a fase histórica e sua evolução nos períodos atuais, bem como traçar as principais crises enfrentadas pelo País no sistema carcerário. No primeiro momento da pesquisa, buscar-se-á identificar a evolução das penas e a sua função social. Enquanto na segunda parte do trabalho, aborda a falência do sistema penitenciário e as causas que levam os presídios a se tornarem um verdadeiros depósito de humanos, acrescentando a importância do trabalho como motivo de incentivar o preso a resgatar a sua dignidade e reinserção na sociedade. A seguir, será abordado o princípio da Dignidade da Pessoa Humana o qual está previsto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, como princípio fundamental ao homem e o respeito a sua integridade física e moral. Por fim, na terceira e última parte da pesquisa, tratar-se-á de uma das funções da pena, qual seja, a ressocialização do detento, como forma de reeduca-lo a fim de que este volte a ser inserido na sociedade de modo que atenue reincidência. Após a pesquisa, chega-se ao entendimento de que o Sistema Carcerário Brasileiro não cumpre a sua função, que é a ressocialização do detento demonstrando sua ineficácia diante da precariedade do sistema carcerário brasileiro. Palavras-chave

Sistema Prisional - Detentos - Ressocialização - Direito Humanos

Mariana Cristina Arnez

Bacharela em Direito pela Faculdade Sudoeste Paulista de Avaré/SP. Advogada. Pós-Graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Estácio de Sá. Cursando especialização em Docência do Ensino Básico e Superior pela Faculdade Estratego

1. INTRODUÇÃO

Esse artigo trata do estudo específico do sistema carcerário do Brasil, tendo como objetivo geral a análise da função da pena, verificando o seu desenvolvimento histórico, o conceito legal, e identificar o principal objetivo do Sistema Penitenciário diante da ressocialização do detento e tendo como fato relevante e de grande importância, o princípio da dignidade da pessoa humana.

Neste diapasão, a reintegração de um ex. presidiário à sociedade recebeu diversas contradições fazendo com que o preso se encontrasse desamparado, vez que o Estado tem o seu sistema penitenciário em desordem, fazendo com que o problema perpetue no tempo, visto que o número de presos só aumento e a ressocialização de fato não acontece.

Assim como, a ressocialização é disponibilizar ao preso ou ao internado ações que forneçam dignidade, tratamento humanizado, preservando a honra e a autoestima, de forma que isso seja uma assistência para o processo evolutivo de reabilitação, de tal modo, que possa resgatar os valores humanos, visando sua reinserção a sociedade, incentivando-o a não reiterar as práticas delituosas, fornecendo assim a assistência material, à saúde, assistência jurídica, educacional, social e religiosa, encaminhando-o para acompanhamentos psicológicos, projetos de profissionalização, incentivos ao apenado para um futuro além da vida em cárcere.

Neste passo, a nossa legislação, especialmente os dispostos na Lei de Execução Penal, (Lei n° 7.210/84) (2023), disciplina o cumprimento das penas no Brasil, em tais artigos como o Art.1°, Art. 10 e Art. 11, dissertam a respeito da maneira e o dever de ressocialização no Brasil, além do que, deve-se propiciar a efetivação da sentença e proporcionar condições para interação social dos condenados e internos.

No desenvolvimento da pesquisa, busca-se

identificar as causas da falência do sistema carcerário brasileiro que o torna ineficaz, bem como o reflexo desta crise na sociedade, e, por fim, a aplicação do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, uma vez que a dignidade é atributo essencial ao ser humano, e a ressocialização do detento como forma de reintegra-lo no convívio social e abrandar o número de reincidência no País.

Por fim, diante da temática abordada, há uma necessidade de um sistema que funcione, eduque e reintegre, tendo em vista que o programa vigente não cumpre sua proposta, pois a sociedade precisa olhar com olhos humanos a problemática que é os presídios do país e refletir que sua melhoria só resultará em uma melhor segurança para os seus.

Constitui-se objeto de estudo desta investigação a área da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023), os princípios previstos na Constituição Federal de 1988 (2023) excepcionalmente a dignidade da pessoa humana a fim de abordar a função social da aplicação da pena, destacando-se a sua importância tanto para os condenados como também para a sociedade, que fica à mercê destes.

Esse artigo possui como objetivo contribuir com a reflexão sobre a realidade do sistema penitenciário do país e a dificuldade em ressocializar os apenados, além da problemática da superlotação nas unidades prisionais em todo país.

Sendo assim, o presente artigo está dividido em Introdução, que apresenta a definição do tema, a justificativa e objetivos; em seguida o desenvolvimento é destinado a descrever o contexto histórico do sistema carcerário e sua função na sociedade até os dias atuais e a importância da ressocialização do detento. Posteriormente, são apresentadas as conclusões e finalizando o trabalho, o último item é reservado às referências utilizadas.

2. HISTÓRICO: A EVOLUÇÃO DO

DA PENA

De acordo com Greco (2011) o Direito Penal brasileiro passou por inúmeras evoluções ao longo dos anos, onde as práticas punitivas eram mais severas e cruéis e o crime era confundido com o pecado e ofensa moral, sendo que a morte era a punição mais usada na época.

Deste modo, segundo o mesmo autor acima (2011), a evolução do Direito Penal se fez importante na história da humanidade, pois diante de tamanhas mudanças repentinas, as penas se tornaram mais humanitárias e com uma aplicação mais proporcional ao condenado.

De outro modo, assevera Marinho (2009) que a primeira fase da pena foi a chamada vingança privada, que fazia com que o homem fizesse justiça pelas próprias mãos em razão do direito violado, com tamanha brutalidade, violência e sem haver proporcionalidade entre a punição que iria ser aplicada e a conduta do indivíduo.

ESTEFAM e GONÇALVEZ explicam:

As penas impostas eram a “perda da paz” (imposta contra um membro do próprio grupo) e a “vingança de sangue” (aplicada a integrante de grupo rival). Com a “perda da paz”, o sujeito era banido do convívio com seus pares, ficando à própria sorte e à mercê dos inimigos. A “vingança de sague” dava início a uma verdadeira guerra entre os agrupamentos sociais. A reação era desordenada e, por vezes, gerava um infindável ciclo, em que a resposta era replicada, ainda com mais sangue e rancor. (STEFAM e GONÇALVEZ, 2012, p.67).

Assim, surge então a lei de Talião que foi um grande marco para o Direito Penal nos tempos remotos, sendo que este visava equilibrar a pena aplicada ao indivíduo e o crime por ele praticado, evitando o excesso entre o crime e o castigo,

com o intuito de obter “justiça” para ambas as partes. (MARINHO, 2009, p.372).

Segundo Estefan e Gonçalves (2012) surge a vingança divina, onde as penas aplicadas aos indivíduos eram voltadas à religião, no qual o homem atribuía os acontecimentos como castigo imposto pelos Deuses, e tudo que acontecia na sociedade era em nome de Deus e com o passar dos anos, a Igreja foi aos poucos perdendo a sua força devido a uma maior organização social, iniciando então o pensamento político, momento em que o Estado passou a intervir na sociedade, instituindo a vingança pública, sendo que este ficou responsável pela integridade daqueles que praticavam algum crime, representando os interesses da comunidade em geral.

Ainda assim, com relação aos mesmo autores acima (2012) esclarecem que o Direito Penal na idade média foi caracterizado pela crueldade, tortura e intolerância para com os seres humanos, sendo que este período era formado pelo Direito Germânico, Romano e Canônico, tendo este último proclamado pela igualdade entre os homens, possibilitando ser a pena mais humana e coerente, no qual introduziu a pena privativa de liberdade que foi substituída pela pena de morte, possibilitando ao condenado cumprir pena em penitenciária, a fim de conservar a vida do mesmo.

Foi com relação as influências de Cesare Beccaria, que se posicionava contrário à tortura, defendendo a ideia de injustiça e ineficácia da mesma, sob a ótica de que todos os homens são iguais e livres perante as leis, este exerceu influência decisiva na reformulação da legislação vigente na época, as quais se sucederam inclusive na Constituição Federal de 1988, que passou a condenar esta prática, fundamentada na dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos (ESTEFAN E GONÇALVES, 2012, p.73).

Deste modo, ressalta Greco (2011) que após inúmeras mudanças e transformações, o Direito Penal brasileiro iniciou sua trajetória para a hu-

manização, no qual veio a ser regido pelo Código Penal, que depois de ser alvo de muitas críticas é utilizado até hoje.

Assim, o surgimento do Código Penal Brasileiro, que delimita sanções a serem aplicadas ao indivíduo que praticou um delito, assume um papel importantíssimo na sociedade, pois deixou de aplicar punições corporais, visando então a humanização da mesma, dando poder ao Estado para punir o infrator e lhe dar como consequência a pena, que tem como finalidade a reeducação do mesmo, a fim de reparar o dano causado, e prevenir o cometimento de outra infração (BITENCOURT, 2011,p.106).

Logo, é de se observar que, no mundo do crime, aquele que cometeu algum ilícito, ou seja, algo que está tipificado como crime em nossa legislação, passará a ser privado do seu direito para que seja reeducado e futuramente retorne ao convívio social, prevenindo assim, a reincidência na prática de outros delitos, ressaltando-se que a pena deve servir como reeducação do detento e prevenção de futuros delitos, tendo seu caráter pedagógico e sendo aplicada de maneira harmoniosa.

3. DO SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO

De acordo com os ensinamentos de Greco (2011), diante de uma sentença penal condenatória, na hipótese do apenado ser condenado a uma pena de reclusão ou detenção, o nosso ordenamento jurídico, prevê três regimes a serem cumpridos quando cometido algum ilícito, os quais dependem da gravidade do mesmo, sendo que, em qualquer que seja esse regime estará sujeito às progressões e regressões, quais sejam: regime fechado, regime semiaberto e regime aberto.

Deste modo, a Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023) preconiza para cada regime um tipo de estabelecimento prisional. Quais sejam:

As Penitenciárias são as casas que abrigam os

condenados apenados por reclusão em regime fechado, inteligência do artigo 87 da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023) e artigo 33, § 1º, a”” do Código Penal (Lei nº 2.848/40) (2023).

As colônias agrícolas, industriais ou similares são destinadas ao cumprimento da pena em regime semiaberto prevista no artigo 91 da Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023) e artigo 33, § 1º, “b” do Código Penal (Lei nº 2.848/40) (2023).

Já as casas de albergado são destinadas ao condenado que cumpre pena em regime aberto, previsto no artigo 93 Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023) e artigo 33, § 1º “c” do Código Penal (Lei 2.848/1940) (2023).

Vale ressaltar que a intenção do legislador ao criar regimes diferenciados para o cumprimento da pena tem como razão maior a observância dos fatos objetivos e subjetivos que ocorreram na prática criminosa, devendo ainda ser executada de modo a permitir que o condenado progressivamente alcance a liberdade, conforme o tempo de pena cumprido e o mérito que apresente durante o cumprimento de sua reprimenda.

4. DA CRISE DO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

Alves (2001) em sua obra aponta que o primeiro problema que assola o sistema carcerário é a superlotação nas unidades prisionais do país. Essa realidade não é devidamente considerada pelos governos. O Estado ignora tal realidade que perdura há anos, representada por um amontoamento de pessoas humanas, jogada nas prisões como se fossem lixo humano que, além da privação da liberdade, sofrem a tortura moral de uma condição de vida subumana, assim transcendendo todas as expectativas de uma futura reintegração social.

O grande número de condenados em todo o país, e a precariedade observação nas condições gerais de nossas penitenciárias, tais como a falta

de espaço físico para abrigar dignamente esses apenados, sem contar ainda com a inexistência de um programa de saúde para o preso, a insalubridade verificada nesses estabelecimentos, não deixa dúvidas da incapacidade do Estado na recuperação dos presos.

Segundo Nucci (2010) ensina que as regras do regime fechado são previstas não somente no Código Penal (Lei nº 2.848/40) (2023), mas também na Lei de Execução Penal (Lei n° 7.210/84) (2023). Devendo o condenado, ao ingressar no estabelecimento penitenciário, ser submetido a exame criminológico de classificação para individualização da execução nos termos dos artigos 5º e 6º, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) (2023). Fica sujeito a trabalho durante o período diurno, preenchendo o tempo e cultivando positivas atividades laborativas, a permitir a reeducação e o (re)aprendizado de uma profissão, bem como está sujeito a isolamento no período noturno, evitando-se a permissividade e promiscuidade, típicas das celas abarrotadas de presos.

Sendo assim, vedam-se, com isso, inclusive, as associações indevidas e as conversações a respeito da prática de crimes.

Ainda com relação ao mesmo autor (2010), o trabalho será exercido conforme as aptidões do sentenciado, em atividades comuns, admitindo-se excepcionalmente, o trabalho externo, desde que em serviços e obras públicas, sob vigilância. Em caráter eventual, pode-se admitir o trabalho em entidades privadas, com o consentimento expresso do preso, nos termos do artigo 36, § 3º, da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) (2023), bem como o local específico para o cumprimento da pena do condenado em regime fechado deve ser cela individual, contendo dormitório, aparelho sanitário e lavatório, com salubridade e área mínima de seis metros quadrados. No entanto, essas normas, de modo geral, não são cumpridas pelo Estado.

Segundo Rabelo (2011) O Sistema Penitenciá-

rio Brasileiro, ou seja, a prisão é o local onde o condenado cumpre a pena imposta pela Lei e aplicada pelo Juiz e, é sabido que este é alvo de grandes discussões, críticas e muitos problemas, devido as superlotações, a higiene e saúde, as rebeliões, a não aplicabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana, os quais impossibilitam a ressocialização do detento ao convívio social, tendo em vista o descaso e a situação em que os mesmos estão submetidos dentro das prisões.

Deste modo, há uma dificuldade da ressocialização, a qual se dá por inúmeros motivos, tanto pela má infraestrutura que é disponibilizada pelo Estado e pelo o sistema penitenciário em ferir gravemente os direitos humanos dos detentos, como a dificuldade de a sociedade reintegrar estes ao convívio comum, visto que, diariamente presos tem a necessidade de revezarem colchões e banheiros para que todos tenham acesso, as celas que já são saturadas, têm péssima infraestrutura e os detentos não têm acesso a um acompanhamento médico continuo e nem a uma alimentação de qualidade. Como as condições são degradantes, muitos dos presos (as) adquirem doenças durante o período prisional (FAGUNDES, TEIXEIRA, CARNEIRO, p.232, 2017).

Além disso, não existe segurança dentro das penitenciárias do país, facções criminosas comandam as instituições e torna o ambiente um local de terror e violência, onde o tráfico de drogas ainda se faz vigente, além de uma constante ameaça de rebeliões. Visto que muitas vezes os funcionários carcerários não têm um preparo devido, nem uma formação específica.

Diante da situação vigente, observa-se que o Estado através das penitenciárias materializa o direito de punir todos aqueles que praticam um crime, porém, o sistema prisional não obtém êxito satisfatório no emprego de suas sanções, em virtude da falta de estrutura carcerária ofertada aos condenados, que na maioria das vezes são amontoados nas celas que não têm capacidade de suportar uma grande quantidade des-

tes (RABELO, 2011).

É neste sentido que se passa a observar que o preso quando condenado e encaminhado ao encarceramento, é privado da sua saúde física, mental e alimentação, que não condiz com aquela que um ser humano necessita ter (ESTEFAN E GONÇALVES, 2012, p.100)

Em uma publicação da revista “The Economist” (de 22.09.12), transcrita por LUÍS FLÁVIO GOMES, a mesma traz a seguinte crítica:

Os prisioneiros não só são submetidos a tratamentos brutais frequentes em condições de miséria e superlotação extraordinária, e muitas cadeias são administradas por grupos criminosos, diz a publicação.

Ante o exposto, conforme nos remete o título do presente estudo, o sistema carcerário brasileiro, ou seja, os presídios não estão preparados para produzir efeitos positivos no preso, pelo contrário, eles pioram o encarceramento, sendo assim dessocializadores, por culpa do Estado e da sociedade, que são omissos e ineficazes em assumir suas responsabilidades.

5. CONCLUSÃO

O presente artigo buscou apresentar a realidade do sistema prisional brasileira ante a desordem do Estado em viger as legislações na busca de uma melhor solução para a reintegração do preso à sociedade.

Demonstrando assim, a necessidade de novas políticas públicas para que as condições mínimas de existência sejam atendidas e um investimento cada vez maior nos projetos ressocializadores para que esses possam ser realmente efetivados e assim a sociedade possa sentir a eficácia do sistema carcerário brasileiro como um órgão ressocializador e reintegrador dos excluídos da sociedade.

Assim, conforme hipótese proposta na problemática restou comprovada que a deficiência do

sistema penitenciário advém das condições subumanas em que os presos se encontram dentro dos presídios, como a falta de estrutura ofertada, precárias condições à saúde e alimentação, rebeliões, as quais são oriundas das revoltas dos presidiários em razão do descaso do governo em proporcionar aos mesmos um local harmonioso ao cumprimento da pena, como forma de reeduca-los, uma vez que são pessoas de direitos, embora estejam em situação de cárcere em razão do mal cometido, sendo-lhes garantida a dignidade humana, direito fundamental que assegura à pessoa e deve caminhar com ela por toda a sua existência.

ALVES, C. F. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque social da Igreja. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001.

BRASIL. Constituição Federal (1988). Constituição da república federativa do Brasil. Vade Mecum Saraiva/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti, 2023.

BRASIL. CÓDIGO PENAL. Vade Mecum Saraiva/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti, 2023.

BRASIL. LEI DE EXECUÇÃO PENAL. Vade Mecum Saraiva/obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Juliana Nicoletti, 2023.

BECCARIA, C. Dos Delitos e das Penas. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.

BITENCOURT, C. R., Tratado de direito penal: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

ESTEFAM, A.; GONÇALVEZ, V. E. R. Direito Penal esquematizado: parte geral. São Paulo:Saraiva, 2012.

FAGUNDES, C. M.; TEIXEIRA, M. R. T. ; CARNEIRO, R. A. A INEFICÁCIA DO SISTEMA CARCERÁRIO BRASILEIRO COMO ORGÃO RESSOCIALIZADOR. Revista Jurídica Direito, Sociedade e Justiça/ RJDSJ Curso de Direito, UEMS – Dourados/MS- 2017.

GRECO, R. Direitos humanos, sistema prisional e alternativas à privação de liberdade. São Paulo: Saraiva, 2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da Pena. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

A LEI MARIA DA PENHA E AS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A violência, seja qual for a forma como ela se manifeste, é sempre uma derrota.

Jean-Paul Sartre, J.

Marta Adriana Gonçalves Silva Buchignani

Advogada, professora, tradutora e palestrante. Graduada em Letras pela Universidade do Sagrado Coração (USC-Unisagrado) e Direito pela ITE (Instituição Toledo de Ensino). Ex Procuradora do Estado de São Paulo. Idealizadora do Projeto Jasmim junto ao Comitê de Combate à Violência Contra a Mulher – Bauru do Grupo Mulheres do Brasil.

Taís Nader Marta

Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito – Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – pela ITE (Instituição Toledo de Ensino) de Bauru/SP. Advogada. Coordenadora da Escola Superior da Advocacia (ESA) de Bauru/SP. Professora. Diretora da ABMCJ (Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas) de São Paulo. Líder (COLEGIADO) do Grupo Mulheres do Brasil de Bauru/SP.

1. INTRODUÇÃO

A prática de violência não tem uma motivação simples e pontual. Ao contrário, é decorrente de todo um sistema complexo e que exige esforços em várias frentes para ser coibida.

É consenso indiscutível que todas as normas jurídicas devem conformar-se com a Constituição Federal vigente, dito de outra forma, todas as leis, decretos, atos normativos devem submeter-se ao comando constitucional sob pena de ver sua extinção decretada por meio de decisão judicial exarada pelo Supremo Tribunal Federal1

O Brasil Colonial era regido pelas Ordenações do Reino (Ordenações Filipinas), um código de leis extremamente discriminatório, que se aplicava a Portugal e seus territórios, já que assegurava ao marido o direito de matar a mulher em caso de adultério ou até mesmo quando houvesse simples suspeita.

Tal hierarquia masculina foi conservada no Código Penal de 1890 que isentava de condenação quem matava em estado de completa privação de sentidos e continuou com o Código Penal de 1940, o qual estabelece como causa atenuante/ diminuição de pena, agir sob o domínio de violenta emoção. Tal privilégio, que naturaliza a violência contra a mulher, ainda é sustentado nos dias de hoje em casos de feminicídio, ressaltando-se que apenas recentemente o Supremo Tribunal Federal firmou entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por violar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero em processo relacionado à ADPF 779.2

Leis patriarcais e sexistas também foram fomentadas no Brasil por intermédio do Código

1 Quando no ordenamento jurídico há uma lei contrária à Constituição Federal, esta deve ser banida do ordenamento jurídico por meio de Ação Direita de Inconstitucionalidade. 2 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF proíbe uso da tese de legítima defesa da honra em crimes de feminicídio. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe. asp?idConteudo=462336&ori=1. Acesso em: 05.07. 2022.

Civil de 1916 que determinava que mulheres casadas eram consideradas relativamente incapazes (art. 6o, II); que as mulheres precisavam pedir autorização dos maridos para trabalhar (art. 233, IV e art. 242, VII) ou para aceitar ou repudiar herança (art. 242, IV); que somente podiam administrar os bens do casal na hipótese do marido estar em lugar remoto ou não sabido, em cárcere privado por mais de dois anos ou se declarado judicialmente interdito (art. 251, I, II e III); que somente poderiam ingressar com ações judicias com a permissão do marido (art. 242, VI) e que o homem é o chefe da família (art. 380).

Os direitos humanos são garantias universais de todos os indivíduos. A Declaração Universal dos Direitos Humanos surgiu após a 2ª Guerra Mundial quando diferentes países se agruparam para formar a Organização das Nações Unidas.

Os direitos das mulheres passaram a ser incorporados a essa agenda de direitos humanos em especial após a Conferência de Viena, uma conferência sobre direitos humanos ocorrida no ano de 1993, que aprovou a resolução de que os direitos das mulheres e das meninas são parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais e explicitou que a violência contra as mulheres constitui violação dos direitos humanos. De acordo com a Declaração de Viena:

18. Os direitos humanos das mulheres e das meninas são inalienáveis e constituem parte integral e indivisível dos direitos humanos universais. A plena participação das mulheres, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional e a erradicação de todas as formas de discriminação, com base no sexo, são objetivos prioritários da comunidade internacional.

A violência e todas as formas de abuso e exploração sexual, incluindo o preconceito cultural e o tráfico internacional de pessoas, são incompatíveis com a dignidade e valor da pessoa humana e devem ser eli-

minadas. Pode-se conseguir isso por meio de medidas legislativas, ações nacionais e cooperação internacional nas áreas do desenvolvimento econômico e social, da educação, da maternidade segura e assistência à saúde e apoio social.

Os direitos humanos das mulheres devem ser parte integrante das atividades das Nações Unidas na área dos direitos humanos, que devem incluir a promoção de todos os instrumentos de direitos humanos relacionados à mulher.

Ao se fazer qualquer referência ao tratamento jurídico dispensado às mulheres quando vitimadas por atos de violência, é necessário, antes de qualquer consideração ter-se em mente a concepção de dignidade da pessoa humana, pois é no conceito deste princípio fundamental que reside todo o arcabouço legal que sustenta as medidas jurídicas capazes de proteger e amparar mulheres vítimas de quadros dessa natureza.

Sobressai-se daí, que temas como a violência de gênero ganham relevo e paralelamente ficam à mercê do intérprete a aplicabilidade da punição aos que violam a dignidade das vítimas, sob o aspecto de pessoa, de gente, de ser humano, simplesmente pelo seu sexo, que por si só impõe a ocupação de um lugar marginalizado, diferenciado, na sociedade.

O princípio da dignidade da pessoa humana é uma concepção filosófica e abstrata que informa o valor da moralidade, espiritualidade e honra de todo indivíduo. Trata-se de um valor fundamental que norteia toda a harmonia social e sem o qual a convivência coletiva se tornaria impossível.

A expressão dignidade da pessoa humana alberga uma infinidade de sentidos, razão pela qual seu conceito é considerado indeterminado, divorciando-se de qualquer precisão. Apesar disso, a ideia de dignidade foi forjada pelo pensamento iluministas e influenciou os teóricos e intelectuais do século XVII e XVIII.

Na esfera interna, é um dos princípios mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro, a ponto de ser elevado ao patamar de fundamento primário da República e do Estado Democrático de Direito, encontrando-se cristalizado no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, no inciso III, nos seguintes termos:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;

III – a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V – o pluralismo político.

Nesse sentido, a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha, tornou mais rigorosa a reprimenda para arremetidas contra a mulher, ocorridas no âmbito doméstico e familiar. Consta expressamente no art. 2º. da referida lei que toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

O apelido da Lei 11.304/2006, foi originado em homenagem à Maria da Penha Maia. Em 1983, Maria da penha foi vítima de dupla tentativa de feminicídio, por parte do marido, primeiro, ele deu um tiro em suas costas enquanto ela dormia, tendo por isso ficado paraplégica, tendo permanecido no hospital, se submetido a duas cirurgias e tratamentos, quatro meses após retornar para casa, quando Maria da Penha teria retornado para casa, foi mantida em cárcere privado por 15

dias, tendo Antonio Heredia Viveros tentado eletrocutá-la durante o banho, considerando que o julgamento do então ex-marido de Maria da Penha demorou 8 anos e embora tendo a pena de 15 anos de prisão, saiu do fórum em liberdade, no seu segundo julgamento ocorrido em 1996, o seu ex-marido foi condenado a 10 anos e 6 meses de prisão, mas devido à alegação de irregularidades processuais por parte dos advogados de defesa, mais uma vez a sentença não foi cumprida, até que em 1998 o caso ganhou repercussão internacional, vez que a vítima, Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram o caso para a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA).

Mesmo diante de um litígio internacional, o Brasil não se pronunciou nenhuma vez no processo, razão pela qual, em 2001, após receber quatro ofícios do CIDH/OEA (de 1998 a 2001) o Estado brasileiro foi responsabilizado por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra mulheres brasileiras, conhecido como marco histórico deu azo ao tratamento do tema, violência contra a mulher, em razão do seu gênero, isto significa que o fato de ser mulher reforça a ocorrência da prática como acentua a impunidade dos agressores.

Assim, em 07 de agosto de 2006, o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sancionou a Lei 11.340/2006, oriundo do Projeto de Lei 4.559/2004, de iniciativa da Câmara dos Deputados, aprovado por unanimidade em ambas as Casas do Congresso Nacional.

Em decorrência, dentre as recomendações advindas da CIDH, a de reparação à Maria da Penha, tanto material quanto simbolicamente, o Estado do Ceará pagou a ela uma indenização e o Governo Federal batizou a lei, com o seu nome, como reconhecimento pela luta contra as violações dos direitos humanos das mulheres.

Referida lei cria então mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências.

Antes da promulgação da Lei 11.340/06, a violência doméstica contra as mulheres era considerada crime de menor potencial ofensivo e era reconhecida, na grande maioria dos casos, como agressão física, ficando as suas demais formas relegadas à interpretação de que o relacionamento de casais tinha caráter privado e, como tal, os desentendimentos decorrentes desse relacionamento deveriam ser resolvidos entre quatro paredes. Para coibir a escalada da agressão física em âmbito doméstico, a propósito, a Lei 10.886/04 acresceu ao artigo 129 Código Penal, os parágrafos 9º e 10, tipificando a lesão corporal em casos de violência familiar e aumentando as penas no caso de agressão contra familiares ou ocorrida por força de relações domésticas.

Até o ano de 2006, portanto, o artigo 226, § 8º da Constituição Federal, norma constitucional de eficácia limitada e programática, não encontrara a regulamentação necessária para produzir seus efeitos.

Nesse compasso, a redação do parágrafo 8º, a qual prescreve que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”, não havia ainda sido regulamentado quanto à proteção da mulher.

É de ser notado que a Lei 11.340/06 apenas incorporou ao ordenamento interno o reconheci-

mento ao direito das mulheres e à necessidade de sua proteção, o que já era previsto desde há muito em dispositivos internacionais de direitos humanos, como, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948); a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas Formas de Discriminação contra a Mulher (1979); a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994) e; especialmente o relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos de n.º 54/01, da Organização dos Estados Americanos (OEA), o qual tratou do caso Maria da Penha Maia Fernandes versus República Federativa do Brasil.

Desse modo, a Lei 11.340/06 constituiu-se em um grande passo no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, uma vez que, além de ampliar o conceito de violência, descrevendo suas várias formas, criou mecanismos para sua prevenção e repressão.

Antes de se adentrar à análise das formas de violência tratadas pela Lei 11.340/06, é necessário ressaltar que o objeto de proteção da Lei, conhecida como lei Maria da Penha, é a mulher, conforme prescreve o seu artigo 1º, ao expressamente declarar que os mecanismos ali descritos prestam-se a “coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. O artigo 2º, por sua vez, explicita que todas as mulheres, sem exceção, devem ser igualmente protegidas e amparadas, “independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião.

Assim, violência praticada contra mulher que mantém relação afetiva de natureza homossexual é protegida pela Lei 13.340/06.

Nesse sentido ainda, por meio do REsp n.º 1977124/SP, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar ação de violência doméstica praticada por pai contra filha trans, firmou o entendimento de que mulher transgênero deve ser protegida pela Lei Maria da Penha, afastando, com isso o critério exclusivamente biológico do alcance da tute-

la legal e por meio de interpretação teleológica, estendeu o alcance da lei às mulheres trans, realizando uma equiparação entre sexo e gênero.

Saliente-se, ainda, que violência praticada contra homens, crianças, adolescentes, idosos, enfermos e outras classes de pessoas não abrangidas pela lei Maria da Penha, encontram proteção por outros meios ou por outras leis específicas, como o Estatuto do Idoso, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Penal, medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal.

Apenas para exemplificar, sem alongar, o artigo 313 do Código de Processo Penal admite a decretação de prisão preventiva em seu inciso III quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência.

Realizados tais esclarecimentos, necessários à compreensão da problemática da violência doméstica e familiar, assim descritas no artigo 5º da lei como; a primeira, “o espaço de convívio permanente de pessoas com ou sem vínculos familiar, inclusive as ocasionalmente agregadas”; e a segunda, “ a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou vontade expressa”, além das relações íntimas de afeto, que não necessitam de coabitação, passa-se a analisar as formas de violência contra a mulher.

2. DESENVOLVIMENTO

Verifica-se, com o passar dos tempos, que a violência contra a mulher sempre esteve presente, vindo a mulher a ser submetida às mais diversas formas de violência, iniciando por meio de objetificação de seus corpos e estigmatizada durante muito tempo como ser irracional. 3

3 FORTUNATO, Tammy. Feminicídio – aspectos e responsabilidades. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2023, p. 11-12.

A Lei Maria da Penha é fruto da mobilização histórica de mulheres organizadas nos movimentos feministas, que atuam e zelam por sua efetividade até hoje. Considerada pela ONU como uma das leis contra violência doméstica mais completas do mundo, cria mecanismos para prevenir e punir a violência doméstica e familiar contra a mulher, alinhada com a Constituição Federal e com compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Ela deriva do amadurecimento de demandas de movimentos de mulheres e de tratados internacionais ratificados pelo Brasil4. A lei possui disposições relacionadas às políticas de prevenção, às medidas de proteção imediata, bem como mecanismos destinados a elevar a responsabilização do agressor, já que a impunidade sistêmica seria vista como aspecto relevante na invisibilidade política desta violência5

A Lei Maria da Penha parte da premissa que a violência contra as mulheres é fomentada por um sistema estrutural de discriminação nas diversas esferas da vida (art. 3º) que cria “papéis estereotipados” entre homens e mulheres que legitimam a violência (art. 8º, inciso III), sendo que “em razão da situação de fragilidade emocional e até mesmo física em que se encontra a mulher, a hipossuficiência faz com que o silêncio seja o maior dos cúmplices dos episódios de violência”.6

Observa-se, de acordo com o art. 5º. da referida lei, que a violência doméstica e familiar contra a mulher é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou pa-

4 SILVA, Salete Maria da et al. ‘Fala Maria porque é de lei’: a percepção das mulheres sobre a implementação da lei Maria da Penha em Salvador/BA. Revista Feminismos, v. 4, v.1, p. 156- 167, 2016.

5 PASINATO, Wânia. Oito anos de Lei Maria da Penha: entre avanços, obstáculos e desafios. Estudos Feministas, v. 23, n. 2, p. 533-545, 2015.

6 DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha. A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 190.

trimonial, importante salientar que o texto legal remete expressamente ao sexo feminino, constando nos 5 incisos do art. 7º. as espécies de violência doméstica e familiar contra a mulher, sendo elas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Como já explicado anteriormente, o conceito de violência doméstica foi se alterando com o tempo, passando de agressão física para um leque variado de suas modalidades arroladas no artigo 7º da Lei 13.340/06, tendo caráter exemplificativo, graças à expressão “entre outras”, constante do caput. Isso significa que eventual forma de violência não elencada no dispositivo pode ser também punida. Encontrava guarida na lei, por exemplo, a violação da intimidade da mulher, entendida como forma de violência psicológica, a qual não se encontrava expressamente descrita no mencionado diploma. Hoje, com a redação dada pela Lei 13.772/18, que alterou o inciso II da Lei, a hipótese foi expressamente contemplada.

Assim, passa-se a analisar as formas de violência contra a mulher previstas pelo artigo 7º da lei.

Primeiramente existe a previsão da violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal. O inciso I aponta a forma mais conhecida e comum de violência, que é a violência corporal e que abrange, além da lesão corporal nas modalidades leve, grave e gravíssima, as hipóteses descritas na lei de contravenções penais como vias de fato. Considera-se violência física portanto, além de lesões, ferimentos provocados por instrumentos contundentes, perfurocortantes e cortantes, espancamentos e arremessos de objeto, por exemplo, safanões, empurrões, puxões de cabelo e apertões, modalidades mais brandas previstas na Lei de Contravenção Penal.

Um parêntese deve ser feito aqui, considerando a necessidade de representação prevista na Lei de Contravenções Penais, quando as vias de fato se derem no contexto de violência domésti-

ca. Nesses casos, entende a jurisprudência que a ação penal é pública incondicionada, uma vez que a Lei 9.099/95 não se aplica às infrações penais instauradas no âmbito da Lei Maria da Penha mesmo entendimento se dá no tocante à lesão corporal leve.

No Brasil os dados estatísticos sobre lesão corporal praticados contra mulheres são alarmantes. No ano de 2021 houve o registro de 230.861 casos de agressões por violência doméstica. 7

O inciso II faz a previsão da violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição de autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Muitas vezes ignorada pela vítima que não reconhece a ausência de agressão física como uma forma de violência8 a agressão de caráter emocional é tão ou até mesmo mais prejudicial do que a violência física, uma vez que muitas vezes é o início de outras violências que serão posteriormente praticadas deixa cicatrizes na alma, ou seja, sequelas de caráter psicoemocionais, podendo levar a vítima a sentimentos profundos e duradouros de rejeição, discriminação e depreciação, dentre outros.

Importante lembrar que uma forma de violência não anula outra e os casos de violência psicológica não raro vêm acompanhados de violência física e vice-versa.

As condutas apresentadas no inciso II eram

7 FBSP. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. Disponível em: https://forumseguranca. org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022-v03.pdf. Acesso em: 5. jul. 2023.

8 MELO, Mônica; TELES, Maria Amélia de Almeida. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2017.

aquelas tipificadas no Código Penal como ameaça, constrangimento ilegal, cárcere privado, dentre outras, além de condutas que anteriormente eram tratadas como assuntos privados de relação familiar.

Até 2021, portanto, a violência psicológica descrita no inciso II da Lei encontrava embasamento para tipificação na Lei Penal, devendo, a descrição do fato encontrar adequação nos mais diversos tipos penais como explicado acima.

A Lei 14.188/21, entretanto, alterou a sistemática da Lei 13.340/06, criando um subsistema de tipificação específico para a violência doméstica descrita na lei Maria da Penha relacionado à violência psicológica, a qual passou a receber regulamentação diferenciada em relação aos demais incisos do artigo 7º, por meio da inclusão do tipo “dano emocional”, de conduta comissiva representada pelo verbo “causar”, previsto no artigo 147-B, com a seguinte redação:

147-B – Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito e ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e à autodeterminação:

Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.

Trata-se, como se vê, de tipo subsidiário, considerando a expressão final, “se a conduta não constitui crime mais grave.”

Como exemplo de violência psicológica pode-se citar constantes xingamentos dirigidos contra a mulher no âmbito familiar. Outro exemplo, são ameaças, ainda que veladas, as quais podem causar o dano emocional mencionado no art. 147-B do Código Penal.

A jurisprudência vem entendendo que para a prova de tal dano basta a palavra da vítima, desde que harmônica e em consonância com outras evidências, ainda que a ameaça ou o constrangimento não tenha sido presenciado por testemunhas. Considerando o caráter de clandestinidade que tais condutas se revestem, na maior parte dos casos, o reconhecimento do “fumus boni juris” e “periculum in mora” podem se dar a partir do depoimento da mulher, ainda que não ratificado por prova testemunhal.

A lei prevê ainda, em seu inciso III, a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou utilizar, de qualquer modo, sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.

A violência doméstica de caráter sexual foi introduzida como forma de violência pela Lei 13.340/06 e vem tipificada penalmente no capítulo de crimes contra a liberdade e a dignidade sexual do Código Penal Brasileiro.

Dentro da temática voltada às relações domésticas e familiares cujo objeto de proteção é a mulher, a violência sexual teve sua interpretação alterada com o passar do tempo. Assim, o Código Civil de 1916 tratava a relação familiar e entre cônjuges com a visão voltada ao pater famílias e ao dever de pagamento de débito conjugal chamado de “remédio à concupiscência”. O Código Civil de 2002, em seu artigo 1511, tratou da relação familiar e conjugal de forma isonômica, prestigiando com isso, o artigo 226, § 5º, da Constituição Federal. Sob esse aspecto, o dispositivo estabelece a igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, afastando a figura do pater famílias, até então prevalente na relação matrimonial.

Esta visão embora ultrapassada, ainda continua presente na cultura do matrimônio e das uniões civis e afetivas, levando à prática de violência sexual por seus pares a partir de conceitos arraigados na sociedade brasileira.

Entende-se por violência sexual, atos de cunho sexual praticados sem o consentimento da vítima. Nesse sentido, e levando-se em consideração a igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges, conviventes e parceiros em relações íntimas de afeto, a prática de ato sexual sem o consentimento do parceiro ou parceira é tratado como ato sexual de natureza violenta e como tal deve ser punido.

Sobre os tipos penais previstos no capítulo voltado aos crimes contra a liberdade e dignidade sexual, são arrolados o estupro, a importunação sexual, a violação sexual mediante fraude, o registro não autorizado de intimidade sexual, a divulgação não autorizada de imagens íntimas, o estupro de vulnerável, o estupro corretivo e o assédio sexual.

A questão da violência sexual contra a mulher toma proporções alarmantes quando se analisa o atlas da violência, divulgado pelo IPEA em 2022, cuja estimativa de estupros ocorridos no Brasil por ano é de 822 mil, sendo mulheres 80% das vítimas. Dentro deste contexto, estima-se que a cada 8 minutos, um estupro seja cometido no país.9 Segundo o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil teve o maior número de casos de estupro registrados em sua história no ano de 2022: 74.930 casos.10

A proteção trazida pela Lei Maria da Penha sobre violência sexual, como se vê, portanto, é de boa técnica legislativa e está em sintonia com a igualdade de direitos entre homens e mulheres em uma relação afetiva nos tempos atuais, tendo sido reconhecida, inclusive, pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar

9 Disponível em: 5632-3765-anais-forum-cesecipea-311-324.pdf. Acesso em: 30.06.2023.

10 Disponível em: visiveleinvisivel-2023-relatorio.pdf (forumseguranca.org.br). Acesso em: 30.06.2023.

a Violência Doméstica.

Importa lembrar ainda, que até mesmo o crime de assédio sexual, ligado à existência de relação de trabalho pode estar ligado à violência doméstica no caso de a mulher trabalhar para o agressor e formar com ele vínculo afetivo de natureza familiar.

Julgado recente entendeu aplicável a Lei 13.340/06 à ameaça e assédio sexual ocorridos em ambiente de trabalho, considerando envolvimento amoroso entre o suposto agressor e a vítima. Ficou ali demonstrada a violência de gênero e o abuso da condição de vulnerabilidade da vítima, afastando-se a necessidade de coabitação entre agressor e vítima. A Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo julgou procedente conflito de competência e declarou competente o juízo de direito da vara de violência doméstica e familiar da comarca de Campinas.11

O inciso III tutela, ainda, o exercício dos direitos sexuais de caráter reprodutivo, assegurando à mulher, no artigo 9º, §3º, acesso a serviços de contracepção de emergência e a procedimentos médicos a fim de se evitar doenças sexualmente transmissíveis ou necessários e cabíveis nos casos de violência sexual.

Existe a previsão, também, da violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.

Configura violência patrimonial, por exemplo, atos de subtração, como furto, apropriação e dano, entendido este último pelo termo “destruição parcial ou total de objetos, instrumentos e documentos”, dentre outros.

Um exemplo prático muito frequente é a destruição de objetos no calor de uma discussão. 11 0022358-56.2023.8.26.0000

O artigo 24 da lei apresenta as medidas reparatórias para as violações de caráter patrimonial, constituindo-se as mesmas em restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida; proibição temporária para celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, a não ser que haja autorização judicial; suspensão de procurações outorgadas pela ofendida ao agressor e prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. Tais medidas são de natureza exemplificativa, podendo o magistrado adotar outras que se fizerem necessárias, considerando o termo “entre outras”, constante do caput do artigo 24.

Discussão relevante é a que se faz acerca das imunidades absolutas e relativas previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal referentes aos crimes contra o patrimônio praticados sem emprego de violência. Tais condutas, se praticadas contra cônjuge na constância da sociedade conjugal ou em prejuízo de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, civil ou natural são consideradas imunidades absolutas ou escusas absolutórias. Caso as condutas sejam praticadas contra cônjuge judicialmente separado; irmão legítimo ou ilegítimo; tio ou sobrinho, com quem o agente coabita, há necessidade de representação da vítima ao Ministério Público e as hipóteses são consideradas, portanto, imunidades relativas.

Tais imunidades não se aplicam a crimes cometidos com violência ou grave ameaça. O Estatuto do Idoso (Lei 10.741/2003) incluiu nova hipótese de afastamento de tal imunidade, por meio da inclusão do inciso III ao artigo 183, o qual prescreve sobre a inaplicabilidade da escusa absolutória em questão, se o crime for praticado contra pessoa com idade igual ou superior a 60 anos.

Com relação à Lei Maria da Penha, o diploma nada tratou expressamente com relação ao afastamento das imunidades, mas tão somente

previu medidas reparatórias de cunho patrimonial em benefício da mulher.

Ao tratar da questão, Caroline Cavalcante Espínola preleciona que:

[...] a doutrina jurídica acenou que as imunidades e prerrogativas previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal não teriam sido recepcionadas pelo novel diploma. É esse o pensamento de Maria Berenice Dias ao salientar que, a partir da vigência da Lei Maria da Penha, “não há mais como admitir o injustificável afastamento da pena ao infrator que pratica um crime contra sua esposa ou companheira, ou, ainda, alguma parente do sexo feminino” ou seja, “perpetrados contra a mulher, dentro de um contexto de ordem familiar, o crime não desaparece e nem fica sujeito à representação”. Ademais, não mais chancelado o furto nas relações afetivas, cabe o processo e a condenação do infrator, sujeitando-se ao agravamento da pena nos termos do artigo 61, II, f do Código Penal12.

Todavia, a questão ainda não se pacificou, constituindo-se em aparente conflito de normas, conforme explicam Fernanda Moretzsohn e Patrícia Burin, em artigo publicado na Revista Consultor Jurídico.13

Para as mesmas articulistas, e fazendo um cotejo com o Estatuto do Idoso, não existe disposição similar relacionada às mulheres em contexto de violência doméstica e familiar.

Entendem, as autoras, que se a intenção do legislador fosse afastar a aplicabilidade das imunidades absolutas também aos crimes praticados em âmbito doméstico e familiar, ele o teria

12 ESPÍNOLA, Caroline Cavalcante. Dos Direitos humanos das mulheres à efetividade da Lei Maria da Penha. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018, p.104,

13 MORETZSOHN, Fernanda; BURIN, Patrícia. Violência Patrimonial contra as mulheres e escusas absolutórias. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur. com.br/2021-set-24/questao-genero-violencia-patrimonialmulheres-escusas-absolutorias. Acesso em: 23. jun. 2023.

feito de maneira expressa como o fez no caso do Estatuto do Idoso. E citando o promotor de Justiça e doutrinador Rogério Sanchez, apontam que “não permitir a imunidade para o marido que furta a mulher, mas permiti-la quando a mulher furta o marido, é ferir de morte, o princípio constitucional da isonomia”. Desse modo e explicando o posicionamento do autor, informam, as articulistas, que somente uma declaração expressa em lei teria o condão de revogar os dispositivos do Código Penal.

A jurisprudência vem acatando a tese de que a Lei Maria da Penha não revogou implicitamente os artigos 181 e 182 do Código Penal, inclusive, já tendo o Superior Tribunal de Justiça se posicionado a respeito, como se lê do RHC 42.918/RS14 , no qual se analisava o caso de cônjuge do sexo masculino que praticou estelionato contra a esposa. Por meio da decisão, a qual reconheceu a existência da escusa absolutória, ficou patente o entendimento que a Lei 13.340/06 apresenta medidas cautelares específicas para a proteção do patrimônio da mulher.

O Tribunal de Justiça de São Paulo também se posiciona no mesmo sentido, conforme se depreende de jurisprudência recentíssima, ao absolver acusados de crimes contra o patrimônio praticados na constância do casamento, até mesmo em situações de separação de fato ou de corpos.15

Todavia, não pode ser esquecido que o tema foi tratado pela Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, denominada “Convenção de Belém do Pará”.

O artigo 7, inserto no Capítulo III, que trata dos “deveres dos estados”, determina que os estados partes devem adotar, por todos meios apropriados e sem demora, políticas destinadas a prevenir, punir e erradicar tal violência e a empenhar-se em, dentre várias ações, a,

14 RHC 42.918/RS, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 05/08/2014, DJe 14/08/2014.

15 1513298-14.2022.8.26.0228 e 2236518-05.2022.8.26.0000.

e). tomar todas as medidas adequadas, inclusive legislativas, para modificar ou abolir leis e regulamentos vigentes ou modificar práticas jurídicas ou consuetudinárias que respaldem a persistência e a tolerância da violência contra a mulher.

Ao ser ratificada sem ressalvas, o Estado Brasileiro, tomou para si a incumbência de eliminar do ordenamento jurídico práticas que se desvirtuem dessa linha adotada na Convenção. Desse modo, é defensável a tese de que os artigos 181 e 182 tenham tido sua eficácia suspensa pela norma supralegal apontada.

Isso porque já ficou reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal, por meio do HC 87.585/TO a natureza supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, e em decorrência disso, a consequência da paralisação de sua eficácia, denominada “efeito paralisante” da norma.

Dessa forma, Veras e Araújo, em seu artigo Controle da Convencionalidade dos artigos 181 e 182 do Código Penal (escusas absolutórias) nos crimes patrimoniais de violência doméstica e familiar contra a mulher, pontuam que a prática forense, ao aplicar as escusas absolutórias, destoa dos preceitos normativos e finalidade da Lei 11.340/06, bem como dos tratados internacionais em que o Brasil ratificou, especialmente a Convenção de Belém do Pará, que se prontificou em punir todas as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher.16

Por outro lado, considerando que, segundo elas o ‘Supremo Tribunal Federal firmou entendimento majoritário e vinculante no sentido de reconhecer os tratados internacionais ratificados pelo Brasil como norma supralegal”, o efeito paralisante deve ser reconhecido com relação a estes dispositivos, incompatíveis com o tratado. 17

Esta é a posição que mais se coaduna com os preceitos supralegais presentes no ordenamento jurídico nacional e constitucionais insertos na Constituição Federal de 1988.

Finalmente, encontram-se em tramitação na Câmara dos Deputados os projetos de lei 3764/2004 e 1000/2023, os quais tratam das escusas absolutórias previstas nos artigos 181 e 182 do Código Penal.

O PL 3764/04, da autoria do dep. Coronel Alves, do PL/AP, apresentado em 09/06/04, altera o artigo 182, prevendo ação penal pública condicionada quando o crime for cometido pelo cônjuge, ascendentes, descendentes e parentes e revoga o artigo 181 do Código Penal. Tal PL, após ter a tramitação alterada para regime de urgência, foi encaminhado para a mesa diretora, onde se encontra desde 09/03/2022.18

O PL 1000/23, de autoria do deputado Guilherme Uchoa (PSB/PE) apresentado em 08/03/23, por sua vez, trata da revogação do artigo 181 e da alteração dos artigos 182 e 183 do Código Penal Brasileiro, “para dispor sobre a inaplicabilidade de escusas absolutórias aos crimes cometidos no âmbito da violência doméstica e familiar, cometidos contra mulher grávida, contra pessoa com deficiência mental e contra pessoa com deficiência visual ou auditiva.” 19

Por fim existe a previsão da violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.

A violência moral é definida na Lei Maria da Penha por atos que configurem os tipos penais de calúnia, injúria ou difamação. São crimes que atentam contra a honra objetiva ou subjetiva da vítima e no caso da lei, devem ser praticados em situação de violência doméstica ou familiar. A violência moral é na maioria das vezes verbal, também podendo se dar por escrito, por meio de cartas, bilhetes ou outros meios escritos.

16 VERAS, Érica Verícia Canuto de e ARAUJO, Gabriela Nivoliers Soares de Sousa. Revista Eletrônica Jurídico-Institucional, ano 8 n12, jan/dez 2018, p. 8. 17 Op cit, p.8

18 Disponível em: camara.leg.br. Acesso em: 23.08.2023. 19 Disponível em: https://www.camara.leg.br/. Acesso em: 23.08.2023.

Calúnia é a imputação falsa de fato que se constitui crime contra alguém e atenta contra a honra objetiva, ou seja, contra a imagem que a vítima goza perante a sociedade. Desse modo, para que a calúnia se consume, é necessário que terceiros tomem conhecimento da imputação falsa do crime.

Segundo Nucci,

[...] considera-se o delito consumado quando a imputação falsa chega ao conhecimento de terceiro. Se a atribuição falsa de fato criminoso dirigir-se direta e exclusivamente à vítima, configura-se injúria, pois ofendeu-se somente a honra subjetiva.20

É o caso, por exemplo, do parceiro que imputa à companheira desvio de valores de conta conjunta para fins escusos, divulgando tal imputação em grupo de amigos, rede social ou de mensagens.

Difamação é a imputação a alguém de fato ofensivo à sua reputação. Do mesmo modo como ocorre com a calúnia, a difamação também atenta contra a honra objetiva da vítima, sendo necessário, portanto, que o fato desonroso imputado chegue ao conhecimento de terceiros. Não se trata de fato tipificado como crime, mas que causa descrédito à vítima perante a sociedade.

No âmbito da Lei 13.340/06, um exemplo de difamação é o do companheiro que atribui à parceira, dona de casa, o costume de passar o dia dormindo e não fazer as tarefas domésticas que lhe cabem.

Injúria é a ofensa à dignidade ou ao decoro da vítima. Neste caso, não se trata de imputação de fato, mas de qualidade negativa à vítima, por meio de adjetivos desonrosos. A injúria atinge a honra subjetiva da vítima e dessa forma, basta que ela tome conhecimento da ofensa para que o crime se consume.

20 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 18. ed. São Paulo: Forense, 2017, p. 866.

Caso encontrado na jurisprudência foi o de ex-cônjuge, que não se conformando com a separação, foi até o local de trabalho da vítima e pedindo para conversar a sós com ela, agrediu-a verbalmente por meio de adjetivos desonrosos.

A violência moral, na maioria das vezes está atrelada à violência psicológica, como ocorre, por exemplo, com injúria e ameaça, mas as duas formas de violência são independentes, assim como todas e cada uma delas.

Analisadas as formas de violência descritas pela Lei 13.340/06, cabem alguns esclarecimentos finais.

O Código Penal, em seu artigo 61, II, f, ao tratar das circunstâncias agravantes dos tipos penais, descreve tal ocorrência quando o crime for cometido com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou hospitalidade, ou com violência contra a mulher, na forma da lei específica. A parte final da alínea f foi introduzida pela Lei 13.340/06.

Desse modo, a pena de crimes praticados em situação de violência doméstica e familiar cometida contra a mulher é agravada, nos termos do dispositivo analisado.

Deve ser lembrado, ainda, que a prática de violência, nas suas modalidades, comporta indenização por danos materiais e morais, nos termos da lei civil.

Como visto, portanto, muito se caminhou no Brasil desde o tempo quando a visão da violência contra as mulheres se limitava a atos de agressão física e era punida de forma acanhada até os dias de hoje, quando tal fenômeno se diversifica em variadas formas e encontra medidas de caráter preventivo e repressivo para sua eliminação.

Nesse sentido, entendimento recentíssimo com maioria de votos no STF é aquele que afasta o que se denomina vitimização secundária, ao proibir juízes de exigirem da mulher, vítima de

violência doméstica, a comparecer em audiência para exercício de retratação, nos casos de ação penal pública condicionada a representação, a qual ocorre nos casos de lesão corporal leve e culposa, conforme prescreve o artigo 16 da Lei Maria da Penha. Firmou-se, assim, a partir do voto do Min. Edson Facchin, o entendimento para reconhecer a ‘inconstitucionalidade da designação, de ofício, de tal audiência por parte do juiz, além de afastar a interpretação segundo a qual o não comparecimento da vítima de violência doméstica implica renúncia ao direito de representação’.21

Falta ainda caminhar para um ponto onde a Lei Maria da Penha seja apenas uma referência histórica de uma época em que se faziam necessárias todas essas medidas. Isso só será possível por meio de uma mudança de mentalidade atingida através da educação e da conscientização de que somos todos iguais e de que podemos ser melhores e de que uma sociedade pacífica é uma sociedade de seres livres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A violência contra a mulher é um problema histórico que acompanhou a humanidade, constituindo um dos maiores problemas de ordem social e penal enfrentados pelo Brasil, e continua seguindo firme em todas as classes sociais indistintamente. Inúmeras normas jurídicas de caráter nacionais e internacionais destacam o quanto é urgente para o avanço da sociedade, que se combata esse fenômeno, mesmo assim, as estatísticas apontam para o aumento tristemente espantoso de casos dessa natureza.

A prática de violência não tem uma motivação simples e pontual, mas é decorrente de todo um sistema complexo e que exige esforços em vá-

21 ConJur. STF tem maioria sobre presença da vítima em audiência de retratação. Disponível em: https://www. conjur.com.br/2023-ago-21/audiencia-maria-penhanao-obrigatoria-maioria-stf#:~:text=Livre%20vontade,Presen%C3%A7a%20da%20v%C3%ADtima%20em%20 audi%C3%AAncia%20de,opcional%2C%20diz%20 maioria%20do%20STF&text=A%20garantia%20da%20 liberdade%20s%C3%B3,da%20Lei%20Maria%20da%20 Penha. Acesso em: 21. agost. 2023

rias frentes para ser coibido.

Mesmo com a sanção da Lei nº 11.340/06, também conhecida como Lei Maria da Penha, os índices de violência continuam elevados22. Os motivos são diversos: má aplicação da lei, falta de estrutura física para um atendimento adequado, despreparo dos operadores do direito em lidar com o caso e ausência de políticas públicas capazes de combater esse quadro.

É indiscutível a evolução legal do tema nos dias de hoje23. Inegável admitir-se, por outro lado, que a violência contra as mulheres continue sendo um grave problema social, demarcado por inúmeras implicações a permearem as relações hierárquicas de desigualdade entre os gêneros as quais, de acordo com a Organização Mundial de Saúde – OMS, é um problema de saúde global, de proporções epidêmicas.

Dentro deste contexto, a Lei Maria da Penha é um instrumento fundamental na promoção dos direitos das mulheres e na busca pela igualdade de gênero no país, além de ser uma poderosa ferramenta de prevenção e proteção, já que objetiva garantir justiça efetiva para todas as vítimas de violência doméstica, assegurando-lhe, de um lado, o direito à reparação, e, de outro, prevendo políticas públicas a serem desenvolvidas pelo Estado para a tutela de tais direitos.

Assim, o comportamento do Estado em relação à promoção da dignidade da pessoa humana implica numa necessária efetivação de políticas públicas para proteção das mulheres com investimentos que resultem no efetivo enfrentamento à violência de gênero para a superação desse problema histórico, com um programa de ações governamentais politicamente determinadas que visem à realização desse objetivo tão relevante socialmente.

22 No Brasil temos alarmantes dados estatísticos de violências praticadas contra mulheres. No ano de 2013 passou para a 5ª posição com uma taxa de 4,8 homicídios de mulheres a cada 100 mil. Isso representa um aumento de 9% no número de assassinatos registrados. Em 2010, o Brasil ocupava a 7ª posição no ranking com uma taxa de 4,4, segundo dados do Mapa de Violência. Apenas entre março de 2020 e dezembro de 2021 foram 2.451 feminicídios e 100.398 casos e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino de acordo com o fórum brasileiro de segurança pública de 2021.

23 Podemos, à título de exemplo, mencionar as recentes leis 14.538/2023, 14.540/2023, 14.541/2023 e 14.542/2023.

DIAS, Maria Berenice. Lei Maria da Penha. A efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.

ESPÍNOLA, Caroline Cavalcante. Dos Direitos humanos das mulheres à efetividade da Lei Maria da Penha. 1. ed. Curitiba, Appris, 2018.

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A REVISÃO DA VIDA TODA: BREVE ANÁLISE SOBRE A DECADÊNCIA E A IGUALDADE DE DIREITOS

Palavras-chave

Revisão da Vida Toda - Prazo Decadencial - Termo Inicial - Justiça Social

Mayara Mihoko Kodima Cury

Advogada, formação acadêmica pela Faculdades Integradas de Bauru – FIB, pós-graduanda em Direito Previdenciário – RGPS Nova Previdência pelo IEPREV

1. INTRODUÇÃO

Em 13/04/2023 foi publicado o acórdão pelo STF relativo ao Tema 1.102, popularmente conhecido como Revisão da Vida Toda.

Em suma, a revisão da vida toda se insurge contra a limitação imposta pela Lei 9.876/99 ao universo contributivo a ser considerado no cálculo do salário de benefício do segurado.

Assim, buscou-se a aplicação da norma prevista no inciso I do art. 29 da Lei 8.213/91, quando esta for mais vantajosa, a fim de que fosse considerado no cálculo do benefício todo o período contributivo do segurado, e não apenas a partir de julho de 1994.

Contudo, apenas uma parcela minoritária da população realmente será beneficiada com a mudança. E parte dessa minoria já teria perdido o direito a revisão se aplicado o prazo decadencial tal como encartado no art. 103 da Lei nº 8.213/91.

Dessa forma, o presente trabalho tem por principal objetivo realizar uma reflexão acerca da efetividade da justiça social promovida pela decisão favorável à revisão da vida toda, e a possibilidade do afastamento da decadência para os segurados efetivamente beneficiários da revisão.

Não se espera com este estudo pôr fim à discussão. Pelo contrário. Busca-se examinar e ponderar, à luz da doutrina, artigos e periódicos, algumas considerações pontuais sobre o papel dos direitos sociais e a sua efetividade no cenário atual, a fim de fomentar o debate.

2. DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

COMO DIREITO SOCIAL

Antes de adentrarmos ao cerne do instituto da decadência, e por sua vez, da revisão da vida toda, é preciso recorrer às bases fundamentais da previdência social, e sua natureza.

A Constituição Federal de 1988, influenciada pela

Constituição Mexicana de 1917 e pela Constituição de Weimar de 1919, adotou a dignidade da pessoa humana como fundamento e consagrou os chamados direitos e garantias fundamentais.

Buscando dar efetividades a esses direitos básicos, foram instituídos, ainda, os direitos sociais, dos quais faz parte expressa a previdência social.

Os direitos econômicos, sociais e culturais são associados ao direito à igualdade em sua dimensão material com base no princípio da isonomia, segundo o qual se deve tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Ou seja: o conteúdo enunciado no princípio esclarece que a garantia de igualdade perante a lei é insuficiente para assegurar que, na prática, todos os indivíduos tenham igual acesso a bens e direitos, sendo necessário, desta forma, que o Estado tome medidas para reduzir as desigualdades, sendo insuficiente a mera previsão da igualdade formal. (ZAPATER, 2018, p. 1119)

Ou seja, apenas garantir a igualdade perante a lei não é suficiente para garantir que todos tenham acesso igualitário a bens e direitos na prática. De igual forma, e já visitando o tema da revisão da vida toda, garantir o direito à revisão e aplicar a decadência é limitar o acesso igualitário aos possuidores do direito.

Assim, é necessário não somente “dar” o direito, mas garantir que todos tenham condições justas e equitativas de acessá-lo, buscando uma igualdade mais real e efetiva.

3. DO TERMO INICIAL PARA O CÔMPUTO DA DECADÊNCIA NAS AÇÕES

RELATIVAS À REVISÃO DA VIDA TODA

O instituto da decadência é a limitação do exercício do direito por certo período de tempo, com

vista a não se eternizar as demandas judiciais, atrair segurança aos negócios jurídicos e a paz social, fazendo-se perecer o direito do titular.

Nas palavras do doutrinador Fábio Zambitte Ibrahim (2019):

[...] A decadência faz perecer o direito pelo transcurso de certo lapso temporal previsto em lei. A decadência fulmina o direito potestativo, que é aquele a ser exercido exclusivamente pelo seu titular, ao qual não corresponde obrigação alguma, como, por exemplo, o direito potestativo do empregador em encerrar um contrato de trabalho. (IBRAHIM, F. Z. Curso de direito previdenciário. 24 ed. p. 393)

Nesse sentido, se estabeleceu para as demandas previdenciárias o disposto no art. 103 da Lei nº 8.213/91, limitando a 10 anos o prazo para revisão do ato de concessão de benefício:

Art. 103. O prazo de decadência do direito ou da ação do segurado ou beneficiário para a revisão do ato de concessão, indeferimento, cancelamento ou cessação de benefício e do ato de deferimento, indeferimento ou não concessão de revisão de benefício é de 10 (dez) anos, contado:

I - do dia primeiro do mês subsequente ao do recebimento da primeira prestação ou da data em que a prestação deveria ter sido paga com o valor revisto; ou

II - do dia em que o segurado tomar conhecimento da decisão de indeferimento, cancelamento ou cessação do seu pedido de benefício ou da decisão de deferimento ou indeferimento de revisão de benefício, no âmbito administrativo.

Os Tribunais Superiores têm entendido que a revisão da vida toda se trata de defeito no ato de concessão do benefício, e aplicado o prazo do artigo acima transcrito nos seus julgamentos. Vejamos, por exemplo, a ementa abaixo:

AGRAVO INTERNO. PREVIDENCIÁRIO.

APOSENTADORIA POR TEMPO DE CONTRIBUIÇÃO. REVISÃO. “VIDA TODA”. DECADÊNCIA. TERMO A QUO DO PRAZO.

Uma vez que busca modificar o ato concessório, o pedido de revisão de benefício previdenciário pela inclusão de salários-de-contribuição anteriores a julho de 1994 também se sujeita à incidência do prazo decadencial do art. 103 da Lei 8.213/1991, devendo-se observar o princípio da actio nata na sua contagem. (TRF4 - PROCESSO: 5047019-16.2020.4.04.7000 - LUIZ FERNANDO WOWK PENTEADOData da publicação: 18/04/2023)

Tal entendimento reduz significativamente o número de segurados que, tendo o direito, poderão socorrer-se ao poder judiciário e se beneficiar com essa conquista.

Paralelamente a este entendimento, em um primeiro momento, precisamos entender o fundamento, ou base legal, para a revisão da vida toda.

A Lei nº 8.213 de 1991 disciplinava que o salário de benefício seria calculado pela média aritmética dos 36 últimos salários de contribuição, em um universo máximo de 48 meses, com a incidência de um determinado percentual, segundo a natureza do benefício.

Por sua vez, com a publicação da Lei nº. 9.876 de 1999 alterou-se a fórmula do cálculo, que passou a consistir na média aritmética simples dos maiores salários de contribuição correspondentes a oitenta por cento de todo o período contributivo desde a competência julho de 1994.

O ponto focal da revisão da vida toda, portanto, é a limitação imposta ao universo contributivo trazido pela nova regra que não se encontra na Lei nº 8.213/91.

Dessa forma, no julgamento do Tema 1.102, o STF fixou a seguinte tese:

O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após

a vigência da Lei 9.876, de 26/11/1999, e antes da vigência das novas regras constitucionais, introduzidas pela EC em 103 /2019, que tornou a regra transitória definitiva, tem o direito de optar pela regra definitiva, acaso esta lhe seja mais favorável.

Dessa forma, ao contrário do que vem sendo admitido pelos Tribunais, podemos considerar que no caso da revisão da vida toda, não se trata de revisão do ato de concessão. A questão debatida se refere a correta interpretação da lei a ser aplicada ao caso concreto: se deve ser aplicada a norma prevista no inciso I do art. 29 da Lei 8.213/91 ou a regra de transição prevista no artigo 3.º, caput e §2º, da Lei 9.876/99.

Veja-se, portanto, que embora impacte diretamente no cálculo do benefício, a correta interpretação da lei se trata de elemento externo ao cálculo do benefício, uma vez que a Administração Pública está vinculada ao Princípio da Legalidade Estrita, que a impede de interpretar a Lei e utilizar a jurisprudência.

Dessa forma, por falta de disposição legal, e ainda, por observância do princípio da legalidade, não houve erro, falha ou vício na análise do ato de concessão pelo INSS aos benefícios concedidos até a entrada em vigor da EC 103/2019, não havendo que se falar em limite decadencial neste caso, pois não se trata de revisão do ato de concessão estabelecido no art. 103 supramencionado, mas sim de revisão da interpretação da lei e da sua aplicação.

Ademais, analisando por uma outra perspectiva, mas culminando em uma mesma solução, consideramos a assertiva de que a decadência está diretamente ligada ao possuidor de um direito, conforme vimos acima.

Ora, de acordo com os próprios dados utilizados pelo INSS, de 108.396 pessoas que poderiam ter direito a revisão, apenas para 33.915 a revisão seria realmente vantajosa (Nota Técnica SEI nº 4.921/2020).

Para essa minoria, o direito à revisão nasceu e se consolidou com o Tema 1.102 do STF, visto que, antes do julgamento do repetitivo não havia o direito reclamado, já que cabia ao INSS a aplicação da lei e não a sua interpretação, tal como firmada pela jurisprudência.

Assim, se o direito nasceu para os 33.915 segurados na mesma data, e se a decadência é a perda de um direito existente, o termo a quo para os segurados exercerem o direito da revisão da vida toda deveria ser o trânsito em julgado do acórdão que garantiu esse direito.

Limitar a revisão da vida toda pela decadência prevista no art. 103 da Lei nº 8.213/91, é, no mínimo, clara ofensa ao princípio da igualdade, já que todos os potenciais beneficiários adquiriram o direito na mesma data.

O mesmo raciocínio foi utilizado pelo STJ no julgamento do Tema Repetitivo 1.117, o qual definiu que:

o marco inicial da fluência do prazo decadencial, previsto no caput do art. 103 da Lei n. 8.213/1991, quando houver pedido de revisão da renda mensal inicial (RMI) para incluir verbas remuneratórias recebidas em ação trabalhista nos salários de contribuição que integraram o período básico de cálculo (PBC) do benefício, deve ser o trânsito em julgado da sentença na respectiva reclamatória.

Conforme se verifica no acórdão, restou decidido que há a integralização do direito material ao segurado somente a partir do trânsito em julgado da ação trabalhista, devendo, portanto, este ser o marco inicial da decadência.

De igual forma, o direito à relativização do universo contributivo – revisão da vida toda - somente foi integralizado ao segurado quando do julgamento pelo STF do Tema 1.102.

Assim, nesta linha de raciocínio, pode-se concluir que a data do trânsito em julgado do acórdão proferido pelo STF deveria ser o marco ini-

cial do prazo decadencial.

Portanto, a fim de se preservar os princípios constitucionais e como forma de dar efetividade ao direito social ora reclamado, o termo a quo da decadência para a revisão da vida toda deverá ser contado a partir do reconhecimento do direito pela Repercussão Geral.

Admitir o inverso é dar suporte a ineficiência do direito, e favorecer a instauração da injustiça social, já que o direito conquistado não poderá ser exercido pela grande maioria da pequena parcela de segurados que seriam os seus reais beneficiários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer deste estudo, revisitamos a construção histórica da previdência social através do enfoque dos direitos sociais, e a sua importância na efetividade das garantias fundamentais.

A partir daí, se abordou a questão da decadência no âmbito das demandas previdenciárias, bem como o seu impacto quando aplicada às ações relacionadas à revisão da vida toda.

Como forma de buscar afastar a sua incidência, considerou-se que a relativização do universo contributivo não se trata de uma revisão do ato de concessão de benefício, mas sim da correta interpretação da lei a ser aplicada aos benefícios concedidos na vigência da Lei nº 9.876/99, bem como, que referido direito somente foi integralizados aos segurados com o julgamento pelo STF do tema 1.102, em analogia ao entendimento exarado pelo STJ no Tema 1.117.

Partindo de tais premissas, foi possível concluir que o prazo decadencial para a revisão da vida toda deveria ser contado a partir do trânsito em julgado do acórdão proferido pelo STF, pois é somente a partir desse momento que o direito é integralizado ao segurado.

A adoção deste entendimento implicaria, no âmbito dos direitos sociais, fazer valer o princí-

pio da igualdade para todos os segurados que, tendo o seu benefício concedido pela regra transitória, tiveram prejuízo se comparado com a regra definitiva.

No mais, o presente estudo nasceu da necessidade de se elaborar uma tese para afastar a decadência em casos reais, aos quais muitos beneficiários se viram frustrados ao ter o direito reconhecido mas não poder exercê-lo, nem usufruí-lo.

Em suma, reconhecemos que se trata de uma questão profunda e de grande impacto social, e que ainda levantará muitos debates sobre o tema. Ao final, contudo, esperamos que aos beneficiários seja garantido o exercício pleno e o gozo de seus direitos reconhecidos.

Badari, João. O milagre contábil apresentado pelo INSS na revisão da vida toda. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-milagre-contabil-apresentado-pelo-inss-na-revisao-da-vida-toda/1483865661> Acesso em: 21/07/2023.

BRASIL. Lei Nº 8.213, De 24 De Julho De 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, em 24 de julho de 1991.

BRASIL. Lei No 9.876, De 26 De Novembro De 1999 Dispõe sobre a contribuição previdenciária do contribuinte individual, o cálculo do benefício, altera dispositivos das Leis nos 8.212 e 8.213, ambas de 24 de julho de 1991, e dá outras providências. Brasília, 26 de novembro de 1999.

Ferraresi, Camilo Stangherlim. Cury, Mayara Mihoko Kodima. O PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA: ANÁLISE DA (IN)CONSTITUCIONALIDADE DOS BENEFÍCIOS DAS APOSENTADORIAS VOLUNTÁRIAS E SUSTENTABILIDADE FINANCEIRA. Revista JurisFIB, Volume XI | Ano XI, 2020.

Ribeiro, Pâmela Francine. Não aplicação da decadência na Revisão da Vida Toda. Disponível em: <https://www.jusbrasil.com.br/artigos/nao-aplicacao-da-decadencia-na-revisao-da-vida-toda/1199073578> Acesso em: 21/07/2023.

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O ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO CÍVEL NO ÂMBITO DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

O acordo de não persecução cível é uma ferramenta jurídica que tem sido amplamente debatida e adotada em diversos sistemas legais ao redor do mundo. No Brasil, foi introduzido na Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa - LIA), através da Lei 13.964/2019 (pacote anticrime). Trata-se de um instrumento que permite a resolução consensual de casos civis, mais precisamente que envolvam atos de improbidade administrativa.

Nessa esteira, surgiu-se a ideologia de se aplicar o acordo de não persecução cível no processo administrativo disciplinar, mais precisamente nos casos em que envolvam atos de improbidade administrativa, passiveis de demissão e cassação da aposentadoria. Neste artigo, analisaremos o conceito do acordo de não persecução cível sua logística e a hermenêutica de aplicação para o processo administrativo disciplinar.

Nilo Kazan de Oliveira

Doutor pela UNESP-FMB, campus Botucatu - SP (2022). Maestría de Derecho Administrativo y Gestión Pública, impartido en la Escuela de Posgrado de la Facultad de Derecho UdelaR (2021). Pós Graduado em Direitro Público Aplicado pela Escola Brasileira de Direito (2020-2021);

Gabriela da Silveira

Advogada, bacharel em Direito pela Libertas Faculdades Integradas (2014 - 2018); pós graduada em Direito Aplicado aos Serviços de Saúde pela Estácio (2023); pós-graduanda em Direito Médico e LGPD pela Legale. Tem experiência no Direito Médico e da Saúde e Direito Público

Palavras-chave

Acordo de Não Persecução Cível - Processo Administrativo Disciplinar - Atos de Improbidade - Pacote Anticrime

1. INTRODUÇÃO

O acordo de não persecução cível é uma modalidade de negociação entre o Ministério Público ou pelo Ente Público que sofreu prejuízo, com o suposto infrator, com o objetivo de resolver questões de cunho civil, sem a necessidade de discussão judicial sobre os supostos atos de improbidade praticados.

Nessa esteira, é importante retornarmos às origens sobre a viabilidade de negociação e acordo com supostos infratores. Temos como o grande marco o acordo de não persecução penal, trazido pela Lei nº 13.964 de 20191, que atualmente é bastante difundido na seara criminal.

Em linhas gerais, houve um diálogo de fontes, entre o direito penal e processual penal, com o direito civil, a qual se enquadram os atos de improbidade, a fim de viabilizar o acordo de não persecução civil.

A partir de então foram implementadas mudanças substanciais na Lei nº 8.429/92 (LIA), através da Lei nº 14.230/21, inserindo o art. 17-B, que assim dispõe:

“Art. 17-B. O Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução civil, desde que dele advenham, ao menos, os seguintes resultados:

I - o integral ressarcimento do dano;

II - a reversão à pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados.

§ 1º A celebração do acordo a que se refere o caput deste artigo dependerá, cumulativamente:

I - da oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação;

1 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/ lei/l13964.htm

II - de aprovação, no prazo de até 60 (sessenta) dias, pelo órgão do Ministério Público competente para apreciar as promoções de arquivamento de inquéritos civis, se anterior ao ajuizamento da ação;

III - de homologação judicial, independentemente de o acordo ocorrer antes ou depois do ajuizamento da ação de improbidade administrativa.

§ 2º Em qualquer caso, a celebração do acordo a que se refere o caput deste artigo considerará a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso.

§ 3º Para fins de apuração do valor do dano a ser ressarcido, deverá ser realizada a oitiva do Tribunal de Contas competente, que se manifestará, com indicação dos parâmetros utilizados, no prazo de 90 (noventa) dias.

§ 4º O acordo a que se refere o caput deste artigo poderá ser celebrado no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória.

§ 5º As negociações para a celebração do acordo a que se refere o caput deste artigo ocorrerão entre o Ministério Público, de um lado, e, de outro, o investigado ou demandado e o seu defensor.

§ 6º O acordo a que se refere o caput deste artigo poderá contemplar a adoção de mecanismos e procedimentos internos de integridade, de auditoria e de incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica, se for o caso, bem como de outras medidas em favor do interesse público e de boas práticas administrativas.

§ 7º Em caso de descumprimento do acordo a que se refere o caput deste artigo, o

investigado ou o demandado ficará impedido de celebrar novo acordo pelo prazo de 5 (cinco) anos, contado do conhecimento pelo Ministério Público do efetivo descumprimento.”

Notem, que a legislação, adequando-se aos parâmetros contemporâneos sobre a sistemática cooperativa, negocial e conciliatória, emanou texto expresso sobre a viabilidade de realização do acordo de não persecução cível em infrações civis.

Após o advento da referida alteração legislativa, questionou-se também sobre a viabilidade do ente público lesado em propor o acordo de não persecução cível, sendo que a matéria foi pacificada pelo r. Supremo Tribunal Federal, através da ADI 7042/DF:

Os entes públicos que sofreram prejuízos em razão de atos de improbidade também estão autorizados, de forma concorrente com o Ministério Público, a propor ação e a celebrar acordos de não persecução civil em relação a esses atos.

STF. Plenário. ADI 7042/DF e ADI 7043/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, julgados em 31/8/2022 (Info 1066)

Essa decisão possui extrema relevância para o objeto do presente artigo, pois se a Pessoa Jurídica de Direito Público lesada não estivesse legitimada à propositura ou realização do acordo de não persecução cível, fatalmente o comando hermenêutico seria no sentido da inviabilidade de sua realização no âmbito do processo administrativo disciplinar.

Lado outro, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o entendimento no sentido de que é viável a realização do acordo de não persecução cível até em grau de recurso:

O relator, ministro Gurgel de Faria, afirmou que a Primeira Turma, diante de recentes alterações legislativas, tem reconhecido a possibilidade de homologação dos acor-

dos de não persecução cível na instância recursal.

Ele explicou que essa posição da jurisprudência decorre das mudanças trazidas pela Lei 13.964/2019 – o chamado Pacote Anticrime –, que alterou o parágrafo 1º do artigo 17 da Lei 8.429/1992. A nova lei também introduziu o parágrafo 10-A ao artigo 17 da Lei de Improbidade Administrativa, para estabelecer que, “havendo a possibilidade de solução consensual”, as partes poderão requerer ao juiz a interrupção do prazo para a contestação, por não mais do que 90 dias.

O ministro ressaltou que a Lei 14.230/2021, “que alterou significativamente o regramento da improbidade administrativa”, incluiu o artigo 17-B à Lei 8.429/1992, trazendo previsão explícita quanto à possibilidade do acordo de não persecução cível até mesmo no momento da execução da sentença.

Segundo o relator, a empresa condenada por ato ímprobo foi punida com a imposição do ressarcimento do dano ao erário e com a proibição de contratar com o poder público pelo período de cinco anos, mas, no acordo celebrado com o Ministério Público, foi fixada multa civil de R$ 2,5 milhões em substituição à proibição de contratar.

Ao homologar o acordo, a Primeira Seção extinguiu o processo com resolução do mérito e julgou prejudicados os embargos de divergência que haviam sido interpostos pela empresa de coleta de lixo. 2

Assim foram colmatadas as lacunas deixadas pela Lei n. 13.964/2019, garantindo a efetividade do acordo de não persecução cível, sempre que haja prevalência do interesse público. Em suma o dano ao erário deve ser estancado e compensado, viabilizando-se a realização da referida negociação.

2 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/ Noticias/20042022-Primeira-Secao-homologa-acordo-denao-persecucao-civel-em-acao-de-improbidade-na-faserecursal.aspx

2.

NO ÂMBITO DO PROCESSO

ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR

Feitas as considerações iniciais, é importa ressaltar que o debate e normatização sobre o acordo de não persecução passou da esfera penal para a esfera civil, restando à mingua de regulamentação no âmbito administrativo.

Notem que apesar das esferas penal, civil e administrativa serem independentes3, quando estamos a tratar de atos de improbidade administrativa, devemos ter em conta o microssistema processual coletivo, que garante uma integração entre várias normas e institutos que atuam em normas de âmbito coletivo.

O microssistema processual coletivo é um conjunto de normas e princípios que regulam os processos judiciais e extrajudiciais voltados para a tutela de direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos. Esse conjunto de normas forma um sistema específico dentro do ordenamento jurídico, destinado a proteger interesses e direitos que transcendem o âmbito individual e têm repercussão sobre um grupo maior de pessoas.

No Brasil, o microssistema processual coletivo está principalmente previsto na Constituição Federal de 1988 e em leis específicas que tratam da tutela dos direitos coletivos. Além disso, a jurisprudência dos tribunais também é relevante na construção desse sistema.

Os principais pilares desse microssistema são:

• Princípio da Ação Coletiva (Legitimação extraordinária): As entidades e órgãos previstos em lei têm a possibilidade de ajuizar ações em nome próprio para a proteção de direitos e interesses coletivos, como o Ministério

3 MS 34.420-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe de 19/05/2017; RMS 26951-AgR, Primeira Turma, Rel. Min. Luiz Fux, Dje de 18/11/2015; e ARE 841.612-AgR, Segunda Turma, Rel. Min. Cármen Lúcia, DJe de 28/11/2014.

Público, Defensoria Pública, União, Estados, Municípios, autarquias, dentre outros.

• Princípio da Isonomia: Visa garantir a igualdade entre as partes envolvidas no processo, permitindo que tanto o autor da ação (entidade legitimada) quanto o réu tenham o direito de se manifestar e apresentar provas.

• Princípio da Publicidade: Os processos coletivos devem ser públicos, permitindo que qualquer pessoa tenha acesso às informações e aos atos processuais.

• Princípio da Efetividade: Busca garantir a efetividade das decisões judiciais, para que as ações coletivas tenham resultados concretos e não fiquem apenas no plano teórico.

• Princípio do Interesse Público Primário: Os processos coletivos visam proteger interesses que têm relevância pública e social, sendo distintos dos interesses individuais.

• Princípio da Reparação Integral: Caso seja comprovado o dano, as decisões judiciais devem garantir a reparação integral dos prejuízos causados aos direitos coletivos afetados.

• Princípio da Coisa Julgada Erga Omnes: A decisão proferida em ação coletiva possui eficácia para todas as pessoas integrantes do grupo ou categoria afetada, não sendo restrita apenas às partes envolvidas na ação.

Dentre as leis que compõem esse microssistema, destacam-se a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/1985), a Lei da Ação Popular (Lei nº 4.717/1965), o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), entre outras normas específicas para a proteção de direitos coletivos.

O objetivo desse microssistema é assegurar a tutela dos interesses coletivos e difusos, bem como a correta aplicação dos princípios e regras

processuais para que a justiça seja alcançada de forma mais abrangente, considerando a dimensão social e a relevância desses direitos.

Assim, quando estamos falando de atos de improbidade, estamos a nos direcionar a questões que demandam atuação direta do microssistema processual de tutela coletiva.

Pois bem, fazendo essa integração, e também com a articulação sistemática dos institutos legais existentes, a teor do art. 15 do Código de Processo Civil, temos que a aplicação do acordo de não persecução civel no âmbito do processo administrativo disciplinar é perfeitamente harmônico com os parâmetros constitucionais e legais.

Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente. g.n.4

Pela próxima sistemática integrativa do ordenamento jurídico pátrio, temos que a aplicação do acordo de não persecução cível no âmbito do processo administrativo disciplinar é compatível com todas as premissas legais existentes e, malgrado ainda inexista previsão legal expressa para sua efetivação, o microssistema legal que tutela o interesse público primário e aspectos da coletividade garantem ao indiciado a efetivação da referida transação.

Nos dizeres de Claudia Lima Marques, que conduziu a tese do diálogo das fontes (Erik Jayme)5, a antinomia existente, por não haver norma regulamentar expressa para aplicação do acordo de não persecução cível no âmbito administrativo, deve ser colmatada pelo microssistema coletivo.

Em linhas gerais, o acordo de não persecução cível agrada a ambas as partes do processo administrativo disciplinar. O Estado estará reparando o erário, e além disso sancionando pecuniariamente o infrator. Em contrapartida, o funcionário que supostamente teria infringido a lei, terá a oportunidade de transacionar com o Estado, evitando-se a aplicação de uma penalidade drástica como uma demissão ou cassação de aposentadoria.

O fato de inviabilizar a aplicação do acordo de não persecução cível no âmbito do processo administrativo disciplinar seria um tanto quanto ilógico, vez que na própria sanção cível, por ato de improbidade, essa medida já seria viável. Assim, com muito mais razão, seguindo uma ordem simétrica, no âmbito administrativo deve-se viabilizar a sua realização.

Por mais que exista independência de instâncias de aplicação de penalidade - penal, cível e administrativa, fato é que em muitos casos as questões penais preponderam, seguidas das questões civis e administrativas. Assim, seguindo uma hermenêutica sistemática e lógica, quando da existência apenas do acordo de não persecução penal, já seria viável a sua aplicação no âmbito administrativo, mais precisamente no processo administrativo disciplinar que se amolda nos atos de improbidade.

A título exemplificativo, notem que a própria Lei n. 8.112/90, em seu art. 132, IV, especifica que uma das causas de demissão é a improbidade administrativa.

4 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/ lei/l13105.htm

5 https://www.emagis.com.br/area-gratuita/voce-sabia/ teoria-dos-dialogos-das-fontes-base-teorica-eaplicacoes/#:~:text=A%20tese%20da%20Teoria%20do,se%20 excluem%2C%20mas%20se%20complementam.

Art. 132.  A demissão será aplicada nos seguintes casos: (...) IV - improbidade administrativa; (...)

A Lei do Estado de São Paulo n. 10.261/68 também possui disposição semelhantes:

Artigo 257 - Será aplicada a pena de demissão a bem do serviço público ao funcionário que:

(...)

XIII - praticar ato definido em lei como de improbidade. (NR) - Inciso XIII acrescentado pela Lei Complementar nº 942, de 06/06/2003

(...)

Desta feita, de rigor que, em havendo atos de improbidade, por conseguinte deve ser viabilizado o acordo de não persecução cível ao funcionário público, desde que respeitados os parâmetros legais e haja vantajosidade aos cofres públicos.

A título exemplificativo, se um funcionário público recebeu indevidamente R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais), ainda que de boa-fé, e agora está sendo indiciado em um processo administrativo disciplinar, com viabilidade de demissão, nada obsta que seja feito um acordo, com devolução desses valores atualizados, além de multa incidente, estancando assim o processo administrativo disciplinar.

A modelagem do acordo de não persecução cível vem de encontro com harmonização entre o direito sancionador e a proteção do patrimônio e interesses públicos primários - da coletividade. Assim, inexiste objeção entre o interesse público de resguardo e a realização de acordo.

Lado outro, é importante ressaltar ainda que o pacto negocial é vertical, que apesar de entender ser um direito subjetivo do indiciado, deve pautar-se em critérios objetivos e hígidos emanados única e exclusivamente do Estado. Haverá aqui, verdadeira submissão do funcionário público aos termos do acordo imposto pelo Estado.

Por via de consequência, é importante ressaltar ainda que o acordo não perde a sua bilateralidade, pois existe a viabilidade de aceitação ou não por parte do funcionário público indiciado.

O acordo também deve ser pautado em fundados indícios de materialidade e autoria, vez que a administração pública estaria calcada na tipicidade da infração disciplinar para a propositura do acordo. Em não havendo indícios mínimos sobre a materialidade da ilegalidade, inviável a sua celebração, sob pena de se agir o gestor com

nítido abuso de autoridade.

Por fim, o indeferimento de realização do acordo de não persecução cível no âmbito administrativo, mais precisamente no âmbito do processo administrativo disciplinar que envolva atos de improbidade, deve ser combatido via recurso hierárquico, independentemente de previsão legal expressa, sendo ele inerente à sistemática do contraditório e ampla defesa, inerente ao processo administrativo em geral.

Em não havendo reforma da decisão, diante de toda a sistemática processual e material, o entendimento plausível é que seja viabilizado o direito subjetivo do indiciado, através dos remédios constitucionais existentes em nosso ordenamento jurídico (mandado de segurança, habeas data, entre outros).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O acordo de não persecução cível é uma importante ferramenta para a resolução de questões civis de forma consensual e eficiente. Ao possibilitar a reparação do dano ou a correção de irregularidades sem a necessidade de da judicialização do caso, contribui para a celeridade e a economia processual, além de oferecer um direito subjetivo ao suposto infrator.

Por via de consequência, malgrado inexista regulamentação expressa de aplicação do regramento do acordo de não persecução cível junto ao processo administrativo, mais precisamente ao processo administrativo disciplinar, nada obsta a sua aplicação imediata, em conformidade com o microssistema processual e material coletivo, além das normas regulamentadoras do acordo de não persecução penal e acordo de não persecução cível angariado pelo pacote anticrime e lei de improbidade administrativa, respectivamente.

Em não havendo aceitação da aplicação do referido instituto ao servidor público indiciado em processo administrativo disciplinar, este deve se socorrer ao recurso hierárquico, na via administrativa e, em não havendo reforma da decisão, deve se socorrer ao Poder Judiciário, a fim de que se viabilizar o acordo de não persecução cível.

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NACIONAIS

Palavras-chave

Contribuições Previdenciárias. Progressividade. Capacidade contributiva. Isonomia.

RAMON LEANDRO FREITAS ARNONI

Mestrando em Direito Tributário pelo IBET- Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista em Direito Tributário pelo IBET- Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. Especialista em Gestão Pública - Universidade Federal de São Carlos. Especialista em Direito Público, Direito da Seguridade Social, Direito Empresarial, Direito do Consumidor, Ciências Criminais, Prevenção e Combate à Corrupção. Auditor Fiscal da Receita Estadual de São Paulo. Juiz titular do Tribunal de Impostos e Taxas/SP.

e-mail: ramon.arnoni@bol.com

INTRODUÇÃO

A Reforma da Previdência Social consumada com a edição da Emenda Constitucional nº 103/2019 alterou em todos os aspectos os direitos previdenciários dos segurados dos regimes geral e próprios de previdência.

Atuou aumentando as alíquotas de contribuição, dificultando o acesso aos benefícios com regras mais rígidas de tempo de contribuição, idade mínima e carência e diminuiu o valor dos benefícios concedidos com regras mais severas sobre período base de cálculo dos valores dos benefícios, valores menores para benefícios de pensão por morte ou incapacidade e regras de acumulação de benefícios com redução significativa de valores.

Dentre as mudanças perpetradas pela reforma de 2019, chama atenção a que criou o regime de progressividade de alíquotas sobre bases de cálculos para os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos (Art. 149, § 1º da CF/88).

Sob o argumento de atender à capacidade contributiva dos servidores públicos, alguns estados, ao instituírem as alíquotas progressivas no exercício de suas competências, escalonaram suas alíquotas de forma diferente do que fez a União.

Neste ponto, considerando as decisões do Supremo Tribunal Federal nas ADIs 3.854 e 6.257, que reconheceram o caráter nacional das carreiras da magistratura e da docência em universidades, a progressividade das alíquotas ofendem importante princípio constitucional, da isonomia (Art. 150, II da CF/88), que veda expressamente qualquer distinção tributária em razão de ocupação profissional ou função.

1. ESTRUTURA NORMATIVA DAS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS AOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA

A Constituição Federal de 1988 atribuiu aos Estados, Distrito Federal e Municípios e, após a Emenda Constitucional nº 103/2019, também ex-

pressamente à União, a competência para instituírem contribuições para custeio de regime próprio de previdência social.

Esta Emenda Constitucional adotou a técnica de constitucionalizar, levando para o texto permanente ou da própria emenda, aspectos da Regra Matriz de Incidência Tributária. O modelo escolhido, diante das rígidas regras de alteração constitucional (embora a Constituição vigente já tenha sido emendada em mais de 120 oportunidades) torna dificultosa a revisão da alteração perpetrada pela reforma de 2019, seja pelo aspecto legislativo, submetido ao rito do art. 60 da Constituição Federal, seja pelo aspecto do Poder Judiciário, que demanda a obediência aos requisitos das ações constitucionais próprias.

Portanto, a despeito da existência de leis federais (Leis nº 10.887/04, 9.717/98), a Emenda Constitucional nº 103 de 2019 conferiu densidade normativa suficiente para a cobrança das contribuições para custeio do regime próprio de previdência social dos servidores da União, até que lei venha a regulamentar aquelas alterações, as quais, ressalte-se, estarão vinculadas aos ditames constitucionalizados pela reforma.

A Constituição Federal, no mesmo art. 149, § 1º atribuiu também aos Estados, Distrito Federal e Municípios a competência para instituição de leis próprias para cobrança das contribuições para custeio do regime próprio de previdência social de seus servidores.

Os Estados passaram a editar suas legislações, cujos debates, discussões e as oportunidades de apresentação de propostas foram demasiadamente prejudicados pelo contexto da Pandemia da Covid-19, que eclodiu em 11 de março de 2020.

Nesse difícil contexto, os limites constitucionais para cobrança das contribuições para custeio do regime próprio de previdência social dos entes ocupou pouco espaço no debate, pois o contexto voltou a atenção de todo a população para aspectos da saúde, cujos serviços demandariam ainda mais recursos dos poderes públicos de to-

dos os entes, reforçando o caráter arrecadatório da contribuição, em detrimento de princípios constitucionais tributários já consagrados.

Nessa linha, Paulo Ayres Barreto alerta para uma especificidade das contribuições, notadamente as destinadas à seguridade social, qual seja, além de analisar a compatibilidade entre a regra matriz de incidência das contribuições com as normas de competência e os limites constitucionais, é imperiosa a análise quanto à finalidade da instituição ou de seu aumento1

Ou seja, a instituição das contribuições previdenciárias ao regime próprio dos servidores, nos termos do art. 149 da CF/88, pressupõe a efetiva “prestação de uma atividade” vinculada à previdência entregue pelo ente tributante ao contribuinte, assim como o efetivo controle da destinação destes recursos àquela finalidade.

Cumpre rememorar que além do conturbado contexto em que se inseriu todo o processo legislativo da Emenda Constitucional nº 103/19 e as aprovações das leis estaduais e municipais em período de pandemia mundial, os cálculos que fundamentaram a reforma da previdência social dos regimes geral e próprios foram submetidos a sigilo de cem anos com amparo em exceção da Lei de Acesso à informação, o que prejudicou e ainda prejudica a análise de atendimento aos pressupostos desta emenda constitucional.

A seguir, passa-se à análise da Regra Matriz de Incidência Tributária das contribuições para custeio do regime próprio de previdência.

2. REGRA MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA DAS CONTRIBUIÇÕES PARA CUSTEIO DOS REGIMES PRÓPRIOS DE PREVIDÊNCIA SOCIAL

2.1 Critério material do antecedente na norma.

Critério material da Regra Matriz de Incidência

1 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e Controle. 3.ed. rev. atual. São Paulo: Noeses, 2020. p. 150.

Tributária de um tributo, é, nas lições de Paulo de Barros Carvalho, o núcleo que o legislador irá condicionar, o comportamento humano, que será formado, invariavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento; “é comportamento de uma pessoa (de dar, fazer ou ser), que deflui de um processo de abstração da própria fórmula hipotética.2

No caso das contribuições sociais para custeio dos regimes próprios de previdência social dos entres federados, estas receberam tratamento diferenciado pelo constituinte. O art. 149 da Constituição, ao contrário do que fez com outros tributos da espécie tributária impostos, não elencou as hipóteses materiais de incidência das contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, mas o fez detidamente quanto à competência para instituição de contribuições destinadas à seguridade social.

O art. 195 elencou as possíveis fontes de custeio de forma taxativa e criou critérios específicos quanto à criação de novas fontes.3

2 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 7. ed. rev. São Paulo: Noeses, 2018. p. 482/484. 3 Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais.

II - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

b) a receita ou o faturamento; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

c) o lucro; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)

II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, podendo ser adotadas alíquotas progressivas de acordo com o valor do salário de contribuição, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

III - sobre a receita de concursos de prognósticos.

IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem

Das hipóteses elencadas pelo constituinte, interessa-nos para o presente estudo aquela prevista no inciso II, qual seja, a contribuição do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, dentre eles os servidores públicos.

Portanto, de acordo com a lição de Paulo de Barros Carvalho, o critériomaterial é “receber remuneração pelo trabalho”.4

2.2 Critério espacial ou territorial do antecedente da norma

O critério espacial da Regra Matriz de Incidência Tributária, nas precisas lições de Paulo de Barros Carvalho, “é o plexo de indicações, mesmo tácitas e latentes, que cumprem o objetivo de assinalar o lugar preciso em que a ação há de acontecer.”5

Considerando a competência concorrente atribuída à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, nos termos do art. 149, § 1º da CF/88, o critério espacial será o território do ente federativo instituidor da contribuição e prevista na lei instituidora, obedecido, por óbvio, o necessário vínculo jurídico administrativo entre o servidor e o respectivo ente federativo, ao passo que os servidores federais e estaduais, certamente exercerão suas atribuições em determinado município, bem como servidores municipais e estaduais poderão estar alocados em municípios ou estados diferentes daqueles com os quais mantenham vínculo jurídico, cabendo a estes a retenção e recolhimento das contribuições ao seu RPPS.

2.3 Critério temporal do antecedente da norma

O critério temporal, também de acordo com Paulo de Barros Carvalho, “oferece elementos para saber, com exatidão, em que preciso instante ocorre o fato descrito.”6 Considerando o critério material “receber remuneração” eleito a lei a ele equiparar. (grifamos)

4 Idem 2. p. 825

5 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário:

6 Ibidem

pelo constituinte, o critério temporal, em obediência à imprescindível identificação do átimo temporal em que se dará a ocorrência do fato descrito no antecedente normativo, não poderá ser outro que não o momento do recebimento da remuneração pelo servidor.

Não por outra razão, na quase totalidade dos casos de que temos conhecimento, as contribuições previdenciárias ao RPPS são descontadas diretamente na folha de pagamento do servidor público, salvo em raras hipóteses permitidas pela legislação administrativa de pessoal, de afastamentos sem a respectiva remuneração em que os servidores podem optar por continuarem a contribuir para o RPPS.

2.4 Critério quantitativo do consequente da norma: base de cálculo e alíquota

Já no consequente da Regra Matriz de Incidência Tributária, passa-se a análise do critério quantitativo, composto pela Base de Cálculo e pela Alíquota.

Chama atenção, mais uma vez, a opção do constituinte reformador em constitucionalizar esse critério de forma bastante detalhada, ao contrário do que ocorre com outros tributos da espécie impostos ou mesmo de outras contribuições, o que, como ressaltado anteriormente, dificulta eventual alteração pela via legislativa ou judicial destes parâmetros.

Ficou evidente a intenção do governo da época em dificultar a alteração de pontos da reforma que prejudicaram o segurado, servidor público ou não, levando para o texto permanente ou da própria Emenda Constitucional estes pontos, ao mesmo tempo em que se desconstitucionalizou, remetendo a leis ordinárias, temas que favoreciam ou que consolidavam direitos dos segurados, facilitando eventual alteração pela via legislativa ordinária.

É neste sentido o alerta de João Batista Lazzari e Carlos Alberto Pereira de Castro, para quem essa prática somada ao histórico de três importantes alterações nos últimos 21 anos (E.Cs. 20/1998, 41/2003 e 103/2019) enfraquece a noção de segurança jurídica que havia quanto às regras de aposentadoria e pensão anteriormente aplicadas aos servidores em Regimes Próprios, o que gerará imprevisibilidade dos critérios para aquisição dos direitos bem como do cálculo dos proventos.7

Quanto à Base de Cálculo, a própria Constituição Federal, no art. 40, § 18, na redação dada pela E.C. 41/2003, estabeleceu que a contribuição incidirá sobre os proventos de aposentadorias e pensões concedidas pelo regime de que trata este artigo que superem o limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência social de que trata o art. 201, com percentual igual ao estabelecido para os servidores titulares de cargos efetivos.

Por sua vez, a Reforma perpetrada pela E.C.103/2019 incluiu o dispositivo do art. 149, § 1º-A que permite que a contribuição sobre os proventos de aposentadoria e pensões incida sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de pensões que supere o salário-mínimo prevendo ainda a criação de uma contribuição extraordinária.8

7 CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 899.

8 Art. 149 ... § 1º-A. Quando houver déficit atuarial, a contribuição ordinária dos aposentados e pensionistas poderá incidir sobre o valor dos proventos de aposentadoria e de pensões que supere o salário-mínimo. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019)

§ 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019) (grifamos)

§ 1º-B. Demonstrada a insuficiência da medida prevista no § 1º-A para equacionar o déficit atuarial, é facultada a instituição de contribuição extraordinária, no âmbito da União, dos servidores públicos ativos, dos aposentados e dos pensionistas. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 103, de 2019) (grifamos)

Para os servidores ativos da União, a base de cálculo está prevista no na Leinº 10.887/2004, art. 4º, inciso I e § 1º como sendo o vencimento do cargo acrescido das vantagens pecuniárias permanentes estabelecidas em lei, os adicionais de caráter individual ou quaisquer outras vantagens.

O mesmo dispositivo previu exclusões desta base, em rol exemplificativo, prevalecendo o critério não salarial, ou seja, o caráter indenizatório das verbas excluídas.

Por conseguinte, pode-se concluir que a base de cálculo das contribuições previdenciárias ao RPPS dos servidores ativos da União será o vencimento do cargo acrescido das vantagens pecuniárias permanentes, excetuadas as verbas indenizatórias previstas nas leis dos entes federativos instituidores.

Estas disposições são aplicadas pela quase totalidade dos estados e municípios, havendo variações quanto a verbas excluídas da incidência desta contribuição.

Quanto ao critério quantitativo da alíquota, este sofreu sensíveis mudanças na reforma previdenciária de 2019.

Criou-se a progressividade das alíquotas das contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas com a alteração da redação do art. 149, § 1º da C.F./88.

A progressividade destas alíquotas compõe tema central do presente trabalho, motivo pelo qual merecerá capítulo específico adiante.

Para o momento, cumpre mencionar que a União ficou vinculada pelas alíquotas trazidas pelo art. 11 da E.C. 103/2019, até que entrasse em vigor lei federal que instituísse as alíquotas, partindo de uma alíquota base de 14% com reduções e acréscimos por faixa de remuneração.9

9 Art. 11. Até que entre em vigor lei que altere a alíquota da contribuição previdenciária de que tratam os arts. 4º, 5º e 6º da Lei nº 10.887, de 18 de junho de 2004, esta será de 14 (quatorze

A emenda previu que as bases sobre as quais incidem as alíquotas serão reajustadas com o mesmo índice em que se der o reajuste dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social (art. 11, § 3º).

A previsão constitucional anterior à reforma (art. 149, § 1º com a redação da E.C. 41/2003) continha a vedação de que as contribuições dos demais entes não seria inferior à da contribuição dos servidores titulares de cargos efetivos da União.

Esta vedação não constou expressamente da nova redação dada pela E.C. 103/2019, mas consta art. 9º, § 4º da própria E.C. 103/2019, que criou uma exceção à regra antes não prevista.10

Alguns estados e municípios já adotavam alíquotas superiores às da União, porém, sem a previsão da progressividade destas alíquotas sobre a por cento).

§ 1º A alíquota prevista no caput será reduzida ou majorada, considerado o valor da base de contribuição ou do benefício recebido, de acordo com os seguintes parâmetros:

- até 1 (um) salário-mínimo, redução de seis inteiros e cinco décimos pontos percentuais;

- acima de 1 (um) salário-mínimo até R$ 2.000,00 (dois mil reais), redução de cinco pontos percentuais;

- de R$ 2.000,01 (dois mil reais e um centavo) até R$ 3.000,00 (três mil reais), redução de dois pontos percentuais;

- de R$ 3.000,01 (três mil reais e um centavo) até R$ 5.839,45 (cinco mil, oitocentos e trinta e nove reais e quarenta e cinco centavos), sem redução ou acréscimo;

- de R$ 5.839,46 (cinco mil, oitocentos e trinta e nove reais e quarenta e seis centavos) até R$ 10.000,00 (dez mil reais), acréscimo de meio ponto percentual;

- de R$ 10.000,01 (dez mil reais e um centavo) até R$ 20.000,00 (vinte mil reais), acréscimo de dois inteiros e cinco décimos pontos percentuais;

- de R$ 20.000,01 (vinte mil reais e um centavo) até R$ 39.000,00 (trinta e nove mil reais), acréscimo de cinco pontos percentuais; e

- acima de R$ 39.000,00 (trinta e nove mil reais), acréscimo de oito pontos percentuais. (grifamos) 10 Art. 9o ... § 4o Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão estabelecer alíquota inferior à da contribuição dos servidores da União, exceto se demonstrado que o respectivo regime próprio de previdência social não possui déficit atuarial a ser equacionado, hipótese em que a alíquota não poderá ser inferior às alíquotas aplicáveis ao Regime Geral de Previdência Social.(grifamos)

base imponível.

Ocorre que com a edição da E.C. 103/2019, muitos estados estabeleceram, com amparo no permissivo constitucional, além da progressividade das alíquotas, também alíquotas superiores, ainda que adotassem menos faixas de incidência. É o caso do Estado de São Paulo, que adotou 4 faixas de incidência, mas com alíquotas maiores, culminando em alíquota média efetiva superior à da União com consequente cobrança maior em valores absolutos, quando comparados com os cobrados pela União.

2.5 Critério pessoal do consequente da norma: sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo da obrigação, nos termos do Código Tributário Nacional (art. 119), é a pessoa jurídica de direito público, titular da competência para exigir o seu cumprimento.

A competência para instituição das contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas foi atribuída à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, conforme art. 149, § 1º da Constituição Federal.11

Já o sujeito passivo contribuinte, nos termos do art. 121, parágrafo único, inciso I do CTN, tido como aquele que tenha relação pessoal e direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador, não pode deixar de ser aquele que externaliza o signo presuntivo de riqueza eleito pelo constituinte de 1988, no caso, o servidor público vinculado ao ente federativo que possua regime próprio de previdência social e que perceba remuneração deste ente federado.

11 Art. 149. § 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões.

3.

DE PREVIDÊNCIA SOCIAL E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

Superada a análise da Regra Matriz de Incidência Tributária das contribuições para custeio de regime próprio de previdência social dos entes federativos, passamos a estudar a aplicação dos princípios da capacidade contributiva a estas contribuições, tema que divide a doutrina, notadamente em razão do caráter contraprestacional ou vinculado, e, no caso das contribuições previdenciárias, também do explícito princípio da solidariedade entre os segurados.

O princípio da capacidade contribuitiva está previsto no art. 145, § 1º da CF/88, de onde partem os doutrinadores para conceituá-lo.

Regina Helena Costa o conceitua como “aptidão, da pessoa colocada na posição de destinatário legal tributário, para suportar a carga tributária, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação.”12

Paulo de Barros Carvalho, por sua vez, aponta para os dois momentos distintos em que incide a capacidade contributiva: um pré-jurídico, que se dirige à autoridade competente para instituição do tributo, quando esta deve eleger como critérios materiais fatos que ostentem signos presuntivos de riqueza (capacidade contributiva absoluta ou objetiva); outro momento, quando da aplicação do princípio se chegue “à repartição da percussão tributária, de tal modo que os participantes do acontecimento contribuam de acordo com o tamanho econômico do evento”, chamada por Paulo de Barros Carvalho como capacidade contributiva em acepção relativa ou subjetiva, guardando esta última, íntima relação com o princípio da igualdade (art. 5º, caput e art. 150, II da CF/88).13

A doutrina tributária diverge sobre a incidência do princípio da capacidade contributiva às contribuições, ao passo que a previsão constitucional menciona expressamente apenas a espécie tributária “impostos”:14

A divergência não decorre apenas da omissão constitucional, mas também de uma inerente vantagem ou benefício como característica das contribuições, o que atrai para esta espécie tributária a referibilidade entre este eventual benefício ou vantagem e a contribuição, afastando ou mitigando a aplicação da capacidade contributiva. Ou seja, o eventual benefício auferido seria o parâmetro primeiro para a exata medida da contribuição e não a capacidade contributiva sob seu aspecto subjetivo.

É neste sentido a lição de Paulo Ayres Barreto, que citando a doutrina de Hamilton Dias de Souza e Wagner Balera, enxerga a eventual vantagem ou benefício como característica primeira das contribuições.15

No caso das contribuições da seguridade social, os benefícios ao contribuinte são aqueles benefícios previdenciários previstos na própria Constituição, quais sejam, as espécies de aposentadorias, as pensões, os auxílios e os benefícios por incapacidade.

Nada obstante, quanto às contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, há princípio específico que estabelece a equidade entre na forma de participação no custeio (art. 40, da CF/88).16

14 Art. 145...§ 1º Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. (grifamos)

15 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e Controle. 3.ed. rev. atual. São Paulo: Noeses, 2020. p. 117

12 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 101.

13 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 31. ed. São Paulo: Noeses, 2021. p. 132.

16 Art. 40. O regime próprio de previdência social dos servidores titulares de cargos efetivos terá caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente federativo, de servidores ativos, de aposentados e de pensionistas, observados critérios que preservem o equilíbrio

Insta pontuar que é este caráter solidário, que passou a constar expressamente do art. 40, para os regimes próprios, somado aos alegados déficits dos Regimes Próprios de Previdência dos Servidores Públicos, é fundamento recorrente das propostas de reformas que visam a prejudicar os direitos previdenciários dos segurados, notadamente a reforma de 2019.

Bruno Sá Freire Martins, conceitua o princípio da solidariedade dos regimes próprios, como a “transferência de meios de uma fração para outra, dentro de um conjunto de pessoas situadas com recursos nivelados ou não”.17

Há razão na adoção do princípio, ao passo que somente por meio da solidariedade de todos os contribuintes participantes do regime é que se conseguirá financiar os chamados benefícios de risco, quais sejam, benefício por incapacidade permanente, benefício por incapacidade temporária e pensão por morte, que não exigem longo período de contribuição condizente com o seu respectivo custeio.

Foi o princípio da solidariedade que fundamentou decisão do STF sobre ampliação da base de cálculo das contribuições aqui tratadas para décimo terceiro salário, terço constitucional de férias, horas extras e outros pagamentos de caráter transitório, julgado em RE 593.068, ministro relator Joaquim Barbosa.

Resta saber se solidariedade pretendida é apta a afastar a aplicação do princípio da capacidade contributiva às contribuições para custeio de regime próprio de previdência social.

Regina Helena Costa defende que o princípio se aplica às contribuições sociais, dentre elas as previdenciárias, quando a materialidade de suas hipóteses de incidência assumirem a feição daqueles tributos.18

financeiro e atuarial. (grifamos) 17 MARTINS, Bruno Sá Freire. Direito constitucional previdenciário do servidor público. 2.ed. São Paulo: LTR, 2014. p. 48.

17 MARTINS, Bruno Sá Freire. Direito constitucional previdenciário do servidor público. 2.ed. São Paulo: LTR, 2014. p. 48.

18 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 102.

Marco Aurélio Greco, citado por Paulo Ayres Barreto, por sua vez, entende que nas contribuições há um fundamento solidarístico do grupo social ao qual está relacionada a finalidade constitucionalmente qualificada, não se aplicando o princípio da capacidade contributiva, exceto nas hipóteses em que a própria Constituição assim previsse.19

No mesmo sentido é a lição de Ricardo Lobo Torres, para quem as contribuições se subordinam ao princípio do benefício do grupo, não se aplicando os princípios decorrente da ideia de justiça.20

Paulo Ayres Barreto, arremata seu posicionamento, alinhado ao de Regina Helena Costa, para quem as contribuições, dentre elas as previdenciárias, não se submetem, necessariamente ao princípio da capacidade contributiva, prevalecendo, nestas, critérios que buscam partilhar os fundos necessários ao custeio da atividade estatal, admitindo que, nas hipóteses em que a materialidade da contribuição seja típica de imposto, a divisão do encargo pode ser feita a partir de escolha de base de cálculo que atenda à capacidade contributiva e a partilha necessária ao serviço prestado.21

No presente trabalho, nos filiamos ao posicionamento de Regina Helena Costa e Paulo Ayres Barreto e condizente com este posicionamento, nota-se que a materialidade das contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, incidente sobre as remunerações dos servidores, permite a aplicação do princípio da capacidade contributiva a estas contribuições, notadamente sob o aspecto objetivo ou pré-legislativo, sem prejuízo da análise sob o enfoque subjetivo.

19 BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e Controle. 3.ed. rev. atual. São Paulo: Noeses, 2020. p. 136.

20 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 420. 21 Ibidem 19

4. PROGRESSIVIDADE E CAPACIDADE CONTRIBUTIVA

A conclusão a que chegamos no capítulo anterior, atrai para as contribuições todo o regramento e os instrumentos para aplicação da capacidade contributiva a estes tributos.

Dentre estes instrumentos, a tributação progressiva é entendida por alguns doutrinadores como como a que melhor obedece ao princípio da capacidade contributiva, justamente porque visa igualar o sacrifício dos contribuintes obtendo a equidade vertical.22

Regina Helena Costa aponta que às alíquotas deve-se atribuir a progressividade, que melhor atende à capacidade contributiva, ao passo que desiguala sujeitos que se encontram em situações distintas, prestigiando a igualdade material, redistribuindo a riqueza, apontando, em conclusão, que a capacidade contributiva é limite da progressividade das alíquotas, visando à não- confiscatoriedade do tributo.23

É neste instrumental que se baseou o legislador constituinte reformador quando estabeleceu a progressividade das contribuições dos servidores públicos, expressamente, no art. 149, § 1º na redação dada pela E.C. 103/2019. 24

Na União, as alíquotas progressivas foram estabelecidas de início pela E.C. 103/2019, com sete faixas de alíquotas, entre 7,5% e 22%.

Outros estados, com amparo no permissivo constitucional, estabeleceram suas contribuições progressivas, por vezes, como no Estado

22 CATARINO, João Ricardo. Redistribuição Tributária- Estado Social e Escolha Individual. Lisboa: Almedina, 2008. p. 395.

23 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 103.

24 Art. 149... § 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão, por meio de lei, contribuições para custeio de regime próprio de previdência social, cobradas dos servidores ativos, dos aposentados e dos pensionistas, que poderão ter alíquotas progressivas de acordo com o valor da base de contribuição ou dos proventos de aposentadoria e de pensões. (grifamos)

de São Paulo, com menos faixas de alíquotas, porém, incidentes sobre bases maiores.

Ocorre que a tentativa de estabelecimento de alíquotas progressivas para as contribuições para custeio dos regimes de previdência dos servidores não é novidade da E.C. 103/2019. As tentativas anteriores foram levadas ao STF, que reconheceu a inconstitucionalidade da progressividade destas alíquotas progressivas por ofensa ao princípio da vedação à utilização de qualquer tributo com efeito de confisco (Art. 150,IV da C.F/88).25

25 RE 414.915, rel. Min. Ellen Gracie: “ I. O Plenário deste Supremo Tribunal, no julgamento da ADI 2.010-MC, rel. Min. Celso de Mello, por maioria no ponto em questão, consignou que a instituição de alíquotas progressivas para a contribuição previdenciária dos servidores públicos ofende o princípio da vedação à utilização de qualquer tributo com efeito de confisco (art. 150, IV, da Constituição). No caso, estava em jogo a norma prevista no art. 20, parágrafo único, da Lei 9.783/99, que acresceu à alíquota de contribuição excepcional de 9% ou de 14%, por faixa de remuneração dos funcionários públicos federais.

2. Tal entendimento estende-se aos Estados e Municípios, conforme decidido na ADI 2.188-1VfC, rel. Min. Néri da Silveira, Plenário, unânime, DJ de e na ADI 2.158-MC, rel. Min. Sepúlveda Pertence, Plenário, unânime, DJ de 10.09.2000, entre outros julgados. por encontrar-se o acórdão recorrido em conformidade com a jurisprudência desta Corte, nego seguimento aos recursos (art. 557, caput. do CPC). “

AG. REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 346.197, relator, min. Dias Toffoli: Agravo regimental no recurso extraordinário. Previdenciário. Servidor público. Contribuição previdenciária. Alíquota progressiva. Impossibilidade. Precedentes. 1. Esta Corte já decidiu que a instituição de alíquotas progressivas para a contribuição previdenciária dos servidores públicos ofende o princípio da vedação à utilização de qualquer tributo com efeito de confisco (art. 150, inciso IV, da Constituição Federal).

ADI nº 2.010/DF–MC, relator o Ministro Celso de Mello: ‘CONTRIBUIÇÃO DE SEGURIDADE SOCIAL - SERVIDORES EM ATIVIDADE - ESTRUTURA PROGRESSIVA DAS ALÍQUOTAS: A PROGRESSIVIDADE EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA SUPÕE EXPRESSA AUTORIZAÇÃO CONSTITUCIONAL. RELEVO JURÍDICO DA TESE. - Relevo jurídico da tese segundo a qual o legislador comum, fora das hipóteses taxativamente indicadas no texto da Carta Política, não pode valer- se da progressividade na definição das alíquotas pertinentes à contribuição de seguridade social devida por servidores públicos em atividade. Tratando-se de matéria sujeita a estrita previsão constitucional - CF, art. 153, § 2º, I; art. 153, § 4º; art. 156, § 1º; art. 182, § 4º, II; art. 195, § 9º (contribuição social devida pelo empregador)

Observa-se das decisões que analisaram a progressividade das alíquotas de contribuição aos regimes próprios se fundaram em duas premissas: a) a inexistência de norma constitucional autorizadora da progressividade (ADI nº 2.010); b) ofensa ao princípio do não confisco.

Ao que parece, a instituição de progressividade das alíquotas das contribuições previdenciária dos servidores públicos por meio de Emenda Constitucional nº 103/2019 superou o primeiro óbice.

Quanto ao não confisco, embora não seja o enfoque do presente trabalho, podemos concluir que se à época do julgamento das ações no STF a alíquota de 14% foi considerada ofensiva ao princípio, é possível considerar as atuais alíquotas de 22% igualmente ofensivas ao princípio, considerando ainda a carga total somada ao imposto de renda incidente também sobre os vencimentos dos servidores.

5. ISONOMIA E CAPACIDADE TRIBUTÁRIA

Ainda no campo das premissas doutrinárias e jurisprudenciais, passamos à análise do princípio da isonomia tributária previsto no art. 150, inciso II da Constituição Federal, igualmente aplicável às contribuições e fundamento da capacidade contributiva anteriormente analisada.26

Regina Helena Costa advoga que a capacidade contributiva é um subprincípio, uma derivação – inexiste espaço de liberdade decisória para o Congresso Nacional, em tema de progressividade tributária, instituir alíquotas progressivas em situações não autorizadas pelo texto da Constituição. Inaplicabilidade, aos servidores estatais, da norma inscrita no art. 195, § 9º, da Constituição, introduzida pela EC nº 20/98.

26 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: ...II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos; (grifamos)

de um princípio mais geral que é da igualdade.27

Celso Antonio Bandeira de Mello, em sua célebre obra sobre o conteúdo jurídico do princípio da igualdade, estabelece as hipóteses em que possíveis as discriminações, cujas conclusões são plenamente aplicáveis à igualdade tributária.

Para o autor “as discriminações são admissíveis quando se verifique uma correlação lógica entre o fator de discrímen e a desequiparação procedida e que esta seja conforme os interesses prestigiados pela Constituição” e estabelece 4 critérios:

a) a discriminação não pode atingir um só indivíduo; b) o fator de diferenciação deve consistir num traço diferencial das pessoas; c) deve haver nexo lógico entre o fator de discrímen e a discriminação legal; d) o fator de discrímen deve atender aos valores constitucionalmente protegidos.28

Ressaltamos a parte final do inciso II do art. 150, que proíbe qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida na instituição de tributos pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

Nesse ponto, questiona-se: A discriminação tributária pelas alíquotas progressivas diferentes entre os entes federativos (medida de capacidade contributiva) atende ao princípio da igualdade?

Para responder a esta questão, cabe estabelecer os parâmetros de comparação entre os indivíduos, o que faremos no próximo capítulo analisando precedentes do Supremo Tribunal Federal.

27 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 39.

28 MELLO, Celso Antonio Bandeira. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 37.

6. CARREIRAS DE

TRIBUTÁRIA

O Supremo Tribunal Federal foi chamado a pronunciar-se em pelo menos duas oportunidades em que carreiras de servidores estaduais buscaram equiparação salarial com servidores que exerciam as mesmas funções no âmbito federal, cujo teto remuneratório constitucionalmente previsto era maior.

Foi o caso da ADI nº 3.854, relator min. Gilmar Mendes, proposta pela Associação Dos Magistrados Brasileiros – AMB. Nesta ADI nº 3.854, o STF decidiu que a instituição de subteto remuneratório para magistratura estadual inferior ao da magistratura federal ofendia a Constituição diante do caráter nacional da estrutura judiciária brasileira.29

Mais recentemente, na ADI nº 6.257, ministro relator Gilmar Mendes, o Partido Social Democrático – PSD, pugnou pela equiparação salarial entre professores universitários estaduais e federais ao passo que, sob os mesmos fundamentos da ADI nº 3.854, estas carreiras são organizadas em caráter nacional.

Em julgamento de medida cautelar, o ministro Dias Toffoli, que substituía o ministro Gilmar Mendes naquela oportunidade, deferiu medida cautelar para conceder a questionada equipa-

29 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. 2. SUBTETO REMUNERATÓRIO PARA A MAGISTRATURA ESTADUAL. 3. ARTIGO 37, XI, DA CF. ARTIGO 2º DA RESOLUÇÃO 13 E ARTIGO 1º, PARÁGRAFO ÚNICO, DA RESOLUÇÃO 14, AMBAS DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. 4. INSTITUIÇÃO DE SUBTETO REMUNERATÓRIO PARA MAGISTRATURA ESTADUAL INFERIOR AO DA MAGISTRATURA FEDERAL. IMPOSSIBILIDADE. CARÁTER NACIONAL DA ESTRUTURA JUDICIÁRIA BRASILEIRA. ARTIGO 93, V, DA CF. 5. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA PELO PLENÁRIO. 6. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE, CONFIRMANDO OS TERMOS DA MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA, PARA DAR interpretação conforme à Constituição ao artigo 37, XI (com redação dada pela EC 41/2003) e § 12 (com redação dada pela EC 47/2005), da ConstituiçãoFederal,eDECLARARAINCONSTITUCIONALIDADE do artigo 2º da Resolução13/2006 e artigo 1º, parágrafo único, da Resolução 14, ambas do Conselho Nacional de Justiça. (grifamos)

ração salarial.30

É digno de nota o fato de que embora o STF tenha se pronunciado apenas quanto às carreiras da magistratura de da docência, há outras carreiras do serviço público organizadas em caráter nacional, dentre as quais pode-se citar o Ministério Público (Art. 127 da C.F./88; Lei nº 8.625/93) e Administração Fazendária (Art. 37, XVIII; Art. 237, Art. 146, IV da C.F./88).

Pois bem, diante do reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal da equiparação entre as carreiras da magistratura estadual e federal e da docência do ensino superior estadual e federal, para fins remuneratórios (art. 37, XI), questiona-se se para fins tributários (Art. 150, II), especificamente quanto às contribuições para custeio dos regimes de previdência, caberia alguma discriminação apta a justificar alíquotas progressivas que representem alíquotas efetivas diferentes entre a União e os Estados?

Antes mesmo do reconhecimento da equiparação salarial para as carreiras da magistratura e da docência do ensino superior, o próprio Supremo Tribunal Federal, manifestou-se sobre a inconstitucionalidade da progressividade das

30 Partindo do pressuposto de que a Carta da República concebeu um projeto de política nacional de educação, não vislumbro razão para compreender como adequada a existência de uma diferenciação remuneratória entre docentes e pesquisadores que exercem as mesmas funções em instituições de ensino superior de entidades federativas distintas....

Deve-se interpretar o art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988 a partir da totalidade dos comandos constitucionais, não sendo possível conferir tratamento discriminatório sem observância do princípio da igualdade.

Ante o quadro revelado, defiro a medida cautelar pleiteada, ad referendum do Plenário, para dar interpretação conforme ao inciso XI do art. 37, da Constituição Federal, no tópico em que a norma estabelece subteto, para suspender qualquer interpretação e aplicação do subteto aos professores e pesquisadores das universidades estaduais, prevalecendo, assim, como teto único das universidades no país, os subsídios dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.

Tabela Comparativa de Contribuições Previdenciárias Entre Estado de São Paulo e União - Teto Remuneratório do STF (R$ 41.650,92)

R$ 3.722,57

Até R$ 7.507,49

bases de cálculo, instituída pela E.C. 41/2003 em sede de duas ações diretas de inconstitucionalidade, (ADI 3.105/DF e ADI 3.188/BA), e que diferenciava as contribuições dos servidores ativos e inativos.31

31 ADI 3.105/DF. Min. Relator Cezar Peluso: Inconstitucionalidade. Ação direta. Emenda Constitucional (EC no 41/2003, art. 40, § único, I e II). Servidor público. Vencimentos. Proventos de aposentadoria e pensões. Sujeição à incidência de contribuição previdenciária. Bases de cálculo diferenciadas. Arbitrariedade. Tratamento discriminatório entre servidores e pensionistas da União, de um lado, e servidores e pensionistas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, de outro. Ofensa ao princípio constitucional da isonomia tributária, que é particularização do princípio fundamental da igualdade. Ação julgada procedente para declarar inconstitucionais as expressões “cinquenta por cento do” e “sessenta por cento do” do art. 40, § único, I e II, da EC no 41/2003. Aplicação dos arts. 145, §1º (capacidade contributiva), e 150, II (isonomia tributária), cc. art. 5º, caput e § 1º, e 60, § 4º, IV, da CF, com restabelecimento do caráter geral da regra do art. 40, § 18. (grifamos)

ADI 3.188/BA, ministro relator Carlos Ayres Brito

A lei estadual sob censura encontra o seu fundamento de validade na Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003, que autorizou a cobrança da contribuição previdenciária sobre os proventos de aposentadoria e os valores das pensões post mortem. E o fato é que a validade constitucional da mencionada exação foi reconhecida por esta Casa de Justiça no julgamento das ADIS 3.105 e 3.128, Relator p/ o Acórdão Min. Cezar Peluso.

Ação direta julgada parcialmente procedente para o fim de: a) imprimir “interpretação conforme a Constituição” ao inciso I do art. 32 da Lei baiana n 27.249/98, com a redação que lhe foi dada pela Lei n Q 9.003/04, em ordem a assentar que o custeio

Observa-se que os fundamentos constitucionais para declaração da inconstitucionalidade daquela progressividade foram os princípios da capacidade contributiva arts. 145, §1º, e isonomia tributária 150, II.

Como dito anteriormente, alguns entes federativos, no exercício de suas competências, instituíram alíquotas progressivas diferentes das previstas na E.C. 103/2019 para a União. Foi o caso do Estado de São Paulo, cuja comparação com a União ficará mais clara através da tabela acima32 33

Observa-se sensível diferença nas contribuições dos dois entes em valores absolutos.

Argumentar-se-á que esta discriminação é possível em razão da diversidade de destino das contribuições, para o RPPS da União ou para o RPPS dos estados, sendo incomunicáveis.

seguridade social do Estado recai sobre os titulares de cargos provimento efetivo da Administração Direta, Autárquica da os Fundacional, tanto quanto sobre as pensões mortis causa e proventos da aposentadoria que detenham o mesmo cará ter estatutários; b) reconhecer a inconstitucionalidade da expressão cinquenta por cento do’ contida no inciso I do § 2º do artigo 50 da Lei nº 7.249/98, do Estado da Bahia, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº9.003, de 30 de _janeiro de 2004. (grifamos)

32 Fonte: https://sindireceita.org.br/noticias/sindicato/. 33 Fonte:https://portal.fazenda.sp.gov.br/servicos/folha/ Paginas/Contribuicao_Previdenciaria_Servidores_Ativos.aspx

Porém, a argumentação cai por terra, pois a própria E.C. 103/2019, entendeu por limitar os valores dos benefícios dos servidores quando perceberem acumuladamente benefícios de dois ou mais regimes, demonstrando haver esta comunicação entre estes regimes para fins de pagamento (Art. 24 da E.C. 103/2019).

Pois bem, apresentadas todas as premissas legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais, passamos à conclusão, respondendo a seguinte questão: A discriminação tributária pelas alíquotas progressivas diferentes entre os entes federativos (medida de capacidade contributiva) atende ao princípio da igualdade?

CONCLUSÃO

Considerando que o STF reconheceu expressamente o caráter nacional e equiparou as funções da magistratura e docência federais e estaduais.

Considerando que a Emenda Constitucional nº 103/2019, que reformou profundamente os regimes próprios de previdência dos servidores públicos superou óbice constitucional reconhecido pelo STF na ADI 2.010, ao constitucionalizar a aplicação de alíquotas progressivas por faixas salariais das contribuições para custeio dos regimes próprios de previdência.

Considerando que a doutrina reconhece a aplicabilidade da capacidade contributiva às contribuições sociais quando estas revistam materialidades de impostos, o que ocorre com as contribuições previdenciárias dos servidores públicos.

Considerando que a capacidade contributiva é subprincípio do princípio da isonomia bem como limite da própria progressividade que a instrumentaliza.

Considerando que o princípio da isonomia tributária veda expressamente o discrímen tributário em razão de ocupação profissional ou função exercida pelos contribuintes.

Considerando que alguns estados instituíram alíquotas progressivas das contribuições previdenciárias de seus servidores para custeio dos respectivos regimes próprios que superam em alíquota efetiva e em valores absolutos as alíquotas previstas na E.C. 103/2019.

Concluímos que é possível o estabelecimento, pela via constitucional da progressividade de alíquotas das contribuições sociais pelos estados para custeio dos respectivos regimes próprios de previdência, desde que não superem a alíquota efetiva estipulada pela E.C. 103/2019, nem, tampouco o montante das contribuições em valores absolutos, sob pena de ofensa direta ao art. 150, inciso II, in fine e art. 145, § 1º, ambos da Constituição Federal

BARRETO, Paulo Ayres. Contribuições: Regime Jurídico, Destinação e Controle. 3.ed. ver. atual. São Paulo: Noeses, 2020.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 7. ed. rev. São Paulo: Noeses, 2018.

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CASTRO, Carlos Alberto Pereira de; LAZZARI, João Batista. Manual de Direito Previdenciário. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

CATARINO, João Ricardo. Redistribuição Tributária- Estado Social e Escolha Individual. Lisboa: Almedina, 2008.

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TORRE, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 12. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

OS REFLEXOS DA PANDEMIA COVID-19 NO DIREITO DE FAMILIA

O cenário vivenciado nos últimos tempos tem sido algo inesperado tendo em vista o surgimento da pandemia Covid-19. Tal período necessitou de certas medidas inerentes ao convívio social, divergentes daquelas positivadas no ordenamento jurídico.

Ficou visível novas medidas adotadas a fim de diminuir o contagio da doença, com escopo principal o bem da coletividade e da família.

Desta forma, foi necessário mudanças que refletiu em várias áreas, inclusive o Direito de Família. A família se reinventou em certas práticas nos tempos quarentenais.

Através desta obra, apresentará tese com a contribuição doutrinária, sendo referencia do encontro do Direito com as novas questões refletidas

Palavras-chave

Pandemia - Família - Mudanças

Thais Fernanda da Silva Teodoro

Bacharel em Direito, Pós-Graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Instituição Toledo de Ensino.

1. INTRODUÇÃO

Com o surgimento da pandemia da Covid-19 as pessoas vivenciaram um novo normal de forma inesperada.

Várias práticas positivas no nosso ordenamento jurídico que eram seguidas tiveram que ser modificadas e adaptadas, causando reflexo inclusivamente no Direito de Família. Alterações foram realizadas nos aspectos como: guarda, pensão alimentícia e também houve mudanças na convivência familiar.

Vale salientar que as medidas adotas visam a disseminação do vírus e tem como objetivo a proteção da coletividade.

Após reflexão, a resposta foi detectada através deste trabalho de curso.

2. DA FAMÍLIA

A Constituição familiar atualmente se fundamenta pelo afeto, valendo-se de toda a complexidade que unem as pessoas.

Vale salientar que conforme artigo 226 da Constituição Federal a família é protegida e vista como base de uma sociedade.

Anteriormente se entendia como família apenas constituída por pai, mãe e filhos, de forma tradicional, contudo os anos se passaram e foi amadurecida a ideia de família sendo elas diversos tipos de agregados.

Desta forma, entende-se que a família é compreendida pela união dos indivíduos por laços afetivos ou de parentesco (consanguinidade). Logo, os adultos são responsáveis pelas crianças e adolescentes.

2.1 Natureza Jurídica do Direito de Família

A família possui proteção do Estado, conforme dispõe art. 226 da Constituição Federal, com escopo principal: proteção dos membros mais

vulneráveis.

O direito de família é um ramo do direito civil privado, mas as normas basilares são de ordem pública, pois união familiar é de interesse público: proteger, alicerçar estruturar e preservar.

Outrossim, também se caracteriza o direito de família é sua natureza personalíssima , tendo em vista exemplo um pai não poder transferir seu dever como pai, assim demandar o reconhecimento de filiação ou um filho ceder de pleitear alimentos.

É fato que alguns doutrinadores acreditam que o Direito de família deve ser incluso no Direito Público. Também, outros defendem como um direito social ou sui generis. Assim vejamos:

“o direito de família contemporâneo apresenta-se mais privado do que nunca, passando de instituição que se revelava como instrumento que atendia a interesses extrínsecos, como a Igreja e o Estado, para um grupo íntimo caracterizado por uma “concepção eudemonista, voltada para seu interior em busca da realização mútua e pessoal. Na família atual, seus membros são solidários, corresponsabilizando uns pelos outros quando existe algum tipo de vulnerabilidade, e buscam a felicidade através da formação da personalidade de cada um, que possui ampla liberdade para construir-se segundo suas próprias concepções individuais, em um ambiente de igualdade e democrático entre os cônjuges ou companheiros.” (CARVALHO, 2020, p.60).

A família é parte do direito privado, que segue normas de ordem pública com ingerência do Estado, afim de proteger os mais vulneráveis como: idosos, pessoas com deficiências, crianças e adolescentes.

2.2 Função Social da Família e seu Conceito Moderno

O conceito histórico de família significava con-

junto de pessoas que moravam na mesma casa, que tinham o homem líder e esta família se constituía através do casamento.

No cristianismo até o século XIX, a família tinha de tal modo respeitabilidade de forma patriarcal e hierarquizada.

Após este período o Estado começou impor regras contidas no Código Civil de 1916, conceituando a formação da família apenas através do casamento.

Desta forma, anos depois, a Constituição Federal positivou sobre o principio da liberdade familiar e também o pluralismo das entidades, não contendo hierarquia, podendo ser constituída com pluralidade, para aclarar conceito, vejamos doutrina:

“[...] alargou o conceito de família, que não ocorre mais apenas no modelo jurídico do casamento, que se constitui previamente pela celebração, ou na filiação biológica. Também se constitui pela situação de fato, consistente na convivência socioafetiva, no querer recíproco de seus membros nucleares em ser família, de desenvolver um projeto de vida em comum, independentemente de qualquer ato formal de constituição.

A família atual mantém sua importância como célula mater da sociedade e tem especial proteção do Estado (art. 226 da CF), entretanto, o elemento agregador deixa de ser exclusivamente o jurídico, assumindo maior importância a comunhão de afetos. A compreensão da família torna-se um fato cultural, em razão da construção da afetividade na convivência, sem interesses materiais, envolta em um ambiente de solidariedade e responsabilidade, privilegiando a realização pessoal e o desenvolvimento de cada membro que a integra. A família verdadeira é a afetiva, antes de ser jurídica2” (CARVALHO, 2020, p.66)

Em suma, a família moderna passa ser reconhe-

cida como comunidade de afeto, bastando cada membro querer reconhecer o outro como ente familiar de fato e de forma reciproca.

Podendo ser como exemplo uma mãe, como chefe de família, e outras formas de constituição diversas, obtendo uma pluralidade familiar.

3 DA GUARDA

A separação matrimonial (casamento) ou de uma união estável, por opção, buscando a felicidade afetiva dos integrantes da relação, vem deixando de ser postergada em nome da prole . Fator comum às gerações que nos antecederam, sendo por imposição social, ou pela indissolubilidade do matrimônio ter sido permitida apenas nos anos 70, visavam o bem maior, inclusive, aos filhos.

Em de decorrência da separação, os pais em regra tentam procurar situação de respeito para que os filhos não sofram com a separação do relacionamento.

A partir do momento da separação em regra se define com quem a criança vai morar, levando em consideração o melhor escolha para o tutelado e interesse da criança e ou adolescente.

A guarda pode ser designada a qualquer parente da criança ou adolescente, ou a qualquer pessoa, com um dos pressupostos ser o ambiente familiar apropriado e que o guardião não apresente qualquer incompatibilidade, conforme positivado nos arts. 28 e 29 da Lei nº 8.069/1990:

Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.

Art. 29. Não se deferirá colocação em família substituta a pessoa que revele, por qualquer modo, incompatibilidade com a natureza da medida ou não ofereça ambiente familiar adequado.

Vale salientar que alguns doutrinadores defendem que no poder familiar, a guarda em questão, presente no artigo 1.634, II do Código Civil, possui objetivo de prestar assistência e proteção ao tutelado criança ou adolescente:

“Douglas Phillips Freitas apresenta o seguinte conceito de guarda: O novo conceito de Guarda consiste na condição de direito de uma ou mais pessoas, por determinação legal ou judicial em manter um menor de 18 (dezoito) anos sob sua dependência sociojurídica, devendo ser, de regra, compartilhada quando houver ambos os pais, mesmo que separados.” (CARVALHO, 2020, p.1057)’’

Assim verifica-se que a funcionalidade da guarda é a vigilância, proteção e cuidado, sendo dever dos pais cuidar proteger seus filhos, desta forma vejamos se seguir as distinções e conceituações dos tipos de guarda, para aclarar as informações.

3.1 Da Guarda Unilateral

Em princípio, se compreende por guarda unilateral aquela que é atribuída para um dos genitores ou para alguma pessoa que seja seu representante legal.

A mesma se entende por ser exclusiva para apenas um dos genitores, levando em consideração o bem no menor ou tutelado, regulada no § 5º do art. 1.583 do Código Civil e, especialmente, no art. 33, § 1º e caput, da Lei n. 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Salientar-se que ocorre na maioria dos casos, quando o pai ou mãe abre mão da guarda, onde se isenta de exercer seu papel no poder familiar.

Vejamos o que aclara Roberto Carlos Gonçalves:

Compreende-se por guarda unilateral segundo dispõe o parágrafo 1º do art. 1583 do código Civil, com redação dada pela Lei n.11.698, de junho de 2008, ‘’a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o

substitua’’.

Esta modalidade de guarda ocorre quando é dificultoso o convívio da criança ou adolescente com ambos os genitores. O juiz determina levando em consideração a inviabilidade da guarda compartilhada, pois os pais não entram em determinado acordo inerente quem ficará responsável pela guarda.

Desta forma, é atribuída visando sempre melhor conveniência e bem estar do menor, ou seja, será atribuída à aquele que possui melhor aptidão em exercer segurança, afeto e outras características benéficas a criança ou adolescente.

3.2 Da Guarda Compartilhada

A ruptura conjugal ou de união estável, ocorrem por várias questões além da questão financeira.

Desta forma, vale lembrar que além das dificuldades de uma dissolução, as vezes ocorre o fruto daquele relacionamento: filhos.

A guarda compartilhada positivada no artigo 1.583 e seguintes do Código Civil, é a solução mais viável., pois possui como escopo principal convivência assegurada pela família (artigo 19 do Estatuto da criança e do Adolescente).

Eduardo Oliveira Leite comenta sobre a guarda compartilhada (2008, p.78):

O tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos [...].

Destarte, a guarda compartilhada ocorre pela responsabilização conjunta dos genitores, tendo sido regra na maioria dos processos judiciais de divórcio. Além disso, é necessários que os genitores regulamentem as visitas e também os alimentos.

Vale salientar que parte da Jurisprudência acredita que a guarda compartilha possui alguns

pontos negativos. Pois, verificam que a mudança no ambiente familiar pode desordenar atividades cotidianas do menor, causando abalo psicológico e podendo surgir crises de ansiedade, pelas mudanças no ambiente, assim vejamos Jurisprudência:

FAMÍLIA – PEDIDO DE “GUARDA COMPARTILHADA” – ALTERN NCIA DE PERÍODOS

EXCLUSIVOS DE GUARDA ENTRE OS GENITORES – VERDADEIRA “GUARDA ALTERNADA” – INCONVENIÊNCIA – PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA – INEXISTÊNCIA DE CONVIVÊNCIA HARMONIOSA E AMISTOSA ENTRE OS GENITORES. – A guarda em que os pais alternam períodos exclusivos de poder parental sobre o filho, por tempo preestabelecido, mediante, inclusive, revezamento de lares, sem qualquer cooperação ou corresponsabilidade, consiste, em verdade, em “guarda alternada”, indesejável e inconveniente, à luz do Princípio do Melhor Interesse da Criança. – Ademais, a “guarda compartilhada” é incabível quando não houver uma relação amistosa e harmoniosa entre os genitores, sob pena de se inviabilizar o exercício compartilhado do poder parental, por meio da condução conjunta da educação e desenvolvimento da criança. (Processo nº 1.0145.07.378729-6/001. Relator: Des. EDUARDO ANDRADE- Data do Julgamento: 03/08/2010.

A guarda compartilhada tem gerado discussão sobre o melhor ambiente ao tutelado, pelo danos que podem ser gerados, tendo em vista a quebra da continuidade das relações e vivencias rotineiras.

4. DA CONVIVÊNCIA IMPACTADA

PELA PANDEMIA COVID-19

Com o surgimento da pandemia covid-19 em âmbito global, tal fato influenciou no dia a dia das pessoas. O impacto nas tarefas cotidianas afetou as relações familiares .

Certas práticas foram adotadas a fim de dimi-

nuir o contágio do vírus Covid-19: distanciamento e isolamento social.

Assim, a convivência no exercício da guarda compartilhada foi afetada, tendo em vista as imposições diante da pandemia.

No Direito de Família várias questões foram resolvidas a partir da jurisprudência. Pois, entende-se que o direito de guarda compartilhada visa interesse da criança ou adolescente, sobre tudo, no efetivo comprometimento da saúde dos mesmos.

O confinamento fez surgir uma nova forma de parentalidade, de forma forçada, em alguns casos a guarda foi alterada por períodos mais longos como quinzenal ou mensal.

Alguns casos, houve a postergação da visitação e no compartilhamento do período da guarda, tendo em vista a atividade remunerada exercida pelo genitor- em presidente Prudente, o magistrado Eduardo Gesse, pertencente a 2ª Vara de Família e Sucessões decidiu que as visitas do pai fossem adiadas, pelo fato de ser piloto de aviãoassim poderia ver a filha após a realização da quarentena (quinze dias).

Nesta circunstâncias, escreve José Fernando Simão:

São escolhas trágicas de um mundo pandêmico e de confinamento. A COVID-19 é cruel, pois, em sua democracia tanatológica, é transmitida, muitas vezes, por quem mais amamos, por meio dos gestos de afeto e de carinho: beijos, abrações, toques.

Porém, com o interesse de proteger a saúde da criança e do adolescente foram adotadas medidas temporárias, até o controle da pandemia, como necessidade de suspensão da convivência familiar em relação a guarda.

4.1 Do Exercício da Convivencia Familiar

O convívio familiar se torna necessário para os membros familiares, pois através do convívio

entre os entes familiares, cria-se uma maior afetividade, melhorando os laços de uma família constituída de diversas formas.

Embora dois são os tipos de família, o primeiro sendo os que são tios, avós, primos, amigos que não moram no mesmo lar. Segundo os familiares que convivem na mesma residência.

Esta vivencia passou a ser distinta com o período da pandemia do Covid-19, pois foi necessário contribuir com as regras sanitárias a fim de evitar contagio do vírus SARS-CoV-2.

Assim, reuniões familiares a fim de comemorações ou até mesmo um simples almoço foram adiados.

Desta forma, o convívio familiar tomou rumo diferente daquele de costume, surgindo alternativa pelos meios virtuais, como: videochamadas, áudio, reuniões virtuais e outros tipos.

Em suma, no direito de família em relação a guarda, certas práticas foram adotadas para flexibilizar a convivência da criança e do adolescentes com os pais, tais práticas pensadas para segurança e melhor modo para tutelado.

4.2 Reflexos no mbito Familiar no Período

Pandêmico

O período pandêmico aflingiu a vivencia das pessoas, de modo que foram ‘’forçadas’’ realizar mudanças no meio familiar, a qual não estavam preparadas.

Outrossim, adaptações foram criadas em relação a guarda do menor por exemplo que neste período de pandemia, mudou atividades de rotinas.

Algumas das alternativas vistas em decisões dos tribunais foram a guarda de forma quinzenal ou até mesmo mensal, sempre com escopo principal a saúde da criança e do adolescente.

A fim de comprovar e firmar pesquisa realizada através de artigo cientifico, segue no ANEXO

I Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, referente entendimento em questão de guarda no período pandêmico.

5 CONCLUSÃO

A condição e urgência do período da pandemia, ocasionou meios extrajudiciais de mediação, para de forma célere e eficaz ocorra acordos entre os pais ou representante legal inerente a guarda do menor.

Evidenciando a segurança e saúde dos mesmos caberá suspensão da visitação em alguns casos como supracitado. Ou a extensão do período de convivência familiar em período quinzenal ou mensal.

Vale salientar, a fim de promover contato seguro dos menores com os seus genitores poderá utilizar-se das redes de computadores/celulares por meio de seus aplicativos de vídeo chamada, conectando-se para não perder os laços de convivência familiar.

Conclui-se que as práticas adaptadas de forma transitórias do regime de convivência familiar não podem criar obstáculos para o exercício da guarda compartilhada.

MARX NETO, Edgard Audomar; BRITO, Laura Souza Lima e. A confirmação do testamento particular durante a crise da Covid-19. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mai-09/ direito-civil- atual-confirmacao-testamento-particular-crise-covid-19?imprimir=1>. Acesso em 23 jun. 2020.

CASA CIVIL. Constituição Federal. Disponibilizado em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm> Acesso em: 23/06/2021.

LEITE, Eduardo Oliveira. Comentários à Lei 13.058, de 22.12.2014 – Dita, Nova Lei da Guarda Compartilhada, p. 78.

LOBO, Paulo. Famílias. 10.ed. São Paulo: Saraiva, 2020, Edição Kindle, cap. XVI, item 16.1.

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Sucessões. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

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GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro- Volume 6 – Direito de Família. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017.

A

OBRIGATORIEDADE DOS ESTADOS OBSERVAREM

CONVENÇÕES

AS

INTERNACIONAIS INTERNALIZADAS E AS NORMAS GERAIS DA UNIÃO PARA GARANTIR A INCLUSÃO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Palavras-chave

Pessoa com deficiência – Inconstitucionalidade – Tratados Internacionais Sobre Direitos Humanos - Competência Legislativa – Educação Inclusiva

Tiago Augusto Pereira De Oliveira

Advogado Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru (ITE). Especialista em direito empresarial pelo Instituto Hermes (FGV/SP - Bauru) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET-Bauru).

INTRODUÇÃO

A proteção aos direitos e garantias da pessoa com deficiência previstas no ordenamento jurídico pátrio, se tornaram uma importante ferramenta de inclusão social e redução das barreiras.

Segundo dados do terceiro trimestre de 2022, divulgados pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania em conjunto com o IBGE1, a população com deficiência (acima de dois anos) no Brasil está estimada em 18,6 Milhões de pessoas, ou seja, cerca de 8.9% da população.

A presente temática ganha ainda mais importância, visto que se refere a uma significativa parcela da população que encontra inúmeros obstáculos sociais de integração, sejam eles de estrutura, suporte ou mesmo de desenvolvimento educacional.

Não devemos esquecer que as evoluções da legislação, da consciência social e da tecnologia, permitiram significativos avanços que possibilitaram a adequação dos locais mais básicos de convivência coletiva, assim como o acesso e integração social da pessoa com deficiência. Entre esses avanços, o direto à educação, previsto na Constituição Federal como um direito de todos e dever do Estado, se mostrou um importante fator de inclusão. Por isso a Lei Maior prevê que é dever do Estado garantir o atendimento educacional especializado e a integração das pessoas com deficiência, através das políticas de educação inclusiva.

A competência para legislar sobre o tema e também para garantir a implementação das políticas de inclusão pode gerar conflitos entre os Entes envolvidos.

1 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/ julho/brasil-tem-18-6-milhoes-de-pessoas-comdeficiencia-indica-pesquisa-divulgada-pelo-ibge-emdhc#:~:text=PESSOAS%20COM%20DEFICI%C3%8ANCIA,Brasil%20tem%2018%2C6%20milh%C3%B5es%20 de%20pessoas%20com%20defici%C3%AAncia%2C%20 indica,divulgada%20pelo%20IBGE%20e%20MDHC

Mesmo com todas as garantias do ordenamento, não é difícil encontrar atualmente situações onde tais regramentos são desrespeitados, seja por particulares, ou pelos próprios responsáveis em implementar e aplicação das políticas de inclusão da pessoa com deficiência.

Assim, através de materiais bibliográficos, pesquisa e análise jurisprudencial, o presente trabalho objetiva verificar se as políticas de educação inclusiva da pessoa com deficiência sofrem algum tipo de ataque ou sabotagem, intencional ou não, no momento da sua implementação, bem como a discussão sobre a reação dos órgãos responsáveis por assegurar tais direitos.

1. A IMPORTÂNCIA DA DEFINIÇÃO DO CONCEITO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA

Como ponto de partida é importante saber o que a legislação brasileira entende por “pessoa com deficiência”, pois é através dessa delimitação que poderemos fazer as interpretações e determinar o alcance mais adequado da norma (resultado da interpretação) e a correção de eventuais equívocos.

De início, é necessário fazer um breve apontamento sobre o que se entende por “conceito” e “definição”, que nas palavras da Professora Aurora Tomazini de Carvalho2:

“Muitas vezes temos a ideia do termo, ou seja, das suas possibilidades de uso num discurso, mas não somos capazes de apontar, por meio de outras palavras, as características que fazem com que algo seja nominado por aquele termo, isto é, que fazem com que possa ele ser utilizado em certos contextos. Para ser fixada, a ideia do termo precisa ser demarcada linguisticamente, ou melhor, constituída em linguagem, pois, como pressupomos, só assim ela se torna articulável intelectual-

2 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de teoria geral de direito: o constructivismo lógico-semântico. 6ª ed. Ver. e atual. São Paulo : Noeses, 2019, pg. 70.

mente. É por meio da definição que realizamos tal demarcação. Definir, assim, é explicar o conceito, pô-lo em palavras, é identificar a forma de uso do termo.

Não é demasiado reforçar que o conceito de um vocábulo não depende da relação com a coisa, mas do vínculo que mantém com outros vocábulos. Nestas condições, definir não é fixar a essência de algo, mas sim eleger critérios que apontem determinada forma de uso da palavra, a fim de introduzi-la ou identificá-la num contexto comunicacional. Não definimos coisas, definimos termos.”

Diante de tais esclarecimento, devemos destacar também que tanto no texto constitucional quanto na legislação infraconstitucional, encontraremos várias terminologias voltadas a se referir aos indivíduos que possuam algum tipo de deficiência (pessoas portadoras de deficiência, pessoas com necessidade especiais; e pessoas com deficiência, e etc.). Para fins do presente trabalho, utilizaremos a terminologia “Pessoa com Deficiência”, adotada na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito das Pessoas com Deficiência (Assembleia Geral da ONU de 13 de dezembro de 2006), ratificado pelo Decreto Legislativo nº. 186/2008 (promulgado pelo Decreto nº. 6.949/2009) e pela Lei nº. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa Com Deficiência).

No que se refere as definições de pessoas com deficiência existentes no ordenamento jurídico brasileiro, o Decreto nº. 3.956/2001, que promulgou a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as pessoas portadoras de deficiência, em seu artigo I estabelece que:

“O termo ‘deficiência’ significa uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social.”

Por sua vez, o Artigo 1º do Decreto nº. 6.949/2009 (Decreto Legislativo nº. 186/2008), que promulgou a Convenção internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, traz o seguinte conteúdo:

“Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.”

Aqui é importante destacar, que em razão da previsão contida no §3º do art. 5º da Constituição Federal3, o Decreto nº. 6.949/2009 possui status constitucional, conforme destacou o Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento do Tema 1097 da Repercussão Geral (Recurso Extraordinário 1.237.867, Plenário, Sessão Virtual de 9.12.2022 a 16.12.20224):

“Como é do conhecimento de todos, o referido documento foi incorporado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto Legislativo 186/2008 e promulgado por meio do Decreto Federal 6.949/2009. Ademais, tendo a referida Convenção sido aprovada de acordo com os ritos previstos no art. 5°, § 3° da Constituição Federal de 1988, suas regras são equivalentes à emendas constitucionais, o que reforça o compromisso internacional assumido pelo Brasil na defesa dos direitos e garantias das pessoas com deficiência.”

Com o advento da Lei nº. 13.146/2015 que instituiu o Estatuto da Pessoa Com Deficiência, observamos que o caput do art. 2º, praticamente reproduziu a definição prevista no Decreto cita-

3 Art. 5º [...]

§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.

4 https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe. asp?incidente=5785185

acima, conforme segue:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:

I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III - a limitação no desempenho de atividades; e

IV - a restrição de participação.

§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.

Observa-se que a definição trazida pelo Decreto e pelo Estatuto passou a considerar pessoa com deficiência o indivíduo que tenha algum impedimento físico, mental, intelectual ou sensorial, que obstrua a sua participação social.

Por isso, os indivíduos que apresentem qualquer uma (ou mais) das características previstas nos dispositivos citados acima, poderão ser consideradas pessoas com deficiência.

2. COMPETÊNCIA PARA LEGISLAR

SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Para melhor compreensão do tema, necessário se faz trazer uma breve passagem sobre a estrutura brasileira de implementação e criação de

políticas e leis voltadas a integração das pessoas com deficiência.

A Constituição Federal de 88 estabeleceu em seu art. 23, a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para cuidar da assistência e garantias das pessoas com deficiência (art. 23, II). No referido artigo, conforme ensina o Professor Pedro Lenza5, o legislador regulou a competência não legislativa, ou seja, aquela em que todos os Entes podem atuar.

Já no que tange a competência legislativa concorrente, entre a União, Estados e Distrito Federal para tratar da proteção e integração social das pessoas com deficiência, prevista no inciso XIV, do art. 24 da CF, ensina o referido professor6, que a União deve se limitar a estabelecer normas gerais, de modo que aos Estados compete a elaboração de normas específicas e aos municípios a competência suplementar a legislação federal e estadual no que couber (art. 30, II da CF).

Sobre o tema da competência concorrente, o Supremo Tribunal Federal vem decidindo da seguinte forma:

CONSTITUCIONAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL E MATERIAL DE PARTE DO §1º DO ARTIGO 3°, BEM COMO DOS INCISOS I E II DO ARTIGO 4º DA LEI Nº 14.715, DE 04 DE FEVEREIRO DE 2004, DO ESTADO DE GOIÁS POR VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE, DA DIGNIDADE HUMANA E DO QUANTO DISPOSTO NOS ARTS. 7º, XXXI; 23, II; 24, XIV; 37, VIII; 203, IV; e 227, II, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INCONSTITUCIONALIDADES FORMAL E MATERIAL RECONHECIDAS. PROCEDÊNCIA.

1. A legislação sobre a proteção e a integração social das pessoas portadoras de

5 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 303.

6 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009, pg. 304.

deficiência é prevista constitucionalmente como de competência concorrente pelo artigo 24, XIV, da Constituição da República. Ao Estado é permitido o exercício da competência plena apenas na ausência de legislação federal que fixe as normas gerais (§ 3º). Existência, ao tempo da vigência da lei estadual impugnada, de lei federal acerca da proteção e da integração social das pessoas portadoras de deficiência. Legislação estadual com normas que contrastam com a normativa geral nacionalmente estabelecida. Inconstitucionalidade formal verificada.

2. A lei impugnada fragiliza o princípio constitucional da igualdade e a proteção à dignidade humana. Inconstitucionalidade material por apresentar infundados limites à sistemática de inclusão almejada e delineada pela Constituição da República. 3. Pedido da ação direta de inconstitucionalidade julgado procedente.

(ADI 4388, Relator(a): Rosa Weber, Tribunal Pleno, julgado em 03/03/2020, processo eletrônico dje-053 divulg 11-03-2020 public 12-03-20207)

Assim, no exercício da competência concorrente, a lei estadual deve observar a lei federal de aplicação nacional, que estabeleceu normas gerais.

Aqui, é importante destacar que o legislador federal editou a Lei nº. 10.098/2000 (Normas Gerais de promoção da acessibilidade) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº. 13.146/2015), que devem ser observados pelos demais Entes, quando estes forem exercer suas competências concorrente ou suplementares.

Portanto, ainda que seja de competência comum (não legislativa) da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a assistência e garantia das pessoas com deficiência (art. 23 da CF), quando se tratar de competência legislativa concorren-

7 https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur420474/ false

te (art. 24 da CF), competirá à União estabelecer normas gerais sobre a proteção e integração social das pessoas com deficiência, que deverão ser observadas pelos demais Entes da Federação.

3. DO ACESSO E DIREITO A EDUCAÇÃO INCLUSIVA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA

A inciso III, do art. 1º da Constituição Federal de 88, fixou a Dignidade da pessoa humana com sendo um de seus fundamentos e como um de seus objetivos, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (inciso I do art. 3º).

Diante desse contexto, o art. 205 da Constituição Federal estabeleceu que a educação é um direito de todos, conforme segue:

Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Atribuiu à União a competência privativa para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional (inciso XXIV do artigo 22), bem como a competência concorrente entre a União, os Estados e Distrito Federal para legislar sobre educação (inciso IX do art. 24). Também fixou a competência comum entre a União, os Estados, Distrito Federal e municípios para proporcionar os meios de acesso à educação (inciso V do art. 23). Ainda no inciso VI, do art. 30, o constituinte estabeleceu que compete ao Município manter (apoiado financeiramente pela União e Estado) os programas de educação infantil e de ensino fundamental.

No que se refere a educação da pessoa com deficiência, o inciso III do art. 208 da Constituição Federal (regido pela Lei nº. 10.845/2004), garante também o atendimento especializado ao indiví-

duo, conforme segue:

Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: [...]

III - atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino;

O Decreto nº. 6.949/2009 (que promulgou a Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência), em seu art. 248 reconhece o direito das pessoas com deficiência à educação, com base na igualdade de oportunidades, bem como determina que o Estado assegure um sistema educacional inclusivo. Como já mencionado nos tópicos anteriores, o referido decreto possui status constitucional em razão do disposto no §3º do art. 5º da Constituição Federal.

Não obstante, o inciso II (redação dada pela Emenda nº. 65/2010), do §1º, do art. 227 da Constituição Federal, determina que o Estado promoverá a criação de programas e atendimento especializado para pessoas com deficiência, a sua integração e a facilitação de acesso aos bens e serviços:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a par8 1.Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos: [...]

ticipação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos:

[...]

II - criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.

É o que também restou previsto no artigo 8º do Estatuto da Pessoa Com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), in verbis:

Art. 8º É dever do Estado, da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência, com prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à sexualidade, à paternidade e à maternidade, à alimentação, à habitação, à educação, à profissionalização, ao trabalho, à previdência social, à habilitação e à reabilitação, ao transporte, à acessibilidade, à cultura, ao desporto, ao turismo, ao lazer, à informação, à comunicação, aos avanços científicos e tecnológicos, à dignidade, ao respeito, à liberdade, à convivência familiar e comunitária, entre outros decorrentes da Constituição Federal, da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo e das leis e de outras normas que garantam seu bem-estar pessoal, social e econômico.

Portanto, o direito à educação, além de ser um direito de todos, suas diretrizes são fixadas pela União, de modo que quando se tratar de pessoa com deficiência, deverá ser assegurada a efetivação da referida garantia, observando também o bem estar pessoal, social e econômico do indivíduo.

Sendo assim, os dispositivos Constitucionais e legais citados acima, garantem à pessoa com deficiência o pleno acesso à educação inclusiva, que observe também o seu bem estar pessoal, social e econômico, assegurando a sua integração e oportunidade de desenvolvimento.

4. ENTENDIMENTO DO STF SOBRE A COMPETÊNCIA PARA DEFINIÇÃO DE PESSOA COM DEFICIÊNCIA ADI 7.028/AP

Mesmo nos dias atuais, após a criação de inúmeras leis visando proteger e garantir a inclusão social da pessoa com deficiência, ainda é preciso que as instituições fiquem atentas para que tais direitos não sejam violados, e em alguns casos, pelo próprio Estado.

No ano de 2017, o Estado do Amapá editou a Lei nº. 2.151/2017, que apresentou uma definição de pessoa com deficiência (art. 1º, §4º), diferente daquela trazida pela pelo Decreto nº. 6.949/2009 (incorporou a Convenção Internacional sobre os Direito das Pessoas com Deficiência) e pela Lei nº 13.146/2015, conforme segue:

Art. 1º Fica assegurada à pessoa com deficiência física, mental ou sensorial a prioridade de vaga em escola pública, que esteja localizada mais próxima de sua residência.

[...]

§ 4º Consideram-se deficiências, para efeitos desta Lei, todas aquelas classificadas pela Organização Mundial da Saúde e que necessitam de assistência especial, decorrentes de problemas visuais, auditivos, mentais, motores, ou má formação congênita.

§ 5º As deficiências dos estudantes beneficiados serão comprovadas por meio de laudo médico fornecido por instituições médico-hospitalares públicas e competentes para prestar tal comprovação.

Art. 2º Nos estabelecimentos de ensino cujo ingresso dependa de teste seletivo, ficarão os abrangidos por esta Lei isentos de realização do referido teste.

Art. 3º Ficam excluídos da prioridade de que o art. 1º os estabelecimentos de ensino que não possuam as condições necessárias para educação de portadores de deficiência mental e sensorial.

Aparentemente a lei buscou priorizar o acesso da pessoa com deficiência a escola pública mais próxima de sua residência. O problema está velado no restante da lei.

Ao analisarmos o conceito previsto no §4º do artigo supra, observamos que não consta ali a indicação da pessoa com deficiência intelectual, como sujeito da garantia de vaga em escola pública mais próxima. Assim, o referido dispositivo restringiu a definição de pessoa com deficiência prevista no Decreto nº. 6.949/2009 e na Lei nº. 13.146/2015.

Da mesma forma, o art. 3º da Lei Estadual ao excluir a prioridade dos estabelecimentos que não possuam as condições necessárias, esbarra na previsão do inciso III do art. 208 da Constituição Federal, que exige a implementação da educação inclusiva.

Diante de tal cenário, o Procurador Geral da República propôs Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) nº. 7.028/AP, contra o caput do art. 1º §§ 4º e5º e art. 3º da Lei nº. 2.151/2017 do Estado do Amapá/AP.

Em sua manifestação, o Estado do Amapá defendeu que a deficiência intelectual estaria abrangida pela expressão “todas aquelas classificadas pela Organização Mundial da Saúde [...]” inserida no §4º.

O Supremo Tribunal Federal ao analisar a ação, declarou inconstitucional os dispositivos da Lei Estadual, nos seguintes termos:

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema abordado no trabalho torna-se de fundamental importância para a formação de uma sociedade igualitária, visando promover a integração das pessoas com deficiência através da implementação de políticas e direitos de educação inclusiva.

A necessidade de definição de pessoa com deficiência pelo ordenamento jurídico, serve para assegurar a inclusão do indivíduo, independentemente do tipo de deficiência que possua, sendo extremamente necessária para evitar distorções como aquela que poderia ser gerada pela Lei do Estado do Amapá.

O desenvolvimento das políticas de inclusão praticadas pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, cada um na sua respectiva competência, deve observar os Tratados internacionais, bem como a própria legislação e políticas internas, na busca da efetivação dos direitos da pessoa com deficiência.

O Decreto nº. 6.949/2009 que promulgou a Convenção Internacional de Direito das Pessoas com Deficiência, observou o procedimento previsto no §3º do art. 5º da Constituição Federal, como consequência, possui status constitucional, razão pela qual a definição de pessoa com deficiência ali prevista, deve ser seguida por todos os Entes, sob pena de inconstitucionalidade.

Da mesma forma, quando a União estabelecer normas gerais sobre os temas elencados no art. 24 da Constituição Federal, o Estado que emitir posteriormente lei sobre o mesmo assunto, porém em contrariedade com o que foi fixado pela União, deverá ter a referida norma declarada inconstitucional.

O direito a educação inclusiva da pessoa com deficiência também está garantido pela Constituição Federal, assim como pelo Decreto nº. 6.949/2009 e pela Lei nº. 13.146/2015, razão pela qual deve ser assegurado por todos os Entes da Federação. Vale destacar que não compete a

lei estadual fazer qualquer restrição ou alterar a definição de pessoa com deficiência previsto em tratado internacional (§3º do art. 5º da CF) ou previsto em lei que estabeleça norma geral, sob pena de invasão de competência e consequente inconstitucionalidade do texto.

Observamos na análise da ADI nº. 7028/AP que as instituições de proteção às pessoas com deficiência funcionaram. O Ministério Público estava atento aos melindres da lei estadual, razão pela qual ingressou com a ação competente, fazendo com que o Poder Judiciário assegurasse que todas as pessoas com deficiência do Estado do Amapá, tenham acesso ao ensino próximo da sua residência, independentemente do tipo de deficiência que o indivíduo possua.

No entanto, é preciso chamar a atenção para o comportamento do Estado do Amapá, que uma vez ciente do equívoco legislativo, por ser um dos responsáveis pela implementação das políticas de inclusão, ao invés de regularizar a situação, optou por defender a sua Lei.

Vemos assim, que mesmo com todo o aparato Estatal voltado a implementação das políticas de concretização do ensino inclusivo, bem como todas as garantias constitucionais e previsões legais buscando a interação das pessoas com deficiência, ainda assim, encontramos situações onde se busca restringir o direito previsto em norma geral ou na Constituição. A preocupação se torna ainda maior quando as tentativas de restrição aos direitos da pessoa com deficiência, são praticadas por aqueles que, pela lei, deveriam assegurar a implementação das políticas de inclusão.

Desta forma, em que pese algumas tentativas de restrição de direito das pessoas com deficiência, das mais variadas formas, principalmente no que se refere ao acesso à educação inclusiva, há de se reconhecer o avanço da legislação e a efetivação das políticas de inclusão, ainda que para isso tenha que se socorrer do judiciário.

BASES TEÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A mediação de conflitos foi introduzida formalmente no sistema judiciário brasileiro em 2010, sendo posteriormente objeto de lei específica em 2015. O material oficial disponível ao público e aos mediadores em formação enfatiza as técnicas do instituto; todavia, há carência de explicitação de suas bases teóricas e epistemológicas. Neste contexto, foi elaborado o presente trabalho, de natureza descritiva, com a finalidade de levantar e descrever, embora de maneira superficial, as principais teorias que fundamentam a mediação de conflitos. Foram descritas a teoria geral dos sistemas de Bertalanffy, a cibernética de primeira e segunda ordens, a autopoiese de Maturana e Varela – com breves aportes da teoria de Niklas Luhmann – e o paradigma sistêmico novoparadigmático de Maria José Esteves de Vasconcellos e de Marilene Grandesso, com destaque para o pensamento complexo de Edgar Morin.

Palavras-chave

Mediação - Teoria Sistêmica

Vinicius de Carvalho Carreira

Advogado formado pela Faculdade de Direito de Bauru; Psicólogo formado pela UNESP – Bauru; mediador certificado pela ESA – SP; especialista em Direito de Família e Sucessões e em Direito Processual Civil; mestre e doutorando em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem pela UNESP – Bauru.

Marianne Ramos Feijó

Professora Assistente Doutora do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP – Bauru; Psicóloga formada pela Universidade Paulista; Especialista em Terapia de Casal e de Família pela PUC – SP; Mestra e Doutora em Psicologia Clínica pela PUC – SP; Pós-doutora em Psicobiologia pela Universidade Federal de São Paulo.

1. INTRODUÇÃO

A mediação de conflitos foi introduzida formalmente no Direito brasileiro pela Resolução n.º 125 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)1. Referida norma não contempla uma definição para o instituto, a qual foi contemplada através do Marco Legal da Mediação – Lei Federal n.º 13.140/152:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública.

Parágrafo único. Considera-se mediação a atividade técnica exercida por terceiro imparcial sem poder decisório, que, escolhido ou aceito pelas partes,as auxilia e estimula a identificar ou desenvolver soluções consensuais paraa controvérsia.

No mesmo ano, foi publicado o Código de Processo Civil, o qual prevê em seuart. 334 a realização de audiência de conciliação ou mediação como etapa obrigatória no procedimento comum3. O referido Codex, em seu art. 165, também determinou a criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos e estabeleceu contextos para atuação de conciliadores ou de mediadores.

Salvo pela diferenciação das hipóteses de atuação, a Lei Processual Civil utilizaas expressões “conciliação” e “mediação” sempre em conjunto, quase como sinônimos – o que também se verifica na Resolução n.º 125 do CNJ. Nenhuma das normas se ocupou em pontuar as diferenças entre os institutos, tarefa esta que o Marco Legal da

1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução n.º 125, de 29 de novembro de 2010. Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências. Diário de Justiça Eletrônico do Conselho Nacional de Justiça: n.º 219/2010, p. 2-14, 1 dez. 2010.

2 2 BRASIL. Lei n.º 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias[...]. Brasília, DF: Presidência da República, [2023].

3 BRASIL. Lei n.º 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2023]

Mediação também não cumpriu.

Tal diferenciação se encontra, dentro dos documentos editados pelo Poder Público, no Manual de Mediação Judicial, atualmente em sua 6ª edição4. Todavia, embora supra a referida lacuna normativa, o texto se limita a apresentar o histórico damediação judicial, não contemplando suas bases epistemológicas.

Neste contexto, o presente trabalho se propõe a apresentar as origens do instituto da mediação de conflitos.

2. MÉTODO

Este artigo é de natureza descritiva, elaborado a partir de consulta à bibliografiaconsagrada da área, documentos editados pelo Poder Público e publicações em periódicos. O trabalho não se propõe a esgotar o tema, mas sim a servir como introdução ao tema a partir de conteúdos pouco ou não contemplados pelo material oficial.

3. HISTÓRICO

A recente normatização da mediação de conflitos não faz jus à sua idade, umavez que a prática já era realizada, ainda que sem a formalidade moderna, por povos da antiguidade5. A exemplo, entre os judeus, chineses e japoneses, a mediação faz parte da cultura, dos usos e costumes, muitas vezes integrando os rituais religiosos. A figura do mediador pode ser institucional, decorrente de uma hierarquia na organização da vida comunitária, ou como poder delegado, ou natural, como expressão do exercício da cidadania, permitindo exaltar as personalidades do grupo social mais afeitas à comunicação humana, o que constitui o poder do mediador6

4 AZEVEDO, A. G. (Org.). Manual de Mediação Judicial. 6. ed. Brasília: CNJ, 2016.

5 GABBAY, D. M.; FALECK, D.; TARTUCE, F. Meios alternativos de solução de conflitos. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

6 BARBOSA, A. A. Mediação familiar interdisciplinar. São

A ideia de delegar a uma terceira pessoa o papel de facilitar a solução de conflitos ainda é bastante difundida na cultura oriental. É o caso do Japão, onde persiste uma prática milenar denominada chotei – em que um ou um grupo de conciliadores, todos com mais de 40 anos de idade, atua junto com o magistrado paraalcançar a resolução7

A mediação judicial moderna começou na década de 19708, com pioneirismo britânico e norte americano9. O instituto se espalhou para países como Canadá e França nas décadas seguintes10, até alcançar o Brasil por volta de 1990.11

Embora seja relativamente recente no contexto judiciário, as bases epistemológicas da mediação de conflitos remontam ao início do século XX12

4. BASES TEÓRICAS DA MEDIAÇÃO DE CONFLITOS

A mediação de conflitos não é uma prática isolada e baseada em si mesma, mas possui extensos pressupostos teóricos que a fundamentam, os quais rompem a concepção clássica de ciência13. Destacam-se, entre estas, as bases da teoria geral dos sistemas, das cibernéticas, da autopoiese e do pensamento sistêmico novoparadigmático14

Paulo: Atlas, 2015, p. 121.

7 MIKLOS, J.; MIKLOS, S. Mediação de conflitos. São Paulo: Érica, 2021. Edição do Kindle.

8 ZEVEDO, A. G. (Org.). Manual de Mediação Judicial. 6. ed. Brasília: CNJ, 2016.

9 ROSA, C. P. Desatando nós e criando laços: os novos desafios da mediação familiar. Belo Horizonte: DelRey, 2012.

10 BARBOSA, A. A. Mediação familiar interdisciplinar. São Paulo: Atlas, 2015.

11 MUSZKAT, M. E. (org). Mediação de conflitos: pacificando e prevenindo a violência. 3 ed. SãoPaulo: Summus, 2003.

12 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição do Kindle.

13 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. Edição do Kindle.

14 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição do Kindle

4.1 Teoria geral dos sistemas de Bertalanffy

Em 1969, o biólogo Ludwig von Bertalanffy publicou a obra Teoria Geral dos Sistemas, na qual propõe a necessidade de superar o modelo reducionista de ciênciaque, para ele, encapsula as áreas de estudo em seus universos individuais e enfoca os processos elementares dos componentes – o que faz perder de vista as características que emergem da interação dinâmica das partes15. O autor propõe a necessidade de ter em mente a ideia de sistema, que, segundo ele, é o que se verificaquando existem diferentes elementos interagindo entre si16

Apesar da obra em comento ter sido publicada no final da década de 1960, os estudos de Bertalanffy começaram por volta de 193017, numa época em que muitas ciências tradicionais –como a biologia, a física e a psicologia – buscavam a superação do modelo tradicional, denominado mecanicista. Como explica Fritjof Capra,

na concepção mecanicista do mundo por Descartes, toda a natureza funciona de acordo com leis mecânicas, e tudo no mundo material pode ser explicado em função dos arranjos e movimentos de suas partes. Isso implica que se poderia ser capaz de compreender todos os aspectos de estruturas complexas – plantas, animais ou o corpo humano – reduzindo-as às menores partes que as constituem. Essa posição filosófica é conhecida como reducionismo cartesiano.

A falácia da visão reducionista reside no fato de que, embora não haja nada de errado ao se dizer que as estruturas de todos os organismos vivos são compostas de partes menores, e, em última análise, de moléculas, isso não implica que suas

15 BERTALANFFY, L. General system theory: foundations, development, applications. 18. ed. rev. New York: George Braziller, 2015. Edição do Kindle.

16 ESTEVES-VASCONCELLOS, M. A nova teoria geral dos sistemas: dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais. São Paulo: Vortobooks, 2013. Edição do Kindle.

17 PINEDA, C. M. R. Ideas básicas del pensamiento sistémico. Visión Contable, n. 5, p. 71-107, jan- dez 2017.

propriedades possam ser explicadas exclusivamente por meio de moléculas18

Bertalanffy pontua que a visão tradicional de ciência não está excluída de sua teoria, mas está contemplada no que ele define como sistema fechado, ou seja, aquele que está isolado de seu ambiente. A proposta do autor, contudo, é considerar também os sistemas abertos, tais como organismos vivos – exemplo este que fez com que essa visão de mundo tenha sido denominada como organicista – cujos elementos estão em constante interação entre si19

Identificando a interação como o problema central em todos os campos da ciência, o conceito fundamental da investigação científica seria o de “sistema” e essa teoria interdisciplinar seria uma “teoria geral para os sistemas”. O objeto proposto para essa teoria foi a formulação de princípios válidos para os sistemas em geral, independentemente das entidades que os constituam. Portanto, aqui não se falaria mais de entidades físicas, químicas, ou outras, passando-se a falar das totalidades que essas entidades constituem, da organização desses sistemas. Assim, a Teoria Geral dos Sistemas se propõe como uma ciência da totalidade, ou como uma disciplina lógico-matemática aplicável a todas as ciências que tratam de “todos organizados”20

A noção de elementos em interação é essencial para a mediação de conflitos, uma vez que a conduta de uma das partes envolvidas afeta a maneira de se portar da outra, e vice-versa, sucessivamente. Isto posto, mostra-se necessário superar a ideia de adversariedade em busca da cooperatividade, enxergando o contexto da dis-

18 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 81-82. Edição do Kindle.

19 BERTALANFFY, L. General system theory: foundations, development, applications. 18. ed. rev. New York: George Braziller, 2015. Edição do Kindle.

20 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 283. Edição do Kindle.

puta como um sistema aberto21

A Teoria Geral dos Sistemas de Bertalanffy não foi a primeira a empregar o conceito de sistemas, mas foi a partir dela que novos conceitos foram estruturados, servindo de marco inicial de um novo movimento científico, o qual foi apoiado por outros movimentos, como será visto adiante22

4.2 Teorias cibernéticas

Durante a segunda guerra mundial, o matemático Norbert Wiener trabalhou junto ao governo dos Estados Unidos para desenvolver artilharia antiaérea, a qual exigia a predição da posição do míssil a ser abatido – devendo a máquina, portanto, se adaptar a qualquer mudança de trajetória do alvo, adaptação esta denominada de feedback, ou retroação23. A partir desse conceito, em 1947, o autor batizou a ciência cibernética, que pretendia

abarcar todo o campo da teoria do comando, controle e transmissão de informações, quer seja em máquinas ou em seres vivos. Fica claro, por meio da análise histórico-documental que, para Wiener o foco da cibernética não estaria restrito a eletrotécnica, mas sim à informação, seja ela transmitida por meios elétricos, mecânicos ou nervosos.”24.

Embora a cibernética tenha se originado em máquinas mecânicas, com estudosiniciais que não romperam com a visão mecanicista25, é equi-

21 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São Paulo: Método, 2008.

22 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. Edição do Kindle.

23 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 283. Edição do Kindle.

24 CHAVES, V. H. C.; BERNARDO, C. H. C. Norbert Wiener: história, ética e teoria. História (São Paulo), v. 39, 2020, p. 3.

25 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 283. Edição do Kindle.

vocada a ideia de que elase limita ao contexto tecnológico. Os ciberneticistas, em verdade, “tinham a intenção de criar uma ciência exata da mente”26

O trabalho de Wiener e seus contemporâneos teve grande ênfase na retroaçãonegativa, também denominada como de homeostase, que é caracterizado quando o sistema, ao identificar que o resultado até então alcançado diverge do objetivo estabelecido, tende a se corrigir para retornar ao estado anterior e aproximar-se do resultado pretendido. Posteriormente, após a publicação de um artigo do antropólogoMagoroh Maruyama em 1963, o trabalho de Wiener passou a ser considerado como primeira cibernética –sendo que os processos de retroação positiva, ou morfogenéticos, se incluem no escopo da segunda cibernética27

A Primeira Cibernética trata dos processos morfostáticos (manutenção da mesma forma), resultantes de retroação negativa ou retroação autorreguladora, a qual conduz o sistema de volta a seu estado de equilíbrio homeostático, otimizando a obtenção da meta. A Primeira Cibernética trata, pois, da capacidade de autoestabilização, ou de automanutenção do sistema. A Segunda Cibernética trata dos processos morfogenéticos (gênese de novas formas), resultantes de retroação positiva ou retroação amplificadora de desvios, amplificação que pode – caso não produza a destruição do sistema, e se a estrutura do sistema permitir – promover sua transformação, levando- o a um novo regime de funcionamento. A Segunda Cibernética trata então da capacidade de automudança do sistema.28

A noção de retroação, tanto positiva quanto negativa, é essencial para a mediação de conflitos,

26 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 171. Edição do Kindle.

27 27VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição do Kindle.

28 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 327. Edição do Kindle.

pois permitem que, a partir da narrativa do outro, sejam desestabilizadas as histórias individuais em função da criação de uma história conjunta que contemple a solução da disputa29

4.3 Autopoiese

Embora a retroação seja característica dos sistemas vivos, seu funcionamento não pode ser explicado, apenas, pela autorregulação cibernética; para além, são capazes de auto-organização30. Edificando sobre essa noção, Humberto Maturana e Francisco Varela desenvolveram, na década de 1970, o conceito de autopoiese31. Segundo Capra, uma unidade autopoiética é a organização mais elementar do organismo. Ela pode ser definida como um sistema capaz de se sustentar em virtude de uma rede de reações que, continuamente, regeneram os componentes – e isso de dentro de uma fronteira de “fabricação própria”. Podemos dizer, em outras palavras, que o produto de um sistema autopoiético é sua própria auto- organização32

A autopoiese, como definida pelos autores, é a característica inerente aos seres vivos de organizarem a si mesmos, continuamente33. Essa organização acontece no plano interno, sendo referente à estrutura do sujeito; e, embora o ambiente possa deflagrar alterações no estado do

29 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São Paulo: Método, 2008.

30 BERTALANFFY, L. General system theory: foundations, development, applications. 18. ed. rev. New York: George Braziller, 2015. Edição do Kindle.

31 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. Edição do Kindle.

32 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 252. Edição do Kindle.

33 MOREIRA, M. A. A epistemologia de Maturana. Ciência e educação, v. 10, n. 3, p. 597-606, 2004. 34 KASPER, H. O processo de pensamento sistêmico: um estudo das principais abordagens a partir de um quadro de referência proposto. 2000. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) –Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.

organismo, é a própria estrutura que determina quais alterações serão realizadas34

O contato do organismo com o meio se dá por meio do denominado acoplamento estrutural, o qual se desenvolve ao longo da história de interações do indivíduo com seu ambiente35. Quando dois ou mais sistemas autopoiéticos interagem entre si, e enquanto essa interação se mantiver coerente, ambos os sujeitos estarão adaptados e ajustarão sua estrutura conforme se desenvolve a relação, mas semprede acordo com seus respectivos acoplamentos estruturais36

À medida que se mantém interagindo com seu ambiente, um organismo vivo passará por uma sequência de mudanças estruturais, e com o tempo formará o seu próprio caminho individual de acoplamento estrutural. Em qualquer ponto desse caminho, a estrutura do organismo é um registro de mudanças estruturais prévias e, desse modo, de interações prévias. Em outras palavras, todos os seres vivos têm uma história. A estrutura viva é sempre um registro de desenvolvimentos anteriores37

No processo de mediação de conflitos, é necessário levar em conta a história das pessoas envolvidas, a história de sua interação e a história do próprio conflito, que em muitos casos se transforma em disputa38. Nesse contexto,

34 KASPER, H. O processo de pensamento sistêmico: um estudo das principais abordagens a partir de um quadro de referência proposto. 2000. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.

35 35 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. Edição do Kindle.

36 KASPER, H. O processo de pensamento sistêmico: um estudo das principais abordagens a partir de um quadro de referência proposto. 2000. Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2000.

37 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 255. Edição do Kindle.

38 SUARÉS, M. Mediación. Conducción de disputas, comunicación y técnicas. Barcelona: Paidós, 1996.

Grandesso aponta a importância da adoção de práticas colaborativas que levem em conta esse histórico39

Na esfera do Direito, os fenômenos sociais foram analisados à luz da autopoiese por Niklas Luhmann. O autor,

À medida que se mantém interagindo com seu ambiente, um organismo vivo passará por uma sequência de mudanças estruturais, e com o tempo formará o seu próprio caminho individual de acoplamento estrutural. Em qualquer ponto desse caminho, a estrutura do organismo é um registro de mudanças estruturais prévias e, desse modo, de interações prévias. Em outras palavras, todos os seres vivos têm uma história. A estrutura viva é sempre um registro de desenvolvimentos anteriores40

Portanto, sempre que interagir com um novo sistema – seja com a outra parte em disputa, seja com o próprio mediador – cada indivíduo reagirá de maneira diferente, embora influenciada, pelos contextos anteriores. Essa intersubjetividade, como referem Vasconcelos41 e Grandesso42 deve ser considerada por ocasião da mediação.

4.4 Pensamento sistêmico novoparadigmático

A visão sistêmica parte do pressuposto de que a redução do fenômeno aos seus elementos implica na perda das propriedades emergentes da relação entre esses elementos – de tal maneira que o todo se apresenta com propriedades que

39 GRANDESSO, M. A. (org). Práticas colaborativas e dialógicas em distintos contextos e populações: um diálogo entre teoria e práticas. Curitiba: CRV, 2017.

40 STUMPF, M. A relação entre direito e psicologia a partir da autopoiese de Maturana: uma observação sobre a existência de um conteúdo psicológico cognitivo no sistema do direito em Luhmann. 2010, p. 68. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2010.

41 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São Paulo: Método, 2008.

42 GRANDESSO, M. A. Sobre a reconstrução dos significados: uma análise epistemológica e hermenêutica da prática clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.

superam a simples soma das partes. A apreensão dos fenômenos sob tal prisma exige uma visão diferente, um novo paradigma da ciência: o pensamento sistêmico novoparadigmático43

Essa nova epistemologia, estudada por Maria José Esteves de Vasconcellos e por Marilene Grandesso, pressupõe três dimensões a serem consideradas: a complexidade, a intersubjetividade e a instabilidade44.

A complexidade tem como grande expoente Edgar Morin45. Para ele, o pensamento complexo é aquele que “articule as diferentes dimensões de um problema”46.

Uma das consequências desse pensamento complexo é que, em vez de pensar a compartimentação estrita do saber, passa-se a focalizar as possíveis e necessárias relações entre as disciplinas e a efetivação de contribuições entre elas, caracterizando-se uma interdisciplinaridade. Aliás, o próprio Morin (1983) afirma que o problema da epistemologia complexa é fazer comunicar as instâncias separadas do conhecimento47

Por sua vez, a dimensão da instabilidade, também chamada de desordem ou de caos, é receptiva à premissa de que determinados fenômenos são imprevisíveis ou incontroláveis.

Esses processos, outrora tidos como empecilho a ser removido peloparadigma mecanicista, se revelam como condição para a autorregulação48

Por fim, a ideia de intersubjetividade está associada com a noção de autopoiese49, uma vez que a presença do observador de um sistema é

43 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição do Kindle.

44 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São Paulo: Método, 2008.

45 MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 5. ed. Porto Alegre: Sulina, 2015.

46 MORIN, E.; ANDRADE, J. M. T. Iniciação ao pensamento complexo. 2015, p. 14/15. Edição do Kindle

47 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018, p. 158. Edição do Kindle.

48 VASCONCELLOS, M. J. E. Pensamento sistêmico: o novo paradigma da ciência. 11. ed. Campinas: Papirus, 2018. Edição do Kindle.

49 ESTEVES-VASCONCELLOS, M. A nova teoria geral dos sistemas: dos sistemas autopoiéticos aos sistemas sociais. São Paulo: Vortobooks, 2013. Edição do Kindle.

suficiente para perturbar o organismo e, possivelmente, disparar uma resposta autorreguladora50.

Com isso, ficam excluídas as ideias de neutralidade e de uma objetividade sem aspas. Pois o observador exerce, mesmo inconscientemente, uma intervenção perturbadora sobre aquilo que quer conhecer. Em lugar daquela objetividade clássica, temos uma intersubjetividade51

A adoção do novo paradigma é uma realidade em países como Canadá e França e se mostra essencial para a prática da mediação e outras práticas colaborativas, dado seu potencial de alcançar todas as facetas do conflito52. Todavia, como adverte Tania Almeida, a prática ainda exige validação de grupos sociais maiores para que possa se instalar definitivamente53 .

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mediação de conflitos se mostra em evidente difusão no cenário jurídico brasileiro, notadamente a partir da década de 2010. Todavia, o material oficialdisponibilizado, seja por meio de textos normativos ou outros materiais de apoio – como o Manual de Mediação Judicial – apresentam evidente lacuna no que tange àsbases teóricas do instituto.

Tal lacuna se revela como um problema a ser superado, uma vez que o conhecimento das referidas bases é essencial para a compreensão dos princípios e adequada execução das técnicas de mediação.

50 CAPRA, F.; LUISI, P. L. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. São Paulo: Cultrix, 2014. Edição do Kindle.

51 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São Paulo: Método, 2008, p. 33.

52 VASCONCELOS, C. M. Mediação de conflitos e práticas restaurativas: modelos, processos, ética e aplicações. São Paulo: Método, 2008.

53 ALMEIDA, T. Caixa de ferramentas em mediação: aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dash, 2014. Edição do Kindle.

ALMEIDA, T. Caixa de ferramentas em mediação: aportes práticos e teóricos. São Paulo: Dash, 2014. Edição do Kindle.

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AS FORMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER PREVISTAS NA LEI

11.340/2006

Palavras-chave

Lei n° 11.340 - Violência - Mulher

Wallas Richerd Trovelli

Pós-Graduando em Direito Constitucional – Instituto Damásio de Direito da Faculdade IBMEC/SP. Pós-Graduado em Direito das Mulheres – UNIDOMBOSCO. Graduado em Direito - Centro Universitário de Bauru mantido pela Instituição Toledo de Ensino. Atualmente, é membro da Comissão “OAB VAI À ESCOLA” da OAB/BAURU, assim como representante suplente da OAB/BAURU no Fórum Municipal de Educação de Bauru/SP. Advogado.

1. INTRODUÇÃO

No Brasil, após muitos anos de luta por uma proteção maior às mulheres, surgiu a Lei 11.340/2006 denominada Lei Maria da Penha que representou um verdadeiro avanço na legislação pátria no que atine ao enfrentamento à violência contra mulher. Inclusive, o mencionado diploma legal foi considerado pela Organização das Nações Unidas como sendo o terceiro mais avançado sobre o tema no mundo. Entretanto, de acordo com dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública entre 2016 e 2021, houve um aumento nos casos de feminicídio no Brasil, ou seja, a violência de gênero continua ceifando a vida de milhares de mulheres1.

O objetivo da pesquisa é explicar o que é a violência doméstica e familiar, as suas formas previstas em lei e principais características, haja vista que a mulher somente consegue pedir ajuda para romper o relacionamento abusivo quando compreende que se encontra em situação de violência e que está presa num ciclo perverso.

Dessa forma, na presente pesquisa, cuja abordagem metodológica consiste na Revisão Bibliográfica dos temas, a qual também é classificada como Referencial Teórico ou de Revisão de Literatura (SANTOS e CANDELORO, 2006)2, busca-se apresentar com muito esmero as importantes contribuições científicas de determinados autores e pesquisadores sobre as diversas formas de violência que podem ser praticadas contra a mulher.

Procura-se esclarecer que a violência doméstica é aquela que ocorre na residência dos indiví-

1 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Medidas protetivas de urgência e o princípio da vedação à proteção insuficiente: uma questão de eficácia dos direitos fundamentais da mulher. In: Fórum brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. p. 156. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/wpcontent/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5>. Acesso em: 02 nov. 2022.

2 SANTOS, Vanice dos; CANDELORO, Rosana J. Trabalhos acadêmicos: uma orientação para pesquisa e normas técnicas. Porto Alegre: RS AGE, 2006.

duos, ou seja, no local em que convivem de forma permanente. Por outro lado, a violência familiar se dá entre sujeitos que são parentes consanguíneos ou por afinidade. Ademais, no caso de violência decorrente de relação íntima de afeto, a Lei Maria da Penha também deve ser aplicada ainda que a vítima e o autor não estejam residindo na mesma casa.

Em seguida, ressalta-se que o artigo 7º da Lei 11.340/20063 prevê cinco formas de violência, quais sejam: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Porém não se trata de um rol taxativo de ações e omissões, é meramente exemplificativo, tendo em vista que pode haver outras formas de violência, tais como a obstétrica, política, institucional e religiosa. É importante se debruçar sobre o estudo dos tipos de violência para se alcançar uma maior compreensão das condutas que podem caracterizá-las e identificar se determinada mulher se encontra ou não na posição de vítima em dada situação.

Ao cabo, com a finalidade de se ter em mente as peculiaridades e complexidades da violência doméstica e familiar, busca-se esclarecer o ciclo de violência, o qual é composto pela fase da tensão, da explosão e da “lua de mel”. Além disso, assevera-se que quanto mais vezes esse ciclo se completa, mais risco a vítima está correndo, pois, a intensidade da violência aumenta e, em muitos casos, culmina na ocorrência do crime de feminicídio.

3 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340. htm>. Acesso em: 29 out. 2022.

2. BREVE HISTÓRICO DA

De proêmio, a origem da Lei nº 11.340/2006 não se restringe ao comando constitucional contido no artigo 226, § 8º, da Constituição Federal, mas guarda íntima relação com uma pluralidade de tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil (LIMA, 2019)4.

Em 1975, na cidade do México, a Organização das Nações Unidas promoveu a I Conferência Mundial sobre a Mulher, a qual resultou na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Ademais, no ano de 1980, em Copenhague, foi realizada a II Conferência Mundial sobre a Mulher. Outrossim, em 1985, na cidade de Nairóbi, a III Conferência Mundial sobre a Mulher. Após alguns anos, em 1993, a violência contra a mulher foi reconhecida como uma forma de violação aos direitos humanos, em razão da Conferência de Direitos Humanos das Nações Unidas, realizada em Viena (LIMA, 2019)5

Por sua vez, no âmbito regional, em 1994, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica (BIANCHINI; BAZZO; CHAKIAN, 2022)6, que passou a compor o ordenamento jurídico brasileiro mediante o Decreto n° 1.973/96, com status supralegal. Nesse contexto, a violência contra a mulher começou a ser percebida como um grave problema de saúde pública (LIMA, 2019)7.

Malgrado existir no Sistema Internacional de Direitos Humanos diversas Convenções Internacionais tratando acerca dos direitos das

4 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1475.

5 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1476.

6 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 29.

7 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1476.

mulheres, assim como haver o mandamento constitucional disposto no artigo 226, § 8º, da Constituição Federal, a Lei 11.340/2006 somente surgiu no ano de 2006, ante a recomendação da Organização dos Estados Americanos decorrente de condenação imposta ao Brasil no caso envolvendo a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes (LIMA, 2019)8

É nítido que o Brasil demorou demasiadamente para produzir um sistema jurídico voltado para o enfrentamento da violência de gênero, sendo o 18º país da América Latina a criar uma lei de proteção integral à mulher (BIANCHINI; BAZZO; CHAKIAN, 2022)9

No Brasil, houve um acontecimento que foi crucial para a criação da Lei 11.340/2006. O professor universitário Marco Antônio Heredia Viveros praticou diversas formas de violência doméstica e familiar contra a sua ex-esposa Maria da Penha. Inclusive, em 1983, tentou ceifar de forma cruel a sua vida em mais de uma oportunidade. Na primeira vez, atirou contra as costas de Maria da Penha, que ficou paraplégica. Em ocasião posterior, tentou matá-la mediante eletrocussão. Sobre isso, veja-se a narrativa desvelada por Dias10:

Mas não foi somente a referência presidencial que justifica ser ela assim chamada. A menção tem origem na dolorosa história de Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica casada com um professor universitário e economista. Eles viviam em Fortaleza – CE, e tiveram três filhas. Além das inúmeras agressões de que foi vítima, em duas oportunidades o marido tentou matá-la. Na primeira vez, em 29 de maio de 1983, simulou um assalto, fazendo uso de uma espingarda. Resultado, deixou-a paraplégica. Poucos dias depois

8 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1476.

9 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 31.

10 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022. p. 17.

de ter retornado do hospital, na nova tentativa, buscou eletrocutá-la por meio de uma descarga elétrica enquanto ela tomava banho (DIAS, 2022, p. 17).

Maria da Penha logrou êxito em sair do relacionamento abusivo, porém passou a ser vítima da violência institucional, vez que o 1º julgamento do autor da agressão ocorreu somente após 8 anos da data dos fatos, no dia 4 de maio de 1991, ocasião na qual o algoz foi condenado pelo Egrégio Tribunal do Júri a oito anos de prisão. Todavia, o julgamento foi anulado, já que o recurso interposto pela defesa do agressor foi acolhido. Ademais, no ano de 1996, foi submetido a novo júri, no qual lhe foi imposta uma pena de dez anos e seis meses de reclusão. Entretanto, mais uma vez, recorreu e lhe foi concedido o direito de aguardar em liberdade o julgamento da apelação. Em 2002, após dezenove anos e seis meses da data dos fatos, foi preso. Contudo, não cumpriu sequer 1/3 (um terço) da pena em regime fechado, pois conseguiu ser beneficiado com a progressão de regime prisional (CUNHA; PINTO, 2022)11

Importante apontar que ante o latente descaso da justiça brasileira com o caso de violência doméstica que envolveu Maria da Penha, o Centro pela Justiça e o Direito Internacional juntamente com o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (DIAS, 2022)12.

É importante ressaltar que em observância ao estabelecido na Convenção Interamericana para Prevenir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), a Organização dos Estados Americanos acatou de forma inédita uma denúncia relacionada à prática de violência contra a mulher, bem como iniciou várias

11 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 24.

12 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 18.

investigações acerca do caso Maria da Penha na justiça brasileira (CAMPOS, 2007)13

Nesse sentido, a Organização dos Estados Americanos enviou quatro ofícios para o Brasil requerendo uma explicação sobre a demasiada demora na conclusão da ação penal movida contra o agressor de Maria da Penha. Entretanto, nenhum desses ofícios foram respondidos (CUNHA; PINTO, 2022)14

Assim, em 2001, a Organização dos Estados Americanos elaborou o relatório nº 54, no qual o Brasil foi condenado internacionalmente pela negligência em punir efetivamente os autores de violência doméstica, assim como emitiram algumas recomendações (DIAS, 2022)15. Neste ponto, cumpre destacar que foi recomendada a conclusão célere e efetiva do processo penal movido contra Marco Antônio Heredia Viveros, bem como a mudança das leis brasileiras, visando a proteção das mulheres em situação de violência.

No dia 7 de agosto de 2006, observando as recomendações da Organização dos Estados Americanos, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a Lei nº 11.340/2006, batizada com o nome Maria da Penha. O mencionado diploma legal foi denominado dessa forma porque, de acordo com a recomendação nº 316, o Estado deveria proporcionar à Maria da Penha uma reparação simbólica pelas violações de direitos sofridas durante quase vinte anos.

A Lei n° 11.340/2006 representa um verdadeiro marco no enfrentamento à violência contra a 13 CAMPOS, Roberta Toledo. Aspectos constitucionais e penais significativos da Lei Maria da Penha. De jure, Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais, n. 8, p. 271-286, jan.-jun. 2007.

14 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 27.

15 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 18.

16 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO 12.051, Relatório Nº 54/01, (Maria da Penha Maia Fernandes) (BRASIL). Disponível em <https://cidh.oas.org/ annualrep/2001port/capitulo3c.htm>. Acesso em: 01 nov. 2022.

mulher no Brasil, inclusive foi considerada um dos exemplos de legislação mais avançada sobre violência doméstica pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher no Relatório Progresso das Mulheres no Mundo 2008/200917

Contudo, apesar de a Lei Maria da Penha representar um verdadeiro avanço legislativo na proteção das mulheres, de acordo com dados apresentados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2016 e 2021, houve um aumento de 44,3% nos casos de feminicídio no Brasil18, o que demonstra que há muito trabalho a ser realizado no enfrentamento à violência contra a mulher.

Dessa forma, é possível verificar que, ao longo dos anos, as mulheres receberam maior visibilidade e lograram êxito em alcançar uma proteção maior tanto no âmbito internacional quanto nacional, porém o enfrentamento à violência doméstica e familiar deve continuar, porque ainda são muitos os casos de feminicídio no Brasil.

3. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER

É notório que uma pessoa somente consegue realizar um tratamento médico eficaz para enfrentar determinada doença a partir do momento em que a patologia é devidamente diagnosticada, vez que enquanto o indivíduo não tem conhecimento sobre a sua condição de doente, e, apesar de estar correndo um sério risco de morte, segue a sua vida como se nada estivesse acontecendo. Ademais, há alguns males que a princípio são difíceis de serem percebidos,

17 ONU MULHERES. Progresso das mulheres no mundo 2008/2009. Disponível em <http://www.onumulheres.org.br/ wp-content/uploads/2019/11/Portuguese-POWW-2008-indd. pdf> Acesso em: 02 nov. 2022.

18 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Medidas protetivas de urgência e o princípio da vedação à proteção insuficiente: uma questão de eficácia dos direitos fundamentais da mulher. In: Fórum brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. p. 156. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/ wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5>. Acesso em: 02 nov. 2022.

porém fáceis de serem curados. Depois de um tempo se tornarão visíveis, mas já não se haverá mais o que fazer, pois a doença terá consumido todo o fôlego de vida outrora existente. Nesse esteio, é oportuno destacar a lição de Maquiável19:

Quem atalha os males com bastante antecedência pode, sem grande esforço, dar-lhes remédios. Quem espera, porém, que eles se aproximem, debalde tentará debelá-los; a doença tornou-se incurável. E ocorre com esta o que os médicos dizem a respeito da tuberculose; isto é, ser ela no princípio fácil de curar e difícil de perceber, mas, se não foi percebida e tratada no início, torna-se, com o andar do tempo, fácil de perceber e difícil de curar. O mesmo se dá com os negócios do estado. Quando (e isto só é concedido a um homem prudente) se consegue distinguir os males apenas começam a surgir, fácil é destruí-los; quando, porém, tendo passado despercebidos, se desenvolvem até o ponto de serem visíveis de todos, já não há como combatê-los (MAQUIÁVEL, 2019, p. 28)

Deve se ter em mente a brilhante lição do filósofo, citado alhures, ao olhar para violência doméstica contra a mulher, vez que no começo essa sequer percebe que está ocupando o lugar de vítima numa situação de violência. Todavia, às vezes, quando a mulher consegue enxergar o que está acontecendo acaba tendo a sua vida ceifada pelo algoz.

A mulher em situação de violência doméstica e familiar precisa, em um primeiro momento, enxergar que está sofrendo alguma das formas de violências insculpidas no artigo 7º da Lei 11.340/2006, para ter condições de pedir ajuda e conseguir romper o ciclo de violência.

Com efeito, o feminicídio é a ponta do iceberg, isto é, o cume do ciclo da violência, vez que antes

19 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe / Maquiavel; com notas de Napoleão Bonaparte e Cristina da Suécia. Tradução: Mário e Celestino da Silva. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2019, p. 28.

do mencionado crime ocorrer, o autor da violência, normalmente, já praticou contra a vítima outras formas de violências, tais como, psicológica, moral, patrimonial, sexual, as quais não são tão perceptíveis.

A esse respeito, cumpre consignar que a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, desempenhou um papel de extrema relevância ao discorrer sobre o conceito de violência contra a mulher (COMISSÃO, 1994)20: “[...] entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada”.

Como se vê, em que pese muitos terem uma ideia mitigada sobre o que é violência, vez que a reduzem apenas à violação da integridade física de outrem, há diversas formas de violência que podem ser praticadas contra a mulher em razão do gênero. Nessa toada, se faz salutar destacar as palavras de Alemany21:

As violências praticadas contra as mulheres devido ao seu sexo assumem múltiplas formas. Elas englobam todos os atos que, por meio de ameaça, coação ou força, lhes infligem, na vida privada ou pública, sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos com a finalidade de intimidá-las, puni-las, humilhá-las, atingi-las na sua integridade física e na sua subjetividade (ALEMANY, 2009, p. 271).

Por tudo isso, como foi destacado acima, percebe-se que o conceito de violência é amplo, pois engloba uma pluralidade de condutas com o condão de violar a integridade física, moral, 20 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, Convenção de Belém do Pará. Disponível em < http://www.cidh.oas.org/basicos/ portugues/m.Belem.do.Para.htm>. Acesso em: 01 nov. 2022. 21 ALEMANY, Carme. Violências. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Francoise; DOARÉ, Hélène Le; SENOTIER, Danièle (Orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: UNESP, p. 271-276, 2009.

sexual, psicológica e patrimonial da vítima e são praticadas com o escopo de causar seu sofrimento.

Nesse sentido, para uma melhor compreensão sobre o que é violência doméstica e familiar contra a mulher, o legislador infraconstitucional pátrio desenvolveu com muito esmero uma definição, a qual se encontra abrigada na norma contida no artigo 5º da Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006)22

Segundo o mencionado dispositivo legal, a violência doméstica é aquela que ocorre no espaço em que determinadas pessoas convivem de forma permanente, sendo desnecessária a existência de vínculo familiar, assim como compreende também aqueles indivíduos esporadicamente agregados. Por sua vez, a violência familiar é a verificada entre sujeitos que são parentes consanguíneos ou por afinidade. Ademais, o legislador estendeu o âmbito de aplicação da Lei 11.340/2006 para os casos de violência decorrentes de relação íntima de afeto, ainda que a vítima e o autor não estejam residindo na mesma casa.

Não se pode olvidar que também deve ser aplicada a Lei Maria da Penha, caso seja verificada a prática de alguma das formas de violência doméstica e familiar contra vítima lésbica, travesti ou transexual (CUNHA; PINTO, 2022)23

Outrossim, de acordo com o artigo 6º da Lei nº 11.340/2006, a violência doméstica e familiar contra a mulher representa uma forma específica de violação de direitos humanos. No dizer de 22 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340. htm>. Acesso em: 29 out. 2022.

23 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 84.

A violência doméstica e familiar contra a mulher caracteriza forma específica de violação dos direitos humanos. Essa violação é representada por qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial e tenha sido praticada no âmbito da unidade doméstica, no âmbito da família ou no âmbito de qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação (DELGADO, 2015, p. 101).

De fato, é possível compreender a gravidade da violência doméstica e familiar contra a mulher dado que, como já destacado alhures, representa verdadeira violação de direitos humanos. Outrossim, a fim de corroborar essa afirmação, é importante destacar a lição de Dias25, a saber: [...] a violência doméstica é o gérmen da violência que está assustando a todos, mundo afora. Quem vivencia a violência –muitas vezes até antes de nascer e durante toda a infância – só pode achar natural o uso da força física. Quando o agressor foi vítima de abuso ou de violência na infância, tem medo e, para sentir-se seguro, precisa ter o controle da situação. A forma que encontra é desprezar, insultar, agredir. Também a impotência da vítima – que não consegue denunciar o agressor – gera, nos filhos, a consciência de que a violência é um fato natural. (DIAS, 2022, p. 31).

Destarte, sem embargo, pode-se declinar que a violência doméstica é a gênese de outras formas de violências, haja vista que as pessoas que crescem e se desenvolvem como seres humanos no âmago de um lar marcado pela violência de gênero, a normalizam, pois, começam consi-

24 DELGADO, Mário Luiz. A violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família. Disponível em: <https:// ibdfam.org.br/assets/upload/anais/237.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2022.

25 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 31.

derá-la como algo natural.

3.1 Formas de violência doméstica e familiar contra a mulher

O legislador infraconstitucional no Capítulo II, do Título II, da Lei nº 11.340/200626, trouxe à baila algumas formas de violência que podem ser praticadas contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar. Todavia, se faz imprescindível destacar que não se trata de um rol taxativo de ações e omissões, posto que no diploma legal está previsto de forma expressa que pode haver outras formas de violência.

Não se pode olvidar que o dispositivo legal citado buscou elucidar as cinco formas de violência que podem ser praticadas contra à mulher no âmbito de incidência da Lei 11.340/2006, quais sejam, física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Contudo, cumpre salientar que existem outras formas, tais como, a violência obstétrica, política, institucional e religiosa27.

A primeira forma de violência prevista na Lei 11.340/2006 é a física, essa ocorre quando o autor da violência mediante o uso da força causa lesão à integridade corporal da mulher. Nesse caso, a sua conduta pode se enquadrar, por exemplo, naquelas tipificadas como crime de lesão corporal, homicídio e vias de fato. Nesse ponto, importante destacar a lição de Lima28:

26 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340. htm>. Acesso em: 29 out. 2022.

27 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 109.

28 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1.490.

Como se percebe, violência física (vis corporalis) é o emprego de força física sobre o corpo da vítima, visando causar lesão à integridade ou à saúde corporal da vítima. São exemplos de violência física, ofensivas à integridade, as fraturas, fissuras, escoriações, queimaduras, luxações, equimoses e hematomas. A ofensa à saúde corporal, por sua vez, compreende as perturbações fisiológicas (desarranjo no funcionamento de algum órgão do corpo humano) ou mentais (alteração prejudicial da atividade cerebral). Como exemplos de crimes praticados com violência física, podemos citar as diversas espécies de lesão corporal (CP, art. 129), o homicídio (CP, art. 121) e até mesmo a contravenção penal de vias de fato (Dec.-Lei nº 3.688/41, art. 21). (LIMA, 2019, p. 1.490).

Ao que se verifica, Lima (2019), além de explicar a violência física, apresentou alguns exemplos como as fraturas, queimaduras e hematomas. Ademais, não se pode deixar de registrar que Cunha e Pinto (2022, p. 71)29 também mencionaram o emprego de socos, tapas, pontapés, empurrões e o arremesso de objetos, como meios de se praticar essa forma de violência.

Outrossim, cumpre salientar que malgrado a ação cabível no crime de lesão corporal leve ser a pública condicionada à representação, de acordo com o artigo 88 da Lei 9.099/9530, nos casos em que tal crime for praticado no âmbito de incidência da Lei Maria da Penha, a ação será pública incondicionada, pois segundo o artigo 41 da Lei 11.340/2006 não é admitida a aplicação da Lei dos Juizados Especiais nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher31

29 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 71.

30 BRASIL. Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/leis/l9099.htm>. Acesso em: 02 nov. 2022.

31 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção

A segunda forma de violência mencionada na Lei n° 11.340/2006 é a psicológica, que apesar de causar danos gravíssimos à vítima, ocorre sorrateiramente e, por isso, em alguns casos, a mulher não consegue sequer percebê-la. Nas palavras de Dias32:

A violência psicológica encontra forte alicerce nas relações desiguais de poder entre os sexos. É a violência mais frequente e, certamente, seja a menos denunciada. A vítima, muitas vezes, nem se dá conta de que agressões verbais, ameaças, silêncios prolongados, tensões, manipulações de atos e desejos configuram violência e devem ser denunciadas. A ausência de vestígios físicos não torna a violência invisível ou inexistente. Especialmente nessas hipóteses, a palavra da vítima dispõe de significativa força probante.

A violência psicológica consiste na agressão emocional, que é tão ou mais grave que a violência física. [...] (DIAS, 2022, p. 88).

Tem-se, então, que segundo o que foi destacado pela autora citada, ainda que a violência psicológica seja a mais frequente, é a menos denunciada, dado que como não deixa vestígios materiais, a vítima não a percebe. Ademais, apesar de ser invisível é tão nociva quanto a violência física, vez que essas agressões produzem feridas na alma. Sobre isso, vale transcrever a lição de SAFFIOTI33:

[...] Os resultados destas agressões não são feridas no corpo, mas na alma. Vale dizer feridas de difícil cura. Nas cerca

Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340. htm>. Acesso em: 29 out. 2022.

32 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 88.

33 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 66-67.

de 300 entrevistas feitas com vítimas na pesquisa Violência doméstica: questão de polícia e da sociedade foi frequente as mulheres se pronunciarem a respeito da maior facilidade de superar uma violência física, como empurrões, tapas, pontapés, do que humilhações. De acordo com elas, a humilhação provoca uma dor muito profunda. [...] (SAFFIOTI, 2015, p. 66-67).

O processo de cura da violência psicológica é mais árduo em razão da sua profundidade. Ora, para se tratar de um corte ou de uma queimadura, basta a vítima se valer do uso de alguns medicamentos. Contudo, para conseguir superar uma situação humilhante, às vezes, são necessários anos de terapia, assim como de intervenção psiquiátrica, pois a ferida encontra-se localizada na zona abissal do ser humano em situação de violência. Tal entendimento é compartilhado por Dias (2022)34, a qual destacou que as feridas visíveis, depois de determinado tempo, acabam desaparecendo. Todavia, os traumas psicológicos, tais como, a perda da autoestima, o sentimento de menos valia e a depressão, não se cicatrizam, ou seja, reverberam pelo resto da vida da mulher vítima de violência.

Como consequência da gravidade dessa forma de violência, a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Doméstica, batizada como Convenção de Belém do Pará, desempenhou um papel de extrema relevância na proteção da mulher em diversos aspectos, inclusive foi a responsável por incluir a violência psicológica como espécie de violência contra a mulher (DIAS, 2022)35.

Ademais, é válido ressaltar que o legislador infraconstitucional foi zeloso ao mencionar algumas condutas que caracterizam esse tipo de violência, quais sejam, ridicularizar, manipular, humilhar, ameaçar, constranger, isolar, chantagear, perseguir, insultar; porém outras ações

34 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 88-89.

35 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 89.

também podem configurar violência psicológica apesar de não estarem expressamente previstas no diploma legal.

No ano de 2021, entraram em vigor duas leis muito importantes especificamente no enfrentamento à violência psicológica contra a mulher.

A primeira delas foi a Lei nº 14.13236, a qual tipificou como crime a conduta de perseguir alguém, nos termos do artigo 147-A do Código Penal37, bem como previu no inciso II, do § 1º, do referido dispositivo legal, uma causa de aumento que o magistrado deve aplicar quando a infração penal for praticada contra mulher por razões da condição de sexo feminino.

Além disso, também entrou em vigor a Lei n° 14.188 de 202138, que foi a responsável por criar o crime de violência psicológica contra a mulher previsto no artigo 147-B do Código Penal39

Malgrado o legislador já ter discorrido sobre a violência psicológica no artigo 7º da Lei Maria da Penha, verificou-se a necessidade de criar o crime do artigo 147-B do Código Penal visando assegurar uma proteção mais eficaz e am-

36 BRASIL. Lei 14.132, de 31 de março de 2021. Acrescenta o art. 147-A ao Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para prever o crime de perseguição; e revoga o art. 65 do Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais). Disponível em: <https://www.planalto. gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14132.htm#art2>. Acesso em: 02 nov. 2022.

37 BRASIL. Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/ del2848compilado.htm>. Acesso em: 27 out. 2022.

38 BRASIL. Lei 14.188, de 28 de julho de 2021. Define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher previstas na Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), em todo o território nacional; e altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher. Disponível em:<https://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_Ato20192022/2021/Lei/L14188.htm#art4>.Acesso em: 02 nov. 2022.

39 BRASIL. Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 27 out. 2022.

pla às mulheres, posto que o citado tipo penal não se restringe apenas às relações domésticas e familiares albergadas na Lei nº 11.340/2006. Sobre o alargamento da abrangência protetiva da mulher vítima de violência psicológica, destaca-se a desvelada lição de BIANCHINI, BAZZO e CHAKIAN40:

O crime de violência psicológica inova ao prever como sujeito passivo, exclusivamente a vítima mulher, expandindo seu alcance protetivo para além do contexto da Lei Maria da Penha (ambiente doméstico, familiar ou das relações íntimas de afeto). Isso porque o novo crime abrange todas as demais situações de violência psicológica contra a mulher, praticadas no âmbito público ou privado, desde que, evidentemente, tenha lhe causado dano emocional, nos termos descritos pelo legislador. Pode, portanto, abranger situações de violência que ocorrem no ambiente de trabalho, nos estabelecimentos de ensino, espaços de cultos religiosos e até consultórios e hospitais, por exemplo nos casos de violência obstétrica que acarreta danos emocionais para a paciente. (BIANCHINI, BAZZO e CHAKIAN, 2022, p. 148).

Destarte, a partir da leitura da citação colacionada alhures, constata-se que o legislador infraconstitucional ao tipificar como crime a violência psicológica no artigo 147-B do Código Penal buscou resguardar a mulher em diversos âmbitos, vez que não restringiu a incidência do dispositivo legal apenas às condutas praticadas no contexto doméstico e familiar.

Outrossim, entre as diversas ações que podem caracterizar a violência psicológica, nesse ponto, vale destacar um tipo de abuso psicológico denominado gaslighting, que se evidencia nas situações em que o autor, visando manter a mulher sob a sua dominação, vale-se da utilização de uma forma de manipulação muito intensa, fazendo com que a vítima se sinta desqualifi40 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022.

cada, inferiorizada, insegura, culpada por todos os problemas da relação, ou seja, a coloca numa posição de extrema vulnerabilidade (DIAS, 2022)41

É importante ressaltar que as vítimas de violência psicológica não precisam apresentar um laudo técnico ou realizar alguma perícia para fazer o registro do Boletim de Ocorrência a fim de submeter o autor da violência aos cuidados do Estado (DIAS, 2022)42

Outra forma de violência prevista na Lei Maria da Penha é a sexual. Essa resta caracterizada quando o agente obriga a vítima a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não consentida, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força. Ademais, a violência ora examinada também se evidencia quando o algoz induz a mulher a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade. Ainda, a conduta consistente em impedir a vítima de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação, bem como que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos, configura essa espécie de violência.

Sobre o tema, na presente oportunidade, faz-se salutar destacar a diligente lição de Alemany (2009)43, que ressalta a falta de consentimento como pressuposto do crime de estupro:

As feministas americanas foram as primeiras que, desde o início dos anos 70, denunciaram a violência sexual. Destacando que o estupro particularmente supõe o não consentimento da vítima, elas desenvolvem análises teóricas distinguindo-se dos estudos criminológicos que, com seus

41 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 91.

42 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 92.

43 ALEMANY, Carme. Violências. In: HIRATA, Helena; LABORIE, Francoise; DOARÉ, Hélène Le; SENOTIER, Danièle (Orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. São Paulo: UNESP, p. 271-276, 2009.

preconceitos androcêntricos, privilegiam as teorias vitimológicas (ou interacionista), que fazem da relação entre a vítima e o autor um elemento explicativo fundamental. Esses estudos tiveram grande eco em outros países anglo-saxões e depois na França (ALEMANY, 2009, p. 272).

Ademais, não se pode olvidar que há vários crimes no ordenamento jurídico brasileiro, tais como, estupro, violação sexual mediante fraude, importunação sexual, assédio sexual, que tipificam condutas caracterizadoras de violência sexual. Nas palavras de Lima44:

Esta espécie de violência é concretizada através de diversos crimes previstos no Código Penal, tais como o estupro (CP, art. 213), estupro de vulnerável (CP, art. 217-A), satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente (CP, art. 218-B), entre outros previstos no Título VI da Parte Especial do Código Penal, que versa sobre os Crimes contra a dignidade sexual. (LIMA, 2019, p. 1491).

É importante salientar que nada justifica a prática sexual sem o consentimento de ambas as partes. Exemplificando, o fato de a mulher estar em uma festa, bebendo, dançando e usando uma roupa mais curta, não outorga ao homem o direito de praticar atos sexuais com ela sem o seu expresso consentimento.

Além disso, é importante esclarecer que não há que se falar em “débito conjugal”, vez que a mulher casada não tem a obrigação de satisfazer os desejos sexuais do seu esposo. Caso essa seja forçada a praticar atos sexuais com o seu cônjuge restará caracterizado o crime de estupro marital.

No que atine à violência patrimonial, a sua definição tem como núcleo três verbos, quais sejam: subtrair, reter e destruir. Assim, ocorre esse tipo de violência quando o algoz subtrai ou se apropria indevidamente de algum bem da ví-

44 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1491.

tima, assim como quando causa danos à coisa de propriedade da mulher. Exemplificando, há violência patrimonial no caso em que o agressor mata o animal de estimação da vítima. Ademais, também há essa forma de violência na hipótese em que o alimentante deixa de cumprir a obrigação de pagar alimentos, conforme dispõe o Enunciado 20 do IBDFAM. Nesse sentido, é oportuno destacar a lição de Delgado45:

Outra conduta que pode configurar a violência patrimonial, mediante a retenção de recursos econômicos, consiste em furtar-se ao pagamento de pensão alimentícia arbitrada em benefício da mulher, especialmente por se tratar de valor destinado a satisfazer necessidades vitais. Ora, o devedor de alimentos que, condenado ao pagamento de verba alimentar indispensável à subsistência da mulher, deixa, dolosamente, de cumprir com a sua obrigação, não estaria se apropriando indevidamente de valores que pertenceriam à mulher credora dos alimentos?

Ainda, é conveniente sublinhar que o legislador infraconstitucional no artigo 244 do Código Penal tipificou o crime de abandono material, o qual resta configurado quando o devedor de alimentos deixa de cumprir a sua obrigação sem justa causa (DELGADO, 2015)46.

Outrossim, quando o indivíduo descumprir medida protetiva consistente no pagamento de alimentos aplicada pelo Juízo da Vara de Família ou o do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher incorrerá na prática do crime previsto no artigo 24-A da Lei 11.340/2006 (DIAS, 2022)47

45 DELGADO, Mário Luiz. A violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família. Disponível em: <https:// ibdfam.org.br/assets/upload/anais/237.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2022, p. 109.

46 DELGADO, Mário Luiz. A violência patrimonial contra a mulher nos litígios de família. Disponível em: <https:// ibdfam.org.br/assets/upload/anais/237.pdf>. Acesso em: 03 nov. 2022.

47 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 100.

A última forma de violência insculpida no artigo 7º da Lei n° 11.340/2006 é a moral, que consiste na prática dos crimes de calúnia, difamação ou injúria, contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar (CUNHA; PINTO, 2022)48

Outro ponto sobre essa espécie de violência que merece destaque consiste no fato de que os crimes contra a honra, em regra, são considerados de menor potencial ofensivo e a Lei Maria da Penha veda expressamente a aplicação da Lei 9.099/95 às infrações penais praticadas com violência doméstica e familiar contra a mulher. Portanto, a competência para julgar esses processos não será dos Juizados Especiais Criminais, assim como não há que se falar na possibilidade de aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei dos Juizados. Nesse prisma, destaca Lima49:

Como os três crimes acima apontados têm, em regra, pena máxima comida igual ou inferior a 2 (dois) anos, poder-se-ia concluir que a competência para seu processo e julgamento seria dos Juizados Especiais Criminais, por se tratar de infração de menor potencial ofensivo. Todavia, como o art. 41 da Lei Maria da Penha é expresso no sentido de vedar a aplicação da Lei nº 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, é certo concluir que, presente uma das hipóteses do art. 5º da Lei 11.340/2006, não se admite a aplicação dos institutos despenalizadores da Lei dos Juizados, recaindo sobre o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a competência para o processo e julgamento de tais delitos. Portanto, caracterizada hipótese de violência moral contra a mulher no âmbito de uma relação doméstica, familiar ou íntima de afeto, mesmo que a infração penal praticada seja considerada

48 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 109.

49 LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. 7. ed. Salvador: Juspodivm, 2019, p. 1493.

de menor potencial ofensivo, fixar-se-á a competência do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (LIMA, 2019, p. 1493).

Além disso, é oportuno asseverar que segundo Cunha e Pinto (2022)50, o legislador foi justo ao afastar no artigo 41 da Lei 11.340/2006 a possibilidade de aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes praticados contra a mulher no âmbito doméstico, familiar, ou em relação íntima de afeto, já que admiti-la significaria banalizar essa forma de violação a direitos humanos. Ainda, ressalta-se que o Supremo Tribunal Federal na ADIn 4.424/ DF e na ADC 19/DF considerou constitucional tal vedação.

Neste ponto, vê-se que ao realizar a leitura atenta do artigo 7º da Lei 11.340/200651 é possível enxergar com mais nitidez como se dá a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, posto que o legislador infraconstitucional se empenhou em apresentar algumas condutas que as caracterizam.

4. O CICLO DA VIOLÊNCIA

A violência doméstica, familiar, ou aquela praticada no contexto de uma relação íntima de afeto, acontece de um modo muito peculiar, vez que é cíclica, ou seja, composta por fases que se repetem. Sobre essa característica, faz-se salutar trazer à baila as palavras de SAFFIOTI52 :

50 CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo. 12. ed. São Paulo: JUSPODIVM, 2022, p. 352-355.

51 BRASIL. Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobrea Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: <http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340. htm>. Acesso em: 29 out. 2022.

52 SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, patriarcado, violência. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 84.

1. A violência doméstica ocorre numa relação afetiva, cuja ruptura demanda, via de regra, intervenção externa. Raramente uma mulher consegue desvincular-se de um homem violento sem auxílio externo. Até que este ocorra, descreve uma trajetória oscilante, com movimentos de saída da relação e de retorno a ela. Este é o chamado ciclo da violência, cuja realidade é meramente descritiva. Mesmo quando permanecem na relação por décadas, as mulheres reagem à violência, variando muito as estratégias (SAFFIOTI, 2015, p. 84).

Na citada lição é possível verificar que a autora salienta a característica cíclica da violência doméstica, familiar, ou praticada numa relação íntima de afeto, assim como aduz que a mulher, em regra, precisa de ajuda para conseguir romper esse ciclo cruel.

O ciclo de violência se inicia com a fase de formação da tensão, na qual o agente xinga, se exalta e ameaça a mulher. A segunda fase é denominada explosão e ocorre quando esse agride fisicamente a vítima. Ao cabo, há a terceira fase desse ciclo perverso, conhecida como “lua de mel”, quando o agressor roga por perdão e afirma que mudará. Contudo, depois de um tempo, tudo volta a acontecer. Neste ponto, cumpre rememorar a desvelada narrativa apresentada por Dias53:

Primeiro vem o silêncio seguido da indiferença. Depois surgem reclamações, reprimendas, reprovações. Em seguida começam castigos e punições. A violência psicológica transforma-se em violência física. [...]

Está constantemente assustada, pois não sabe quando será a próxima explosão, e tenta não fazer nada errado. Torna-se insegura e, para não incomodar o companheiro, começa a perguntar a ele o quê e como fazer, tornando-se sua dependente.

Anula a si própria, seus desejos, seus sonhos de realização pessoal e seus objetivos de vida. Nesse momento, a mulher vira alvo fácil. A angústia do fracasso passa a

53 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 28-30.

ser seu cotidiano. Questiona o que fez de errado, sem se dar conta de que para o agressor não existe nada certo. Não há como satisfazer o que nada mais é do que desejo de dominação, de mando fruto de um comportamento controlador.

[...]

Depois de um episódio de violência, vem o arrependimento, pedidos de perdão, choro, flores, promessas etc. Cenas de ciúmes são justificadas como prova de amor e a vítima fica lisonjeada. O clima familiar melhora e casal vive uma nova lua de mel. Ela sente-se protegida, amada, querida e acredita que ele vai mudar.

Tudo fica bom até a próxima cobrança, ameaça, grito, tapa...

Forma-se um ciclo em espiral ascendente que não tem mais limite. (DIAS, 2022, p. 28-30).

Como se vê, Dias (2022)54 explica de forma minuciosa cada fase do ciclo da violência, inclusive ressalta que se trata de um espiral ascendente, na medida que o intervalo de tempo entre as fases diminui e a intensidade da violência aumenta. Sob essa perspectiva:

Há um escalonamento da intensidade e da frequência das agressões, que depende das circunstâncias da vida do casal. Não obstante as variáveis (circunstâncias da vida do casal), já se constatou que a repetição cíclica das etapas tende a fazer com que a agressão seja cada vez mais grave e habitual (BIANCHINI; BAZZO; CHAKIAN, p. 117)55

Com efeito, verifica-se que quanto mais vezes o ciclo se completa, mais risco a vida da vítima está correndo, porque a intensidade da violência só aumenta com o tempo e, em muitos casos, culmina na prática do crime de feminicídio, previsto no artigo 121, § 2º, inciso VI, do Código Penal.

54 DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça. 8. ed. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 30.

55 BIANCHINI, Alice; BAZZO, Mariana; CHAKIAN, Silvia. Crimes contra mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Feminicídio. 4. ed. São Paulo: Juspodivm, 2022, p. 117.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante da complexidade que envolve a temática da violência doméstica e familiar contra a mulher, o presente trabalho buscou esclarecer o seu conceito, as suas formas, assim como destacar as suas características e peculiaridades, dado que somente quando a vítima entender que se encontra em situação de violência, terá condições de pedir ajuda para romper o ciclo. O entendimento sobre a violência de gênero praticada no âmbito de incidência da Lei 11.340/2006 precisa ser ampliado e visualizado na sua integralidade, vez que a mulher em situação de violência doméstica e familiar, muitas vezes, não sabe exatamente quais condutas podem caracterizar violência física, psicológica, patrimonial, sexual e moral. Outrossim, outra dificuldade que a mulher em situação de violência enfrenta é o fato de não entender que está presa no ciclo da violência, pois na fase da “lua de mel” acredita que o algoz realmente se arrependeu e tem a esperança de que as coisas melhorarão. Contudo, a vítima não sabe que depois de um tempo as violências acontecerão novamente e com mais intensidade.

É cediço que o feminicídio corresponde apenas à parte visível do problema, isto é, a ponta do iceberg, vez que antes de alcançar a consumação da referida infração penal, o agressor, normalmente, já praticou contra a vítima todas as outras formas de violência.

Destarte, conquanto a Lei 11.340/2006 significar um avanço na legislação protetiva das mulheres no Brasil, o enfrentamento a essa forma de violência deve continuar, pois conforme dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública56, entre os anos de 2016 e 2021, houve um aumento de 44,3% nos casos de feminicídio no país.

56 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Medidas protetivas de urgência e o princípio da vedação à proteção insuficiente: uma questão de eficácia dos direitos fundamentais da mulher. In: Fórum brasileiro de Segurança Pública. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022. São Paulo: FBSP, 2022. p. 156. Disponível em: <https://forumseguranca.org.br/ wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=5>. Acesso em: 02 nov. 2022.

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Edição 42 Ano 2023

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