Revista Ponto de Escambo #10

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EDIÇÃO: #10 ANO: 2021

DISTRIBUIÇÃO GRATUITA


Equipe:

Daniele Noronha Proponente

Douglas Temperine Designer

Roberta Bandeira Designer

Clara Sthel Jornalista Responsável

Ronald Lincoln Jr. Colaborador Especial

Amanda Pinheiro Jornalista Convidada

Marilía Pereira de Jesus Colaboradora Especial

Juan Calvet Ilustrador

Mariana Dias Senna Ilustradora


Editorial: Por Clara Sthel

A Revista Ponto de Escambo volta com uma edição impressa em 2021, após um ano de pandemia. O campo da cultura se reorganiza. Com um olhar especial para as periferias buscamos entender as perspectivas e a reorganização de movimentos e instituições educacionais e culturais para os desafios da retomada. Nesta edição buscamos artistas de todos os cantos do Rio de Janeiro que atuam em diferentes áreas da arte e cultura. Além de abordar todos os desdobramentos da pandemia de Covid -19 na vida das pessoas, como a matéria sobre o carnaval 2021 que foi cancelado e os relatos dos trabalhadores dos barracões que ficaram sem emprego este ano. Temos também literatura com o conto da escritora Marília Pereira e um artigo de opinião que relembra memórias da infância do escritor Ronald Lincoln. Na parte visual contamos com os ilustradores Mariana Dias Senna e Calvet Arts, jovens artistas promissores convidados para colaborar com a nossa publicação. A capa foi desenvolvida com carinho pela Roberta Bandeira, uma intervenção artística em uma foto da Clara Sthel. Mudamos a identidade visual da revista e contamos com o trabalho dos designers Douglas Temperine e Roberta Bandeira, para trazer uma revista visualmente mais moderna. Buscamos trazer reflexão mas também um respiro em tempos tão difíceis como o que estamos vivendo hoje. Pensar em arte e cultura no Brasil nunca foi fácil, em tempos pandêmicos parece impossível. Mas sabemos que não é, por isso que a Revista Ponto de Escambo ressurge para ouvir e ser uma ponte entre quem faz e você que nos lê.

Acesse todas edições através do Qr Code ou do link: issuu.com/escambocultural


Sumário Carnaval 2021 Por Amanda Pinheiro

Jubelido Por Ronald Licoln Jr. Entrevista

Luanda Silva de Moraes Por Clara Sthel

Artistas na Pandemia Por Clara Sthel Entrevista

Maria Lucas Por Clara Sthel

Pagode da Saideira Por Marília Pereira de Jesus

Vida em Branco Zélia Ducan


Sem o carnaval, trabalhadores dos barracões das escolas de samba relatam como têm buscado outras fontes de renda Por Amanda Pinheiro

Fotografia: Alexandre Brum (Agência Enquadrar)

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glomerações, blocos, desfile das escolas de samba, fantasias, glitter e marchinhas. É o que se espera quando chega o mês de fevereiro: carnaval. No entanto, devido a pandemia da Covid-19, uma das festas mais importantes e esperadas da cultura popular foi cancelada. E, além da tristeza dos foliões, pessoas que têm o carnaval como fonte de renda sentiram diretamente esse impacto que abalou o setor cultural.

tem uma equipe de 15 pessoas para confeccionar fantasias, conta que já trabalhou para agremiações como Portela, Salgueiro e Mocidade. — Eu vou aos barracões, pego um protótipo da fantasia, faço a reprodução, depois monto uma equipe. E costumo confeccionar roupas para mestre-sala e porta-bandeira, passistas e alas específicas das escolas de samba — explica Luizinho, como é conhecido.

Desde o dia 22 de janeiro, quando Eduardo Paes (DEM), prefeito do Rio, descartou a possibilidade da folia (blocos e desfiles na Sapucaí), que antes tinha sido adiada para julho, trabalhadores como José Luís da Cunha, de 56 anos, que há 25 presta serviços para diversas escolas de samba, tem buscado outras formas de sustento. O artesão, que

Segundo a Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro (Riotur), ano passado, o carnaval movimentou R$ 4 bilhões na economia da cidade. Este ano, o Rio vai deixar R$ 3,6 bilhões para trás, por conta do cancelamento da festa. O artesão, que é morador de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio, afirma que tem atravessado um período

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mas para complementar a renda, tem realizado outras atividades. — Eu fui para o Salgueiro para desfilar. Depois trabalhei na escola mirim, até que o presidente me colocou em outras áreas e eles me contrataram. Por enquanto, tem surgido algumas costuras, também faço almofadas e cortinas. Mas eu vivo do samba. E a gente precisa que tudo isso passe logo, que as pessoas sejam vacinadas e que o carnaval volte, porque precisamos trabalhar — desabafa.

difícil, principalmente pelo cancelamento de outros eventos, onde teria uma oportunidade de emprego. — Confesso que ficou complicado, porque não sou aposentado, não tenho emprego fixo e preciso me sustentar e ainda tenho minha família. Então, busquei alguns serviços com figurino no teatro, eventos, decoração em festas, e quando consigo tenho que torcer para não ser cancelado, porque esse setor ficou paralisado um bom tempo — declara. Luizinho que lamenta o cancelamento da folia, mas faz ressalvas:

“O carnaval é o meu sustento e de muitas pessoas, eu dependo disso. Mas não podemos nos arriscar com tantos casos e mortes por covid-19. É um momento delicado, em que devemos nos cuidar e espero que ano que vem tenha a nossa festa com a devida segurança.” Em outro ponto da cidade, na Penha, Zona Norte, dona Maria da Glória Neves, de 68 anos, também enfrenta dificuldades. Há 50 anos a costureira trabalha no Salgueiro. Perguntada sobre sua função, dona Maria é precisa: — Sou versátil. Eu faço tudo. Se precisar cozinhar, limpar, costurar, eu faço — afirma ela, que começou desfilando na escola, até que se tornou funcionária fixa. Funcionária da agremiação, dona Maria possui carteira assinada,

Além de dona Maria, sua filha Fabiana Freitas se emociona ao relatar a situação na qual a família tem passado:

— Diferente da minha mãe, eu trabalho no carnaval quando a data se aproxima. Faço algumas fantasias para a escola mirim, desfilo e sempre surge alguma coisa, mas minha mãe respira carnaval o ano todo. Posso dizer que ela está ficando doente com isso, porque parou tudo. Mas eu espero que todo mundo seja vacinado, que fique tudo bem, e que em 2022 a gente tenha o nosso carnaval — declara Fabiana, que fica com a voz embargada.

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Fotografia: Fábio Rossi

Uma luz no fim do túnel

poníveis em exposições e páginas próprias desenvolvidas pela SMC”. O percussionista Eryck Quirino, de 25 anos, que também é um dos afetados pela falta do carnaval, afirma que os tempos são difíceis, mas ainda há uma esperança de que tudo se resolva da melhor maneira possível.

Após a decisão de cancelamento da festa, houve uma determinação da prefeitura para que a Riotur e a Secretaria Municipal de Cultura abrissem editais para que esses trabalhadores não se prejudiquem ao longo do ano. Segundo a Riotur, “Ferreiros, aderecistas, costureiras, intérpretes, carpinteiros e outros tantos que não aparecem são essenciais para fazer o evento acontecer” e, nos próximos dias, haverá o anúncio deste edital.

— Durante a pandemia fizemos algumas lives que deram para suprir um pouco essa renda e o auxílio emergencial fortaleceu bastante. Na minha casa, começamos a vender sacolé para ajudar nas contas, além dos trabalhos clandestinos, na qual temos que arriscar a vida saindo para tocar, porque não podemos deixar de trabalhar. Mas espero que tudo volte mais próximo do que era antes e que a gente não fique mais sem carnaval, porque é super importante tanto para as contas da cidade como para o bolso dos cariocas — conclui.

Já a Secretaria Municipal de Cultura afirma que lançou um edital que contempla o carnaval de rua. “Serão premiados 125 grupos representativos da cultura do carnaval, exigindo como contrapartida a produção de conteúdos, como um minidocumentário, projeto de memória, faixa musical e fantasia/adereço original, que, posteriormente, estarão disRevista Ponto de Escambo - #10

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JUBELIlDO

Ilustrações: Juan Calvet

Por Ronald Lincoln Jr

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m tapão na nuca do “moreninho”. A palma da mão esticada, os dedos juntinhos na aerodinâmica exata pra estalar o cocoroto raspado. E pá! Os moleques mais velhos gargalham. O “moreninho” passa a mão no lugar do golpe como se esfregasse uma lâmpada. Três desejos: que a dor passe rápido, que o próximo da fila não bata tão forte e que o cabelo cresça liso, de um jeito que não precise raspar.

damental. Situações como a que descrevi aconteciam toda vez que um dos garotos crespos da minha sala, da quinta série, cortavam o cabelo. O cenário era um colégio particular no morro do Jacarezinho, zona norte do Rio, onde eu morava. Boa parte dos alunos favelados, eu entre eles, eram bolsistas e conviviam com gente dos bairros de classe média da região. Estes tomavam a dianteira da brincadeira infame. Maiores, da sexta série, farejavam a gente durante o recreio e se estivéssemos com o cabelo raspa-

A lembrança acima é da época em que eu, o moreninho, estava na antiga quinta série do ensino fun-

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do, recebíamos um tapão na nuca, de todos eles, um de cada vez.

Um dos que mais me zoavam com esse apelido era. Darlã, um dos meus melhores amigos desde a alfabetização, filho de um oficial da Marinha. Preto retinto, passou a fazer alisamento. Dá-lhe guanidina para arrepiar a parte de cima do cabelo, formando pequenos espetos fixados com o caro gel Bozzano. Essa era a moda da época.

E os algozes não apanhavam nunca? Não, não apanhavam. Quem comandava o escracho eram garotos brancos, que não raspavam a cabeça na barbearia, apenas aparavam à tesoura. Nos início dos anos 2000, era raro ver um black power, se comparado aos dias atuais. Vigorava a regra não dita de que negros precisavam usar cabelo o mais curto possível, era um símbolo de higiene e cuidado.

Nossa relação vinha mudando. Nos últimos anos, ele se aproximou dos mais brancos da turma e passou a perseguir os outros. Na época, eu achava engraçado o Darlã, com o cabelo mais crespo que o meu, me chamar de “Jubelildo”, “cabelo duro”, “bombril”, só porque, naquele momento, ele alisava.

Mas ali, naquela quinta série, cortar o cabelo, que deveria ser um ato de embelezamento, virava um terror. O impacto das mãos pesadas sobre nossas nucas ardia, atordoava e humilhava. Demorou um ano para mudarmos de série e, enfim, se esquecerem de nós. Simples assim, perdeu a graça.

Era inevitável, aquilo entrava em minha mente. Também quis alisar e deixar os fios arrepiados, mas não tinha dinheiro para comprar guanidina nem gel. Alguém me disse, certa vez, que espuma de sabonete servia, e tentei. O black ficou armado, mas arrepiar, não arrepiou. O pior é que, certo dia, fazia calor e, então, o sabonete começou a derreter com o suor sobre os meus olhos causando uma ardência terrível, que me fez correr para o banheiro e mergulhar a cabeça sob a torneira. Aí disseram, o segredo para arrepiar é usar clara de ovo, igual ao Supla, o roqueiro. Dispensei a sugestão e continuei Jubelildo, não teve jeito, e estou vivão.

Mas não durou muito a minha paz. Estética não era a maior prioridade dos meus pais, em época de grana curtíssima. Então só podia ir ao barbeiro uma vez no mês, ou um pouco mais, quando o salário do meu pai caia. No intervalo de tempo entre os meus cortes, os fios sobre minha cabeça cresciam com uma velocidade incrível, ganhando volume e frizz. Um projeto de black power que a minha sexta série resolveu apelidar de “Jubelildo”.

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““““ Hoje, olhando para trás, não consigo mensurar o quanto essas pequenas situações, na minha infância, afetaram a minha auto estima. Quase 20 anos depois, consigo enxergar como o racismo fantasiado de brincadeiras fazia com que eu não gostasse da minha aparência, que repelisse a imagem que via no espelho e, em seguida, como Darlã, eu passasse a odiar quem era parecido comigo, quem tinha o cabelo crespo como o meu.

Ou seja, ao negar minha aparência, estou negando a mim, minha família, minha ancestralidade. Acabo servindo ao desejo racista de apagar a existência da minha raça, a raça negra que, sim, tem cabelo crespo, volumoso e tudo bem. Essa é a beleza que se adequa melhor ao meu rosto, ao meu corpo e que me faz pertencer a um lugar no mundo. A ironia disso tudo? É que hoje nosso cabelo virou moda. Não sei se por influência dos jogadores de futebol ou basquete ou mesmo dos rappers internacionais, expoentes negros. Nossa cultura virou moda e em qualquer bairro rico do Rio você pode encontrar salões gourmetizados que oferecem cortes fade, ou seja, cabelos raspados nas laterais com uma textura degradê. Há mais de 20 anos, chamávamos isso de corte do Jaca, lá no Jacarezinho, mas não era moda, né, mundo cão? Quem vai apanhar agora? Corte do Jaca que me ajudou a superar esse estigma na adolescência, no Ensino Médio, quando os colegas me respeitavam, quase temiam, por eu morar no Jacarezinho, favela braba, e reconheciam isso pelo cabelo. Bobeira, sempre fui tranquilão, mas não reclamei quando, ali, o crespo me defendia. Muitos anos depois, agora na pandemia, experimentei deixar crescerem cachos, um black de verdade, e estou curtindo mesmo. Me permiti ser Jubelildo de novo. Desta vez, em paz. Ainda.

“Eram ideias violentamente aplicadas em nossa cabeça para espancar nossa essência.“ Como diz a professora e pesquisadora Nilda Gomes, “o cabelo é um dos elementos mais visíveis e destacados do corpo. Em todo e qualquer grupo étnico ele é tratado e manipulado, todavia a sua simbologia difere de cultura para cultura. Esse caráter universal e particular do cabelo atesta a sua importância como símbolo identitário.”

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Luanda Silva de Moraes e a Nova Universidade Por Clara Sthel

Primeira reitora negra de uma Universidade Estadual no Rio de Janeiro defende uma Universidade para o povo.

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Fundação Centro Universitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro (UEZO), é conhecida carinhosamente pelos seus alunos como a “queridinha das estaduais”. Com 15 anos de (r)existência, localizada em Campo Grande, funciona dentro de uma escola estadual, o Instituto de Educação Sarah Kubitschek. A universidade virou notícia após eleger a primeira reitora e vice-reitor negros da história das universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro: Luanda Silva de Moraes e Dario Nepomuceno. Luanda Silva de Moraes, 43 anos, engenheira química pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro) e doutora em Ciências e Tecnologia de Polímeros pela UFRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Em 2017, foi vice-reitora e agora em 2021 assume a reitoria. Ela conversou conosco e falou sobre os impactos de uma universidade na zona oeste.

Fotografia: Paulo Vitor

um todo, mas uma importância especial para a zona oeste do Rio. Somos uma instituição que é resultado de uma política de inclusão do estado. Jovens que antes precisavam atravessar a cidade para chegar nas universidades públicas, hoje tem acesso à universidade próxima de suas casas. É um centro universitário dentro da periferia. Uso a palavra periferia no sentido geográfico: bairros afastados do centro do município. Quando olhamos e vemos quem são os moradores desses bairros como, Campo Grande, Paciência, Santa Cruz, Senador

Revista Ponto de Escambo: Qual a importância da UEZO na zona oeste do Rio de Janeiro? Luanda Moraes: A UEZO tem uma importância para o Estado como Revista Ponto de Escambo - #10

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você vence a eleição da reitoria. Como a senhora percebe tudo isso?

Camará e Realengo vemos que é uma população em sua maioria preta/parda. Nosso corpo estudantil é em grande parte composto por pessoas que ingressaram por ações afirmativas. Com uma geração de jovens locais graduados o tipo de emprego e remuneração mudam também. A UEZO é uma forma de retornar para a comunidade os impostos arrecadados, que não são poucos, nessa parte

Luanda Moraes: Uma mulher negra da gestão de uma universidade, percebo que é uma quebra de padrão. Lembro da minha época de faculdade, a memória era de reitores homens e brancos, uma figura distante. Sinto que os alunos se sentem mais à vontade para se aproximar da reitoria. No ano de 2017, como vice-reitora começamos um projeto de humanização da universidade. Vivíamos uma época complicada, estávamos sem equipe de limpeza e seguranças para trabalhar, para fazer a instituição funcionar como o mínimo de salubridade. Tenho orgulho de dizer que eu participei da primeira greve da UEZO. Neste mesmo ano organizamos a Semana da Consciência Negra, e foi algo muito especial para mim, tivemos oficinas, debates, roda de conversa. Em 2020, os próprios alunos cuidaram da organização do evento, que se tornou um projeto de extensão, e foi on-line devido à pandemia. E eu não pude ficar mais orgulhosa, jamais conseguiria fazer um evento com o brilhantismo deles. Acredito que o mestre está pronto quando seus alunos o superam,

“Lembro da minha época de faculdade, a memória era de reitores homens e brancos, uma figura distante.” da cidade. Um retorno com ensino, pesquisa e extensão de qualidade. Revista Ponto de Escambo: Quando você diz que a maioria dos alunos são pretos e pardos, me parece um movimento de representatividade ter uma reitoria preta também. No entanto, sabemos que essa não é a realidade da maioria das instituições públicas de educação no Brasil. Além disso, o ano de 2020 foi marcado não só pela pandemia mas pelo movimento que começou nos EUA e se estendeu ao Brasil com o “Vidas Negras Importam”, neste mesmo ano

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e eu senti isso nas últimas edições da Semana da Consciência Negra.

tura densa eu já tinha o livro há um tempo mas resolvi voltar a ler. Também gosto muito dos livros do Renato Nogueira (Por que amamos, Mulheres e Deusas), Djamila Ribeiro (Quem tem Medo do Feminismo Negro,Pequeno Manual Antirrascista), Eliane Alves Cruz (O Crime do Cais do Valongo, Água de Barrela) e artigos da UNIAFRO.

Revista Ponto de Escambo: Me parece que a UEZO está se construindo como um espaço acadêmico integrado com a comunidade… Luanda Moraes: Sim. Ouvimos as lideranças locais, as associações de moradores e a comunidade. Percebemos que há uma demanda por cursos de humanas, mas esbarramos na questão de estrutura física, ainda não temos estrutura, mas há uma vontade de expandir os cursos oferecidos. Hoje temos mais de 30 projetos de extensão com empreendedorismo, inovação e meio ambiente. Janeiro agora acontece no YouTube os Seminários de Verão que discutem temas relevantes para toda a comunidade e não só para o meio acadêmico. Uma mensagem que eu quero deixar bem clara é que a UEZO é do povo e para o povo, que a sociedade entenda seu pertencimento aqui.

A Fundação Centro Universitário da Zona Oeste (UEZO), conta com 10 de cursos de graduação nas áreas de: ciências biológicas, computação, farmácia, tecnologia em construção naval e engenharias. Em 2005, a instituição fazia parte da rede FAETEC. Em 2009, com a LEI Nº 5380 se emancipa. O ingresso para o centro universitário pode ser feito pelo vestibular ou SISU. Localizada em Campo Grande, bairro que é um distrito industrial que comporta grandes empresas nacionais e multinacionais e tem uma grande arrecadação de impostos para o estado do Rio de Janeiro. Apesar disso, o investimento em educação pública ainda não é o ideal. A UEZO resiste dividindo o espaço com uma escola estadual com poucas salas e seus técnicos administrativos e de laboratório não têm plano de carreira.

Revista Ponto de Escambo: Me conta o que você está lendo atualmente… Luanda Moraes: Peguei para ler o livro Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves, é uma leiRevista Ponto de Escambo - #10

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Artistas na Pandemia Por Clara Sthel

setor cultural foi um dos setores mais afetados pela pandemia do Covid-19. Responsável por uma grande fatia da classe trabalhadora, a cultura e a economia criativa pararam em 2020. Os profissionais da área de cultura foram os primeiros a pararem de trabalhar e serão os últimos a retomarem integralmente suas atividades. Quando os eventos, peças, shows, gravações cinematográficas, festivais foram cancelados em efeito dominó até ser decretado o estado de calamidade pública. Segundo a Pesquisa de Percepção dos Impactos da Covid-19 nos setores cultural e criativo no Brasil, 48,8% dos agentes culturais perdeu 100% da sua receita entre maio e julho.

raciais, espaciais e de acesso. Quem já estava isolado de segurança pú blica, saneamento básico e saúde básica ficou ainda mais exposto ao vírus. Vimos algumas favelas do Rio de Janeiro onde a polícia em meio a pandemia entrou nas comunidades para fazer operações policiais. Ao mesmo tempo, nessas mesmas favelas as Unidades de Pronto Atendimento (UPA) não tinham atendimento adequado a pessoas com sintomas da doença. Havia falta de água e de estrutura para que as pessoas pudessem fazer um isolamento adequado como pedia o Ministério da Saúde. A população da favela que trabalhava de forma informal quase passou fome se não fosse iniciativas como Gabinete de Crise, no Complexo do Alemão, Coletivo Fala Acari, em Acari, Frente CDD, na Cidade de Deus e a Frente de Mobilização da Maré, no complexo de favelas da Maré.

Em 29 de junho de 2020, a Lei Aldir Blanc foi sancionada pelo presidente, mas o decreto que detalhou o benefício só foi publicado quase 2 meses depois: 18 de agosto. Após 7 meses depois do decreto de calamidade pública em razão do vírus, começou a ser pago o auxílio emergencial para artistas. Pensar nos impactos da pandemia sem incluir a favela como também espaço de produção de cultura, arte e empreendedorismo é ignorar a geografia e história da cidade do Rio. O Covid-19 escancarou mais as desigualdades sociais,

Ouvimos frases fúnebres do presidente Jair Messias Bolsonaro em coletivas de imprensa, situações que ele fazia questão de não respeitar o protocolo: sempre sem máscara de proteção. Medo do vírus, do (des)governo, do desemprego, da fome, da Cloroquina, das fake news disseminadas por robôs pelo WhatsApp, de não conseguir o auxílio emergencial. Há meses

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a população brasileira acompanha um filme de terror protagonizado pelo avanço do Covid-19 no país e pelo negacionismo articulado do presidente da República. Não romantizar a relação artista X trabalho. Para além de uma produção que é subjetiva, o trabalho de um artista continua sendo um trabalho. Artistas periféricos, descentralizados e não herdeiros sentiram o impacto da pandemia como qualquer outro trabalhador autônomo. Com um acréscimo: em tempos difíceis a arte é a primeira coisa que se torna dispensável.

gação do seu trabalho na internet. Nesses quase um ano de pandemia ela se inscreveu pela primeira vez em um edital de cultura (Cultura em Niterói- Arte na Rede) e ganhou. Fez uma vaquinha virtual para trocar o forno que usa na criação das peças de cerâmica do seu ateliê, o Ateliê Kianda, criou uma oficina de cerâmica para iniciantes online e gratuita, no You Tube. Seu trabalho foi notado pela revista Vogue Casa que fez uma matéria sobre. “Eu tive que bancar emocionalmente e objetivamente as minhas decisões de vida”, conta. Gabriella acredita que 2020 foi um ano difícil, mas foi um ano em que ela conseguiu planejar de forma mais estratégica sua carreira como artista. Em 2021, a artista plástica começa com novos projetos: uma parceria com o Sesc de São Gonçalo para uma vídeo performance, a Paiol Cultural, produtora de Niterói fornecerá equi-

Fotografia: Manuel Fer

Autorretrato, 2018; Argila.

Gabriella Marinho, artista plástica.

Como os artistas sobreviveram? Sem romantizar a resiliência Gabriella Marinho, artista plástica, ceramista afrodiaspórica e jornalista, 26 anos, moradora do Jardim Catarina em São Gonçalo usou o tempo de isolamento para divul-

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pamento de audiovisual para que Gabriella possa continuar gravando conteúdos para internet e a loja de cama, mesa e banho Ayo, venderá a partir de fevereiro peças utilitárias de cerâmica assinadas pela artista.

ta tem pelo samba, mas pela vida”, defende Vander Araujo, assessor de comunicação do Criolice. Para Vander, sem uma programação de cultura na cidade do Rio para. Ele acredita que entre abril e maio aos poucos em doses homeopáticas o calendário cultural da cidade retoma. Raphael Cruz, artista plástico e produtor cultural, 29 anos, cria de Irajá e hoje morador do Fogo Cruzado, no Complexo da Maré, “virou o jogo” de uma situação a partir do momento que se posicionou contra a prática de produtoras de audiovisual que pagam valor de fome por serviços e gravações na favela. Tudo começou quando uma produtora, durante a pandemia, entrou em contato com ele por mensagens de celular oferecendo 100 reais para locar a casa e ser um produtor local durante a gravação de um clipe de funk no Complexo da Maré. Indignado com a proposta, Cruz resolveu fazer uma postagem no Instagram mostrando a conversa e alertando do perigo que seria uma gravação dentro da favela com muitas pessoas de fora entrando, o que poderia ocasionar mais contaminação. Depois disso, a postagem viralizou na internet e os donos da produtora de audiovisual procuraram Raphael, e o artista do clipe fez um vídeo pedindo desculpas. Todo orçamento do clipe foi dado ao Rafael que seria o diretor criativo do clipe. Com 15 mil reais, Cruz formou uma

O projeto Criolice,uma roda de samba que nasceu há 10 anos em Padre Miguel e hoje reside em Madureira. Em 2020, uniu forças para sobreviver. Além da criação de um Boteco Criolice onde foram vendidas refeições para conseguir verba e manter o aluguel do espaço que custa 8 mil reais, o grupo também organizou no bairro de Padre Miguel uma arrecadação de quase 1 tonelada de alimentos para distribuir para músicos, colaboradores e moradores do bairro. A mobilização contou com um carro de som que passava pelas ruas do bairro pedindo doações. “A grande lição que a cultura nos deixou no último ano é que temos que ter o espírito do sertanejo e o amor que um sambis-

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cachê do clipe possibilitou comprar mais um computador e a equipe fez uma vaquinha na internet e também deram uma entrevista para a exposição Travessias 6, organizada pelo Galpão Bela Maré. Esta entrevista chegou até a equipe de curadoria do Instituto Moreira Salles (IMS), que convidou o Tijolin Studio para participar de uma programação voltada para a pandemia, o IMS Convida, onde foi desenvolvido um canal no Youtube para ensinar animação 3D.

equipe de 9 pessoas: designers, editores, ilustradores e animadores da favela para criar um clipe todo em animação 3D. A equipe com apenas um computador criou o clipe Churrasco na Laje, e moraram juntos durante 3 meses e meio no estúdio/atêlie Rato Preto, onde Raphael mora com outros artistas. O clipe foi uma saída excelente e criativa para não expor ninguém na rua para gravar, foi tudo feito no estúdio. “Esse trabalho deu tão certo que depois disso tivemos a ideia de criar um estúdio de animação e trabalharmos mais juntos, nasceu aí o Tijolin Studio”, explica o artista. O estúdio de animação em 3D começou com o clipe e uma equipe de nove pessoas, hoje são doze. O

Raphael Cruz, artista plástico. / Fotografia: Clara Sthel

Como recuperar?

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Neste processo de levante da cultura é importante entender as demandas e especificidades de cada estado e cidade e criar estratégias específicas que atendam o setor. Segundo a pesquisa Dez Anos de Economia da Cultura no Brasil e os Impactos do Covid-19, do observatório Itaú Cultural, as ações para sair dessa crise são: acesso às informações direcionadas ao setor, participação de redes de indicações de trabalhos, informações de como se portar na reabertura, consultoria, apoio psicológico e treinamento. Algumas possibilidades é que as secretarias de cultura ofereçam workshops e treinamentos de como fazer eventos de médio e grande porte dentro dos protocolos de segurança e abertura de mais editais de cultura. A mesma pesquisa apontou que 1 em cada 2 profissionais da cultura perdeu trabalho em 2020.


Atravessando a Cidade com Maria Lucas

Maria Lucas/ Fotografia: Zô Guimarães

Por Clara Sthel

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ria saber o que você está lendo, ouvindo e assistindo e entender mais do seu processo criativo no dia a dia.

róteses de Proteção, esse foi o título do ensaio que Maria Lucas, artista, pesquisadora, escritora e mestre em artes da cena pela UFRJ, foi a vencedora do 3º Concurso de Ensaísmo da Revista Serrote, do Instituto Moreira Salles (IMS). No texto a escritora travesti narra o contato da sua corpa com o espaço público durante a pandemia do Covid-19. Nascida em 1989, cresceu na favela da Rocinha e ingressou na graduação de teatro pela PUC-Rio. Em entrevista exclusiva para a Ponto de Escambo ela fala um pouco sobre a sua pesquisa e sobre “habitar nas bordas e nas instituições”.

Maria Lucas: Atualmente tenho voltado a ler clássicos da literatura brasileira -os revisitando e questionando- como os romances A Hora da Estrela e O Cortiço. Isso porque eu estou me aventurando a escrever o meu primeiro romance, que é um desafio após anos pesquisando e escrevendo mais no gênero ensaio, textos acadêmicos e poesias, além de algumas inserções no meio teatral. Acabei também de rever as duas temporadas de Pose e Veneno, ambas séries importantíssimas para o cinema, e para a cultura

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estamos, numa enxurrada de informação pelas telas e nessa quarentena que não termina nunca, tenho estado um pouco cansada de ouvir músicas com letras e tenho buscado ouvir apenas sons que me acalmem e que me auxiliem nas leituras e construções artísticas que venho fazendo; tenho ouvido um setlist com experiências sonoras da artista trans escocesa Sophie, que recentemente faleceu após subir em um lugar mais alto pra olhar melhor a lua cheia.

trans, no mundo. As duas séries possuem elenco majoritariamente transgênero interpretando personagens trans, fazendo com que nos vejamos na tela de forma mais verdadeira e menos caricaturada e fugindo da prática do transfake, que é quando atrizes e atores cisgêneros interpretam personagens trans. Além das séries e leituras anteriores, também estou lendo o livro Las Malas, de Camila Sosa Villada, uma atriz e escritora trans argentina que traz suas histórias e memórias nesse livro. Toda essa leitura e pesquisa se dá pois o romance que estou construindo se passa na vida de uma adolescente trans nas ruas do centro do RJ, estou buscando o que me aproxima e o que me distancia dessa personagem, além de COMO escrever um romance. Como estou, e

Revista Ponto de Escambo: Durante o papo do Diálogos Latinos e Poéticas Femininas na Periferia, você falou um pouco sobre o projeto do Trava News, queria saber com mais detalhes sobre: será um jornal digital? uma newsletters?

Maria Lucas: O projeto Trava News é o meu objeto de construção como pesquisadora na residência que estou atualmente pela parceria entre MAM-Capacete. Essa proposta nasce da angústia em sermos, mulheres trans e travestis, por séculos retratadas de forma mesquinha pela grande mídia no Brasil; ou se fala apenas de nossa morte, ou somos colocadas de forma caricatural, ou escolhem uma única para representar a fala, dor e

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Revista Ponto de Escambo Na sua opinião, como transformar a dor causada pelas opressões em arte, de modo que não seja romantizada a experiência?

vivência de todas. Muito inspirada pelo Museo Travesti del Perú, obra de Giuseppe Campuzano, procuro criar rascunhos artísticos para distorcer a nossa construção midiática e produzir imagens onde somos colocadas em espaços de poder, subverter essa lógica da mídia que nos apaga e desumaniza. Como é um processo de residência, sem necessariamente a construção de um produto final, fiquei interessada em construir fragmentos dessa possibilidade de jornal, para lançar como nas lógicas do fake News, tão comuns e perigosas atualmente, sem minha assinatura e sem a aura de ser um “objeto artístico” a ser lido e assistido em determinadas plataformas e espaços. Mas venho pensando sobre o quanto já somos marginalizadas e o tanto que lutamos para estarmos nesses espaços elitistas (academia, instituição de artes etc), assim como também para sermos reconhecidas pelo nosso nome e gênero. Por isso, atualmente estou debruçada não só sobre a construção dessas imagens (que se dará por meio de colagens) e de textos curatoriais e investigativos que me acompanham nessa construção... esse material será publicado ainda esse ano, e tem me parecido importante plasmar minha arte nas letras, nas instituições, como uma forma de comprovar que estou e estamos ali. Por agora, mais do que isso não sei, ainda estou em processo de pesquisa, as coisas ainda podem mudar.

Maria Lucas: Essa é uma pergunta difícil que me faço diariamente. Não tenho respostas pra ela; eu escrevo e trabalho com arte para me manter viva, seja para extrapolar minhas dores ou seja para arcar com minha vida financeira, eu não sei fazer outras coisas além disso, não sei o que te responder além disso. Revista Ponto de Escambo: Outra coisa que fiquei pensando bastante quando li suas entrevistas foi sobre a sua experiência no mestrado na UFRJ, como foi para você? Por mais que você já tivesse estudado na PUC- Rio que é um ambiente elitizado, queria entender mais como foi o seu mestrado e o desenvolvimento da sua pesquisa. Maria Lucas: Os ambientes institucionais são feitos apenas para alguns corpos, que se aproximam do ideal burguês, europeu e colonizado; quanto mais você se distancia disso, se torna insuportável conviver e ser silenciada nesses locais. No meu processo de mestrado eu estava abrindo mao do, talvez, meu único “privilégio” social que era alocado a minha existência: de ser lida como um homem cis pela sociedade. Entrei no mestrado já

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Revista Ponto de Escambo: Na entrevista a Folha de SP (13/11/2020). você disse: “travesti é uma identidade latinoamericana, brasileira”, queria que você falasse um pouco sobre isso. Para mim, mulher cis sempre achei que era uma ofensa chamar uma pessoa travesti, já que a mídia tradicional geralmente usa o termo de forma bem equivocada.

sendo uma bixa não binaria que se montava de drag queen, e isso por si só me privou de uma série de coisas, inclusive de respeito ao meu processo artístico. Quando inicio meu processo de compreender e me empoderar como trans esse espaço, como todos os outros do mundo, artísticos ou não, se tornam disputas diárias por ser ouvida, por criar redes de troca e afeto. Sobre a pesquisa, eu vivi uns cinco anos como artista drag, na noite carioca trabalhei muito em boates, shows, eventos, teatro, e foi nesse processo que fui construindo minha travestilidade, minha mulheridade. Meu projeto foi mapear essa desconstrução no meu corpo, trazendo um arsenal de referências sobre gênero e performance (em teorias do teatro e da performance art, mas também relacionado ao que se entende como Queer Studies), aliados a história da travestilidade e da montação na América Latina, no Rio de Janeiro e do Brasil. Se deu como uma cartografia de espaços e corpos relacionados à arte da montação, por meio de uma escrita crítica e ensaística aliado ao meu diário pessoal, foi um processo teórico-prático.

Maria Lucas: Bixa, Travesti, Sapatao são palavras que, assim como o Queer em países de língua inglesa, nascem das injúrias alocadas em nossas. É sobre se empoderar das pedras que são jogadas contra você e se orgulhar de ser algo que a cis-hetero-norma ridiculariza e exclui. Eu não me descobri bixa, me gritaram isso já na primeira infância; em casa, na escola, na igreja. Eu não me descobri travesti, isso me foi gritado na rua, na padaria, pela polícia ou quando começaram a me parar na luz do dia no centro do Rio perguntando quanto era o programa. Hoje eu não me incomodo de ser apresentada como Mulher Trans, só me parece um termo higienizado e me orgulha bater no peito e gritar que sou uma travesti. Precisamos utilizar esse termo estigmatizado socialmente, precisamos nos orgulhar de sermos algo que a sociedade abomina.

“Eu não me descobri bixa, me gritaram isso já na primeira infância; em casa, na escola, na igreja. Eu não me descobri travesti, isso me foi gritado na rua.” Revista Ponto de Escambo - #10

Revista Ponto de Escambo: Me conta um pouco da relação da sua família com a sua obra/pesquisa/

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trabalho? Maria Lucas: Tenho o privilégio de ter uma mãe maravilhosa, uma mulher paraibana, empregada doméstica aposentada, leonina, católica. Ela me ama e me acompanha independente de tudo, e o nosso amor me mantém firme. Fora isso, precisamos questionar o conceito de família e compreender que ela está para além dos laços sanguíneos, sobretudo para pessoas trans. Possuo pessoas que conheci nessa minha trajetória de vida e artística que hoje fazem parte do que compreendo como “família”, já outras, com laços de sangue, tive de excluir ou ser excluída por eles.

Gostou da entrevista com a Maria Lucas? Se quiser saber mais sobre alguns assuntos abordados por ela segue algumas indicações:

Maria Lucas está como pesquisadora residente no MAM- Rio (Museu de Arte Moderna), e lançando o livro “Esse sangue não é de menstruação mas de transfobia”. O livro foi publicado a partir de um financiamento coletivo feito na internet, e está em fase.

Documentário Disclosure: dirigido e produzido por Sam Feder e disponível na Netflix. O documentário faz uma análise cuidadosa sobre a representação de pessoas trans em Hollywood. Casa Nem: uma ONG do Rio de Janeiro que é uma casa de acolhimento de pessoas LGBTI+ em vulnerabilidade social. A casa Nem fica na Rua Dois de Dezembro, 09, no bairro do Flamengo. Aceitam doações. Contato: (21) 98880-0322. TransEmpregos: site voltado para divulgação de vagas de emprego para profissionais transgêneros do país inteiro. O site também oferece cursos e atividades de aperfeiçoamento profissional. Site:https://www.transempregos.org/

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Pagode da Saideira Ilustrações: Mariana Dias Senna

Por Marilia Pereira de Jesus

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ra meu aniversário de 37 anos quando uma das minhas filhas foi assassinada enquanto saia de um bar aqui da Zona Norte do Rio de Janeiro. Desde esse dia, a minha vontade de viver se reduziu à luta, incessante e desgraçada, para sobreviver. A missão é continuar respirando, afinal, eu ainda sou mãe de dois: uma gêmea da falecida e um menino mais velho do que elas. Para completar, minha filha fez a passagem, mas me deixou um neto. Um netinho que é como se fosse um nebulizador em noites de falta de ar, quando a missão de continuar respirando fica mais complicada. Ele se chama Wesley. Revista Ponto de Escambo - #10

Dizia minha filha que é o nome do pai dele. Vai saber... De uns tempos para cá, beirando seus quatro anos, o menino começou a me perguntar “cadê o papai?”. Como eu vou saber cadê o pai dessa criança? Viviane tinha 20 anos quando eu a perdi para a violência desta cidade. Na época, um homem com uma 38 em punho, saindo de um Honda Civic branco, mandando todo mundo que estava no bar deitar no chão e “passar tudo”, foi só o que as câmeras de segurança mostraram. E até hoje, 12 anos depois, é tudo o que sabemos. Viviane deu mole, mas não culpo a menina. Jamais!

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O tiro foi na barriga. No ventre... Onde a vida se cria foi disparado o tiro que tirou a vida da minha filha. Ventre que gerou meu neto. Levou um tiro. No dia que eu deveria comemorar a vida eu enterrei minha filha. Que vida é essa?

Ela sabia da dificuldade que seriacomprar outro celular caso perdesse aquele, por isso resistiu. Resistiu ao ponto de não entregar o celular quando o assaltante mandou. Naquela noite, Viviane não tinha me avisado que chegaria tarde. Eu também não achei que ela fosse ficar pela rua, já que no dia seguinte era meu aniversário e ela e minha outra filha, Verônica, sempre me acordavam com um abraço que mais parecia um sanduíche de afeto. Nós três. Eu, como mãe preocupada sem notícias da sua cria, não preguei os olhos. Comecei a observar o ponteiro do relógio dar voltas e voltas nos números, até que, quando chegou na trigésima nona volta, marcando duas e meia da manhã, eu não aguentei mais o silêncio como resposta das minhas suposições.

Hoje Wesley tem quase 16 anos e vai pro Bar da Amendoeira comigo. Eu bebo litrão e ele Guaraná. Está um rapaz. Até hoje não respondi a pergunta que ele me fazia quando moleque: “Cadê o papai?”. Magrinho, meu companheiro, há pouco tempo conseguiu a vaga de garçom nesse bar. O ambiente, na maioria do tempo, é familiar e muito descontraído. O Bar da Amendoeira é o quintal da casa dos moradores do bairro suburbano. Lá ninguém me chama de Conceição, que é meu nome de batismo. Lá eu sou a “Fofa”. A mulher que sempre responde a pergunta: “como você está?” com um “cada dia melhor”, mesmo definhando. Apesar de tudo, as marcas da vida me tornaram uma mulher que não admite passar um dia sequer sem sorrir. Mesmo que seja difícil conseguir fazer os músculos do rosto formarem um sorriso, eu continuo resistindo.

As pessoas que estavam no bar me falaram que ela tinha acabado de dizer ao bandido que já tinha entregado tudo quando eu liguei para ela. E o telefone tocou. A Vivi sempre deixava o celular no silencioso, mas naquele dia não. O telefone tocou e, a impressão que eu tenho quando ouço os relatos daquele dia é que tudo em volta se transformou em mármore. Tudo, menos a mão que segurava àquela 38.

Não sem razão, ninguém entendia de onde eu tirava forças para

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tiva de fugir dali, fitei os olhos e me coloquei a analisar uma amêndoa amarelinha que tinha acabado de cair do pé e se machucado, deixando visível o seu interior branco como a lua nos olhando do céu, escutei um ronco de motor diferente dos que passavam por aquela Travessa. Era um Honda Civic branco. Tinha um cara dentro. Senti meu rosto esquentar de uma maneira que ficaria corado se a minha melanina não fosse tão acentuada. Cancelei a saideira, peguei na mão do Wesley e antecipei nossa volta para casa. Estou aguardando a chegada do Magrinho para saber qual foi o desfecho dessa vez. Espero que ele chegue. O ponteiro do relógio já deu a trigésima volta nos números. Desta vez eu não vou ligar.

sorrir e estar “cada dia melhor”. Ainda mais ali naquele cenário. A minha filha foi baleada na madrugada do dia 10 de setembro de 2002 saindo do Bar da Amendoeira. Desde então, todos os dias 10 de setembro são dias tristes. Pesados... Sofridos... Doloridos... Dias ruins... Dia do meu aniversário também. Só não é dia para comemorar. Nada. Este ano, pela primeira vez no dia 10 de setembro eu estava lá no Bar da Amendoeira. Fui na tentativa de ressignificar aquela data, naquele local. Se era difícil para mim, imagina pro Magrinho que passou a ganhar o pão ali, no cenário onde interromperam uma das vidas resultadas do nosso encontro. Depois desse exercício, pedi a saideira para ir embora. Enquanto esperava a cerveja chegar, na tenta-

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Vida em Branco Você não precisa de artistas? Então me devolve os momentos bons Os versos roubados de nós As cores do seu caminho Arranca o rádio do seu carro Destrói a caixa de som Joga fora os instrumentos Você não precisa de artistas? E todos aqueles quadros Então fecha os olhos, mora no breu Deixe as paredes em branco Esquce o que a arte te deu Assim como a sua cabeça Finge que não te deu nada Seu céu de ciumento Nem um som, nem uma cor Silêncio cheio de ódio Nem uma flor na sua blusa Armas pra dormir Nem Van Gogh, nem Tom Jobim Nenhuma canção pra ninar Nem Gonzaga, nem Diadorim E suas crianças em guarda Esperando a hora incerta Você vai rimar com números Pra mandar ou receber rajadas Vai dormir com raiva E acordar sem sonhos, sem nada E esse vazio no seu peito Não tem refrão pra dar jeito Não tem balé pra bailar Você não precisa de artistas? Então nos perca de vista Nos deixe de fora Desse seu mundo perverso Sem graça, sem alma

Zélia Ducan 26


Fotografia: Douglas Temperine Performers: Aryelle Christiane e Stephanie Leite

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