REVISTA PONTO DE ESCAMBO
Equipe
Conselho Editorial Rafael de França Clara Sthel Flávia Dominges Produção Marcos Poubel Edição e Design Rafael de França Paloma Dantas Equipe de Jornalismo Clara Sthel Flavia Dominges Flávia Gabriela Costa Gilvana Pereira Pâmela Duarte Equipe de Comunicação Eduarda Ribeiro Revisão Carolina Nunes Colaboradores Letícia Santos Felipe Boaventura Andréa Gaspar
Projeto contemplado pelo
Correalização
SECRETARIA DE ESPORTE, LAZER E JUVENTUDE
PERTO DE VOCÊ
Parceria
Financiamento
Uma Realização
revistapde@escambocultural.rio
S
Editorial
egundo Raul Vaneigem, a obrigação de produzir aliena a paixão de criar e ele tinha toda razão porque não há nada pior do que tornar-se escravo da rotina e da automatização. No entanto, a dúvida reina quando se pensa na vida pessoal de sambistas como Cartola, que além de sambista fascinante, era um dos melhores pedreiros de sua região, ou Elza Soares com suas “latas d’água na cabeça” e seus seis filhos, porque se mãe também é trabalho. Se pensarmos na origem do samba remontamos à época do Brasil Colônia e sabemos que não foi possível que o capitalismo tivesse se estabelecido sem que antes houve havido colonialismo. Produzir e acumular riquezas e bens é impossível sem exploração de mão de obra. Primeiro usaram os índios. Depois arrancaram mulheres, homens e raízes da África e trouxeram para cá. Forçados a trabalhar de sol a sol, arrebentados, quebrados, violentados, escravizados, nossos antepassados construíram o país. Os donos do capital só não contavam com o fato de que eles jamais se deixariam coisificar e transformar-se em tudo aquilo que tentavam fazer deles. Mal sabiam os senhores de engenho que a força vital consumida no trabalho forçado sempre se renovava dentro dos corpos de mulheres e homens negros que nunca perderam a certeza de que eram donos de si. Tal certeza dá origem a um universo único, uma cultura de resistência em que um dos filhos é um cosmos chamado roda onde se pode ser livre para fazer samba, criar arte. A oitava edição da Revista Ponto de Escambo trata então desse universo e todas as suas estrelas que têm o seu brilho próprio. MADALENA ROSA
acompanhe a versão online no link:
issuu.com/escambocultural
.íNDICE ESCOMBOS Felipe Boaventura
O Samba
de Raiz nas mãos da nova geração
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Pâmela Duarte
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Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente
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Letícia Santos
Uma História de vida Gilvana Pereira
A Mulher e o Samba Clara Sthel Flávia Costa
Machismo e violência cantada Clara Sthel Vicky Regia
Suburbanas no Samba Fabiana Pinto
Especial PAT Clara Sthel, Flávia Domingues., Gilvana Pereira, Pamela Duarte
Sobre incoerências Andréa Gaspar
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Opinião.
felipeboaventura
ESCOMBROS Cicinha vem pulando sua amarelinha até o pé do pai. A fita vermelha em laço nos rechonchudos cachos repousa até os ombros pequenos. Ela para e observa o pai e o homem sério à porta. O ar revolve-se entre os homens, como se ali, cinzentas nuvens estivessem prestes a precipitar aguaceiros de verão. Dá para sentir o vento frio que antecede a chuva e a menina cruza os braços como para se proteger desse frio. O homem despede-se em um aceno, e a porta é fechada inquieta de rangidos.
Ciça ainda lembra do estalo dos tijolos sob o trator, o desespero do pai e a fita listrada, amarela com preto, cercando o terreno com a placa, erguida tal como um espantalho na frente do antigo portão da casa trazendo escrito "Defesa Civil do Estado".E toda vez que ela vai para o trabalho, avista da estrada que foi então construída quinhentos metros ao lado dos escombros da casa, as memórias trazidas pelo que sobrou da sua infância.
- Que foi papai, pergunta Cicinha. - Eles querem a casa e nos mandaram ir embora. - Embora? - Embora... - Mas porque querem a nossa casa? Eles não têm casa? - Eles querem passar uma estrada bem por aqui.
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O Samb mãos da
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Samba de Raiz resiste, conquista novas gerações de sambistas e ganha cada vez mais espaço na Zona Oeste do Rio. Criado há um ano, o projeto Samba do 10 surgiu numa mesa de bar comandada por jovens músicos que queriam colocar na roda o samba “mais tradicional” e movimentar a cena musical do samba que, segundo os organizadores do grupo, é carente de iniciativas coletivas. Segundo Wanderson Luna, antropólogo e criador do projeto Samba Zona Oeste, esta região sempre foi um cenário muito forte do samba e como prova disso tem a Escola de Samba Mocidade, que surgiu na década de 50, em Padre Miguel. “O maior símbolo de samba de uma região é uma escola de samba”, afirma Luna.
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Apesar disso, a Mocidade nunca teve muito reconhecimento no meio. Diferente da Portela, Mangueira e Estácio, é pouco estudada na universidade e a escola não reforça a imagem tradicional do samba. Este problema acaba refletindo na tradição do território. “Na Zona Oeste nunca houve um costume forte de rodas de samba consagradas como tem nas regiões da Zona Norte”, destaca Luna.
ba de Raiz nas nova geração por Pâmela Duarte
Com a mudança do cenário ao longo do tempo, hoje há diversas rodas de samba conceituadas atuando na região, como o Criolice e o Samba de Aurora. O projeto criado por Luna surgiu para valorizar toda a história e as evoluções do samba na região. Um filme também está surgindo, o Samba do Desterro, que vai contar as raízes do samba na Zona Oeste.
Em busca de união pra fortalecer
“Antigamente o samba era mais unido, um ajudava o outro. Hoje em dia, ninguém ajuda ninguém, essa é a realidade”, destaca Leo Guedes do Nosso Batuk, um dos grupos integrantes do Samba do 10. Alex Costa, conhecido como Bleide Bagunça, do Bagunça Carioca, conta que é muito comum no meio os boicotes entre grupos. “Por isso o samba não está num patamar alto, onde era para estar’’.
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O Samba do 10 já passou por algumas transformações e hoje é um grande coletivo formado por diversos grupos, porém, tem três destaques, O Nosso Batuk, o Bagunça Carioca e o Alto lá, onde os integrantes tem entre 20 e 25 anos e sempre tiveram contato com o samba através da família e amigos. Felipe, do grupo Nosso Batuk, conta que o avô percussionista foi quem o introduziu no samba, porém atualmente é a pessoa que menos o apoia dizendo que ele ‘’precisa procurar um emprego.’’
estão se formando e dando suporte para que eles cresçam e ‘’caminhem com as próprias pernas’’. Além disso, a ideia é criar uma nova identidade que caracterize melhor o grupo, já que o nome estabelecido foi escolhido de forma rápida, pegando uma referência no apelido do dono do bar onde tudo começou, como um pretexto para colocar o projeto em prática.
‘’Hoje em dia, o samba não está dando lucro, não está sendo bem visto, as pessoas não veem o samba como trabalho, veem como divertimento. Elas precisam reconhecer o samba e os músicos como trabalho’’, defende Leo Guedes. No próximo ano, O Samba do 10 vai se transformar em um projeto maior. Com o coletivo estabelecido, o principal objetivo é expandir, trazendo grupos que
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‘’A gente só toca música velha, é a galera nova fazendo coisa de velho. Todo lugar que a gente vai só ouve música nova, já que lugar nenhum vai tocar o que a gente quer que toque, a gente faz, seja na rua, seja em qualquer lugar.’’
Nem melhor, nem pior,apenas uma escola diferente por Letícia Santos
Salgu eiro a quad rrasta ra e multid se to ões p rnou ara s ponto ua turíst ico n o Carna val
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odo mês de Carnaval, milhares de turistas desembarcam no Rio para festejar o que talvez seja a celebração mais genuína de prazer e diversão comemorada entre os cariocas. É evidente, que a festividade espalha-se por todas as regiões do Brasil, cada qual com sua individualidade, mas no Rio podem-se perceber gigantescos encantamentos e paixões. Querida entre as escolas do grupo especial do carnaval do Rio, a Acadêmicos do Salgueiro, assim batizada em homenagem ao morro onde nasceu, alegra os expectadores com sua energia e sua bateria “furiosa”. No morro do Salgueiro, o carnaval era muito celebrado. Todos os anos diversos blocos saíam às ruas para desfilar pela Praça Saens Peña e participar da batalha de confete na Rua Dona
Zulmira. Nos anos 30, Dona Alice da Tendinha, moradora do morro, organizou uma comissão julgadora para avaliar e premiar os melhores desfiles. Após um tempo os blocos se uniram formando três escolas de samba - a Azul e branco, a Depois eu digo, e a Unidos do Salgueiro. A fusão dessas três escolas deu origem, em 1953, a Acadêmicos do Salgueiro que conhecemos
Agencia O Globo
hoje. Essa união foi necessária para que o povo descesse para a avenida com mais força, não tão pulverizado e para fortalecer o carnaval do morro frente às grandes escolas já existentes na época, como a Deixa falar (atual Estácio de Sá) e a Portela. O ano do surgimento do Salgueiro coincide com o fortalecimento das escolas de samba como um todo. A ascensão do samba como um ritmo genuinamente brasileiro faz com que as escolas de samba aflorem, e ainda com pouco tempo de existência, passem a ser “tradicionais”, a verdadeira voz do povo. Em 1959, Dirceu Nery e Marie Louise Nery começaram uma revolução estética nas escolas de samba trazendo um enredo mais
Agenci lobo a O G
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O morro do Salgueiro em janeiro de 1958
simples para os desfiles. Até então os enredos abordavam temas grandiosos ligados aos generais, as grandes vitórias épicas nas guerras, a personagens históricos, entre outros. É a partir desse momento que começa a surgir o diálogo entre a classe média intelectualizada com o morro. O salgueiro começa a trazer para as avenidas enredos diferenciados, baseados em personagens até então marginalizados, como os negros. A visualidade e o novo discurso de enredo proposto pela escola serviram de inspiração para o lema, o seu “Nem melhor, nem pior, apenas uma escola diferente”.
Embora esses novos enredos tenham trazido mais visibilidade para uma cultura que sempre foi muito inferiorizada perante a sociedade, o “preço” por esse reconhecimento, foi ceder um pouco de sua própria cultura a outra parcela da sociedade, dita mais rica e mais “culta”. É engraçado se deparar hoje com preços absurdamente altos para assistir a um desfile do grupo especial de escolas de samba se levar em consideração o contexto de surgimento dessas escolas e como eram feitos seus desfiles. O Salgueiro, assim como muitas outras escolas, desceu do morro para o asfalto e, embora não tenha se despren-
dido totalmente de suas raízes, se distancia muito hoje do que costumava ser. No morro do Salgueiro, foi criado um espaço cultural em homenagem a um dos maiores fundadores e influenciadores da escola, Casemiro Calça Larga. Calça larga promovia festas no morro, mas se comportava também como líder comunitário quando necessário. O espaço que leva seu nome serve como um ponto de encontro para quem curte um samba de raiz, mas, além disso, serve também para mostrar às pessoas o berço da escola que hoje encanta e agita foliões na avenida todo carnaval.
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Uma história de vidas
por Gilvana Pereira
Imagine um velhinho de 100 anos, bem vivido, que já foi a diversos lugares do mundo. Sempre alegre, contagia as pessoas por onde passa. Estamos falando do Samba.
império fez com que o povoamento do Rio de Janeiro se desse nas imediações da zona portuária e centro da cidade. Em 1888, a Lei Áurea decretou o fim da escravidão, mas não ofereceu garantias de inserção social como trabalho e moradia aos que tinham sido escravizados. Em sua maioria negra asceu na Bahia e com e mestiça, a população do Rio poucos anos de vida cresceu e as primeiras favelas se veio para o Rio de Janei- formaram. ro. Foi exatamente no Rio que ele criou suas raízes e deu os A cultura negra presente nas faprimeiros passos para a car- velas trazia consigo uma herança reira de sucesso. não só escrava, de luta e religiosa, mas também musical. As ‘Tias baiaO ritmo sofreu influência de nas’ abriam suas casas para evendiversos outros até chegar ao tos que se estendiam por horas e que conhecemos atualmente. contribuíram para o segundo nasNo início era uma dança co- cimento do samba. mum aos escravos libertos do Recôncavo Baiano, hoje se tornou esse centenário de sucesso que esbanja vida. A migração para a capital do
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Casa de bambas
Na casa de uma das tias mais conhecida, Tia Ciata, os primeiros sambistas de grande conhecimento musical, se reuniam com pessoas influentes da época. Foi na casa de dona Hilária Batista de Almeida que composições de samba foram feitas, sendo a primeira delas registrada em 1916. Assinada por Donga e Mauro de Almeida, ‘Pelo Telefone’ traz características diferentes do que conhecemos atualmente como samba. Sucesso no carnaval de 1917, a composição abriu portas para que o ritmo se propagasse pelas ruas. No bairro do Estácio de Sá, o samba de raiz desenvolveu-se e as escolas de samba nasceram: Os chamados ranchos carnavalescos começaram a tomar forma por volta de 1922, mas só
em 1928 é que a “Deixa falar”, primeira escola de samba, foi fundada. Organizadas de forma simples, com poucos integrantes e pequenos carros alegóricos, a competição entre as escolas não era o mais importante, mas sim a diversão no carnaval. Foi na década de 30 que o samba ganhou força, tomando conta de bares e morros, sendo o rádio responsável para que ele também chegasse aos lares. A Era de Ouro do Rádio trouxe o Samba a um novo patamar, entretanto também se iniciou um processo de apropriação cultural. Sambistas de classe média contribuíram para que o samba
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cavo Baiano, foi listado sob as características do acontecimento popular que combina música, dança e poesia. saísse dos morros e fosse para o asfalto. E por que não dizer, para o mundo? No entanto, a população negra continuou marginalizada. Foi através dessa apropriação que foram surgindo variações como samba canção, samba choro, samba exaltação, samba de breque e até ritmos que se basearam nele como a bossa nova. Tornou-se símbolo nacional no Estado Novo e sambas patrióticos foram entoados como expressão da brasilidade, tanto por brasileiros, como por estrangeiros que, nessa época já tinham acesso ao samba ao redor do mundo. Em 2008, o samba de roda foi inscrito na Lista Representativa do Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco. Com base na sua origem no Recôn-
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As matrizes do samba do Rio de janeiro, no entanto, foram registradas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2007. “O documento que torna o Samba patrimônio cultural foi construído pela equipe do Museu do Samba/ Centro Cultural Cartola, em um trabalho maravilhoso que embasou o registro do samba de partido alto, samba enredo e samba de terreiro. A história do povo carioca passa pelas vivências dentro e fora dos sambas da cidade. Os sambistas da Pedra do Sal, a primeira escola de Samba no Estácio, o povo de Oswaldo Cruz, a inovação e a força do povo da Serrinha, a historia da negritude no Salgueiro, as rodas de Samba do subúrbio carioca, o Carnaval da Sapucaí. Espaços e manifestações que fazem parte da história de vida da cidade do Rio de Janeiro, que leva em
consideração a herança africana e dialoga com a história das pessoas” explica Julio Moraes, articulador cultural do Instituto EIXORIO. Influenciado e influenciador, o samba, uma das nossas heranças africanas, segue se reinventando e criando com novos artistas. Em 100 anos, de uma vida com altos e baixos, ele permanece contagiando sem perder o gingado. Na cidade do Rio de Janeiro, continua construindo histórias e deixando um legado de grande expressão cultural que teve início com os nossos (tataravós) negros, nas favelas. Criminalizado e marginalizado, originalmente sofreu preconceito, mas se expandiu a ponto de ser ouvido além-mar.
A ORIGEM DA PALAVRA Até hoje o termo samba ainda não tem sua origem claramente definida. Os pesquisadores aceitam três possibilidades. A primeira é com base no quimbundo, língua angolana onde ‘sam’ significa dar e ‘ba’ significa receber. A segunda possibilidade seria a palavra zamba, um termo árabe que chegou no Brasil após a invasão do mouros à Península Ibérica. Já a terceira, é de que seria uma derivação de ‘semba’, palavra africana que significa umbigada e que tem a ver com ‘massemba’, uma dança do interior angolano caracterizada por movimentos de encontro dos corpos. Uma Rede Carioca de Rodas de Samba foi criada para apoiar cerca de 40 rodas de samba que acontecem todo mês pelos bairros cariocas. O reconhecimento do samba e das rodas de samba como parte da cultura do Rio de Janeiro, passa pelas mãos do EIXORIO, sambistas e produtores culturais que trabalham com samba por toda a cidade.
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A MULHER E O SAMBA por Clara Sthel e Flávia Costa
Reportagem especial mostra que questões de gênero ainda precisam avançar e que muitas vezes a violência contra a mulher é cantada sem perceber
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mulher negra teve um papel fundamental na resistência do samba e são lembradas até hoje, como Tia Ciata com as alas das baianas no nosso famoso carnaval.
A
música popular reflete os valores sociais de diferentes ordens, independente do gênero (samba, rock, bossa nova, sertanejo, rap, reggae entre outros). Em se tratando de samba, a mulher em boa parte das letras está em segundo plano. Nas rodas de samba, as mulheres ainda não são as vozes principais e nas quadras as escolas de sambas ainda é delas o papel de passistas. Mas dentro da história desse gênero tão popular, há mulheres que não só resistiram, mas também representaram e hoje são imortalizadas. O samba é gênero que esteve com o negro no Brasil e, graças às mulheres negras, o samba ainda existe – e resiste. A
Entre as mulheres negras que representam o samba, Dona Ivone Lara é o símbolo: Foi a primeira mulher a participar da ala de compositores da escola de samba carioca Imperio Serrano. Dona Ivone foi fundamental para que mais mulheres pudessem se tornar intérpretes, cantoras. E deu certo. Após Dona Ivone Lara tivemos o prazer de conhecer Clara Nunes, Alcio-
Tia Ciata
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ne, Elza Soares, Jovelina Pérola Negra, Teresa Cristina e tantas outras vozes femininas nas rodas de samba. Quando falamos ou pensamos em samba, imaginamos uma roda de samba formada apenas por homens. Ainda é uma realidade. Porém, elas também estão começando a conquistar esses espaços. Um bom exemplo disso é o grupo Moça Prosa. Criado em 2012 a partir de uma oficina de percussão apenas para o público feminino, na Pedra do Sal, no bairro da Saúde, Centro do Rio. A ideia era formar um grupo de
moças que tocassem e se interessassem por samba, algo que ainda não é frequente de se ver. Para elas, a figura feminina no samba sempre existiu, porém, apenas como intérprete das letras de samba. “No samba a sua figura tinha o
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estereótipo da “diva”, a cantora bela, usada como um adorno. Mesmo atuando dentro do samba não somos vistas como sambistas. O preconceito existe. Ponto. Acredito que o nosso grupo é uma resistência porque nesses quatro anos já passamos por diversas situações. Preconceito e machismo são os maiores”, afirma Karina Isabelle, uma das integrantes do grupo, Karina Isabelle. Prova de que o grupo é uma resistência ao preconceito e, principalmente, ao machismo é que 80% de seu público é feminino. Segundo o grupo, hoje em dia, o samba está diferente de antes: nas rodas de samba, o público preferia dar mais valor ao samba masculino do que ao samba feminino. Porém, ainda há dificuldades em achar outras mulheres que fazem harmonia, mulheres que saibam tocar instrumentos musicais de percussão. Não é difícil encontrar mulheres e, principalmente, homens que
se surpreendem com suas habilidades, “A gente ainda ‘assusta’, sabe? As pessoas quando conhecem, vêm pela primeira vez no Moça Prosa, reagem assustadas: - Pô, você são boas”, continua Karina. Em uma roda de samba, quando a mulher é vista tocando algum instrumento, é comentado que ela faz o “papel do homem” no samba, uma vez que a mulher no samba é, sempre, apenas a “diva”. O grupo nos confessa que são avaliadas o tempo todo. Segundo as integrantes, durante uma roda de samba o homem pode desafinar ou tocar mal, mas a mulher não. Se a mesma
o fizer, é comentado. Para diminuir o preconceito e o estigma de que mulher não é presente no samba durante suas rodas de samba as mulheres que frequentam o samba entram no que chamam de “processo de desconstrução”: primeiro, elas chamam as mulheres para participar seja tocando os instrumentos ou cantando. O processo de desconstrução delas vai além de não tocar sambas com conteúdo sexista. Samba de Maria Já em Piedade, na Zona Norte, há outro grupo, o Samba de Maria, também formado apenas por mulheres. “Nos juntamos pra fazer o samba. No Centro tem o Moça Prosa e a gente sentia falta na Zona Norte de uma roda feminina”, conta Ana Beatriz, integrante do Samba de Maria. Diferente do público do Moça Prosa,
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onde 80% é formado por mu- va); Se eu largar o freio (Péricles). lheres, o Samba de Maria pos- As músicas foram compostas em épocas diferentes, justamente para sui um público misturado. observamos se algo mudou com o Manoela Marinho, integrante tempo. O que constatamos foi que da Orquestra Lunar, fala em de 1930 a 2016, a presença das sororidade: “Eu acho que tem mulheres nas letras de sambas canum movimento em todas as tadas por homens comprova que, áreas, não só na música das em muitas músicas o papel social mulheres se apoiarem, das mu- da mulher é único: servir o homem. lheres se olharem como irmãs, Seja como a dona de casa que como parceiras. Acho que no cuida do marido; a esposa ideal samba é super importante a que sofre violência doméstica e questão da visibilidade e a mesmo assim continua mantendo o questão da representativida- relacionamento. O que chama mais de”. Para ela, as mulheres da atenção é que o agressor natuOrquestra Lunar “também têm raliza agressão física/psicológica/ esse desejo da mulherada to- moral como forma de demonstracar, mostrar seu som” e conta ção de afetividade com a mulher. que recentemente produziu um Mostramos duas letras para Vick trabalho em que só chamou Régia, do Coletivo de Mulheres da mulheres para participar e UFRJ, escritora e membro do Conacrescenta: “Acho que é isso: selho Editorial da Revista Capitoas mulheres ocupando os es- lina. A constatação é que a viopaços, a gente reconhecendo lência é muitas das vezes cantada sem perceber e reproduzida. a competência”.
A
s letras de samba não só reproduzem narrativas machistas, elas são machistas. Partindo dessa constatação, pedimos ao Coletivo de Mulheres da UFRJ para analisar algumas letras de samba como Mulher que não dá samba (Paulo Vanzolini; Emília- Wilson das Neves); Na subida do Morro (Moreira Silva); Piranha (Bezerra da Sil-
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Machismo e violência cantada
por Clara Sthel e Vicky Regia Paracundê, paracundê, paracundê ê ô Paracundê, paracundê, paracundê ê a
Péricles Se Eu Largar o Freio (2013) Vou de casa pro trabalho Do trabalho vou pra casa na moral Sem zoeira, sem balada, sem marola Sem mancada, eu tô legal Faça sol ou faça chuva O que eu faço pra você Nunca tá bom Pago as contas, faço as compras Tudo bem, eu sei É minha obrigação Mas eu tenho Reclamações a fazer Mas eu tenho Que conversar com você A pia tá cheia de louça O banheiro parece que é de botequim A roupa toda amarrotada E você nem parece que gosta de mim A casa tá desarrumada E nem uma vassoura tu passa no chão Meus dedos estão se colando De tanta gordura que tem no fogão Se eu largar o freio Você não vai me ver mais Se eu largar o freio Vai ver do que sou capaz Se eu largar o freio Vai dizer que sou ruim Se eu largar o freio Vai dar mais valor pra mim
“O problema dessa música é que reafirma as divisões de tarefas numa lógica sexista. Enquanto o homem é o provedor da casa, que paga as contas e coloca comida na mesa, a mulher é responsável pelos afazeres domésticos.Na música o poeta diz que se a mulher não cumprir tais afazeres, ele vai largá-la, o que significa que se a mulher não se encaixa nas caixinhas da sociedade, ela não é digna de estar em um relacionamento heterossexual”
Bezerra da Silva
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Piranha – (década de 70) Piranha não dá no mar, piranha Somente na água doce se apanha Tá ouvindo piranha? (...) Não quero mais para mim Aquela falsa mulher Me comeu a carne toda Deixou meu esqueleto em pé E eu que fui tolo de uma crioula Desses tipo violão Ela jogava baralho de ronda Bebia cachaça e brigava na mão (...) Eu só sei que a mulher é igual a cobra Tem veneno de peçonha Deixa um rico na miséria E um pobre sem vergonha (...) A mulher de uns e outro Quando ele vai viajar Ela dá-lhe um beijinho na testa E depois bota outro em seu lugar Eu só sei que a mulher que engana o homem Merece ser presa na colônia Orelha cortada, cabeça raspada Carregando pedra pra tomar vergonha
Machismo e violência cantada
“O autor se refere à mulher como "piranha" devido à demonstração da sua sexualidade. Isso é muito comum de acontecer em uma sociedade estruturalmente machista. O homem é reverenciado por sua sexualidade enquanto a mulher é sempre julgada e condenada socialmente. Se a mulher for negra, esse cenário é pior ainda já que mulheres negras, desde a época da escravidão, são hipersexualizadas e sempre tiveram sua existência associada a atender os desejos sexuais de homens brancos de forma consentida ou não. Como elas são maus
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Machismo e violência cantada
sexualizadas que as outras mulheres, é esperado pela sociedade que elas só sirvam para o sexo e mais nada, o que é uma das faces mais cruéis do racismo associado às mulheres negras porque nos coloca no lugar de objetos sexuais. O uso do termo criola para falar dessas mulheres também é errado e racista já que esse termo não é reconhecido pelo movimento negro porque é fruto de uma política estatal de embranquecimento e falta de reconhecimento dessas mulheres pelo que elas são: negras. Não somos criolas, morenas nem mulatas, somos negras. Além disso, os versos finais da música têm uma conotação explicitamente punitiva para a mulher que não agradar o homem ou fugir dos seus papéis de gênero. Segundo a música, ela merece ter o corpo todo marcado e exposto para que todos saibam o que ela fez. Essa lógica vem desde a Idade Média e, infelizmente, ainda está presente na legislação de alguns países mais conservadores. ” Observa, Vick Régia. Os gêneros populares: Samba, funk e rap, sofreram (e sofrem) preconceito da elite por serem músicas de periferia e feita por pessoas de origem majoritariamente negra e pobre. Vale ressaltar que não é uma exclusividade do samba ter letras machistas.
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Suburbanas no samba por Fabiana Pinto
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Com episódios de 12 minutos cada, a websérie conta com depoimentos das sambistas como Simone Costa, de Honório Gurgel, integrante das rodas de samba Cabeça Branca de Realengo e Mafuá no Quintal, que relata a inserção das mulheres nas rodas de samba e os desafios que isso representa para as mesmas.
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O samba é machista. É muito legal para o músico ter uma participação feminina na roda. Mas quando a mulher se torna atuante, ganhando e tendo que dividir o mesmo cachê, quando a mulher toca um instrumento e participa… Aí começa a incomodar.
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C
riada em 2015 por um grupo de amigos frequentadores de rodas de samba da Zona Oeste carioca, a websérie “Jovelinas: Mulheres Suburbanas no Samba” procura destacar a importância das mulheres no mundo do samba para além do que já conhecemos. Com histórias de sambistas conhecidas nas principais rodas de samba de bairros das Zonas Norte e Oeste da Cidade e abordando temas como representatividade, religião, ancestralidade, machismo e preconceito, a série promete ainda retratar muitas histórias inspiradoras.
conta Simone no primeiro episódio onde também relata sua percepção da transição do samba nos últimos anos, a não marginalização do mesmo e o fato do empoderamento negro e de mulheres vir colaborando para que cada vez mais sambistas possam surgir, trabalhar e serem reconhecidos como profissionais.
mulheres!”. Segundo Camilla Pizzolotto, o bordão de Andreia faz muito sentido para as rodas já que “as mulheres sempre ocu-
O projeto que busca mostrar a vivência da mulher suburbana no mundo das rodas de samba se inspirou em Jovelina Pérola Negra e também no bordão da sambista Andreia Caffé, que em suas apresentações sempre vibra com um “O samba é das
param papéis secundários, de fora da roda. Mesmo quando a mulher ocupa um espaço de visibilidade dentro da roda, ainda assim é vista com certo desdém”. Camila exemplifica momentos em que as mulheres atuantes em rodas de samba não só vivenciam
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legitimidade no mundo do samba enquanto mulher e destaca a importância das mulheres ocuparem todos os espaços possíveis. Além disso, para Nerys, a criação de rodas de samba em locais na Zona Oeste foi importante para que populações locais não precisassem mais se locomover pela cidade para ter seu momento de lazer. o machismo como também resistem:
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Coisas básicas como pedir tom, dar alguma ordem ou qualquer outra coisa que seja, é mais difícil quando se vem da boca de uma m u l h e r.”
Jovelinas: Mulheres na frente e atrás das câmeras
O segundo episódio da série conta a história da sambista Renata Nerys, de Padre Miguel, que relembra momentos onde teve suas ordens ignoradas apenas por ser mulher... Nerys, como é conhecida, fala sobre a dificuldade de se ter
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Com cunho empoderador para
mulheres, o cenário por trás das câmeras da série não poderia ser diferente. O projeto conta com uma equipe formada por Fernanda Quinteiros e Luiza Drable na edição e fotografia, Diogo Santos na produção, Camila Pizzolotto e Leando Vieira no roteiro e direção e, Silvia Abreu na pós-produção.
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No audiovisual não é diferente. Só olhar ao redor e ver o quanto de produções cinematográficas são dirigidas por homens e quantas são por mulheres. Mulheres ocupam cargos que parecem ter sido destinados a elas, como o de produção. O número de produtoras mulheres quando comparados a outros cargos como direção ou edição, por exemplo, é bem maior.
“Acreditamos que mostrar mulheres ocupando funções diversas no mundo do samba pode ajudar, mas entendemos que essa batalha [é necessária e] já está sendo travada” concluem as jovens.
saiba mais:
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Fernanda Quinteiros revela a dificuldade de se trabalhar atrás das câmeras: Apesar do cenário, para ela essa realidade vem mudando. “A internet é uma boa incentivadora da mudança, já que a
facebook.com/jovelinas youtu.be/SfBnzJYPHBs
partir dela as mulheres de diferentes setores têm acesso umas às outras. É na luta diária que se muda alguma coisa.”, observa Fernanda. Apesar de recente, as criadoras da série acreditam no potencial da mensagem que tem a passar
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.O que é O PAT (Plano de Autonomia Territorial) é um edital que apoia financeiramente projetos dos(as) participantes do Programa Caminho Melhor Jovem em seus territórios. O objetivo é contribuir para que os(as) jovens desenvolvam seus potenciais individuais em projetos coletivos que colaborem para o desenvolvimento local.
.Sobre esse projeto A Revista Ponto de Escambo é um meio de divulgação e valorização do artista local que muitas vezes não possui espaço para divulgar sua arte, seja ele um escritor, um grafiteiro, um pintor ou qualquer um que produza não só arte, mas também cultura. A ideia é divulgar e por vezes produzir esse artista para que possa viver da sua arte, além de servir de incentivo para outros grupos artísticos fazerem o mesmo. O projeto também conta com um Sarau para a troca de network e apresentações artísticas.
Projeto contemplado pelo
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Correalizaçăo
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Parceria
Financiamento
Pelo pertencimento e valorização de quem mora na CDD
por Gilvana Pereira
A Cidade de Deus tem cerca de 37 mil habitantes e 26% desses, são jovens. Marcos Vinícius da Silva Santos tem 20 anos e é morador da CDD, como é popularmente conhecida no Rio de Janeiro. A realidade dele e de tantos outros na comunidade passa por uma história de ocupação do lugar lá pelos anos 60 e um filme de repercussão internacional que o converteu em símbolo de pobreza e violência urbana em 2002.
A ideia de favelas violentas e perigosas sob o regime de um crime organizado e impune foi generalizada, transformando a CDD em referência de julgamentos negativos. “Existe uma desvalorização no mercado de trabalho, dificuldade nas universidades e vários outros lugares. Uma escola no bairro da Taquara não aceita jovens da Cidade de Deus.” A declaração de Marcos Vinícius confirma o preconceito vivenciado.
Uma política de remoção das favelas situadas na zona sul da cidade foi implementada em 1960 e o governador Carlos Lacerda autorizou a construção de um grande conjunto habitacional na baixada de Jacarepaguá. Indivíduos oriundos de 63 favelas distintas ocuparam o local que veio a se transformar em uma favela horizontal.
#Eu Me Amo Assim
De lá pra cá, o bairro acabou virando tema de uma trama que saiu de um livro e foi aclamado nas grandes telas de cinema dentro e fora de nosso país. A fidelidade da obra é que não foi tão aclamada pelos moradores da Cidade de Deus.
Nesse contexto, ele buscou fazer diferente. Jovem e negro, ao perceber a desvalorização, criou um projeto para elevar a autoestima de jovens negros de 15 a 29 anos da sua comunidade. O #Eu Me Amo Assim visa quebrar barreiras e disponibilizar cursos de design de sobrancelhas, barbeiro, manicure e libertação capilar. “O curso é para os jovens se autoembelezarem. São aulas para saber como fazer, mais do que se profissionalizar.” Marcos conta que a procura foi além do que se esperava. Para o curso de design de sobrance-
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lhas, por exemplo, foram feitas 200 inscrições em apenas 1 dia para uma turma de 36 vagas. Ele explica que a procura é grande, porém a capacidade é menor. “Todos estão buscando uma capacitação para o mercado de trabalho porque hoje em dia é difícil encontrar esse tipo de oportunidade. Os jovens querem fazer algo, querem fazer parte.” O curso de barbeiro veio para uma demanda de jovens que acabam ficando sem oportunidade e recorrendo, na pior das hipóteses, ao tráfico. Para Marcos Vinícius, o ofício de barbeiro é uma maneira dos rapazes ganharem dinheiro, mas além disso, eles podem cortar o cabelo dos filhos e parentes gerando uma economia na renda familiar. Sem saber nada sobre a área de projetos culturais, Marcos diz ter se inserido no meio sociocultural após perceber as necessidades do seu entorno. Usou a criatividade na sua comunidade. Ele decidiu fazer projetos em 2011 quando viu um edital que disponibilizava 10 mil reais. “O primeiro projeto que criei foi pra idosos. Fui sem saber nada. Não sabia nem mesmo pegar um ônibus para ter acesso a outras áreas da cidade, conhecer a circulação da cultura. Eu não entendia o que era cultura, mas vi esse edital aberto e as pessoas
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comentando.” Após o primeiro projeto para idosos, onde fornecia massoterapia, teatro, ginástica e diversas outras atividades para o bem-estar da terceira idade, Marcos não parou mais. “Me adaptei e vi que era o que eu realmente queria, a minha área. Uni o útil ao agradável e comecei a fazer.” As crianças foram alvo do segundo projeto que visava a valorização de brincadeiras tradicionais, deixando de lado eletrônicos e levando as crianças para a rua, onde ele considera ser o lugar delas. Neste terceiro e mais novo projeto, um dos cursos para jovens é o de libertação capilar. As aulas servem para auxiliar no tratamento de cabelos crespos e cacheados, ensinando como tratar, cuidar, trabalhando principalmente a aceitação de amar suas características. “Lembro que no meu primeiro edital houve uma dificuldade enorme para fazer com que as pessoas participassem do projeto e se envolvessem com ações que temos na Cidade de Deus. Mas esse quadro mudou. Hoje em dia as pessoas querem participar de tudo, tanto que o número de inscrições para os cursos que apareceram aumentou de 50 para mais de 200. Não é possível ter estrutura para atender a todos.
A maioria das ações existentes não conseguem dar o suporte necessário para tantos jovens.” Marcos diz que ainda faltam projetos para atender os jovens moradores de comunidade tão rica de diversidade e que caminha na busca por conhecimento. Na Cidade de Deus, as organizações sociais formadas por moradores locais têm uma atuação significativa. Um dado relevante é que 26% dos moradores afirmam participar de práticas sociais e comunitárias, número expressivo para uma comunidade marginalizada e discriminada. Em uma área onde 72% dos moradores são negros, projetos como os de Marcos Vinícius trazem crescimento pessoal e social. Para ele, quanto mais projetos melhor. Ainda quer realizar outros três e continuar contribuindo para o bairro em que é morador. Um lugar de resistência e crescimento. Uma cidade de Deus que se ama assim.
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CDD EM CENA UMA OPORTUNIDADE DE ENCONTRAR O PRÓPRIO CAMINHO
por Flávia Domingues
João Davi de Souza, 17 anos, sempre sonhou desde a infância em atuar. Assistia a peças de teatro e sempre sentia que ali era seu lugar, mas a oportunidade nunca chegava. Até que conheceu o CDD em Cena, projeto que forma atores e produtores de audiovisual na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio. João já atuou em Hamlet, os Saltimbancos e várias outras montagens produzidas pelo projeto. Para o jovem, fazer parte do CDD em Cena mudou sua relação com a vida e com a família. “Consegui me encontrar no teatro e poder ser quem sou. Venho de uma família muito tradicional e vejo que eles estão se desconstruindo cada vez mais. Isso se deve ao teatro”, destaca. Motivação para seguir adiante O CDD em Cena na vida de Nathalie Pereira, 29 anos, chegou num momento em que a jovem estava perdida e sem motivação. Precisava de um gás na vida. Ela soube do curso e se inscreveu com o intuito de aprender algo diferente. Também queria se sentir valorizada na comunidade em que vivia. “Chegando encontrei um grupo
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muito criativo e com vontade de crescer em meio a tanta violência e descaso”, relembra. Hoje, Nathalie vê a vida com outros olhos, está mais feliz e confiante. Era o incentivo que faltava para colocar a vida para frente.
No projeto, ela conta que despertou habilidades que nem sabia que tinha, como produzir, cuidar do figurino, make, incluindo a capacidade de criar tudo isso com pouco recurso para criar. Além, é claro, de mostrar o que o CDD tem de bom, de valor!
CDD sob novo olhar
O CDD em Cena nasceu em 2012. Criado pelo soteropolitano Mateus Paz que chegou ao Rio no mesmo ano, buscando a conclusão do Mestrado em Cinema encontrou acolhida na casa de uma tia na Cidade de Deus. A partir dos ensaios que ocorriam na Laje de Conceição Notes, Mateus resolver apostar em algo que valorizasse a comunidade. Nasceu assim, ainda em 2012, o CDD em Cena que se propõe a revelar talentos da comunidade por meio de atividades gratuitas de formação de atores, produção e edição de vídeos, operação de câmera, cinegrafia e cabo, além de outras atividades do setor, de acordo com as demandas do projeto.
O CDD em Cena foi contemplado no Plano de Autonomia Territorial (PAT) 2016, um edital que apoia financeiramente projetos de jovens de 15 a 29 anos que visam melhorar o desenvolvimento local. O projeto dele foi um dos vencedores da Zona Oeste.
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O barbeiro que está mudando a vida dos jovens no Fumacê
Terça-feira de sol escaldante em Realengo. Em umas das entradas do conjunto de prédios verdes da favela do Fumacê, nos deparamos com a Barbearia Charlie Brown. São duas cadeiras, um tanque, TV, dois ventiladores, espelhos e o símbolo da seleção brasileira pintado na parede. Observando pela porta vemos que um jovem trabalha cortando o cabelo de um menino e outros dois esperam por sua vez. Minutos depois chega o dono da barbearia, Marcelo Victor, de 30 anos. Sua história com a navalha começou aos 14 anos, quando aprendeu apenas olhando um barbeiro local trabalhar. Nascia ali, além de um ofício, o embrião de um projeto que está mudando a realidade de muitos jovens: a Arte do Corte.
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por Clara Sthel
No início, ele cortava os cabelos dos primos de cobaia, com uma máquina emprestada por uma vizinha, em troca cortava os cabelos dos filhos dela de graça. “Eu não tinha dinheiro para fazer um curso, então comecei a cortar na rua. Na maioria das vezes não era dinheiro o pagamento recebido e sim uma troca de favores. Foi assim que eu consegui a minha primeira máquina”, conta Marcelo. Depois de um tempo cortando cabelo na rua, um amigo o chamou para trabalhar em parceria em sua barbearia. Ele foi. Mas acabou não dando certo, adolescente na época. Marcelo decidiu que queria ter o próprio barbeiro para trabalhar com mais independência e flexibilidade de horário. Encontrou então o espaço onde ele trabalha até hoje, fruto de uma negociação: “A dona daqui (apontando para a barbearia) me deixou usar o espaço e em troca eu pagaria as parcelas do paneleiro que ela estava pagando, na época a parcela custava 60 reais”, revela. Na favela, cortar o cabelo toda semana é um hábito comum, mas
algumas mães não conseguem o dinheiro para custear os cortes semanais dos filhos. Pensando nisso, Marcelo cria pacotes mensais mais baratos focados nesses grupos: “Um corte eu cobro no mínimo 10 reais, uma mãe que tem 2 filhos gasta 20 reais só para cortar uma vez no mês. Então eu faço um pacote de 4 cortes por 25 reais mensais e ela pode vir com as crianças mais de uma vez no mesmo mês”, explica. Formando uma aprendizado
comunidade
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Como forma de retribuir a ajuda que recebeu no início da carreira, o barbeiro resolveu que ensinaria outros meninos da área a cortar cabelo. “Eles (os jovens) passavam o período da adolescência comigo na barbearia e depois iam para o quartel seguir a vida deles”, explica. Já outros permaneceram na profissão e hoje trabalham com isso.
permanecerem indo à barbearia é ajudar eles com grana até eles conseguirem seus próprios clientes. Uma espécie de auxílio custeado pelo próprio bolso. Quando perguntado sobre o porquê de ajudar jovens locais ele explica: “Nasci em comunidade, sofri em comunidade, meu pai faleceu quando minha mãe teve o sexto filho. Eu tinha 3 anos. Sempre admirei as pessoas que me ajudaram aqui. Muitas cuidaram de mim, mesmo não podendo muito”. “Eu abraço mesmo as crianças daqui, chamo atenção, sei quem é a mãe, são todos meus amigos. Aqui existe uma ausência de pai muito grande, por causa da criminalidade alta muitos homens morrem”.
Muita gente questiona se Marcelo está criando concorrência para ele capacitando jovens com uma profissão muito popular em favelas no Rio de Janeiro. Ele acredita no contrário: “Não estou fazendo concorrentes, estou criando um mercado de trabalho pra quem não têm”. “Eles podem abrir 50 barbearias por aqui se quiserem, porque eu já tenho os meus clientes”, completa. Outra forma de engajar os meninos a
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Barbeiros profissionais na favela A partir de toda essa trajetória nasceu o projeto Arte do Corte, um curso de barbeiro com duração inicial dois meses, com aulas três vezes na semana, onde serão ensinados cortes de cabelos. O pequeno salão não contém mais os ideais de Marcelo: “Eu sou um rapaz grande trabalhando em um espaço pequeno, tô procurando crescer para dar espaços para outros virem junto comigo”, declara. Foi a partir dessa demanda que o barbeiro e mais um amigo se inscreveram com o projeto Arte do Corte, no Plano de Autonomia Territorial (PAT) 2016, um edital que apoia financeiramente projetos de jovens de 15 a 29 anos que visam melhorar o desenvolvimento local. O projeto dele foi um dos vencedores da Zona Oeste: “Eu já tinha o projeto em mente, já estava executando ele sem dinheiro, agora poderei ir para um espaço maior”, afirma. A verba só foi repassada em abril de 2017. Com o dinheiro Marcelo irá comprar navalhas, máquinas, bancadas, tesouras e cadeiras e um imóvel maior para atender mais meninos do bairro.
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Marcelo, cabeleiro e empreendedor de periferia
Racismo se combate com conteúdos criativos por Pâmela Duarte
A Lei 10.639/03 torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. Partindo desse princípio, nasceu a Jornada Teatro-Corpo, um programa de 90 horas de artes cênicas oferecido para escolas públicas e particulares. O programa busca não só refletir sobre os valores civilizatórios afro-brasileiros como também colocá-los em prática a fim de aumentar o desempenho dos estudantes e combater o racismo e a discriminação dentro das escolas. ‘’A gente não tem a pretensão de achar que vamos acabar com o racismo e nem com a discriminação, mas se a gente conseguir criar nas escolas um espaço mais humano e acolhedor para que as pessoas possam ter a sua diversidade étnico-racial, sexual e de crença respeitada, já damos dá por cumprida a nossa tarefa. O nosso trabalho realmente é criar um espaço de dignidade e a gente acha que tá conseguindo fazer isso’’ A aplicação do programa se dá através de técnicas especificas voltadas para a questão da aprendizagem que trabalham 10
temas: Vitalidade, Territorialidade, Memoria, Ancestralidade, Espiritualidade, Comunitarismo, Oralidade, Musicalidade, Ludicidade e Circularidade. 10 aulas são introdutórias, 10 são intermediárias e 10 avançadas. Quando o estudante termina o módulo avançado, ele integra o elenco na temporada do espetáculo montado pelo Movanos, que dura cerca de um mês e fica em cartaz nos fins de semana. Em todos os temas há um diálogo com três dramaturgos: Viola Spolin, que aborda a questão da evasão escolar, Paulo Coelho, que trata da criatividade através das artes cênicas, e Augusto Boal, que tem um trabalho reconhecido in-
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ternacionalmente voltado para a cidadania, com o uso das artes para a questão do direito e dignidade. Como legado deixado pelo Movanos, os alunos que estiveram em cena no espetáculo montam núcleos em suas escolas, com a supervisão de Hudson e L Fortunato. O primeiro, diretor artístico e o segundo, dramaturgo e produtor dentro do Movanos. Através da orientação deles, os jovens criam um grêmio estudantil para que ao longo do ano produzam, por eles mesmos, eventos culturais em suas escolas voltados para a cultura afro. Na medida em que a bilheteria desses eventos gera lucros, parte da venda de ingressos é revertida em melhorias para as instituições de ensino. ‘’A primeira coisa que percebi de mudança nos alunos é a sensação de que eles se veem como úteis, porque muitos deles têm talentos, mas acabam não sendo absorvidos, já que o pai e a mãe falam ‘’ah meu filho, a vida de artista no Brasil não vai dar em nada’’. Só que aí vem o grupo com uma proposta comercial para a escola e muda tudo’’, conta L Fortunato.
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O sonho do Movanos é um dia não existir mais. Através de algumas pesquisas feitas por Hudson produzindo trabalhos acadêmicos dentro da linha da discriminação durante o tempo na faculdade, percebeu-se que a escola ainda é um lugar racista e, segundo ele, se a escola é racista, a sociedade também é. ‘’O racismo não é só uma questão racial, ele também tem questões correlatas. Por exemplo, se a pessoa é negra e é homossexual ou é negra e moradora de uma comunidade carente ela é mais discriminada ainda, e os estudantes têm todos esses atravessamentos de preconceito quando vem para jornada. A nossa participação na vida deles é fazer com que percebam que o erro não tá na cabeça deles, tá na cabeça das pessoas que têm preconceito e os deixam sem oportunidade, e a gente tá conseguindo fazer essa pequena transformação na percepção deles, dando oportunidade e esperança. Acho que é isso nosso trabalho.’’
2) Na micro conjuntura, você vê uma criança vendendo bala no sinal. Você é contra o trabalho infantil e você sabe que comprar dessa criança significa perpetuar o trabalho infantil, mas você não sabe se essa criança vai chegar em casa com segurança se não levar o dinheiro do dia. Então, na micro conjuntura você compra a bala. Na macro conjuntura, você luta a favor de políticas de inclusão da criança na escola, você defende programas de auxílio a famílias vulneráveis, você procura compreender a lógica da exploração infantil e tenta se alinhar a práticas efetivas de erradicação da miséria e, não, a políticas caritativas.
( P o r A n d r é a G a s pa r )
1) Na micro conjuntura, você pode ter estudado numa escola de classe média alta, ter ouvido – quase sempre sem concordar – a opinião de seus colegas de classe, ter ouvido a diretora entrar em classe e pregar contra a greve de motoristas de ônibus numa escola onde a grande maioria ia para escola com motorista particular ou de carro com os pais. Na macro conjuntura, você tenta se distanciar disso e tenta não reproduzir o mesmo discurso elitista e autoritário.
Sobre incoerências:
3) Na micro conjuntura, você pode estar numa cilada afetiva da qual não consegue sair, nem tirar seus filhos. Você pode estar reproduzindo a realidade afônica das gerações de mulheres que te precederam. Na macro conjuntura, você não condena mulheres que estejam em condições semelhantes a sua. Você se solidariza. Você não diz que a culpa é da mulher que não se comporta bem, nem se veste com decoro. Como o pensamento ainda é livre, você se mantém ideologicamente livre e combatente. 4) No micro conjuntura, você talvez conte com o serviço doméstico na sua casa. Você paga os direitos trabalhistas (é o mínimo que se pode fazer, não?). Na macro conjuntura, você luta para que a sociedade se organize de tal forma que tais serviços se tornem obsoletos. E, ao mesmo tempo, você se alinha com políticas educacionais que possam ir – progressivamente – oferecendo novas oportunidades de trabalho para as pessoas que dependam desses serviços para sobreviver. Você não as condena a um limbo ideológico afinado com o seu e muito menos a uma casta trabalhista para que você nunca perca os seus privilégios de patrão (ainda que bonzinho). 5) Na micro conjuntura, talvez, você conviva com pessoas que acabaram de descer da caravela do Pedro Álvares Cabral sob todos os aspectos (as mesmas pessoas, aliás, que só puderam viajar na caravela graças a Galileu Galilei- entre outros, que quase acabaram mortos na fogueira. Então, coerência é um artigo bastante escasso no mercado – diga-se de passagem). No macro conjuntura, você tenta respeitar a diversidade e se manter crítico às inconsistências. E assim vamos navegando porque viver é impreciso. Revista Ponto de Escambo #8
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Projeto contemplado pelo
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CorrealizaĂ§Äƒo
Parceria
Financiamento